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DADOS DE ODINRIGHT

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Converted by convertEPub
© Nora Lezano

Mariana Enriquez nasceu em 1973, em Buenos Aires. É jornalista, romancista, contista e

colaboradora das revistas The New Yorker, Granta, McSweeney’s e Electric Literature. É

docente e subeditora do suplemento Radar do diário Página/12. O seu livro anterior, As Coisas

Que Perdemos no Fogo (Quetzal, 2017), foi publicado em vinte e cinco países.
Três quartos do universo são

escuridão, disse o pai, e

Gaspar percebia, o universo

era noite, mas nem todas as

noites eram assim, frescas e

belas, o motorista no carro a

ouvir rádio, um tango triste, e

caminhar até ao varandim,

não até à margem, porque

não havia margens, porque

não se podia tocar na água,

Gaspar recordava rios da sua


infância e a vontade de nadar

de noite acariciou-lhe a pele.


Mariana Enriquez
Título: A Nossa Parte da Noite

Título original: Nuestra Parte de Noche

Autora: Mariana Enriquez

1.ª edição em papel na Quetzal: outubro de 2020

Tradução: Margarida Amado Acosta

Revisão: Raquel Mouta

Preparação: Carlos Almeida

Edição: Lúcia Pinho e Melo

Design da capa: Rui Rodrigues · Quetzal Editores

Imagem da capa: L'ange déchu (detalhe), 1847, de Alexandre Cabanel.

Original no Musée Fabre, em Montpellier. © AKG/Fotobanco.pt

Produção: Teresa Reis Gomes

© 2020 Quetzal Editores

[Todos os direitos para a publicação desta obra em Língua Portuguesa, exceto Brasil, reservados

por Quetzal Editores]

© 2019 Mariana Enriquez

Publicado pela primeira vez em 2019 por Editorial Anagrama, S.A.

Direitos de tradução para Língua Portuguesa, exceto Brasil, por acordo com Casanovas & Lynch,

Agencia Literaria, S.L.

Quetzal Editores é uma chancela da Bertrand Editora, Lda.

Quetzal Editores

Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1

1500-499 Lisboa PORTUGAL

https://www.quetzaleditores.pt

quetzal@quetzaleditores.pt

Tel. 21 7626000

ISBN: 978-989-722-727-1
«Who is the third who walks always beside you?»

T.S. ELIOT, The Wasteland


As garras do deus vivo,

janeiro de 1981

«Creio que perdemos a imortalidade porque a resistência à morte não

evoluiu; os seus aperfeiçoamentos insistem na primeira ideia,

rudimentar: manter vivo todo o corpo. Só haveria que procurar a

conservação do que interessa à consciência.»

ADOLFO BIOY CASARES, A Invenção de Morel

«I cried, ‘Come out of the shadow, king of the nails of gold!’»

W.B. YEATS, The Wanderings of Oisin


TANTA LUZ NESSA MANHÃ E O CÉU LIMPO, apenas com uma ou outra

mancha branca no azul cálido, mais parecida com um rasto de fumo do

que com uma nuvem. Já era tarde e tinha de sair, e esse dia de calor seria

idêntico ao seguinte: se chovesse e chegassem a humidade do rio e o

sufoco de Buenos Aires, jamais seria capaz de deixar a cidade.

Juan engoliu sem água um comprimido para evitar a dor de cabeça

que ainda não sentia e entrou em casa para acordar o filho, que dormia

coberto por um lençol. Vamos embora, disse-lhe, sacudindo-o ao de

leve. O rapaz acordou logo. Os outros rapazes também teriam esse sono

tão superficial, tão alerta? Lava a cara, filho, e limpou-lhe com cuidado

as ramelas dos olhos. Não tinham tempo de tomar o pequeno-almoço,

poderiam fazê-lo durante a viagem. Encheu as malas, que já estavam

feitas, e hesitou um instante entre vários livros, até decidir levar mais

dois. Olhou para as passagens de avião que estavam em cima da mesa:

ainda havia essa possibilidade. Podia deitar-se e esperar pela data do

voo, dali a uns dias. Para afastar a preguiça, rasgou as passagens e

deitou-as ao lixo. O cabelo comprido fazia-o transpirar na nuca: seria

insuportável sob o sol. Não tinha tempo de cortá-lo, mas procurou a

tesoura nas gavetas da cozinha. Quando a encontrou, guardou-a na


mesma caixa de plástico em que transportava os comprimidos, o

aparelho para medir a tensão, a seringa e algumas ligaduras, primeiros

socorros básicos para a viagem. Também a sua faca mais bem afiada e o

saco cheio de cinzas que eventualmente usaria. Guardou o tubo de

oxigénio: precisaria dele. O carro estava fresco, os assentos de napa não

tinham absorvido muito calor durante a noite. Colocou a geleira com

gelo e dois sifões de refrigerante fresco no assento da frente. O filho

teria de viajar no banco de trás, embora preferisse tê-lo a seu lado; mas

era proibido e não queria arranjar problemas com a polícia ou com o

exército, que patrulhavam brutalmente as estradas. Um homem sozinho

com uma criança podia ser suspeito. Os repressores eram imprevisíveis e

Juan queria evitar incidentes.

Gaspar, chamou, sem erguer demasiado a voz. Como não obteve

resposta, entrou em casa para o ir buscar. O rapaz estava a tentar apertar

os atacadores dos ténis.

— O que para aí vai — disse-lhe, e agachou-se para o ajudar. O filho

chorava, mas não conseguiu consolá-lo. Gaspar tinha saudades da mãe,

ela fazia essas coisas sem pensar: cortar-lhe as unhas, coser os botões,

lavar-lhe a parte de trás das orelhas e as reentrâncias dos dedos dos pés,

perguntar-lhe se tinha feito chichi antes de sair, ensiná-lo a fazer um nó

perfeito com os atacadores. Ele também tinha saudades dela, mas não

queria chorar com o filho nessa manhã. Levas tudo o que queres?,

perguntou-lhe. Olha que depois não podemos vir cá buscar mais nada.

Há muito tempo que não conduzia durante tantos quilómetros.

Rosario insistia sempre para ele conduzir, pelo menos, uma vez por

semana, para não perder o hábito. O carro ficava-lhe pequeno, como

quase tudo: curtas, as calças; justas, as camisas; incómodas, as cadeiras.

Certificou-se de que o guia do Automóvel Clube estava no porta-luvas e

arrancou.
— Tenho fome — disse Gaspar.

— Eu também, mas depois paramos para tomar o pequeno-almoço

num lugar espetacular. Daqui a um bocadinho, está bem?

— Se não comer, vomito.

— E a mim dói-me a cabeça quando não como. Aguenta. Espera um

pouco. Não olhes lá para fora, ou ainda enjoas mais.

Ele próprio sentia-se pior do que queria reconhecer. Tinha

formigueiro nos dedos das mãos e reconhecia as palpitações erráticas da

arritmia no peito. Ajeitou os óculos escuros e pediu a Gaspar que lhe

contasse a história que lera na noite anterior. Com seis anos, já sabia ler

muito bem.

— Não me lembro.

— Lembras-te, sim. Eu também estou de mau humor. Tentamos

mudar os dois ou passamos toda a viagem com cara de cu?

Gaspar riu-se da palavra «cu». Depois, contou-lhe a história de uma

rainha da selva que cantava enquanto caminhava por entre as árvores e

que toda a gente gostava de ouvir. Um dia, apareceram uns soldados e

ela deixou de cantar e tornou-se guerreira. Foi capturada e passou uma

noite presa e fugiu, e para fugir teve de matar o guarda que a vigiava.

Como ninguém acreditou que ela tivesse forças para o matar porque era

muito magra, acusaram-na de ser bruxa e queimaram-na, amarraram-na

a uma árvore e depois ardeu. Porém, na manhã seguinte, em vez do

corpo dela, encontraram uma flor vermelha.

— Uma árvore de flores vermelhas.

— Sim, uma árvore.

— Gostaste da história?

— Não sei, deu-me medo.

— Essa árvore chama-se corticeira. Por aqui não há muitas, mas,

quando vir alguma, mostro-ta. Perto da casa dos teus avós há imensas.
Pelo espelho retrovisor, viu Gaspar franzir o sobrolho.

— Imensas, como?

— É uma lenda, já te expliquei o que é uma lenda.

— Então a rapariga não existe?

— Chama-se Anahí. Se calhar, existiu, mas a história das flores

conta-se para a lembrar, não por ter acontecido mesmo.

— Então aconteceu mesmo ou não?

— As duas coisas. Sim e não.

Gostava de ver Gaspar a ficar sério e até zangado, a morder um dos

lados do lábio e a abrir e fechar a mão.

— Agora também queimam as bruxas?

— Não, já não. Mas agora também já não há muitas bruxas.

Era fácil sair da cidade num domingo de janeiro pela manhã. Mais

cedo do que esperava, os edifícios ficaram para trás. E as casas baixas e

as barracas das favelas da periferia. E, de repente, surgiram as árvores e

o campo. Gaspar já dormia e o sol queimava o braço de Juan como a um

pai comum num fim de semana de piscina e passeios. Mas não era um

pai comum, as pessoas, às vezes, sabiam-no quando o olhavam nos

olhos, quando falavam com ele por uns instantes, de alguma maneira

reconheciam nele o perigo: não conseguia esconder o que era, não era

possível esconder algo assim, não durante muito tempo.

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Estacionou à frente de um café que anunciava submarinos e

croissants. Vamos tomar o pequeno-almoço, disse a Gaspar, que acordou

logo e esfregou os olhos azuis, enormes, um pouco separados.

A mulher que limpava as mesas tinha todo o ar de ser a dona do

estabelecimento e de ser amável e cusca. Olhou para eles com

curiosidade quando se sentaram longe da janela, perto do frigorífico. Um

rapaz com um carrinho de coleção na mão e o pai, que media dois

metros e tinha o cabelo comprido e louro pelos ombros. Limpou a mesa


com um pano e anotou o pedido num caderninho, como se o café

estivesse cheio. Gaspar quis um submarino e bolos com doce de leite;

Juan pediu um copo de água e uma sanduíche de queijo. Tirou os óculos

escuros e abriu o jornal que estava em cima da mesa, embora soubesse

que as notícias importantes não saíam na imprensa. Não havia notícias

sobre os centros clandestinos de detenção, nem sobre os confrontos

noturnos, nem sobre os sequestros, nem sobre as crianças roubadas. Só

crónicas sobre o Mundialito, que se disputava no Uruguai, as quais não

lhe interessavam. Às vezes, tinha dificuldade em fingir normalidade

quando estava distraído, quando estava tão irremediavelmente triste e

preocupado. Na noite anterior tentara, uma vez mais, entrar em contacto

com Rosario. Não conseguiu. Não estava em lado nenhum, não

conseguia senti-la, tinha partido de uma maneira que, para ele, era

impossível de compreender ou aceitar.

— Está calor — disse Gaspar.

O rapaz transpirava, tinha o cabelo húmido, as faces coradas. Juan

tocou-lhe nas costas. A t-shirt estava alagada em suor.

— Espera aqui por mim — disse-lhe, e foi ao carro buscar uma t-

shirt seca. Depois, levou-o para a casa de banho do café para lhe molhar

a cabeça, enxugar-lhe o suor e vestir-lhe a t-shirt que cheirava um pouco

a gasolina.

Quando voltaram para a mesa, esperavam-nos o pequeno-almoço e a

mulher; Juan pediu-lhe outro copo de água para Gaspar.

— Há um parque de campismo lindo aqui, se se quiserem refrescar

no rio.

— Obrigado, mas não temos tempo — disse Juan, tentando parecer

amável. Desabotoou mais alguns botões da camisa.

— Viajam sozinhos? Que lindos olhos tem o menino! Como te

chamas?
Juan teve vontade de dizer filho, não lhe respondas, comamos

enquanto a deixo muda para sempre, mas Gaspar disse como se chamava

e a mulher, sentindo-se encorajada, perguntou com voz hipócrita,

infantil:

— E a tua mamã?

Juan sentiu a dor do rapaz em todo o corpo. Era primitivo e sem

palavras; era cru e vertiginoso. Teve de aferrar-se à mesa e fazer um

esforço para se desprender do filho e daquela dor. Gaspar não era capaz

de responder e olhava para ele à procura de ajuda. Comera apenas meio

bolo. Tinha de ensiná-lo a não se aferrar assim nem a ele, nem a

ninguém.

— Minha senhora — Juan tentou controlar-se, mas a voz saiu-lhe

ameaçadora —, que raio tem a ver com isso?

— Só estava a meter conversa, mais nada — respondeu ela,

ofendida.

— Ah, que bom. A senhora ofende-se por não ter a sua conversa

parva e nós sofremos por causa da sua indiscrição idiota, de velha cusca.

Quer saber? A minha mulher morreu há três meses, atropelada por um

autocarro que a arrastou ao longo de mais de trezentos metros.

— Sinto muito.

— Não. A senhora não sente nada porque não a conhecia, nem nos

conhece a nós.

A mulher ia dizer mais qualquer coisa, mas afastou-se quase a

choramingar. Gaspar ainda estava a olhar para ele, mas tinha os olhos

secos. Estava um pouco assustado.

— Não foi nada. Acaba de comer.

Juan mordiscou a sanduíche de queijo; não tinha fome, mas não

conseguia tomar a medicação com o estômago vazio. A mulher voltou

com um semblante de desculpa e de ombros encolhidos. Trazia dois


sumos de laranja. É oferta da casa, disse, e pediu-lhe desculpa. Não

imaginava uma tragédia assim. Gaspar brincava com o seu carrinho de

coleção vermelho, um modelo novo cujas portas e porta-bagagens se

podiam abrir e que o tio Luis lhe enviara do Brasil. Juan obrigou Gaspar

a acabar de beber o submarino e levantou-se para pagar ao balcão. A

mulher continuou a pedir desculpa e Juan fartou-se. Quando ela

estendeu a mão para receber o dinheiro, prendeu-lhe o pulso. Pensou

enviar-lhe um símbolo que a enlouquecesse, que lhe metesse na cabeça a

ideia de arrancar a pele dos pés ao neto ou de fazer um estufado com o

cão. Conteve-se. Não queria cansar-se. Manter aquela viagem com o

filho em segredo esgotara-o e teria consequências. Por isso, deixou a

mulher em paz.

Gaspar esperava-o à porta: estava de óculos escuros. Quando tentou

tirar-lhos, o rapaz desatou a correr, a rir. Juan apanhou-o perto do carro

e pegou-lhe ao colo: Gaspar era leve e comprido, mas não seria tão alto

quanto ele. Decidiu procurar um lugar para almoçar antes de

prosseguirem viagem para Entre Ríos.

O dia fora muito cansativo apesar da absoluta normalidade de toda a

viagem: pouco trânsito, um almoço delicioso numa churrasqueira de

estrada e uma sesta à sombra das árvores, a margem do rio refrescada

pela brisa. O dono da churrasqueira também metera conversa com eles,

por curiosidade, talvez, mas como não perguntou pela mulher, Juan

decidiu conversar enquanto bebia um pouco de vinho. Sentiu-se mal

depois da sesta e durante todo o trajeto até Esquina: o calor era

inacreditável. Mas agora, enquanto pedia um quarto e fazia o possível

para que o rececionista compreendesse que precisava de uma cama de

casal para ele e outra de solteiro para o filho e que não lhe importava o

preço, apercebeu-se de que, além disso, poderia precisar de ajuda. Pagou


adiantado e aceitou que alguém carregasse as malas pela escada. No

quarto, ligou a televisão para entreter Gaspar e deitou-se na cama. Sabia

como avaliar o que sentia: a arritmia estava descontrolada, conseguia

ouvir o sopro, o ruído do esforço, a náusea das válvulas confusas, doía-

lhe o peito, custava-lhe respirar.

— Gaspar, passa-me a mala — pediu.

Tirou o aparelho de medir a tensão e constatou que estava baixa, o

que era bom. Deitou-se na diagonal, a única maneira de os pés ficarem

em cima do colchão, e, antes de tomar os comprimidos e de tentar

descansar, se possível dormir, arrancou uma folha do bloco da mesa de

cabeceira que o hotel oferecia aos hóspedes e, com a caneta (que dizia

«Hotel Panambí — Esquina»), escreveu um número.

— Filho, ouve-me bem. Se eu não acordar, quero que telefones para

este número.

Gaspar abriu muito os olhos e depois fez beicinho.

— Não chores. É só no caso de eu não acordar, mais nada, mas eu

vou acordar, está bem?

Sentiu o coração a dar um salto, como se tivesse trocado de mudança

numa caixa de velocidades. Seria capaz de dormir? Levou os dedos ao

pescoço. Cento e setenta, talvez mais. Nunca tivera tanta vontade de

morrer como agora, naquele quarto de hotel de província, nem tanto

medo de deixar o filho sozinho.

— É o telefone do teu tio Luis. Tens de marcar o 9, esperas até

ouvires o sinal e depois marcas o número dele. Se eu não acordar,

sacodes-me. E se quando me sacudires eu não acordar, telefona-lhe.

Primeiro a ele, e depois ao senhor lá de baixo, ao da entrada, percebes?

Gaspar disse que sim e, com o número apertado no punho, deitou-se

ao lado dele, mas suficientemente longe para não o incomodar.


Juan acordou transpirado e sem ter sonhado. Era de noite, mas o quarto

estava ligeiramente iluminado: Gaspar ligara o candeeiro e estava a ler.

Juan olhou para ele sem se mexer: o rapaz tirara o livro da mala e

esperava, com o papel do número de telefone ao lado, em cima da

almofada. Gaspar, chamou-o, e o rapaz reagiu com delicadeza, pousou o

livro, aproximou-se dele a gatinhar, perguntou-lhe se estava bem; como

um adulto, como lhe perguntavam tantas vezes os adultos que tomavam

conta dele. Juan sentou-se e esperou um minuto antes de responder. O

coração voltara ao seu ritmo normal, ou ao que para ele era

relativamente normal. Juan não estava agitado, não tinha tonturas. Estou

bem, sim, disse-lhe, e sentou Gaspar em cima das suas pernas, abraçou-

o, acariciou-lhe o cabelo escuro.

— Que horas são?

Gaspar apontou para o relógio com o dedo.

— Sabes ler as horas, diz tu.

— É meia-noite e meia.

Na aldeia, não haveria nada aberto para jantar àquela hora. Podia,

claro, caminhar até ao centro, entrar numa mercearia ou restaurante

fechado e abastecer-se do que quisesse, para ele, abrir uma porta era

muito simples. Mas se alguém os visse, teria de lidar com essa

testemunha. E cada pequeno ato semelhante acumulava-se até se

converter numa longa e esgotante cadeia de rastos a eliminar, olhos a

fechar, recordações a fazer desaparecer. Há anos que lho tinham

ensinado: era melhor tentar viver com a maior normalidade possível. Ele

conseguia coisas que, para a maioria das pessoas, eram impossíveis.

Cada conquista, porém, cada exercício da vontade para alcançar o que

desejava, tinha um preço. Em questões pouco importantes, não valia a

pena pagá-lo. Agora, devia convencer quem quer que fosse que estivesse

na receção do hotel a arranjar-lhe comida. Não tinha fome; seguramente,


Gaspar também não. Mas o rapaz não lanchara e ele não se lembrara de

trazer os refrigerantes do carro, precisava de comportar-se como um pai.

Antes de sair do quarto, no entanto, teria de tomar banho, porque

cheirava muito mal. E talvez de cortar um pouco o cabelo. Gaspar

também precisava de um banho, mas não com tanta urgência. Levantou-

se da cama com Gaspar ainda ao colo e levou-o até ao duche. Abriu a

torneira da água quente e esperou um pouco até confirmar as suas

suspeitas.

— Se estiver fria, não tomo banho — disse Gaspar.

— Está calor, vá lá. Não? Então, depois limpo-te com uma toalha.

Juan enfiou-se no duche e ouviu Gaspar a falar, sentado na tampa da

sanita, a contar o que lera e vira da janela do hotel, mas ele não lhe

prestava atenção. O duche era demasiado baixo e teve de agachar-se para

poder lavar a cabeça, mas, pelo menos, o hotel oferecia champô e

sabonete. Com a toalha à volta da cintura, deteve-se diante do espelho: o

cabelo molhado já lhe passava dos ombros e tinha olheiras inchadas.

— Dá-me a tesoura que está no saco pequeno.

— Posso ser eu a cortar? Só um bocadinho.

— Não.

Juan continuou a olhar para o seu reflexo, os ombros largos, a

cicatriz escura que lhe dividia o peito, a queimadura no braço. Era

Rosario que lhe cortava o cabelo. Também o barbeou diversas vezes.

Lembrava-se dos grandes brincos dela, que nunca tirava, nem para

dormir, às vezes. Lembrava-se de a ver chorar uma vez, de cócoras e nua

no chão da casa de banho, por ter engordado durante a gravidez. De

como cruzava os braços quando ouvia algo que lhe parecia estúpido.

Recordava-se dela a gritar-lhe na rua, furiosa; de como era forte quando

lhe batia com os punhos fechados durante alguma briga. Quantas coisas

não sabia fazer sozinho, quantas coisas esquecera, quantas apenas sabia
ela? Usou o pente para alisar o cabelo e cortou-o o melhor que pôde.

Deixou uma madeixa mais comprida à frente e usou o secador para

verificar se não teria ficado uma desgraça. O resultado pareceu-lhe

aceitável. Tinha um pouco de barba, mas só se notava porque estava

muito pálido. Deitou fora o cabelo cortado, que deixara cair sobre um

lenço, na sanita.

— Vamos ver se arranjamos qualquer coisa para comer.

O corredor do hotel estava muito escuro e cheirava a humidade. O

quarto ficava mesmo na esquina, ao pé da escada. Juan deixou Gaspar

sair primeiro e o rapaz, em vez de descer diretamente, correu pelo

corredor. No início, Juan pensou que o filho ia para o elevador. Mas

depressa compreendeu que Gaspar se apercebera do mesmo que ele,

embora a diferença fosse radical: em vez de evitá-la — Juan estava tão

acostumado àquelas presenças, que as ignorava —, foi atrás dela,

atraído. O que se escondia ao fundo do corredor estava assustado e não

era perigoso, mas era antigo e, como tudo o que é muito velho, era voraz

e infeliz e invejoso.

Era a primeira vez, pelo menos na sua presença, que o filho tinha

uma perceção. Estava à espera de que isso acontecesse, Rosario insistira

que estava para breve e ela costumava ter razão, mas a constatação

definitiva de que Gaspar herdara essa capacidade desalentou-o, fechou-

lhe a garganta. Não acalentava muitas esperanças em relação à

normalidade do filho, mas naquele corredor desvaneceram-se

completamente e Juan sentiu o desalento como um grilhão à volta do

pescoço. A condenação herdada. Tentou fingir tranquilidade.

— Gaspar — disse, sem erguer a voz. — É por aqui. Pela escada.

O rapaz deu meia-volta no corredor e olhou para ele com uma

expressão confusa, como se tivesse acordado num quarto estranho após

dormir durante dias. O olhar durou um segundo, mas Juan reconheceu-o.


Tinha de ensiná-lo a blindar-se perante aquele mundo flutuante, aqueles

poços peganhentos, a evitá-los. E tinha de começar depressa, porque se

lembrava do horror da sua própria infância e Gaspar não tinha de passar

pelo mesmo.

O meu filho nascerá cego, repetia a presença do fundo do corredor,

sem cabelo e com um vestido azul. Gaspar não conseguia ouvi-la, mas

talvez a tivesse visto. Já falara dela na casa de banho: uma mulher

sentada na praça que havia em frente do hotel, a olhar para a janela de

boca aberta. Juan não prestou atenção porque o filho não lho contou

com medo, e isso era bom. O rapaz tinha razão intuitivamente: não

havia nada a temer, a mulher era apenas um eco. Havia muitos ecos,

agora. Era sempre assim quando se perpetrava uma matança; o efeito era

idêntico ao dos gritos numa gruta, perduravam até o tempo determinar o

seu fim. Faltava muito para esse fim e os mortos inquietos deslocavam-

se velozmente, esforçavam-se por serem vistos. The dead travel fast,

pensou.

Desceram a escada em silêncio para não acordar os hóspedes. A que

era, seguramente, a dona do hotel folheava uma revista na receção.

Levantou a cabeça quando os viu entrar e pôs-se de pé; com um único

gesto rápido, ajeitou a blusa e o cabelo, escuro e ligeiramente

desalinhado.

— Boa-noite — disse. — Em que posso ajudá-los?

Juan aproximou-se do balcão e apoiou uma das mãos na lista

telefónica que estava aberta ao pé do candeeiro.

— Boa-noite, minha senhora. Por acaso haverá algum lugar aberto

onde possamos comer?

A mulher inclinou a cabeça.

— Talvez ainda arranjem qualquer coisa na churrasqueira do clube

dos pescadores, mas é melhor eu telefonar primeiro para confirmar,


porque ainda é um esticão.

Um esticão, pensou Juan, impossível, naquela aldeia nada podia ficar

muito longe. As paredes da receção, revestidas de madeira até meio, o

chão castanho plastificado, as chaves penduradas nas prateleiras. Gaspar

aproximara-se de um pequeno aquário e seguia com o dedo um peixinho

a nadar. Ninguém atende, disse a mulher depois de esperar um bocado.

Bom, vamos para a cama sem comer. Juan sorriu e notou que a mulher

— que era nova, com pouco menos de quarenta anos, embora parecesse

mais velha sob a luz triste do hotel silencioso — o observava em

pormenor e sem disfarçar. Adormeci, disse Juan. A viagem é longa de

Buenos Aires até aqui e não tinha descansado bem.

Lá fora o silêncio era total. Viu passar as luzes azuis de um carro da

polícia, mas mal ouviu o motor. Também vigiariam aquela aldeia?

— Peço desculpa pela indiscrição — disse a mulher, saindo de detrás

do balcão da receção. Abanava-se com o leque. A ventoinha estava

ligada, no entanto. — Estão no quarto 201? Hoje, o meu empregado

disse-me que o senhor do 201 não se sentia bem. Ficámos preocupados,

mas, como não se ouvia nada e não telefonou para cá, não quisemos

incomodá-lo.

— Como sabe que eu sou do 201?

A mulher, a meio caminho entre a timidez e a sedução, respondeu:

— O meu empregado disse que era um senhor altíssimo e louro com

uma criança.

— Obrigado pela preocupação, minha senhora. Agora, sinto-me

bem, tinha de descansar. Fiz uma cirurgia há seis meses, mas às vezes

penso que estou totalmente recuperado e abuso.

E deliberada, teatralmente, Juan apoiou uma das mãos na camisa

escura aberta até meio do peito para tornar evidente e visível a enorme

cicatriz.
— Venham — disse ela. — Eu faço-vos qualquer coisa, nem que

sejam umas sanduíches. O menino come talharins? Aquecemo-los em

banho-maria com um pouco de manteiga e pronto.

— O que é talharins? — perguntou Gaspar, que se desinteressara do

aquário.

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— Esparguete, mitaí — disse-lhe a mulher, ajoelhando-se. —

Gostas com manteiga e queijo?

— Gosto. E com molho, também.

— Vejamos o que se pode fazer.

— Posso vê-la a cozinhar?

— Ele gosta de cozinhar — disse Juan, encolhendo os ombros para

mostrar o seu desconcerto.

Na hora que se seguiu, Gaspar aprendeu a usar o abre-latas,

comeram ambos uma massa um pouco colada com um molho delicioso,

beberam água fresca com gelo e a mulher fez-lhes companhia com um

copo de vinho doce e cigarros. Quando acabaram, Juan ofereceu-se para

lavar os pratos, para que ela pudesse voltar para a receção, e a mulher

aceitou; antes de ir, disse oxalá fique bom depressa. Gaspar ajudou-o a

enxugar a loiça, mas antes agradeceu à mulher com os lábios manchados

de molho de tomate e ela deu-lhe um beijo na testa.

Gaspar recusou-se a entrar no quarto: à porta, imóvel, brilhavam-lhe os

olhos e parecia assustado.

— Papá, está uma senhora no quarto — disse-lhe. Juan pestanejou

para a ver e sentir: era a mesma do corredor, que deambulava pelo hotel.

— Não olhes para ela — segurou a cara de Gaspar com as duas

mãos; eram tão grandes, que quase lhe rodeavam totalmente a cabeça.

— Olha para mim.


Depois, sentou-se no chão e ligou o candeeiro. Felizmente, Gaspar

não ouvia o que a mulher dizia. Era sempre melhor só ver. Juan ouviu-a

durante um minuto, por curiosidade. A mesma repetição desesperada e

solitária da morte, o eco da morte. Depois, tornou-se surdo para ela, mas

não a expulsou, o filho teria de aprender a fazer isso, e depressa. Juan

não queria que tivesse medo nem mais um minuto.

— Ouve-me bem agora.

— Quem é, papá?

— Não é ninguém. É só uma recordação.

Apoiou-lhe uma mão sob o esterno e sentiu o coração do filho a

bater depressa, forte, saudável. A inveja secou-lhe a boca.

— Fecha os olhos. Sentes a minha mão?

— Sinto.

— Onde é que eu estou a tocar?

— Na barriga.

— E agora?

Com dois dedos da outra mão, localizou a vértebra situada atrás do

estômago.

— Nas costas.

— Não, nas costas, não.

— Na coluna.

— Agora, tens de pensar no que está entre as minhas mãos, como

quando te dói a cabeça e me dizes que parece que tens qualquer coisa lá

dentro. Bom, pensa no que está lá dentro.

Gaspar apertou os olhos e mordeu o lábio inferior.

— Já está.

— Bom, agora diz à senhora para se ir embora. Não lho digas a falar.

Podes dizer-lho em voz baixa, se quiseres, mas diz-lho como se esta tua
parte que está entre as minhas mãos pudesse falar. Percebes? É

importante.

Aquilo podia demorar toda a noite, Juan sabia-o.

— Já está.

Juan olhou para a mulher, que continuava ao lado da cama, grávida e

de boca aberta, seguramente ainda a falar do primeiro filho, com os

olhos vazios.

— Outra vez. Como se lhe falasses daí, como se tivesses uma boca aí

dentro.

— Em voz alta?

Que tipo de pergunta era aquela? Merecia uma resposta à altura

dessa dúvida tão pertinente.

— Sim, hoje sim.

A imagem da mulher desapareceu lentamente, como fumo a

desvanecer. O ar do quarto ficou limpo como se tivessem aberto as

janelas. A luz do candeeiro tornou-se mais clara.

— Muito bem, Gaspar, muito bem.

Gaspar perscrutou com o olhar todo o quarto à procura da mulher

que se fora embora. Estava sério.

— E nunca mais volta?

— Se voltar, fazes a mesma coisa que agora.

Gaspar tremia por causa do esforço e do medo. Juan lembrou-se da

primeira vez que expulsara um desencarnado: fora igualmente fácil,

talvez um pouco mais fácil, dadas as suas circunstâncias. Oxalá este

fosse o fim das capacidades herdadas de Gaspar. Oxalá nunca atingisse o

tipo de contacto de que ele era capaz. Rosario tinha a certeza de que o

rapaz herdaria as suas capacidades. De repente, a recordação foi tão

vívida, que a sentiu como se tivesse tocado acidentalmente num inseto

na escuridão: Rosario, teimosa, sentada na cama, com as cuecas brancas


de algodão e o cabelo preso num rabo de cavalo alto. Gaspar herdaria

tudo, tudo o que ele carregava. Sentiu calor nos olhos.

— Agora, vou continuar a dormir, porque daqui a pouco terei de

conduzir.

— Quero dormir contigo.

— Não tenhas medo. Vai para a tua cama. Se não conseguires

dormir, lê o teu livro. A luz não me incomoda.

Mas Gaspar não quis ler. Deitou-se de barriga para cima e esperou

pela chegada do sono com uma disciplina imprópria da sua idade. Não

desceram as persianas e, por isso, as poucas luzes da rua iluminavam

ligeiramente o quarto e os ramos de uma árvore refletiam-se nas paredes.

Juan esperou até a respiração de Gaspar lhe indicar que estava a dormir

e, então, aproximou-se dele: os lábios separados, os dentes de leite

pequenos, o suor a colar-lhe o cabelo na testa.

Podia fazê-lo sentado na sua própria cama, ao lado de Gaspar. Mas

não queria que o rapaz acordasse e o visse. A casa de banho era um

lugar tão bom como qualquer outro. Não precisava de muito: apenas de

silêncio, do cabelo de Rosario, de algum instrumento aguçado e de

cinzas.

Sentado nos mosaicos frios, encaracolou a madeixa de cabelo de

Rosario com que andava sempre, guardada numa caixinha, e que tinha

agora entre os dedos. Tu prometeste-me, disse-lhe em voz baixa. E era

uma promessa séria, uma promessa de sangue e ferida, não de palavras

sentimentais.

Tirou um punhado de cinzas do saco de plástico e espalhou-as pelo

chão, à sua frente, desenhando o signo da meia-noite. Desde a morte de

Rosario que o fazia todas as noites, com idêntico resultado: o silêncio.

Um deserto de areia fria e estrelas opacas. Experimentara,


inclusivamente, métodos mais rudimentares, mas a resposta era sempre a

mesma: o vento sobre o vazio.

Repetiu as palavras, acariciou a madeixa de cabelo, fez o

chamamento na língua infecciosa que se devia usar no ritual da cinza. E,

de olhos fechados, viu os quartos e os recantos vazios, as fogueiras

extintas, as roupas abandonadas, os rios secos, mas continuou a vaguear

até regressar à casa de banho do hotel, ao silêncio e à longínqua

respiração do filho, e voltou a chamar. Nem um roçar, nem um tremor,

nem um engano, nem uma sombra enganadora. Ela não vinha, nem

estava ao seu alcance e, desde a sua morte, não recebera um único sinal

da sua presença.

Fez oferendas impróprias nos primeiros dias. A verdadeira magia

não se faz entregando o sangue dos outros, disseram-lhe uma vez. Faz-se

entregando o próprio e abandonando toda a esperança de o recuperar.

Juan pegou na lâmina de barbear que colocara ao seu lado e cortou a

palma da mão na diagonal, seguindo vagamente a linha a que chamavam

da mente ou da cabeça. Era uma ferida insuportável, que nunca se

curava, a pior possível e, por isso mesmo, a única que funcionava.

Quando, na escuridão, sentiu o calor do sangue, apoiou a mão no signo

de cinzas traçado no chão. Disse as palavras necessárias e esperou. O

silêncio era vertiginoso. Juan sabia que era um sintoma da sua própria

perda de poder. Se era por estar muito doente ou por se ter desgastado

demasiado, não sabia, mas a sensação de fraqueza era muito óbvia. Para

Juan, fazer este chamamento não implicava quase nenhum esforço: o

mundo dos mortos estava muito perto dele e era uma porta leve, batente.

Se fosse outro ritual, quase qualquer outro, poderia duvidar da sua

capacidade para fazê-lo. Com este, não. Este era como esticar as pernas.

Lavou a mão, resignado, e limpou o sangue do chão com uma das

toalhas. Já não ficava zangado. Após as primeiras tentativas falhadas,


insultou Rosario, destruiu móveis e quase partiu os dedos a esmurrar o

chão. Agora, limitava-se a recolher os restos, resignado, e voltava a

guardar a madeixa de cabelo na caixa. For the dead travel fast, pensou

outra vez. Era certo, em geral. Mas a ele era-lhe negada essa rapidez

habitual.

Gaspar continuava a dormir, embora tivesse passado bastante tempo:

o ritual do signo da meia-noite parecia curto para quem o fazia, mas

demorava várias, inadvertidas, horas. Juan tapou a ferida com uma

ligadura. Já estava a amanhecer quando deitou um pouco de álcool sobre

o corte, que nunca se curava completamente porque era preciso

continuar a cortar e a cortar no mesmo lugar para dar sangue à cinza, a

qual só lhe devolvia esse silêncio tão suspeito que o fazia pensar na sua

mulher silenciada, de lábios cosidos por alguém que queria separá-los

definitivamente.

O pequeno-almoço do hotel era servido numa sala de refeições de

paredes brancas e mesas cobertas por toalhas aos quadrados. A

decoração consistia em quadros de peixes, peixes dissecados atrás de

vitrinas e outro aquário, um pouco maior do que o da receção. Esquina

era uma espécie de capital da pesca. Juan nunca pescara na vida. E não

percebia por que razão o hotel, se tinha o tema recorrente da fauna

ictiológica, se chamava Panambí, que queria dizer «borboleta» em

guarani. Não havia borboletas em lado nenhum, nem sequer no logótipo.

Bebeu um pouco de chá forte e barrou doce de leite nas torradas de

Gaspar, que estava muito calado.

— O que foi?

— Estás zangado comigo?

— Não, filho, estou de mau humor. Quando acabares de tomar o

pequeno-almoço, vamos para a água.


Gaspar chorou durante toda a manhã, até descerem para irem comer.

Desde a morte da mãe, chorava todos os dias, ao acordar. Ou porque

sim, ou por qualquer parvoíce, ou porque dizia que lhe doía a cabeça ou

tinha sono ou calor. Sonhava com ela, Juan sabia-o; em geral, sonhava

que a sua morte era um sonho. Às vezes, Juan deixava-o chorar sozinho;

outras vezes, sentava-se ao lado dele ou lavava-lhe a cara com água fria,

mas nunca sabia exatamente o que fazer. Nessa manhã, depois de Gaspar

se acalmar após um pranto gritado, de puxar os cabelos e até de dar

murros na almofada, sugeriu-lhe uma ida à praia. Gaspar aceitou,

perguntando-lhe se a água era fria como a de Mar del Plata. Explicou-

lhe que não, que era um rio, e que os rios eram diferentes, mais

parecidos com uma piscina. Era mentira, mas servia. Quem precisava de

nadar era Juan, e estava na hora de o filho melhorar a pouca técnica que

lhe ensinara. Ele aprendera a nadar aos oito anos graças à

irresponsabilidade do irmão, que, quando o levava a passear, não sabia

como entretê-lo e um dia decidiu levá-lo a uma piscina. Juan sabia que

lho tinham proibido; o seu médico, Jorge Bradford, disse-lhe que não

podia realizar exercícios fortes. Bradford nunca soube das tardes na

piscina ou fingiu ignorá-las: o médico sempre teve atitudes

ambivalentes, gestos de extrema generosidade e posturas mesquinhas,

amiúde imprevisíveis.

Bradford ensinou-o a fechar-se aos seis anos, enquanto recuperava de

uma crise cardíaca: muitas das coisas mais importantes da sua vida

sucederam numa cama de hospital, entre a dor, a anestesia e o medo.

Usou o mesmo método que ele ensinara a Gaspar na noite anterior. O

doutor Bradford, que o operou quando estava entre a vida e a morte, que

o visitava todos os dias e que o ia adotar com a desculpa de que lhe

prestaria os cuidados de que necessitava. Um sequestro elegante. Uma

compra: pagou dinheiro por ele. É um milagre, disse Bradford aos seus
pais, um milagre que ainda esteja vivo, precisa de tratamentos e de

cuidados que os senhores, infelizmente, devido à vossa situação

económica, não lhe podem oferecer. Eles aceitaram.

Naquela noite, na cama do hospital, Juan não podia descer o volume

das vozes, sentia mãos a tocarem-lhe em todo o corpo — por dentro e

por fora —, via pessoas à volta da cama mesmo que fechasse os olhos. E

Bradford sentou-o, humedeceu-lhe o cabelo com água fresca e disse-lhe

mais ou menos a mesma coisa que ele dissera a Gaspar. Usa a voz entre

a coluna e o estômago, diz-lhes para se irem embora e eles vão.

Lembrava-se claramente de ter tentado várias vezes, guiado pelos olhos

escuros e cobiçosos daquele homem, até que o silêncio chegou e a

unidade de cuidados intensivos voltou a ser um quarto cheio de

moribundos e enfermos. Bradford ficou com ele até o ver adormecer. De

manhã, ao acordar, as vozes e as imagens regressaram e Bradford

continuava lá. Voltou a dizer-lhe o que fazer e Juan teve êxito à primeira

tentativa. Depois, Bradford pediu-lhe que lhe contasse o que via. E Juan

enumerou: ao acordar, o cadáver sentado à mesa do pequeno-almoço ou

na cama; as bocas que se riam dele; a mão que lhe tapava a cara e que

não o deixava respirar durante a noite; os pássaros e os bichos que o

atacavam voando diretamente para a sua cabeça quando ia para o pátio;

as duas caras pequeninas que olhavam para ele de debaixo da pedra que

a mãe usava para manter aberta a porta do armazém das traseiras.

Contou aos pais, mas eles não davam sinais de compreender. Bradford,

sim.

Os pais tinham medo dele: tentavam acalmá-lo e fazê-lo mudar de

assunto. O seu irmão Luis era diferente. Também se assustava, mas

tentava ajudar. Pedia-lhe que pensasse noutras coisas. Ensinou-o a nadar.

Agora, ele teria de ensinar o filho, mas primeiro queria nadar

sozinho, um pouco, no rio. Conduziu até à estância balnear da cidade,


que era linda e limpa e estava quase vazia, e sentou Gaspar na relva, à

sombra de uma árvore, ao lado da pequena geleira. Serviu-lhe

refrigerante num copo de plástico e disse-lhe o papá vai nadar, mas se

alguém se aproximar, vai ter de se haver comigo, não te preocupes. Não

te vás embora porque eu encontro-te e depois já sabes o que acontece.

Quando estava a entrar na água, cruzou-se com um casal que saía do

rio. Ela era bonita, tinha um fato de banho inteiro azul e cumprimentou-

o; o homem olhou para ele com uma certa agressividade e cingiu a

cintura da mulher com força. Nenhum dos dois conseguiu evitar estudar

a cicatriz do peito dele sem disfarçar. Juan não se importava. Nadou

durante quinze minutos, o suficiente para não ficar muito agitado. Era

capaz de nadar durante muito mais tempo, mas podia ter de conduzir

depois e preferia não estar cansado. O rio parecia de prata sob o sol, mas

água estava um pouco turva. Boiou durante uns instantes antes de sair:

em relação ao filho, só sentia calma. Quando a água lhe começou a dar

pelos joelhos, fez sinal a Gaspar e gritou-lhe vem, que tens de aprender,

tira a t-shirt e os ténis. Deitou Gaspar na água e agachou-se um pouco.

Eu seguro-te, disse-lhe, quando o rapaz começou a contorcer-se com

medo de ir ao fundo. Bate os pés, salpica-me, faz barulho.

Havia algo naquela manhã quente, e a pele escorregadia do rapaz nas

suas mãos fê-lo sentir Rosario a seu lado, e recordou-a a cantar-lhe uma

canção que dizia tonight will be fine, dançando uma canção de Bowie e

queixando-se de nunca passarem boa música na rádio, o queixo e o peito

grande, embora nunca usasse sutiã, nem sequer depois do nascimento de

Gaspar, e as manhãs em que a acordava e ela se queixava, deixa-me

dormir, mas, passado um bocado, também o abraçava e ele levantava-lhe

as pernas, punha-as sobre os seus ombros e acariciava-a com a língua e

os dedos até ficar húmida.


Não conseguia encontrá-la. Conseguia ver a mulher grávida do hotel,

conseguia ver centenas de assassinados durante o dia e, no entanto, não

conseguia dar com ela. Tinha-lhe pedido, quando ainda estava viva, uma

vez, quase a brincar, imitando uma personagem de novela, não me

deixes sozinho, haunt me, não havia palavras em castelhano para esse

verbo, haunt, não era assombrar, era aparecer, era haunt, mas ela nunca

o levou a sério. Ele devia ter morrido primeiro, pela lógica, era ridículo

que ainda estivesse vivo.

Às vezes, pensava que Rosario se estava a esconder. Ou que havia

algo que não a deixava aproximar-se. Ou que tinha ido para demasiado

longe.

— E agora?

— Agora, enfia a cabeça debaixo de água. Mas sem tapares o nariz.

— Vou afogar-me.

— Não te afogas nada.

Treinaram a apneia fora de água. Gaspar enchia as bochechas de ar e

Juan começou a sentir a inconfundível dor de cabeça nas fontes.

Demasiado tempo ao sol. Mas não se iria embora até o rapaz aprender a

suster a respiração.

De regresso à árvore, serviu a si próprio um refrigerante frio e

juntou-lhe alguns cubos de gelo que já flutuavam na pequena geleira.

Engoliu dois comprimidos e fechou os olhos, apoiado nas raízes, para

que a dor cedesse um pouco. A cabeça latejava-lhe, mas de maneira

regular, um pouco lenta.

— Não me afoguei — disse Gaspar de repente.

— Estás a ver? Nadar é fácil, daqui a nada já sabes.

— Vais acordar?

— Não estou a dormir, estou a descansar.

— Queres uma sanduíche?


— Não, vamos almoçar daqui a um bocado. E esta noite vamos ver a

Tali.

— Posso fazer uma sanduíche para mim?

A melhor maneira de encontrar a casa de Tali era procurar, na estrada,

uma velha ponte de ferro enferrujado em desuso, sobre a qual crescia a

vegetação imparável do Litoral, com as suas lianas e as suas flores. Uma

vez junto da ponte, surgia a velha Capela do Diabo, e a partir daí era só

seguir a direito por um caminho de terra intransitável quando

enlameado. A capela era a entrada oficial da Colonia Camila. Tali

adorava viver ali, naquela aldeia de duzentas pessoas e duas mercearias.

Tali era sua meia-cunhada. A filha do pai de Rosario e da sua amante

de Corrientes, uma mulher de classe média que foi viver para o campo,

fundou um templo dedicado a São Morte e ficou famosa na região como

curandeira e pela sua grande beleza. Morreu jovem — Juan e Rosario

sabiam que, embora tivesse adoecido, a morte fora tudo menos natural

—, e Adolfo Reyes, que gostava realmente dela e colecionava imagens

do santo (de facto, foi assim que se conheceram), conservou o seu

templo. Agora, Tali continuava a tradição da mãe, que, para ela, era uma

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«guardiã» ou «promesera» . Com Rosario, montou uma sala dedicada a

São Morte no Museu de Arte Popular de Asunción, que passou a fazer

parte da coleção permanente; era conhecida como a melhor do Paraguai,

da região e, provavelmente, do mundo.

Há anos que se organizavam festejos semiclandestinos no santuário

de Tali. Colonia Camila ficava longe de todas as cidades, perto do rio,

mas estranhamente isolada das estâncias balneares e das marinas: lá, era

possível ser-se devoto, com relativa tranquilidade, de um culto que não

agradava à Igreja e que provocava medo e desconfiança. Nos últimos

tempos, Tali mantivera o seu santuário num silêncio discreto. Sabia de


militares que destruíam altares domésticos em rusgas e que, por vezes,

sequestravam os donos, obrigando-os a passar algumas noites nas

esquadras apenas como demonstração de poder. Ela era filha de um

homem rico e bem relacionado. Não lhe tocariam, mas não fazia mal ter

cuidado.

Adolfo Reyes também comprara vários hectares à volta do templo e

da casa da filha, porque a Capela do Diabo de Don Lorenzo Simonetti

ficava nesse terreno. Uma igreja construída por um imigrante italiano

que, misteriosamente, nunca foi consagrada. Tali limpava-a de noite,

iluminada por um candeeiro de querosene. Muita gente via o clarão

através das janelas e contavam-se histórias sobre o que acontecia atrás

dos seus muros, embora nenhuma fosse certa. Juan alertou Tali e o pai

mais do que uma vez: a igreja era estranha, mas não era um lugar

visitado. Adolfo Reyes, como gostava de se divertir, não se resignou:

inventou boatos, novas histórias, tantos que já era impossível distinguir a

ficção do mero facto histórico da capela e da aldeia esquecida.

Lorenzo Simonetti chegou a Corrientes com os seus oito filhos,

viúvo, oriundo de Itália. Em 1904, um ano depois de se estabelecer em

Colonia Camila, começou a construir a capela sem pedir autorização às

autoridades eclesiásticas. Era artesão: talhou a Virgem em pau-ferro e

tentou imitar as feições da mulher, morta durante o parto. Fez tudo o

resto, os trabalhos de alvenaria, os bancos de pedra, o vidro dos

precários vitraux, com a ajuda de alguns vizinhos. Um compatriota de

Itália trouxe os sinos. O altar tinha flores de latão e desenhos de plantas.

Uma igreja na selva e na fronteira, perto do Brasil e do Paraguai.

Don Lorenzo dedicou todo o seu entusiasmo à parede da sacristia.

Foi lá que montou a sua obra-prima, a razão do medo da vizinhança e,

provavelmente, a razão pela qual a igreja não conseguiu ser aceite pela

Curia. A talha de madeira conservava-se bem, apesar da passagem do


tempo e do desgaste de algumas cores. Era uma visão do inferno, um

retábulo de advertência: crianças de cabeças desproporcionadamente

grandes e pernas retorcidas a executar danças rituais à volta de

fogueiras, brincando com dragões e víboras. Mulheres nuas com

serpentes enroscadas à cintura. Entre eles, caras alucinadas, olhos

redondos sempre abertos e mais répteis e sobretudo sapos, uma

verdadeira obsessão por sapos, numa alusão à praga do Egito. A cena do

juízo final completava-se com a figura de um homem sentado com um

livro, a observar as horríveis cenas de dor com semblante impassível.

Uma vez terminada, Simonetti tentou doar a igreja à Curia, mas,

depois da visita de dois sacerdotes, o seu obséquio foi rejeitado. Houve

mais negociações e mais rejeições. As causas, aparentemente, foram

burocráticas, mas todos se recusavam a acreditar nessa explicação.

Diziam que o retábulo representava a Salamanca, a reunião de bruxos

com o demónio, o aquelarre crioulo. Diziam que Don Lorenzo

participara nas cerimónias. Simonetti morreu a tentar convencer os

padres de que a sua obra era sagrada. Talvez no cumprimento de uma

promessa, fez o sacrifício — não era velho, mas estava doente — de ir a

pé de Colonia Camila até Goya para falar com uma autoridade

eclesiástica. Quando regressou, deitou-se para descansar e na manhã

seguinte estava morto.

Na maior mercearia de Colonia Camila, que também contava com

um café modesto, contava-se que o fantasma de Simonetti vestido de

negro fora avistado a dirigir-se para Goya. Também circulavam histórias

sobre uma congregação obscura que virava as costas ao altar e se

ajoelhava diante do retábulo do juízo final.

Ouviu-o antes de vê-lo, às seis da tarde, quando o sol incendiava o céu

com uma chama amarela e as palmeiras, ao longe, pareciam sombras.


Tali saiu a correr, o vestido branco cheirando a um sabonete de jasmim

que lhe haviam trazido do Paraguai, e, com a pressa, esqueceu-se de se

calçar. Hesitou quando ainda só o ouvia, mas, quando o viu da pequena

elevação de terreno onde estavam a sua casa e o seu templo, não lhe

restou dúvida alguma. Sob o sol do entardecer, o cabelo louro adquiriu

brilhos alaranjados e a t-shirt preta tingiu-se de um azul crepuscular.

Mesmo quando se ria assim, de boca aberta e covinhas marcadas, com

algo de terno na maneira como dobrava as pernas compridíssimas que

escorregavam na lama, mesmo quando estendia os braços e dizia ao

filho «vamos» e o filho dava passos pequeninos ao seu lado, mesmo

nessa cena familiar e simples, era compreensível que lhe chamassem

Deus Dourado, com os seus braços com veias que pareciam cabos sob a

pele e as mãos demasiado grandes, os dedos finos, as palmas largas e

compridas.

Ela nunca vira um homem assim na vida, e agora, que voltava a vê-

lo, parecia-lhe tão extraordinariamente belo, que os olhos se lhe

turvavam, e olhar para ele era como um entardecer surpreendente,

quando a natureza exibia todo o seu perigo e a sua beleza.

— Agora gostas de lama, amigo — gritou. Esperava que a voz lhe

saísse firme e assim foi, irónica e cálida ao mesmo tempo. Juan

reconheceu-a logo.

— Tali, que desgraça é esta? Isto é um pantanal!

Juan e o filho — Gaspar, já crescidinho, e magro — riam como

loucos. Tali não conseguia acreditar. Esperava encontrá-lo tão furioso e

triste como o vira há uns meses. Mas agora estava ali, à porta de sua

casa, a contorcer-se de riso com os pés afundados na lama, enquanto

dizia ao filho: «São as areias movediças de Corrientes!»

— Façam um esforço; se caírem, depois tomam banho.


Tali apoiou-se na cancela e relaxou para desfrutar de um espetáculo

inaudito: o Deus Dourado a divertir-se com a sua própria falta de jeito, a

brincar a que se estava a afundar, a gritar como quem estava assustado.

O rapaz, mais leve, saiu da lama primeiro, e Tali abriu a cancela para o

deixar entrar. Ele olhou para ela com os olhos curiosos, alerta. Olá, Tali,

disse-lhe. E deu meia-volta e aplaudiu aos gritos uma escorregadela que

quase deixou o pai estatelado no chão.

— Sabes, Juancito, o caminho a partir daqui é de asfalto.

— Estás a mentir.

— Mais ou menos. Só tem gravilha.

— E é de gravilha porquê? Vai dar a algum campo grande?

— Não, mas estamos em Corrientes. Não se pode pedir lógica.

— Então, levo o carro depois. Espero que não tenha ficado atolado.

— Nós empurramo-lo.

Juan pulou até uma zona de erva seca e, de lá, com dois passos das

suas pernas compridas, atingiu a cancela com facilidade. Tali pôde vê-lo

de perto, finalmente, e apercebeu-se de que a ilusão da luz do entardecer

era demasiado esperançosa: Juan tinha olheiras inchadas e estava mais

magro; os olhos tão estranhos, com as suas íris de cores mescladas,

lampejos azuis, verdes e algum amarelo, estavam cansados e

adormecidos. Porém, o que confirmou a Tali que a brincadeira da lama

não passava disso mesmo, de uma brincadeira, foi a palidez de Juan.

— Se não soubesse que estás vivo, diria que és um fantasma, é que

estás mesmo branco, porra.

Ele fingiu que não ouviu e abraçou-a com tanta força, que a ergueu

do chão. Sujou-lhe o vestido, mas Tali não se importou. Voltou a sentir,

após tanto tempo, o corpo de Juan, firme e ágil; tinha um efeito

calmante mergulhar num peito tão largo e cheirar, na t-shirt, o calor e a

gasolina e o repelente de insetos. Sentiu-o a respirar fundo de alívio. Tali


permaneceu de olhos fechados a ouvir a respiração dele e os insetos da

noite a acordar e a zumbir. Ele pegou-lhe na mão e ela sentiu-lhe a

tristeza na ponta dos dedos, como se a irradiasse. Reparou, também, na

ligadura suja que lhe cobria uma ferida na palma da mão. Tens de trocar

isso, disse-lhe, e Juan não respondeu. Gaspar estava sentado no chão a

tentar limpar os ténis brancos.

— Deixa estar, mitaí, eu lavo-tos — disse Tali, e apressou-se a

resolver várias situações. Deu a mão a Gaspar, chamou como quem

cumprimenta um dos rapazes que trabalhava no pequeno terreno que

havia nas traseiras da casa, ordenou-lhe que trouxesse o carro pelo

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asfalto e serviu um tereré bem frio na mesa do alpendre. — Só tenho

com lúcia-lima. Já te trago qualquer coisa, mitaí. Gostas de Coca-Cola?

Quando voltou com o refrigerante, Juan estendera-se o máximo que

podia numa espreguiçadeira depois de molhar a cara com um pouco de

água fresca.

— Podias ter avisado que vinhas, eu preparava alguma coisa,

arranjava a casa.

— Não sabia se ia conseguir fazer toda a viagem sozinho, por isso

vim um bocado à pressa. E, quando me apercebi de que era demasiado

cedo, optei por vir visitar-te antes de seguir para Puerto Reyes.

— Estás bem?

Ele não olhou para ela. Preferiu o vermelho do entardecer entre as

árvores.

— E o menino, como está a reagir?

— Não falem como se eu não estivesse aqui — protestou Gaspar, e

pousou o copo de Coca-Cola na mesa, de sobrolho franzido. Depois,

cruzou os braços.

— Aqui o tens. Pergunta-lhe a ele.

— Que génio, miúdo! Estás bem?


— Às vezes sim, às vezes não. Tenho saudades da minha mãe e fico

com medo quando ele adoece. — E, com uma expressão zangada, quase

acusatória, apontou para o pai com o dedo.

Tali abraçou o rapaz e sentou-o em cima dos joelhos, embora Gaspar

já fosse demasiado crescido para andar ao colo. Como não sabia o que

fazer porque nunca ouvira um rapaz de seis anos falar com tamanha

clareza e sinceridade, disse-lhe vamos trocar de ténis e perguntou a Juan

se trouxera outro par. Claro, respondeu ele, e também trouxe sandálias,

embora aqui possa andar descalço. Não, descalço, não, disse Tali, há

demasiados bichos.

Na casa de banho, lavou as pernas a Gaspar e trocou-lhe os sapatos e

a t-shirt e ouviu-o falar sobre os animais que tinha visto na estrada, até

um veado com chifres. Ela achou estranhíssimo que um veado estivesse

tão longe do pantanal, mas nada era estranho quando Juan estava por

perto.

Tali conheceu Juan em Buenos Aires. O pai levou-a para lá para a

obrigar a estudar, mas Tali fugia da escola, atirava-se para o chão,

chorava. Rosario tentou convencê-la, dizendo-lhe que a escola não era

assim tão má, que até podiam divertir-se, mas ela respondeu que não era

a escola que odiava: era a cidade. Por isso, Adolfo Reyes desistiu de

educar a filha mais nova no melhor liceu de Buenos Aires, como fizera

com Rosario, e deixou-a voltar para o Norte, com o seu templo e as suas

ervas e a sua escola rural.

Ela e Rosario eram amigas íntimas, além de meias-irmãs. Tali

chorou quando Rosario, aos dezoito anos, foi para Inglaterra estudar. Ia,

disse a Tali, para a melhor universidade do mundo e estava feliz. Juan já

tinha quinze anos e tinha passado todo o verão em Puerto Reyes. Ele

também se sentia muito triste. Tali, que estava de visita, ficou pasmada

quando voltou a ver Juan na frescura do terraço que dava para o rio.
Crescera a ver filhos de imigrantes altos e louros como aquele rapaz, os

suecos de Oberá, os alemães de Eldorado, os ucranianos de Aristóbulo

del Valle. Durante os passeios que dava com o pai, às vezes almoçava

salsichas e admirava as orquídeas nas festas das coletividades;

apaixonara-se como uma tonta por muitos desses jovens de olhos

transparentes e pele escurecida pelo sol. Mas quando Juan se levantou da

cadeira de vime e lhe beijou a face, todos esses homens e mulheres lhe

pareceram ensaios de um pintor desajeitado, esboços indecisos de uma

mão que treinara até, finalmente, desenhar Juan e lhe dar vida e dizer é

isto, era disto que eu andava à procura, este é o resultado perfeito. Juan

tinha quinze anos e ela dezasseis e, no entanto, ficou com as orelhas a

arder quando ele se deixou ficar a olhar para ela em silêncio. Queres ir

dar um passeio?, perguntou-lhe Tali. Não está demasiado calor. Claro,

disse o rapaz. Caminharam pelo jardim selvagem da casa. Ela falou-lhe

dos escandinavos de Oberá e perguntou-lhe se a família dele também era

de lá. Juan disse que sim, mas que se tinham mudado para Buenos Aires

quando ele nasceu porque estava muito doente. Se calhar, ainda tens

família cá. Não sei, disse Juan.

Nessa noite, depois de jantarem jacaré com mandioca frita, uma

especialidade de Rufina, a cozinheira de Reyes, Juan arrancou uma folha

do caderninho onde estivera a escrevinhar enquanto os outros bebiam

café (ele não bebeu) e deu-lha: era o desenho de dois cães a ladrarem a

uma Lua com raios que mais pareciam de um Sol, mas era uma Lua

porque tinha cara, e era a cara de uma mulher; no horizonte, desenhou

dois edifícios, duas torres baixas, uma para cada cão, e, à frente deles,

um lago ou uma lagoa de onde saía um bicho que podia ser uma lagosta

ou um escorpião. Em baixo, escreveu La Lune, e Tali percebeu

imediatamente que era uma das cartas de Tarot de Rosario, a Lua do


Tarot de Marselha. A irmã tentara ensiná-la, mas Tali preferia as cartas

espanholas.

— Também te posso ensinar, agora que ela se foi embora — disse-

lhe Juan.

— Como sabias que quero aprender?

— A Rosario disse-me, contou-me que nunca conseguiu explicar-te

bem. Eu ensino melhor do que ela.

— O que significa esta carta?

— Depende da interpretação.

Juan guardou o lápis no bolso da camisa branca, impecável, que

tinha vestida. Não parecia doente, mas ela sabia que o que ele tinha era

grave. Porque lho teriam escondido nos últimos anos?, perguntou-se na

altura. Soube-o pouco depois, brutalmente.

Ainda tinha esse desenho, essa Lua, esses cães.

Gaspar, limpo e com cara de cansaço, sentou-se noutra espreguiçadeira.

Não voltaria a chover, mas a noite caía húmida e escura. Guillermito, o

rapaz que trabalhava em casa de Tali, acendeu as luzes do pátio e do

alpendre. Juan despiu a camisa e sacudiu-a para secar um pouco o suor.

Já te trago a ventoinha, ofereceu Tali. Não, deixa estar, disse ele.

— Devem andar à tua procura.

— Não me vão conseguir encontrar. Agora é mais difícil manter o

segredo, mas ainda sou capaz de o fazer.

— A Betty também não vem este ano?

— Não mudou nada em relação a ela e à filha. Não pode assistir à

Cerimónia enquanto não decidirem o que fazer com a menina. Para ela,

por agora, é muito conveniente. Quando souberem o que fazer com a

filha, que provavelmente será tirarem-lha, veremos o que acontece.


— Sabes que têm cães novos, lá em Reyes. Eu tenho-lhes pavor, são

enormes, parecem cavalos. Há um preto que deve medir um metro e

meio, chama-se Nix.

— Um cão não pode medir um metro e meio, não exageres.

— O que é Nix? — quis Gaspar saber de repente.

— Juancito, esta criança é um perigo, ouve tudo.

— Nix é a deusa grega da noite. É a noite.

— E está no meu livro?

— Não me parece, é uma deusa esquecida. Já te falei dos deuses

esquecidos. As pessoas que os adoravam eram poucas e, com o tempo,

ainda se tornaram menos, e então deixaram de contar-se histórias sobre

eles.

— Que triste.

— É triste, sim. Mas sabem-se algumas coisas sobre Nix. Era casada

com Érebo, que é a escuridão, que não é a mesma coisa que a noite,

porque a escuridão pode encontrar-se de dia, por exemplo. E teve dois

filhos gémeos, Hipnos e Tânatos. Hipnos é o sono e Tânatos é a morte.

São parecidos, mas, obviamente, não são iguais.

— E vivem todos juntos?

— Isso não se sabe, por isso, imagina o que quiseres.

Juan olhou para Tali e disse ele está a ler um livro de lendas.

Prometi-lhe que lhe mostrava a corticeira, por causa da Anahí. Em voz

baixa, Tali disse este vai aborrecer-se na escola.

Guillermito aproximou-se da mesa. Vai buscar um colchão pequeno

para o menino, disse-lhe Tali. Pede à Karina, que tem imensos. Uma

menina pouco mais velha do que Gaspar espreitou pela esquina do

corredor. Tinha os joelhos enlameados e o cabelo preso em duas tranças

descuidadas.
— Laurita, porque não levas o Gaspar para brincar um pouco

contigo? Queres ir brincar com ela, Gaspar? Depois chamamos-vos para

comer.

As crianças demoraram um bocado a ganhar coragem para

brincarem juntas, mas Laurita falou a Gaspar de um cãozinho que lhe

tinham oferecido, perguntou-lhe se queria vê-lo e foram. Tali percebeu

que Juan olhava para eles enquanto mordia o lábio.

Não faz mal, a menina é de cá, está acostumada, vai tomar conta

dele melhor do que tu. O que tu tens é normal.

— Nada é normal. Não consigo falar com ela.

— Com a Rosario? Juan, tens uma Cerimónia daqui a uns dias. Tens

de concentrar-te nisso.

Juan olhou para ela com os seus olhos furta-cores sob a luz

desmaiada do alpendre. Tirou a ligadura da mão e mostrou-lhe a ferida.

Tali olhou para ela com atenção: não estava inchada, não estava infetada.

— Não consigo fazê-la aparecer, nem com o signo da meia-noite. Se

não conseguir comunicar com ela com este ritual, é porque alguém me

está a impedir de a encontrar.

— É possível que alguém o faça?

— Alguém poderoso, sim; e várias pessoas a trabalharem juntas,

também. Eu acho que são vários.

— Às vezes, não chegamos aos nossos mortos, sabes disso.

— Não me parece que desta vez seja assim.

— Tu sente-la nalgum lado?

Juan olhou para Tali e afastou uma madeixa de cabelo da cara.

— Não sinto nada.

Agora que já não se ouviam as vozes das crianças, Tali aproximou-se

de Juan e estendeu-lhe a mão.


Vem, vou dar-te banho e limpar-te essa mão, disse-lhe. Comprei uma

banheira enorme, olha, como se soubesse que ia precisar dela. Ele

levantou-se devagar, preguiçoso, e, no corredor que ia dar à casa de

banho, Tali pôs-se em bicos dos pés e beijou-o e empurrou-o até ao seu

quarto e conseguiu fechar a porta com as costas. Era sempre um pouco

brutal estar com Juan, mesmo quando ele tentava ser delicado, mas

agora nem sequer tentava; a Tali doeu-lhe abrir as pernas para receber o

corpo largo, doeu-lhe cair no chão do quarto, doeu-lhe a madeira nas

costas. Havia sempre um momento, uma pausa carinhosa e delicada, e a

seguir um empurrão, um deslizar vertiginoso quando reconhecia as mãos

que a despenteavam e ele se mexia dentro dela. E havia sempre um

momento perigoso quando ela tinha de pedir-lhe de alguma maneira que

parasse o que começava com uma sensação agradável de tremor e febre e

acabava como um avanço rápido de maré, uma onda cálida e demasiado

profunda que não se parecia com o prazer. Ele ouvia-a sempre e parava:

desta vez, sentou-se, puxou-a com a mão e obrigou-a a olhá-lo nos

olhos.

Depois, Juan deitou-se nu na cama, de lado, e chorou de mãos dadas

a Tali, que o conhecia suficientemente bem para o ouvir em silêncio e

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esperar. Angá , é a primeira vez que chora por causa dela, pensou, mas

não lho disse porque Juan não tolerava bem a compaixão. Acariciou-lhe

o cabelo, tão fino e claro, não tinha ficado mais escuro com a idade

como acontecia com muitos louros. Ele desprendeu-se dela com

cuidado. Vais arranjar alguém alguma vez, quis saber ele, e Tali deitou-

se ao seu lado, acendeu um cigarro, ofereceu-lhe uma passa, ele fumou

de olhos fechados e cara húmida, as lágrimas ainda não tinham secado.

Não, disse ela, tu és o meu homem. Mas não tenho a coragem da

Rosario. Não faria qualquer coisa por ti.


Juan apagou o cigarro no cinzeiro da mesa de cabeceira e beijou Tali;

ela, além da nicotina e da lúcia-lima, sentiu o sal das lágrimas e o travo

químico da medicação. Vou buscar o Gaspar, disse ele, e foi-se embora,

descalço e sem camisa, ainda com as pernas salpicadas de lama. Pouco

depois, Tali ouviu-o conversar com Gaspar perto da janela do quarto.

Continuavam a falar sobre a deusa da noite e os seus gémeos, tão

parecidos e tão diferentes, a morte e o sono.

Tali afastou-se para dar espaço a Juan quando este se meteu na sua

cama, já de noite. Deixara Gaspar a dormir na sala: o rapaz insistiu em

pôr o colchão lá e não num quarto e não fazia sentido nenhum discutir,

podia dormir onde quisesse. Juan tomou banho e tinha o ar distante que

ela conhecia bem e, por isso, ela não lhe tocou. Não tardaria a

adormecer. De costas para ela. Através da penumbra, conseguia ver a

cicatriz, que começava nas costelas e acabava nas costas, a marca de

uma das cirurgias da sua infância. A primeira vez que o viu nu ficou tão

impressionada, que quase o rejeitou; além do mais, ela era mais velha,

que ideia era aquela de dormir com um adolescente doente? Foi em

Puerto Reyes, num dos muitos quartos de hóspedes da mansão. Tali

lembrava-se do cuidado que teve dessa vez; ele era virgem, mas, embora

estivesse carregado de hormonas como qualquer rapaz da sua idade,

conservava um certo distanciamento, como se fosse capaz de estudar a

situação e evitar a ansiedade adolescente. E, de alguma maneira,

conseguia. É da doença, explicou ele depois. Cada coisa que fazia

implicava uma negociação, um cálculo. Como se o seu dever fosse

proteger e carregar uma delicada preciosidade de cristal que jamais

poderia deixar de lado ou num lugar seguro, e tivesse de se deslocar com

cuidado para não a danificar ou quebrar, ponderando cada movimento,


sempre na ponta dos pés, sempre a perguntar-se se determinada

brusquidão seria o acidente, a rotura final.

Nesse verão, Tali foi iniciada na Ordem por Adolfo Reyes, seu pai, e

convidaram-na para a Cerimónia. Quando viu Juan no Lugar de Poder,

desmaiou. Ninguém se apercebeu, estavam todos nalgum tipo de transe.

O medo não durou muito. Há anos que o pai lhe falava da Ordem e

contava histórias sobre os médiuns. Mas não esperava que o médium

fosse Juan. Tinham escondido muito bem essa informação dela, a

própria Rosario, tão amiga sua, não lhe contou nada durante anos, e Tali

percebia porquê.

Pouco mais de um ano depois, Juan foi para Londres para ser

operado e encontrar-se com Rosario. Ficou a viver em Inglaterra durante

algum tempo, mas o desastre trouxe-o de novo. Tali não ficou zangada

quando soube que Rosario e ele estavam juntos, porque sabia que tinha

de ser assim. Limitou-se a chorar quando soube. Depois, tentou esquecê-

lo, mas não conseguiu.

Tali adormeceu ao amanhecer e, quando acordou, apenas algumas

horas mais tarde, Juan e Gaspar estavam na cozinha a preparar o

pequeno-almoço. Pôs um vestido novo e aproximou-se da bancada para

os ajudar. Gaspar disse estamos a fazer coisas deliciosas. Por um

instante, pensou, porque não. Porque não assumir o lugar da irmã e

tomar conta do seu viúvo e do seu filho.

— Bom-dia, meninos — disse-lhes.

Gaspar untava com imenso cuidado umas torradas ligeiramente

queimadas, mas perfeitamente comestíveis. Juan disse-lhe:

— A proteção do teu templo é péssima.

Lá estava o tom depreciativo que ela detestava, aquela superioridade

que a irritava.

— Eu não tenho as tuas capacidades.


— É óbvio que não. Mais tarde, vou fazer o que tem de ser feito.

Gaspar deu-lhe uma torrada. Tinha muita compota, mas Tali comeu-

a na mesma. Juan continuou a fazer o mate. Tali decidiu não discutir.

— Vamos à lagoa mais tarde? — propôs.

— Vamos, vamos! — gritou Gaspar. — Eu não sei nadar.

— Estás a aprender — disse Juan.

— Podemos ir, já não há tibiros.

— O que é que quer dizer tibiros?

— São uns peixes muito parecidos com as piranhas. Mas só

mordem, não te comem.

Gaspar arregalou os olhos.

— Se calhar tens sorte e vês algum — disse-lhe Juan.

— Mas eu não quero que me mordam.

— Não te preocupes com isso, eu protejo-te.

— Posso ver televisão?

Tali disse-lhe claro que sim e levou o leite e as bolachinhas dele para

a sala. Quando voltou para a cozinha, Juan estava sentado à mesa, a

fumar.

— Levantaste-te cedo?

— Tento levantar-me primeiro, porque o Gaspar acorda a chorar.

Olhou-a nos olhos e ela viu uma fúria tão profunda, que sentiu

medo. Ele apagou o cigarro numa chávena, tirou um caderno da mala e

disse temos de arranjar esse templo. Vamos dar uma volta lá fora, disse

ao filho, já voltamos. O rapaz assentiu, hipnotizado pelos desenhos

animados da manhã, apesar de a antena ser muito precária e a imagem

estar cheia de riscos verticais e de chuva. Lá fora, Juan permaneceu

algum tempo no jardim de Tali, que era pequeno, mas tinha flores-da-

paixão, crisântemos, dálias, miosótis, glicínias apoiadas em fetos muito

altos que iam dar à casa e trepavam pela parede até ao teto, dedaleiras de
cor púrpura que pareciam capuchos e algumas orquídeas penduradas no

tronco de um pessegueiro.

Tali seguiu Juan até ao templo, que ela mantinha fechado com um

cadeado. Abria-o pouco; os fiéis apareciam quase todos em agosto, para

fazerem as suas oferendas. Se alguém tivesse um pedido especial,

visitava-a a ela primeiro e, nesse encontro, marcavam uma data para o

ritual.

— Queres entrar?

— Agora não.

Juan abrira o caderno e fazia desenhos com um lápis muito pequeno

ou que parecia muito pequeno entre os seus dedos compridos. Quando

desenhava de pé, arqueava sempre o corpo, projetava as ancas para a

frente e curvava as costas. Não demorou muito tempo: quando acabou,

levantou os óculos escuros para ver melhor se o resultado era satisfatório

e enxugou a testa húmida com a t-shirt. Depois, aproximou-se da porta

do templo e tocou-lhe, acariciou-a.

— Vem, Tali — disse.

Pediu-lhe que segurasse no caderno para poder ver o desenho e tirou

uma navalha do bolso de trás das calças de ganga. Cortou o dedo médio

da mão direita da ponta até ao nó e deixou a mão pendurada. Quando

começou a sangrar muito, usou o dedo como lápis para reproduzir o

desenho do caderno na porta pintada de branco. Tali observou o selo.

Era delicado e tinha a correção geométrica típica de Juan. Quando

estava a admirar o desenho de proteção, que parecia simples, mas que

até nela provocava uma certa repulsa, Tali apercebeu-se do silêncio.

— Com isto, nunca mais precisará de outra proteção. Até podes

deixar a porta aberta — calou-se por um instante e olhou Tali nos olhos.

— Este selo foi-me dado há pouco tempo.

— Estás a pedir proteção?


Juan olhou para a ligadura da mão, suja de sangue e suor.

— Estou à procura de proteção e oferecem-ma lentamente, como

sempre. Sabes bem que ainda não me deram o que realmente quero.

Depois, pediu o caderno com a mão saudável.

— Se quiseres nadar, posso pôr-te uma ligadura nova para poderes

entrar na água.

Na casa de banho, mais tarde, Tali limpou a ferida, pensando na

imundície daquela porta e na fragilidade de Juan; sabia que, para ele,

uma infeção era muito perigosa. Ele deixou-se tratar e só lhe pediu que

ajustasse bem a ligadura.

— És tão bela — disse-lhe, quando ela acabou.

— Não me digas isso, sabes que não gosto.

— Sempre foste bela. A Rosario era linda, mas tu és bela.

— Mas é dela que tu gostas, então não me digas isso.

— Ah, mas apaixonar-se não tem nada a ver com a beleza.

Tali levou as mãos à cintura e teve de respirar fundo para não gritar.

— Sabes, Juancito, tens de avisar antes de cá vir porque, se não,

acontecem estas coisas.

— Que coisas — disse ele, e sentou-se de pernas cruzadas na borda

da banheira.

— Acontece que eu nunca me esqueço de ti, embora lide bem com

isso e esteja contente com as minhas plantas, a minha casa, os meus

cães, tenho a minha cama, e algumas noites imagino que és tu quando

ouço passos, mas outras vezes durmo muito sossegada, é só isso que eu

digo. E, de repente, apareces com o menino e eu fico estúpida, fico

estúpida, percebes, a pensar que vão ficar e que vamos ficar juntos e

todas essas parvoíces. Até penso, vê bem como são as coisas, que a

minha irmã se alegraria se vocês ficassem comigo. Coitada da minha

irmã querida. Dás-me tanta raiva, meu sacana.


Alguém bateu ao de leve na porta da casa de banho e Juan disse

entra, filho. Gaspar entrou timidamente. Tali levantou-se, pondo-se

muito direita ao pé do lavatório, e ajeitou o cabelo, que usava muito

comprido, quase até à cintura. Às vezes, pensava que já era um pouco

velha para aquela cabeleira toda. Gaspar nem olhou para ela.

— O que aconteceu ao teu dedo?

— Cortei-me lá fora.

— Com o quê?

— Com uma garrafa partida que tinham posto no galinheiro para os

gatos não entrarem.

— Dói?

— Não. Quando te cortaram aí, doeu-te muito? — e Gaspar apontou

para o peito dele.

— Mas isto não tem nada a ver — respondeu Juan, e Tali percebeu

que continha o riso. — Esse corte do dedo é pequenino. Além disso, já

te expliquei que o que dói no peito é o osso.

— Claro, porque te serraram o osso para te operarem.

— Ó miúdo, não fales assim — disse Tali.

— Partiram-no, não sabias? — Gaspar olhou para ela a pestanejar,

como se a luz o incomodasse. — Abriram-no ao meio e, depois,

coseram-no outra vez. Foi para lhe curarem o coração, mas acho que não

lho curaram muito bem.

Juan desatou a rir às gargalhas. Levantou-se para pegar no filho ao

colo.

— É que o teu pai não tem cura! És muito bruto, estás a assustar a

Tali.

— Eu quero explicar-lhe.

— Já lhe expliquei tudo por telefone há muito tempo.

— Então, não tenho de explicar-lhe eu.


— Não, não é preciso explicar-lhe nada.

— E não vamos à água?

— Vamos agora mesmo.

Juan beijou Gaspar na testa e deu a mão a Tali para a tirar da casa de

banho, mas ela disse vão vocês, são os dois malucos. Eu quero mudar de

roupa e lavar-me um pouco. Não faças um drama, murmurou Juan, e ela

disse que não com a cabeça. Precisava de uns minutos, de se olhar no

espelho, de ir buscar o protetor solar e as toalhas, de molhar a cara,

limpar o sangue da banheira, esperar até que as mãos lhe deixassem de

tremer.

Vamos com o meu carro, disse Tali, eu conduzo. A lagoa ficava perto

dali e era melhor para ir a banhos do que o rio, traiçoeiro naquela zona,

com os seus remoinhos e poços de areia. O calor era sufocante, mas o

céu estava limpo, nem uma nuvem de chuva; talvez mais tarde, mas

oxalá não, pensou Tali, a humidade de janeiro podia ser desesperante.

Acariciou a perna de Juan depois de arrancar; ele tinha vestido uns

chinos e parecia muito incómodo no assento do Renault, demasiado

pequeno para ele. Gaspar ia no banco de trás, em silêncio, e Tali tentou

distraí-lo perguntando-lhe pelos desenhos animados, mas, como não

obteve resposta, desistiu. O rapaz estava de luto e também ela se deu

conta de como era triste aquele ar quente, o forno aberto do meio-dia a

atingi-los na cara. A mãe dele tinha morrido. Nada seria suficiente para

o consolar.

Parou o carro na berma e saiu.

— Vem, Gaspar, quero mostrar-te uma coisa — disse ao rapaz do

lado de fora.

Diante de uma casa de madeira pintada de azul-claro que parecia

prestes a ruir, havia uma corticeira em flor. Gaspar saiu do carro de mau

humor, mas prestou atenção.


— Esta é a árvore de que o teu pai te falou, a da índia, a Anahí.

O rapaz aproximou-se do tronco e olhou para cima, para as flores

vermelhas.

— Está um gato naquele ramo.

— Deixa ver.

Tali aproximou-se e olhou para cima; um gato amarelo dormia

refastelado na frescura das folhas. Gaspar continuava sério e ela

agachou-se para ficar à altura dele e olhá-lo nos olhos. A tua mãe

continua a gostar de ti, disse-lhe. Já não pode estar contigo, mas adora-te

com loucura. Gaspar tapou a cara e começou a chorar e a balançar-se e

Tali deixou, não olhou para o carro, não quis saber se Juan os estava a

ver, se se estava a aproximar para os interromper, se ficaria furioso por

ela ter feito chorar o filho. Nunca mais vai voltar, pois não?, perguntou-

lhe Gaspar, e Tali não tinha vontade de responder a essa pergunta, mas

disse-lhe o que devia dizer-lhe: que não, que não voltaria. Sabias que foi

atropelada por um autocarro? Sabia, não te lembras de que estive no

funeral, se calhar não, quando estamos tristes esquecemo-nos dessas

coisas.

— Aqui há muitos autocarros, não gosto.

Está morto de medo, apercebeu-se Tali, e quis abraçá-lo, mas não

havia nada na atitude do rapaz que a autorizasse a tocar-lhe. Nisto, é

parecido com o pai, pensou, são como gatos.

— Cá chamamos-lhes micros. São diferentes dos autocarros.

Não o consolaria com isso, mas, pelo menos, era verdade.

— Vamos para a água?

Não quer estar longe do pai, pensou Tali, e, surpreendida, aceitou a

mão que Gaspar lhe estendeu. Uma vez no carro, continuou em silêncio,

mas, pelo menos, já olhava para a janela: antes disso, tinha a cabeça para
baixo. Juan não disse nada, mas acendeu um cigarro e fumou-o devagar,

enchendo os pulmões de fumo como se o calor não fosse suficiente.

O resto do dia foi tranquilo e silencioso, apesar de as praias da lagoa

estarem cheias de gente. Gaspar recebeu muitos aplausos quando

conseguiu boiar sem a segurança dos braços do pai e, embora não

tivesse comido durante o almoço, aceitou brincar a fazer covas quando

uns rapazes carregados de pás e baldes o convidaram. Mantenham-se

por perto para os podermos ver, disse-lhes Tali, e os rapazes sim

senhora, e instalaram-se a menos de três metros. Juan nadou até muito

longe da margem da lagoa, e Tali, sozinha sob o guarda-sol, sossegou

finalmente. Já estava pronta para ouvir o que Juan lhe queria dizer.

Porque, apercebia-se agora, ele queria dizer-lhe qualquer coisa. Juan não

era um amante ocasional. Ela não era uma promesera do rio. Os dois

eram membros da Ordem. Podiam brincar a esquecer-se, mas não por

muito tempo.

Gaspar continuava a fazer a sua cova, a qual, segundo a mãe dos

outros rapazes, que os observava atentamente, parecia uma cratera. A

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rádio de um carro estava ligada e ouvia-se um melancólico chamamé ,

uma mulher gorda passeava na margem com um cão preto que saltava

para cima dela fazendo-a rir, dois homens novos guardavam as canas e

iscos e peixes na traseira da carrinha: seriam cozinhados na brasa

algures. Tali reconheceu um homem que, havia dois meses, lhe pedira

proteção e ela deixara entrar e rezar ao santo no templo, sozinho,

benzendo o esqueleto com vinho e cinza. Também reconheceu uma

senhora que lhe pedira que lhe lesse as cartas para saber da filha: Tali

viu-a morta, afogada, e disse-lho. Uma das muitas raparigas

assassinadas pelos militares e atiradas para os rios, de olhos comidos

pelos peixes, os pés enredados na vegetação, sereias mortas com o

ventre cheio de chumbo. Tali não mentia, não dava falsas esperanças. Os
pais e as mães de jovens desaparecidos durante a ditadura procuravam-

na para, pelo menos, saberem como tinham morrido, se o seu corpo

estava num poço de ossos ou debaixo de água ou num cemitério perdido.

A mulher, agora, não estava a olhar para ela: brincava com uma menina.

Seria a filha da rapariga morta? Lembrava-se desse entardecer: chovia, o

céu estava negro, mas a mulher quis lá ir na mesma, sem recear os raios;

viu-a correr pelo caminho de terra. Tali juntou as cartas, guardou-as

num maço e deixou-se ficar a beber mate, lá fora o cinzento-escuro, a

ver como o vento sacudia o pessegueiro e as árvores, ao longe, junto ao

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rio. Ka’ aru , pensou, tinha de falar mais guarani, estava a perder a

língua, passava demasiado tempo sozinha.

Juan voltou e ela não o viu chegar pela praia; aproximou-se por trás,

fazendo um desvio. Deitou-se ao seu lado, em cima da toalha. Estava tão

agitado que, passados uns minutos, Tali começou a ficar alarmada.

— Tens noção da desgraça que seria se te acontecesse alguma coisa

aqui? Sabes o que me poderiam fazer? Temos de ir até Corrientes para

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seres atendido. Nde tavy , caramba.

Juan não conseguiu responder durante uns instantes e Tali aproveitou

para lhe lançar um ar de reprovação até ele recuperar o fôlego.

— Não armes um escândalo — disse Juan, e bebeu Seven-Up do

gargalo da garrafa.

— O Gaspar está a brincar tranquilamente com uns miúdos.

— Eu sei, temos de falar.

— Desde que chegaste que temos de falar, eu percebi.

— Preciso da tua ajuda.

Juan sentou-se de pernas cruzadas e, de repente, já não era o seu

amigo ou o seu amante, nem sequer o homem que a irritava e pelo qual

estava apaixonada. Era o médium. Tali sabia que as pessoas que os

rodeavam não conseguiam ouvir o que ele dizia ou que, se o ouvissem,


perceberiam coisas diferentes ou pensariam que estavam a falar numa

língua desconhecida. Sabia-o porque o ar em volta deles parecia tremer

e tinha os suaves pelos dos braços eriçados como se, em vez de sol, um

pedaço de gelo lhe estivesse a tocar na pele.

Tens de fazer isto? Já estás em modo de segredo e não há ninguém

por perto.

Desconfio de todos. Desconfio de mim. O Gaspar foi encurralado.

Eles querem que seja o meu herdeiro. Por ter herdado a minha

capacidade de invocar a Escuridão ou para transferir a minha

consciência para o corpo dele quando chegar a hora. Assim, continuarei

encurralado.

Já sabemos isso, porque mo contas outra vez.

Para me obrigar a mim próprio. E para te pedir. Tenho a certeza de

que mataram a Rosario. A Rosario, a mãe dela e a Florence discutiram.

Foi quando eu estava internado. A Rosario pediu-lhes que nos

deixassem em paz. Disse-lhes que não podiam continuar a usar-me, que

eu não queria voltar a fazer invocações e que jamais lhes entregaria o

Gaspar para eles usarem o seu corpo.

Tali teve uma tontura. O que estava a ouvir era impossível.

A minha irmã estava louca. Angá, porque não a impedi.

Para eles é inconcebível que me recuse a usar o corpo do Gaspar.

Eu disse-lhes que o faria, claro. A Rosario falou-me dessa discussão

antes do acidente. Estava furiosa porque fazer a Cerimónia me tinha

levado ao limite, mas pôs em perigo o Gaspar. Vão voltar a tentar

descobrir se é médium, como sempre, mas desta vez o resultado será

positivo.

Tens a certeza? Não será apenas sensível e mais nada?

Tenho a certeza. Se conseguirmos que eles não percebam, que o

resultado seja nulo, como sempre, basta esperar que tenha idade
suficiente para eu ocupar o corpo dele, e durante esses anos tenho a

certeza de que arranjarei uma maneira de o afastar deles. Ainda falta e

isso é desesperante, mas hei de conseguir.

Porque é que a Rosario não te contou isso?

Passei meses a entrar e a sair do hospital até me operarem. Não se

atreveu. Não sei.

Não a culpas.

Culpo-a, sim. Culpo-a e também a perdoo.

Podes recusar-te a fazer invocações?

Não. Vão obrigar-me. Já o fizeram há anos, quando me recusei

porque estavam a usar enjaulados no sacrifício, um sacrifício que

ninguém lhes pedia.

Tali olhou para as mãos. Também não se podia esquecer disso, da

sua própria cumplicidade.

Ainda usam sequestrados.

Eu sei, mas não posso enfrentá-los. Ameaçaram quebrar o pacto e

ficar com o Gaspar, criá-lo nos rituais, formá-lo, destruí-lo. Acreditam

no que lhes diz a Escuridão. Ouvem, obedecem. E não têm mais

ninguém que consiga invocá-la. A Mercedes anda sempre à procura de

outros médiuns. É sacerdotisa de um deus que a ignora, tal como todos

os sacerdotes de qualquer crença são e sempre foram ignorados pelos

seus deuses. O deus dela fala comigo. Para ela, foi sempre uma espécie

de maldição ter um oráculo tão pouco fiável. Creio na Escuridão, mas

acreditar não significa obedecer. Como não haveria de acreditar, se

acontece no meu corpo. Acontece no meu corpo. O que a Escuridão lhes

diz não pode ser interpretado neste plano. A Escuridão é demente, é um

deus selvagem, é um deus louco.

O que eu quero saber é se podes recusar-te a sério. Se queres.


Claro que não, sou um escravo. Sou a boca. A Escuridão pode

encontrar-me, é uma batalha perdida. Tali, preciso de te pedir. Preciso

que trabalhes com o Stephen para bloquearem o Gaspar. Eu faço a

minha parte, mas não é suficiente, já não é, estou sozinho. Viu uma

presença ontem, e não foi uma qualquer. Suponho que agora vai

começar o crescimento. Preciso que o protejas deles em Puerto Reyes,

preciso que o escondas com a ajuda do Stephen.

Vão querer que uses o corpo dele na mesma.

Ainda faltam alguns anos até isso acontecer. Tenho tempo e

capacidade para enganá-los. O mais difícil será permanecer vivo.

Preciso de tempo. Tempo para criar o Gaspar e arranjar uma maneira

de o afastar da Ordem. Farei a Cerimónia, como sempre. Eu sou a

porta aberta, não pode fechar-se, mas tenho de proteger o Gaspar. Já

me tiraram a Rosario, por muitos motivos, mas, sobretudo, para me

enfraquecerem. Tiramos-te a companheira para que ela não te possa

ajudar a abandonar-nos, para que ela não possa facilitar a tua saída e

a tua traição. A minha saída é impossível.

E, depois de dizer isto, Juan reduziu o isolamento que lhes permitira

falar quase sem mexerem os lábios, e Tali sentiu uma espécie de

pequeno turbilhão em seu redor enquanto o sol, a lagoa, as pessoas se

esbatiam com um brilho dourado, como as miragens da estrada. Juan

pôs-lhe uma mão na testa e, logo a seguir, ela conseguiu reajustar a

visão, e a dor de cabeça, que ameaçava ser forte, converteu-se numa

débil palpitação.

— Já chega! — gritou e, com uma pancada, tirou a mão de Juan de

cima dela. As pessoas que os rodeavam olharam para eles e ela sorriu,

fingindo que estavam a brincar. Juan estava pálido. Era verdade, então.

Anos antes, ela lembrava-se bem, não lhe custava quase nada gerar

energia para falar em segredo. Agora usava a última que lhe restava para
que ela não se sentisse mal, mas ela não podia permitir que o fizesse.

Tali culpou-se por nunca ter aprendido a fazê-lo também, o esforço era

todo dele. Abraçou-o para ele não perder o equilíbrio. Tali não queria

que Gaspar os visse a tocarem um no outro, mas agora tinha de ser.

— Calma, de que é que precisas, diz-me o que posso fazer.

— Deita-me — disse Juan, muito baixo.

Tali obedeceu-lhe e usou a mala como almofada para ele apoiar a

cabeça. Ele levou dois dedos ao pescoço e massajou-o suavemente. Já

não estava húmido da água da lagoa: estava alagado em suor e respirava

como se tivesse acabado de fazer uma corrida. Tali olhou para Gaspar,

que estava entretido a construir qualquer coisa com a areia suja, uma

estrutura sem forma clara. Os outros rapazes decoravam-na com ramos e

penas. Usou uma toalha para enxugar o suor de Juan, pelo menos o da

cara e o do peito.

— Se conseguires, abre os olhos — disse-lhe.

Juan olhou para ela e acomodou a cabeça na mala. Ainda não era

capaz de se sentar. Tinha as pupilas dilatadas.

— Chama o Gaspar.

— Se te vir assim, assusta-se.

— Chama-o.

Gaspar apareceu a correr, sujo de água e areia: ajoelhou-se ao lado

do pai e perguntou-lhe o que queria. Nada, disse Juan, só que me dês um

abraço. Que parvo, disse Gaspar, e rodeou-lhe o pescoço e ficou apoiado

no ombro do pai uns instantes, a falar-lhe do castelo que estavam a fazer

perto da margem, depois lês-me umas histórias de castelos? Quando

fores dormir, disse-lhe Juan. Agora vou ter com os rapazes. Não têm

jeito nenhum para fazer castelos. Imagino. Quero um copo de Seven-Up.

Leva a garrafa, divide-a com eles. Chamam-se Sebastián e Gonzalo.


Bom, leva-lhes uns copinhos de plástico, para não beberem todos do

gargalo, que é nojento.

Gaspar voltou para junto deles com a garrafa e os copos, e os rapazes

receberam-nos com festejos.

Ficaram até ao entardecer. Juan quase não se mexeu na cama

improvisada por Tali até Gaspar pedir para ir à água mais uma vez, antes

de anoitecer, e Juan acompanhou-o. Fez com que o filho nadasse com a

cabeça fora e dentro de água. Ainda era um crawl elementar, mas fazia-o

bem; ainda não era capaz de se soltar durante muito tempo, mas fazia-o

bem.

— Aprende tão depressa — elogiou-o, no regresso à praia, a mãe dos

rapazes do castelo de areia.

Juan disse-lhe que sim, que estava contente. A mulher, que era nova,

ficara a tomar mate com Tali enquanto ele nadava com Gaspar; agora,

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oferecia-lhes chipá e bolos. Tu adoras isto, disse Juan, dando um chipá

ao filho, que, assim que trincou o pão, sorriu, ao lembrar-se: comera-o

várias vezes, noutros anos, em Puerto Reyes. Também ele comeu e,

antes de vestir as calças, procurou a medicação num dos bolsos. Tomou-

a sem pudor à frente da mulher; ela, instintivamente, ofereceu-lhe um

copo de refrigerante para o ajudar a engolir.

— Ui, admiro-o por conseguir tomar todos ao mesmo tempo; a mim,

quando um antibiótico é demasiado grande, não me entra, devo ter um

defeito na garganta.

Juan sorriu-lhe.

— Estou muito acostumado.

— Dizia à sua mulher que, se vos apetecer, mais tarde podemos

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fazer uma chamameceada perto da estação balnear do rio. Vão lá estar

pessoas com guitarras.


— Aqui a polícia não nos incomoda quando as pessoas se juntam —

explicou-lhe Tali quando Juan olhou para ela com estranheza.

— E os militares também não — disse a mulher. — Há uns anos,

acabavam com tudo. Mas agora não. Abrandaram um bocado. Estão

convidados, e o rapaz também, é tudo muito familiar.

— Queres ir? — perguntou Juan a Gaspar — Vão tocar música.

— E tu, queres?

— Estou a perguntar-te a ti.

— Quero.

— Devias descansar — disse Tali em voz baixa, e Juan aproximou-

se dela, acariciou-lhe a mão e disse-lhe não te preocupes, sei o que estou

a fazer.

— Também vai haver empadas — explicou a mulher para convencer

de uma vez por todas Tali.

— Vês? Assim não terás de cozinhar.

— Não sejas parvo, Juancito, peço-te.

Não ficaram lá durante muito tempo. Tali achou que as empadas

estavam muito gordurentas, mas Gaspar gostou; não é um pouco

estranho que um rapaz coma de tudo?, disse a Juan, e ele respondeu-lhe

que, sinceramente, não conhecia outros rapazes, mas que o filho sempre

tinha sido assim, alimentá-lo era a coisa mais fácil do mundo, até se

fartava de comer sempre a mesma coisa e pedia variantes. O bailarico

não arrancava, a não ser alguns casais que se balançavam

preguiçosamente ao som de «Puente Pexoa» e «Kilómetro 11». A noite

estava pesada, do outro lado do rio e atrás das árvores via-se o céu claro,

sinal de que à noite ficaria enevoado, e soprava um vento que não

aliviava, o vento húmido da tempestade. A mãe dos rapazes do castelo

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encontrou-os e convidou-os a comer sopa paraguaya , cuidadosamente

cortada em pedaços. O fumo do grelhador trazia os cheiros da carne e


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Tali pediu uns trocos a Juan para ir buscar um choripán . Enquanto

estava na fila, ouvia as conversas de bêbedos dos homens — alguns

olhavam para ela com olhos vermelhos; noutra altura, teria ido buscar

Juan, mas agora queria evitar todo o tipo de conflitos. Bebiam vinho,

que se vendia ao litro, em latas de óleo de carro com os rebordos

dobrados para evitar cortes. Concentrou-se na música para os ignorar e

apercebeu-se de que já não estavam a tocar chamamé. Virou-se e, por

entre o fumo e a luz ténue emitida por algumas lâmpadas e um

candeeiro a petróleo, viu uma rapariga de cabelo comprido atado a

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cantar uma zamba linda, receio que a noite também me deixe sem

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alma, a añera é a minha boa mágoa e a minha única companhia.

Quando voltou para junto de Juan, que estava sentado num tronco, a

fumar, ele disse-lhe: se cantasse isto noutro lado, era presa, tal como

todos nós, têm sorte, aqui. A rapariga é muito bonita, conhece-la? Tali

bateu-lhe na cabeça e o cabelo louro caiu-lhe sobre a cara; de repente,

Juan parecia um adolescente. Não, não a conheço. E não vamos ficar cá

para tu a conheceres. Desculpa, querida, mas gosto muito mais de

zamba do que de chamamé. E, a cada copo de vinho, treme a estrela da

manhã, cantava a rapariga. E depois de cumprimentar e de se apresentar,

disse que ia cantar uma canção muito triste de um cantor que estava

doente; e não proferiu o nome do cantor, e Juan disse que devia estar

proibido. Não sei para que voltaste, se já começava a esquecer, não sei

se sabes, chorei quando partiste, dizia a canção, e que pena sentir que,

no fim, já nada resta deste amor. Juan disse-lhe que não sabia muito de

música, quem ouvia era a Rosario, mas aquela canção era do Daniel

Toro, está proibido, sim, e olha que são canções de amor. A Rosario

dizia que era uma estupidez proibi-lo porque todas as canções dele eram

lamechas, não tinham nada de político.


Lamechas, pensou Tali. E estava quase a chorar por causa de uma

dessas lamechices. Rosario, sempre foste uma grande cabra, amiga,

maninha, pensou, tenho tantas saudades tuas.

— Sabes, não sei se as coisas estão mais calmas ou não. Sempre que

lhes leio as cartas, vejo morte, e mais morte, uma morte imensa. Sabes o

que vejo? Uma guerra. Não aqui, no mar, no frio. Não tenho coragem de

dizer isto às pessoas, porque nunca mais confiariam em mim.

— Tenho a certeza de que tens razão — disse Juan.

Gaspar bocejou. Vamos para a cama, filho? Comeste bem? Sim, a

sopa que não se faz com água é deliciosa. Estava muito bem feita,

reconheceu Tali. A rapariga da guitarra avisou que era a última canção e,

quando Tali arrancou com o carro, ouviu «Gracias a la vida».

— Que miúda tão corajosa — disse Juan. — Vá, vamos, que a

Rosario estava sempre a ouvir isto com a Betty e não quero que o Gaspar

se lembre.

Gaspar já dormia no banco de trás. A estrada até à casa de Tali

estava escura e, como era de terra, acelerou: já ficara atolada na lama

várias vezes. No entanto, a tempestade ainda não passava de uma

suspeita; trovões longínquos, relâmpagos e aquela ameaça húmida.

Quando era pequena, tinha medo de tempestades, mas agora, passados

tantos anos, já lhe eram indiferentes, a não ser quando o rio enchia. A

inundação não atingia a sua casa, construída no alto de uma colina, mas

quase ninguém tinha esse luxo.

— Deita-o na minha cama — disse Tali depois de apagar a luz. —

Eu durmo no colchão esta noite. O teu filho precisa de ti, dorme com

ele.

Juan não ripostou, despiu Gaspar e ligou a ventoinha. A casa estava

fresca. Tali esperava-o no sofá da sala. Nenhum dos dois tinha sono.

— Queres pedir ao santo pela tua saúde?


— Tali, não vai servir de nada.

— Tornaste-te mesmo desconfiado, o que tens? Deixa-me ajudar-te

no que puder.

Juan ficou a olhar para o teto durante um bocado. Lá fora,

finalmente, começou a chover.

— A maioria dos pacientes que nasceram com um problema como o

meu, numa época em que as cirurgias ainda estavam em fase

experimental, vivem bastante mal. Os que não morreram. Eu sobrevivi,

mas nunca recuperei e tenho constantes complicações. Pode dizer-se que

tenho sorte.

— Então vais deixar-te morrer e pronto?

— Tentei, e continuo a tentar, diversas maneiras de me curar além da

medicina, e não há dúvida de que ajudaram. Já falámos sobre isto muitas

vezes. Não quero morrer, Tali. Tenho medo. As pessoas como eu não

vão para a morte. Vão para a Escuridão.

— Não sabes isso.

— Sei, sim. Às vezes, decido não acreditar. Quando acredito, faria

qualquer coisa para evitá-lo.

Juan levantou-se.

— Vamos ver o santo. Quero que mo ponhas debaixo da pele.

Consegues? Pode ajudar-me a viver, pode dar-me tempo?

Tali aproximou-se de Juan, acariciou-lhe as olheiras inchadas, a

barba por fazer. Depois, levou-o pela mão para fora de casa.

O templo era simples. O Senhor da Morte, não. Tali escolhera para o

santuário uma estátua grande, de quase um metro, em prata. Tinha uma

túnica negra. Aproximou-se do esqueleto e encheu de whisky um copo

pequeno para lho oferecer. Depois, acendeu três velas vermelhas. Havia

muitas mais no templo e tinha de ser ela a acendê-las todas, porque era a

guardiã.
— Não te mexas — disse. — Fica aí.

Tali acendeu todas as velas, algumas vermelhas, outras pretas, e

depositou perante o santo uns cravos vermelhos que mantinha frescos

numa jarra de vidro branco. Desligou a luz elétrica. O pequeno santuário

iluminado pelas velas fazia tremer o santo prateado, com a sua capa

negra, a gadanha à espreita. Contrariamente a outras imagens que o

representavam com uma coroa, o seu São Morte tinha a caveira

descoberta, sem nenhum enfeite. Também não usava capuz. Os olhos da

caveira estavam iluminados pelo interior com pedras brilhantes que

surgiam e desapareciam em função da luz das velas. E, nessa noite,

ardiam como fogueiras. Tali nunca as vira ou sentira arder assim.

— Ajoelha-te, Juan.

Ele obedeceu-lhe e Tali sentiu-se profundamente agradecida. Juan

não gostava de cerimónias. Mas ela, sim, tal como a irmã, e confiava no

seu santo. Disse com uma voz alta e clara:

Poderoso São Morte,

Eficaz advogado e protetor daqueles

Que te invocam,

Rogo-te que intercedas para que este doente

Recupere rapidamente a sua saúde.

Poderoso São Morte,

Até à chegada do derradeiro instante,

Permite que viva plenamente

Para cumprir a missão que lhe foi confiada.

Que assim seja.

Ámen.
A luz fazia sorrir o santo e Tali devolveu-lhe o sorriso, mostrando-

lhe os dentes, num mútuo entendimento. Depois, aproximou-se dele,

tocou-lhe os pés de prata — que estavam quentes devido ao calor do dia

— e abriu a caixinha de pau-santo que estava em cima do altar, ao lado

da imagem. Olhou para os talismãs. Havia um talhado numa bala, duas

vezes benzido. Encontrara-o no cemitério de Mercedes. A mãe disse-lhe

onde teria de ir buscá-lo. Não queria aquele para Juan, estivera sob a

pele de um homem desprezível. Escolheu o seu favorito, aquele com que

pretendia ficar para sempre, mas que agora iria dar. Era de um estilo

diferente. O senhor São Morte estava sentado numa pedra, com os

cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos na mandíbula. Adorava aquela

representação inexplicável.

— Vou pôr-te no corpo o Senhor da Paciência, é o que te faz falta. É

de osso de cristão. Levanta-te.

Voltou para o altar com whisky e uma lâmina de barbear, que

desinfetou com álcool. O corte, no ombro, devia ter menos de três

centímetros e Tali foi precisa, para que não fosse demasiado profundo. A

pele de Juan era delicada, rasgava-se muito facilmente. Levantou-a um

pouco — contrariamente aos demais devotos em que ela enxertara o

santo, Juan não se mexeu nem respirou fundo nem fez barulho nenhum,

estava acostumado ao sofrimento físico — e introduziu cuidadosamente

a estatueta, previamente mergulhada num copo cheio de álcool, sob a

ferida. Encheu a boca de whisky, cuspiu-o para cima do corte e disse

algumas palavras em guarani. Também tinha ligaduras limpas e, embora

não fosse necessário, porque a incisão era muito pequena e, com sorte,

cicatrizaria depressa, fez-lhe um penso.

— Já está, meu amor — disse Tali. — É o amuleto mais poderoso

que tenho e o que mais aprecio. Vês a luz? Nunca arde assim, apaga-se

sempre alguma vela. Desta vez, não se apagou nenhuma.


— O teu senhor ficará zangado se te der um beijo?

— Não — disse Tali, deixando-se beijar. — Não lhe queres oferecer

qualquer coisa? Se não lhe deres nada, aí é que se ofende.

Juan aproximou-se do altar, depositou um cigarro aos pés do santo e,

ajoelhando-se, baixou a cabeça. Tirou a ligadura da mão e deixou cair

algumas gotas de sangue num prato com água que estava diante da

estátua. Tali apercebeu-se, então, da dimensão do que acabara de

acontecer. O sangue de um homem como Juan era um prémio para o seu

santuário.

Antes de sair, Juan tomou-a pela cintura e disse-lhe ao ouvido:

— O teu senhor pode guardar-me uma coisa? Com a proteção da

porta, ninguém poderá aqui entrar para a vir buscar. Quero deixá-la

aqui.

Juan tirou do bolso uma caixinha prateada: Tali já a vira e pensava

que servia para guardar comprimidos. Juan abriu-a. No interior, estava

uma madeixa de cabelo castanho entrançado e amorosamente enrolado.

Uma madeixa de Rosario, reconheceu-a imediatamente. Tali fechou a

caixa, disse claro que a guardo, e pô-la atrás do santo, sob a sua túnica

negra.

— Depois da Cerimónia, vens cá buscá-la.

Juan não lhe respondeu e Tali teve o pressentimento de que, agora,

era ela a guardiã daquela relíquia, de que estava a guardá-la para algo ou

alguém mais. Lá fora não chovia. A tempestade fora breve. Saíram. No

caminho de regresso, Tali disse-lhe:

— Pensava que não querias saber do santo.

— Porquê? Sempre o respeitei.

— Sim, mas nunca lhe tinhas pedido nada.

— Agora, todas as ajudas são poucas.


A respiração de Juan estava novamente agitada. Ela entrou primeiro

em casa e espreitou para dentro do quarto. Gaspar dormia de lado,

sossegado. Não pensara no rapaz até àquele momento, mas, enquanto

fechava com cuidado a porta, imaginou-o acordado e sozinho em casa

durante a tempestade e agradeceu que tivesse um sono tão pesado.

— Fiquei com vontade de beber whisky — disse Juan. Tali foi

buscar dois copos com gelo.

— Trouxe-o do Paraguai. É uma zurrapa, mas, para matar o desejo,

não deixa de ser whisky. Está a doer?

— O ombro? Não.

— Porque perguntas? Dói-te outra coisa?

— Dói-me o dedo. Dói-me a mão. Dói-me a picada de um bicho

qualquer nas costas.

— Devias tomar antibióticos, sabes.

— De certeza que tens algum para mim.

— Tenho, porque as pessoas a quem ponho isso não sabem tratar

bem delas e apanham infeções, e não quero que ninguém me atire com

as culpas.

— Não me dês nada agora. Depois.

— Claro, depois — disse Tali, despindo o vestido húmido e

deitando-se nua no chão. Juan deitou-se a seu lado e Tali esperou de

olhos fechados que ele acalmasse, que respirasse com menos

dificuldade.

Acordou de manhã sozinha no colchão, na sala. Juan tapara-a com

um lençol leve e fora buscar uma ventoinha para ela. Tali olhou para o

relógio de parede. Seis da manhã. Muito cedo, mas não era capaz de

dormir mais. Foi até ao seu quarto e observou Juan e Gaspar a dormir.

Apesar do calor, estavam abraçados, Gaspar apoiado no peito do pai, o

pai com o braço por baixo da cintura dele. Tali, em bicos dos pés, foi
buscar a Polaroid que comprara em Asunción. A câmara era muito

barulhenta, mas esperava que a ventoinha, que também o era, abafasse o

disparo. Não acordaram quando a câmara disparou e saiu do quarto para

ver aparecer, lentamente, a imagem no papel. A luz da manhã, filtrada

pelas cortinas, deu-lhe um efeito especial: os dois pareciam muito

pálidos, mais dourados. Juan não gostava de fotografias e, por isso, não

tencionava mostrar-lhe a imagem roubada. Quando o papel secou,

guardou-a em cima do frigorífico, onde ele não a encontraria.

Juan sentiu a dor do filho como se fosse um alarme a acordá-lo e,

naquela manhã, pôde abraçá-lo antes de começar a chorar

desconsoladamente, e acariciou-lhe o cabelo até acalmar. Levou-o para a

casa de banho para lhe lavar a cara e deixou-o sozinho a lavar os dentes.

Tali deixara-lhes o pequeno-almoço feito e um bilhete em cima da mesa.

Precisava de ir à aldeia comprar umas coisas que lhe faziam falta.

Juan escreveu na parte de trás do bilhete. Obrigado por tudo, vamos

embora, vemo-nos em PR. Aqueceu o leite de Gaspar, que detestava

bebê-lo frio. O rapaz estava sentado num banco alto, sem encosto, para

cima do qual trepara. Era desconfortável para ele, custava-lhe manter o

equilíbrio. Juan não lhe disse nada, não lhe pediu que se sentasse numa

cadeira, não conseguia falar com ele naquela manhã; tinha a cabeça a

latejar após sonhar com corredores húmidos e marcas de mãos nas

paredes, com a luz negra que mordia.

— Onde vamos?

— Vamo-nos embora.

Gaspar empurrou o leite e cuspiu para cima da mesa. Detestava nata.

Não quero mais, é nojento, disse. Juan sentiu a irritação a endurecer-lhe

as mandíbulas, a apertar-lhe os dentes. Não quero ir embora, disse

Gaspar, cruzando os braços. E porque não, pensou Juan. Porque não


deixá-lo ali, com Tali, para que ela tomasse conta dele. Poderia visitá-lo

de vez em quando. Ou não: dali a uns anos, ele seria uma recordação

longínqua e Tali poderia ser sua mãe, criar-se-ia entre os esqueletos e a

igreja misteriosa, um rapaz do rio que falaria guarani, que pescaria

surubins. Noites de pacu na brasa e sexo na areia, os jangadeiros

cumprimentá-lo-iam. Também poderia abandoná-lo na estrada, algures

perto do rio. Ou à porta de um hospital, de uma esquadra. Havia rapazes

perdidos por todo o país. Rapazes roubados, rapazes abandonados. Os

rapazes que tiravam aos sequestrados. Alguém poderia ficar com ele. As

adoções ilegais eram uma epidemia. Gaspar tinha sorte, aceitá-lo-iam de

braços abertos: era belo e não estava danificado, não muito, pelo menos.

Como é óbvio, o que imaginava era impossível. Encontrá-lo-iam em

minutos, estaria desprotegido. Tali era a filha de Adolfo e uma iniciada

periférica e rebelde, mas um membro da Ordem. Gaspar nunca estaria

seguro com ela. Não havia escapatória possível. Podia fantasiar com

fugas, fazia-o com frequência, mas não só seriam apanhados como,

tinha de reconhecê-lo, não queria renunciar ao seu poder. Apesar de

todo o seu ódio, o seu desprezo, as suas ambivalências, a sua repulsa

pela Ordem, o poder continuava a ser seu e ele não possuía muitas

coisas. Renunciar é fácil quando se tem muito, pensou. Ele nunca teve

nada.

— Vai vestir-te.

Juan levantou-se e disse obedece imediatamente, e quando o rapaz

voltou a recusar-se, choramingando de braços cruzados, arreou-lhe uma

bofetada na cara com a mão aberta, uma pancada que lhe revirou a cara

e que o fez balançar no banco e, finalmente, perder o equilíbrio. Gaspar

caiu de costas, em seco, e o banco também tombou no chão, perto dele,

sem lhe tocar. Juan aproximou-se dele ignorando os seus gritos, sentou-o
com um empurrão e olhou para a marca vermelha na face e para o lábio

inchado. A pontada de arrependimento desapareceu assim que Gaspar

começou a chorar. Cala-te, disse, e, puxando-lhe os cabelos, obrigou-o a

olhá-lo nos olhos, a inclinar o pescoço para trás. Sacudiu-lhe a cabeça e

o cabelo suave emaranhou-se nos seus dedos porque o rapaz estava a

transpirar. Não sejas fraco, não aconteceu nada. Gaspar tentou dizer

qualquer coisa, a cadeira, a pancada, e Juan voltou a ameaçá-lo com a

mão aberta até o obrigar a deixar de chorar. Vai trocar de roupa, repetiu,

é a última vez que te digo isto. Gaspar obedeceu, foi a correr até ao

quarto e não fechou a porta. Demoraria a vestir-se, primeiro teria de

descarregar dando murros na almofada, gritando odeio-te, odeio-te,

odeio-te, mas Juan podia suportar isso.

O que não podia suportar era o sol daquela manhã, o cansaço, a dor

constante no peito que já não sabia se era uma consequência da última

cirurgia, da angústia ou de algum mecanismo do seu corpo,

decompondo-se como um motor velho que, irremediavelmente, ia

arrancando cada vez com mais dificuldade até ao derradeiro estertor.

Aproximou-se do quarto. Tinha na mão uma tesoura e um envelope.

Gaspar vestira umas bermudas e uma t-shirt. Estava sentado na cama a

tentar apertar as sandálias, mas ainda não sabia usar o velcro.

— Eu faço isso — disse Juan, e Gaspar olhou para ele com os olhos

secos. Esticou o pé para o pai o ajudar. Tinha o lábio inchado, mas não

sangrava. As sandálias franciscanas eram novas e, no início, Gaspar

detestara-as, queria andar sempre de ténis. Talvez as tivesse escolhido

em jeito de trégua. É inteligente, pensou Juan.

— Não te odeio — disse Gaspar. — Desculpa, papá, desculpas?

Juan não lhe respondeu. Com uma tesoura que trouxera da cozinha,

cortou uma madeixa de cabelo a Gaspar, que olhou para ele

surpreendido. Juan não lhe deu nenhuma explicação, continuou a cortar


e guardou o cabelo no envelope. Depois, desenhou no papel dois signos:

Tali saberia interpretá-los. Eram necessários para proteger Gaspar.

Tocou nas costas e lembrou-se de que tinha de lavar a ferida onde Tali

incrustara o Santo Esqueleto sob a pele. Aquela região e os seus ossos.

Tantos ossos. Como os ossos do Outro Lugar em que Juan não queria

pensar, em que se recusava a pensar. Rosario disse-lhe que os guaranis,

tradicionalmente, enterravam os mortos em panelas de barro e

conservavam-nos por perto, às vezes nas próprias casas, porque

acreditavam que podiam devolvê-los à vida. Conservavam-nos,

inclusivamente, nos inofensivos cestos artesanais de cana entrançada que

ofereciam nos mercados e nas bermas das estradas: o cadáver ficava lá

até apodrecer e se desfazer. Depois, lavavam os ossos e a família

guardava-os num recipiente de madeira. As cabanas antigas deviam ter

um cheiro fétido. Rosario dizia que, nalguns relatos de sacerdotes

evangelizadores, havia referências a templos onde se adoravam os ossos,

o esqueleto pendurado em dois paus ou em redes simples ou decoradas

com penas. Esses lugares eram perfumados e os sacerdotes diziam que

os esqueletos eram demónios e falavam.

— Não te esqueças da mochila — disse, e levantou-se da cama. Foi à

casa de banho pôr álcool na ferida; não ardeu. Tentou não se olhar ao

espelho. Depois, foi buscar a mala ao quarto de Tali. Antes de sair,

deixou o envelope com a madeixa de cabelo do filho em cima da mesa,

para que Tali a usasse. Esperou por Gaspar ao sol, no pátio da casa.

— O carro está quente?

Juan olhou em seu redor. O verde era atroz, belo, tantos tons que era

injusto chamá-los a todos pelo mesmo nome. O carro estava estacionado

à sombra de um salgueiro.

— Um pouco, mas como não levou com o sol de chapa, não está a

arder.
— Se olhar para o sol, fico com dores de cabeça. Aparecem aquelas

flores esquisitas no céu.

— Então, não olhes.

Juan também via as flores negras no céu antes de uma enxaqueca.

Nisso, eram exatamente iguais. Em quantas coisas mais se pareceriam,

esse era o problema.

Arrancou com o carro e conduziu com dificuldade sobre a gravilha

até chegar à estrada. Na curva da saída, viu a operação stop da polícia,

que parava os carros e revistava os porta-bagagens: uma longa fila

aguardava pela sua vez. Passou junto deles olhando apenas, fingindo

curiosidade, e um dos polícias fez-lhe sinais para continuar: tinha uma

arma na mão, como se estivesse prestes a usá-la ou precisasse dela para

se defender. Juan acelerou um pouco, mas não demasiado para o polícia

não pensar que estava a fugir, apenas o suficiente para dar a entender

que tinha compreendido a sua ordem. Gaspar, no assento de trás, olhou

para ele com ar alarmado através do espelho.

— Passa cá para a frente — disse-lhe Juan.

A Ordem nunca usara polícias ou militares nos seus sacrifícios. A

coerência ideológica era impecável, pensou Juan. Só sacrificavam os que

perseguiam os seus amigos e, assim, ajudavam-nos. Ele contribuía, mas

não se sentia cúmplice. Sentia-se inocente. Também era um prisioneiro.

Agora, a paisagem estava manchada pelo rosa das hortênsias, do

reflexo do rio entre os ramos quietos dos salgueiros, e, na berma da

estrada, começavam a surgir as mulheres sentadas, de cabelo comprido,

abundante e emaranhado, que vendiam os seus cestos de canas

firmemente entrançadas com fitas vegetais em tons de verde claríssimo e

castanho quase branco, ebúrneo. Permaneciam em silêncio, com os

filhos a correr à sua volta e perigosamente perto da estrada. Mulheres e

cestos, salgueiros, rapazes e cruzes. Gaspar fez perguntas sobre as


cruzes, os rapazes morenos e pequenos, desnutridos, não lhe

interessavam. São de pessoas que morreram na estrada, em acidentes.

Estão enterrados aqui? Não, só as põem aqui para nos lembrarmos deles,

estão enterrados no cemitério, como toda a gente.

Como toda a gente, não, pensou Juan, mas era demasiada

informação para aquela manhã. Ao pé do sinal que dizia Bella Vista 80

km havia uma cruz enorme, branca, decorada com papel crepe cor-de-

rosa, vários terços e fitas de embrulhar presentes. Uma cruz recente,

com a decoração intacta, ainda não desbotada pelo calor ou pela chuva.

Um morto recente. Quanto faltaria para Gaspar ver um? Tinha-se

fechado antes de viajar: não queria dar com um atropelado a cambalear

na estrada depois de ver Rosario na maca de metal da morgue, os

fémures partidos a espreitar na pele rasgada, rosados de sangue, a cara

esmagada por um pneu; parece um croissant, pensou, porque era o que

parecia de onde ele a olhava, ajoelhado no chão por não conseguir estar

de pé, as feições esmagadas, o nariz destruído, os olhos algures no

cérebro e a testa e o queixo projetados numa meia circunferência quase

perfeita. Tapou-a passados uns instantes, depois de lhe acariciar os

braços intactos e as mãos esticadas. Um médico ou uma enfermeira

entregaram-lhe um saquinho de nylon com os anéis de Rosario e as suas

pulseiras caríssimas. Juan não se lembrava se a pessoa do saquinho era

um médico ou uma enfermeira, homem ou mulher, mas lembrava-se de

lhe perguntar a quem teria de ligar. Não sabia o que fazer dali para a

frente. A funerária, o enterro, o que fazer. E ela ou ele explicaram-lho

com paciência e clareza. Juan tomou notas mentalmente, mas antes de

fazer fosse o que fosse, antes de telefonar a Adolfo ou a Mercedes, de

avisar os polícias e os advogados, parou um táxi à porta do hospital e

pediu-lhe que o levasse à escola de Gaspar. Não conseguia tratar de tudo

sozinho. Percebia que não devia ser o filho a acompanhá-lo enquanto


tratava de um funeral. Percebia que teria de ser ele a tratar de tudo e a

consolá-lo depois, a explicar-lhe com delicadeza a morte da mãe. Porém,

não queria saber do que faziam as pessoas normais. Nem Gaspar nem

Rosario nem ele eram pessoas normais.

— A mamã não tem uma cruz na rua?

— Não, na cidade não se usam.

— Porque não?

— É um costume das estradas.

— Podemos fazer-lhe uma?

Gaspar ficou calado, com as mãos apoiadas no porta-luvas. Lá fora,

as árvores baixas pareciam despenteadas, desorganizadas, e eram

definitivamente feias. Juan não se atrevia a ultrapassar o camião que o

estava a atrasar e que tresandava a fertilizante. O camião virou para um

caminho de terra entre as árvores e a estrada abriu-se aos jacarandás e às

corticeiras; de repente, tudo se tornou violeta e vermelho, e Juan

respirou fundo para controlar as palpitações que sentia no peito e no

pescoço.

— Gaspar, passa-me a água.

O rapaz deu-lhe a garrafa de vidro — originalmente, era de

refrigerante, de Crush, que Gaspar adorava — cheia de água fresca. A

modesta geleira de esferovite funcionava bem.

— E aquilo, o que é?

Juan olhou para onde apontava Gaspar, que voltara para o assento da

frente e também bebia água fria pelo gargalo.

— É um santuário.

Reduziu a velocidade para ver de que santo se tratava: não era o

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Gauchito , porque faltavam os típicos panos vermelhos.

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Era São Güesito .
Quem é, quem é, insistia Gaspar. É um rapaz da tua idade, mais ou

menos. Foi morto por uns bêbedos. Porquê, era mau? Os bêbedos, sim;

ele, não. Vivia na rua, era um rapaz pobre. Na rua, não; na verdade,

vivia aqui, na selva, perto da estrada.

Gaspar ficou a pensar, concentrado. Não posso contar-lhe a verdade,

pensou Juan, não posso explicar-lhe que o Güesito foi violado antes de o

matarem. Por quantos? Não se lembrava, havia quem falasse de cinco,

outros de dez. Mutilaram-lhe o corpo e usaram a cabeça dele em rituais.

Foi assim que o encontraram, esvaído em sangue e sem cabeça na beira

da estrada, há mais de vinte anos. Estava enterrado no cemitério de

Goya, e o túmulo dele encontrava-se coberto por todos os brinquedos

que não tinha conhecido em vida.

— Não quero sair — disse Gaspar.

Juan estava de acordo com ele. Também não gostava do Güesito,

nem da sua efígie, um boneco moreno e meio despido com os olhos

pintados à maneira vagamente egípcia, contornados e cegos. Tinha

curiosidade em relação ao que haveria na casinha de tijolo que o

protegia, mas era melhor prosseguir viagem.

Um sinal anunciava 78 km. Conseguiria estar em Bella Vista dali a

uma hora e teria tempo para falar com o filho no caminho. Era mais fácil

no carro: o movimento parecia hipnotizá-lo. Passariam a noite num bom

hotel, em Corrientes. Era necessário, antes de tentar o que planeara.

Também precisava de invocar um certo tipo de energia sexual que seria

difícil de encontrar naquelas aldeias. Podia deixar esse problema para

depois.

— Gaspar, voltaste a ver alguma senhora como a do hotel?

— Senhoras, não.

Juan ajeitou os óculos escuros. Gostava que Gaspar percebesse

exatamente o que lhe estava a perguntar. Olhou para ele e viu que, no
ombro do rapaz — tirara a t-shirt por causa do calor —, crescia uma

nódoa negra. A pancada contra o chão quando o atirara da cadeira

abaixo ao bater-lhe. Juan passou-lhe o dedo suavemente pela mancha

escura.

— E então?

— No rio, quando comemos a sopa que não era de água e havia

música, saiu um senhor da água.

— E como é que soubeste que era como a senhora do hotel?

— Porque estava nu e todo inchado e não podia estar assim. Então,

fiz como me ensinaste e ele foi-se embora.

— Foi-se logo embora.

— Sim.

Impressionante, pensou Juan.

— Tiveste medo?

Gaspar hesitou um minuto e passou a mão pela testa. O seu gesto de

preocupação. O outro era fechar a mão esquerda num punho. Muitas

vezes, Juan tinha de obrigá-lo a esticar os dedos e não era pouca a força

que Gaspar fazia naquele gesto de ansiedade. Vai morrer novo se

continuar assim tão nervoso, disse uma vez a Rosario, e ela, furiosa,

gritou-lhe que nunca dissesse uma coisa daquelas de Gaspar, como

podia ser tão bruto, o nosso filho não vai morrer. Tudo isso parecia tão

longínquo agora, essa discussão de madrugada, Rosario a pegar na

almofada para ir dormir noutro quarto, a porta a bater e o perfume caro

nos lençóis.

— Não gostei — respondeu Gaspar.

— Dá-me a tua mão para eu jurar e veres que não te estou a mentir.

Juan reduziu a velocidade. A estrada estava vazia e, por isso, podia

conduzir com uma só mão e olhar o filho nos olhos.


— Juro. Não te podem fazer nada. Não são senhores e senhoras, são

ecos. Estás a ver quando gritas na garagem lá de casa e voltas a ouvir o

teu grito? Mas essa voz já não é a tua voz, a da segunda vez. Isto é a

mesma coisa. Foram pessoas em tempos, em tempos foram a senhora do

hotel e o senhor do rio, mas agora já não. Não te podem fazer nada. Não

te podem magoar porque nem sequer te podem tocar. Podem aproximar-

se de ti, mas não te podem tocar. Juro.

— E porque é que os vemos?

— Há pessoas que conseguem vê-los. Há pessoas que conseguem ver

muito mais coisas.

— Tu vês outras coisas.

Não era uma pergunta.

— Sim.

— E eu também?

— Não sei. Podemos fazer uma experiência, se quiseres. E, se

quiseres, também há uma forma de veres os que são como o senhor e a

senhora só quando te apetecer.

— Quando me apetecer?

— Claro.

— E porque é que me vai apetecer?

Era uma boa pergunta. Juan riu-se.

— Então, vou ensinar-te a nunca mais os veres.

— As flores negras são como as senhoras, não são? Porque eu vi-as

ao pé das nuvens e agora dói-me a cabeça.

— Onde é que te dói?

— Aqui, no olho.

Juan esticou o braço até ao assento de trás e tenteou-o até encontrar

a mala. Tinha de dar já uma aspirina ao filho antes de a enxaqueca

escalar. Engole-a com a água, disse-lhe, e fica quieto e com os olhos


fechados. Gaspar herdara as desarmantes dores de cabeça da sua família.

Era impossível explicá-las aos afortunados que só tinham enxaquecas

comuns, aquelas marteladas sob o crânio, os olhos como se fossem duas

pedras incrustadas na cara, a luz como uma faca, cada ruído

amplificado. E as náuseas.

O pior não era isso, para ele. O pior era não poder tirar a dor a

Gaspar. As únicas dores que podia tirar eram as que ele próprio

provocava.

— Apetece-me vomitar, papá — disse Gaspar quinze minutos

depois, e Juan parou o caro na berma da estrada e abriu a porta para que

o rapaz vomitasse no asfalto e não se sujasse. Segurou-lhe na testa e

prendeu-lhe o cabelo atrás da nuca e sentiu o corpo de Gaspar a

esforçar-se, a contrair-se e a transpirar de dor. Teria de parar nalgum

lugar fresco para que o rapaz pudesse dormir; se não, sob aquela luz do

meio-dia, as horas de enxaqueca seriam insuportáveis. Tinha de voltar

para a casa de Tali. Tirou um pouco de gelo da pequena geleira e passou-

o pela testa de Gaspar, que comprimia as fontes como um adulto.

— Não chores, que é pior — disse-lhe.

Gaspar vomitou outra vez. Já não tinha nada no estômago e o esforço

fazia-o tremer. Juan estava tão concentrado em segurar-lhe na cabeça,

que não reparou no carro que parou ao pé deles. Ouviu a voz antes de se

aperceber da presença do carro e ficou irritado consigo mesmo, estaria a

perder os reflexos, ou quê?

— Bom-dia, estão bem?

Juan virou-se. Ao seu lado, estava um Peugeot, e quem lhe falava, o

condutor, era obviamente portenho e novo e inofensivo. Agora, estava

alerta e absorvia o desconhecido com toda a sua atenção. É de

confiança, soube-o com toda a certeza. Outro inocente.

— O meu filho sente-se mal.


— Precisam de ajuda? Ali, a duzentos metros, há uma mercearia

familiar, estou a passar lá uns dias com eles, têm telefone.

A duzentos metros? No monte? Juan sentiu uma leve pontada de

desconfiança e, ao mesmo tempo, percebeu que o jovem do carro

também estava de pé atrás. Ali, no Norte, a ditadura era menos

opressiva, mas qualquer pessoa minimamente consciente ficava

alarmada perante uma situação estranha. Porém, pensou Juan, não era o

caso: um rapaz a passar mal na estrada, no verão. Era normal. Podia

aceitar a ajuda e o desconhecido agira com naturalidade ao oferecer-lha.

Não indicava perigo.

— O estabelecimento não se vê da estrada, não devem fazer lá

grande negócio.

— As pessoas de cá sabem onde fica, estás a ver o caminho?

Tratou-o por tu, outro bom sinal. Juan viu o caminho de terra: até

havia uma pequena placa de madeira onde dizia, em letras brancas,

«Mercearia Karlen».

— Olha, o meu filho sofre de enxaquecas. Precisa de um lugar

escuro e fresco para descansar, não de uma loja com pessoas

barulhentas. Ia procurar um hotel.

O desconhecido assentiu.

— A família vive lá e de certeza que podem arranjar um lugar para

vocês num dos quartos. São duzentos metros.

Juan olhou o desconhecido nos olhos. Tinha caracóis e, embora não

os tivesse postos, usava óculos: notavam-se as marcas na cana do nariz.

O carro parecia bastante sujo: estava a viajar. A camisa bege que tinha

vestida estava limpa. Poderia usá-lo mais tarde, se quisesse.

— Vou atrás de ti — disse Juan.

A mercearia Karlen apareceu pouco depois. Era uma construção

modesta meia de tijolo, meia de madeira, com um estacionamento


espaçoso, um pátio e, nas traseiras, a casa familiar, pintada de branco. A

loja tinha um alpendre com uma mesa comprida que, naquele momento,

e apesar de ser hora do almoço, estava vazia. Dois homens tomavam

uma bebida, talvez aguardente de cana, apoiados no varandim. O

desconhecido do carro saiu primeiro e falou com a mulher que estava à

porta, de pé, uma mulher de bata florida, avental e cabelo grisalho

apanhado. Assim que ouviu o que o desconhecido lhe disse, aproximou-

se a correr do carro de Juan, que tinha aberto a porta do lado do

condutor e continuava a passar gelo na testa de Gaspar; o rapaz não

mexia a cabeça: sabia que fazê-lo piorava a dor.

A mulher apresentou-se como Zulema, a senhora Karlen, a dona da

mercearia e da serração, e disse a Juan que, se quisesse deitar o rapaz na

cama do filho, ela lha ofereceria com todo o gosto. Não será mau-

olhado, não, disse depois de Juan se apresentar e dizer que o rapaz se

chamava Gaspar. Pode ser mau-olhado, respondeu Juan, mas não

conheço muita gente capaz de curar bem isso. Pois, tem razão, disse a

senhora Karlen, como é que se costuma dizer, há muito charlatão.

Venham comigo. A minha mãe tinha dores assim, mas nunca as vira

num rapaz. Terá apanhado uma insolação? Pode ser, disse Juan. O tom

da mulher era vagamente crítico, um homem que não sabe cuidar bem

do filho, pensava, mas Juan não se ofendeu: não andava longe da

verdade. Não comprara um chapéu a Gaspar, por exemplo. Não o

obrigava a pôr o cinto de segurança e, quando ele o irritava, era capaz de

lhe bater brutalmente, mais ainda do que naquela manhã. Seguiu a

mulher com Gaspar ao colo.

— O meu marido e o meu filho estão na ilha — disse a mulher,

como se Juan percebesse o que ela estava a dizer. O chão da casa das

traseiras era de cimento e uma rapariga adolescente varria o pátio com

uma vassoura feita de folhas de palmeira. A casa, cujas assoalhadas


estavam separadas por cortinas de tiras de plástico em vez de portas, era

surpreendentemente fresca. Em cima da mesa, Juan viu uma garrafa de

vinho aberta, um arranjo de flores de plástico e imagens da Virgem de

Itatí nas paredes, delicadamente emolduradas. O frigorífico fazia

barulho.

— Por aqui — disse a senhora Karlen, abrindo a cortina de plástico

de um quarto pequeno com uma cama de solteiro e a janela fechada por

portadas de madeira.

Juan teve de pestanejar para se habituar à escuridão e deitou Gaspar

com cuidado. A mulher desapareceu na cozinha e regressou com uma

panela de alumínio com água, gelo e um lenço para molhar. Juan

agradeceu-lhe e ela perguntou-lhe se queria batatas. Quero, disse Juan,

mas eu é que as corto, a senhora tem de atender os seus clientes. Dê-me

um segundo, disse a mulher. Não sei como lhe agradecer, disse Juan, e a

senhora Karlen ignorou-o.

Juan tirou a almofada para não a molhar e pediu a Gaspar que se

deitasse de lado. Por experiência própria, sabia que era melhor e, além

disso, não correria o risco de asfixiar no próprio vómito se as náuseas

voltassem. Embebeu o lenço na panelinha de água e gelo e aplicou-o na

cabeça de Gaspar como se fosse um gorro. A senhora Karlen trouxe

várias rodelas de batatas cortadas muito finas e deu-as a Juan, que as pôs

na testa de Gaspar. Quando o rapaz lhe largou a mão, quando adormeceu

com a boca aberta e os olhos tapados pelo lenço gelado, Juan pensou em

sair, entrar no carro e abandoná-lo ali, naquela mercearia perdida. Seria

o melhor para ti, filho, pensou. Imaginou-o crescido, a atender os

clientes atrás do balcão ou, então, a remar na jangada. Se o abandonasse,

converter-se-ia num homem revoltado e calado, mas havia muitos

homens assim. Saiu do quarto. Lá fora, a rapariga que estivera a varrer

perguntou-lhe em voz baixa se o menino se sentia melhor e ele disse-lhe


que estava a dormir e que acordaria bem. É uma sorte o meu irmão e o

meu pai estarem na ilha, assim, temos lugar para ele, se não, eu

emprestava-lhe o meu quarto, mas o dele é melhor. Onde estão, quis

saber Juan. Estão na ilha, na madeireira. Têm uma serração? Só para

fazer caixotes de fruta. De limões e laranjas. Se quiser, pode ir tomar

qualquer coisa ali, disse-lhe. Se o menino acordar, eu aviso-o, vou

dormir uma sesta de umas duas horas, mas tenho um sono levezinho.

A amabilidade dos estranhos, pensou Juan. Não teria encontrado

demasiada gente generosa e desinteressada? Não seria um sinal, não

seria uma armadilha, uma encenação? Fechou os olhos para se

concentrar melhor enquanto se dirigia para a mercearia. Não conseguiu

sentir nenhum perigo à espreita. As cigarras gritavam, os pássaros

estavam mudos, nos campos palpitava uma violência antiga e também

sentiu outra mais recente, mas nenhuma dirigida a ele ou ao filho. O que

sentiu, como uma rajada, foi o desejo do desconhecido do Peugeot que

se apresentara como Andrés.

Agora, na mesa da mercearia, havia dois homens a almoçar: um, que

acabara de comer um prato de esparguete, e outro, que mordiscava

distraidamente uma sanduíche. Os que bebiam álcool apoiados no

varandim continuavam no mesmo sítio a falar sobre um jaú. Juan tentou

lembrar-se do que significava aquela palavra: era um peixe, julgava ele.

Um deles dizia «sou mais feio que um pequeno-almoço de cavala com

mate cozido» e Juan sorriu: o homem que falava era realmente feio,

tinha a cara marcada por alguma doença infantil e era gorducho, baixote,

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fazia-lhe lembrar as imagens estereotipadas dos duendes da sesta .

Andrés, o desconhecido do Peugeot, saiu da mercearia com a

senhora Karlen, e depois de perguntar por Gaspar, inquiriu o que lhe

apetecia beber, como se fosse um empregado. O que não batia certo com
os seus modos, a pronúncia do Barrio Norte de Buenos Aires, a

qualidade da sua roupa.

— Um refrigerante, por favor. Bem frio, se tiverem.

— Têm, nem imaginas os níveis de frio que atingem os frigoríficos

por estas bandas.

Juan ergueu uma sobrancelha. Sabia, sim.

— Trabalhas aqui?

— Passei uns dias com eles e, como não aceitaram dinheiro, decidi

ajudá-los antes de me ir embora.

Andrés tirou a carica da Crush com dificuldade. Estava nervoso. Só

se sentou à mesa depois de os camionistas se irem embora e de os do

varandim, já bastante bêbedos, terem ido descansar à sombra de um

salgueiro; Juan apercebeu-se, então, de que estavam muito perto da

lagoa.

— Não queres comer nada?

— Talvez mais tarde — disse Juan, olhando para a garrafa vazia de

Crush que bebeu em dois goles, pelo gargalo.

Andrés ajeitou os caracóis bastante compridos e explicou-lhe como

fora parar àquela mercearia. Disse que era fotógrafo, que estava a fazer

um trabalho sobre a Mesopotâmia. Chamou-lhe isso: «um trabalho».

Fotografava pessoas, sobretudo. Os Karlen deixaram-no entrar na sua

intimidade e não só os fotografara na mercearia e na casa deles, como

também na serração da ilha do Paraná, onde, à noite, gritavam e lutavam

os bugios-pretos. Contou a viagem pelo rio: a ida de lancha; a volta de

jangada. Agora, os homens estavam outra vez na ilha. Também falou de

um bailarico que fotografara apenas duas noites antes: foi para lá com os

filhos de Karlen num trator, porque a chuva transformara os caminhos de

terra num lamaçal. Juan ouviu-o com atenção. Porquê Corrientes,


porquê esta zona, quis saber. Porque não conheço a Argentina, disse

Andrés. Vivi na Itália durante vários anos.

— E porque é que voltaste? Não tens medo dos militares?

Andrés sobressaltou-se.

— Não fiques paranoico — disse Juan.

— Para onde vão vocês?

Juan sabia que lhe devia uma explicação e, de resto, era a única

maneira de ganhar a sua confiança. O fotógrafo era amável, embora,

provavelmente, não completamente desinteressado. Juan teve dificuldade

em perceber isso, mas estava ciente do impacto que a sua aparência

causava tanto nos homens, como nas mulheres. Aprendera a

compreender o desejo dos outros e a usá-lo, mesmo quando não era

capaz de desfrutar dele.

— Vamos visitar os meus sogros, a Posadas.

Não lhe ia contar a verdade, mas uma versão paralela, credível,

semelhante, espelhada.

— São ricos. Podia ter vindo de avião, mas preferi fazer a viagem de

carro. Também não conheço assim tanto o país.

Não fazia sentido mentir-lhe porque, quando Gaspar acordasse,

falaria — estranhamente, depois de uma enxaqueca ficava sempre muito

falador — e, por isso, disse-lhe que era viúvo e que era a primeira vez

que viajava sozinho com o filho.

A senhora Karlen ouviu a conversa da porta da mercearia e

apressou-se a trazer a Juan um prato de bifes panados com puré, dizendo

que tinha de comer qualquer coisa. Depois, anunciou que também iria

dormir uma sesta.

— Se o menino acordar, aviso-o logo. Pode ir vê-lo lá a casa quando

quiser.
Andrés perguntou porque é que os sogros dele eram ricos e Juan

disse-lhe que eram donos de uma serração importante. Depois,

perguntou se podia usar a espreguiçadeira que estava ao pé da porta e

Andrés disse que sim, trazendo outra de dentro da loja. Também trouxe

duas cervejas. Juan tirou dinheiro do bolso e pediu ao fotógrafo que

depois o levasse para a caixa ou para onde os Karlen guardavam o

dinheiro. Pediu outro refrigerante, não quero beber álcool antes de

conduzir, disse. Pensava que iam ficar mais tempo. Não, amanhã tenho

de estar em Posadas.

O fotógrafo pareceu dececionado e depois contou-lhe que estava a

ficar farto de fotografar pessoas. Que começara a tirar fotografias aos

santinhos da estrada. O altar de São Güesito impressionara-o; ainda

mais depois de conhecer a história dele, e era isso que ia fazer quando os

encontrou na estrada, fotografar mais altares.

— Não te quero atrapalhar — disse Juan. — A luz ainda está boa,

vai.

— Prefiro ficar aqui contigo — disse o fotógrafo, ousado, e bebeu

um gole de cerveja. — Tu interessas-me mais do que qualquer outra

coisa.

Juan limitou-se a sorrir. Agora, teria de ser ele a dar o passo

seguinte.

— Que coragem. Eu não sei se teria coragem de tentar engatar

alguém por estas bandas, com tantos arruaceiros meio bêbedos.

— Olha que não. Nem imaginas o que se fode por cá. No bailarico,

na outra noite, fodi mais do que durante o tempo todo que passei na

Itália. Estão descontrolados.

Juan riu-se.

— Conheces a Capela do Diabo? Tens de fotografá-la.

— Já ouvi falar dela, as pessoas têm medo.


— Fazem missas lá. Mesmo não tendo sido consagrada. É o que

dizem. Em vez de vinho, usam água de um recipiente onde tenha

tomado banho um bebé não batizado. É de supor que uma taça de

sangue seria mais adequada, não é?, mas não, preferem usar água suja.

— E para que é que se fazem essas missas? — perguntou o fotógrafo.

— Para que serve sempre esse tipo de coisas: para fazer mal a

alguém. Tiras fotografias de noite? Então, podes ir lá ver se acontece

alguma coisa. Se acontecer, de certeza que será numa sexta-feira.

— Acreditas nessas coisas?

— Não — voltou a mentir Juan. — A minha mulher acreditava

bastante. Se já estás aqui há muito tempo, não te tenho de explicar que

são todos meio bruxos. Vou ver como está o meu filho.

Na casa, o silêncio era total, quebrado apenas pelo zumbido das

ventoinhas. Dirigiu-se diretamente para o quarto onde dormia Gaspar e,

com cuidado, tirou-lhe as rodelas finas de batata, que estavam quentes e

secas; ainda havia gelo na panela e voltou a embeber nela o lenço.

Conseguiu fazê-lo sem acordar o filho. Saiu tentando não fazer barulho.

Quando voltou à mercearia, o fotógrafo fora buscar uma ventoinha à loja

e esperava-o com outro refrigerante. Uma Coca-Cola. Também não a

podia beber. Parecia uma anedota: o fotógrafo queria mimá-lo, mas

enganava-se sempre. E despira a camisa. Era magro e não tinha pelos no

peito, o que era surpreendente, tendo em conta os braços quase hirsutos,

escuros. O fotógrafo estava nervoso. Juan nada fez para o acalmar.

Sentou-se ao pé dele e pediu-lhe que lhe falasse mais sobre as suas

fotografias. André falou-lhe das ilhas do rio e do medo que sentira ao

ver os macacos a lutar. Não conseguiu retratar nenhum. Não lhe

interessavam as fotografias de animais, disse-lhe. Fá-las-ia apenas por

dinheiro. Se a National Geographic me contratasse, claro. Do que

gostava era de pessoas e edifícios. Na Itália, cansou-se dos edifícios,


porque era tudo transcendente ou fastuoso, mas, agora, as casas simples

e aparentemente iguais do Litoral tinham feito com que voltasse a

apreciar os lugares onde as pessoas viviam. Juan esteve quase para lhe

dizer que devia explorar melhor, que na região havia mansões

extraordinárias de pedra branca no meio de terrenos com palmeiras que

ocupavam hectares. Mas preferiu perguntar-lhe se conhecia Veneza e

ouviu o que o fotógrafo tinha para lhe dizer sobre os canais e o Palácio

do Doge. I stood in Venice / A palace and a prison on each hand, pensou

Juan, que recordava bem os versos. Despiu a camisa devagar: estava

muito calor. Esperou pela reação do fotógrafo: nem toda a gente ficava

impressionada. Para algumas pessoas, as cicatrizes das operações eram

mais ou menos indiferentes, nem todas dispunham de informação

suficiente para compreender o seu significado ou gravidade.

O fotógrafo, no entanto, percebeu. Meu Deus, murmurou, mas não

com pena: com surpresa.

— O que é que te aconteceu?

— São cicatrizes de cirurgias. Não por causa de tiros, ou isso. Não

sou um revolucionário ferido.

O fotógrafo murmurou que não pensara nisso. E depois Juan contou-

lhe tudo: que nascera com um defeito cardíaco muito grave. E que o

tinham operado várias vezes quando era pequeno. E outra vez durante a

adolescência, na Europa. A última, há uns seis meses.

— Há seis meses? E andas sozinho por aqui?


— Já estou bom — disse Juan. Olhou o fotógrafo nos olhos e

apoiou-se no encosto da cadeira.

— Não pareces doente. Estás muito pálido, mas és tão louro! E tens

um corpo incrível, não pareces, sei lá, fraco. A sério que estás mal? Não

serviu de nada a última operação?

— Serviu de alguma coisa, sim. Mas nunca me vou curar. É por isso

que não posso beber a tua Coca-Cola, pelo menos não agora, porque

depois terei de conduzir.

— Por causa da cafeína. Tens muita coragem por andares na estrada

com uma criança, sozinho. A cicatriz das costelas também foi por causa

do coração?

Juan tocou nela com o dedo: a cicatriz ia das costelas às costas.

Rodou um pouco o tronco para que o fotógrafo a pudesse ver inteira.

— Sim, esta foi a primeira.

— E isso que tens no braço?

— Foi uma queimadura.

— Tudo te vem.

Olharam um para o outro em silêncio.

— Obrigado por mas mostrares — disse o fotógrafo.

— Queria que soubesses, porque se calhar morro em cima de ti

daqui a um bocado.

O fotógrafo não se riu.

— Se quiseres, levo-te de carro até Bella Vista.

Juan levantou-se do cadeirão e aproximou-se de Andrés, que o

agarrou pelas ancas como se quisesse evitar que caísse em cima dele.

— Não quero que me leves a lado nenhum.

O fotógrafo acariciou o ventre plano de Juan com a ponta dos dedos.

Tinha as orelhas encarnadas.


— Não posso acreditar que queiras estar comigo. És o gajo mais

bonito que já vi em toda a minha vida. Mais que bonito.

— Cala-te — disse Juan. — Aqui, não. Vem.

Entrou na mercearia. Passou para o outro lado do balcão, longe da

máquina de cortar fiambre, e apoiou-se no frigorífico, que era velho e

barulhento e estava pintado de castanho, como se fosse de madeira. Lá

dentro, agora protegidos pela cortina de plástico, o fotógrafo perguntou-

lhe se as cicatrizes lhe doíam. Às vezes, disse Juan. O osso, o esterno,

dói-me sempre antes de chover. Jura que não te vai acontecer nada, disse

Andrés enquanto lhe desapertava o cinto. Juan deixou-o agachar-se e

puxar-lhe as calças para baixo. O fotógrafo gemia e transpirava e Juan

pensou que, se alguém os visse, podiam dar-se muito mal; se os

apanhassem, os bêbedos não seriam amáveis com dois maricas. Agarrou

Andrés pelos cabelos com força e disse-lhe: «Mais devagar.» O

fotógrafo disse sim com a cabeça e, quando mudou de ritmo, Juan sentiu

o suor a humedecer-lhe as costas quase até o fazer escorregar pela porta

do frigorífico, que zumbia no calor da sesta. Então, fechou os olhos e

concentrou-se no signo, concentrou-se até se sentir longe do calor e da

sesta, a flutuar entre estrelas mortas, procurando entre os ossos o selo do

chamamento, da anuência, das boas-vindas.

Não precisou de lhe pedir que engolisse tudo até à última gota, Andrés

saboreou-o com uma voracidade inquietante. De tudo o que alguém

podia usar para lhe fazer mal, nada era mais conveniente do que o sémen

e Juan não queria deixar restos em lado nenhum. Foi até à porta da

mercearia para ver se ninguém entrara, enquanto o fotógrafo se

masturbava num canto. O fotógrafo não tinha hipótese de saber o que

estava a acontecer realmente. A dupla corrente, como a Ordem lhe

chamava. Ele, como todos, sempre tivera parceiros de ambos os sexos: o


andrógino mágico. Os rituais, claro, eram complexos e pouco tinham a

ver com um encontro como o que acabara de ter com o fotógrafo, mas

Juan, como sempre, caminhava à beira da heresia e do perigo. Além

disso, gostava. Deixou que o fotógrafo lhe beijasse os lábios, voltou a

vestir a camisa e ouviu o fotógrafo a ir até à casa de banho do fundo para

se lavar. Era uma casa de banho externa, mas aparentemente tinha uma

torneira rudimentar, porque Andrés regressou com as mãos molhadas e

secou-as nas calças. Juan sentiu nas próprias mãos a potência da energia

convocada. Era suficiente para enfrentar o que tinha pela frente, a

invocação que queria realizar.

— Dorme cá esta noite — pediu o fotógrafo. — O Osvaldo e o filho

só voltam amanhã.

Juan não lhe respondeu. Olhou para as horas: ainda só eram duas da

tarde. Sem responder, dirigiu-se para o carro: tirou da mala algumas

folhas em branco das que Gaspar usava para desenhar. E a medicação. O

filho estava a acordar.

Quando voltou para a mercearia, Andrés esperava-o com uma Fanta

de toranja. Podes beber isto, não me digas que não. Juan disse-lhe que

sim e usou o refrigerante para engolir os comprimidos. O fotógrafo

olhava para ele com os olhos húmidos. Juan pensou que fora egoísta, que

devia tê-lo fodido no balcão da mercearia até o fazer gritar, mas estava

cansado. Deixou o refrigerante a meio e foi buscar Gaspar, que estava

sentado na cama a olhar para o que o rodeava com um ar mais curioso

do que assustado.

— Como te sentes?

— Tenho fome.

— Então, estás bem.

Pegou nele ao colo e atravessou o pátio lentamente. Tenho de

comprar-lhe um chapéu, pensou. Depois, pediu a Andrés que, por favor,


fizesse uma sanduíche de panado para Gaspar. Enquanto o rapaz comia,

fumou um cigarro. Deixou o dinheiro da sanduíche em cima do balcão.

— Preciso de um retrato de vocês os dois — disse o fotógrafo.

— Não. Detesto fotografias.

— Sou muito bom fotógrafo, a sério. Vou tornar-te famoso.

— Pior ainda.

— Com esse corpo e essa cara, não podes detestar fotografias. O que

é que te custa. É uma recordação.

Andrés pô-los contra a parede branca da mercearia. Gaspar deixou a

sanduíche em cima da mesa, apesar de o fotógrafo lhe dizer que podia

mantê-la na mão. Fica feio, disse o rapaz, e o fotógrafo riu-se. Juan

cruzou os braços; tinha a camisa aberta até meio do peito. Andrés

aproximou-se dele para lhe ajeitar o cabelo. Gaspar abraçou-se à perna

do pai. Antes de disparar, o fotógrafo olhou para eles: o rapaz de olhos

azuis redondos e cabelo escuro, com algumas olheiras depois da sesta e

da dor de cabeça, com uma t-shirt lisa e limpíssima; o homem bonito

que enfiava as mãos sob a camisa escura e olhava para a câmara com

uma expressão calma que lhe disfarçava a aflição. O queixo dividido, a

longa cova; os olhos sobretudo verdes, mas também amarelos. A cicatriz

um pouco brilhante, como se estivesse coberta por uma pátina de cera.

Tirou duas fotografias a preto e branco e uma a cores, e quando tentou

pedir-lhe que fizessem outra coisa, outra pose, Juan disse-lhe nem

pensar. Vais mandar-nos as fotografias?, perguntou Gaspar, dando voltas

à sanduíche que já não queria comer.

— Já estiveste em Posadas? — perguntou Juan de repente.

— Não, mas penso ir lá em breve.

— Vamos passar duas semanas lá. A casa do meu sogro é muito fácil

de encontrar. Quando lá chegares, procura o Hotel Savoy. É histórico,


toda a gente o conhece. Ocupa meio quarteirão. A outra metade é a casa

do meu sogro.

Juan viu a esperança nos olhos do fotógrafo e continuou a mentir.

— É só tocares à campainha. Gaspar, acaba a tua bebida. Se não

quiseres comer, deixa a sanduíche ou guardamo-la na geleira. Dói-te a

cabeça? Não? Boa, vamos embora.

O fotógrafo acompanhou-os até ao carro.

— Vou a Posadas ter contigo. Estou louco por ti. A sério que vou.

— Calma — disse Juan, e entrou no carro. Antes de arrancar, disse

ao fotógrafo vai à Capela do Diabo, não te esqueças, vais gostar. E, por

favor, dá isto à senhora Karlen.

Entregou-lhe um papel. Era uma breve nota de agradecimento.

Quando arrancou, o fotógrafo correu atrás do carro durante algum tempo

e gritou não sei qual é o teu apelido. Juan, que ia devagar, pisou o travão.

Dinesen, disse-lhe. Como a escritora. Que escritora, perguntou-lhe o

fotógrafo, com as mãos no vidro do carro. Isak Dinesen, respondeu-lhe

Juan. Vá lá, és um rapaz educado na Europa. O fotógrafo ficou parado

sob o sol: Juan apercebeu-se de que ele era mesmo jovem. Vinte e um,

vinte e dois anos. Não lhe perguntara a idade. Não lhe interessava.

Depois, voltou a arrancar e Gaspar espreitou para fora da janela e

acenou ao fotógrafo, à mercearia e ao cão gordo que ladrava às rodas do

carro.

Gaspar não parou de falar durante toda a viagem até à cidade de

Corrientes e Juan tentou prestar-lhe atenção sem se irritar. Lembrou-se

de uma tarde fria, quando um motorista os levava da casa onde viviam

com Rosario até ao bairro dos sogros, na Avenida Libertador —

mandavam sempre o motorista ir buscá-los, embora Rosario adorasse

conduzir. Sentia-se desconfortável com as suas pernas compridas no

assento de trás, as janelas fechadas a sufocá-lo, e Rosario insistia num


jogo monótono com Gaspar, uma série de adivinhas: o que é que tem um

pescoço comprido e quatro patas e come folhas das árvores? Uma

girafa!, gritava o rapaz, e a gargalhada e a felicitação com a voz

acriançada da mãe retumbavam no espaço fechado e Juan tentava

concentrar-se na cidade lá fora, mas era incapaz de bloquear as

sensações da rua, 1978 e a matança era geral. Juan detestava sair de

casa, não tinha forças para abafar os ecos e o tremor da maldade

desatada: nunca sentira nada assim. Até o tinha afastado do filho, que

estava numa idade ruidosa e exigente, já não parecia o menino adorado

da primeira infância. Rosario costumava dizer-lhe: «fecha-te, eu ajudo-

te», e não acreditava nele quando lhe dizia que os métodos habituais não

eram suficientes, que era preciso uma reinvenção da proteção e que ele

não dispunha das ferramentas necessárias para a enfrentar. Os dois

primeiros anos da ditadura foram assim: o que se desencadeou, para

Juan, foi como um ataque direto. Rosario continuava: o que é que ladra e

tem o focinho frio, o que é que tem bigodes e arranha, o que é que tem

oito patas e anda pelas paredes. E os gritos de Gaspar. Lembrava-se de a

violência o fazer sentir-se febril, de ter a certeza de que, se o rapaz não

se calasse, lhe partiria o pescoço como se fosse um talo ou um animal

pequeno. Pediu ao motorista para parar e saiu do carro sem dizer nada a

Rosario: preferia a vibração do mal na rua, sentia-a mais próxima e, em

todo o caso, mais fácil de suportar do que a gritaria do carro. Rosario

seguiu-o e ele, lembrava-se, disse-lhe não me toques, não vou voltar,

deixa-me em paz. Ou quê, disse ela. Ou mato-vos aos dois, respondeu

ele, e, embora não se julgasse capaz, sequer, de bater em Rosario, nesse

momento estava a dizer o que verdadeiramente sentia, e caminhou

durante horas, ouvindo e tremendo, até ter de se sentar num banco de

rua, perdido e nauseado, a respirar de maneira vacilante e aflitiva. A

cidade gritava, o ar estava cheio de rogos e rezas e risos e uivos e sirenes


e da vibração da eletricidade e de ondulações, mas ele não conseguia

convencer-se a si próprio a voltar para casa e não havia ninguém que

pudesse recebê-lo a não ser a sua família.

Regressou a casa de noite, quando os rogos e os alaridos e os

disparos se tornaram insuportáveis, quando o rodeavam ecos de

assassinados de olhos vendados, e pés atados, alguns com a cara e o

corpo inteiro inchados, outros a arrastarem-se fechados em sacos de

serapilheira, uma legião que não conseguia fazer desaparecer.

Procuravam-no. Sabiam que ele conseguia vê-los e reconhecê-los. Era

instintivo, eram como traças atraídas pela luz, mas Juan não conseguia

afugentá-los. Rosario esperava-o à porta de casa, sentada; o rapaz

dormia lá dentro. Não voltes a fazer-me isto, disse, espetando-lhe as

unhas no braço antes de o beijar e de começar a chorar. Eu vou ajudar-te

a melhorar a proteção, não posso acreditar que isto te afete assim tanto,

podemos mudar-nos, Puerto Reyes é mais sossegado. Não, respondeu

ele, apesar do desespero. Puerto Reyes, não. No quarto de cima da casa

que partilhavam, ela já tinha levado a cabo os preparativos para reforçar

as suas defesas, a sua proteção. Os círculos de giz no chão de madeira,

os signos delicadamente desenhados que irradiavam calma e poder.

Agora, no carro, sob o calor insuportável daquela tarde em

Corrientes, Gaspar falava e falava e Juan tentava orientá-lo para ele

dispor de mais informações sobre as suas competências, mas era

percetível que estava a falhar. Se quisesse saber de que mais era capaz

Gaspar, teria de forçá-lo. Podia, é verdade, sondá-lo. Mas era um método

enganador mesmo se o filho colaborasse. Nessa mesma noite, acabaria

com as suas dúvidas.

Antes de entrar em Corrientes, capital da região, outro grupo de

militares obrigou-o a abrandar. Olharam para ele com semblante duro e

Gaspar, com uma intuição incrível, sorriu-lhes, e um dos militares,


insolitamente, devolveu-lhe o sorriso. Com a mão, indicou a Juan que

seguisse. Quinze minutos mais tarde, viu a ponte, que parecia

delicadamente desenhada num céu sem nuvens e o passeio ribeirinho

cor-de-rosa, com os ipês em flor, um pouco apodrecidos pelo calor. Sete

da tarde.

— Queres ver o entardecer? Compramos qualquer coisa para comer

e esperamos para o vermos.

Faltava uma hora, pelo menos: era janeiro. Juan comprou dois

gelados. Trouxe muitos guardanapos da geladaria: Gaspar era

desajeitado a comer gelados e, com um calor daqueles, a culpa nem

sequer seria sua se lhe escorresse para as mãos e para os braços.

Sentaram-se num banco do passeio ribeirinho; os pilares de cimento

estavam um pouco descuidados e o rio refletia o céu, mais azul que de

costume, com farrapos prateados e castanhos.

Gaspar levantou-se para apanhar flores de ipê e fez uma espécie de

ramo peganhento. Juan viu-o a olhar para uma flor cortada, caída no

passeio, uma flor que não era de ipê; o rapaz pousou o ramo

improvisado no chão e aproximou-se com a estranha flor na palma da

mão como se se tratasse de algo vivo. Juan reconheceu-a de imediato.

Era uma flor-da-paixão, com os seus filamentos violáceos, as pétalas

brancas e os pistilos e estames eretos que faziam lembrar um inseto. A

coroa e as feridas de Cristo, como rezava uma das lendas que lhe deu o

nome. Olha, papá, gritava Gaspar, nunca vi nada assim.

— Chama-se mburucuyá. Alguém deve tê-la deixado cair, depois

mostro-te uma planta com mais flores.

— Há mais?

— Claro que há, o que é que pensavas, que era a única do mundo?

— É estranha.

— Tem uma história, sabes?, como a da corticeira.


Gaspar esperou pela história com a flor na mão e os olhos muito

abertos, mais redondos ainda pela expetativa.

— Certa vez, uma rapariga espanhola apaixonou-se por um índio

guarani. Sabes o que é um índio guarani?

— Sim, é um índio de cá. Como as senhoras da estrada.

— Então, o pai da rapariga proibiu-a de se apaixonar pelo índio. O

pai era um capitão. Percebes porque é que não queria?

— Porque os capitães são maus.

Juan sorriu. Isso também era verdade.

— São maus, sim, mas aqui o problema era que ela era espanhola.

Sabes que os espanhóis não queriam misturar-se com os índios.

— A mamã disse-me que, no fim, se misturaram.

— É verdade, mas no início, não. Esse capitão não queria que a filha

se misturasse. Então, mandou matar o índio.

— O namorado? A sério?

— Sim. E ela espetou uma seta de penas no coração e matou-se. E da

ferida nasceu a flor.

Os olhos azuis de Gaspar estavam cheios de lágrimas. É tão diferente

de mim, pensou Juan, falta-lhe tanto para endurecer.

— E o que é que aconteceu?

— Na ferida, quando caiu morta, cresceu esta flor.

— Todas as flores são raparigas mortas?

Juan olhou para o sol, que estava prestes a tocar no rio. Não via

flores negras no céu. Seriam, também, recordações de raparigas mortas?

O céu estava alaranjado, envolto em chamas.

— Não. Põem-te triste?

— Sim.

— Estamos os dois tristes. Vem ver o sol.


Gaspar sentou-se e Juan sentiu-o enfiar a mão sob a sua camisa e a

apoiá-la, pegajosa, no seu peito. Está a controlar-me o coração, pensou

Juan. Não era a primeira vez que o fazia. Quando dormiam juntos, por

exemplo: às vezes, sentia a mãozinha dele no peito, a verificar as

batidas. Ou dava com ele de cabeça apoiada nas costelas, a ouvir. O meu

menino, disse, e acariciou-lhe a mão ansiosa; de repente, sentiu uma

vontade palpável de beber vinho até se embebedar, até ao desmaio.

Chegou mesmo a sentir o sabor amargo do álcool na boca. Olha para o

sol, olha para as cores do céu. Gaspar prestou atenção com os olhos

semicerrados e respirou fundo. Era brutal o entardecer sobre o rio, quase

irreal, com a linha púrpura do horizonte e o céu avermelhado.

— Posso ficar com a flor?

— Aqui há imensas, vamos procurar mais. Gostas de flores? Eu

também.

— A sério? Um colega do meu ano chamou-me maricas.

— Porque é que te chamou isso?

— Porque fiz perguntas à professora sobre os jasmins do recreio,

cheiram muito bem.

Da próxima vez, rebenta a cara do idiota, pensou Juan, mas disse:

— Não há mal nenhum em ser-se maricas.

— Então porque é que…?

Gaspar não sabia como acabar a pergunta, mas Juan percebeu.

— Porque o usam como insulto, as pessoas dizem maricas como

quem diz parvo. Porque as pessoas são estúpidas e medíocres — disse

Juan. — Mas tu és diferente e eu também sou diferente.

— O que é medíocre?

Juan não respondeu.

— Vamos, temos de arranjar um hotel. Esta noite temos coisas para

fazer.
Gaspar foi a correr para o carro com a flor na mão, que já tinha a

cruz partida, embora ele não se tivesse apercebido disso.

Eram menos de dois quilómetros e meio até ao cemitério municipal,

mas Juan percorreu-os com inquietação. Não era fácil caminhar com

Gaspar, que estava de mau humor por ter sido acordado de um sono

profundo; felizmente, encontraram uma porta alternativa no hotel para

não terem de sair pela principal, chamando a atenção do rececionista

noturno. Sabia que chegariam muito mais depressa se levasse Gaspar ao

colo, mas o rapaz já era pesado e ele não podia fazer esforços. Não tinha

a certeza de o sexo com o fotógrafo lhe servir de ritual propiciatório.

Estava cansado e confuso.

Se decidires ficar parado no meio da rua, já sabes o que te acontece,

disse, e Gaspar choramingou um pouco, mas a andar, aos saltos de vez

em quando, e mesmo a correr. Não devia ser fácil, pensou Juan, tentar

acompanhar os passos de um homem de dois metros, mas algumas

coisas só se podiam fazer num certo horário.

O portão principal do cemitério estava fechado: isso não era um

problema. Apenas um cadeado. Juan segurou-o com as mãos e traçou,

com a ponta dos dedos, um signo. A abertura. O portão abriu-se de

repente, como se o tivesse empurrado, mas sem fazer barulho.

Agora devia encarregar-se do vigilante do cemitério. Gaspar, disse,

espera aqui por mim; se te mexeres, eu percebo e não vai ser bom para

ti. Gaspar encolheu os ombros e sentou-se. Estava cansado. Se calhar,

podia dormir mais tarde. Ainda dispunham de várias horas. Eram duas

da madrugada.

Juan apalpou os grandes bolsos das calças e pôs-se à escuta na

tentativa de encontrar o vigilante. Se alguém fosse capaz de o ver na

escuridão do cemitério, alto e magro diante da avenida principal dos


jazigos, tê-lo-ia visto a alargar os ombros para se concentrar e a cheirar

o ar. Estava diferente, agora: os dedos compridos mexiam-se quase

involuntariamente, dedilhando cordas secretas, e tinha os olhos

desfocados, embora em estado de alerta. Podia sentir no corpo a energia

da dupla corrente. Andrés fora um presente inesperado. Obviamente, um

presente que não servia para evitar intrusos, um visitante noturno, o

vigilante, alguém que pudesse vê-los.

Caminhou para trás, para o pequeno escritório. O vigilante estava a

dormir. Era uma imensa sorte: teria de o surpreender em sonhos porque

não queria ter de enfrentar as tentativas de defesa do homem;

aparentemente, Juan era poderoso, mas tinha pouca força física real.

Aproximou-se do catre onde dormia o guarda: a porta do escritório,

situada ao pé da capela, estava destrancada. O homem não só ressonava

de sono, como também por estar bêbedo. Juan cheirou a potência do

álcool no ambiente e sentiu-a fortíssima quando se ajoelhou ao pé do

catre. Aguardente de cana ou gim. Algo demolidor. Seria necessário

amarrar-lhe as mãos, mesmo assim? Juan pensou que sim. Não podia

correr riscos. Acendeu a lanterna e colocou-a perto da cama: tinha de

agir depressa, não lhe restava mais nenhum par de pilhas. Empurrou a

cabeça do vigilante até o deixar de barriga para cima: o homem não

acordou, mas franziu o sobrolho. Juan rodeou-lhe o pescoço com uma

mão e procurou a artéria carótida, que latejava com força, dilatada pela

bebedeira. Procurou-a e massajou-a com delicadeza e precisão. O

homem mal se mexeu. Sob os seus dedos, o ritmo cardíaco do vigilante

desceu até as batidas se tornarem tão espaçadas, que pareciam ausentes.

Juan percebeu que já não estava a dormir apenas por causa da bebedeira:

perdera os sentidos. Dali a pouco tempo, acordaria ou poderia morrer se

a bradicardia lhe provocasse uma síncope. Não se importava. Para lhe

tapar a boca, usou uma meia, que também trazia consigo, e depois
amarrou-lhe os pés e as mãos com uma corda de nylon, tão fácil de

comprar sem levantar suspeitas («é para fazer um embrulho, preciso de

uma bem forte»), como impossível de partir sem um grande esforço ou

uma faca.

Antes de deixar sozinho o homem inconsciente, revistou as gavetas

de uma pequena cómoda e levou duas facas e uma tesoura. Também lhe

seriam úteis. Saiu e verificou que a porta da capela estava fechada.

Apoiou as mãos na fechadura e esta abriu-se para ele, com um

queixume. O altar, a cruz, as flores, tudo estava limpo e perfeitamente

arrumado: a capela usava-se, o cemitério era um campo-santo. Muitos

não eram: há uns anos, era difícil distingui-los. A demonologia cristã

podia funcionar noutros espaços, mas nunca com tanta eficácia como

em lugares consagrados. Pegou em todas as velas que pôde e levou

também o candelabro.

Gaspar esperava no mesmo lugar, à porta, sentado e de mau humor.

Juan reconheceu o lampejo de inquietação e de curiosidade nos seus

olhos brilhantes ao ver o candelabro. Não tinha medo, não estava

assustado. O pai deixara-o sozinho na entrada de um cemitério de

madrugada e o rapaz limitou-se a esperar sentado, por mais amuado que

estivesse. Não havia dúvida de que poderia ser um Iniciado excecional.

Intuitivo, atento, indubitavelmente mais disciplinado do que ele. No

entanto, essa não seria a sua vida: já estava decidido que o seu filho não

faria parte da Ordem, pelo menos enquanto ele o pudesse evitar. Não

teriam esse troféu.

— Eu levo isto, tu levas as velas — disse-lhe, e Gaspar obedeceu

sem fazer perguntas. Caminharam em busca de um terreno plano,

passando pelos mausoléus e pelos jazigos que neste, como em todos os

grandes cemitérios municipais, se encontravam perto da entrada. Depois

dos túmulos na terra, muito antes de chegar ao paredão que fechava o


cemitério, havia espaço suficiente para trabalhar. De facto, já se

trabalhara bastante naquele lugar. Juan, preparado e sensível, sentiu o

tremor de uma vala comum recente de mortos não identificados.

Também os restos de um poderoso ritual afro-brasileiro mal executado.

Afastou-se do lugar onde ainda restavam penas, afastou-se dos ossos

sem nome. Durante todo o caminho, auxiliados pela lanterna, Gaspar e

ele juntaram velas, algumas quase inteiras, outras derretidas e pequenas.

Eram todas necessárias. Não usaria a luz da lanterna.

— Gaspar, preciso que espetes as velas na terra e as acendas.

O rapaz sabia usar o isqueiro sem se queimar. Nos meses anteriores,

entre a sua cirurgia e a morte de Rosario, teve de aprender muitas coisas,

como acender bicos de fogões. Às vezes, simplesmente ninguém tinha

tempo, forças ou ânimo para lhe aquecer o leite. Além disso, Juan, num

ataque de fúria, recusara ajuda. E ninguém se atrevia a contradizê-lo.

Betty, a prima de Rosario, que vivia perto deles com a filha, outra

criança sagrada da Ordem, tocou à sua porta uma manhã e ele berrou-

lhe que se fosse embora. A mulher nunca mais lá voltou.

— Põe-nas por aqui perto. Onde quiseres.

Havia muitas e Juan receou que Gaspar se comportasse como um

miúdo e desatasse a brincar com as velas, perdendo tempo à procura de

lugares ditados por algum jogo, mas, pelo contrário, viu que obedecia à

sua ordem com entusiasmo e um certo esmero burocrático. Juan virou-

se de costas para ele e começou a traçar no chão, com as facas, o selo

número cinco, que vira de olhos fechados quando estava com Andrés.

Um círculo e as letras do nome do quinto espírito, no sentido das

agulhas do relógio. Outro círculo em redor do nome e, dentro deste, o

selo: era simples, os quatro círculos unidos por linhas num desenho

quase infantil e os estandartes de três triângulos invertidos. Conseguia

traçá-lo rapidamente, de cor, sem erros.


O selo ficou pronto num instante; o esforço, embora mínimo,

oprimia-lhe o peito. Gaspar acendera as velas e estava de pé, iluminado

pela luz amarela. Bem, pensou Juan. Faltava o triângulo, o lugar onde se

apresentaria o Quinto. Olhou para o selo e soube que funcionaria,

mesmo que não estivesse a usar roupa branca, nem capa, nem incenso, e

o traço fosse apenas um sulco na terra, sem o sangue ou a tinta dourada

necessária, embora, na verdade, o selo devesse ser traçado com

mercúrio. Onde desencantaria o mercúrio? Juan desprezava aquilo a que

chamava de receitário ocultista. Uma das velas desprendia um aroma

particular, não era de cera comum. Fechou os olhos e deixou que a

energia convocada pela dupla corrente obtida através de Andrés

ocupasse o seu corpo. Era muito mais eficaz do que qualquer espada ou

conjuro.

— Gaspar — disse em voz baixa —, vem para aqui, para o meu lado.

Antes de entrar no modo de focagem — gnose, era o termo, mas ele

chamava-lhe, simplesmente, concentração —, que era capaz de atingir

em segundos, apoiou as mãos nos ombros de Gaspar.

— Quero que me abraces e não me largues, ouças o que ouvires. Se

te separares de mim, não te poderei proteger. Percebeste?

Gaspar disse que sim e Juan sentiu que percebia. O portal chamava-o

tão dolorosamente, que a opressão que sentia no peito se converteu

numa dor aguda. Não se preocupou, passaria depois da invocação.

Ajoelhou-se no círculo e Gaspar, a seu lado, tentou rodear-lhe a

cintura. Agarrava-se às suas calças como se ambos estivessem quase a

cair. Uma vez mais, tratava-se de uma intuição correta. As invocações

podiam sentir-se como uma queda.

Juan chamou, em silêncio, e esperou. A fórmula da invocação, que

fazia sempre em silêncio, era comprida e pensou em encurtá-la, mas as


mãos de Gaspar na sua cintura disseram-lhe cuidado, o ritual já de si é

pouco cuidadoso. Pelo rapaz. Porque tinha de protegê-lo.

Os passos do Quinto não tinham som, mas Juan sentiu-os. Desta vez,

usava uma forma humana. Agora, teria de ser rápido e concreto. Quanto

mais tempo ali passasse o demónio, mais difícil seria fechar a porta.

Gaspar ergueu a cabeça e olhou o demónio de frente. Depois, olhou para

Juan.

— Quem é, papá? — perguntou, com voz calma. Agora, quem estava

assustado era Juan. Gaspar via o demónio, era capaz de vê-lo com total

naturalidade, apesar de não estar nem remotamente treinado para esta

visão. Juan obrigou Gaspar a mergulhar a cabeça no seu peito. Não

olhes mais, disse-lhe. Abraça-me.

No triângulo, os pés descalços não tocavam no chão e flutuavam nas

pontas, como os de uma bailarina ou de um enforcado em permanente

elongação. Eram cinzentos, como todo o corpo nu, que parecia coberto

por barro seco. Juan não conseguia ver-lhe a cara: a luz das velas não

chegava tão alto. Mas não era preciso vê-la para sentir o seu enfado:

estava acostumado a ser convocado com todos os preceitos necessários e

irritava-se vagamente quando era chamado por alguém que os omitia.

Ele e o Quinto já se haviam encontrado várias vezes. O Quinto, se

assim o desejasse, outorgava e curava doenças. No entanto, nunca

desejou outorgar-lhe saúde. Também respondia com a verdade em

relação ao que é secreto e está escondido, era sua obrigação: não sabia

mentir.

Sem mexer os lábios, Juan ordenou-lhe obediência. O demónio

deixou cair algo sobre o triângulo. Gotas de sangue. Devia trazer com

ele qualquer coisa que Juan não conseguia ver. Pediu-lhe respostas

racionais à suas perguntas. Ouvia a voz do demónio a ressoar em todo o

seu corpo. Perguntava, numa língua que não conseguia traduzir, que
Juan não conhecia, mas compreendia, «porquê». Porque é que o tinha

chamado, queria saber. Porque é que lhe infligia o horror da obediência.

Juan sentiu a respiração de Gaspar no peito e também o corpo inteiro,

no limite das suas energias, a tremer: os seus braços brilhavam como se

tivessem estado submersos em água. Escorriam-lhe gotas da testa. Falou

ao demónio da maneira que ele era capaz de compreender. Perguntou

por Rosario. Onde estava. Se podia vê-la. Se podia encontrá-la.

O demónio elevou-se um pouco mais. Não se aproximava: tentavam

sempre, mas nunca conseguiam. Queria que o sangue do que quer que

fosse que trazia com ele tocasse em Juan. Por não ser capaz de o fazer,

estava furioso e tinha os pés cinzentos agitados. A resposta chegou

rápida e clara.

Pertence aos que te falam, disse.

E, depois, pediu para se ir embora.

Juan baixou a cabeça, agradeceu-lhe a resposta, agradeceu-lhe a sua

chegada e, para o comprazer, recitou em voz alta, e de uma ponta à

outra, a fórmula de despedida. Não lhe tremia a voz, embora todos os

músculos do seu corpo estivessem tensos até à dor. Ouviu o crepitar das

velas e o gotejar lento do sangue em cima do triângulo.

O demónio desapareceu em silêncio, mas, ao partir, provocou uma

rajada que apagou todas as velas. Alguma coisa o enfurecera. E não

apenas a falta de rigor do chamamento. Podia ser a presença de Gaspar.

Juan quis agradecer-lhe por não ter descarregado a sua ira nele, mas era

demasiado tarde. Talvez a descarregasse no guarda, se continuasse vivo.

Está com os que te falam.

O tremor que lhe percorreu o corpo foi tão violento, que receou

serem convulsões, mas era apenas fraqueza. Uma invocação debilitava-o

àquele ponto? Estaria assim tão deteriorado? Deitou-se em posição fetal

sem sair do círculo e continuou agarrado a Gaspar tanto quanto podia.


Com as velas apagadas, não podia dizer-lhe para evitar sair do círculo,

porque ainda era demasiado cedo; nem sequer conseguia ver o círculo

naquele momento, sem as velas e com uma nuvem a tapar a luz da Lua.

Seja como for, Gaspar não saiu de junto dele, não lhe largou o braço, não

o deixou sozinho, não lhe falou. Esperou. Chorava e desesperava, Juan

ouvia-o gemer e não podia consolá-lo; apenas conseguia respirar.

Enquanto entrava e saía da inconsciência, tentava perceber as palavras

do demónio.

Está com os que te falam.

Rosario estava na Escuridão.

Percebia. Ela prometera que o seguiria, que faria qualquer coisa por

ele. Não lho dissera Tali há dias? Eu não faria qualquer coisa por ti.

Sempre juntos, jurou Rosario. Ela sabia que Juan pertencia à Escuridão.

Que iria para lá depois de morto. E decidiu antecipar-se a ele, partilhar o

mesmo destino que ele. Mas, meu amor, sua tonta, lá já não seremos eu

e tu, lá só há sombras e fome e ossos, esse mundo está morto. Quando

teria feito o pacto? Durante o internamento dele, de certeza. Pensavas

que eu ia morrer, que tolinha. Nunca pensou que a Escuridão a

reclamasse tão depressa. Desconhecia a voracidade da Escuridão, apesar

de lhe ter falado dela tantas vezes, apesar de a ter visto comer tantas

vezes. Jamais a encontraria lá. Não havia lá ninguém. A Escuridão

colecionava ossos. Não se dialogava com ela. Não se negociava.

Durante as horas que passou encolhido ao fundo do cemitério, sobre

o selo, ao lado de Gaspar, Juan sonhou. Onde teria visto Rosario a

possibilidade de fazer um pacto com a Escuridão? Nos seus círculos de

giz? Nas suas cartas? A sua morte nada teria a ver com a Ordem, então?

Rosario teria morrido por sua culpa?

Quando o sol começou a despontar timidamente, iluminando as

cruzes brancas, Juan virou-se e esticou-se em cima do círculo. As pernas


ficavam de fora. Gaspar continuava a seu lado, pálido e sério. Esperara

sem se mexer. Jamais lhe largou o braço. Devia estar com uma

contratura. Ia falar-lhe, mas o rapaz adiantou-se.

— Temos de ir embora, papá.

Juan sentou-se. Levantar-se implicou um esforço insólito: nessa

manhã abafada, o seu corpo pesava centenas de quilos. Olhou para

Gaspar. Parecia distante e preocupado, mas decidido. Largou-lhe o braço

e pegou-lhe na mão.

— Vamos. — E puxou-o, e Juan deixou-se arrastar. Sabia que podia

ligar-se íntima e delicadamente ao filho, de maneira que o caminho fosse

natural para ele. Antes de saírem do cemitério, beberam água da torneira

que as pessoas usavam para as flores. Juan humedeceu o cabelo e

molhou a cabeça de Gaspar, que tinha a mochila às costas e as mãos

cobertas de cera. Passou a noite tão quieto, pensou Juan, que nem se

lembrou de tirar a cera das mãos. Os dedos cobertos de cinzento

fizeram-lhe lembrar os do demónio. Seguramente, Gaspar pensara a

mesma coisa. Pegou-lhe nas mãos e começou a arrancar-lhe a cera. A

pele não estava queimada por baixo, nem sequer muito irritada. Gaspar

revelar-se-ia como médium em breve, sentiu enquanto lhe limpava as

mãos. Além disso, as pessoas sem capacidades não conseguiam ver o

Quinto. Podiam sentir a sua presença, inquietação, terror, até podiam

morrer, mas vê-lo só era possível para quem tivesse a vista educada. Se a

visão fosse natural, então a pessoa tinha um dom. Seria possível

esconder algo assim? Se Gaspar fosse médium, a sua vida seria curta e

brutal. Os médiuns duravam pouco. O contacto com os deuses antigos

destruía-os física e mentalmente. Alguns morriam no primeiro contacto

ou muito cedo. A maioria enlouquecia irremediavelmente em pouco

tempo. Não havia magia ou ritual ou ciência que os pudesse aliviar. Um

pouco de magia e um pouco de ciência ajudavam a conservá-los mais


tempo com vida do que os seus corpos e as suas mentes resistiriam por

si sós, mas não demasiado. Os médiuns que resistiam, como ele, eram

excecionais.

— Vamos, papá, temos de ir.

Juan não lhe ligou, limitando-se a deixar para trás o portão do

cemitério, que não se deu ao trabalho de fechar, quando as mãos do filho

voltaram a estar limpas. Só se lembrou do guarda muito mais tarde,

quando já estavam quase a chegar ao hotel.

Quando Juan acordou, era de noite outra vez; apercebeu-se de que

dormira mais de dez horas seguidas. Procurou Gaspar na semipenumbra

do quarto e deu com ele encolhido na cama do lado, a dormir. Tinha de

dar início ao engano.

Acontecia sempre depois de contactar com demónios: muitas horas

de sono. Mas o seu cansaço era abismal. Foi até à casa de banho. Tomou

a medicação com água da torneira e lavou a cara. Nunca via no espelho

o mesmo que os outros. Para ele, a sua cara era de cansaço e derrota, e

as cicatrizes do peito e da barriga e das costas eram o mapa da doença.

Detestava ser fraco, detestava o seu corpo. Os outros viam um homem

excecionalmente atraente, desejavam-no, emocionavam-se. Juan pôs a

nuca debaixo da torneira e molhou o cabelo. Sentia-se tão sensível e

cansado, apesar das horas dormidas, que era capaz de ouvir as cores.

Gaspar dormia com a boca aberta e em posição fetal. Ainda tinha a

roupa molhada. Juan não se lembrava do regresso ao hotel, mas o

esquecimento era estranho. Acordou Gaspar com um forte abanão no

ombro. Gaspar demorou a abrir os olhos, mas antes de poder focar o

olhar, Juan disse-lhe:

— Estavas aos gritos! Com o que é que estavas a sonhar?

A desconfiança, a confusão. O rapaz sabia, seria difícil baralhá-lo.


— Não tive nenhum sonho — murmurou.

— Com alguma coisa terás sonhado, estavas a gritar como um

maluco.

O pestanejar e a dúvida.

— Não foi um sonho, fomos a um cemitério e pediste-me para

acender as velas e depois disseste-me para não olhar.

— Isso é que foi um grande pesadelo.

Gaspar começou a chorar e Juan deixou.

— Não foi um sonho! — gritou, a fungar.

— Mas nós não saímos daqui! Dormimos uma sesta e, olha,

acabámos de acordar agora para irmos lanchar.

— Havia um tipo a escorrer sangue.

— Um tipo a escorrer sangue. Bom, já chega. Daqui a nada, já te

esqueceste disso. Se pensarmos noutra coisa, esquecemo-nos dos

sonhos.

— Juro, tu desmaiaste e eu fiquei com as velas.

— Estás assustado porque eu não ando bem. Não te preocupes tanto

comigo.

— Não foi um sonho.

Juan sentiu a violência a endurecer-lhe o estômago e pensou em

bater no miúdo para o fazer acreditar na mentira à lambada.

— Foi, sim. Conta-me tudo. Mas, primeiro, vamos lá abaixo, que

estou a morrer de fome, vamos comer um lanche maravilhoso, vá.

Pegou em Gaspar ao colo para lhe lavar a cara na casa de banho. O

rapaz deixou-se levar. Tinha o sobrolho franzido e a mão esquerda

apertada num punho. Juan abriu-lha suavemente. Se me voltar a dizer

que não foi um sonho, parto-lhe um dedo, pensou. Gaspar inspirou

fundo antes de começar a contar: lembrava-se de pormenores dos longos


momentos que passara sozinho. Agora, estava com medo: Juan

apercebeu-se de como lhe tremia a voz.

Eu podia tê-lo matado esta noite, pensou.

Gaspar continuou a contar o «sonho» no elevador. E Juan, enquanto

o ouvia, também pensava. Está com os que te falam. Não era uma

mentira: mas ele podia ter interpretado mal. Eram muitos os que lhe

falavam, porque é que se aferrava à convicção de que Rosario estava na

Escuridão? Quem seriam os outros que lhe falavam? Pertence aos que te

falam, essa era a tradução mais exata das palavras do demónio. Era um

enigma de esfinge. E ele não fizera as perguntas certas por estar

magoado, cansado, de luto. Por andar louco. E por ter pensado, com

arrogância, que Rosario seria capaz de fazer tal sacrifício por ele.

Que seria capaz de abandonar o filho.

Tapou a cara com as mãos. Gaspar falava agora do demónio que vira.

Um coiso que flutuava. E ele estava sem forças para lhe eliminar a

recordação com um signo do esquecimento, pelo menos naquele

momento.

— E o tipo falava? — perguntou Juan, enquanto sentia as lágrimas a

humedecer-lhe as mãos.

— Não me lembro.

— Vês, esquecemo-nos dos sonhos.

Gaspar não ouvira o demónio. Talvez fosse incapaz de o ouvir.

Talvez o demónio nem sequer tivesse falado. Às vezes, ficavam em

silêncio. Talvez as palavras que julgou ouvir fossem apenas fruto da sua

imaginação.

Entraram na sala de refeições do hotel e Juan enxugou as lágrimas

com a t-shirt. Algumas pessoas olharam para ele com curiosidade, mas

não se importou. A empregada, demasiado nova, preferiu não o olhar

nos olhos quando ele fez o pedido: sentia pudor de o ver chorar. Juan
pediu chipá e um submarino para Gaspar. Não pediu nada para si

próprio. Cheirava pessimamente, apercebia-se agora: o suor, já seco,

endurecera-lhe a t-shirt sob as axilas. Nem lhe ocorreu tomar banho.

— Não quero nada — disse Gaspar quando chegou o chocolate e o

pão.

Juan sentiu a violência a incendiar-lhe o estômago. O seu coração

batia demasiado depressa, a um ritmo desordenado: provocava-lhe

náuseas, não o deixaria descansar. Não tinha sono, mas precisava de

mais horas de repouso. Juan apoiou as mãos na toalha. Tinha as pontas

dos dedos azuis. De certeza que os seus lábios também estavam azuis.

Tentou respirar fundo, mas isso não solucionaria nada. Precisava de

oxigénio, e depressa.

— Come depressa, Gaspar. E espera aqui por mim.

— Não quero ficar sozinho.

As lamúrias do filho encheram-no de uma ira tão clara e tão escura,

que quase desatou a correr da sala de refeições até à garagem onde o

carro estava estacionado. Abriu o porta-bagagens e pegou na garrafa de

oxigénio que enchera previamente. Guardou-a numa mala: não queria

que os outros hóspedes e o pessoal do hotel a vissem. Do lado de fora da

sala de refeições, bateu na janela e fez sinais a Gaspar para se despachar

e voltar com ele para o quarto.

Juan sentou-se na cama, colocou a garrafa — branca, um pouco

descascada — em cima da mesa de cabeceira e, com um movimento

rápido e costumeiro, abriu a válvula para deixar sair o oxigénio e pôs a

máscara na boca e no nariz. Prendeu o elástico atrás das orelhas e bateu

no colchão com a mão para que Gaspar se aproximasse dele. O rapaz

sentou-se e Juan apoiou as costas na parede. O discreto ruído do

oxigénio não era suficiente para abafar os latejos do coração; a dor no

peito, ardente, agravava a sua dificuldade em respirar. Então aquilo era


tudo o que o talismã de Tali podia fazer para o ajudar? Seria capaz de

abrir a Escuridão? Teria sido a última vez que o faria? Gaspar

observava-o atentamente com os olhos redondos e azuis, assustado, mas

não surpreendido, somente alerta. Juan tirou a máscara durante um

segundo e disse-lhe:

— Tira da mala o livro de capa dura.

— Estás bem, papá?

— Vou ficar bem. Dá-mo.

Trouxera A História da Arte, de Gombrich, para a ler com Gaspar.

Era, de resto, um livro seguro para a viagem: nenhum militar que

revistasse o carro o acharia suspeito. Indicou-lhe com a mão que o

abrisse e Gaspar, como sempre, procurou as últimas páginas: nunca

começava pelo princípio. O rapaz apoiou o livro na cama, num espaço

vazio dos lençóis, para que ambos o pudessem ver. E, então, fez algo

estranho; pelo menos, algo que nunca fizera antes: observou atentamente

um quadro — Crianças a Brincar, de Kokoschka, viu Juan — e

começou a inventar uma história sobre duas crianças, a menina com o

seu vestido avermelhado e o menino de azul, e na história misturavam-se

aventuras da escola que Juan já conhecia e brincadeiras com a menina

que conhecera na casa de Tali. Quando se fartou, passou algumas folhas

e continuou a inventar. Juan sentiu um calafrio a percorrer-lhe o corpo e

apertou os punhos para não perder os sentidos: Gaspar falava de um

castelo e contava a história inventada de uns príncipes que estavam

fechados «na parte redonda» (na torre ou na cúpula, pensou Juan), e

apercebeu-se de que o filho falava agora da catedral de São Paulo, a

catedral de Wren, em Londres, porque o livro também incluía imagens

de arquitetura. Não conseguia dormir, mas podia passar horas a ouvir a

voz de Gaspar: o rapaz percebia, fazia o que devia ser feito, sustinha-o.

Aprendera isso com a mãe. Imitava-a. Quantas vezes o teria visto a


entretê-lo assim?, she talks you back to life, dizia-lhe Florence, e era

verdade. Falava-lhe para lhe devolver a vida.

Gaspar fechou o livro, bocejou e abraçou-se ao peito do pai. Juan

pensou instintivamente em tirá-lo de cima de si, julgando que o peso do

rapaz o incomodaria, mas não foi assim: o contacto aliviou-o. Não quero

morrer à frente dele, pensou.

A porta da casa de banho estava aberta e, durante a semiconsciência

da falta de oxigénio, Juan julgou ver as pernas da mulher estendidas,

vivas; Rosario passava muito tempo na casa de banho, podia passar uma

hora lá fechada. O quarto deixou de ser o de um hotel de Corrientes e

Juan sentiu que se transformava na casa de Chelsea, em Londres, onde

tinham vivido juntos. Recordou-a a sair da casa de banho com um livro

na mão, de óculos postos e uma t-shirt de manga curta, sem roupa

interior. Depois, a imagem desapareceu. Gaspar levantou-se da cama de

repente — não estava a dormir — e fechou a porta da casa de banho.

Juan não estranhou a intuição do filho, mas teve pena: não desejava que

a vida de Gaspar fosse como a dele. Nem sequer os bons momentos

foram realmente felizes. Tinha de salvá-lo da Ordem.

Gaspar fechou o livro de arte e abriu uma antologia de poesia norte-

americana traduzida. Leu devagar e mal, mas Juan deixou-se levar.

Quando tirou a máscara, por já ter consumido todo o oxigénio, e olhou

para os dedos, que já não estavam azuis, apesar de a arritmia ter

demorado muitas horas a desaparecer, soube que não morreria naquela

noite à frente do filho. Tinham conseguido outra vez, ambos.

Os bilhetes eram tão baratos, que Juan ficou admirado, embora

reconhecesse que não sabia lidar com o dinheiro, nem compreendia bem

os preços. Viajava com um molho de notas atado com um elástico;

sempre dependera, a vida inteira, do dinheiro da família de Rosario e da


Ordem. Quantas vezes lhe disseram «nunca te faltará nada»?

Compreendia o seu privilégio e o seu distanciamento relativamente às

pessoas comuns. Como, sem ir mais longe, o seu irmão mais velho, que

antes do exílio trabalhava doze horas por dia e, enquanto estudante,

trabalhara numa fábrica. Nos últimos meses, agora que Rosario já não

estava presente, ele, que jamais pusera os pés num banco, tomou

decisões: mostrou a Gaspar onde se guardava o dinheiro, explicou-lhe

que podia usá-lo quando quisesse e para que servia. Pediu que lhe

trouxessem dinheiro uma vez por semana e que quem o fizesse fossem

os contabilistas ou os advogados ou os próprios guarda-costas.

A empregada deu-lhe o troco do outro lado do guiché e Juan sentiu

que acabara de acordar dos meses sem Rosario e da lenta recuperação da

sua última cirurgia. Era o ar, quente, mas insolitamente leve, tão

estranha aquela falta de humidade ali, em Puerto Iguazú. Era a sensação

de que, se sobrevivesse à Cerimónia, ele e o filho seriam capazes de ter

um pouco de tranquilidade; o sono reparador ajudara-o a recuperar

alguma confiança em si mesmo, em Stephen, em Tali. Tal hipótese seria

remota apenas há um mês, quando, após várias noites sem dormir na

tentativa de contactar Rosario, furioso de dor e de mal-estar, decidiu

queimar quase todas as suas coisas numa fogueira improvisada no pátio

dos fundos. Gaspar sentou-se a seu lado: a ver arder, com os olhos secos

de surpresa, os pertences da mãe. Não tentou resgatar nada. Mais tarde,

Juan mostrou-lhe o pouco que restou: alguma roupa, algumas

fotografias, todos os discos, as joias que não fazia sentido danificar e

que, de resto, tinham valor e pertenciam a Gaspar; umas peças de Arte

Nova especialmente elegantes com quase cem anos que Rosario nunca

usara. Também guardou o baralho de Tarot de Rosario e todas as suas

relíquias e instrumentos mágicos, mas não os podia mostrar a Gaspar.

Juan decidiu não conservar muito mais, nem sequer as cartas de


Rosario: a roupa e uma madeixa do seu cabelo seriam suficientes para a

reclamar, para lhe pedir que o visitasse, agora como espectro.

O facto de não o fazer, de não comparecer ao seu chamamento,

acreditava agora, enquanto se dirigia para a estação de comboios do

parque, podia dever-se a poucas razões: ou havia alguém a retê-la e a

impedi-la de fazer o contacto, ou ela estava num lugar inalcançável para

ele. Isso era estranho: na Escuridão, podia alcançá-la. Devia poder. Mas

havia outros lugares, muitos outros, tantos deles ainda desconhecidos.

Fora uma estupidez preventiva queimar tudo: se alguém a quisesse

apanhar, seria muito fácil obter alguma coisa de Rosario. Muitas das

suas coisas estavam, claro, em Puerto Reyes. O cabelo nas almofadas, a

roupa nos armários, a maquilhagem nas gavetas. Mas quem? O motivo

era simples: para o enfraquecer. Mas descobrir de quem se tratava era

mais complexo. Mercedes era uma possibilidade, detestava a filha.

Florence? Também. Mas ter-se-iam atrevido? Rosario era a mulher do

médium, a mãe do seu herdeiro, e era ambiciosa. Não receariam uma

vingança?

— É um parque?

Gaspar arrancou-o às suas ruminações constantes. Tinha de deixar

de pensar. A intuição chegava-lhe quando era capaz de desviar a sua

atenção: era uma regra e funcionava.

— É um parque, mas tem uma surpresa. Eu disse-te que, como te

portaste bem durante a viagem, te ia fazer uma surpresa. Agora vamos

para o comboio.

— Um comboio?

— Sim, um comboio, para irmos até à surpresa. Podemos ir a pé.

— Não — disse Gaspar. — Tu obrigas-me a correr.

Era a sua maneira de lhe dizer que era muito difícil para ele

caminhar a seu lado: um passo de Juan equivalia a vários do filho.


Tentou ir mais devagar. Era cedo. Chegaram ao meio-dia a Puerto

Iguazú e, depois de comerem umas sanduíches na estrada, entraram no

parque das cataratas à uma da tarde. Era uma boa hora porque, enquanto

os turistas almoçavam, podiam ver a Garganta do Diabo quase sozinhos.

Deram início à caminhada pelo trilho aberto na selva. Juan comprou um

chapéu de pala para Gaspar e um protetor solar para ambos; felizmente,

vendiam as duas coisas na entrada do parque, numas bancas à beira da

estrada. Percorreram o caminho devagar porque Gaspar parava para

estudar todos os animais que via: os coatis, um longínquo tucano numa

árvore, as lagartixas imóveis. Chegaram ao passadiço após quase uma

hora de caminhada: Juan agradecia essa lentidão. Não estava cansado e o

sol não o afetava, mas o dia anterior fora extremo, impiedoso. O

passadiço era uma comprida ponte de madeira sobre o rio, sem escadas.

Também não implicava grande esforço.

Gaspar caminhava em bicos dos pés pelo passadiço. À sua volta,

tudo era opulento e temível: as árvores que tocavam no rio, ao longe a

selva escura, a água imensa e veloz. Juan pensou que, a dada altura,

deviam substituir os passadiços por uma estrutura de ferro: qualquer

enchente arrastaria as estruturas de madeira, por muito bem feitas que

estivessem. A água era transparente nalgumas zonas, mas, noutras,

algumas correntes tingiam-na de vermelho: a terra encarnada que se

misturava com o rio, fruto, pensava Juan, de uma desflorestação

incipiente. Dali a uma década, ou mais, a água das cataratas tornar-se-ia

vermelha, como lava fria, como jatos de sangue liquefeito. Havia muita

água, no entanto: apenas dois anos antes, uma seca deixara a descoberto

os leitos secos, encarnados; uma ou outra catarata ainda caía, fina como

um manancial, doméstica como um duche. Ele visitara essa paisagem de

fim do mundo. Dizia-se, na altura, que tinham aparecido cadáveres no

leito do rio, mas ele, embora tivesse a certeza de que os militares eram
muito bem capazes de usar as cataratas para se desfazerem de corpos —

tendo em conta, para mais, que o Parque Nacional era guardado por

forças federais —, não acreditava que tivessem encontrado nenhum

cadáver. A força do Iguaçu naquela zona tê-los-ia arrastado sabe-se lá

para onde, certamente para bem longe das quedas-d’água.

Depois dos duzentos metros de caminhada pelo passadiço, tendo-se

cruzado com poucos turistas, Juan pegou em Gaspar ao colo, pois o filho

já corria a seu lado. Havia letreiros que proibiam carregar as crianças às

cavalitas, mas não ao colo. Porém, Gaspar ficava perigosamente alto nos

seus braços e estava agitado. Olhava para a água que passava sob o

passadiço com preocupação. Quando o barulho da Garganta do Diabo se

tornou forte e um bando de pássaros atravessou o céu sem nuvens rumo

à costa brasileira do rio, Gaspar esperneou um pouco e disse-lhe,

ansioso, assustado: põe-me no chão.

— Tens medo?

— Põe-me no chão!

Na voz do rapaz havia um toque de histeria e Juan fez-lhe a vontade.

O passadiço oscilava um pouco, mas era óbvio que Gaspar não tinha

vertigens. Insolitamente, um coati passou a correr ao lado de Juan, que

teve de se desviar para o deixar passar.

— O que foi?

Gaspar abriu a boca e estendeu as mãos. Depois, levou-as às

bochechas. Tinha os olhos húmidos e aterrorizados.

— Há um monstro que chupa a água? Há um diabo? Não quero ver

um diabo.

Sabe ler, pensou Juan, e tinha visto o aviso.

— Não há nenhum monstro, é só o nome que puseram à catarata

grande.

— Não acredito em ti.


— Vamos sentar-nos e depois continuamos.

Nos passadiços havia alguns bancos de ferro e madeira pintados de

verde inglês, um detalhe do paisagista Charles Blanchard, o mesmo que

projetara os jardins de Puerto Reyes, a mansão familiar de Rosario, a

mansão que Gaspar herdaria. Os poucos turistas presentes caminhavam

pesadamente sobre o passadiço, acartando termos e câmaras

fotográficas. Juan esperou: limpou os óculos escuros com a ponta da t-

shirt e bebeu um grande gole da garrafa de Crush que comprara na

entrada. Estava quente, extremamente doce. Passou a língua pelos

lábios.

O rapaz pôs-se de pé em cima do banco e aproximou-se dele de uma

maneira que só podia classificar como ameaçadora. Aproximou tanto a

cara, que Juan viu quatro olhos azuis carregados de medo, mas também

de determinação.

— Trouxeste-me até aqui para me atirares ao monstro?

Então, era isso que pensava. Podia ser, claro, um medo alimentado

por aqueles dias confusos, pelo luto insano que atravessava, porque, para

o filho, os últimos meses tinham sido um pesadelo. Mas era verdade:

estava a levá-lo para os braços de monstros. Juan abraçou Gaspar, não

apenas porque o rapaz estava a tremer, mas para evitar que desatasse a

correr, que fugisse dele. Gaspar debateu-se nos seus braços. Juan

obrigou-o a sentar-se e, segurando-lhe na cara com uma mão, obrigou-o

a olhar para ele.

— Gaspar, filho, é água. É o rio que, mais à frente, tem um buraco

enorme e a água cai e faz barulho. É lindo. Foi por isso que te trouxe,

por ser lindo. Há um arco-íris. Não há monstro nenhum e jamais te

atiraria a um monstro para ele te fazer mal. Jamais. Olha para aquelas

pessoas que vão para lá, parecem-te assustadas? Não, porque não há

monstro nenhum.
O rapaz relaxou um pouco os punhos, que estavam cerrados, e

limpou o ranho nas costas da mão.

— Trouxe-te cá para veres uma coisa bonita — disse Juan. — Mas,

se quiseres, vamos embora.

— Há um arco-íris?

— Às vezes, há dois, e eu, uma vez, vi três.

Voltou a abraçar Gaspar, que desta vez não resistiu. Não lhe falou de

nada, não queria baralhá-lo. Deixou-o acalmar o pranto e os calafrios.

Acariciou-lhe a nuca.

— Podemos voltar noutro dia. Se tiveres medo, vimos noutra altura.

Não há problema.

Juan viu o filho a limpar a cara molhada com a t-shirt, num gesto que

copiara dele.

— Vamos, quero ver se há um arco-íris — disse Gaspar.

Juan levou-o pela mão até à Garganta do Diabo. Quando a avistaram,

porque era possível ver a queda-d’água a uns duzentos metros desde o

passadiço antes de se aproximarem da varanda, Juan sentiu Gaspar a

conter a respiração e a voltar a olhar para ele com ar assustado, mas

agora não por desconfiança: assustava-o a enormidade e a força do rio a

cair em cascata, a água tão potente que ficava branca e suspensa no ar e

aquele barulho que obrigava toda a gente a gritar em vez de falar. Não o

deixou apoiar-se na varanda, como faziam os turistas. Papá, não temos

câmara para tirar fotografias!, gritou-lhe com a cara salpicada, e Juan

decidiu comprar-lhe, mais tarde, alguns postais. Havia dois arco-íris, um

no fundo, onde a água desaparecia e se transformava em vapor e

espuma, e outro ao longe, um arco-íris cortado que chegava até à parte

mais alta do monte, desvanecendo-se entre os ramos.

Durante a viagem de regresso a Puerto Reyes, Gaspar falou das

borboletas de cor turquesa, do arco-íris, e quis conhecer as suas lendas,


e Juan deu por si a falar de duendes, do colar de pedras preciosas de

Istar, do caminho entre Asgard e a Terra. Gaspar falou do barulho,

voltou a rir-se por terem ficado todos ensopados e quis saber porque é

que os avós não tinham construído uma casa lá. Não se pode, respondeu

Juan, é um parque nacional: não é de ninguém, é do Estado. O que é o

Estado? É de todos, não pode ser comprado por uma família particular, é

isso que quer dizer. Mas fizeram uma casa perto de lá. Não te lembras

dela? Sim, disse Gaspar, mas só mais ou menos. Juan ficava admirado

sempre que constatava as semelhanças entre as crianças e os idosos: em

ambos os extremos, a mesma demência do esquecimento, não

conseguiam reter pessoas ou lugares ou situações. Gaspar passara muitos

meses da sua vida, desde bebé, naquela casa. E só se lembrava dela

«mais ou menos». Esquecer-se-ia dele assim tão facilmente, ou seria

diferente em relação aos pais? É uma casa muito bonita, continuou Juan.

E é tua. Vai ser tua, depois de os avós morrerem. A tua mãe não tinha

irmãos.

— Então, também é tua. Se era da mamã, também é tua.

— Não — disse Juan. — Não é minha. Eu não tenho nada. Só te

tenho a ti.

A mansão foi construída nos anos vinte, quando a família Bradford

decidiu expandir os seus negócios de cultivo — na altura, de trigo,

sobretudo, na região de Buenos Aires — à erva-mate. Nessa década, a

região de Misiones era povoada por colonos da Europa do Leste, Rússia,

Escandinávia; os Bradford, descendentes de ingleses latifundiários que

eram donos das terras mais férteis da Argentina, destacavam-se pelo

conhecimento dos meandros da política local e por investirem no

negócio um importante capital próprio. Foi Santiago Bradford que

decidiu qual seria o lugar onde construiria a casa dos seus sonhos, na
selva que amava, onde caçava e se perdia. Seria sobre o Paraná, a trinta

quilómetros das Cataratas do Iguaçu. Santiago Bradford comprou dois

mil hectares de selva e contratou o arquiteto Von Plessen e o paisagista

Charles Blanchard para projetarem a mansão, os jardins e um passadiço

que fosse dar ao rio pairando em cima das árvores a modo de miradouro

de um quilómetro e do qual se pudesse contemplar a corrente, o sol a

converter o céu numa brasa rubra, a selva virgem da outra margem.

No Norte, comprou três mil hectares de terra para plantar erva-mate.

E, enquanto ia construindo a casa dos seus sonhos, fundou a aldeia, a

que chamou Puerto Libertad e que cresceria à volta da casa e perto do

caminho que mais tarde se transformaria em estrada. Nessa época,

tornou-se muito amigo de outro dono de plantações de erva, José Reyes,

um viúvo espanhol milionário, pai de dois filhos, com quem partilhava a

paixão pela caça. Demoraram dois meses a reconhecerem-se como

membros da Ordem. Santiago Bradford pertencia à família fundadora,

José Reyes era apenas um Iniciado. Ficaram tão admirados com a

coincidência, que decidiram tornar-se sócios. Em honra do amigo

inesperado, Bradford decidiu chamar à sua casa Puerto Reyes.

A casa ficou pronta em 1929, mesmo antes da crise económica

mundial, que pouca mossa fez nos milionários. Os Bradford tinham

alimentado um mundo em guerra, agora negociavam com o Médio

Oriente, outro mundo, tão longínquo que nem se apercebia das

convulsões e das quebras da bolsa de Nova Iorque.

Santiago Bradford quase nunca ia a Buenos Aires. Adorava o rio, o

suor da colheita, a humidade, as lendas dos colonos e as histórias locais

sobre aparecidos. Adorava a casa de catorze quartos, com a sua piscina

olímpica, as telhas, os alpendres frescos e o pátio central, com a sua

fonte e as orquídeas e os salgueiros. Algumas janelas tinham vitrais

franceses; à volta da casa, Bradford também plantou quinhentas espécies


de plantas e abriu trilhos que seria obrigatório manter limpos para a

selva não voltar, feroz, a cobrir tudo. A irmã pediu uma estufa e ele deu-

lhe uma. Lembrava-se da mulher, Amanda, que morrera tão nova, a rir

quando as borboletas lhe beijavam a cara ou batiam as asas de cores

impossíveis sobre as suas mãos, sobre os seus ombros.

Santiago Bradford tinha dificuldade em acreditar que alguém tão

glorioso como Amanda pudesse ter dado à luz Jorge e Mercedes, os seus

estranhos e escuros filhos. Especialmente Mercedes, feia e sarcástica,

uma rapariga que ninguém amava ou respeitava. Como quem dava um

tiro no escuro apresentou-lhe o filho de José Reyes, Adolfo, um bom

rapaz acostumado à vida da selva que estudara em Inglaterra. Um

candidato impossível para a sua arisca filha. Mas entenderam-se. Adolfo

não se apaixonou por Mercedes Bradford, mas percebeu que as duas

famílias desejavam esse noivado e ambos fizeram a vontade aos pais.

Uma esposa não tinha por que ser a mulher amada.

Adolfo costumava dizer que Mercedes não era bonita e muito menos

charmosa, mas tinha uma espécie de loucura que raiava a maldade e que

o atraía: excitava-o que fosse capaz de o matar; pelo menos, de tentar

fazê-lo. E, mais importante ainda, os Bradford pertenciam à alta

hierarquia da Ordem, não eram simples membros, como eles. Eram o

sangue. O casal catapultava a família Reyes e a Ordem gostava de unir os

seus com sangue e dinheiro. Por volta de 1945, Santiago quase se mudou

de forma permanente para Puerto Reyes. Estou farto da pampa,

costumava dizer. É uma seca. E a caça é sempre a mesma coisa,

viscachas, passarada.

Só ia a Buenos Aires porque os negócios ainda se resolviam lá. E

porque, às vezes, o calor o sufocava.

Mercedes e Adolfo casaram-se em 1947 e nunca o fizeram pela

Igreja: podiam suportar as piadas e não se importavam com as


aparências. Nesse mesmo ano, José Reyes morreu, ainda muito novo,

afogado no Paraná. Fora navegar bêbedo. Adolfo ficou à frente do

negócio da plantação de mate, que já era uma propriedade conjunta de

ambas as famílias, da sua e da da mulher. Adolfo e Mercedes viviam

com medo de que Perón os expropriasse, sobretudo de que lhes tirasse

Puerto Reyes, mas tiveram sorte: aos Bradford só tiraram uma fazenda

que ficava a caminho de La Plata e que pouco usavam, e que seria

convertida em parque público; os Reyes foram obrigados a melhorar as

condições dos seus trabalhadores, coisa que fizeram muito contrariados

e apenas durante algum tempo: mantiveram os capangas, as chicotadas,

as rações mínimas de comida, o trabalho infantil. Adolfo costumava

sonhar com o grito neike!, que estava longe de significar, para os

trabalhadores, o que realmente queria dizer em guarani: força. Era o

grito para levar o mensú, o trabalhador da erva, até ao seu limite físico.

Ele não gostava de visitar os campos de trabalho. Gostava de beber,

como o pai: whisky, aguardente de cana, vinho, cada vez mais e logo de

manhã. Gostava de mulheres louras, especialmente das rústicas filhas

dos colonos, e também gostava de mulheres crioulas, mais delicadas.

Gostava de colecionar candeeiros e quadros, cachimbos e primeiras

edições de livros — embora raramente lesse —, relíquias artesanais

guaranis, amuletos, talismãs; era devoto de São Morte. A sua irmã Nora

fundou, em 1949, o primeiro jardim zoológico de Misiones, situado

perto de Puerto Reyes. Com os anos, transformar-se-ia num refúgio de

animais, num santuário para espécies em extinção e numa meca para os

veterinários do país. Ela foi viver para França, casou e nunca mais

voltou à Argentina, mas deixou o jardim zoológico aos seus fiéis

colaboradores, ecologistas pioneiros. Nesse mesmo ano, Adolfo e

Mercedes tiveram a sua única filha, Rosario.


Adolfo dedicou-se a construir uma casa de hóspedes e a alegrar a

velhice de Santiago com outra neta, Catalina, a quem todos chamavam

Tali, a filha da sua amante de Corrientes, a mulher mais bela que já vira

na vida, meio indígena, meio italiana. Passava todo o tempo que podia

com ela: sonhava com ela nas suas noites de bebedeira. Embebedavam-

se juntos, corriam as aldeias à procura de peças de artesanato. Adolfo,

enquanto fechava negócios, provava as bebidas locais, primeiro com Tali

ao colo, depois já crescida. Rosario acompanhava-as: as meninas

adoravam-se, brincavam juntas, era muito difícil separá-las no fim das

férias. Mercedes, que passara a gravidez na cama e sofrera um parto de

risco, nunca mais pôde ter filhos e entregava-se às leituras e às viagens:

tentava ir à Europa uma vez por ano, tinha reuniões secretas e intensas

em Londres com a Ordem. Havia dias em que lia sobre Hécate e as

bruxas de Macbeth; noutros, cosia bocas de sapos e corria os cemitérios.

Em Londres, assistia a todas as cerimónias importantes: a sua

procedência geográfica era periférica, mas a sua posição na Ordem não.

Era respeitada, importante, era o sangue. E queria mais poder. Viver na

Argentina não lhe diminuía a importância: o dinheiro, costumavam dizer

os Bradford, é um país em si mesmo.

No entanto, nunca, nem nos seus sonhos mais selvagens, Mercedes

pensou que o irmão, um médico prodigioso, um cardiologista brilhante,

lhe dissesse certa noite, agitado e enlouquecido, aos gritos, que julgava

ter encontrado um médium, um rapaz doente de cinco anos a quem

operara o coração numa cirurgia de altíssimo risco, um verdadeiro

desafio para a sua reputação e uma espécie de marco para a disciplina no

continente. Que tinha a certeza; que o seu poder iria florescer. Que

deviam ajudá-lo, tomar conta dele, criá-lo. Que não podiam deixar que

morresse. Vai morrer se ficar com a família dele, Mercedes, são uns

imigrantes ignorantes que vivem em Berisso, um porto imundo. Nem


têm dinheiro para viver em Buenos Aires. Mercedes não quis acreditar

nisso durante muito tempo, nem sequer quando levaram o rapaz —

delicado, de olhos tenebrosos — para o edifício onde vivia toda a

família, na Avenida Libertador, em Buenos Aires. Não queria acreditar,

mas o seu pai, Santiago, sim, dedicando-se a ensinar magia ao rapaz, e

línguas, mitologia e arte. Não queria acreditar porque sonhava ser ela a

encontrar o médium: trabalhava nisso com afinco depois da enorme

deceção que sofreu com Rosario, a filha, que os homens da família a

proibiram de treinar. Homens fracos, moralistas, pensava. A rapariga

não parecia ter aptidão nenhuma, mas as aptidões também podiam ser

invocadas. Bah, costumava dizer, e quando o mau humor a vencia,

descarregava em Rosario, dando-lhe tareias que a deixavam com as

costas todas negras.

Só acreditou quando a evidência deixou quase toda a gente louca em

Puerto Reyes e Juan os elevou, especialmente a ela, por ser uma

Bradford, a lugares cimeiros da Ordem, impensáveis até então; quando

os olhos do Culto da Sombra se desviaram, súbita e definitivamente,

para uma mansão rodeada de terra vermelha na selva.

— Perdemos tempo e dinheiro ao enviar-te a passagem, então — disse

Adolfo antes de cumprimentar Juan, que acabara de estacionar o carro à

sombra das árvores, junto à porta principal de Puerto Reyes. Adolfo já

estava bêbedo, mas ainda lhe faltava muito para se tornar desagradável.

O céu ameaçava chuva, e a casa, recém-pintada de branco, estava linda.

Consegues escapar sempre que queres, hein? Estes guarda-costas são

uns inúteis.

— Preferi vir de carro com o Gaspar, precisava de passar um tempo

com ele. Como estás, Adolfo?

— Já vi melhores dias. E tu, como estás?


Adolfo agachou-se ao pé de Gaspar e disse-lhe não dás um abraço ao

teu avô? Gaspar fê-lo, sem entusiasmo. Tinha os braços magros um

pouco queimados pelo sol. Mercedes surgiu logo a seguir. Caminhava

com dificuldade, apesar da bengala, o fémur partido num acidente de

equitação nunca se curara bem. Beijou o rapaz, que tentou desprender-se

dela, e acariciou-lhe o cabelo com as duas mãos. És o meu tesouro,

dizia. Depois, olhou para Juan: a cobiça torcia-lhe o sorriso.

Os sogros não sabiam como tratá-lo. Com o respeito devido a um

oráculo, a um médium, a quem falava com os deuses? Com a

naturalidade de uma relação familiar? Com a severidade que merecia a

sua ocasional rebeldia? Ele já não se importava com isso.

— Querido — cumprimentou-o Mercedes. — Já prepararam o

quarto. Suponho que te apeteça descansar depois da viagem horrorosa

que deves ter feito. Só tu te lembrarias de vir a guiar pela estrada,

podendo optar por um motorista ou um avião.

Decidiu não o acusar de ter fugido. Mudariam de guarda-costas

outra vez, como sucedia sempre que ele conseguia eludi-los. Mercedes

usava óculos escuros mesmo dentro de casa, mas tirava-os sempre para

olhar para ele. Parecia ligeiramente ofuscada e ansiosa.

— Prepararam um quarto diferente do habitual.

— Claro.

Caminharam pelo fresco corredor principal de Puerto Reyes. Nas

paredes brancas estavam pendurados os objetos de estimação de Adolfo:

troféus de caça, chifres, cabeças de linces com as suas orelhas

compridas. Também algumas gravuras originais de Rembrandt,

pequenas estampas em molduras destacadas. Mercedes costumava dizer

que a coleção se estava a arruinar ali na selva, que os quadros deviam ser

conservados em Buenos Aires. E Adolfo deu-lhe ouvidos em relação à

maior parte das peças, exceto os Rembrandt e um quadro sobre o assalto


de Curupaiti, de Cándido López, exposto na sala principal: soldados

como insetos negros e, no horizonte, o fumo e o fogo, e o céu azul-

celeste. Era belo e terrível, e Adolfo recusou-se rotundamente a doá-lo

ao Museu Nacional; também não o queria vender. Rosario costumava

gritar-lhe papá, é uma vergonha que esteja aqui, toda a obra de Cándido

está no Histórico ou no Nacional, é um roubo, isto é património, e ele

respondia então que mo venham cá tirar, puta que os pariu, não o dou

porra nenhuma. Rosario fingia indignação, mas Juan conseguia ver-lhe o

sorriso: dava-se bem com o pai, apesar das discussões, apesar de ele ser

um homem superficial e egoísta.

Foram para o primeiro andar: Mercedes mandara preparar um dos

quartos com vista para o rio, um dos que tinham ar-condicionado.

Gaspar entrou a correr, abriu a mochila em cima da cama e tirou os seus

carrinhos.

— Se precisares de alguma coisa, a campainha está ali.

Quando Juan olhou para o quarto, apercebeu-se do esforço que

tinham feito para erradicar qualquer coisa que fizesse lembrar Rosario.

Nem ramos de flores, nem incenso a impregnar o ar de sândalo, nem os

lençóis brancos que ela adorava, nem nenhum dos objetos e adornos do

quarto de baixo: Mercedes não mudara nada. Nem os candeeiros nem a

cigarreira oriental nem uma só fotografia nem os quadros.

— Obrigado — disse Juan, e Mercedes assentiu. Olhou para ele:

tinha os olhos frios e distantes, como se estivesse drogada.

— Estarei no meu quarto.

— Não te vou incomodar.

Ela agarrou-lhe nos braços com as mãos magras; só tinha o anel de

casada, era despojada, não pintava o cabelo. Podia enganar outros, mas

Juan sabia que era capaz de matar e que desconhecia a piedade.

— Como poderias incomodar-me?


O ar-condicionado estava ligado e a grande janela tinha o vidro tão

limpo, que parecia aberta; deixava ver o jardim. Das outras janelas do

enorme primeiro andar podia ver-se o campo de golfe de que Adolfo

deixara de cuidar até a selva o devolver à sua condição de mato.

Juan despiu-se à frente da janela e deitou-se sobre os lençóis com os

braços atrás da cabeça e os olhos fechados. Ouvia Gaspar, que se

apoderara da mesa e desenhava nos papéis que trazia na mochila. Tinha

de se livrar dele. Não podia passar as horas que faltavam até à

Cerimónia com o filho. Não podia ocupar-se do filho agora, não da

maneira que lhe fazia falta, a mais simples, entretê-lo, pô-lo a brincar,

passear com ele. Adolfo era capaz de tomar conta do neto, claro, mas

estava bêbedo. E gostava de armas e de navegar e, sobretudo, de falar.

Era demasiado perigoso deixar Gaspar com ele.

Tentou lembrar-se do que fazia Rosario com Gaspar durante as

Cerimónias anteriores e apercebeu-se de que não fazia a mínima ideia.

Nem ela lhe contava, nem a ele lhe passara pela cabeça perguntar.

Esse foi outro erro. Quantos participantes, quantos membros do culto

saberiam que Gaspar podia possuir dons naturais? Agora que Gaspar

tinha manifestado a sua capacidade de ver, era uma questão de tempo até

se desencadear tudo.

Juan respirou fundo e estendeu o braço para chamar Marcelina. Há

anos que trabalhava em Puerto Reyes e Juan confiava nela. Era discreta e

eficiente, e tinha uma enorme capacidade para fingir que não percebia o

que acontecia naquela casa, para fazer crer que nada entendia dos

assuntos dos patrões e para falar apenas em guarani com os outros

empregados. A mulher atendeu o intercomunicador imediatamente.

Haveria um certo tremor na sua voz quando disse: sim, senhor? Devia

estar muito nervosa por ter de servi-lo depois da morte de Rosario, que

decerto a entristecera sinceramente. Marcelina, disse-lhe, podes pedir ao


senhor Esteban que venha ao meu quarto? É para já, senhor, disse

Marcelina, e Juan pensou senhor, senhor, porque a obrigariam a dirigir-

se a ele daquela forma. Quando estavam sozinhos, chamava-o pelo

nome.

Stephen insistia em que o chamassem Esteban quando estava na

Argentina. Na Europa usava o nome verdadeiro, o nome inglês. Juan

sempre lhe chamou Stephen. Conheciam-se há quase vinte anos, e o

primeiro encontro entre ambos, tão distante, fora naquela casa, em

Puerto Reyes. O filho mais velho da líder da Ordem, Florence Mathers, e

do marido, o recluso Pedro Margarall, tinha as pálpebras pesadas e os

olhos azul-escuros; era alto, embora parecesse pequeno ao pé de Juan.

Entrou sem bater. Vinha de camisa castanho-escura e calças pretas. E

estava indubitavelmente zangado. Juan abriu os olhos, mas não se mexeu

da cama. Gaspar olhou para Stephen com curiosidade, cumprimentou-o

e voltou para os seus desenhos.

Em voz alta, Stephen disse:

— Por favor, diz-me que estou enganado.

— Podias aprender a falar argentino, passas vários meses por ano

aqui. O teu namorado missionário está bom?

— Fantástico. O que fizeste no cemitério de Corrientes?

— Seguiste-me?

Stephen atirou para cima do estômago nu de Juan a página dobrada

de um jornal. Juan abriu-a. A fotografia tinha uma qualidade péssima —

a impressão do jornal, de circulação local, era barata —, mas percebeu

que o olho educado de Stephen conseguia distinguir, no chão, o símbolo

já esbatido. As velas não o delatavam. Todos os cemitérios da região

tinham a sua quota-parte de velas e de cultos brasileiros; em todos se

degolavam galinhas e se faziam oferendas em tabuleiros de cartão com

fruta e pão.
— Nem sequer apagaste os vestígios.

Juan começou a ler o artigo, mas preferiu perguntar:

— Há alguma consequência?

— O guarda morreu.

— Não era a minha intenção.

Stephen semicerrou os olhos, arrancou-lhe o jornal das mãos e

começou a rasgar o papel em tiras finas.

— Já me encarreguei de enviar qualquer coisa à polícia e à família

do morto para não prosseguirem com as investigações.

Juan não lhe agradeceu. Perguntou se Mercedes, Florence e os

outros sabiam de alguma coisa. Stephen disse que não, que eles nunca

liam os jornais locais.

— O que é que querias saber?

— Não corremos perigo.

— Vocês, não. Mas quem vive ao pé do cemitério nunca mais

passará uma noite sossegada.

— Quero lá saber das pessoas.

Stephen não precisou de lhe dizer para começarem a falar em

segredo. Era ele que fazia todo o esforço, contrariamente ao que sucedia

com Tali.

A quantidade de energia requerida para fazer uma invocação é alta.

Um dia antes da Cerimónia, no teu estado, é suicida.

Precisava de saber se o Gaspar o conseguia ver.

Poderias sabê-lo na mesma sem recorreres a essa demonstração de

poder desnecessária e vulgar.

Stephen sentou-se ao fundo da cama. Juan conseguia sentir a sua

irritação e também a corrente incondicional que os mantinha unidos.

Disse que não com a cabeça e atraiu-o para si estendendo os braços.


Stephen mal se mexeu, apenas o suficiente para lhe beijar os lábios com

delicadeza. Juan passou-lhe a mão pelo cabelo branco.

Está tudo feito. A Tali também já começou a fazer o trabalho dela.

Além da minha mãe, há dois ingleses cá em casa que sabem o que

fazem. Os restantes são Iniciados menores. A Tali chega amanhã.

Encontramo-nos os três à tarde, cedo, perto do lugar da Cerimónia.

Eu conheço os ingleses?

São escribas, ambos. Creio que sim, que os conheces.

Se morrer antes da Cerimónia, quero que leves o meu filho para o

Brasil, que o deixes com o meu irmão. Ainda não encontrei o selo para

o proteger.

Stephen fitou-o com os seus olhos pequenos e penetrantes.

Não vais morrer amanhã. E não posso fazer isso. Irão atrás dele. Já

fizeste invocações em piores condições.

Juan lembrou-se do ano anterior. Sim, fora muito pior. Para se

manter de pé, Stephen teve de amarrá-lo a uma espécie de cruz

improvisada. Era a segunda vez que o fazia. O seu corpo pendurado na

madeira, coberto por uma túnica, o cabelo louro, mais comprido na

altura, descaído sobre a cara. Juan não se lembrava do que acontecera

depois da Cerimónia. Não acordou em casa: teve de ser levado para um

hospital, primeiro para um de Corrientes e, depois, uma vez

estabilizado, para outro de Buenos Aires. Teve de esperar seis meses até

poder realizar a cirurgia que o salvou, um triplo bypass. Passou o

aniversário dos seus vinte e oito anos nos cuidados intensivos.

Achas seguro deixar o meu filho com a Marcelina?

Claro. Tenho de explicar-te umas coisas. Mas quero que o leves

daqui primeiro.

Juan voltou a marcar o número de Marcelina e pediu-lhe que subisse.

Para não a envergonhar, cobriu-se com o lençol e pediu-lhe que


aproximasse uma cadeira da cama. Stephen permaneceu onde estava.

— Preciso de que tomes conta do Gaspar até domingo.

— É muito tempo, senhor.

— Não me chames senhor.

— Primeiro, queria dar-lhe os pêsames pela Rosario. Gostava tanto

dela. Estamos muito tristes.

— Está bem, Marcelina.

Sentado na cama, com todas as almofadas que encontrara a ampará-

lo para se manter erguido, explicou-lhe que Gaspar já sabia ler e que

isso o entretinha, que sabia nadar, mas que o levasse apenas à piscina.

Sim, senhor, o rio é muito traiçoeiro e o menino ainda é pequeno. A

roupa dele está toda naquela mala ali, a que está em cima do cadeirão.

Come de tudo. Se lhe doer a cabeça, dá-lhe uma aspirina e tenta obrigá-

lo a dormir. Se perguntar por mim, diz-lhe que fui trabalhar. Mostra-lhe

as borboletas, se calhar tem medo delas, mas acho que não. Vai adorar o

jardim zoológico.

A Juan, sossegava-o que Marcelina, o marido e os filhos vivessem na

casinha lindíssima situada na entrada de Puerto Reyes: há muitos anos

que eram os caseiros. Gaspar permaneceria à margem de qualquer coisa

que acontecesse na mansão e, ao mesmo tempo, a apenas duzentos

metros de distância. E seria bem tratado.

— Diz-me uma coisa, Marcelina, o senhor Adolfo anda a beber

demasiado? Quero a verdade.

— Muito. Eu diria que duas garrafas de whisky por dia. À noite,

encontro as garrafas.

— Então anda sempre bêbedo.

— Isso não te sei dizer.

— E pega no barco?

— Sim, mas não é ele que o leva, é o meu marido.


— Se forem ao rio, podes levar o Gaspar. Mas só com o teu marido.

A Tali disse-me que há dois cães novos.

— São grandalhões. Não vou deixar que andem de roda do menino,

tenho pavor deles.

Disse-lhe que Gaspar também gostava do passadiço que ia dar ao

miradouro, do grande, o que passava por cima das árvores. Eu e a mãe

dele levávamo-lo de passeio até lá e ele perguntava se podia voar, disse

Marcelina. Prefiro que se mantenha afastado da casa, disse Juan.

Tenham cuidado para ele não ser picado por nada. Não te preocupes. O

jardim zoológico é muito bom, e eu sei tomar muito bem conta de

crianças.

Depois, Juan chamou Gaspar, que se aproximou. Tinha um dos

punhos cerrado e Juan, devagar, abriu-lhe os dedos um a um e massajou-

lhe a palma da mão. Tenho de ir trabalhar durante uns dias, disse-lhe.

Gaspar olhou para ele com ar desconfiado, mas disse que sim com a

cabeça. E enquanto esperas por mim, ela vai tomar conta de ti. Lembras-

te dela? Gaspar disse que sim com a cabeça outra vez. Não tenhas medo:

volto daqui a dois dias. Não é muito tempo?, perguntou Gaspar. Não,

não é muito tempo. São duas noites. Conta-as.

— E tenho o telefone do tio.

Juan deu um beijo na testa de Gaspar. Depois, pediu a Marcelina

para ir buscar a mala, a mochila e os papéis e, embora tivesse ficado

admirado por Gaspar não perguntar onde é que ele ia, que trabalho tinha

de fazer, se ia sozinho, coisas que de certeza queria perguntar e para as

quais tinha respostas inventadas, deixou-os ir sem dizer mais nada.

Marcelina saiu em silêncio. Tinha o cabelo comprido atado num rabo de

cavalo muito pesado, escuro. Estendeu a mão a Gaspar, que não lha deu

por preferir levar a mochila.


Stephen deitou-se ao lado de Juan, imitando a sua posição, com os

braços atrás da cabeça e os olhos fechados. Desde que se conheciam,

eram inseparáveis, e conspiravam e fracassavam juntos. Stephen era o

filho mais velho de Florence, a líder da Ordem. Fora criado a meias pelo

pai, em Cadaqués, e pela mãe, em colégios ingleses de elite. E embora

tivesse vivido a vida inteira em mansões e rodeado dos maiores

privilégios, sentia-se um pouco estrangeiro e um pouco órfão.

— Estou a ouvir-te — disse Juan.

Vão testar o rapaz como fizeram nas últimas vezes, mas agora não

permitirão que estejas presente. Foi um erro invocares um demónio à

frente do teu filho antes de a minha mãe e o círculo interno decidirem

testar as aptidões dele.

O Gaspar julga que a visão do demónio foi um sonho.

E tu acreditas nisso? Se lhes contar o sonho, ficarão a saber que só

está baralhado. Foi um erro fazê-lo, outro erro autodestrutivo. Começo

a duvidar do amor que professas pelo teu filho e começo a acreditar que

me estás a esconder qualquer coisa. Se o demónio tivesse escapado ao

teu controlo, podia ter-te destruído à frente do teu filho. Ou destruído o

rapaz. Não é verdade que só querias saber se ele conseguia vê-lo. Tens

outras maneiras de saber isso. Talvez estejas a ficar louco. Porque jogas

a este jogo?

O que é que conseguiste descobrir sobre a morte da Rosario?

Não encontrei nada.

Acho que procuraste mal.

É possível. Estive ocupado com outros assuntos. A Mercedes

atafulhou a passagem subterrânea. Alguns deles são crianças. Andam a

fazer mais testes do que nunca para verem se encontram outro médium,

e a minha mãe está de acordo. Estão preocupados por o Gaspar ainda

não se ter manifestado, acham que a tua morte está iminente e não
querem perder a comunicação. O Gaspar é demasiado pequeno para se

tentar já o ritual da passagem.

Fez-se silêncio. Juan ouviu o barulho do ar-condicionado.

Escuta. Se decidirem que o Gaspar não é um médium, o que

acontecerá porque lhes vamos ocultar as aptidões dele, darão início aos

preparativos do Ritual. Sabes que não implica nenhuma tortura física, é

muito simples nesta etapa.

Não quero que continues a falar disto. Jamais lhes entregarei o meu

filho. O Ritual não poderá realizar-se com êxito. Já verificámos isso.

O que vimos foram ensaios. Fracassos. Sabes que as oportunidades

de êxito, no teu caso, são muito altas. E ele não seria entregue: usarias

o corpo do teu filho para ti.

É exatamente a mesma coisa. Ele deixaria de existir. Não vou mudar

de ideias. Nem sequer a hipótese de ser levado para o Outro Lugar

depois de morrer me fará mudar de ideias. Estás a falar como falava a

Rosario.

Se for um médium, não há saída, Juan. É pouco mais novo do que tu

quando te começaram a usar. A preparação do meu irmão começou

quando ainda era mais pequeno do que o Gaspar. Usaríamos ambos até

o teu corpo não dar mais de si. Isto podia ter sido evitado se o rapaz

não existisse. Mas o rapaz existe e é teu filho. E se não quiseres usar o

corpo dele para continuar, eu ajudo-te. Agora, ainda é possível enganá-

los. E fazer com que o Ritual falhe quando chegar o momento, também.

Podemos afastar o Gaspar da Ordem e também podemos evitar que

usem o corpo dele no Ritual.

O meu filho está em risco de qualquer maneira.

O risco é menor se eles não descobrirem que tem aptidões. E não

saberão, porque trabalhámos bem para o ocultar e com a ajuda do


Outro Lugar. Não confias em ti, em nós? Temos seis anos para o salvar

do Ritual.

Prometes?

Na verdade, quem devia prometer és tu. A única coisa necessária

para que o Ritual não funcione é que tu não o queiras fazer. Que ajas

como se tivesse fracassado ou que o faças fracassar.

Não suporto estar tão desprotegido, não suporto sentir esta falta de

poder tão evidente, não suporto saber que estão errados e que insistem

nesta veneração.

Quantas vezes já falámos sobre isto? E, no entanto, aqui estás tu.

Como se o pudesse evitar.

Foi um erro não tentar controlar a Ordem mais cedo. Tê-lo-íamos

conseguido. Não tentámos seriamente.

Juan olhou para o teto.

A Rosario teria controlado a Ordem, com o Gaspar e contigo, e tu

sabes isso.

Achas que foi por isso que a mataram?

A minha mãe é uma boa negociadora. Não encontrei um só indício

de suspeitas sérias acerca de um plano. O facto de a Rosario ser uma

rebelde não era segredo nenhum.

Não me traias, Stephen.

E tu não me insultes. Estou em perigo por tua causa.

Stephen levantou-se da cama, mas, antes de se ir embora, apoiou as

mãos nos ombros de Juan, evitando olhá-lo nos olhos.

A minha mãe disse-me, uma vez, que o teu poder era tão grande

como a tua irresponsabilidade. Sempre te acompanharei. Enquanto não

me afastares, estarei contigo.

Stephen separou-se de Juan e, sem olhar para ele, saiu.


O médico preguntou-lhe como tinha passado e Juan contou-lhe a

verdade, descreveu-lhe os sintomas e as crises. Bradford decidiu

aumentar a dose de betabloqueadores e antiarrítmicos. Depois,

observou-o. Tocava-lhe com a mão boa: a outra, mutilada, mantinha-a

escondida dentro de uma luva preta. Quero que tomes um ansiolítico e

que durmas, disse-lhe. Juan assentiu: estava esgotado. Vou precisar de

uma coisa mais forte. Bradford não discutiu e deu-lhe a dose mais alta

de Valium. Estamos mais bem preparados para a tua recuperação do que

no ano passado, disse-lhe, enquanto Juan engolia dois comprimidos sem

água. A Graciela já está cá em casa, veio com outro médico e montámos

uma sala de cuidados intensivos muito avançada.

Está bem, Jorge, disse Juan.

Bradford ia acrescentar mais qualquer coisa, mas hesitou. Há vinte

anos que se comportava da mesma maneira, com uma indiferença que

ocultava a devoção. Juan adormeceu nu em cima dos lençóis e,

provavelmente influenciado pelo ar-condicionado, que mantinha o quarto

gelado, sonhou que a Escuridão estava fria e húmida, sonhou com o

ranger de dentes e os seres torcidos e os campos de corpos e as florestas

de mãos e o enforcado pendurado pelos pés e a floresta e então já não

podia andar, caminhar na Escuridão era muito difícil, era como escalar e

não havia ar suficiente e as coisas perante os seus olhos adquiriam

formas conhecidas mas depois voltavam a ser imagens quebradas e

inexplicáveis; a floresta era clara embora ficasse muito longe e não

tivesse cor e também era clara uma presença entre as árvores, à espera,

pilhas de crânios, um rio negro que não fazia barulho.

Acordou agitado, mas não confuso: Puerto Reyes era a sua casa mais

do que qualquer outro lugar, mesmo que agora só a visitasse uma vez

por ano. Tomou um duche rápido e, sob a água, entre o vapor, pensou

em Gaspar. Estava bem, sentiu. Perto e bem. Vestiu-se para ir ter com
Stephen e Tali e, quando saiu para o corredor, sentiu-se zonzo por causa

do calor. Era quase sólido. Não estava ninguém na casa, pelo que

conseguisse ouvir. Algures, certamente, Florence, Mercedes, Bradford,

Anne e os outros estariam reunidos. Não conseguia ouvi-los.

Podia marcar cada recanto da casa como o seu mapa privado. A

mesma escada de madeira por onde descia agora tinha-o levado, quando

era pequeno, até ao Lugar de Poder. O jardim onde Tali o beijou pela

primeira vez e ele tentou conter o seu assombro e a sua alegria não

mudara muito. Conhecia o número de degraus que conduziam ao

passadiço e ao rio.

Quando os deixou para atrás sentiu, na ponta dos dedos e depois

como um estalo de luz na cabeça, algo a desesperar no velho túnel que

em tempos unira as duas casas, a mansão principal e a de hóspedes. O

túnel fora desativado após uma inundação, estava demasiado perto do rio

e ruiu, exceto o primeiro troço, o que ficava mais perto de Puerto Reyes:

ainda se mantinham de pé uns duzentos metros. Era esse troço que

Mercedes usava como cárcere para os seus rapazes e os seus enjaulados.

Sempre os tinha caçado entre os abandonados e ali, no Norte, na

fronteira, dispunha de um couto ideal, gente pobre, esquecida, tão

desamparada que nem sequer recorria às autoridades quando lhes faltava

um filho ou um irmão. Além disso, há anos que contava com os

sequestrados que os amigos militares lhe entregavam. A Escuridão pedia

corpos, justificava-se ela. Não era verdade. A Escuridão não pedia nada,

Juan sabia-o. Na Ordem, Mercedes era a mais firme crente no exercício

da crueldade e da perversão como via para alcançar iluminações

secretas. Juan estava convencido, também, de que, para ela, a

amoralidade era uma marca de classe. Quanto mais se afastava das

convenções morais, mais clara se tornava a sua superioridade de origem.

Florence já não partilhava os seus métodos, mas não travava Mercedes


que, como membro de uma das famílias fundadoras da Ordem, tinha as

suas licenças e a sua própria agenda.

Tali e Stephen estavam à sua espera na antiga praceta rodeada de

estátuas de bronze que Adolfo Reyes mandara vir de França. Stephen

estava sentado na escada da praceta e Tali, de pé a seu lado, fumava um

cigarro. Juan beijou-a na boca antes de a levar para o centro da praceta.

Lá, perto do Lugar de Poder, era capaz de falar com eles em voz alta,

criando um círculo de silêncio à sua volta com pouco esforço, porque já

se estava a alimentar da Escuridão, já sentia a latejar-lhe nas artérias

uma força renovada, os seus ouvidos e a sua pele sentiam cada

movimento com a intuição de um animal noturno.

— Tivemos de fazer um trabalho duplo — disse Tali. — O teu filho

é poderoso, caramba. Não me deixaste uma quantidade suficiente de

cabelo, mas, felizmente, esqueceram-se de alguma roupa.

Juan sorriu. Pegou-lhe na mão e levou os dedos dela à boca. Fediam

a sangue seco salgado.

— Que antiquada, Tali — disse-lhe.

— O que é antiquado funciona — interveio Stephen.

— Às vezes, é a única coisa que funciona — disse Juan.

Não conseguia ver, do seu quarto, o Lugar de Poder. A janela aberta, no

entanto, trazia-lhe o cheiro das velas que lhe indicariam o caminho de

noite, embora ele conseguisse percorrê-lo de cor. Não estava nervoso,

não tinha medo: só sentia. Estava pronto para a coroa de sombras.

Depressa entraria na zona escura onde estava presente e, no entanto, já

deixava de existir. Conseguia sair com facilidade: nem sempre fora

assim. Agora era como um convidado a quem tinham dado a chave para

entrar e sair sempre que lhe aprouvesse.


A túnica era de tule preto; Juan deixou-a cair sobre o corpo nu e

passou os braços pelos buracos das mangas. Os braços tinham de ficar

de fora. Alguém, provavelmente Florence, mandara forjar em cima da

máscara dois pequenos chifres de veado novo. Juan olhou-se ao espelho

antes de descer. A vestimenta era desnecessária, mas a Ordem preferia

os pormenores cerimoniais e Juan aceitava-os com resignação.

Compreendia o seu efeito.

Desceu a escada e, no pátio, viu as primeiras velas, um caminho de

duas linhas serpenteantes e paralelas. O silêncio era total, só se ouviam

os pássaros noturnos, o chapinhar do rio, um cão ao longe. Quando saiu

do perímetro de Puerto Reyes e entrou no caminho conquistado à selva,

olhou para as mãos: já não eram suas. Já estavam negras, como se as

tivesse mergulhado num poço de alcatrão. Totalmente negras até acima

dos pulsos. E a forma também mudava. Pouco a pouco, e sem dor, os

dedos ficavam maiores: no início, pareciam afetados por um reumatismo

súbito e, num abrir e fechar de olhos, as unhas iam-se tornando

compridas e fortes, curvas, punhais dourados. Essa era a sua marca de

médium, a metamorfose física que o distinguia e condenava. O deus das

unhas de ouro.

Deu mais um passo e viu a primeira linha de Iniciados. Passou entre

eles. O Lugar de Poder atraía-o, repuxava-lhe a pele. Quando chegou,

virou-se e, antes de abrir os braços, percorreu com o olhar os Iniciados,

os velhos nas primeiras filas, os novos atrás, alguns expectantes, outros

cheios de medo, os escribas preparados, os destinados ao sacrifício de

olhos vendados e mãos atadas.

E, depois, não viu mais nada.

Tali esperou entre os Iniciados. Podia ver o pai na primeira fila, ao pé de

Mercedes, ao lado dos escribas, mas ela nunca se teria atrevido a


arranjar um lugar ali. Preferia ficar em segundo plano.

Assistia sempre à Cerimónia. Ia por causa de Juan, mas também

porque o que vinha com a noite era divino, embora, tinha a certeza, não

fosse sagrado. Stephen, o único de toda a Ordem por quem Tali sentia

um afeto verdadeiro, ouvira-a com atenção nos dias anteriores, enquanto

trabalhavam juntos para proteger Gaspar e também para dar força

mágica a Juan. Quer deixar de fazer invocações, mas diz que não pode

parar, disse Tali. Como não pode parar?

Stephen, que estava estranhamente envelhecido e magro, respondeu-

lhe que era mentira. Não quer parar, disse-lhe. Se assim o desejasse,

poderia renunciar. Tem o poder de se esconder, e tem quem o ajude a

desaparecer, se quiser. Não mente quando dá desculpas, mas são

desculpas. Não sei, nem nunca saberei, o que é estar em contacto com

esse poder, mas sei que não é possível desprezá-lo. Ninguém poderia

fazê-lo. Ele também não. Não percebo, nem nunca perceberei, como

passou tanto tempo sem enlouquecer.

Stephen embebeu a roupa de Gaspar em sangue e cortou-a às tiras.

No chão, desenhara símbolos a giz. Tinha as mãos todas conspurcadas,

como Tali.

Está transtornado, amigo, respondeu ela, e Stephen sorriu. Um

pouco, sim. Vai piorar à medida que for diminuindo o poder. Tali quis

saber se o poder estava a minguar por a saúde ter piorado. Não me

parece, disse Stephen. Creio que há um ciclo de poder e que esse ciclo

está a terminar. Ou a extinguir-se. Nenhum médium durou tanto tempo

como ele e, por isso, não sabemos o que tem, nem porquê.

Porém, Tali não sentia que o ciclo estivesse a acabar, de pé entre as

velas, no calor insuportável da selva, com os Iniciados que, às vezes, se

atiravam para o chão em pranto, a tremer. Sentia-o a aproximar-se agora,

como sentiam todos, e não se atrevia a virar-se. Aquele não era o


homem que conhecia, com quem dormia na sua cama. Aquilo que

caminhava com passos tão claros, que era possível sentir o roçar de cada

fibra de erva nos seus pés nus, já não era exatamente um homem.

Tali manteve a cabeça baixa até as exclamações, os gemidos, o

êxtase dos outros a obrigarem a olhar.

Juan já estava no Lugar de Poder. Desta vez, tinha uma máscara.

Abriu os braços e virou a cabeça para o lado; tinha colados os chifres de

um animal da floresta; parecia um demónio desinteressado.

As mãos: Tali viu-as quando ele as esticou. Garras de pássaro

completamente negras, queimadas, mas com ar peganhento. As unhas

douradas brilhavam como facas à luz das velas. Quantas velas?

Centenas. E, então, o ruído da Escuridão aberta.

Era um arfar, pensou Tali desta vez, como de cães sufocados por

coleiras; ou de cães sedentos, famintos, uma matilha a aproximar-se. A

Escuridão crescia primeiro em redor de Juan, como se fosse vapor a

desprender-se do seu corpo, e, de repente — Tali era sempre apanhada

de surpresa por esse momento —, disparava em todas as direções e

tornava-se enorme e líquida, luzidia, melhor dizendo. Era difícil olhar

para ela: mais escura do que a noite, compacta, cobria as árvores, as

luzes das velas e, enquanto crescia, elevava Juan, que flutuava, suspenso

numa negrura de asas. Os escribas tomavam notas, Tali via-os, mas ela

não ouvia nada, nada a não ser o arfar e aquele adejar. Que ouviriam os

que ouviam a voz da Escuridão? Uma vez, Juan disse-lhe que não

ouviam nada, que era pura sugestão, que o que escreviam era uma

espécie de ditado automático das suas mentes. E, se ouvissem alguma

coisa realmente, disse-lhe, não era nada de bom. Tali tentou encontrar

Stephen no meio das pessoas, mas já era impossível: as filas estavam

desfeitas, alguns tentavam correr até às árvores e os Iniciados mais

firmes detinham-nos, e da Escuridão chegava um hálito gelado e fétido.


Era a hora do sacrifício. Mercedes precedia-o. Os que seriam

entregues à Escuridão estavam de olhos vendados, de mãos atadas, aos

tropeções. Drogados e cegos, não faziam ideia do que os esperava.

Talvez esperassem dor. Tali viu um jovem, muito magro, completamente

nu. Chorava, estava mais desperto do que os outros, tremiam-lhe os

lábios. Para onde nos levam?, gritava, mas os seus gritos eram abafados

pelo arfar da Escuridão e o murmúrio dos outros.

Mercedes não precisava de fazer grande coisa. A Escuridão tinha

fome e nunca rejeitava o que lhe era oferecido. Os que foram entregues à

Escuridão desapareceram à primeira dentada. Tiveram sorte, pensou

Tali. Questionara o pai em relação a esta prática. Rosario também o

fizera. Ele, com desprezo, disse-lhe que, seja como for, iam morrer na

mesma. Que bicho vos mordeu, para defenderem tanto esta canalha?

Estão marcados para a morte, filhas. Fazemos-lhes um favor.

Muitos membros da Ordem pensavam que, na verdade, era uma

honra para eles. Como o homem vestido com um fato preto, apesar do

calor, que se aproximava voluntariamente da Escuridão. Era o primeiro.

Tali viu-o esticar os dedos para tocar na luz negra compacta, ao pé de

Juan, à altura das suas ancas.

E viu como a Escuridão lhe ceifava os dedos primeiro, depois a mão

e, a seguir, com um som glutão e satisfeito, o levava inteiro. O sangue

das primeiras dentadas salpicou Juan, mas ele já não se mexia. Não se

mexeria durante um bocado, até a Escuridão fechar.

As seguintes foram duas mulheres de mãos dadas. Uma nova, a outra

velha. Mãe e filha? A Escuridão puxou a velha pela cabeça e, por um

instante, o seu corpo degolado continuou a andar. A nova nem olhou

para ela ou, se o fez, não ficou impressionada. Entrou na Escuridão

decidida e com um sorriso, e arrastou o corpo sem cabeça atrás de si,

agarrando-o pelo braço. Desapareceram, deixando apenas um rasto de


sangue, os jatos que a carótida regara sobre os devotos das primeiras

filas que agora retrocediam um pouco, porque a Escuridão descia, descia

como um teto de trevas ou uma garganta sem fundo, e parecia ter olhos e

poder escolher.

Tali viu-a levar, inteiro, um homem nu que estava ajoelhado. Depois,

viu como os Iniciados não conseguiam evitar erguer os braços e roçar a

Escuridão, que comia dedos, mãos. Viu, durante apenas um segundo,

Stephen entre a multidão manchada de sangue; as velas continuavam

acesas, mas pouco podiam contra o cerco negro da Escuridão, que

descia como um manto.

E, então, principiou a retirada. Primeiro, subia aquele teto escuro

como de morcegos, ao longe, e, tornando-se pequena, rodeava Juan, que

baixava os braços devagar e voltava a cabeça para a frente. A Escuridão

não se desvanecia: retrocedia como nuvens de tempestade, mas

mantinha-se à volta do médium e devolvia-o ao chão, gentilmente. Os

Iniciados, os assustados e os alucinados, os calmos e os escribas, todos

obedeciam a quem tinha mais caráter ou mais experiência, obrigando-se

a formar de novo as filas. Alguns acendiam as velas que a proximidade

da Escuridão apagara. Todos fingiam não estar aterrorizados; os que

tremiam, preferiam dizer que era por causa do êxtase, da emoção, da

glória de presenciar a aparição de um deus vivo.

Juan estava agora com um joelho no chão e ouvia-se a sua respiração

agitada e dolorosa. Ainda o rodeava um finíssimo halo negro que, como

todos sabiam, era extremamente perigoso: cortava como uma foice.

O médium levantou-se. Caminhou direito, guiado, de olhos muito

abertos e húmidos. Tali aproximou-se: cheirava a suor, tinha o corpo

alagado sob a túnica, cheirava a mar e a sal, e a alguma coisa ácida.

Retrocedeu. Não queria que a marcasse. O médium levantou a cabeça e

pareceu farejar a noite. O fino halo que o rodeava serpenteava, seguia-o


às vezes, como se o seu corpo estivesse a fumegar. Os Iniciados traziam-

lhe os feridos pela Escuridão. O médium — Tali não podia chamar-lhe

Juan agora, não o reconhecia — passava as mãos negras pelas feridas e

queimava-as. Cauterizava as feridas e os Iniciados gritavam de dor, mas

apenas durante um instante, porque a perda de um membro,

acreditavam, marcava-os como eleitos e favoritos. Depois de serem

curados, choravam de alegria. Mãos e braços perdidos na Escuridão que

agora eram extremidades novas, mordidas, arrancadas. A Escuridão

ficava cada vez mais pequena e os Iniciados lançavam-se aos pés do

médium como cães famintos, pensou Tali, e ofereciam-lhe os seus

corpos nus. Eram muitos, desta vez: muitos à espera de um pedaço de

pão, a tocar-se; alguns esgatanhavam-se. Por fim, o médium acedia. Em

geral, marcava muito poucos. Desta vez, escolheu uma rapariga magra,

de peito plano e ancas largas, que estava longe da primeira fila de

Iniciados uivantes, uma rapariga que lhe pedia por favor com os lábios,

de pé, uma rapariga que não era uma loba nem uma cadela submissa:

uma rapariga que parecia uma serpente, com os seus olhos pequenos e o

seu nariz achatado. O médium aproximou-se dela, rodeou-a com os seus

passos lentos e usou três unhas douradas para lhe rasgar as costas com

as garras. O sangue escorria-lhe pelas pernas nuas, desenhando-lhe um

cinto escuro: os Iniciados olhavam boquiabertos. Mais tarde, contariam

que os golpes, tão profundos, deixaram a coluna e as costelas à mostra.

A rapariga cambaleou, mas o médium amparou-a e, com a outra mão,

que voltava pouco a pouco à normalidade — as unhas já não eram

garras amarelas, a mão agora estava apenas deformada e preta,

reumática —, acariciou-lhe as costas feridas. E deixou de sangrar. E os

golpes transformaram-se em cicatrizes escuras, como se a mão estivesse

carregada de tempo. Depois, deixou cair a rapariga no chão e foi-se

embora caminhando lentamente, para casa. O halo negro abandonara-o.


A última coisa que os Iniciados viram foi que, quando entrou no

caminho das velas, ainda tinha as mãos negras. Era proibido segui-lo.

Apenas Stephen e um grupo seleto estavam autorizados a acompanhá-lo.

Tali ia com eles porque fora requerida pelo médium, e a ele eram-lhe

concedidos certos caprichos.

Os Iniciados ignoravam o que se passava depois, as consequências

da Cerimónia no corpo do médium. Tinham de permanecer junto do

altar e de seguir Florence nos rituais do desfecho, quando os mutilados

eram ungidos nos círculos, quando o sangue era recolhido, os textos

lidos, os mortos retirados. O amanhecer, ainda longínquo, marcava o fim

da Cerimónia.

Tali não participava nos rituais finais. Correu, com o cabelo solto e o

vestido branco manchado de sangue, para o caminho das velas e para

Juan. Sentia mais do que nunca falta de Rosario, falta da sua integridade

e da sua sensatez.

Demorava tanto a sair da inconsciência, que Tali não queria alimentar

esperanças com um tremor de dedos ou uma mudança na respiração. Era

preciso esperar. Bradford parecia otimista. A doutora Biedma, sua

discípula, parecia preocupada. Juan perdera a consciência, mas o seu

coração continuava a bater. Há anos que não acontecia isso, pensou Tali.

Passadas dez horas, Stephen saiu do quarto. Tenho de dormir, disse.

Tali apoiou-lhe uma mão nas costas, sabia que estava esgotado e

percebia que não quisesse dormir naquele quarto tão triste, com a luz

ligada, o ruidoso monitor que registava as erráticas batidas do coração

de Juan e a sua respiração esforçada. Até Rosario evitava Juan enquanto

estava inconsciente.

Tali não tinha sono. Bradford tratou-a com desprezo, como sempre.

Para Bradford, ela era o produto das indiscrições de Adolfo com uma
bruxa de aldeia. Tali preparara, mentalmente, uma combinação potente

para, pelo menos, perturbar o sono do doutor Bradford durante umas

semanas. Assim que voltasse a casa, concentrar-se-ia em fazer-lhe um

trabalho, breve mas eficaz. Juan e Stephen não podiam saber, porque

ambos sempre lhe tinham dito para não fazer magia apenas por raiva ou

desgosto. Quem eram eles para a julgar, que nervos, com as coisas que

faziam e já tinham feito.

Tali olhou de relance para o seu reflexo no vidro da janela.

Completara trinta anos. Quando lhe diziam que era bela, referiam-se à

sua cabeleira pesada, ao seu corpo acostumado às caminhadas e ao

brilho dos seus olhos escuros. Mas nunca se maquilhava, não se

preocupava com a pele, não gostava de anéis nem de pulseiras; quando a

elogiavam, havia sempre reticências, «mas serias muito mais bonita

se…». Sentia que estava a ficar velha, que precisava de fazer qualquer

coisa em relação às linhas de expressão que lhe rodeavam a boca ou às

estrias das ancas, fruto dos seus verões de bicicleta, que lhe

emagreceram bastante as pernas. Aproximou-se da cama onde Juan

permanecia inconsciente. Acariciou-lhe a mão esquerda, a ferida que

não cicatrizava, e não obteve nenhuma resposta. Já estava há um dia

inteiro assim. Seja como for, não se podia comparar com as horas

desesperantes do ano anterior, que ela não suportou: acabou fechada

numa casa de banho de hospital a rezar loucamente ao Santo, mas

sobretudo assustada, até que a própria Rosario a foi buscar e lhe pediu

que a substituísse, porque ela tinha de estar um pouco com Gaspar: o

rapaz, por uma não tão estranha coincidência, estava a arder em febre e

não havia maneira de a fazer baixar. Lembrava-se do ar cansado da irmã,

com o cabelo preso num carrapito e uma determinação invejável. Tali

soube, ao vê-la, que Rosario estava destinada a ser a líder da Ordem. E

se a tivessem matado por causa disso? Juan não conseguia nem queria
perceber a política da Ordem, nem a profundidade das ambições de

Rosario. Era para isso que Stephen servia.

Juan desprendeu-se da sua mão e, num movimento que a ela lhe

pareceu rapidíssimo, tirou a máscara de oxigénio da cara. Antes de ir

buscar Bradford, Tali acariciou-lhe os lábios pálidos, as olheiras

inflamadas. Tinha os olhos tão estranhos como sempre depois da

Cerimónia. Mais transparentes e raiados de pequenos derrames:

pareciam cegos. Tali sabia que melhorariam com as horas. Agachou-se

para lhe beijar a testa e ele perguntou-lhe em voz baixa quanto tempo

passara. Um dia, mais ou menos, respondeu ela. Volto já, disse, e abriu a

porta: Bradford já estava do outro lado, como se alguma coisa o tivesse

alertado. Tali deixou-os sozinhos. Encostou-se na janela do corredor. Lá

fora, o céu ameaçava outra tempestade: sobre o negro da noite,

destacavam-se nuvens roxas e o ar parecia mel. Tali acariciou o talismã

que trazia sob a pele magra do braço, tão pequeno que parecia uma

picada ou alguma imperfeição. Meu Santo, obrigada, disse-lhe, e

prometeu-lhe com palavras que ninguém podia conhecer uma oferenda

perfeita quando regressasse a casa, ao seu templo. Uma vez, perguntou

ao Santo quem era a Escuridão, fez a pergunta de noite, havia anos, entre

vinho e velas, e o Santo respondeu através das cartas: uma e outra vez

saía, no centro da tiragem, a modo de resposta, a Lua. Era a carta que

Juan lhe desenhara e a que Tali menos percebia e que sempre

interpretava como uma mudança importante, uma mudança voluntária.

Mas também era a deceção, o desconcerto, a ilusão. Inclusivamente, a

loucura.

Bardford saiu do quarto e indicou a Tali com a cabeça que podia entrar.

O médico tinha o cabelo um pouco sujo e ela sentiu nojo, como se

tivesse tocado acidentalmente no fundo de uma panela com carne podre.


Juan estava sentado na cama a abotoar uma camisa limpa, branca, de

manga curta. Sobre os lençóis, enredavam-se os tubos do soro e os

elétrodos e o resto. Quando olhou para ela, já tinha menos derrames nos

olhos, que pouco a pouco voltavam ao habitual verde manchado de

amarelo. Juan pediu-lhe que se aproximasse: tremiam-lhe as mãos, não

conseguia abotoar a camisa. Tali ajudou-o. Perguntou-lhe se já podia sair

e ele respondeu-lhe que Bradford dissera que não, mas que ele não

ficaria na cama. Quero que me leves a dar um passeio a pé durante um

bocado, pediu-lhe. Tali acabou de abotoar a camisa e perguntou-lhe se

conseguia aguentar-se em pé. Não suportarei o teu peso se caíres, disse-

lhe. Juan apoiou os pés no chão e as mãos nos ombros de Tali. Quando

se endireitou, respirou fundo para manter firmes os joelhos. Consigo,

disse-lhe. E o Stephen? Está a descansar, mas posso chamá-lo.

A sala que Juan usava para recuperar da Cerimónia ficava no rés do

chão; caso contrário, Tali não se teria atrevido a caminhar com ele, não

podia descer escadas. Deixou que se apoiasse nela o máximo que a sua

força suportava e ele abraçou-a pela cintura. No curto corredor que ia

dar ao pátio não se cruzaram com ninguém, e lá fora também não, perto

da fonte e do salgueiro. Quando se afastaram um pouco da casa, Juan

perguntou:

— Já testaram o Gaspar?

— Vão fazê-lo hoje à tarde — disse Tali. — A mim não me contam

nada, mas ao Stephen sim. Diz que não passou nenhuma das sete provas.

Juan olhou para ela com um sorriso que o fazia parecer muito novo,

um adolescente. Tali não lhe encontrou na cara nenhum vestígio do

homem que a aterrara na noite anterior. Sentaram-se num cadeirão, um

dos muitos que Mercedes mandara levar para o jardim para substituir os

bancos de madeira e metal, tão incómodos. Tali sentou-se numa ponta e

Juan a seu lado, mas manteve o tronco direito para poder respirar
melhor. O jardim estava muito escuro. Para que o ar-condicionado

funcionasse, tinham de apagar o maior número de luzes possível, mesmo

com o gerador ligado. A casa de hóspedes estava cheia e tentavam

mantê-los confortáveis. Era-lhes proibido aproximarem-se da casa

grande, onde permanecia o médium.

— Não sabes a força que o miúdo tem — disse Tali. Juan não

respondeu. Deixou-a falar. — Tivemos de trabalhar muito. É por ser

pequeno?

Juan endireitou-se no cadeirão para lhe responder. Já tinha o branco

dos olhos quase normal.

— Não. Precisamente por ser pequeno devia ter sido fácil.

— Bem, também não foi um parto difícil. Mas custou. Fugia para

todo o lado!

Juan passou a mão pela testa. Não estava a transpirar, apesar do calor

húmido e ameaçador.

— Tenho um favor a pedir. Quero mantê-lo assim. O Gaspar.

— Mais vale, Juan, até ires embora estará bloqueado.

— Não me refiro a isso.

— Juan, para falarmos seria melhor usarmos o silêncio, não?

Ele negou com a cabeça. Estava agitado.

— Hoje consigo sentir as plantas a crescer, consigo ouvir cada

sussurro da casa, os passos dos convidados, até os lamentos daqueles

que a Mercedes mantém escondidos no túnel. Ninguém nos está a ouvir.

A não ser o Stephen, que se está a aproximar. Estamos sozinhos.

E, então, pediu-lhe: quero que mantenhas o meu filho bloqueado

para sempre. Preciso de saber se consegues fazer isso. Tali disse que

podia tentar, mas também lhe explicou que era muito doloroso tentar

anular alguém tão novo. Sentira, enquanto fazia os trabalhos para o

bloquear, que estava a magoar fisicamente o rapaz. Foi como se gritasse,


disse Tali, e recordou o calafrio, a sensação de estar a cortar músculos

ao manipular o boneco feito de sangue, cabelo, roupa e ossos. Que

estava a afogar um gato forte, recém-nascido, desesperado por viver.

Stephen teve de traçar os signos muitas vezes, porque se desvaneciam,

como se lhes faltasse força, como se uma mão os apagasse. Manter esse

estado durante muito tempo era possível, mas trabalhoso, e, julgava Tali,

seria pernicioso para Gaspar. E letal para ela e para Stephen, se fossem

descobertos.

Os olhos de Juan estavam frios.

— Não vos vão descobrir se trabalharem no Templo. O signo de

proteção que lá deixei esconde tudo o que acontecer lá dentro.

— És tão sorrateiro, não me disseste que o fizeste por causa disso.

— Consegues manter o meu filho bloqueado?

— Não sei o que acontecerá quando crescer.

— Quando crescer, logo se verá. Ninguém lhe vai ensinar nada.

Preciso que continuem a acreditar que não serve. A mínima suspeita

seria suficiente para o começarem a usar.

Stephen entrou no jardim pelo caminho que ia dar à casa de

hóspedes. Sentou-se de cócoras à frente de Juan e observou-o

atentamente. Dormira; parecia aliviado.

— A minha mãe considerou a Cerimónia magnífica e quer ver-te

quando te sentires bem. O teu filho está com a Marcelina.

— A Tali contou-me que o Gaspar não superou nenhuma prova.

Juan lembrava-se claramente das sete provas. Eram simples e

eficazes. Ele superou todas sem o menor esforço muito antes de se

manifestar. Gaspar também teria conseguido sem a intervenção de

Stephen e Tali.

— O rapaz pode vir a ser incrível se o treinares. Se me permitires

treiná-lo. A Rosario queria isso e tu sabes que sim.


— E treinou-o bastante. O Gaspar já sabe ler as cartas do Tarot e tem

seis anos. Não quero reviver essas discussões. Não vamos discutir. A

decisão é minha. Mas eles não se vão resignar, pois não?

— Claro que não. Testarão o rapaz uma vez por ano ou quando

considerarem necessário. Não me disseram como o farão, mas a isso não

te podes negar.

— Acabo de pedir à Tali que mantenha o Gaspar bloqueado; tens de

a ajudar.

Stephen suspirou.

— Olha: sei que, neste momento, a prudência te é indiferente, mas

ter esta conversa aqui é uma loucura.

— Vais ajudá-la?

— Claro que sim. E já chega, já chega.

Stephen pegou nas mãos de Juan. À semelhança de Tali, acariciou a

ferida da palma da mão. Vou buscar o Gaspar, disse.

Quando Gaspar entrou no jardim, com sono nos olhos e

acompanhado por Stephen, estava muito sério, até ver o pai, e então

correu e subiu para cima do cadeirão e abraçou-o com tanta força, que

Tali teve de olhar para o outro lado, para a noite e a sua tempestade, para

as luzes da casa, as orquídeas brancas que pendiam sobre o musgo das

árvores.

Juan e Gaspar dormiram e passaram a manhã juntos: jantaram e

tomaram o pequeno-almoço na cama, viram televisão. Juan sentia a

particular distância posterior à Cerimónia: um excesso de sensibilidade

misturado com cansaço e um certo atordoamento.

Gaspar não lhe falou das provas a que a avó, Florence e Anne o

tinham submetido. Juan não queria perguntar. Tê-las-ias confundido

com uma brincadeira? Acabaria por contar-lhe. No cansaço das horas


que se seguiam a inconsciência, preferia aquela suspensão. No entanto,

conhecia suficientemente bem o filho para saber que, se não mencionava

o que acontecera, era porque ainda estava a matutar nisso. E quando

Gaspar se calava e pensava, era porque alguma coisa o incomodara,

porque ainda não encontrara as palavras certas para verbalizar o que

sentia. Precisava de tempo e Juan estava disposto a conceder-lho. Falava

de outras coisas. Do jardim zoológico onde fora com Marcelina. É para

tomar conta dos animais, dizia-lhe, porque as pessoas caçam por

maldade. Por maldade. Juan sorriu: copiara a expressão de alguém. Dava

para ver claramente o trabalho que Tali e Stephen tinham feito ao filho.

Mas ele ainda conseguia adivinhar o que sentia e falar com o filho sem

pronunciar palavras. O que já não pressentia era a vibração que se viera

a acentuar desde a noite em que ambos viram o fantasma da mulher

grávida no hotel. A vibração era tensa e palpitante como uma dor de

cabeça. O rapaz estava melhor sem esse fardo.

Bradford entrou no quarto várias vezes durante a noite para ver se

Juan estava bem. E também a doutora Biedma. Gaspar dormia tão

calmamente a seu lado, que nem sequer acordou em nenhuma das

muitas vezes que Bradford mediu a tensão de Juan. Era tão agradável

cobrir-se com o lençol, sentar-se na cama e contemplar a noite pela

janela, deixar para trás o sangue salpicado, as mãos doridas pela

transformação, a visão dos enviados para o sacrifício, de olhos vendados

e bocas abertas.

E, sobretudo, deixar para trás uma nova certeza. Não foi ele que

abriu a Escuridão para Rosario. Mais ninguém a podia abrir e ele não o

tinha feito. E como mais ninguém era capaz de abrir a Escuridão, ela

não podia estar lá. O demónio tinha-o baralhado. Não era imune às suas

sugestões, mas gostava de acreditar que sim. Quanta arrogância. Era um

alívio saber, fosse como fosse, que Rosario não estava nas florestas de
mãos, nos campos de bustos, nas florestas de ossos que ela considerava

um templo. Ou no vale dos enforcados, onde homens e mulheres

estavam pendurados pelos pés, onde passava a eternidade Eddie, o irmão

mais novo de Stephen, o rapaz treinado para ser médium e que

fracassara. Naqueles ermos nunca havia seres vivos, no entanto. Apenas

restos humanos. Ou haveria mais alguém, na Ordem, capaz de abrir a

Escuridão? Teria Mercedes encontrado um médium entre os

sequestrados que mantinha cativos? Poderia ele não se aperceber disso?

Não, disse em voz alta. Não devia voltar a ruminar até enlouquecer.

As horas que se seguiam à Cerimónia eram as mais difíceis quando se

tratava de manter a sensatez.

Depois de tomar o pequeno-almoço, acompanhou Gaspar até ao

passadiço que passava por cima das copas das árvores e que ia dar,

descendo por uma escada íngreme, a uma praia limpa de onde se podia

apreciar o cais principal de Puerto Reyes. Sentou-se na areia grossa e

escura a observar Gaspar a brincar, entretido com ramos e esqueletos de

peixes, com os seus próprios carrinhos, e a chapinhar à beira-rio. Pedira

que ninguém os acompanhasse, exceto os guarda-costas, diferentes dos

que tinham sido contratados em Buenos Aires e que se mantinham à

distância. O rio estava nervoso, cheio pelas chuvas, castanho e opaco.

Marcelina dera a Gaspar, no dia anterior, um balde de plástico, e o rapaz

usava-o para carregar as flores que os jacarandás deixavam cair, as flores

vermelhas da corticeira, todo o tipo de folhas verdes. Juan tinha vontade

de nadar, mas não se sentia fisicamente forte para o fazer. Sempre que

esticava os braços, as mãos ainda lhe tremiam.

Poderia melhorar com os dias ou não. Bradford já lho explicara: não

havia mais nada a fazer do ponto de vista médico. Tinha o coração

dilatado e em insuficiência, era irreversível. Contava com a medicação e

com os avanços da medicina e outros paliativos. O mais provável, no


entanto, era a já imparável decadência até à morte certa, dali a uns

meses, ou a poucos anos, ou a um segundo.

O sol provocava-lhe dores de cabeça.

— Vou trepar aquela árvore! — gritou Gaspar.

Juan lamentou não ter levado nada para beber: tinha sede. Não

queria pedir nada aos guarda-costas. Observou a agilidade com que o

filho trepou o tronco torcido de uma árvore e depois se esquivou dos

ramos até se instalar num relativamente baixo, que montou como se

fosse um cavalo. Aprendera isso durante os passeios com a mãe,

seguramente, quando ambos faziam excursões e ele ficava sozinho,

prostrado. Juan, quando era pequeno, nunca trepou nenhuma árvore.

Uma inveja possessiva encheu-lhe a boca de metal e apercebeu-se de

como era perigosa essa sensação, do que significava para Gaspar, para

ele, para o que lhe restava de sensatez.

Sentiu os passos de Stephen: estava a uns cem metros, vinha pela

plataforma. Alguma coisa tilintava: trazia uma bebida, com gelo. Viu-o

descer com um equilíbrio delicado a escada íngreme e recebeu a bebida

com um sorriso. Era chá gelado: Stephen detestava tereré e erva-mate

em geral, mas deliciava-se com o chá de Misiones, que lhe parecia

bastante melhor do que os seus esforçados cultivadores acreditavam.

— Bom-dia — cumprimentou Stephen depois de se sentar. Juan

bebeu o chá em dois goles e o frio provocou-lhe uma dor aguda no olho

esquerdo. — Querem falar contigo hoje. Claro que respeitarão a tua

decisão se preferires adiar o encontro.

— Não — disse Juan. — Quanto antes, melhor.

Stephen queixou-se do calor e despiu a t-shirt escura. Há muito

tempo que não apanhava sol, a pele grossa e manchada de sardas nos

ombros estava pálida. Tinha os braços dourados até meio, como um

camionista. Nas costas, as cicatrizes gémeas que começavam sob as


omoplatas e se estendiam até à cintura eram grossas e salientes. Juan

acariciou-as com a ponta dos dedos: fora ele a abrir e fechar aquelas

feridas.

Stephen fora para Misiones com a mãe. Contava quinze anos e

Florence pensou que já tinha idade suficiente para assistir. Juan, com

doze, era alto e magro: naquelas primeiras Cerimónias ainda não

compreendia bem o que era aquela sensação nas mãos, aquele desejo de

marcar. Stephen ensinou-lhe o caminho quando se colocou diante dele,

ajoelhando-se e dando meia-volta para lhe oferecer as costas. Depois,

contou-lhe que o corte fora muito rápido e doloroso: Juan lembrava-se

das suas unhas douradas a tocar nos ossos das costelas de Stephen.

Stephen não gritou nem tremeu: agarrava-se à relva com as mãos.

Também lhe falou do alívio que se sentia quando as mãos fechavam a

ferida, as unhas eram então uma carícia. Juan lembrava-se de Florence a

chorar de alegria. Considerava aquilo uma bênção. Tinha um pouco de

inveja, admitiu. Ah, ela ostentaria com orgulho as marcas das unhas de

ouro. Florence sabia que a marca era um compromisso para com Juan,

uma cicatriz de fidelidade. A ideia de a fidelidade do filho mais velho

estar dividida entre o médium e a Ordem não lhe agradava de todo, mas

Florence respeitava e não questionava as decisões da Escuridão. Era uma

honra que a Escuridão tivesse tocado no filho mais velho e era uma

infelicidade que tivesse desprezado Eddie, o filho mais novo, o fracasso

mais importante da sua vida. E era uma pena que não a tivesse escolhido

a ela.

Os marcados tinham um estatuto diferente na Ordem: maior acesso a

conhecimentos, a rituais, a decisões do círculo interno. Tinham sido

tocados pelos deuses. A jovem marcada na noite anterior seria agora

convidada para rituais mais importantes, ser-lhe-iam concedidos

caprichos e, se Juan quisesse, poderia ter uma relação próxima com ele.
Stephen tinha tanta liberdade e tanto acesso a ele não só por ser filho de

Florence, mas também por ser um dos marcados. Com os anos, o laço

tornou-se íntimo, fraternal e sexual. Se isso incomodava Florence, nunca

o manifestou em voz alta. Todos sabiam, no entanto, que teria preferido

esse privilégio para o outro filho. Mas já ninguém falava de Eddie,

desaparecido há quase dez anos.

Gaspar sacudiu o ramo com tanta força, que algumas folhas

atingiram Juan e Stephen.

— Vem já cá para baixo! Não te vou buscar.

Fez-se silêncio e, depois, ouviu-se um lento e hesitante deslizar de

mãos e pernas. A árvore não era alta e Juan sabia que o filho conseguia

desenvencilhar-se sozinho. Em menos de cinco minutos estava de volta à

praia e dirigia-se a correr para ele.

— É mais difícil descer que subir.

— E isso é esquisito?

— Sim porque, por exemplo, com as escadas é ao contrário.

Tinha uma das mãos cheia de folhas e juntou-as à sua coleção do

balde. Olá, disse a Stephen, e sentou-se a seu lado. Quando se pôs a

organizar e a selecionar as flores e as ervas e as folhas na areia escura da

praia, Juan perguntou-lhe:

— Como correram as coisas com a avó ontem? Falaste-me muito

sobre o jardim zoológico, mas nada sobre o que fizeste com ela.

— Foi uma seca. Disse-me para brincar com ela, mas brincámos a

coisas esquisitas que não eram boas. Não gosto de estar com a avó. Com

o avô, sim.

— A que é que brincaram?

Gaspar contou os testes à maneira dele, confusa e caótica, mas Juan

e Stephen, que os conheciam, perceberam-nos facilmente. Vendaram-lhe

os olhos e perguntaram-lhe quem estava no quarto. Gaspar nomeou os


presentes. Não sentia mais ninguém. Ainda com a venda posta, pediram-

lhe que imaginasse símbolos. Como o quê, perguntou Gaspar. Como

números. Ou outros. Ele falou-lhe das flores que via antes das dores de

cabeça.

— Isso não conta para nada? — perguntou Juan.

— Não lhes pareceu relevante. É uma aura de enxaqueca. Não são

imbecis.

O rapaz falava como que em sonhos enquanto amontoava flores

violeta, vermelhas, folhas verde-claras, folhas verde-escuras, cascas de

árvore, como se fossem ingredientes para um caldeirão.

— Depois, fizeram-me caminhar por uma zona esquisita do jardim

zoológico enquanto corriam à minha volta, acho eu. Não sei que

brincadeira era aquela. Uma espécie de cabra-cega, mas assustei-me

com os barulhos e, além disso, alguns não tinham a roupa posta e não

gostei. O avô veio buscar-me, mas só passado imenso tempo. À noite, ou

assim.

— Está bem. E que mais?

— Depois aquela seca de me sentarem em cima de umas bolas na

relva. São de giz, papá?

Juan pensou: dantes eram de sangue, filho, mas a tua mãe proibiu-os

quando cresceste. Admira-me que respeitem a vontade dela.

— E outra coisa chata, queriam que ficasse numa cama com as

pernas torcidas e a pensar em coisas que eles me iam dizendo, como se

imaginasse coisas, mas não as percebi bem. E têm uma mão como a que

a mamã tinha na carteira, se calhar é a mesma.

Juan franziu o sobrolho. Não gostava que se mencionasse essa mão à

frente de Stephen e, além disso, sabia que estava escondida. Se a tinham

encontrado, era um problema grave. No entanto, Stephen falou.


— Não é a mesma. A da Rosario continua bem escondida. Na

Argentina não faltam mortos anónimos e esta casa serviu de prisão

clandestina durante muitos anos.

Juan esfregou os olhos. A dor de cabeça endurecia-lhe o pescoço.

Também a frustração.

— A avó ficou chateada porque, quando ma deram, quase a deixei

cair, é superpesada. A mamã não me deixava tocar-lhe e eu não sei como

pegar-lhe.

— Chateou-se, como?

— Tirou-ma e bateu-me e chamou-me anormal, ou assim. Não sei se

foi anormal. Uma coisa feia. É que me caiu. É pesada.

— Bateu-te.

Gaspar fez o gesto de uma bofetada levando o dorso da mão à face.

— Mas não me doeu. Não doeu a sério.

Juan olhou para Stephen.

— Um dia hei de matá-la — disse. E acrescentou: Gaspar, faz-me

um favor. Monta uma pista de corridas para os carrinhos em forma de

oito.

Gaspar obedeceu, como se estivesse agradecido pelo fim do

interrogatório, e pôs-se a brincar na areia, alisando-a com os ténis.

A reunião decorria na sala principal de Puerto Reyes. A enxaqueca que

se insinuara na praia do Paraná martelava na cabeça de Juan, e a cada

uma das violentas e desiguais batidas do seu coração, as náuseas iam

crescendo. Sentou-se no inadequado sofá de pele, inadequado porque

ficava logo húmido, era péssimo para o calor e para a humidade e aquela

sala, demasiado grande, não tinha ar-condicionado, apenas uma

ventoinha de teto. Deixara Gaspar a dormir ao colo de Marcelina. A dor

obrigava-o a fechar os olhos. Era tarde para tomar um medicamento e,


além disso, sabia que precisava de algo muito forte; e um analgésico

poderoso baixar-lhe-ia demasiado a tensão, mais do que já tinham feito

os medicamentos de Bradford, cujos vestígios lhe percorriam com

pequenas picadas a parte interna do cotovelo. Do sofá conseguia ver o

quadro de Cándido López, Assalto da 3.ª Coluna Argentina a Curupaiti.

Um retângulo de metro e meio de comprimento com os seus

homenzinhos de escadas, o ferido na maca, algumas explosões, o

homem no cavalo branco que parecia alheio a tudo, com a espada para

cima, ao fundo as explosões como nuvens baixas, o chão pantanoso, o

céu enevoado de guerra. Era uma beleza. Era a morte longínqua,

observada, infantil.

Stephen preparava bebidas frias como se a conversa que se seguiria

fosse um intercâmbio amável e sem chantagens, uma espécie de chá

social. Ele, porém, bebia whisky da interminável adega de Adolfo. Juan

recusou um copo carregado de gelo: a dor piorava com o álcool. Stephen

aproximou-se dele e passou-lhe gelo pela nuca.

— Isto ajuda?

Juan não respondeu. Não ajudava, mas precisava que Stephen se

mantivesse por perto. Há muito que lhe demonstrara a sua lealdade e de

uma maneira tão definitiva, que era impossível duvidar.

Apenas Mercedes, Florence e Anne Clarke estavam na sala. As

mulheres, as líderes. Florence usava um vestido às flores, de seda, que

parecia flutuar à sua volta. Era alta e, nessa tarde, quase não tinha

maquilhagem ou joias: ao natural, a sua pele demasiado branca possuía

um toque acinzentado e os dentes, um pouco amarelados, só apareciam

quando sorria. Tinha o cabelo, comprido e indomável, apanhado num

carrapito. Disse que, desta vez, a Escuridão se projetara de uma maneira

única. Doze tocados pela Escuridão, o maior número jamais alcançado.

Juan quis confirmar quantos tinham sido engolidos e ela, com um


orgulho desmedido, disse oito, e disse eight, fazia isso, misturava o

inglês com o castelhano quando se dirigia a ele, que percebia ambas as

línguas.

Por isso, queremos, antes de mais nada, agradecer-te, disse Florence.

So grateful. Porque os deuses falaram e o registo das suas palavras

também foi extenso. Sabemos como é duro para o teu corpo fazer isto, e

sabemos que estás cheio de dúvidas. É normal um médium duvidar. Mas

nós temos de proteger a Ordem da loucura dos médiuns. Estamos cientes

da tua deterioração. Estamos cientes do preço que vocês pagam por

serem a porta.

— O médium está aqui — disse Juan. — Não fales como se te

estivesses a referir a outra pessoa. Antes de me comunicarem o que me

têm de comunicar, preciso de saber uma coisa e vão responder-me.

Estou farto do silêncio.

As mulheres levantaram a cabeça, expectantes, e Juan ergueu a voz.

Lá fora, os cães ladravam.

— Durante a viagem para cá, invoquei uma entidade. Porque é que o

fiz, não é algo que vos tenha de explicar. Respondeu a uma das minhas

perguntas com palavras que interpretei de um modo peculiar. Errado. E

persisti no erro. A modalidade da minha persistência e a dificuldade que

tive em convencer-me de que aquilo em que acreditava era uma idiotice

deram-me a pauta: a confusão era um trabalho mágico. E muito bom,

porque não o senti. Foi preciso vir para esta casa para me aperceber do

meu erro. Para compreender quem são «os que me falam». E são vocês.

Olhou para as mulheres demoradamente. Estavam calmas. Anne,

com o seu cabelo branco perfeitamente penteado, era a única que parecia

um pouco agitada. Era a mais velha e a mais escrupulosa.

— Vocês subestimam-me. Sabem que é possível que eu esteja a

chegar ao fim do meu ciclo. Porém, como viram ontem à noite, o ciclo
ainda tem descargas muito poderosas.

Florence ia falar, mas Juan levantou a mão.

— Agora não. Quero que me digam porque é que me andaram a

manipular.

Foi Florence que respondeu, e de maneira muito concreta:

— Temos a Rosario — disse. — Temo-la cativa num lugar onde não

a podes alcançar. Out of reach.

Juan fechou os olhos. A dor alastrara até à mandíbula, cerrando-lhe

os dentes.

— Onde está?

— Não sabemos. Tens de descobrir.

— Fizeram um esconjuro sem saber como desfazê-lo. É isso que me

estão a dizer.

— Sim, correto — Florence cruzou os braços.

— Porque é que mataram a Rosario? Para me diminuírem o poder?

Por pensarem que ela queria controlar a Ordem?

Mercedes levantou-se.

— Não matámos a minha filha. O sangue respeita-se. Teve um

acidente.

— E, então, sentiram que era a vossa oportunidade.

Mercedes olhou para ele fixamente, atrás dos óculos escuros. Não

disse nada.

— Não acredito em vocês. Não faz mal. Para onde mandaram a

minha mulher?

— Não sabemos e não estamos a mentir — continuou Florence. —

Na última Cerimónia, os deuses falaram de diferentes lugares de morte.

Mandámos o espírito dela para um deles. Mas ainda não nos mostraram

como procurá-la e não conseguimos encontrá-la. We just can’t. Like you.

Todos os anos, quando fizeres a Cerimónia para nós, poderás perguntar


à Escuridão onde fica esse lugar e o que fazer para a tirar de lá. Mais

cedo ou mais tarde, acabará por responder.

— É um lugar de sofrimento?

— É — disse Florence, friamente. — Temos de garantir a nossa

proteção e o teu compromisso. Não a podes deixar lá, não é? Tens de

procurá-la, e tens de procurá-la cá, na Cerimónia. Talvez a possas

procurar por tua conta, isso não nos diz respeito. Só tens de saber que a

resposta que procuras está aqui.

Juan fechou os olhos fingindo dor, mas, na verdade, estava a estudar

a energia da divisão para ver se seria capaz de lhes fazer mal. Quando se

aproximou de Mercedes e de Florence, percebeu. Havia algo a protegê-

las, e era poderoso. Retrocedeu. Quando se teriam tornado tão fortes, se

as três nunca tinham sido mais do que umas notáveis bruxas práticas?

Percebia: aquilo era a diminuição do poder. O que antes parecia mínimo,

agora era importante e potente. As condições igualavam-se. Ouviu,

como que em sonhos, a voz de Stephen:

Se as eliminares, jamais te dirão o que fizeram à Rosario. Não lhes

faças mal.

Está nos textos, dizem. Posso aceder aos textos.

De certeza que esconderam muito bem o texto. Vamos descobrir, mas

só se mantiveres a calma. Tens outros caminhos onde procurar e elas

não os conhecem. Não te esqueças disso. Vamos encontrá-la.

Juan não soube o que dizer. Queria dizer que Rosario estava mesmo

na Escuridão. De alguma maneira. O demónio não lhe tinha mentido,

nem ele o interpretara completamente mal. Só lhe faltava informação.

— É a nossa maneira de garantirmos o teu regresso e de nos

assegurarmos de que continuarás a fazer invocações porque, caso

contrário, estarás a abandoná-la nesse lugar — prosseguiu Florence. —

E de que aceites o Ritual com o teu filho quando for necessário.


— E vais dar-nos pistas para que todos o possamos fazer com êxito

— acrescentou Mercedes. — Até agora, só o médium o pode fazer. Não

podemos consentir que nada interrompa o processo.

— A Rosario podia interrompê-lo — disse Juan. — Vocês estavam

convencidas de que ela teria esse poder sobre mim, de que protegeria o

filho.

Não obteve resposta. Juan continuou:

— Mercedes, já não te restam filhos para moldares a teu bel-prazer.

Ela sorriu.

— Juan, a dor de cabeça tornou-te estúpido. Não tenho o meu filho,

mas tenho o meu neto.

— O corpo do Gaspar é meu.

— Se fracassares, não. Se decidires fracassar como, receio eu,

pretendes, será meu. O que importa é o sangue.

Voltou a sorrir e olhou para Florence, que disse:

— Juan, nunca tivemos um médium comparável a ti. Precisamos de

proteger-nos do que te está a acontecer. Os médiuns perdem a cabeça.

They lose their mind! It happened too many times. Tornam-se

incontroláveis, revoltam-se. Nós percebemos. Mas o que a Escuridão, o

nosso deus antigo, nos está a dar não deve ser interrompido por um

capricho ou por uma loucura momentânea. Nem sequer pela tua doença.

Temos de proteger-nos do teu poder. A mensagem não pode ser

interrompida só porque tu decidiste virar-te contra nós. Está a

ensinarmos a vencer a morte. Está a ensinar-nos a contactar com outros

Deuses Antigos. Imagine that. Tens de continuar a fazer invocações para

nós. A tua mulher disse-nos que já não querias fazer isso e nós não

podemos permitir tal coisa. E sabes perfeitamente que, quando é

necessário fazer algo pela Ordem, eu não retrocedo. I’m so terribly


sorry. Estou-te mais agradecida do que ninguém neste mundo. Mas não

posso permitir que desistas nem que exerças o teu poder sobre nós.

— Pensam mesmo que posso deixar de fazer invocações? Que a

Escuridão o vai permitir?

Florence inclinou a cabeça para o lado, quase fazendo desabar o

carrapito. Uma madeixa de cabelo vermelho descaiu-lhe para a testa.

— É possível que sim, por um tempo, se quiseres. O nosso receio é

que decidas pôr termo à tua vida. You can kill yourself, e essa seria a tua

maneira de deixares de fazer invocações. Não seria o primeiro suicídio

de um médium.

— Também posso morrer durante as Cerimónias.

— Duvido. Pelo menos, sei que podemos salvar-te e é um risco que

temos de correr. Agora que a tua mulher foi apanhada, não creio que o

faças, creio que vais continuar para a libertares. A Escuridão dir-te-á

onde está.

— Além disso — prosseguiu Mercedes —, não julgues que nos

vamos conformar e que não voltaremos a testar as aptidões do meu neto.

A minha filha pode ter-nos mentido ou não, isso não é importante. Era

ambiciosa e queria herdar a Ordem, e não a culpo por isso, mas nunca

confiei nela. O Gaspar poderia revelar-se mais tarde.

— O Gaspar não é o meu herdeiro. Não é um médium.

— Ainda não. Se for, será marcado como tu foste. A mão esquerda

encontra o seu caminho, alarga os seus dedos. Não é possível esconder

uma coisa dessas. It radiates. Sei o que sentes por ele — disse Florence.

— Já vos vi juntos. Estão cheios de amor. Achávamos que o rapaz tinha

talento. Continuamos a achar, mesmo que ainda não se tenha

manifestado. Se tiver, será o teu herdeiro. Se não tiver, sei que será

difícil para ti fazeres o Ritual quando o momento chegar. Mas usarás o

corpo dele e vais querer fazê-lo. Quem não haveria de querer? É um ato
de amor. Temos filhos para perdurarmos, são a nossa imortalidade.

Lamento que o Ritual seja impossível agora, o rapaz é demasiado

pequeno. Conheço as regras. É melhor seres tu a ocupar o corpo dele,

não é? Se decidires suicidar-te, outra pessoa poderia ocupá-lo. E tu não

queres isso, of course you don’t.

Juan respirou fundo antes de falar.

— Nestes anos, até o Gaspar ter idade para fazer o Ritual, quero que

o deixem em paz. Não quero que saiba nada de vocês. Nada. Quero que

seja um rapaz normal durante o tempo que lhe restar de vida.

— Claro que sim, meu querido — anuiu Florence, olhando para

Mercedes com enfado. Não o irrites, diziam os seus olhos. — Não

vamos destruir o entendimento que tínhamos até agora contigo e com a

Rosario: a vida será normal. Um médium, como bem sabes, revela-se

sozinho. And it’s a powerful revelation. Nós vamos aperceber-nos. Há

sempre membros da Ordem perto de ti: eles já vigiavam o teu filho e

continuarão a fazê-lo. Se o Gaspar se revelar, seremos informados. Um

médium não pode esconder-se indefinidamente. De resto, estará perto da

rapariga, do milagre negro. Ela extrairá dele todo o seu potencial, foi

tocada. Não queres trazê-lo para cá, todos os verões, para a Cerimónia?

Pois não o tragas. I agree with you. Pode ser perigoso. E se a Escuridão

o desejar e perdermos o corpo dele? A decisão é tua e eu não me oporei

a ela.

— Nenhum de vocês se aproximará dele. Não terá qualquer relação

com a Mercedes ou com o Adolfo.

Mercedes levantou-se da cadeira. Juan viu-lhe a fúria nos olhos.

— Será vigiado e enviar-nos-ão relatórios. É impossível escapar. Não

terá para onde ir. O corpo dele é precioso e necessário. Encontraremos

maneiras de te mantermos vivo até ele ser mais velho e poder receber-te.

— Vocês nunca me mantiveram vivo. Devo esta vida ao Bradford.


— Nisso, nunca estaremos de acordo. Ele foi fundamental. But we

helped too.

Florence continuou a falar, mas Juan já não a ouvia. Estava

demasiado zangado para discutir. A falta de Rosario trespassou-o com

uma certeza feroz. Tinham vencido e, a ele, só lhe restava perder. Sentiu

a dor a instalar-se atrás dos olhos. Tinham Rosario e teria de procurá-la.

Devia fazê-lo porque ela teria feito o mesmo por ele. Levantou-se e

dirigiu-se para a porta.

— Não me sigam — disse. — Posso matar-vos a todos. Os médiuns

não são suicidas? Não enlouquecem?

Sorriu-lhes. Com um resquício de força arrancado à dor, retirou-se

da sala. Lá fora a luz do sol era branca, como no deserto.

Juan pediu a Stephen que o deixasse sozinho, queria descansar no

quarto; a dor de cabeça não o deixava pensar ou caminhar. Encontrou

Gaspar a dormir, de barriga para baixo. Cheirava a cloro da piscina e

tinha o cabelo húmido. Preferiu não o acordar. Sempre lhe parecera

estranho que os Iniciados fossem à Cerimónia sozinhos. Quantos teriam

vindo daquela vez? Cinquenta, sessenta? E os filhos deles? Porque todos

tinham filhos. Eram ricos. Podiam pagar baby-sitters até as crianças

serem suficientemente crescidas para assistirem também. E a idade

chegava depressa, exceto no caso de Adela, que foi um acidente: uma

vez, a Escuridão, através dele, arrancou um braço, pelo ombro, a um

rapaz de dez anos. A mãe, em vez de ter a reação habitual dos Iniciados,

ficou histérica e ameaçou expor tudo, denunciá-los. Florence não

tolerava esse tipo de rebelião. E a mulher foi lançada, com pedras nos

pés, ao rio Paraná. Mais uma para a lista de todos os mortos que se

escondem nos leitos dos rios argentinos. Os crimes da ditadura eram


muito úteis para a Ordem, forneciam-lhes corpos, álibis e correntes de

dor e de medo, emoções úteis para a manipulação.

Juan aumentou ligeiramente a temperatura do ar-condicionado e

cobriu Gaspar com um lençol. Procurou na mala a seringa e o analgésico

injetável: já era tarde para combater a enxaqueca com comprimidos.

Usou o cinto para fazer um garrote no antebraço e procurou uma veia

que pudesse usar. Mal conseguia ver o que fazia: a dor de cabeça

obnubilava-lhe a visão. Mas conseguiu. Já não receava os efeitos que

dali podiam advir: a ideia de se atirar ao rio perseguia-o como um

zumbido. Mas se decidisse matar-se no rio, teria de levar com ele

Gaspar. Ou pedir a Stephen que procurasse o seu irmão no Rio de

Janeiro para lhe entregar o menino. Mas a Ordem de certeza que

arrebataria o rapaz ao irmão, mais cedo ou mais tarde. Para ser o

recipiente de Mercedes. Para ser o médium, depois de descobrir e

destruir o trabalho de Stephen e de Tali, e de os matar aos dois. Estavam

em perigo. Ele concebera a proteção do filho com elementos oriundos do

Outro Lugar, de uma zona da Escuridão que a Ordem desconhecia. E

ainda precisava da proteção definitiva e derradeira, que tardava a chegar.

O Senhor da Paciência, pensou, e tocou nas costas. Esperou pelo efeito

do analgésico de olhos fechados. Não era imediato. Não lhe tiraria a dor,

mas adormeceria a intensidade das marteladas, a pressão nas fontes, o

latejar que parecia bombar ferro quente em vez de sangue.

Fechou a porta devagar, guardou uma pequena lanterna no bolso

traseiro das calças de ganga e, tentando não fazer barulho, dirigiu-se

para o túnel que ligava as casas. Havia alguns anos, usava-se para as

excentricidades: para que os criados não se molhassem quando chovia e

não sujassem a casa de hóspedes e a principal com lama encarnada; para

guardar móveis e para encontros clandestinos; uma ou outra vez,

também já servira como uma espécie de lavandaria subterrânea de louça


e roupa. Mas a inundação deu cabo do túnel: a lama arrasou os tijolos,

provocando uma avalanche. Exceto o primeiro troço, que ainda

conservava a velha porta de ferro com o seu cadeado.

Juan abriu-a sem sequer pensar: não existia uma porta que lhe

resistisse. Quando entrou, sentiu a dor e o sofrimento das crianças que lá

viviam. Acendeu a lanterna e caminhou quase de joelhos: o túnel era

baixo e, para ele, que media dois metros, era estreitíssimo. Então,

encontrou o primeiro rapaz.

Estava numa jaula de animais, seguramente trazida do jardim

zoológico vizinho. (Tem tucanos, papá, os tucanos são incríveis!, gritara

de emoção Gaspar.) Lembrou-se de quando Rosario fora obrigada a

tomar conta de outra leva de crianças sequestradas, que Mercedes

guardava numa das suas terras da região de Buenos Aires, e de como ele

decidiu ajudá-la. Dessa vez, também estavam em jaulas. Agora, o

primeiro rapaz estava numa jaula enferrujada e suja que, provavelmente,

teria servido para transportar animais. Tinha a perna esquerda atada às

costas numa posição que, forçosamente, lhe teria fraturado a anca.

Como era muito pequeno (um ano?, era tanta a imundície, que não dava

para perceber), o mais certo é ter sido fácil parti-la. Também já tinha o

pescoço torto, por causa do pé, e, quando Juan o iluminou mais de perto

com a lanterna, para o ver melhor, reagiu como um animal, abrindo a

boca e rosnando; tinham-lhe cortado a língua em duas, tornando-a

bífida. À sua volta, dentro da jaula, havia restos de comida: esqueletos

de gatos e alguns ossos humanos pequenos.

Juan avançou. Mais jaulas. As outras crianças eram mais velhas.

Muitas olhavam fixamente para ele com os seus olhos negros: alguns

eram guaranis que provavelmente não sabiam falar espanhol. Outros

talvez fossem filhos dos homens e das mulheres que se entregavam em

sacrifício à Escuridão. Uns reagiam à sua presença indo para o fundo da


jaula, outros limitavam-se a abrir os olhos. Viu crianças com os dentes

limados de tal forma, que as suas dentaduras pareciam serras; viu

rapazes com marcas óbvias de tortura nas pernas, nas costas, nos

genitais; cheirou a podridão das crianças que já deviam estar mortas.

Deixariam lá os cadáveres para que o cheiro se tornasse familiar para os

outros? Rosario fora obrigada a enterrar os enjaulados que morriam. Viu

feridas supurantes, infeções, olhos em cima dos quais rastejavam os

bichos da humidade e do rio. Parou após uns cem metros de jaulas

cheias de crianças devastadas, vivas e mortas. Deduziu que as jaulas

ocupassem os cem metros restantes do túnel. Regressou, disposto a

enfrentar Mercedes, que o esperava ao pé da porta, ao pé do seu

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invunche . Juan apagou a lanterna quando Mercedes acendeu uma

lâmpada fraca, a única iluminação do túnel.

— Com que então, esta é a tua nova coleção, Mercedes.

— Vai resultar. Foi o nosso deus que disse, deu instruções para que

assim seja.

— É um deus louco, como tu.

— Limito-me a seguir as ordens da Escuridão.

Juan riu-se, e o seu riso retumbou em ecos obscenos nas paredes do

túnel. Algumas das crianças moribundas e feridas queixaram-se. Do

fundo, chegavam gemidos agónicos.

— Isto não se trata de nenhuma procura de um médium, Mercedes.

Isto sempre foi, e somente, para te dar prazer.

Mercedes relaxou os braços, que até então tinha cruzados ao peito.

— Agora não é belo, mas sê-lo-á! Quando trabalharem juntos! Há

muitos deuses! É o que diz o nosso e ordena a procura de outro médium.

Está no livro!

Juan aproximou-se de Mercedes até conseguir vislumbrar o brilho

dos seus olhos atrás dos óculos escuros que usava constantemente,
mesmo na semipenumbra do túnel.

— Onde desencantas estas crianças? São indígenas, Mercedes?

Filhos dos prisioneiros? Porque é que não pedes um sacrifício, uma

entrega, aos Iniciados ricos da Ordem? Rouba-los à noite ou vendem-tos

as mães mortas de fome? Os pais sabem onde os filhos passam os seus

dias antes de serem lançados à Escuridão? Aprendeste umas quantas

coisas nas salas de tortura dos teus amigos.

— Quanta compaixão. Porque não os salvas? Tens poder para o

fazer.

Juan apontou a lanterna aos óculos escuros de Mercedes. Queria ver-

lhe os olhos. Queria cegá-la.

— Isso seria outra crueldade. Estão muito para além de qualquer

ajuda.

Com a lanterna, Juan iluminou uma mão e Mercedes começou a

balbuciar e a pedir piedade. Tentou fugir pela porta, mas a vontade de

Juan fechou-a hermeticamente. Estava sozinha no túnel com o deus

dourado e senhor do portão.

— Sabes por onde passava este túnel? Não vai de uma casa à outra

em linha reta. Os que o construíram tiveram de contornar alguns lagos

subterrâneos por estar muito perto do rio. E, a dada altura, vários metros

depois do lugar onde abateu, vai dar ao Lugar de Poder. Estás a

perceber?

A mão iluminada estava agora rodeada de luz negra.

— As médiuns são muito mais poderosas. Têm o poder de fazer

invocações onde quer que seja, só precisam de reunir as condições de

concentração próprias ou adquiri-las num ritual. Nós, os homens,

dependemos dos Lugares de Poder. Não são poucos. Alguns médiuns

limitam-se a esbarrar neles; outros, aprendem a encontrá-los. Eu sei

encontrá-los. Também sei qual é o seu raio de alcance. Longe desses


lugares, somos quase normais. Eu tenho um talento natural, mas suga-

me muita energia. Longe do Lugar de Poder, Mercedes, tu e eu não

somos assim tão diferentes. Perto, sucede o contrário.

A mão irradiou a luz escura, aguçada, uma faca de sombra.

Aproximou-a da cara.

— Felizmente para ti, este deus está entediado e só quer saber se

mataste a Rosario. Se mataste a tua filha. Quero que o reconheças,

Mercedes, porque esta mão não te vai deixar nenhuma pele por cima dos

ossos. Eu não respeito o sangue. Não sei o que isso significa.

Mercedes tremia. Juan enfiou os dedos entre as grades da jaula e,

com um movimento simples, degolou a criança invunche, que mal se

mexeu. O seu sangue quente inundou os sapatos de Mercedes.

O resto das crianças, enlouquecidas pelo cheiro salgado, rugiam.

— E então. Quem é que a executou. Estive com o motorista do

autocarro que a atropelou. Nem sequer se lembra do acidente. Foi

enviado. Tiveste ajuda, claro. Porquê? O que é que ela te disse?

O pranto de Mercedes surpreendeu Juan. Era convulsivo e triste, um

pouco desesperado.

— Planeava matar-me. Sabias? Não te contou? Tive de me defender.

Juan lembrou-se de Rosario com as suas pulseiras de prata e a sua

fita branca no cabelo, e de como era capaz de falar em guarani com uma

rapidez que pasmava toda a gente. Rosario com os seus perfumes caros e

o lápis entre os dentes quando lia e aproximava a ventoinha para o ar lhe

acertar nas costas, e não na cara. Rosario e as suas listas e os seus dedos

manchados de tinta de caneta ou de giz.

Delicadamente, desenhou um círculo à volta da boca de Mercedes e,

na mão aberta, sobre a palma, recebeu os lábios e os dentes da sogra. A

seguir, cauterizou a ferida. Os gritos de Mercedes e das crianças

enjauladas ensurdeciam-no, mas continuou o seu trabalho. Limpou um a


um os dentes com a língua e mastigou os lábios perante os olhos

esgazeados de Mercedes, que já não sofria porque, quando a ferida se

fechava, a dor desaparecia. As cicatrizes das feridas que Juan provocava

nunca eram moles como as de uma ferida recente, eram duras e velhas.

Depois, atraiu a cara de Mercedes para a sua e limpou com a língua

todos os rastos de sangue do queixo e do pescoço. Quando acabou,

atirou-a para o chão com um empurrão.

— Devia cortar-te a mão com que bateste no meu filho. Não é nada

para ti, pois não? Mas, com isto — abriu a mão para lhe mostrar os

dentes brilhantes, alguns enegrecidos pelo tabaco e pelas amálgamas —,

tenho material suficiente para que jamais lhe voltes a tocar, nem sequer

o tentarás. Também posso usá-los para te controlar e magoar de outras

maneiras.

Mercedes grunhiu. Com as gengivas a nu e os óculos era ridícula,

horrível. Juan não tinha mais nada para lhe dizer. Saiu e fechou a porta

atrás de si: trancou-a com outro signo que alguns membros da Ordem,

certamente Florence, seriam capazes de reconhecer e de reverter. Mas

não para já. Mercedes passaria algum tempo fechada a ouvir morrer os

seus animais de estimação, a passear naquele túnel insalubre, alimentada

através das grades como os animais do jardim zoológico, a sufocar no

cheiro da sua própria merda e da decomposição das crianças. Não era

importante. Eles tinham vencido e já não lhe restava tempo nenhum,

mas agora sabia o que queria saber. E não o poderiam enganar.

Juan fez a mala calmamente e pediu a Stephen que o levasse até ao

aeroporto. Não podia voltar sozinho: os guarda-costas já estavam em

cima dele e não podia fugir. Custava-lhe respirar e uma tosse constante,

irritante, piorava de hora em hora.


Mercedes ainda não pedira que a resgatassem do túnel. Era

orgulhosa. Juan queria sair dali antes que Florence descobrisse o

pequeno encontro que tivera com a sogra. Gaspar estava acordado e

vestido em cima da cama, à espera. Desde que lhe dissera que

regressariam de avião, estava animado, mas calado, nervoso. Tu tens

medo, uh, o Gaspar tem medo de que o avião caia, troçou dele Juan, e o

filho bateu-lhe com os punhos, fingindo-se arreliado.

Juan atravessou o pátio interior e o alpendre até à casa de Marcelina.

Agradeceu-lhe por ter tomado conta de Gaspar e procurou algo na mala

de cabedal: encontrou um colar que comprara num impulso para Tali no

pomposo hotel casino de Corrientes e que acabara por não lhe oferecer

por pensar que não gostaria muito dele. Eram de pietre dure das minas

de Wanda, situadas perto de Iguaçu. As pedras — azuis, brancas, cor-

de-rosa, verdes, violeta — estavam engastadas e o colar podia ser usado

em várias voltas ou numa só, comprida. Marcelina emocionou-se, tentou

recusar o presente sem convicção e Juan pôs-lhe o colar com cuidado,

tentando que o seu longo cabelo negro não ficasse embaraçado nas

pedras. Fica-te muito bem, disse. Espero que o uses. Marcelina acariciou

as pedras e, depois, tirou do bolso do avental uma pena de caburé.

— É para o menino — disse.

Juan aceitou o amuleto em nome de Gaspar. Depois, pediu licença a

Marcelina para levar as coisas que Rosario lhe pedira para guardar.

Marcelina deixou-o entrar na divisão que usava como quarto de

arrumos. Juan procurou até encontrar uma caixa com o signo

discretamente traçado numa ponta, abriu-a e encontrou, no seu interior,

um saco de plástico, um inocente saco de ir às compras. Sorriu ao ver o

seu conteúdo. Que inteligente ter deixado a relíquia com Marcelina. Era

mais seguro, inclusivamente, do que se a tivesse escondido no templo de


Tali. A Ordem jamais teria revistado os pertences de uma empregada,

mesmo sendo uma empregada de confiança.

Tali estava à espera dele fora de Puerto Reyes, apoiada no carro.

Beijou-a pegando-lhe na cara com as mãos. Ela, em bicos dos pés,

enfiou-lhe os dedos no cabelo.

— Credo, beijaste-me como se fosse a última vez. Tens de passar por

minha casa para ires buscar o que me deixaste da Rosario.

Não, disse Juan com a cabeça.

— É teu. Ela pode enviar-te um sinal.

Tali estudou-o com os seus olhos escuros.

— Não quero que voltes a esta casa, nem à Cerimónia — disse Juan.

— Ei, tu não me dás ordens.

— É um pedido, não é uma ordem. Um favor. Todos os anos, quando

vejo que nem tu, nem o Stephen, entraram na Escuridão, volto a respirar.

Não posso pedir ao Stephen que deixe de vir, porque é a família e o

mundo dele. Mas a ti, posso.

Juan voltou a abraçá-la, a sentir o seu corpo; deixou que ela lhe

enfiasse a mão por dentro das calças para o acariciar.

— Está bem — disse. — Agora não me apetece.

Entreolharam-se no calor, sob o sol, ambos excitados e um pouco

loucos e tristes. Ouvia-se o rio crescido, um pássaro nervoso. A casa,

longínqua e silenciosa, parecia morta. Quando se iriam embora os

hóspedes? O estacionamento continuava cheio. Juan pensou contar-lhe o

que fizera com Mercedes, mas não era o momento certo. Também ainda

não contara a Stephen. Fá-lo-ia no avião.

— Onde tens o carro? Tenho de dar-te umas coisas, mas não quero

que nos vejam.

Tali levou-o pela mão até ao seu Renault 6, que estava

completamente coberto por uma capa de pó avermelhado. Abriu a porta


e Juan instalou-se no banco de trás. Tirou da mala a Mão da Glória que

estivera guardada entre a tralha de Marcelina. Estava em perfeito estado

de conservação. Tali admirou-a, recebendo-a com cuidado.

— Para que é isto?

— A tua irmã queria que fosse tua. Eles não sabem que temos uma

Mão da Glória, não sabem que existe. A tua irmã sempre a escondeu

bem. Bem, escondemo-la ambos.

— És doido! A minha irmã jamais ma teria dado.

— Bom, mas dou-ta eu. Sabes usá-la? Vai servir para manteres o

Gaspar bloqueado. A Mão não é suficiente, mas será uma grande ajuda.

— Sei usá-la. A Rosario não a emprestava, mas sempre gostou de

explicar as coisas. Era generosa à maneira dela, não era?

Juan sorriu-lhe. Era relativamente generosa, sim. Fez sinal a Tali

para que a guardasse. Ela escondeu-a na sua mala de vime. Uma buzina

interrompeu-os. Stephen já tinha as malas e Gaspar no carro. Há

bilhetes, gritou. Temos de estar no aeroporto daqui a uma hora.

— E porque é que não a usas tu?

— Não posso, faz-me lembrar o que fiz e não suporto isso. Não

falhes ao meu filho, Tali — disse Juan. — Jamais deixarão de o vigiar.

— Não te preocupes. Arranjaremos uma maneira, os três. E vais

descobrir o signo final. Tem paciência. O Santo vai ajudar-te a teres

paciência.

— Ele vai crescer e vai mudar. E há que continuar a encobri-lo, há

que evitar que se aproximem dele.

Tali beijou-o na testa para que ele se calasse, para que confiasse.

Juan pensou dizer-lhe que, noutra vida, ela teria sido sua mulher, mas

calou-se. Não havia outra vida. Não queria mentir.

1 Leite quente com uma barra de chocolate dentro. (N. da T.)


2 Em guarani, «menino» ou «adolescente». (N. da T.)

3 Peregrina e/ou penitente. (N. da T.)

4 Infusão de erva-mate em água fria. (N. da T.)

5 Em guarani, «coitado», «coitadinho». (N. da T.)

6 Música tradicional das regiões do nordeste argentino, especialmente de Corrientes. (N. da T.)

7 À tarde. (N. da T.)

8 Que doido. (N. da T.)

9 Bolinhos em forma de ferradura típicos do Paraguai e da Argentina com um sabor semelhante

ao do pão de queijo brasileiro. (N. da T.)

10 Bailarico ao som do chamamé. (N. da T.)

11 Bolo de milho salgado típico do nordeste argentino, do Paraguai e de Mato Grosso. (N. da T.)

12 Pão com chouriço assado e molho de chimichurri (vinagrete picante), salsa criolla (molho

crioulo à base de cebola, pimentão, tomate, etc.) ou outro. (N. da T.)

13 Dança cantada típica do norte da Argentina. (N. da T.)

14 Añera, na canção, quer dizer «mágoa duradoura», «antiga». (N. da T.)

15 Gauchito Gil é uma personagem gaúcha lendária da cultura popular argentina, de origem

incerta, que se converteu num dos santos milagreiros mais importantes do país fora da liturgia

católica. (N. da T.)

16 Güesito é o mesmo que huesito, ou seja, «ossinho». (N. da T.)

17 Personagem da mitologia guarani: um homenzinho com um chapéu característico, que tanto

podia dar presentes às pessoas, como fazê-las desaparecer para sempre. (N. da T.)

18 Ser maléfico e deformado da mitologia mapuche e chilota (ilhas Chiloé). É habitualmente

representado com a cara esmagada e virada para as costas e a língua bífida. Apoia-se numa só

perna, por ter a outra colada à nuca ou ao pescoço. Não fala, ruge, e dedica-se a roubar crianças

para, por sua vez, as converter em invunches. (N. da T.)


A mão esquerda

O doutor Bradford entra na Escuridão,

Misiones, Argentina, janeiro de 1983

«Quero gastar as tuas vísceras com beijos,

Viver dentro de ti com os meus sentidos…

Eu sou um sapo negro com duas asas.»

BALDOMERO FERNÁNDEZ MORENO,

Soneto das tuas vísceras


ENQUANTO ESPERA, AJOELHADO, porque sabe que será esta noite,

Bradford pensa que tudo se parece com aquelas estúpidas histórias sobre

os minutos que antecedem a morte que até os seus pacientes, os mais e

os menos ignorantes — porque todos embrutecem perante a morte —,

lhe contaram alguma vez: a vida está a passar-me diante dos olhos, estou

a ver a minha vida toda. Só que não é exatamente a minha vida, pensa

Bradford, é a minha vida com ele, porque o que aconteceu antes, embora

não careça de sentido, já não tem importância. Sabe que será esta noite,

sente-o no lugar dos dedos que lhe faltam, os dedos ausentes chamam

pelos dedos presentes que a Escuridão há muito comeu, e esta noite a

Escuridão brilha, como explicar a quem nunca viu a Escuridão brilhante

que emana daquele rapaz que agora é um homem e que abre os braços

enorme e pálido, a cabeça para baixo, oxalá erga o rosto no derradeiro

instante, Bradford quer ver-lhe os olhos amarelos antes de entrar na

Escuridão e, agora, ardem-lhe as cicatrizes que lhe deixou no ventre,

acreditou ele, quando aquelas grifas, garras, unhas, nunca é fácil

recordar depois, dedos negros e afiados, não há nada humano ou animal

que se lhe assemelhe, talvez algum instrumento mecânico, uma prótese,

uma máscara, as suas mãos, enfim, lhe desgarraram o ventre, e ele


esperou ver as tripas cinzentas espalhadas na relva na noite quente, mas

não, as feridas palpitavam e não explodiam e não se abriam e não se

abriram e quando o rapaz que já era um homem as cauterizou fê-lo

apenas com o frio, e agora, embora Bradford esteja nu, não consegue ver

as próprias cicatrizes, mas sente-as frias e ardentes, o gelo que queima,

tudo o chama para a Escuridão, será esta noite, oxalá me mostres os teus

olhos, Juan, pela última vez.

Na primeira vez, os olhos do rapaz estavam rodeados de olheiras,

como agora, como sempre. Bradford acabara de se especializar em

cirurgia cardiovascular e de ser admitido na equipa mais prestigiada do

país, a do Hospital Italiano. Trouxeram o rapaz em 1957, um paciente

do hospital que já não podia continuar com o tratamento

medicamentoso. Tinha cinco anos e Bradford decidiu não esperar para o

operar. Seria a sua primeira cirurgia de uma cardiopatia congénita, uma

tetralogia de Fallot. A criança tornou-se inesquecível desde o início:

estava a morrer e, no entanto, olhava para ele com ar desafiador e altivo,

apesar da insistência dos pais, dois imigrantes ignorantes do norte da

Europa que, se não parecessem tão vergados e servis, bem poderiam ser

as reencarnações de Thor e de Freia, mas assim, a choramingar,

coitadinho, o dinheiro não chega, ele vai morrer, senhor doutor, a minha

irmã também sofria do coração, como odiava Bradford tamanha

vulgaridade, dois camponeses que mereciam a humilhação. O rapaz,

não. Tinha a pele azulada, os lábios roxos, já não conseguia andar. Nem

sequer se apercebia da degradação dos pais e parecia concentrado em

respirar, em viver, com uma vontade que a Bradford pareceu monstruosa

e que lhe deu o atrevimento para o operar com os métodos mais

complexos, tanto para os médicos, como para os pacientes da época.

Repete-os agora, ajoelhado, enquanto a Escuridão se abate sobre a sua

cabeça, isto também aconteceu na última vez, a Escuridão que invadia o


céu, e dizem que o seu poder está a diminuir? Não parece, nesta noite de

calor insuportável. Bradford recorda e espera: corte horizontal do

esterno, sob a axila, até ao terceiro espaço intercostal, divisão da

segunda e da terceira cartilagens, entrada na cavidade pleural, o pulmão

esquerdo com aparência normal, e, então, Bradford interrompeu a sua

recordação, alheio ao que sucedia à sua volta, aos gemidos e à frenética

escrita dos escribas — ele nunca ouvira a voz da Escuridão —, e disse a

si próprio que era mentira, que aquele rapaz nunca parecera normal por

dentro, era belo por dentro, tocar no seu corpo frio — nas cirurgias da

época baixava-se tanto a temperatura, que uma operação mais parecia

uma autópsia ou uma lição de anatomia, a não ser porque os órgãos se

moviam, respiravam, sangravam, palpitavam —, o rapaz não era normal

não só por causa do seu defeito cardíaco que, uma vez aberto o tórax, se

revelou ainda mais intrincado do que pensavam os cardiologistas, com

mais defeitos a juntar à tetralogia — uma comunicação interauricular de

uns dez milímetros e uma anomalia muito importante na descendente

anterior da artéria coronária direita que dificultaria imenso a correção

cirúrgica da estenose pulmonar, como teria chegado com vida até àquela

mesa de operações? —, não era normal porque era belo por dentro, tocar

no seu coração esforçado e hipertrófico revelara-se, para Bradford, uma

experiência semelhante à descoberta de uma ninfa num bosque sagrado,

a um amanhecer dourado, à surpresa de uma flor que se abria à noite. As

cores do interior daquele rapaz eram mais intensas, o seu sangue

cheirava a um desconhecido metal salgado, as suas artérias eram

pinceladas cinzentas e azuis e vermelhas. Artéria pulmonar direita

identificada e cortada. A veia superior pulmonar demasiado pequena,

identificada e cortada a artéria subclávia esquerda, transposição da

artéria vertebral para o tronco tireocervical. Clamp na artéria subclávia

no ponto distal à sua origem desde a aorta. Dois clamps na artéria


pulmonar esquerda, o primeiro situado na origem, o outro na entrada do

pulmão. Anastomose realizada com fio de seda entre o final da artéria

subclávia esquerda e a lateral da artéria pulmonar esquerda. Quase não

sangrou depois de se removerem os clamps.

Aquele corpo tem seda lá dentro, pensou Bradford, e lembrou-se de

como o rapaz recuperara depressa, menos de um dia depois já tinha as

faces rosadas e estava sentado na cama, mas, estranhamente, as

enfermeiras, que noutras circunstâncias teriam ficado comovidas, não

sentiam um afeto verdadeiro pelo doentinho. Chamavam-lhe o

doentinho, que nervos, os pacientes deviam ser chamados pelo nome, e

fingiam gostar dele, mas custava-lhes, pois claro que sim, se ele

arremetia como uma pequena besta furiosa contra o seu próprio corpo e

contra todos os que o queriam ajudar e contra os pais, e só abrandava, só

serenava fisicamente com o irmão, um desses rapazes orgulhosos que,

Bradford estava convencido, havia que agradecer a Perón, que ele devia

odiar embora, na verdade, lhe fosse indiferente e até o admirasse um

pouco, não sentia a sua classe em risco e nenhuma consequência

económica porque os membros dos Cultos da Sombra estão sempre

próximos do poder e, por conseguinte, a salvo dos vaivéns. Por isso,

Perón não importava a Bradford nem à mulher — essa fascinante mulher

moribunda —, e estava-lhe secretamente agradecido por aqueles rapazes

cheios de prepotência que não agachavam a cabeça, pois assim eram

Juan e o seu irmão Luis, na época quase um adolescente de olhos cor de

água-marinha, o irmão que passava mais tempo com o rapaz do que os

próprios pais, sempre com pressa, sempre com a desculpa de que tinham

de ir trabalhar, os transportes, os elétricos, pôr comida na mesa,

Bradford odiava-os, tresandavam a bafio e a fumo, e foi por isso, em

parte, por saber que viviam amontoados num pardieiro da periferia, que

pediu uma reunião com o chefe da equipa, o diretor do hospital e o do


serviço de cardiologia, para pedir que deixassem que o rapaz lá ficasse

internado para sempre. Falou da falta de condições de higiene da casa do

rapaz, mas também referiu procedimentos pioneiros que poriam o

hospital na vanguarda da cirurgia não só regional, como também

mundial, e não exagerou as boas chances do rapaz: contrariamente à

maioria dos pacientes com cardiopatias congénitas, não estava

desnutrido, tinha um tamanho normal para a sua idade — o que era

insólito: sempre se manteve assim, embora às vezes perdesse peso — e

suportara a primeira cirurgia paliativa de maneira excelente. Bradford

queria levar a cabo a segunda, mais extensa, a corretiva, dali a poucos

meses. Concordaram. O vice-diretor do hospital era amigo íntimo da sua

família e também membro da Ordem, embora periférico. Gonzalo

Biedma. A sua brilhante filha seria, no futuro, a mão direita de

Bradford, a mão que agora lhe faltava.

Era assim que funcionava a influência: só tinha de pedir para obter o

que queria. Durante muito tempo, Bradford pensou que não passava

disso, de influência, confraria, reuniões de amigos, maçonaria com outro

nome, onde se bebia e às vezes se cantava à volta do piano, reuniões de

mulheres que ostentavam as suas pesadas joias e de homens que

partilhavam segredos de caça e o gosto por livros antigos, reuniões nas

quais, a dada altura, se falava das diferenças entre os seguidores de

Vishnu e de Shiva e se discutia sobre as centenas de cultos tântricos.

Durante muito tempo, o facto de a sua família pertencer a um Culto da

Sombra, à Ordem, apenas significava que se movia num círculo

internacional de dinheiro, privilégios e relações.

Percebeu que a Ordem era diferente quando, aos dezoito anos,

prestes a entrar na universidade, o pai o levou a um ritual no campo, não

na sua fazenda, mas na de Florence Mathers, a inglesa, como lhe

chamava a sua família, era estranho que lhe chamassem a inglesa como
se eles próprios não fossem ingleses, mas Bradford achava que não, que

já não eram, ele nascera em Buenos Aires e o pai também. Falavam a

língua, tinham frequentado os seus colégios, mas já não eram ingleses.

O pai tinha orgulho daquela condição: eu sou um crioulão, costumava

dizer. Bradford não se ralava com isso. Era cirurgião e cardiologista: os

corpos doentes eram a sua pátria.

Depois do ritual, o pai falou-lhe dos médiuns. Da falta de médiuns.

Da existência de muitos Cultos da Sombra com diferentes interpretações

e práticas, alguns antagónicos, outros irmanados. Jorge Bradford

percebeu nessa tarde, no campo, enquanto alguns homens e mulheres

ainda deambulavam como sonâmbulos, tateando o ar e em pranto, pela

fazenda e pelas plantações, assustando os cães e os cavalos, que aquilo

não era um clube. Que Florence era uma sacerdotisa. Jorge Bradford viu

coisas que não conseguia explicar. Coisas que lhe roubaram o sono

durante muitas noites e que o fizeram regressar aos livros do pai, que

jamais desprezara, só estudara com um certo desinteresse. Agora

estavam ao mesmo nível dos seus seminários, dos seus livros de

medicina, da sua esgotante residência. Decidiu passar alguns meses em

Londres para aprofundar os seus conhecimentos de cirurgia e visitar a

grande biblioteca da Ordem na cidade. Florence, a inglesa, que passava

um tempo em Inglaterra entre viagens, permitiu-lhe ler o Livro, anotado

e interpretado pelos especialistas. Bradford acreditou. Tinha as suas

dúvidas, mas depressa seriam vencidas.

Agora, de joelhos, Bradford ouviu um gemido e a Escuridão a levar

um alto Iniciado. Ainda longe, ainda a uns trinta metros. Nessa noite

viria buscá-lo, mas ainda lhe restava tempo. Recordou o seu primeiro

encontro com a Escuridão. Fora inesperado e desagradável, como quem

pisa por engano água de esgoto.


A segunda operação do menino Juan Peterson aconteceu cinco

meses após o shunt paliativo. A hipotermia, recordava Bradford: o rapaz

azul de novo mergulhado em gelo, belo como um morto. Recordava com

que prazer serrou o esterno, a expressão estupidamente desinfeliz da

enfermeira instrumentista, teve de dizer-lhe estamos a salvar-lhe a vida,

deixe-se de telenovelas, e ela murmurou qualquer coisa a propósito da

compaixão que quase lhe fez tremer as mãos, o pior que pode acontecer

a um cirurgião. Era uma cirurgia inédita no país, ou, em rigor, três

procedimentos: encerramento da comunicação interventricular com um

implante, abertura da válvula pulmonar para retirar o músculo espessado

e colocar um implante no ventrículo direito e na artéria pulmonar para

melhorar a circulação nos pulmões. Se tivesse tempo, também fecharia a

comunicação interauricolar. Teve tempo: Bradford conseguiu completar

tudo em seis horas, descansando apenas alguns minutos; não queria

deixar que mais ninguém o suturasse, nem sequer nos pontos mais

simples.

Recordava os instantes que precederam a revelação com uma

precisão insuportável. Quando ia anunciar que terminara, que iam

começar a fechar, o coração, que se aguentara durante tanto tempo,

acelerando-se apenas nalguns momentos, começou a bater de maneira

descontrolada, arrítmica, e Bradford reconheceu a fibrilação ventricular,

o tremor incontrolável do músculo, esse sinal de morte. Deu início à

reanimação manual com cuidado, tinha de ser decidido e delicado, e

ordenou que preparassem o desfibrilador elétrico, um aparelho inovador

que a equipa de cirurgia usava à discrição e com êxito.

Antes de o poder usar, a luz foi abaixo. Foi um apagão húmido,

assim o recordava Bradford, uma humidade fria. Estavam a tentar

reanimar manualmente o rapaz há vários minutos, mas ia precisar de

uma descarga. Um candeeiro a petróleo lanternas velas gerador qualquer


coisa, gritou, e então sentiu, com uma certeza horrível, que outra mão o

estava a tirar de dentro do corpo do rapaz. Bradford gritou, acusou a

equipa de cirurgia, o que é que estão a fazer, e, na escuridão — era de

madrugada —, ouvia nada, senhor doutor, não estamos a fazer nada, o

resto do hospital tem luz, o corte é só aqui, no bloco, e quando alguém

aproximou um candeeiro a petróleo da mesa de operações toda a gente

viu, claramente, que, sobre o peito aberto do rapaz, sobre o instrumento

que mantinha o esterno separado, sobre o coração quieto, pairava o que

só podia descrever-se como um pedaço de noite, mas transparente, talvez

fuligem, fumo espesso, e quando o cirurgião ajudante lhe tocou,

atravessou, murmurando o que é que está a acontecer, meu Deus, assim

que os seus dedos roçaram no pó negro, gritou e tirou a mão e já não era

a sua mão, agora faltava-lhe metade dos três dedos mais compridos, o do

meio, o anelar e o indicador, e gritava e gritava, e a eletricidade não

voltava e Bradford não queria arriscar, como o seu ajudante, porque,

embora ainda não percebesse o que estava a acontecer, nem conseguia

acreditar, sabia que aquela escuridão que se estava a retirar devagar era

perigosa. Mais do que perigosa. A Escuridão de que lhe falara o pai, a

que convocavam os médiuns da Ordem, a que a inglesa procurava

desesperadamente. O rapaz estava em paragem cardíaca havia quinze

minutos e as enfermeiras gritavam pirosices, atendiam o ajudante,

alguém dizia que fora um acidente, que o ajudante tocara sem querer

nalgum bisturi, isso era impossível, mas as pessoas preferem justificar,

inventar, negar e não ver quando se trata de acreditar. Bradford resistiu à

debandada das enfermeiras, do anestesista, do instrumentista, que

diziam ter visto o rapaz rodeado de escuridão como se esta fosse um

casulo, resistiu até a escuridão se retirar e voltou a tocar no coração

imóvel do rapaz e sussurrou-lhe vá, estás aqui por um motivo, se fores a

voz dos deuses, bate, e o coração bateu entre os seus dedos como se
nunca tivesse parado. Bradford fechou o peito sozinho e em silêncio,

sem ouvir as explicações, os protestos e as queixas dos outros, nem

sequer sabia se eram médicos, membros da direção ou outros. Quando

acabou de suturar, acidentalmente afastou o lençol verde que cobria os

braços do rapaz e foi então que viu a prova. A marca. Uma mão no braço

do rapaz, a marca de uma mão, como uma cicatriz de queimadura. Não

era estranho, pensou já na altura: às vezes, o frio do gelo usado para

atingir a hipotermia nas cirurgias deixava queimaduras; e ainda era

menos estranho depois do desastre no bloco operatório. Uma enfermeira

podia ter apoiado a mão naquele ponto e o gelo teria deixado a sua

marca. Estudou-a. Era profunda. Parecia antiga. Era uma cicatriz. Uma

mão esquerda no braço esquerdo, a Mão Esquerda da Escuridão. Lera

sobre esse signo. Percebia o seu significado.

Esperou que o rapaz acordasse nos cuidados intensivos. Dez horas.

Estava certo de que havia lesões cerebrais — explicou-as aos pais, que

não deram sinais de perceber, como de resto não percebiam coisa

nenhuma; ah, mas o irmão mais velho percebeu, onde é que aqueles

gringuitos teriam ido buscar a inteligência deles, esperou um coma,

esperou uma nova arritmia que o matasse definitivamente. Porém, o

rapaz acordou por volta do meio-dia e o encefalograma estava normal, e

Bradford deu instruções para que não o deixassem sofrer nem um

segundo, e, como não conseguia dormir, mas tinha de falar com alguém,

quase bateu com o carro a caminho de casa, e foi nesse estado de

espírito que bateu à porta do apartamento da irmã, da sua lúgubre irmã,

que ocupava dois andares do mesmo edifício onde ele vivia, um dos

edifícios da família em Buenos Aires, o maior, o mais bonito. Mercedes

dominava aquele apartamento onde o marido a deixava quase sempre

sozinha, casara com um homem rico, divertido e infiel. E a filha,

Rosario, passava o tempo todo na escola e, depois, no quarto ou com as


amigas. Bradford gostava da sobrinha: tinha a alegria indisfarçável da

inteligência. Bradford falou e Mercedes ouviu-o num silêncio

interrompido pela colher de café e pelo enorme relógio que presidia à

sala. Calma, disse ela. Foi por isso que recorreu a Mercedes: por ser fria.

Tem de ser teu, se foi mesmo isso que aconteceu. Tem de ser nosso. Mas

não podemos comportar-nos de modo suspeito. Não o posso deixar nas

mãos daqueles ignorantes, Mercedes, daqueles labregos. Claro que não,

mas temos de ser cuidadosos.

Ah, o plano, pensa Bradford de joelhos enquanto ouve mais gemidos

abafados e sente que lhe arde o ventre, que já não lhe resta tempo.

Deixei que os teus pais te levassem. Contratei pessoas para me

informarem, e falaram-me da tua mãe a chorar, do teu pai bêbedo, do teu

irmão sempre decente, o único que era decente naquela barraca patética.

Da triste escola para onde te mandavam e a que chamavam isso, escola,

quando merecias um colégio. Os cardiologistas diziam que estavas a

melhorar, mas não conseguiam controlar as arritmias e eu adivinhei, ah,

adivinhei, antes da noite que nos uniu para sempre, que era medo, que

não conseguias lidar com o pânico, assim se chamava o terror coletivo

das ninfas quando surgia o grande deus Pã, pânico, e era isso que

sentias, horror. Trouxeram-te de volta ao hospital, magro mas ainda

forte, o teu pai a dizer imbecilidades sobre como não podia tomar conta

de ti, a minha alegria perante o alcoolismo e a miséria dele e a

claudicação da tua mãe, e nessa primeira noite que confirmou tudo,

porque tudo vias, era pior num hospital, claro, deixei que sofresses, tinha

de ter a certeza, seja como for, era uma prova pela qual terias mesmo de

passar, deixei que atingisses o limite, reanimei-te uma vez — quantas

vezes, Juan, já crescido, me chamaste o teu ressuscitador pessoal na

brincadeira —, e nessa noite, quando eu sabia e todos sabiam que não

sobreviverias se as arritmias ventriculares persistissem, falámos. O que


tens, perguntei-te, e falaste-me dos homens e das mulheres que mais

ninguém via e que te dirigiam a palavra, mas também de uma floresta

atrás de uma janela e de pés a flutuar e de alguém a comer a nuca de

uma mulher e disseste-me que não sabias quem eram, mas que não se

iam embora. Aqui há mais, disseste-me, aqui gritam. Já não te brilhavam

os olhos. E ensinei-te a forma mais simples de bloqueares o que te

estava a acontecer, que a mim nunca me fizera falta, mas que a inglesa

ensinava a todos os membros da Ordem. Apoiei uma mão na boca do teu

estômago tal como a ouvira explicar e tu retraíste-te, o corpo farto de ser

manuseado e magoado. Mas aguentaste e aprendeste a técnica em

segundos. Não era um engano, nem uma sugestão, eras quem

esperávamos, eras o médium, quando deixaste de ver o que vias e caíste

na almofada e a tua respiração e o teu coração sossegaram pouco a

pouco, perguntaste-me o que faço se voltarem e eu disse-te para já,

repetes esse exercício. Ah, Juan, a confiança dessa primeira vez. Oxalá

pudesse ver os teus olhos uma última vez antes de entrar na Escuridão.

Levei-te para casa quando recuperaste. Nunca nos separámos.

Quando a Escuridão que abriste ficou com os meus dedos nunca mais

pude voltar a estar no teu interior. Só pude olhar. Mais duas vezes. E foi

tudo. E agora a Escuridão fica comigo: come primeiro as entranhas e

não dói e tenho tempo de pensar e de tentar ver os teus olhos, mas já

estão demasiado longe, já estás longe, e peço compaixão à Escuridão

porque, agora, a ouço pela primeira vez.

Compaixão. E quando a Escuridão volta a morder e sinto o cheiro do

seu regozijo misturado com o do meu sangue, enquanto a vejo comer as

minhas mãos, os meus ombros, a atacar-me as costelas, lembro-me de

uma vez me teres dito que a Escuridão não percebe, não tem linguagem,

é um deus selvagem ou demasiado remoto. Serei recordado como o

homem que encontrou e salvou mais de uma vez o médium? Escreverão


sobre mim, proferir-se-á o meu nome com admiração? Não devo pensar

na minha glória. Que seja secreta se tiver de ser. Deixo de reclamar a

minha compaixão. Não há palavras deste mundo para a entrada na

Escuridão, para a última mordida.


O mal das casas solitárias,

Buenos Aires, 1985-1986

«eu tinha poucos anos e já era

rigorosamente velha»

ELENA ANNÍBALI,

La casa de la niebla
GASPAR ABRIU A JANELA E SENTIU NA PELE a humidade fria da chuva

miudinha. Já era sábado de tarde: a loja de bicicletas do bairro devia

estar aberta. Precisava de lá levar a bicicleta para ser arranjada: a

corrente e os raios tinham ficado danificados num acidente parvo

naquela manhã, depois de bater no lancil da esquina de sua casa.

Gostava de andar muito depressa, especialmente aos sábados, cedo,

quando não havia ninguém na rua. Quase não se magoara, tirando uns

raspões nos cotovelos e nos joelhos, e uma das faces irritada.

Tentou sair em silêncio para não acordar o pai, mas surpreendeu-se

ao dar com ele acordado, sério, mas calmo, a sair da cozinha com uma

chávena de chá na mão. A casa, como sempre, não estava iluminada pela

luz elétrica: só a de uma televisão ligada na sala, vazia à exceção de um

sofá de bombazina, amarelo, muito grande, quase uma cama. Quando

Juan viu Gaspar, aproximou-se dele e acendeu um pequeno candeeiro

que estava no chão. Tinha um cigarro na outra mão.

— Não devias fumar — disse Gaspar.

— Não me chateies. — E pegou-lhe na cara com a ponta dos dedos

para observar a mazela recente. Depois, agachou-se para inspecionar as

calças, manchadas pela gordura da corrente da bicicleta.


— Caí.

— Não mintas. É primeira vez que te digo.

— Estava a andar depressa e mordi um lancil.

Gaspar sentiu o pai a aproximar-se e a farejá-lo de uma maneira que

lhe parecia… possessiva? Qualquer coisa do género. Como se o pudesse

comer, mas a sério. Embora também fosse carinhoso.

— Quantas vezes já te expliquei que tens de ter cuidado? Estamos

sozinhos. Eu estou doente. Se pensarem que eu não tomo bem conta de

ti, vêm buscar-te. Vão separar-nos. Não posso passar a vida a andar atrás

de ti.

— Eu sei. Não foi nada.

— Bom. Lava-te bem com sabão.

— Já me puseram água oxigenada e já me lavei. Achas que a mancha

das calças de ganga sai?

— Não faço ideia — disse Juan, dando uma longa passa no cigarro.

Voltou a pegar na chávena de chá que deixara no chão e desligou o

candeeiro. — Se não sair, compras outras.

— Estás bem, papá?

— Estou melhor. E tu?

— Também. Tenho de ir ao parque ver se me arranjam a bicicleta.

Depois, de certeza que vou a casa do Pablo.

— Como queiras. Eu estarei no quarto.

— Cá em baixo ou lá em cima?

Juan hesitou durante um minuto. Finalmente, disse:

— Cá em baixo.

— Volto à noite. Tens comida?

Juan não respondeu, mas aproximou-se de Gaspar e, devagar, abriu-

lhe a mão que fechara num punho e acariciou-lhe a palma como se o

estivesse a aquecer.
Da esquina, Pablo ouviu primeiro, e depois viu, Gaspar e a sua bicicleta.

Como sempre que o via, sorriu, mas depois obrigou-se a ficar sério:

tinha vergonha de demonstrar toda a alegria que sentia ao vê-lo. Não era

o único que reagia assim. Todos gostavam de Gaspar, o senhor do

quiosque das revistas e o merceeiro, o bate-chapas e quase todos os pais,

as raparigas que se riam quando o viam passar. Gaspar vivia num

casarão, andava no colégio mais caro do bairro, que tinha a sua própria

piscina e era bilingue, mas não se comportava com arrogância, nem se

gabava de ter dinheiro, era normal e generoso, emprestava tudo, a roupa,

o leitor de cassetes, o cartão do clube de vídeo, os livros. A vida de

Gaspar era muito diferente da dos outros: o pai, que estava doente e

quase nunca saía, não trabalhava; uma pessoa limpava-lhes a casa e

cozinhava: deixava a comida pronta quando Gaspar estava na escola, ele

quase nunca a via. Outros visitantes, advogados e contabilistas, segundo

Gaspar, traziam dinheiro e pagavam as mensalidades do colégio e as

despesas. Ninguém vivia assim, pelo menos as pessoas que Pablo

conhecia. Assim, com tudo resolvido. Embora o fossem, os Peterson não

viviam como ricos: não tinham quase nada. Mas nunca lhes faltava

dinheiro e, se precisassem de alguma coisa, rapidamente apareciam

aqueles empregados tão estranhos, sempre tão pontuais, como se

estivessem de plantão.

E, além do mais, o Gaspar é lindíssimo, pensou Pablo, mordendo

logo a seguir o lábio inferior por saber que não devia pensar nisso, o pai

agarrara-o pelos cabelos havia menos de uma semana por ter demorado

demasiado tempo a escolher a roupa para ir ao aniversário do tio. Nunca

fizera uma coisa daquelas — a boca cheirava-lhe a mate quando disse:

«Não me digas que és larilas.» Gostava de se vestir bem. Disse isso ao

pai e quase levou uma tareia. Quando voltou da festa de aniversário,

concebeu um plano: fez uma lista de toda a roupa que tinha na última
página do caderno dos trabalhos de casa, em três colunas, e depois uniu-

as com flechas, criando uma espécie de quadro sinóptico com lápis de

várias cores, como lhe tinham ensinado na escola para unir orações.

Tinha de aprender de cor as combinações ou olhar para elas rapidamente

antes de sair, para não perder mais tempo a tentar perceber se as calças

castanhas de bombazina combinavam com a suéter verde ou não.

Gaspar nunca tinha esse tipo de problema. Lá vinha ele de bicicleta

com a sua suéter fininha um pouco grande, cor de mostarda, as calças de

ganga azuis e os ténis Topper, e a roupa não era maravilhosa, mas

assentava-lhe maravilhosamente bem. Mesmo quando vestia alguma

coisa esquisita, tinha estilo: por exemplo, usava uns cintos de cabedal

muito largos que tendiam a ficar pendurados. Eram do pai e às vezes

tinha de dar-lhes uma volta à cintura. No entanto, a fivela de homem e o

cabedal antiquado, em vez de parecerem acessórios de um disfarce,

apenas o tornavam diferente dos outros. Claro que não era só por causa

da roupa: era a maneira como afastava o cabelo da cara, as pernas

compridas e os olhos azul-escuros, redondos e aparentemente inocentes,

pelo menos até sorrir ou ficar zangado, e então acontecia uma coisa

estranhíssima, porque os olhos quase não mudavam de expressão e

Pablo não sabia o que pensar disso, mas gostava e provocava-lhe

desconfiança ao mesmo tempo, fazia-lhe lembrar o gato dele, que se

deixava acariciar a ronronar até que, de repente, dava uma unhada no ar,

sem intenção de magoar, apenas para deixar claro que já recebera aquilo

de que necessitava.

Quando chegou junto dele, Gaspar procurou no bolso de trás uma

pastilha elástica um pouco esmagada e ofereceu-a a Pablo. Começaram a

fazer balões na rua, protegidos por uma varanda que fazia de teto, pois

tinha começado a chover.


— Queres vir comigo até ao parque? — e apontou para a bicicleta.

— Espalhei-me, sabias, mas não me aconteceu nada.

Disse-o calmamente e Pablo sabia que o mais provável era nem

sequer se ter assustado com a queda. Havia uma espécie de dureza em

Gaspar: tinham a mesma idade, mas Pablo sentia que ele era muito mais

velho. Talvez fosse por não ter mãe, por ter um pai doente, por não viver

perto de ninguém da família, por estar bastante sozinho. Não se ria

muito e ouvia com muita atenção. A mãe de Pablo dizia que era um

rapaz traumatizado; a mãe de Vicky, que era um rapaz triste. A mãe de

Adela, a quarta amiga que completava o grupo de inseparáveis, dizia o

Juan é viúvo e está doente, não é fácil criar sozinho um rapaz, o Gaspar

está muito bem.

Quando o aguaceiro se transformou em chuvisco, Pablo puxou o

fecho do blusão para cima e disse: «Vamos.» O parque ficava muito

perto dali, apenas a duzentos metros. Nessa tarde, por causa do mau

tempo, estaria vazio; em dias de sol, quase não se podia jogar à bola ou

beber um refresco sentado porque o bairro em peso passava a tarde toda

na relva descuidada, à sombra das árvores centenárias e entre os

caminhos de terra encarnada. Quando estavam a atravessar a rua,

surgiram, a correr, Vicky e Adela. Vicky chorava, com o cabelo escuro

solto e luzidio semelhante ao de uma rapariga japonesa. Adela, que a

levava pela mão, tinha um impermeável amarelo tão grande, que parecia

uma tenda e lhe tapava completamente o coto do braço esquerdo.

— Ei, o que é que aconteceu? — perguntou Gaspar, aproximando-se

de Vicky. Ela abraçou-o rodeando-lhe o pescoço com os braços e

gritando que a Diana andava perdida, que desaparecera de manhã. Diana

era uma das duas cadelas de Vicky, aquela de que mais gostava, uma

pastora-alemã de oito anos que a acompanhara ao longo de praticamente

toda a vida.
— O parvo do meu pai deixou-a fugir — disse Vicky. E, entre as

lágrimas e as lamúrias, conseguiu perceber que o pai deixara a porta do

corredor aberta e Diana à solta, e que a cadela fugira a correr para a

estrada. Ele ainda lhe gritou, mas ela não obedeceu. Esperaram para ver

se voltava, mas Victoria e a mãe insistiram e foram à procura dela com o

carro. Nada. Desde as nove da manhã.

— Andamos à procura dela, agora que não há tantos carros, se calhar

está mais calma — disse Adela, afastando uma madeixa de cabelo

húmido da cara com o seu único braço.

— Pode estar no parque — disse Gaspar.

— Íamos para lá agora.

— Nós também. Deixo a bicicleta a arranjar e vou convosco.

Os quatro seguiram pelo caminho das casas inglesas que levava até

ao parque. Adela, como sempre, posicionou-se ao lado de Gaspar.

Começou a falar-lhe sobre os cães que voltavam, os cães que ficavam à

porta dos hospitais à espera de que os donos doentes tivessem alta, os

que tinham ficado a viver nos cemitérios depois de acompanharem os

donos até ao fim. Adela era fantasiosa e exagerada e cada vez mentia

mais, mas suportavam isso tudo, e não só por pena. Era divertida. Adela

vivia com a mãe numa casa situada ao fundo de um patamar, uma casa

um pouco escura porque ficava a meio do quarteirão e porque os

edifícios que a rodeavam e até as árvores dos grandes pátios dos

vizinhos lhe tapavam a luz. Mas era uma casa bastante bonita; a mãe,

Betty, sabia escolher os tapetes e as reproduções de quadros, e os móveis

eram simples, mas confortáveis e coloridos, alguns deles cobertos por

panos com motivos andinos. Era uma casa um pouco hippie e muito

diferente, pensava Pablo, da sua, com os velhos bibelôs de louça da avó,

pássaros alaranjados e cisnes brancos, tucanos pretos de bico amarelo e

flamingos cor-de-rosa nos quais era proibido tocar. Adela não tinha pai,
mas ninguém sabia bem porquê, se morrera ou se se fora embora.

Ninguém tinha coragem de dizer em voz alta que podia estar

desaparecido, embora alguns se atravessem a insinuar o contrário, que

era polícia e que o tinham matado durante uns confrontos.

Outro mistério era a razão por que lhe faltava um braço. O coto era

pequeno e proporcionado, como se tivesse sofrido um corte limpo acima

do cotovelo. A mãe de Adela dizia que nascera assim, que era um defeito

congénito. Muitos rapazes tinham medo ou nojo dela. Faziam piadas,

chamava-lhe monstrinho, feiosa, bicho incompleto; diziam que ia ser

contratada por um circo, que de certeza que a sua fotografia estava nos

livros de medicina. Ela sofria, às vezes chorava, mas decidira responder

sempre ao escárnio com outras piadas ou com insultos. Não queria usar

um braço ortopédico. Em geral, não escondia o coto. Quando se

apercebia da repulsa nos olhos de algum rapaz ou mesmo de um adulto,

era capaz de lhes esfregar o coto na cara ou de se sentar muito perto e

roçar no braço deles o seu apêndice inútil até os deixar à beira das

lágrimas.

A sua versão sobre o braço ausente era espetacular, outra coisa não

se podia esperar dela. Contava que fora atacada por um cão, por um

dobermann preto. O cão enlouquecera, como costuma acontecer aos

dobermanns, uma raça, que segundo Adela, tinha um crânio demasiado

pequeno para o tamanho do cérebro; era por isso que lhes doía sempre a

cabeça e enlouqueciam. Dizia que fora atacada com dois anos. Também

dizia que se lembrava: da dor, do rosnar, do barulho das mandíbulas a

mastigar, do sangue a sujar a relva. Que fora na quinta dos avós e que o

avô abatera o cão com uma pontaria excelente: o animal, quando

recebeu o tiro, ainda tinha a bebé Adela entre os dentes.

Insolitamente, por ser o que mais ouvia e o que menos discutia dos

quatro, Gaspar recusava-se sempre a acreditar nesta versão. Não te podes


lembrar, dizia-lhe. Tinhas dois anos. Eu quase não me lembro da minha

mãe e, quando ela morreu, tinha seis anos.

— Bom, mas isto foi muito traumático — dizia Adela, e acentuava a

palavras «traumático», que aprendera havia pouco tempo.

— Mas tu és parva, ou quê? A morte da minha mãe também foi

traumática.

— De alguma coisa te deves lembrar.

E Gaspar insistia que sim, que de alguma coisa, sim, mas muito

pouco mesmo, e queria lembrar-se de muito mais; eram fotografias,

cenas curtas de um filme, desligadas. E nada, absolutamente nada, de

quando tinha dois anos. Ninguém se lembrava de quando tinha dois

anos, era impossível, insistia.

— Não me importa que mintas — dizia-lhe, e Adela ficava furiosa.

— Mas com algumas coisas tens de aprender a mentir melhor.

Adela ia-se sempre embora, depois dessas discussões, com a cara e

as orelhas muito vermelhas; era sardenta e exageradamente loura, tanto

que a palidez da pele fazia com que os seus dentes parecessem amarelos.

Tinha uns olhos castanhos e pequeninos, e umas pestanas quase brancas.

— Esperem aqui — disse Gaspar quando chegaram ao parque

Castelli.

Fizeram o que ele disse: Adela enxugou um banco de madeira com o

impermeável e os três sentaram-se em silêncio. O parque ocupava doze

quarteirões e incluía uma escola, duas piscinas — uma ao ar livre e

outra climatizada; era onde nadava Gaspar aos fins de semana, quando a

da escola dele estava fechada —, um roseiral e uma fonte enorme que

lançava jatos de diferentes alturas, sincronizados para darem a impressão

de que a água estava a dançar. Também havia um carrossel na zona do

parque infantil, mas eles eram demasiado grandes para caber nele e só

podiam usar os balouços; as raparigas, sobretudo, adoravam os balouços


e também o roseiral, com a sua praceta do século XIX, as trepadeiras

verde-escuras e os caminhos de pedrinhas vermelhas que manchavam os

ténis.

Gaspar voltou rapidamente da loja de bicicletas e organizou as

buscas: Pablo ocupar-se-ia da zona que ia da escola até à avenida da

igreja; ele, da fonte e das piscinas; as raparigas dividir-se-iam entre o

roseiral e a área que rodeava a boca do metro. Procurem bem, disse-lhes.

Pode estar assustada. Atrás de todas as árvores e por baixo de todos os

bancos. A escola está fechada, mas de certeza que lá está o segurança,

Pablo, chama-o e pergunta-lhe, toca à campainha. Eu faço o mesmo na

piscina. Daqui a uma hora, encontramo-nos neste ponto. Os outros

disseram que sim com a cabeça e, antes de dar início à busca, Gaspar

agachou-se e bebeu água de um bebedouro em forma de cabeça de leão,

uma peça de cerâmica antiga de cor azul cujo repuxo deixava um

pequeno rio sangrento no caminho de terra encarnada.

Gaspar rodeou o edifício do clube, com o seu café aberto e sem clientes

— seguramente, por causa da chuva e da hora: começariam a chegar

mais perto do lanche —, e entrou. O único empregado e o dono

conheciam-no: às vezes, ia lá comer qualquer coisa aos sábados e aos

domingos à tarde, depois de nadar, ou fazia os trabalhos de casa numa

das mesas que davam para a zona mais arborizada do parque, quando o

pai estava de muito mau humor, o que, no último ano, era cada vez mais

frequente, a ponto de Gaspar ter começado a estranhá-lo, como se o

homem que vivia em sua casa fosse outro que se ia metamorfoseando

em alguém mais silencioso, violento e distante.

Perguntou a ambos se tinham visto a cadela, mas nenhum deles se

lembrava de um pastor-alemão; havia muitos cães a dar voltas no parque

e eles conheciam quase todos, davam-lhes comida, mas não lhes tinha
chamado a atenção nenhum novo. Gaspar aceitou um copo de Fanta que

o dono lhe ofereceu e continuou a procurar nas escadas que ladeavam a

fonte. O parque era mais alto no centro, fora construído em cima de uma

pequena colina, e a subida acabava na piscina descoberta, que já estava

fechada até ao verão seguinte: contornou-a e ficou a olhar para o

trampolim. Esgueirou-se pelas grades estreitas — custou-lhe um pouco:

embora fosse muito magro, em breve seria demasiado grande para

passar por entre as barras — e chamou Diana com um assobio que sabia

que a cadela reconheceria. Nada. Deu uma volta à piscina e voltou a

chamar: estranho, o segurança não estava lá. Se calhar, tirara a tarde,

estava a chuviscar e ninguém se atreveria a entrar na água. Ele fazia-o,

às vezes: gostava de nadar nos dias frios, de sair a tiritar e de ter a

piscina só para ele e sem ninguém a vigiar. O pai não sabia dessas

escapadelas, claro.

Fechou os olhos. Doíam-lhe a bochecha e um pouco os joelhos;

ainda estavam a sangrar um pouco, como viu quando estava na casa de

banho, e já sentia a pele retesada, a formar crosta.

A cadela não estava ao pé da fonte, nem da piscina e, por isso,

procurou atrás das árvores. No parque havia muitas e Gaspar gostaria de

saber distingui-las, de diferenciar um choupo de uma nespereira, mas só

conhecia os pinheiros. Oxalá ensinassem essas coisas na escola, em vez

de falarem sobre frações ou organismos unicelulares. A escola corria-lhe

bem porque era fácil para ele, mas aborrecia-o, como sempre. Lia por

sua conta: o pai podia ser caprichoso e assustador, mas deixava-o ler de

tudo. Agora, estava a ler Drácula: já vira uns dez filmes sobre o assunto

e o livro era totalmente diferente de todos eles. Ficara a pensar numa

frase e agora o arrepio que sentiu ao pé da fonte não se deveu apenas ao

facto de o seu blusão ser fino: a frase parecia horrível. «Os mortos

viajam depressa.» Foi o que disse uma personagem, um companheiro de


viagem, a Jonathan Harker quando se dirigia para a casa do Conde.

Procurou o livro em inglês na biblioteca do pai, enquanto este estava

distraído a desenhar num dos seus cadernos. Encontrou-o rapidamente e

a frase, em inglês, era «for the dead travel fast». O livro em inglês dizia,

por sua vez, que a frase era uma tradução do alemão e que era um verso

de um poema intitulado «Leonore». Perguntou ao pai se o tinha — o pai

tinha muitos livros de poesia — e ele, sem deixar de desenhar ou de

escrever, sem olhar para ele, disse que não. «É verdade?», perguntou-lhe.

«É verdade que os mortos viajam depressa?»

O pai levantou, finalmente, a cabeça e disse apenas: «Alguns.»

Desceu a escada a correr até ao terreiro onde estava a escultura do

tigre-dentes-de-sabre e rodeou o parque pelo caminho paralelo à Rua

Mitre. Vicky e Adela já estavam à sua espera na praceta, perto do

roseiral. Pelas caras delas apercebeu-se de que também não tinham

encontrado a cadela.

— Vai voltar, Vicky — disse Gaspar. — Agora, se quiseres,

podemos tirar fotocópias de uma fotografia dela e colamo-las nas lojas e

nos postes de luz. Vamos encontrá-la.

Vicky chorava.

— É velha, vai perder-se.

Pablo chegou a correr e olhou para Gaspar antes de dizer que não

com a cabeça.

— Vais oferecer uma recompensa? — perguntou Adela. — Se

ofereceres, é mil vezes melhor.

— Com que dinheiro? O meu pai não me vai dar dinheiro para isso.

— Eu empresto-te o dinheiro, isso não é um problema — disse

Gaspar, e pediu a Adela que fosse com ele à reprografia.

Passaram o resto da tarde a montar numa folha A4 o póster da cadela

perdida de Diana. Vicky escolheu uma fotografia com um fundo claro


para que se visse bem. Hugo, o pai de Vicky, disse a Gaspar, a modo de

piada, que, com a inflação, não fazia sentido oferecer uma recompensa,

e Vicky ficou tão zangada que se trancou no quarto a chorar. Adela e

Gaspar acabaram de montar o póster enquanto Hugo contou a Pablo

como fugira a cadela. Deixara a porta aberta, era verdade. Mas apenas

durante um minuto, porque se esquecera do chapéu de chuva e precisava

dele, estava a chover de manhã e tinha de ir trabalhar para a farmácia. E

a cadela assustara-se com o barulho de alguma coisa a cair dentro de

casa. Se calhar Virginia, a irmã mais nova de Vicky, atirara um

brinquedo à parede ou à avó, que estava meio surda e punha a rádio

muito alta, e isso deve ter alterado o animal, que saiu a correr. Ele

também gostava da cadela, adorava-a, estava farto que Vicky o culpasse

e estivesse a fazer uma fita tão grande.

— Ela vai voltar — disse Adela, e voltou a contar as histórias sobre

cães fiéis aos donos. Depois de acabar de escrever o número de telefone

de Vicky, Gaspar levantou-se e bateu à porta do quarto.

— Vamos colar os papéis. Vem connosco, para com isso.

Fez-se um silêncio tenso e Vicky abriu a porta. Tinha os olhos

vermelhos, mas já não chorava.

— Para — repetiu Gaspar. — Já fizemos os cartazes.

Olharam-se na escuridão do corredor dos quartos. A lâmpada estava

fundida. Gaspar lembrou-se do verão que passara com Vicky e a família

em Mar del Plata: brincar com as raquetas na praia, nadar um pouco —

muito, não: eles tinham medo de que Gaspar se afastasse muito e ele não

queria enervá-los —, as caminhadas na areia húmida ao entardecer.

Falara muito com Vicky, às vezes até adormecerem, tardíssimo, com o

candeeiro ligado. Era o segundo verão que Gaspar passava com os

Peirano, que arrendavam um apartamento ao pé das praias semivazias do

farol, um apartamento grande e confortável que, desconfiava Gaspar, não


eram eles que pagavam. Tinha quase a certeza de que sabia quem o

pagava, mas jamais o teria insinuado. O pai nunca lhe contou nada, em

nenhum dos verões. Dera-lhe autorização para passar um mês na praia.

Se te convidarem, vai. Confio neles. Todos os verões, os empregados que

lhes levavam dinheiro também apareciam na costa para se certificarem

de que não lhe faltava nada. Não eram os mesmos empregados, mas

Gaspar já os conhecia a todos, eram sete, oito, contando com os

motoristas que levavam o pai ao médico ou a qualquer outro lado aonde

quisesse ir. Quando era mais pequeno, não se apercebia, mas depois

tornou-se evidente que ninguém tinha esse tipo de assistentes ou

cuidadores. Quando perguntou ao pai, ele limitou-se a responder a tua

mãe é rica, e tu também. De certeza que já viste na televisão o que pode

acontecer às pessoas ricas. Gaspar recordou as notícias dos sequestros e

a explicação da mãe de Vicky: é mão de obra desocupada da ditadura,

dizia, agora dedicam-se a fazer chantagens e a pedir resgates, sabem

como funcionam os sequestros na perfeição. Então eu estou em perigo,

vão sequestrar-me? Não, continuou o pai, porque eles tomam conta de ti.

E quando voltou a perguntar, a resposta foi idêntica e o aborrecimento,

enorme. E era por isso que, agora, o aceitava.

No primeiro verão, Gaspar divertiu-se imenso. Mas no segundo, não

sabia bem porquê, uma noite sentiu medo pelo pai e fugiu do

apartamento para ir a um telefone público. Apoiado no plástico

completamente esburacado da cabina redonda, que lhe parecia um ovo

gigante, telefonou para casa várias vezes. E repetiu as chamadas na noite

seguinte. Ninguém atendia. Era janeiro. Gaspar sabia que, no verão, o

pai saía de casa durante uns dias, tinha amigos, mas nunca ficava fora

tanto tempo. No máximo, dez dias. Era 15 de janeiro e não atendia, e

Gaspar esteve quase para pedir a Lidia e a Hugo Peirano que o

deixassem voltar, que, por favor, lhe comprassem um bilhete, embora


não soubesse o que fazer quando chegasse à casa vazia. Telefonar ao tio

do Brasil? Falar com os contabilistas? Pedir ajuda aos avós maternos,

que não via há anos e de que mal se lembrava? Sentado nos degraus da

porta do edifício de Mar del Plata, enquanto os turistas entravam e

saíam, alguns para irem jantar aos restaurantes, outros com as compras

do supermercado para cozinharem nos apartamentos, Gaspar começou a

chorar e Vicky disse-lhe:

— De certeza que vai aparecer. É melhor não dizermos nada.

Amanhã voltamos a telefonar-lhe.

Dessa vez, quando lhe telefonou, o pai disse olá com uma voz

cansada e aborrecida. Gaspar sentiu os joelhos fraquejarem ao ouvi-lo.

— Fartei-me de te ligar — disse-lhe, zangado. — Nunca passas

tantos dias fora.

— Gaspar, diverte-te — respondeu o pai, e desligou.

Agora, enquanto esperava por Vicky, lembrou-se daqueles dias de

incerteza, havia apenas uns meses. E ela disse que sim com a cabeça.

Percebia. Prendeu o cabelo sedoso e muito escuro num rabo de cavalo.

— Desculpem, devia ter-vos ajudado a fazer os cartazes.

E, depois, voltou a abraçar Gaspar, que lhe beijou a cabeça e se

deixou ficar a cheirar-lhe o cabelo, um pouco de chuva, outro tanto do

champô que as raparigas adoravam nesse ano, um detergente verde que

estava na moda e cheirava a sumo de maçã.

A casa de Victoria Peirano estava sempre em obras. O terreno era

grande e a casa expandia-se, ao comprido, para um dos lados de um

corredor que ia do pátio da frente e da garagem às traseiras; havia um

modesto jardim com um abrigo onde as cadelas dormiam à sombra de

um limoeiro e faziam-se churrascos quase todos os domingos. Naquela

casa barulhenta e desarrumada cada qual se deitava quando queria; se


lhes apetecia comer juntos à mesa, faziam-no, e se não, levavam o prato

para o quarto ou para as traseiras, a avó ouvia tangos na rádio e nunca

encontravam os papéis perdidos.

Não parecia a casa de um farmacêutico e de uma médica. Victoria

pensava, às vezes, que os pais eram injustamente pobres porque os

colegas da escola dela com pais médicos viviam noutro tipo de casas.

Uma vez, ouvira-os falar da sua má sorte, das oportunidades

desperdiçadas; a mãe trabalhava num hospital público e fazia turnos

numa clínica a dois quilómetros e meio de casa; o pai não queria

abandonar a farmácia onde trabalhava desde os dezoito anos, adorava o

dono, não se importava de ganhar tão pouco. Discutiam bastante por

causa de dinheiro, mas eram felizes. Divertiam-se juntos. E, quanto ao

dinheiro, gastavam-no: em férias em Bariloche, Pehuencó, Mar del

Plata, nas serras de Córdoba, no Valle de la Luna. Gaspar passava muito

tempo com aquela família. A sua casa era grande e elegante, a inveja do

bairro; mas também era escura e estava vazia, com o jardim seco,

pouquíssimos móveis, a obrigação do silêncio.

— Porque não ficam para jantar? — perguntou Lidia, a mãe de

Vicky. Voltara do hospital quase às nove da noite com umas pizzas pré-

cozinhadas para pôr no forno. Ficou a saber da cadela e, depois de os

ouvir, disse ao marido:

— És mesmo parvo, Hugo. Francamente.

E felicitou os rapazes por terem feito os cartazes. Tinham-nos

pendurado em todas as mercearias, quiosques, no café do parque, na loja

de bicicletas, nos postes de luz: no dia seguinte era domingo; se não

chovesse, as pessoas sairiam mais e, se alguém visse a cadela, haveria de

aparecer. Também tinham deixado os telefones de Adela e de Pablo; não

o de Gaspar: o pai não suportava o barulho das chamadas telefónicas.


Depois de pôr as pizzas em cima da bancada para que arrefecessem

um pouco, Lidia entrou no quarto, despiu a farda branca e voltou a

convidar Pablo e Gaspar para comer. Pablo disse que a mãe estava à

espera dele. Gaspar disse não, obrigado.

— Como está o teu pai? — perguntou Lidia antes de ir tomar um

duche.

— Não sei — respondeu Gaspar com sinceridade. — É por isso que

quero ir para casa. Mas está melhor do que há uns dias, obrigado.

— Se acontecer alguma coisa, diz.

Gaspar despediu-se com um aceno. Sentia falta da bicicleta: pedira

que também lhe mudassem o farolim, que usava quando escurecia,

porque ultimamente andava a piscar muito. Adela acompanhou-o: de

todos, era a que vivia mais perto dele. Gostava da sua companhia:

sentia-se à vontade com ela porque a sinceridade não a incomodava.

— Achas que a Diana vai aparecer?

O cabelo um pouco seco, a língua sempre de fora, o entusiasmo

amoroso, Gaspar lembrou-se de tudo de repente e sentiu uma pedra na

garganta. Gostava da cadela. Como não o deixavam ter animais, ganhava

afeto pelos dos outros. A Diana era a sua preferida.

— Não — disse. — Acho que não vai aparecer.

— Eu também não, mas não quis dizer nada.

— Às tantas, estamos enganados.

— Oxalá. Porque é que não tens um cão?

— O meu pai detesta animais.

Não era exatamente assim; uma vez, dissera-lhe: «Não quero nada

vivo nesta casa.» Mas aquilo seria demasiado estranho até mesmo para

Adela.

— Que má onda, o teu pai.


Riram-se. Adela dizia-o com desembaraço e conhecimento de causa:

Betty, a sua mãe, bebia muito quando estava triste. Não era violenta, não

tratava mal a filha, limitava-se a trancar-se com uma garrafa e, às vezes,

vomitava na casa de banho. Ou pela casa. Gaspar já ajudara Adela várias

vezes a esvaziar os copos cheios de vinho que apareciam nos recantos da

casa e a pulverizar ambientador na casa de banho quando Betty limpava

mal o vómito. Não se embebedava muitas vezes, mas, quando o fazia,

eram dias difíceis. Gaspar abrandou o passo para ficar mais tempo com

Adela e porque o facto de só ter um braço a tornava mais lenta, como se

lhe faltasse um remo para dar balanço. Já não chovia, Adela deixara o

impermeável em casa de Vicky e só tinha uma suéter vermelha,

arregaçada no lado do coto. Dizia sempre que detestava deixar a manga

vazia, pendurada. Preferia que o óbvio fosse visível. Gaspar também

gostava da companhia de Adela porque falava muito e o silêncio não a

incomodava. Porém, agora estava calada. E não era por causa da cadela,

que não era sua amiga, preferia manter distância dos cães, fazia questão

disso para se aferrar à história do ataque do dobermann.

Gaspar decidiu quebrar o silêncio:

— O que foi?

— A mesma coisa de sempre, mas agora está pior.

— Conta lá.

— É um bocado nojento.

— Melhor ainda.

Adela empurrou-o para o desequilibrar.

— Anormal.

Ela olhou para baixo enquanto falava, como se prestasse atenção aos

próprios passos.

— Tenho comichão no braço. Este braço — disse, e mexeu o coto.

— Coça-te.
— Não sejas anormal. Tenho comichão na parte do braço que já não

tenho. Já fui ao médico. Chama-se membro fantasma, disse ele. É

porque o cérebro não regista que já não o temos e, então, continuamos a

sentir coisas.

Gaspar olhou para ela com atenção sob as luzes amareladas da rua.

O cabelo de Adela estava envolto numa espécie de auréola: eriçava-se

com a humidade.

— É mentira.

Ela olhou para ele com ódio, semicerrando os olhos escuros.

— Porque é que nunca acreditas em mim?

— Não podes ter comichão numa coisa que já não existe.

— Pica-me imenso e tu não percebes nada — gritou Adela,

afastando-se a correr para casa, em lágrimas, sem deixar que ele lhe

visse a cara. Gaspar esteve quase para ir atrás dela, mas deixou-a ir.

Estava cansado, tinha fome e os panados iam demorar a aquecer no

forno. Não sabia se tinha pão para fazer uma sanduíche. Devia ter

aceitado o convite para comer, mas queria voltar para casa, estar um

tempo sozinho e ver o pai.

Entrou devagar na escuridão fresca da casa e, antes de ir para a

cozinha, espreitou para dentro do quarto do andar de baixo onde dormia

o pai.

O candeeiro no chão, um copo vazio em cima da mesa de cabeceira e

o pai com o peito nu sentado na cama; já não dormia deitado. Gaspar

não percebia se estava a dormir ou não: só conseguia ver que tinha os

olhos fechados.

Gaspar acendeu a luz da cozinha, praticamente o único lugar da casa

onde era permitido usar o candeeiro de teto, além da casa de banho.

Havia dois panados no frigorífico. Cheirou-os: salsa e pão e um pouco

de limão e o aroma metálico da carne fresca. Untou com óleo um dos


tabuleiros do forno e ligou-o. Tinha de pressionar o botão durante algum

tempo, quase um minuto, para acender a chama do forno. Se o largasse

mais cedo e o semicírculo de fogo azul se apagasse, teria de esperar mais

de dez minutos até poder voltar a tentar. Não se atrevia a fritar nada

nessa noite, por causa do barulho crepitante do óleo; não queria acordar

o pai e, além disso, a comida frita, às vezes, quando se ia deitar sem

fazer a digestão, provocava-lhe um dos pesadelos mais odiosos, o do

homem a pairar em cima da sua cabeça, de cujas mãos escorriam

gotinhas de sangue quentes de alguma coisa que tinha ao colo, qualquer

coisa viva e pequena que estava a morrer, isso era muito claro no sonho;

ele não conseguia perceber se era uma pessoa ou um animal, não dava

para ver, só via os pés do homem a flutuar e um pouco das pernas

pálidas como ossos, mesmo por cima da sua cabeça. Resumindo,

panados no forno. E um tomate partido ao meio com um pouco de azeite

e orégãos.

Gostava de cozinhar. Seria bom poder cozinhar mais para o pai, que

ultimamente comia pouco e sem vontade. Gaspar sabia que ele estava

muito doente, sempre soube, mas agora sentia algo pior em que não

queria pensar: sentia que morreria em breve. Estava sempre tão cansado,

tão enjoado, tão fraco, tão insolitamente frágil, precisamente o seu pai,

altíssimo, poderoso, com umas mãos tão grandes que, quando o

acariciavam, podiam abranger toda a cabeça, e que, quando lhe batiam,

eram como luvas de boxe sem a proteção de tecido e borracha, pura

fúria de ossos na palma pesada e no dorso brutal.

Descalçou os ténis e as meias, que estavam húmidas, e procurou

umas secas no estendal da cozinha. Não tinha sono e, por isso, depois de

comer um panado com tomate, levou para junto do prato o mapa político

da Ásia que tinha de completar. Olhou para as linhas que delimitavam os

países e, embora fosse permitido usar uma enciclopédia para ajudar a


fazer os trabalhos de casa, tentou lembrar-se dos nomes sem a consultar:

o exame seria assim. China, Pequim. Meio a brincar, pintou o país de

amarelo. A ilha de cima era o Japão. Tóquio. A vermelho. Gostava de

geografia. Não gostava de matemática e ainda menos de geometria, mas

era para isso que servia Belén, a colega que queria ser engenheira e que

lhe passava as soluções dos problemas e dos traçados com o transferidor

em troca dos trabalhos de inglês e de castelhano. O intercâmbio era

perfeito, a não ser pelo facto de gostar de Belén. Também gostava de

outras raparigas, mas nenhuma lhe parecia tão bonita como Belén, nem

o punha tão nervoso e tão contente ao mesmo tempo. E a ideia de querer

estudar engenharia ainda o fazia gostar mais dela: era diferente de todas.

Ainda não reunira coragem para a convidar para sair ou para lhe

pedir que namorasse com ele. Sabia que as outras raparigas gozavam

com eles por se chamarem Belén e Gaspar: o lugar de nascimento de

Jesus e um dos Reis Magos. Era uma piada. O seu nome associado ao do

da rapariga de quem mais gostava era uma piada. E ela era arrogante, tão

linda com a sua boca grande e os seus olhos escuros e a pele tão fina,

que parecia transparente, dava para ver todas as veias azuis da face;

Gaspar também achava que parecia uma espécie de mapa. E as meias

que usava, brancas, até mesmo abaixo do joelho, e o anel prateado no

mindinho.

Agora não se lembrava da capital do Irão. Teerão ou Bagdade?

Teerão, decidiu, e pintou o país de lilás. Ainda faltavam alguns países,

aqueles que confundia sempre: lembrava-se dos nomes — Malásia,

Indonésia, Camboja —, mas não conseguia situá-los no mapa. Não lhe

apetecia ir ao andar de cima buscar uma enciclopédia: poderia fazê-lo

no dia seguinte.

Foi para o quarto descalço: dava para a rua, ou melhor dizendo, para

o pátio da frente, que era estreito e tinha vários canteiros secos. A janela
estava fechada e a persiana corrida, e Gaspar não as abriu. Viu os livros

que estavam na mesa de cabeceira, mas não tinha vontade de ler nenhum

deles, nem sequer os de poesia, de que gostava mais, embora não os

percebesse, porque às vezes, quando lia duas palavras juntas em voz alta

cujo efeito era belo, ficava com vontade de chorar. Também não lhe

apetecia ouvir música no walkman novo que o tio lhe enviara do Brasil

no Natal. Também não podia ver nenhum filme porque emprestara o

leitor de cassetes de vídeo a Pablo. Tinha de dormir. Despiu as calças,

mas não a t-shirt; atirou a suéter para cima da cadeira. As esfoladelas do

joelho já estavam secas, no dia seguinte teria comichão e depois

arrancaria as crostas e a ferida demoraria imenso tempo a sarar; fazia

sempre a mesma coisa.

Antes de se tapar, depois de ajeitar a almofada dobrada em duas,

tirou da gaveta o fascículo da coleção de arte indígena e popular escrito

pela mãe e que tinha a fotografia dela. Havia mais artigos escritos por ela

em diferentes livros da casa, alguns em inglês. Gaspar lembrava-se do

título de todos. «O mundo tupi-guarani nas vésperas da Conquista», «Se

Deus fosse um jaguar: canibalismo e cristianismo entre os guaranis»,

«Sociocultural dimension of epilepsy: an anthropological study among

Guarani communities in Argentina» e muitos mais, também sobre outros

temas, mas nenhum desses capítulos ou pequenos livros tinha a sua

fotografia. Aquele fascículo, sim. A coleção compunha-se de dez

números, disse-lhe o pai, mas lá em casa só havia cinco. A tua mãe

estava orgulhosa, mas também muito zangada, por ser a única mulher da

coleção, contou-lhe. Zangada porquê?, perguntou Gaspar. Por muitas

coisas, por haver poucas antropólogas, porque as poucas que havia não

eram convidadas para as conferências e os congressos, por estar farta de

trabalhar sempre com homens.


O fascículo pertencia a uma coleção publicada pelo Centro de Artes

Visuais do Museu do Barro, no Paraguai, como indicava a primeira

página. O título era Arte indígena e arte mestiça dos grupos indígenas

guaranis. Começava com um texto de quatro páginas sem imagens

muito difícil, pelo menos para Gaspar, que explicava as «famílias

linguísticas» indígenas, definia o conceito de «popular»… e era

aborrecido para ele. Mas as dez páginas que se seguiam tinham umas

fotografias a cores que ele adorava: uma talha em madeira da cabeça de

um Cristo ensanguentado do século XVII, outro Cristo de corpo inteiro

chamado «da coluna», muito maltratado e com as mãos atadas num pau

que lhe dava pela cintura; uma Virgem estranhíssima, uma espécie de

tronco sem pernas cujo coração de latão, situado fora do peito, estava

trespassado por espadas, chamada Dolorosa; depois, um quadro com um

Cristo crucificado a jorrar sangue do peito, que um anjo recolhia num

cálice dourado a modo de balde. A segunda parte do fascículo intitulava-

se «Santería popular» e era a sua favorita. Havia vários esqueletos

chamados São Morte: todos diferentes, quatro fotografias. Numa, o

esqueleto era muito alto, tinha uma gadanha na mão esquerda e, na

direita, uma vassoura; noutra, o esqueleto era gorducho e pequeno, e

tinha uma boca desenhada e uma gadanha tão pequena, que mais parecia

uma faca: era engraçado. O seguinte, não: um esqueleto num caixão

pintado de preto, sério e meio erguido. E o último era o mais estranho: a

legenda dizia que fora talhado em osso (não especificava se era animal

ou humano) e que media nada mais nada menos que cinco centímetros,

e era um esqueleto sentado com a cabeça entre as mãos, como se

estivesse à espera num banco. Depois, seguia-se Santo Son, um homem

vestido de vermelho com uma espada na mão, em cima de um jaguar:

era de madeira. E, depois, Santa Liberata, uma mulher crucificada. A

secção final, com desenhos indígenas, era a mais aborrecida: pássaros e


tatus e teias de aranhas enormes no meio de árvores, peixes no rio,

crocodilos, pessoas a plantar vegetais enormes parecidos com abóboras.

Na contracapa havia uma fotografia da mãe e um resumo da sua vida

e do que estudara. Dizia: «Rosario Reyes Bradford nasceu em Buenos

Aires em 1949 e é a primeira mulher argentina doutorada em

Antropologia pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

Especializou-se em antropologia simbólica, antropologia da religião e

etnografia guarani. É docente e investigadora na Universidade de Buenos

Aires. Publicou mais de vinte artigos nos seguintes países: Argentina,

Paraguai, Brasil, Colômbia, México, Estados Unidos, Inglaterra, França

e Bélgica. É autora do livro Tekoporá: Explorações antropológicas

sobre história, religião e ontologia guarani.»

Ao lado da fotografia estava um texto assinado pela mãe no qual

agradecia a Cristino Escobar, diretor do museu, à editora, às

comunidades mbyá de Misiones e do sul do Paraguai, e a uma lista de

pessoas, e depois vinha o que interessava a Gaspar. Dizia: «Obrigada,

Tali, minha irmã, minha melhor amiga e minha colega de trabalho.

Agradeço ao Juan pelo seu amor incondicional e ao Gaspar, o homem da

minha vida, que suportou as ausências da mãe como um valente e a

recebeu, em todos os regressos, com alegria e sem recriminações.»

Gaspar perguntou ao pai porque é que se referia a Tali, uma amiga da

família a quem via de vez em quando, como sua irmã, e Juan disse-lhe

que era uma maneira de falar, porque gostavam muito uma da outra.

Gaspar ficou dececionado: esperava que fosse sua tia, queria ter um

pouco mais de família.

Tentou recuperar todas as recordações da mãe: ela a descer a escada,

a pôr-lhe um lenço frio na testa quando lhe doía a cabeça; a dizer-lhe

que já voltava, que ficasse sentado e quietinho (lembrava-se claramente

do «quietinho»), e a entrar depois num corredor, que corredor seria esse.


Também se lembrava de um passadiço ou de um cais como os que há no

mar, mas, em vez de água, por baixo havia árvores. Copas de árvores.

Iam de mãos dadas e ela tinha o cabelo escuro. A mãe na cama a

explicar-lhe o significado das cartas. A beijar o pai em bicos dos pés e

ele agachado, agarrando-a pela cintura.

Na fotografia que acompanhava os agradecimentos, a mãe estava a

olhar para a câmara. O fascículo era de 1979, mas a fotografia, disse-lhe

o pai, era anterior e a preto e branco. Tinha uma camisa branca de

manga curta: os braços eram muito magros, mas, e Gaspar tinha um

pouco de vergonha de pensar nisso, era mamalhuda. E muito bonita,

realmente, e ele não gostava de pensar assim na sua mãe, mas era muito

bonita, com o cabelo solto e um pouco desalinhado e os lábios grossos.

Uma vez, o pai disse-lhe que ela se maquilhava muito pouco e que isso

era raríssimo nas mulheres da sua época. Pede a qualquer um dos teus

amigos que te mostre fotografias das mães deles de há dez anos e repara.

E Gaspar fê-lo e era verdade: a mãe de Vicky aparecia com tanta sombra

escura nos olhos, que parecia o guaxinim dos desenhos animados, e

também tinha a boca como que besuntada de vermelho e as bochechas

sujas de pó encarnado. Mas as sobrancelhas eram o pior. A mãe de

Pablo, por exemplo, não tinha sobrancelhas de todo nas fotografias do

casamento, bah, tinha sobrancelhas pintadas na pele, muito fininhas.

Pelo contrário, a sua mãe, naquela fotografia e noutras, tinha as

sobrancelhas normais. Porque é que as mulheres arrancam as

sobrancelhas, perguntou Gaspar, e o pai, a sorrir, respondeu que a mãe

fazia a si própria a mesma pergunta. A tua mãe era doida por roupa e

por moda, disse-lhe, mas não imitava ninguém. Na fotografia tinha uma

pulseira larga: olhando com atenção, via-se uma víbora com a boca

semiaberta e uma língua bífida apoiada no pulso.


Fechou o fascículo e enxugou os olhos com o lençol. No bolso da

suéter espreitava uma fotocópia com a cara de Diana. As outras tinham

ficado na cozinha. Não fazia sentido ir colá-las agora, que estava a

chover. Pensou na cadela. Passava a vida deitada, a brincar com uma

bola de ténis. Tinha um problema na anca e levantava-se com

dificuldade: no início, caminhava lentamente; depois, voltava ao normal,

como se a anca precisasse de aquecer um pouco antes de voltar a

funcionar. Era boa e um pouco burra, por isso fora tão estranho que se

tivesse ido embora.

Gaspar tinha lido nalgum lugar — numa revista?, numa história?,

não se lembrava — que, se desejássemos alguma coisa com muita força,

se nos concentrássemos e fechássemos os olhos e pedíssemos o que

queríamos sinceramente, podia tornar-se realidade. Pensou em Diana,

cabeçuda e com o lombo um pouco abaulado, em como às vezes parecia

mais espevitada, especialmente quando Electra, a cadela mais nova de

Vicky, a importunava, e corriam juntas, com a língua de fora e essa

espécie de sorriso que às vezes esboçam os cães, nas traseiras da casa,

umas traseiras pequenas rodeadas de canteiros, canteiros com flores,

hortênsias e rosas e azáleas, explosões de violeta e vermelho contra os

tijolos pintados de branco. Adormeceu a pensar em Diana a comer os

jasmins e na avó de Vicky a gritar-lhe que não lhe estragasse as plantas,

que davam imenso trabalho.

Primeiro, foi o frio que o acordou e apercebeu-se de que, durante o

sono, pontapeara o cobertor. Muitas vezes seguidas. Vicky dissera-lhe,

nas últimas férias, que se mexia imenso e que falava a dormir. O que é

que eu digo, perguntou-lhe, e Vicky, muito séria, respondeu-lhe que não

se percebia nada. Gaspar não acreditou nela. Tinha de ligar o gravador

uma noite para se ouvir.


Quando acordou pela segunda vez, não percebeu logo onde estava:

sonhara com Diana. Um sonho esquisito: encontrava-a na piscina do

parque, a boiar, de certeza que se afogara, mas, quando chamava por ela,

a cadela levantava a cabeça e ia ter com ele a arfar e toda contente,

mexendo as patas dianteiras com muito esforço. Não foi o sonho que o

acordou: foram umas patas, precisamente, que o acordaram. Patas de cão

a arranhar a persiana e os gemidos de um animal que queria entrar.

— Diana! — disse em voz alta, e pensou levá-la nesse preciso

instante a Vicky, a meio da noite. Gaspar levantou-se depressa, abriu a

janela e levantou a persiana. Não havia nada lá fora. Nada, a não ser as

grades, a porta fechada e o pátio vazio; no chão, a chuva suave, mas

contínua, que o tornava escorregadio e prateado sob as luzes. O céu

estava enevoado e claro: era uma noite húmida e luminosa. Com a

cabeça do lado de fora da janela, disse Diana!, em voz baixa, mas, então,

sentiu um violento puxão no cabelo que o devolveu ao quarto e um

empurrão que o arrancou da janela e o atirou contra a parede, embora

não com muita força. Viu o pai, apenas com umas cuecas pretas, a

fechar bruscamente a janela e a descer a persiana com uma violência que

lhe pareceu estranha, demasiado urgente. Depois, olhou para ele. Não

estava zangado, não completamente, não estava furioso. Estava

admirado.

— O que é que estás a fazer? — perguntou-lhe, não muito alto, não

gritava. Gaspar relaxou os ombros, que encolhera num movimento

reflexo. — Porque estás a chamar os mortos?

— Era a cadela da Vicky!

— Que cadela? De que é que estás a falar?

— A Vicky perdeu a cadela e eu ouvi-a agora mesmo a arranhar a

persiana!
Nesse momento, o pai descontraiu-se, abandonou a atitude

ameaçadora e passou a mão pelo cabelo. Tinha a sobrancelha esquerda

arqueada, um gesto muito comum nele, de incredulidade, algumas vezes

de desprezo, outras, menos frequentes, por achar graça a alguma coisa.

Sentou-se na cama de Gaspar e tapou os ombros com o cobertor.

— Vai buscar a minha bebida, está na minha mesa de cabeceira. E os

cigarros.

Gaspar não gostava de que o pai fumasse no seu quarto, ficava com

um cheiro horrível; não gostava de que fumasse em geral, mas já lhe

pedira que deixasse de fumar e não fazia sentido insistir. Trouxe o copo

de whisky e os cigarros. O pai acendeu um e apagou-o logo a seguir, no

chão.

— Vem cá — e afastou-se para que ele se pudesse tapar com o

cobertor ao seu lado.

Bebeu um gole de whisky, passou a língua lentamente pelos lábios e

disse-lhe:

— A cadela está morta. Não era a cadela da Vicky. Se é que era uma

cadela.

Gaspar sentiu o medo a secar-lhe a boca. O pai olhou para ele

fixamente: tinha olheiras, os lábios um pouco arroxados, como os de um

afogado.

— Tens a certeza? Só está desaparecida desde esta manhã…

— Tenho a certeza.

O pai cheirava a álcool. Estava um pouco bêbedo, julgava Gaspar,

mas nunca se sabia. Acomodou-se um pouco melhor na cama e,

acidentalmente, tocou no fascículo, que estava em cima da almofada.

Pegou nele e pô-lo em cima da mesa de cabeceira.

— Alguma vez tentaste com ela, com a tua mãe?

— O quê?
— O que fizeste esta noite, quando chamaste a cadela da tua amiga.

— Eu não a chamei…

— Gaspar, ambos sabemos perfeitamente do que estamos a falar.

O que é que lhe devia responder? Tinha medo do pai, ali, sentado

sob o cobertor, à luz do candeeiro, a chuva de repente mais forte — com

o vento, as gotas fustigavam a persiana — e as patas do cão-fantasma a

arranharem-lhe a cabeça.

Tenho de dizer a verdade, pensou.

— Sim, tentei, mas não aconteceu nada.

O pai respirou fundo e, quando expulsou o ar, fê-lo devagar e a

tremer.

— Não se deve manter vivo o que está morto — disse. — Nunca

mais voltes a fazer isso.

— Eu não sabia que a cadela estava morta.

— Não, claro que não. Mas nunca mais voltes a fazer isso. É muito

perigoso.

— Nunca a teria chamado, como poderia fazê-lo, se já está morta.

— Mas chamaste a tua mãe.

Gaspar hesitou.

— Não sabia que pensar nela e querer que volte é chamá-la.

O pai bebeu o whisky todo de uma vez.

— Em geral, não é. Não quero que voltes a fazê-lo.

— Já percebi, pai.

— Os fantasmas são reais. E nem sempre aparece quem nós

chamamos.

O pai voltou a acender um cigarro, mas, desta vez, fumou-o na

escuridão. Às vezes, quando exalava o fumo, tossia. Destapara os

ombros e só tinha o cobertor em cima das pernas compridas e magras,

cobertas de pelos louros. O cigarro apagou-se lentamente nas gotas de


whisky que restavam no copo. Gaspar desejava que o pai se fosse

embora, mas ele esticou-se na cama e Gaspar sentou-se no lado oposto,

com as pernas encolhidas contra o peito.

— Não consigo dormir — disse o pai, a modo de explicação.

Olharam-se na semipenumbra. Lá fora, a chuva sacudia as árvores e

Gaspar julgou ouvir de novo as patas do cão, agora a correr no chão, mas

tentou não prestar atenção.

— Posso perguntar-te uma coisa?

— Tu também não tens sono.

— Não, e, além disso, já dormi um bocadinho. Ontem falei com a

Adela e ela disse-me que, às vezes, tem comichão no braço que lhe falta.

Eu disse-lhe que estava a mentir porque é óbvio que não é verdade, não

é?, mas ela foi-se embora a chorar e, sei lá, eu conheço-a e percebo

quando está a mentir, é muito mentirosa, mas desta vez pareceu-me que,

se calhar, até podia ser verdade.

Juan sorriu e sentou-se na cama. Gaspar percebeu que tinha mais

dificuldade em respirar deitado, sobretudo se tivesse de falar.

— Não é mentira. É muito comum nos amputados. Acho que o

cérebro continua a ter uma área reservada para o membro que falta e,

por isso, produz sensações que lhe parecem coerentes. Nós não sentimos

com a pele, filho, sentimos com o cérebro. A dor está no cérebro.

— A sério?

— Vamos fazer uma experiência. Vai buscar, deixa ver: uma luva de

cirurgião, está bem? A enfermeira deixou cá alguma?

— Sim, na casa de banho.

— Isso. Uma luva e duas escovas de dentes, e uma faca e uma colher.

E preciso de uma tábua de madeira.

— A que usas para desenhar?

— Mais pequena.
— No outro dia, caiu a tampa da persiana da sala. Está encostada à

parede.

— Nem me apercebi.

— Eu depois arranjo-a; quando vier a senhora das limpezas ou os do

dinheiro, peço-lhes para me segurarem na cadeira.

— Essa tábua é boa, é alta. Traz alguns dicionários da biblioteca

para servirem de apoio. Despacha-te, para eu te mostrar.

Gaspar saiu depressa do quarto, tentando disfarçar o entusiasmo. Se

o pai se apercebesse de como ficava contente quando brincava com ele,

quando passava algum tempo com ele, podia ir-se embora sem lhe dar

qualquer tipo de explicação. Há algum tempo que Gaspar se apercebera

dessas mudanças de humor repentinas e já nem sequer tentava explicá-

las: se o pai queria passar uns momentos divertidos com ele, limitava-se

a desfrutar deles, e pronto.

Reuniu as coisas e pô-las em cima do colchão. O pai ajoelhou-se ao

lado da cama e fez-lhe um gesto para que fosse para o lado oposto.

Depois, pediu-lhe que vestisse o blusão e que, por favor, enchesse a luva

como se fosse um balão.

— Vejamos se a conseguimos encher e dar-lhe um nó para ficar

parecida com uma mão.

Após duas tentativas, Gaspar conseguiu. A luva era pequena e, cheia,

tinha a palma curta, mais parecia que só tinha dedos.

— Agora, tira o braço para fora do blusão. O braço direito. Deixa a

manga vazia pendurada. E apoia-a em cima da cama.

Juan pôs a luva cheia no lugar onde devia estar a mão de Gaspar.

Depois, colocou a tábua verticalmente em cima da cama, a modo de

biombo, e pediu a Gaspar que pusesse o braço real no outro lado.

— Chamam a isto ilusão da mão de borracha — disse, e pôs a mão

verdadeira de Gaspar, a que estava atrás da tábua de madeira, na mesma


posição, com os dedos para cima, como se fosse uma aranha de barriga

para o ar, e à mesma altura que a mão de borracha.

— Não olhes para a tua mão verdadeira. Olha para a luva e para a

outra mão, a que não está atrás da madeira. E põe-na na cama também,

como se tivesses três braços.

Então, Juan agarrou na escova de dentes e acariciou suavemente o

dedo médio da mão de Gaspar que estava atrás da tábua e o mesmo dedo

da mão de borracha.

— Se tivermos sorte — prosseguiu —, isto fará com que sintas que a

mão de borracha também é tua.

Juan repetiu a carícia com as duas escovas de dentes ao mesmo

tempo e não disse nada. Gaspar continha a respiração. Depois do dedo

médio, a escova acariciou ao mesmo tempo os dois indicadores e os dois

polegares.

— Não deixes de olhar para a mão de borracha — disse Juan. A

tábua estava amparada por quatro dicionários empilhados. As carícias

continuaram; lá fora, chovia menos, agora ouviam-se apenas o vento e

um ou outro carro.

— Quando escovo a luva, sentes que estou a escovar a tua mão?

— Faz outra vez — pediu Gaspar, fechando os olhos. Sim, era isso

que estava a sentir, apesar de ver, muito claramente, a luva amarela

dentro da manga do blusão azul. — Sinto, sim, é como se fosse a minha

mão.

— Muito bem. Abre os olhos — disse Juan, e pegou rapidamente na

faca. Com um movimento certeiro e preciso, espetou-a no meio da luva.

Gaspar viu a faca a aproximar-se e pensou não, não, vai espetar-ma!, e

abafou um grito porque, quando retrocedeu para evitar ser esfaqueado, já

se tinha apercebido do truque. Sentiu a faca a espetar-se na mão


verdadeira quando, realmente, esta só tinha furado, com o gume, a luva

de borracha.

— Porra — disse. Juan sorriu-lhe. — Devias fazer isto nas festas de

aniversário, e assim! É melhor do que os truques de magia!

— Faz tu, agora que aprendeste. Com uma mão de plástico, de

manequim, por exemplo, é melhor. Estás a ver? Sentimos com o cérebro.

— Muito bom. Queres que te faça a ti?

— Não.

— Onde é que aprendeste isto?

Juan, de repente, ficou sério.

— No hospital. Uma vez, estava internado e um médico ensinou-me

isto, para me divertir.

Voltou a tapar-se com o cobertor, deitando-se na cama. Gaspar

colocou os livros e a tábua de madeira num canto do quarto. O pai não

se importava quando a casa estava desarrumada e com as coisas

espalhadas por todo o lado.

— Então, o que a Adela me contou é verdade.

— Não só é verdade, como é muito frequente. Admira-me que ainda

não soubesses isso ou que ela não to tivesse contado.

— E agora, o que faço?

— Tens de lhe pedir desculpa.

Gaspar revirou os olhos.

— Cometeste um erro, tem de ser. Ela conquistou o direito de gozar

contigo durante uns tempos.

Gaspar deitou a língua de fora. Depois, instalou-se na cama ao lado

do pai, que partilhou com ele o cobertor.

— Papá, tu podias descobrir onde está a Diana, se quisesses.

Juan passou a mão pelo cabelo de Gaspar, tão fino e tão limpo, e

coçou-lhe a nuca.
— Não gosto de fazer vidência por coisas menores, nem devo.

— Mas podias.

— Podia. Gostavas da cadela?

Gaspar pensou.

— Gostava. E, além disso, gosto da Vicky e da Electra, a outra

cadela. Está transtornada. Passou a tarde toda a chorar. A Diana é como

se fosse a mãe dela, porque é velha, embora não seja a mãe verdadeira.

Tem saudades dela.

— Tem saudades dela porque já sabe que está morta. Os animais têm

uma perceção que nós perdemos.

Juan levantou-se da cama e deixou que o cobertor tapasse

completamente Gaspar. Pegou na faca e na luva furada e disse:

— Toca a dormir.

Se fosse possível ver de cima aquela zona do bairro, sobrevoando-a

como nos sonhos ou com um helicóptero, ver-se-iam casas com terraços,

quase todas com um pátio nas traseiras, algumas, muito poucas, com

piscina. Ver-se-iam muitas árvores nas ruas, uma autêntica raridade na

cidade, e algumas pequenas fábricas fechadas ou que só funcionavam

poucas horas por dia. Uma avenida divide o bairro em duas metades

idênticas e, embora seja uma avenida estreita, os que vivem num dos

lados geralmente permanecem lá, fazem lá as compras, têm lá os

amigos; não é por desconfiança nem por se julgarem diferentes dos do

outro lado, é só porque a avenida funciona como um rio, como um

limite natural.

Victoria, Gaspar, Pablo e Adela vivem no lado esquerdo da avenida.

A casa de Adela fica a vinte metros da avenida, na Rua Villarreal. No

lado direito, fica a mercearia da Turi; no esquerdo, o pátio da Dona


María e de Don Ramón, onde há árvores de fruto e já houve um

galinheiro, agora fechado.

A casa de Gaspar fica no mesmo quarteirão que a de Adela, mas na

Rua R. Pinedo, perpendicular à Villarreal. Precisamente a meio

caminho, quase exatamente no centro, e ocupa um quarto do quarteirão.

É a única casa luxuosa, elegante, de todo o bairro, mas, por desleixo,

tem um ar sujo e um pouco selvagem. O pátio, com os seus elegantes

caminhos de mosaicos e vestígios do que outrora podia ter sido uma

fonte, está completamente arrasado, a relva não cresce e só há um

estendal para a roupa que gira apenas quando sopra o vento. O terraço

está todo coberto de vidro, milhares de cacos de garrafas verdes e

transparentes, como para evitar que alguém trepe ou algum animal

pouse na casa.

Há que atravessar a R. Pinedo e voltar a entrar na Villarreal para ir

até à casa de Victoria, situada entre um quiosque modesto e sempre

abafado e a casa dos italianos, que às vezes também funciona como

forja. Nas traseiras, limita com uma serração que só abre dois dias por

semana, mas que deixa no ar um aroma fresco a serradura e a plantas,

um cheiro a novo que ajuda a esquecer que a pequena empresa, com

apenas dois empregados, está prestes a fechar.

A casa de Pablo é a mais vistosa da Rua Mariano Moreno. Tem dois

andares e um telhado. No pátio da frente há hortênsias e roseiras e

amores-perfeitos. A mãe é professora de inglês. O pai é gerente de uma

empresa de gás natural comprimido para carros; está a abrir sucursais e

estações de serviço em toda a região. Muitos estão convencidos de que

vai fracassar, que as pessoas nunca deixarão de usar gasolina, por

estarem mais acostumadas, que têm medo de encher o depósito com gás,

não vá o carro explodir. Estão enganadas. O negócio vai torná-lo rico.

Ela quer ter outro filho porque se sente sozinha. Não se entende lá muito
bem com Pablo. Não quer repetir o que o marido diz do filho mais

velho. Também ela já se apercebeu. Se fosse uma boa mãe, gostaria dele

na mesma, apesar de tudo, mas não é e quer voltar a experimentar, para

ver se o novo rapaz lhe sai melhor. As traseiras da casa limitam com o

grande armazém da gráfica. É silencioso. Ao lado do armazém, cuja

entrada é uma grade de enrolar pintada de verde, há uma casa

abandonada, o número 504 da Villarreal, entre as ruas Moreno e Ortiz

de Rosas. Muitos moradores estugam inconscientemente o passo diante

do seu portão enferrujado; sem se aperceberem, querem deixá-la para

trás o mais depressa possível. Também tentam não olhar para ela.

Uma tarde, depois da escola, Victoria acompanhou a mãe até ao

supermercado e ela não se limitou a acelerar quando passou pela rua da

casa abandonada, desatou a correr pelo caminho de ladrilhos amarelos,

velhos e partidos. Victoria perguntou-lhe porquê. Ela riu-se.

— Sou tão parva! Tenho medo daquela casa, não ligues.

— Porquê?

— Por nada, por estar abandonada. Não ligues, já disse. Tenho medo

de que alguém esteja escondido lá dentro, um ladrão, qualquer coisa,

mas não passam de fantasias.

Victoria continuou a fazer perguntas, mas não conseguiu obter

grandes informações. Só que os donos, um casal de velhotes, tinham

morrido havia uns quinze anos. Morreram ao mesmo tempo?, quis saber

Victoria. Não, um a seguir ao outro. Costuma acontecer aos casais de

velhotes: quando um morre, o outro apaga-se logo a seguir. E, desde

então, os filhos não se entendem em relação às partilhas. O que são

partilhas, perguntou Victoria. É a herança. Continuam a discutir sobre

quem é que fica com a casa. Mas é uma casa bastante rasca, disse

Victoria. Sim, mas, se calhar, é a única coisa que têm.


A casa não é especial à primeira vista, mas se fosse possível pairar

diante dela, acima dela, surgiriam os detalhes. A porta de ferro pintada

de castanho-escuro. O pátio da entrada com a relva muito curta e

ressequida. Está queimada, arrasada, nada é verde: naquele pátio, há

seca e é inverno ao mesmo tempo. Às vezes, a casa parece sorrir. Os

dois olhos fechados, as janelas tapadas por tijolos, dão-lhe um ar

antropomórfico, mas, além disso, os rapazes do bairro, quando mexem

na corrente e no cadeado durante as suas tentativas inúteis de abrir a

porta principal, às vezes deixam-nos pendurados de tal maneira que

mais parecem uma boca em semicírculo, um sorriso entre os olhos-

janela. Numa noite de Fim de Ano em que havia muita gente na rua,

Victoria aproximou-se da casa. Teve a impressão de que lhe devolvia o

olhar, de que as suas janelas cegas eram dois olhos quadrados que lhe

diziam enganei-te estes anos todos, sempre que passaste na minha rua e

me fiz de parva e me escondi, mas agora quero que saibas, quero que

digas que há alguma coisa dentro de mim. Victoria voltou a correr para

junto dos pais, que tentavam, em vão, acender um foguete, e não disse

nada. Lembrava-se de ter trocado um olhar com Juan Peterson, que

insolitamente estava na rua com um copo de cerveja na mão. Ele não lhe

disse nada, embora estivesse muito sério. Hugo Peirano acabou por

conseguir acender a mecha, e Victoria tapou os ouvidos e fechou os

olhos. Quando os abriu, Juan Peterson já não se encontrava entre as

pessoas e o copo de cerveja vazio ficara em cima do tejadilho de um

carro abandonado que enferrujava encostado ao lancil.

Gaspar acordou tarde: costumava acontecer aos domingos porque

nenhum barulho lhe interrompia o sono, especialmente se se tivesse

deitado tarde. Nunca se espreguiçava nem passava nenhum tempo na

cama, nem sequer nas manhãs mais frias de inverno. Fazia-lhe alguma
impressão ficar demasiado tempo deitado: fazia-o lembrar a doença e o

cansaço do pai. E, às vezes, tinha a sensação de que, se ficasse a dormir,

tapado, a respirar o seu próprio cheiro, podia não voltar a acordar, podia

deixar-se levar por aquela sensação de vazio, tão semelhante à de boiar

de cansaço depois de nadar muito.

Preparou o pequeno-almoço a pensar no que faria a seguir: procurar

a cadela ou fechar-se na casa de banho com uma revista pornográfica

antes de sair — não queria que o pai o apanhasse a ler as suas folhas

acetinadas; embora tivesse a certeza de que não se zangaria com ele,

tinha um pouco de vergonha —, ouvir o relato das quatro da tarde,

comprar alguma coisa para comer porque, se passasse muitas horas com

o estômago vazio, ficava com dores de cabeça. Enquanto aquecia o leite

num púcaro e cortava o pão para o untar com doce de leite, aproximou-

se da porta da cozinha para ver se o pai já acordara. A porta do quarto

estava fechada, o que não significava forçosamente que estivesse a

dormir, mas que não queria que ninguém o incomodasse. Era melhor

sair depressa. Mais tarde, podia almoçar no café do parque Castelli.

Quando se sentou à mesa da cozinha para tomar o pequeno-almoço,

viu o bilhete. O pai escrevera-o no verso de uma fotocópia da fotografia

de Diana. Dizia, com a sua letra clara: «A cadela está no estacionamento

do Llaneza. Enterra-a antes de apodrecer.» Percebeu logo a que é que se

referia: o Llaneza era o supermercado que havia depois do parque. Não

duvidou um segundo de que a cadela estivesse mesmo lá. Com a caneta,

que ficara em cima da mesa, respondeu «obrigado» abaixo da mensagem

e foi para a rua com a boca cheia de pão. Não estava a chover, mas havia

humidade e fazia um pouco de frio e, por isso, subiu o fecho da suéter

até tapar o pescoço.

A loja de bicicletas abria aos domingos porque, além de as vender e

de as arranjar, também as alugava a quem quisesse dar um passeio no


parque aos fins de semana. Gaspar levantou a sua, dotada de um novo

farolim noturno, e pagou com o dinheiro que guardava sempre num rolo

no bolso das calças ou do blusão. Com a bicicleta arranjada e mais leve,

porque o mecânico oleara a corrente, dirigiu-se para o estacionamento

do Llaneza. Travou em seco quando viu o rabo e as patas da cadela. Não

havia dúvida de que estava morta. Tinha a mesma quietude das pombas

esparramadas na rua, algo definitivo e longínquo, repulsivo por ser

alheio. Não olhou para a cara dela e partiu muito depressa, sem se

apoiar no assento, nem deixar de pedalar, rumo à casa de Vicky. Sabia

que, àquela hora, Hugo Peirano estaria a lavar o carro na rua e, quase de

certeza, a ouvir o relato de algum dos dérbis que se jogavam ao início da

tarde.

E lá estava ele. Hugo Peirano fumava e dava mangueiradas ao seu

Taunus amarelo. Uma cor ridícula para um carro, pensava Gaspar.

Travou ruidosamente perto do lancil e, sem descer da bicicleta,

cumprimentou o pai da amiga. Deixou-o falar primeiro sobre o

campeonato que começaria em julho, sobre as chapas do grelhador que

tinham voado na noite anterior, sobre o carro que teria de levar à oficina.

Quando acabou, Gaspar disse:

— Encontrei a Diana.

Hugo petrificou com a mangueira na mão. Nessa posição saía pouca

água, mas o suficiente para lhe molhar as calças. Pela expressão de

Gaspar, percebeu que ter encontrado a cadela não era necessariamente

uma boa notícia.

— Está no estacionamento do Llaneza do parque.

— Tens a certeza de que é ela?

— Tenho, vi-a quando fui buscar a bicicleta.

— Puta que a pariu — murmurou Hugo, olhando para baixo para

que Gaspar não visse que tinha percebido e que a morte da cadela o
afetava. Gaspar também baixou a cabeça, sabia que a maior parte dos

homens não gostava de que alguém os visse chorar e menos ainda outro

homem e menos ainda um rapaz.

— Bom. Que desgraça, pobre animal. Contamos à Vicky? Ou

fingimos que se perdeu?

Estava mesmo a perguntar-lhe aquilo ou era uma forma de falar?

Pelo sim, pelo não, Gaspar foi completamente sincero.

— Claro, não lhe podemos esconder que a Diana morreu. Se

descobrir, vai odiar-nos.

— Tens razão. Vem comigo, anda — disse Hugo, e Gaspar meteu a

bicicleta na garagem dos Peirano, fechou a porta e seguiu o pai da amiga

pelo corredor. Ouviam-se as mulheres, as meninas, a avó, a mãe, a jogar

às cartas no alpendre das traseiras, como faziam todos os domingos

antes de almoçar.

— É naquela casa — apontou Adela —, não é, mamã?

— Não sei em que casa é. Também acho que não vai aparecer

nenhum enforcado.

Gaspar olhou para Betty ao aperceber-se de que o seu tom de voz era

ansioso. Tinha uma echarpe azul à volta do pescoço, que lhe dava um ar

esquisito, como de ave, intensificado pelo nariz. Às vezes, Gaspar

pensava que era um pouco injusto chamar-lhe Betty, porque uma mulher

tão alta e com uns gestos tão delicados merecia um nome completo,

Beatriz, e não um diminutivo.

Adela continuou a contar. Os buldózeres já tinham chegado para

demolir as casas e fazer a autoestrada. Esta que passa por cima de nós.

Algumas pessoas não queriam entregar as casas. E o tipo, quando o

foram buscar para o obrigar a sair, enforcou-se. Encontraram-no assim.


Tiram-no de lá e deitaram a casa abaixo. E agora, nalgumas noites, vê-se

a sombra dele a balouçar. Eu vi-a. Quando voltar a aparecer, mostro-te.

— É verdade que demoliram as casas? — perguntou Gaspar a Betty.

— Sim, como é que as pessoas se podiam defender? Não se podia

discutir com a ditadura.

— Não protestavam? Eu li que sim.

— Devem ter protestado um pouco, mas não havia grande coisa a

fazer. A ditadura decidiu fazer uma autoestrada aqui e obrigou as

pessoas a irem embora. Não se podia negociar. Mandaram-nos para a

porcaria de uns apartamentos.

Os carros passavam por cima do telhado do café: havia lojas

construídas debaixo de toda a largura da autoestrada. Nos últimos anos,

tinham aberto alguns campos de ténis e até estavam a construir piscinas,

escolas e uma ou outra praça sob o teto de betão. Gaspar gostava de

olhar para as paredes do que em tempos tinham sido casas de dois

andares ou apartamentos: os papéis dos quartos das crianças, com

macaquinhos e tartarugas; os duches e as torneiras em azulejos opacos;

e uma parede até apresentava as marcas dos quadros que lá tinham

estado pendurados.

— Juro-te que o vejo. Tem as pernas separadas e as mãos muito

grandes.

Betty suspirou.

— Eu acredito em ti, filha — disse. Gaspar não conseguiu decifrar a

expressão dela: se acreditava mesmo ou se apenas o dizia para que Adela

esquecesse a sua obsessão e comesse a sanduíche de presunto e queijo

19
em pan de Viena . Gaspar pediu uma tosta. Nesse dia, fora para o café

fazer os trabalhos de casa porque o pai estava agitado e não parava de

dar voltas à casa com os seus passos de gigante, e era melhor evitá-lo

quando não se conseguia adivinhar o que é que o incomodava ou porquê.


De repente, Betty perguntou:

— Tu também vês coisas, Gaspar? Como a Adela?

Estaria à procura da cumplicidade dele? Era estranho. Os pais, em

geral, preferiam que os filhos não falassem de coisas como a sombra de

um enforcado numa autoestrada. Betty continuava ansiosa e ajeitou a

echarpe. Tinha o cabelo muito comprido, que usava sempre solto.

— Não — disse Gaspar. — Essas coisas não existem.

— Isso quer dizer que nunca viste nada.

— Tu sim, Betty?

Adela interrompeu-os.

— Sabes o que é que seria fantástico? Irmos ao cemitério dos

frigoríficos. É assim que lhe chamam. Fica perto do campo desportivo

da escola.

— Não sei porque é que estão lá — disse Gaspar.

— Foram lá despejados pela fábrica que os fazia quando fechou —

explicou Betty. — É uma das muitas fábricas nacionais que fecharam.

Não os podiam vender porque pararam a produção. É um lugar perigoso

porque esse modelo de frigoríficos tem uma porta que bloqueia e é fácil

alguém ficar fechado lá dentro.

— Precisamente — continuou Adela. — Contaram-me que há

pessoas que metem os cães dentro dos frigoríficos quando se querem

livrar deles.

— Que estupidez — disse Gaspar, depois de sorver um pouco de

café com leite. — Para que é que os metem lá, se podem simplesmente

largá-los em qualquer lado?

— Os cães voltam para casa, até ficam nos hospitais quando os

donos morrem ou dormem em cima dos túmulos deles.

— E ela a dar-lhe com os cães que voltam, estás obcecada. Se lhes

derem uma valente tareia, nunca mais voltam, também não são parvos.
Não é preciso enfiá-los em frigoríficos. Estás a inventar.

— Não estou nada. E também dizem que há lá bebés de mulheres

que não queriam tê-los. E assassinados. Desaparecidos. Leva-me lá,

Gaspar.

Betty deitou açúcar no seu chá e não disse nada. Sabe que não a vou

levar, pensou Gaspar.

— Só se fosse maluco. O mais provável é não haver nada disso, mas

tenho a certeza de que vivem lá pessoas, porque está perto da favela, fica

longe daqui e não sabemos quem é que está lá escondido.

— Imagina que encontramos alguma coisa!

— Adela, já chega — disse Betty. — Quando ficas obcecada, não

paras, o Gaspar tem razão. Não vês que ele não te quer levar. Além do

mais, não podes falar assim dos desaparecidos, é uma falta de respeito,

já te disse. Ninguém sabe onde estão os assassinados. De certeza que

não estão nuns frigoríficos perto do Riachuelo. Basta.

— O Gaspar diz sempre primeiro que não e depois que sim, não é?

Adela sorriu e inclinou a cabeça; com as suas tranças, desarmava a

mãe, e Betty começou a penteá-la outra vez, vigorosamente. As tranças

nunca lhe duravam muito tempo.

— Não me respondeste, Betty — disse Gaspar. — Alguma vez viste

alguma coisa?

Os olhos de Betty pareciam chorosos, como se estivesse emocionada

ou lhe ardessem. Lá fora anoitecia e os empregados do café praticamente

vazio assistiam a um jogo de futebol na televisão.

— Conto-te noutro dia, agora, com ela neste estado de excitação,

prefiro manter-me de boca calada.

— Conta! Nunca me contas — pediu Adela.

— Porque ficas maluquinha — disse Betty, beijando-lhe a testa. —

Podes dar-lhe uma ajuda no castelhano, Gaspar? Não percebe nada,


pedem-lhes para analisarem orações. Venho buscar-vos daqui a uma

hora. Está bem?

Gaspar disse que sim e Adela passou-lhe o caderno descuidado com

os rebordos das folhas todos dobrados, e a letra parecia a de uma

rapariga muito mais nova, com o traço trémulo dos dedos infantis.

Nessa tarde, Pablo ia visitar os avós com os pais, mas o passeio foi

cancelado. Antes de entrarem no carro, os pais discutiram. A mãe gritou

que não queria ir ver esses velhos de merda e o pai respondeu-lhe claro,

ele também não queria que a vissem assim, suja e alterada. Era verdade:

a mãe estava suja e passava a vida a fumar e a chorar à frente da

televisão. Tinha-a ouvido dizer, ao telefone, que se calhar ajudaria ter

outro filho, mas que «não podia passar» pela «experiência» de perder

outro. Não queria que a mãe ficasse grávida, não queria ter um irmão se

eles se continuassem a dar mal: não acreditava que um bebé pudesse

melhorar fosse o que fosse, tinha colegas na escola com irmãos mais

novos que contavam que os pais discutiam, não conseguiam dormir com

o bebé a berrar e estavam sempre cansados e de mau humor.

Quando a mãe se enfiou no quarto a chorar e o pai arrancou com o

carro a uma velocidade furiosa, Pablo decidiu ir ter com Gaspar. Era

sempre complicado, porque não lhe podia telefonar. Podia bater à porta,

mas às vezes — Pablo não sabia bem porquê — tinha medo de o fazer.

Juan Peterson raramente abria, mesmo estando em casa: às vezes,

espreitava pelo vidro da janela do andar de cima e, quando via que era

ele, algumas vezes avisava Gaspar, mas quase sempre continuava o que

estava a fazer e ignorava-o. Não tinha medo de que o pai de Gaspar

abrisse a porta, porque isso nunca acontecia. Não conseguia precisar de

que é que tinha medo.


Estava frio e, por isso, Pablo vestiu um pulôver e o blusão de penas

e, para aquecer, foi a correr até à casa de Gaspar. Não havia ninguém na

rua e as janelas fechadas mal permitiam ouvir o barulho das televisões

ligadas, embora deixassem passar as suas luzes, mais brilhantes quando

os ecrãs eram a cores.

Quando chegou, ficou especado na rua, surpreendido. As duas portas

estavam abertas, a do jardim ressequido da entrada e a principal, da

casa. O que teria acontecido? Pablo espreitou: a casa estava muito

escura, parecia vazia, mas isso era normal. Às vezes, só o quarto de

Gaspar, que dava para a rua, tinha luz.

Entrou sem fazer barulho; a porta de madeira deixou-o entrar em

perfeito silêncio e não fez barulho quando se abriu um pouco mais. Mas

assim que pisou o amplo corredor da entrada (o «vestíbulo», como lhe

chamara uma vez Gaspar, uma palavra estranha que certamente copiara

do pai), Pablo soube que acontecera alguma coisa estranha. Não estivera

vezes suficientes naquela casa a ponto de lhe conhecer os barulhos e os

movimentos, mas apercebeu-se de que alguma coisa estava a bater no

chão de madeira do andar de cima e de que o ar dentro de casa era

sufocante, parecido com o de uma piscina climatizada; mesmo esses

escassos barulhos, os golpes vindos de cima, chegavam-lhe como que

através de água e não conseguia localizá-los. Talvez procedessem dos

quartos comunicantes que usava o pai de Gaspar, nos quais ninguém

podia entrar, ou da enorme sala do primeiro andar que parecia um salão

de festas vazio. Pablo andou primeiro pelo rés do chão apenas iluminado

pelas luzes da rua; uma das janelas da sala tinha a persiana para cima,

outro descuido. Não havia ninguém. O quarto de Gaspar estava aberto e

vazio, tal como a cozinha. E a sala, que mudava de cor sempre que um

carro passava pela rua, deu-lhe medo. O melhor, pensou, seria ir-se

embora. Gaspar devia estar em casa de Vicky ou na de algum amigo ou


na rua. Se voltasse, acenderia a luz, Pablo vê-la-ia da rua e chamá-lo-ia

como sempre, atirando uma pedrinha ou um pau ao vidro da janela. Mas

o coração batia-lhe com força, morria de curiosidade e os barulhos do

primeiro andar não pareciam ameaçadores. De vez em quando, ouvia

vozes, ao longe, filtradas por aquele tampão de água insólito.

Apercebeu-se de que estava a transpirar: o calor da casa fazia-lhe

lembrar o vapor da casa de banho depois de um duche muito quente ou

o que a mãe usava para lhe aliviar a tosse quando estava doente. Mas não

havia humidade no ar nem nas paredes, Pablo tocou nelas e estavam

perfeitamente secas.

Subiu a escada com as faces a arder, sabia que estavam coradas,

detestava ficar corado. Cada degrau era mais difícil de subir do que o

anterior, como quando tentava correr em sonhos e as pernas não se

mexiam. A escada era de madeira e rangia sempre, mas desta vez Pablo

não ouvia nenhum ruído a não ser a sua respiração, demasiado agitada

para tão pouco esforço. Quando chegou ao primeiro andar, apoiou-se na

parede para tomar ar. Os quartos distribuíam-se à volta da sala central;

os três últimos eram ocupados pelo pai de Gaspar. Havia, também, uma

escada mais curta que dava para um corredor com dois quartos que

faziam de biblioteca; esse corredor tinha uma balaustrada de madeira,

uma espécie de varanda ou miradouro de onde se via a sala com o seu

pavimento de madeira, fechada na parte de trás por uma enorme janela

tapada por cortinas escuras, como as de um palco. Do lado de fora havia

uma varanda que dava para um pátio interior que outrora deveria ser

lindo e que agora estava tão seco como as plantas da entrada. Para

recuperar o fôlego, Pablo sentou-se nos degraus da breve escada da

biblioteca. Não via ninguém e já não ouvia as pancadas. Ainda se sentia

um pouco atordoado e percebeu que tinha o pescoço alagado em suor.


Teria a casa aquecimento central? Gaspar nunca lho dissera. Pelo

contrário: costumava queixar-se da falta de aquecedores.

Quando Pablo se levantou para se ir embora, um movimento na sala

vazia roubou-lhe a respiração. Encolheu-se na escada; só se lhe viam os

olhos, a parte superior da cabeça. Na sala, estava um homem a abrir as

cortinas e as janelas. O luar — o pátio das traseiras não estava

iluminado — permitiu-lhe ver que estava nu. A seguir, o pai de Gaspar

saiu de um dos quartos. Também estava nu e Pablo achou que era

enorme sob a luz prateada, altíssimo e forte. O homem que abrira as

cortinas também era alto, mas não tanto; foi até um extremo da sala,

agachou-se e acendeu uma vela entre várias. Pablo, claro, não as vira,

mas, seguindo o movimento do homem nu — que tinha uma madeixa de

cabelo completamente branca, embora não tivesse cara de velho, de

todo, parecia ter a idade do seu pai ou ser apenas um pouco mais velho

do que ele —, contou sete. Sete velas. E, então, viu um desenho no chão

da sala vazia: um círculo branco com alguma coisa traçada lá dentro que

Pablo não conseguia distinguir completamente. Riscos, uns círculos. O

pai de Gaspar entrou no círculo como quem passa por uma porta e, de

joelhos, esperou pelo homem nu. Ficaram ambos frente a frente,

completamente quietos, até que o pai de Gaspar beijou o homem nu sem

qualquer tipo de delicadeza, nada parecido com os beijos que Pablo

tinha visto nos filmes, nem com os que davam as pessoas na rua, e, de

repente, sentiu dificuldade em respirar porque nunca tinha visto dois

homens a beijarem-se, nunca imaginou que pudessem fazê-lo, pensava

que era proibido? Qualquer coisa do género. O pai de Gaspar sentou-se

no chão e Pablo viu o homem nu fazer uma coisa incrível, impossível:

sentou-se em cima da pila do pai de Gaspar e começaram a foder como

nas revistas pornográficas, mas com movimento. Já vira aquilo nas que

Gaspar escondia na garagem, pessoas a foder daquela maneira, mas não


dois homens. Vira um homem a enfiá-la no cu de uma mulher e

parecera-lhe nojento. Mas aquilo não lhe parecia nojento. Sentia

vergonha do que via, mas, ao mesmo tempo, não conseguia deixar de

olhar: o pai de Gaspar obrigou o outro homem a pôr-se de gatas no chão

e, muito direito, brilhante de suor como uma estátua molhada, pôs-se

atrás dele e começaram a fazê-lo como cães, em completo silêncio, a

não ser o barulho dos corpos a bater um no outro. Pablo teve medo de

ser apanhado ali, no seu esconderijo, a espiar, mas, ao mesmo tempo, era

o melhor momento para fugir, porque eles estavam concentrados. Como

ir daquele lado da sala até à escada sem ser notado? Então, Pablo sentiu

todo o suor a secar, gelado, a casa já não estava quente, mas acontecia

uma coisa pior: os quartos pareciam estar ocupados. Até ouvia o

murmúrio de conversas em voz baixa e as maçanetas a subir e a descer.

Para cima e para baixo. Passos na escada. As sombras das velas a

projetarem figuras demasiado grandes sobre os corpos dos homens. Não

conseguia mexer as pernas por causa do medo e, ao mesmo tempo,

quando olhava para os homens — que estavam de novo frente a frente

—, sentia tonturas, o sangue a tornar-se leve, e tinha vontade de chorar,

embora não estivesse triste ou assustado; não percebia o que é que os

homens estavam a fazer dentro do círculo, mas gostava, gostava dos

braços fortes apoiados no chão, das costas húmidas de transpiração e

saliva, da maneira como agarravam nas faces e nas nucas um do outro

quando se beijavam e do cheiro metálico e doce que lhe atingia o nariz

ali, escondido na escada. O que podia fazer? O pai de Gaspar tinha os

olhos fechados e estava diferente, belo, pensou Pablo, belo, mas todos

diziam que estava doente, como era possível? Os doentes não eram

sempre feios? Sob a luz das velas e do luar, Pablo conseguiu ver o peito

do pai de Gaspar e a sua enorme cicatriz, mas era isso mesmo que

parecia, uma cicatriz e não um sinal de fraqueza. Não o tornava menos


belo. O outro tinha cicatrizes nas costas, conseguiu ver Pablo. Pareciam

ter sido cortados pela mesma faca ou separados como siameses.

Os ruídos do piso inferior tornaram-se mais baixos ou cessaram e

Pablo, uma vez mais, hesitou entre sair ou não sair. Os homens deviam

ouvir a sua respiração, não conseguia controlá-la, tão acelerada e

barulhenta como se tivesse acabado de fazer uma corrida. O pai de

Gaspar estava de joelhos com a cabeça virada para o lado, uma posição

estranha, mole, como se estivesse a ouvir alguma coisa, uma música

vinda da janela ou do telhado. O homem da madeixa branca desprendeu-

se do seu abraço e levantou-se; quando ia a caminho, sozinho, do quarto

de onde saíra, parou e Pablo soube que se apercebera da sua presença. O

homem da madeixa branca deu meia-volta e olhou-o diretamente nos

olhos: os dele pareciam encovados, tinha as pálpebras pesadas, Pablo

conseguiu apreciar esses detalhes à luz do luar e das velas enquanto o

pai de Gaspar permanecia quieto no meio do círculo, distante e tenso,

com as mãos enormes muito esticadas; as sombras faziam-nas parecer

ainda mais compridas do que o normal. O homem da madeixa branca

não falou em voz alta, mas, com os lábios, disse-lhe, muito claramente,

vai. Assim, não vai-te embora, como diria toda a gente, mas «vai», como

nas séries mexicanas. Pablo disse-lhe que sim com a cabeça e o homem

da madeixa branca seguiu-o com o olhar até chegar à escada. Desceu-a a

correr e tentou ignorar as vozes que agora se faziam ouvir outra vez;

havia uma mulher a falar de uma igreja em ruínas, outra a dizer faz falta

fumo e terra, um homem repetia uma frase numa língua que Pablo

desconhecia e havia alguma coisa a arrastar-se, conseguia ouvi-la, era o

mesmo barulho que faziam os ténis quando caminhavam entre folhas

secas. Haveria pessoas nos outros quartos? Seria um disco? Pablo

chegou à porta esgotado, como se, em vez de alguns metros, tivesse

percorrido uma distância muito maior, e voltou a correr para casa a


pensar no cabelo louro do pai de Gaspar, em como humedecia os dedos

enfiando-os na boca, na força dos seus braços quando beijava o homem

da madeixa branca. O que acabara de ver parecia-lhe mentira agora,

enquanto corria para a sua própria casa; as vozes e o calor sufocante e o

círculo desenhado no chão, tudo o fazia pensar nalguma coisa escura e

mortífera, em aranhas e em cemitérios abandonados, no chão frio da

casa de banho de noite e no sangue que saía das pernas da mãe e

cheirava a metal e a carne, nas correntes que o vento fazia chocalhar de

noite na fábrica vazia da avenida e na casa abandonada e emparedada da

Rua Villarreal, no silêncio que se sucedia a um apagão e nos sonhos

sobre mãos frias a enfiarem-se dentro dos lençóis e a acariciarem-lhe o

estômago até o acordarem e na mancha de humidade do teto que

algumas noites parecia um gato gordo e outras um animal com chifres.

Gaspar acordou mais cedo do que Vicky e Adela e ouviu, na sala, Lidia

Peirano a falar em voz baixa para não o acordar enquanto arranjava

Virginia, a filha mais nova, para ir para a escola. A menina estava a

choramingar, ainda meio adormecida. Gaspar não ficou aninhado

debaixo do cobertor, apesar do frio; vestiu as calças e foi a correr para a

casa de banho. Depois, dirigiu-se para a cozinha e tomou o pequeno-

almoço com Lidia e Virginia antes de irem para a escola. A menina

bocejava e choramingava; acho que está a chocar uma constipação,

disse-lhe Lidia. Não está nada bem.

Gaspar dobrou o sofá de cambalhota onde dormira, levou os lençóis

para a máquina de lavar roupa e esperou que Vicky ou Adela

acordassem para as cumprimentar, mas a porta do quarto onde as

raparigas dormiam estava fechada e não se ouvia nada para além do

silêncio. Era muito frequente ele dormir em casa de Vicky: quando se

fazia tarde, convidavam-no sempre. Às vezes, forçava o convite quando


o pai estava de muito mau humor ou quando, como na noite anterior, o

visitava Esteban. Preferia deixá-los sozinhos. Já Adela passar a noite em

casa de Vicky era mais raro, mas a mãe fora, alegadamente, ao

casamento de uma amiga; a festa era longe, numa quinta, e voltaria

tarde. Mas Adela não acreditava. Cá para mim, arranjou um namorado,

disse, incomodada. Adela ainda esperava que o pai voltasse.

Adela e Vicky não acordaram e Gaspar foi-se embora sem se

despedir delas. Era cedo, chegaria a horas se fosse muito depressa e, por

isso, passou primeiro pela porta de sua casa. O carro de Esteban já não

estava lá. Ter-se-ia ido embora sozinho? Não tinha tempo de entrar e

verificar. Gaspar vira várias vezes o pai e Esteban a acariciarem-se

distraidamente, até os apanhara a dormir juntos, nus. Dessa vez, ficara

assustado: pelas coisas que ouvia, parecia-lhe que devia ser ilegal ter um

namorado homem, que podiam ir presos. Investigou, mas não: as

pessoas têm muitos preconceitos, disse-lhe uma vez a mãe de Vicky, não

suportam que as pessoas vivam em liberdade. Não é ilegal. Sabia que, se

alguém da escola ou do bairro descobrisse, seria maltratado e gozado

para sempre por ser o filho do mariconço. Gaspar estava disposto a

suportar isso. Às vezes pensava que, se Esteban fosse viver com eles e

mantivesse a relação em segredo, as coisas poderiam melhorar. Esteban

parecia ser capaz de lidar com o pai, não de o dominar, mas, pelo

menos, era alguém a quem ele dava ouvidos. O pai reagia de maneiras

diferentes a Esteban; às vezes, acalmava-o, Gaspar notava que até

relaxava os ombros e dormia melhor, e, outras vezes, especialmente

depois de Esteban se ir embora, trancava-se no quarto ou ficava furioso

ou fazia coisas delirantes como cobrir o terraço com pedaços de vidro

pontiagudos (no ano passado) ou obrigá-lo a ter as luzes sempre

apagadas, mesmo as da cozinha e as da casa de banho (desde o último

verão, e continuava assim); ou desaparecia durante vários dias,


deixando-lhe dinheiro em cima da mesa e um bilhete simples e

desprovido de informação que aterrorizava Gaspar: o que é que

aconteceria se não regressasse, se nunca mais o voltasse a ver?

Gaspar saiu da escola um pouco mais cedo devido a uma ameaça de

bomba. Havia ameaças quase todas as semanas e ele sabia que quem as

fazia eram os alunos do sétimo ano, mas a diretora não se atrevia a

ignorá-las. Juntou os do sexto com os do sétimo quando começaram as

chamadas e disse-lhes que a democracia só fora recuperada havia pouco

tempo e que podiam perdê-la. Infelizmente, há que levar estas coisas a

sério, porque vivemos épocas muito duras neste país. Muitos alunos

olharam uns para os outros durante a conversa, sem perceberem a que é

que a diretora se referia. Gaspar, sim.

Voltou a pé apesar do frio e da ligeira dor de cabeça que, achava ele,

não se transformaria numa enxaqueca. Por via das dúvidas, parou na

farmácia e comprou um blister de aspirinas fortes. Já não lhe faziam

grande efeito, mas os médicos diziam, mesmo a mãe de Vicky, que era

demasiado pequeno para tomar outra coisa mais forte. No entanto, ele

tomava coisas mais fortes: o pai dava-lhas. Não tens por que sofrer,

dizia-lhe. Gaspar achava que tinha razão. Às vezes, não conseguia nadar

por causa da dor de cabeça; nem sequer passava depois de dormir e

havia pouco tempo sonhara que lhe estavam a arrancar os olhos com

colheres, como se fossem bocados de pudim flã. Doíam-lhe sempre os

olhos primeiro e custava-lhe mexê-los: depois, vinha aquela espécie de

capacete apertado e, antes, às vezes, desenhos pretos na vista, como

flores a abrir, sobretudo quando olhava para cima: flores no céu. A aura,

sabia que era assim que se chamava. Era um aviso.

Engoliu as aspirinas sem água e sentiu o sabor amargo a ficar colado

ao céu da boca. Entrou em casa disposto a ir diretamente à cozinha para

beber água e engolir os restos dos comprimidos, mas parou quando viu o
pai na sala, sentado no seu sofá amarelo, diante da televisão ligada, mas

sem olhar para ela.

— Vem cá, filho.

Gaspar aproximou-se e viu que o pai tinha ao lado dele uma caixa de

cartão, bastante alta, como a de um pequeno eletrodoméstico.

— O Esteban já se foi embora?

— Foi, de manhã. Vem ver o que eu tenho, Gaspar, olha.

Gaspar olhou primeiro para a cara dele. Sorria com uma sobrancelha

levantada e estava bêbedo. Aquilo era um péssimo sinal. Sempre que

respirava, o peito fazia barulho. Que situação desastrosa, pensou Gaspar.

É uma daquelas vezes: o Esteban foi-se embora e deixou o meu pai meio

doido. Teria de obedecer-lhe se não quisesse levar pancada, ouvir gritos

ou apanhar um castigo ainda pior.

— Enfia a mão cá dentro.

Gaspar fê-lo com apreensão: sabia que a caixa não podia guardar

nada de bom. Sentiu as fontes a latejarem dolorosamente. Na caixa, os

seus dedos tocaram em algo parecido com bichos secos: tinham uma

textura frágil e faziam um barulho nacarado; eram centenas de coisas

que já tinham estado vivas. Quando tirou um dos bichos lá de dentro

para ver o que eram — não teve medo naquele instante, parecia

inofensivo, embora talvez fosse nojento —, percebeu que as coisas eram

muito mais compactas do que insetos, que tinham todas o mesmo

tamanho. Juntou três na palma da mão e agachou-se para as ver melhor à

luz da televisão. Então, percebeu que aquilo que no início lhe tinha

parecido patinhas eram pelos. Não podia ser. Olhou para o que tinha na

mão mais de perto. Eram pelos, sim. Pestanas. Tinha na palma da mão

pálpebras secas, com as respetivas pestanas.

A caixa estava repleta de pálpebras. Deitou para o chão as pálpebras

cortadas e vomitou à frente da televisão; salpicou um pouco as pernas


do pai. Enlouqueceu, pensou. Tenho de fugir. Mas também tenho de

saber. E tenho de tomar outra aspirina antes de ficar com tantas dores,

que não consiga andar.

— De onde é que os tiraste? De onde é que tiraste os olhos?

— Não são olhos e não são meus, são um presente.

— Quem é que tos ofereceu?

O pai mergulhou uma das suas enormes mãos na caixa das pálpebras

e brincou com os restos de pele quase translúcida como se fossem

moedas.

— Foste tu que as cortaste? São de mortos?

— Alguns. As pessoas podem viver de muitas maneiras. A tua amiga

pode viver sem um braço, por exemplo. Eu vivo quase sem coração.

Algumas pessoas podem viver sem olhos. Ou sem pálpebras. Algumas

deixam que lhas cortem.

O pai levantou-se com a caixa nas mãos. Por uns instantes, Gaspar

pensou que ia despejar as pálpebras em cima dele, como uma chuva de

pestanas mortas, e então ele gritaria e gritaria até enlouquecer também.

Mas não: ia para o andar de cima, para o quarto dele, provavelmente.

— Limpa isto.

— Limpa tu.

— Eu vou passar uns dias fora.

Gaspar recebeu esta informação com alívio, até com alegria. Quando

o pai começou a subir a escada, foi a correr até à cozinha e tomou mais

duas aspirinas com muita água, diretamente da torneira. Pensou que ia

vomitar outra vez, mas aguentou até os olhos ficarem húmidos. E,

quando ficaram, deixou-se levar, deitou-se no chão da cozinha e chorou

até a dor de cabeça se tornar insuportável e sentir a cabeça a arder por

dentro, como se alguém tivesse escondido no seu cérebro uma faca e

esta o estivesse a apunhalar.


Se fosse possível percorrer as ruas do bairro de noite ou de madrugada,

ouvir-se-iam as rádios dos que não conseguem dormir sem música ou

sem vozes e algumas ventoinhas, os pesadelos e os passeios dos insones.

Em geral, o bairro é muito silencioso e o barulho só começa de manhã,

quando os que vão trabalhar longe saem de casa nos seus carros ou a pé

para esperarem o autocarro na avenida.

A madrugada é a hora mais silenciosa.

E às vezes, de madrugada, seria possível ver Juan Peterson a sair de

casa, a fechar a porta só no trinco e a percorrer a pé dois quarteirões

completamente sozinho, até à casa emparedada da rua Villarreal; o

vento fresco da noite agita-lhe o cabelo e deixa à mostra uma ferida no

couro cabeludo, uma ferida recente, o sangue escorre pelo pescoço e

detém-se no ombro. A porta da casa tem um cadeado e a fechadura está

bloqueada por cimento, mas, quando Juan pisa a relva queimada do

jardim abandonado, assim que entra no caminho de ladrilhos amarelos,

se ajoelha, toca na ferida e deixa o seu sangue na porta, pouco sangue, a

porta vibra e abre-se para ele; a casa espera-o.

Juan entra sem olhar para trás; do interior — se alguém o

conseguisse ver, mas ninguém o vê, ninguém o segue — sai uma luz

ténue. A porta fecha-se atrás dele e se alguém a tentasse empurrar, seria

inútil. Não é o cadeado, nem o cimento, o que a mantém selada.

Não é possível ver o interior da casa. As janelas estão tapadas com

tijolos. Se se pudessem derrubar os tijolos, apenas se veria a escuridão.

É possível ouvir algo do lado de fora. A vibração em primeiro lugar,

a casa treme: parece um inseto preso num quarto, o zumbido cresce

quando se aproxima do ouvido que escuta, afasta-se quando o inseto se

detém num canto ou voa a menor velocidade ou pousa na parede. Juan

sai antes das primeiras luzes e regressa a casa a cambalear; se alguém o

visse, julgá-lo-ia bêbedo, mas ninguém o vê, a casa protege-o, pelo


menos até chegar à sua e, geralmente, cai estatelado no chão assim que

abre a porta. Nem sempre volta desfeito, a arquejar, da casa abandonada.

Às vezes, regressa a pé calmamente, sem agitações, e fecha-se no seu

quarto.

Gaspar tentou segui-lo uma vez. Ouvia-o entrar e sair, de noite, e

sentia curiosidade em relação ao lugar para onde ia. Tinha uns oito anos

e a noite estava fresca. Foi até à rua, olhou para ambos os lados e ficou

admirado por não ver o pai, que acabara de sair de casa. Pensou que, se

calhar, havia um carro à espera dele, algumas vezes um motorista vinha

buscá-lo, mas, quando olhou melhor, viu que estava simplesmente

apoiado na porta da casa do lado, escondido, à espera de o apanhar em

flagrante. Gaspar não pensou duas vezes e voltou a correr para dentro de

casa. Antes de começar a subir a escada, sentiu o pai a puxá-lo pelos

tornozelos e, ao mesmo tempo, a fechar a porta com uma pancada tão

forte que, pensou Gaspar, teria acordado os vizinhos. O pai virou-o com

um único movimento e, quando Gaspar se tentou levantar, empurrou-lhe

os braços contra o chão. Era como se estivesse com umas algemas de

metal. Ainda se lembrava da cara do pai, tão perto, os lábios pálidos e os

olhos furiosos: as mãos que o esmagavam contra o chão tremiam de

raiva e Gaspar estava mudo de terror. Não percebia porque é que aquilo

era tão grave, mas, no chão, com o pai em cima dele qual animal

selvagem a farejá-lo — lembrava-se de ter pensado que era um lobo, que

lhe ia comer a garganta —, compreendeu que era pior do que imaginava,

que podia ser imperdoável.

O pai falou. Disse-lhe como te atreves a seguir-me. E, depois,

rodeou-lhe o pescoço com as mãos e apertou. Não muito, mas Gaspar

estava tão assustado, que não conseguia respirar. Às vezes, agora, anos

mais tarde, acordava com uma sensação de sufoco e tinha de levantar-se

da cama e respirar fundo enquanto caminhava pelo quarto. O apertão


não durou muito. O pai largou-lhe o pescoço, pegou nele ao colo —

Gaspar tentou dar-lhe um pontapé, mas levou uma chapada que o fez

sangrar do nariz: não conseguia lutar contra o pai — e subiu a escada,

imobilizando-lhe as pernas para que não as mexesse. Quando chegaram

lá acima, o pai abriu um dos quartos que já na altura estavam fechados,

as paredes manchadas de humidade, o chão de madeira parcialmente

queimado. Um quarto completamente vazio e com as persianas para

baixo, partidas. Vais ficar aqui, disse-lhe. Gaspar olhou para ele do

soalho. Batera com a cabeça, mas o medo era tanto, que não lhe doía.

Gaspar não sabe quantas horas lá passou. Sabe que dormiu no chão,

que teve fome, que fez chichi na escuridão, na parede, e que o cheiro, no

cativeiro, lhe deu nojo, mas acostumou-se. Sabe que sonhou com a

escola: as paredes da sua sala de aula derrubavam-se pouco a pouco, ele

corria mas a racha na parede parecia persegui-lo. Sabe que chorou na

escuridão e que pediu para sair e que bateu na porta e que chamou pelos

vizinhos e pela mãe até se sentar com as costas coladas à parede e que

esperou imaginando jogadas de futebol, um golo olímpico, o melhor

canto do mundo, um cabeceamento certeiro desde o meio-campo, mas o

cheiro a suor e a relva não chegava àquele quarto húmido que agora

tresandava a mijo e a lágrimas. Quando o pai abriu a porta, não sabia se

um dia ou dois ou apenas algumas horas depois, Gaspar foi a correr para

a casa de banho aos tropeções porque tinha as pernas meio dormentes e

os olhos acostumados à escuridão, foi a correr para a casa de banho

porque precisava de fazer cocó e lá, de pé diante da sanita, sentiu a

inconfundível sensação que anunciava a dor de cabeça, as flores negras a

pairarem no ar e a abrirem-se, e depois a pontada no olho. Enquanto

procurava os comprimidos no armário da casa de banho, agradeceu que

só lhe tivesse começado a doer nessa altura, quando já podia ir para a

cama, mas para as dores passarem teria de comer qualquer coisa, e de


certeza que o pai não lhe daria nada, e ele, naquela época, só sabia

cozinhar umas quantas coisas, e de certeza que não havia nada para

cozinhar em casa. A tremer de medo, por causa da fraqueza das pernas,

por ouvir o pai a andar pela casa com os seus passos poderosos,

obviamente ainda zangado, desceu a escada e, na cozinha, procurou um

pano, abriu o congelador, tirou algum gelo, embrulhou-o, pô-lo em cima

do olho e olhou para as horas: duas. Da tarde, porque era de dia. No

frigorífico, havia uma garrafa de vidro com água. Com o pano cheio de

gelo no olho, foi para a rua, não estava frio, e caminhou devagar até à

casa de Vicky porque, se corresse, a dor regressaria como marteladas. E,

quando chegou, mentiu. Vicky ainda estava na escola, mas a mãe estava

em casa: estranho, porque trabalhava todos os dias. Disse-lhe qualquer

coisa, lembrava-se Gaspar, sobre estar de folga, ele não percebia o que

queria dizer folga, entre as ondas de dor mentiu, disse que o pai não se

sentia bem, que estava de cama e que ele não tinha tido coragem de o

acordar, que lhe doía a cabeça e que, por favor, precisava de comer, que,

se comesse, melhorava um pouco, que ele sabia cozinhar, mas não com

aquelas dores, que o supermercado estava fechado e não podia comprar

nada, que lhe podia pagar ou que podiam ir comprar qualquer coisa

noutro sítio que estivesse aberto, mas ele não conhecia nenhum, e a mãe

de Vicky agachou-se para o observar. Disse-lhe não chores, que ainda te

dói mais. Disse-lhe eu faço-te uma costeleta, e há salada. Disse-lhe que

sorte eu estar em casa. Disse-lhe depois vou ver como está o teu pai e

Gaspar ia dizer não, não vás, mas não disse nada, comeu e depois

deitou-se no beliche e, quando acordou, a cabeça já só latejava

ligeiramente, embora ainda lhe tremessem as mãos, a porta do quarto

estava fechada para que ele pudesse descansar, a cadela Diana dormia

aos seus pés e nunca soube se a mãe de Vicky fora, ou não, a sua casa,

se vira o pai, não lhe perguntou e não lho disseram, mas nessa noite
ficou lá a dormir, foi uma das primeiras vezes, e não se lembrava de

quando voltara para casa, nem de mais nada, as horas na escuridão e os

dias que se seguiram foram desaparecendo. Mas nunca mais se atreveu a

seguir o pai quando saía de madrugada.

Gaspar pedalou até à serração. Ainda que ficasse a dois quarteirões de

casa, tinha vontade de usar a bicicleta. Não vira o pai nessa manhã.

Continuava zangado com ele e assustado. Acontecia-lhe sempre a

mesma coisa quando via, acidentalmente ou não, algum fragmento do

mundo secreto em que o pai vivia. Porque é que lhe mostraria aquelas

coisas? Depois, parecia arrependido. Ou, pior ainda: Gaspar tinha a

sensação de que era como nos filmes sobre possuídos, de que alguma

coisa se apoderava dele, transformando-o noutra pessoa; que quem lhe

mostrara a caixa não era o seu pai. Não conseguia explicá-lo. A caixa

das pálpebras foi um dos souvenirs mais horríveis que o deixou ver, mas,

à semelhança de outros, ia-se convertendo num sonho, a lembrança

retirava-se para uma região de onde era difícil resgatá-la, onde perdia

força. Gaspar percebia que isso também era estranho, embora, ao

mesmo tempo, esse esquecimento, esse adormecimento, o reconfortasse.

Não foi um sonho, claro está, mas sentia-o como um sonho; assim, era

mais suportável. Da mesma maneira, quase se esquecera das marcas

vermelhas de mãos nas paredes do andar de cima. Ou da voz que

ressoou uma noite na sua cabeça, tão potente que subiu a escada a correr

e bateu à porta do quarto do pai até ele abrir, despenteado e com os

olhos cobertos por uma película de óleo. Ou de quando encontrou o pai

a andar como um sonâmbulo pela casa com uma coisa escrita na parte

interna dos braços, duas palavras que jamais esqueceria: Solve e

Coagula. Procurou-as no dicionário, mas não eram castelhanas: eram

latinas. Havia um dicionário de latim na biblioteca da escola, mas estava


sempre requisitado. E, às vezes, preferia não saber. O pai desapareceu

durante uma semana depois de lhe mostrar a caixa das pálpebras. Agora,

estava de regresso a casa, mas mal se cruzavam.

Gaspar tinha de ir buscar o presente para Adela à serração.

Encontrou o diagrama num livro da sua biblioteca, arrancou a folha e

entregou-a ao carpinteiro para que lhe servisse de modelo. A serração

estava aberta, mas não havia ninguém ao balcão; Gaspar bateu as palmas

e o ruído das suas mãos fez eco no armazém. A seguir, ouviu uma porta

e, quando Don Sixto o viu, gritou-lhe: ah, espera um bocadinho, filho. E,

depois, voltou das traseiras com a folha e com a caixa.

— Vamos lá ver se está como tu querias — disse-lhe.

Gaspar olhou primeiro para o diagrama, para ver se, pelo menos,

estava parecido.

Estava. O espelho no meio a separar os dois compartimentos com

buracos em ambos os lados. Enfiou o braço no buraco da direita: entrava

facilmente. A caixa era bastante grande, mas Don Sixto escolhera uma

madeira leve e Gaspar conseguia pegar nela sem esforço. O espelho

torna-a mais pesada, mas o pinho é muito leve. Está como tu querias?

Está, respondeu Gaspar, olhando para o seu braço no espelho. A

caixa era perfeita.


Adela decidiu fazer a festa de aniversário em casa. Os Peirano, claro,

tinham oferecido a deles, mas Adela disse-lhes que não, obrigada, e

depois confessou a Gaspar que não queria fazer a festa naquele pátio das

traseiras, tão grande para tão poucos convidados. Vai notar-se mais se

ninguém aparecer, disse, e Gaspar percebeu. Era melhor fazer uma coisa

simples no pequeno, mas agradável, apartamento de Adela e Betty,

porque se sentia sempre uma ausência: a do pai, que ninguém conhecia.

Uma vez, Vicky perguntou à mãe, enquanto lavava os pratos, se era

verdade que o pai de Adela fora levado, e Gaspar, que estava a secar os

talheres, ouviu a resposta: na verdade, Vicky, eu sempre conheci a Betty

sozinha. Não sei quem é o pai da Adela e nunca lho perguntei, essas

coisas não se perguntam se não nos contarem.

Betty tinha a casa bastante bem arranjada. Umas grinaldas

enfeitavam o patamar até à última porta, a da casa de Adela, onde havia

um póster que dizia «Feliz aniversário!» ao lado do desenho de uma

menina que cheirava uma rosa. Quando Gaspar chegou, já lá estavam os

avós de Adela, Vicky e Virginia com o brinquedo aquático de que nunca

se desprendia, Lucrecia, uma colega da escola que era bastante amiga

das raparigas, e mais ninguém. Só estavam à espera de Pablo, que

chegava sempre tarde. Apareceu com um puzzle de mil peças de um

castelo alemão com um nome impronunciável; Adela agradeceu com um

abraço: gostava de puzzles, mas gostava ainda muito mais de castelos.

Betty parecia contente e emocionada; os avós, pelo contrário, bebiam

refrigerantes em silêncio. Eram silenciosos, nada carinhosos, muito

pouco avós. Só apareciam nas festas de aniversário e, quando falavam,

dirigiam-se apenas a Betty. Adela, no entanto, arranjava maneira de se

divertir muito quando, todos os verões, ia para a quinta de férias deles

em San Isidro. O bolo era muito bom: tinha recheio de doce de leite e

creme, e cobertura de chocolate decorado com bolinhas prateadas.


Gaspar comeu um pedaço depois de aplaudir durante o «Parabéns a

você!» — nunca cantava em voz alta em público — e sentiu-se cheio,

comera muitas salsichas. Os avós pediram a Adela que experimentasse o

vestido que lhe tinham oferecido; era branco, parecia de comunhão, e

ela, que não os queria ofender, desfilou com um sorriso falso, porque era

óbvio que não gostava dele. Eles foram-se embora pouco tempo depois.

As crianças despediram-se e, depois, já sozinhas, sentiram-se aliviadas.

Os avós tinham qualquer coisa que os incomodava: pareciam estar lá por

obrigação, como quem cumpre uma ordem. Lucrecia também saíra:

tinha de ir embora cedo. Adela sentou-se toda esparramada, teatral, no

sofá. Pablo, que acabava um pedaço de bolo, ofereceu-se para lhe ir

buscar mais e ela aceitou. Depois, com os lábios sujos de doce de leite

— não era muito fácil para ela segurar no guardanapo apenas com uma

mão sem ficar toda lambuzada —, disse a Gaspar:

— Quero o meu presente!

O saco com a caixa estava a um canto, ao lado da mesa. Gaspar foi

buscá-lo e aproximou-se de Adela, dizendo-lhe:

— Mas só to posso mostrar a ti, não to posso dar à frente de mais

ninguém.

— Porquê? — perguntou ela, limpando a boca e olhando-o

fixamente com os seus olhos escuros de pestanas curtas.

— Porque não sei se funciona.

Betty disse quantos segredos com um sorriso, mas tinha um olhar

sério. Adela agiu rapidamente, deu a mão a Gaspar e quase o arrastou

até ao quarto. Quando entraram, fechou a porta.

— E então? Mostra lá.

Gaspar aproximou-se da cama de Adela e colocou a caixa em cima

da colcha azul-turquesa.

— Vem cá — disse-lhe.
Ela aproximou-se, desconfiada.

— O que é isto?

Gaspar coçou o nariz, estava um pouco nervoso.

— Chama-se caixa de, espera, que não me sai o nome.

Ramachandran. É isso. Caixa de espelhos de Ramachandran.

— É de magia?

— Não. Mais ou menos. Parece, não é, por causa do nome?

Esperemos que sim, seja como for. Enfia aqui o braço — disse,

apontando para um dos buracos. Adela agachou-se e fê-lo, obediente. —

Agora, enfia o outro no outro buraco.

Adela lançou-lhe um olhar enfastiado, um princípio de amuo.

— Sabes o que é que eu quero dizer. Disseste-me que sentes o braço,

certo? Enfia-o cá dentro.

Agora, olhava para ele com os olhos cheios de lágrimas. Gaspar teve

pena de a ver assim, ajoelhada, no chão do quarto, com o seu vestido

encarnado, as duas tranças, uma rapariga que não queria ser diferente.

Sentiu-se mais velho do que ela.

— Ade, não sei se vai resultar — disse-lhe, e teve de pigarrear. —

Tirei-a de um livro. Mas juro que não é para gozar contigo. Nunca te

faria uma coisa dessas. Nunca. Vamos experimentar.

Ela hesitou durante um minuto, disse que sim e, com os olhos

fechados, fez um pequeno movimento com o coto.

— Já está — disse.

— Boa — Gaspar ajoelhou-se ao lado dela. — Agora, olha para o

espelho, estás a ver? Assim, é como se tivesses dois braços. Diz-me onde

é que te dói.

— Hoje não me dói. Só tenho comichão.

— É a mesma coisa. Onde. Mas não olhes para mim, não olhes para

o teu braço verdadeiro, olha só para o reflexo. Guia-me.


A caixa era aberta na parte de cima, não tinha tampa. Gaspar enfiou

lá a sua própria mão e seguiu as indicações de Adela. Ao lado do

cotovelo. Não, um pouco mais para baixo. Não, um pouco mais para

cima.

— Às vezes, demora um bocadinho — disse Gaspar e, em vez de

continuar à procura do lugar da comichão, acariciou a mão de Adela, os

dedos, o braço, mexeu nas pulseiras, durante muito tempo, em silêncio,

até ela dizer estou a sentir o braço! E ele, então, voltou a seguir as

indicações dela e encontrou o ponto onde sentia comichão, o prurido

fantasma impossível de esquecer até esse momento, até ao aniversário

número doze em cima da cama azul-turquesa.

— Ah — disse Adela em voz baixa, e Gaspar coçou-a suavemente

com as suas unhas curtas, enquanto ela observava com uma expressão

estranha o braço refletido. Continuou até Adela dizer já está, e ela tirou o

braço de dentro da caixa e, sentada no chão, tapou a cara com a mão.

Não estava a chorar. Gaspar não sabia o que é que ela tinha. Queria

perguntar-lhe se estava contente, se tinha servido de alguma coisa ou

não, mas sabia que tinha de permanecer calado durante uns instantes.

Adela quebrou o silêncio. Fora do quarto, na cozinha, ouvia Vicky e

Pablo a conversarem e também o barulho dos pratos na cozinha: Betty

limpava os restos da festa.

— Porquê? — perguntou Adela, e Gaspar percebeu que estava

zangada. Então, tentou explicar-lhe que a ideia lhe tinha ocorrido depois

de uma conversa que teve com o pai sobre membros fantasma e que ele

lhe falara de um diagrama que estava num livro da biblioteca lá de casa,

mas ela interrompeu-o.

— Não, para, estou a perguntar-te a ti. Quero dizer: porque é que o

médico nunca me fez isto? Ou a minha mãe? Porque é que nunca me

disseram que havia uma solução para as dores e a comichão no braço?


Gaspar abriu a boca, mas não disse nada e encolheu os ombros.

— Não sabiam? Serão assim tão estúpidos? Vou matá-los.

Agora, sim, chorava, e sentia tanta raiva, que tinha o lábio a tremer.

Gaspar pôs-se de cócoras à frente dela.

— Talvez não saibam.

Ela continuava zangada e Gaspar não fez mais nada. Deixou que se

levantasse, não voltou a perguntar se tinha gostado do presente, deixou

que abrisse a porta bruscamente e que fosse a correr à cozinha, e depois

ouviu o barulho de pratos a estatelarem-se no chão, e, então, Gaspar

disse aos surpreendidos Vicky e Pablo é melhor irmos embora,

empurrando-os para fora de casa; a porta estava aberta. Ouviam-se os

gritos de Adela e da mãe, e era impossível perceber o que diziam porque

uma gritava por cima da outra e ambas choravam.

— Fizeste merda? — disse Vicky, praticamente a correr pelo

patamar enquanto Pablo suspirava de alívio ao verificar que o portão da

rua não estava fechado à chave. Gaspar não soube o que responder.

Tinha de falar com eles para perceber o que é que fizera mal.

— Vamos para o quiosque — disse, verificando se tinha dinheiro

suficiente no bolso de trás para comprar uma Coca-Cola.

Gaspar não quis voltar para a casa de Adela, como lhe propuseram

Vicky e Pablo, e, quando acabou de beber o refrigerante, vestiu o blusão

e despediu-se deles. Vai passar-lhe, disse Vicky, e Gaspar não

respondeu. Voltou para casa. Quando fechou a porta, antes de conseguir

dar um passo em direção ao quarto, ouviu a voz do pai a chamá-lo do

andar de cima.

O tom de voz não era ameaçador e Gaspar fez um esforço para o

ignorar, para continuar a andar, para fingir que não ouvira, mas

respondeu. O que foi, gritou. Vem cá acima um bocadinho, disse em voz


alta, mas sem gritar, sem violência, sem sarcasmo. Gaspar obedeceu. A

escada de madeira rangia muito; dantes, tinha um tapete para silenciar

os passos, mas já não existia. Se calhar, fora arrancado pelo pai,

provavelmente para servir de combustível para uma das suas fogueiras

periódicas. Não sabia e, de facto, nunca mais pensara nele até àquele

momento, enquanto subia os degraus apressadamente.

A porta da biblioteca-estúdio do pai estava aberta e Gaspar entrou

calmamente quando o viu sentado no cadeirão com um livro ao lado.

Não se sentou: apoiado na secretária, olhou para os livros desarrumados,

para um desenho inacabado, para o caderno de capa escura fechado.

— Como estás?

Gaspar encolheu os ombros e ouviu o pai a levantar-se; mas só olhou

para ele quando já estava muito perto.

— Podes continuar zangado comigo para sempre, mas não sei se isso

faz sentido.

Os olhos do pai brilharam no quarto apenas iluminado pelo

candeeiro que usava para ler. Tinha uma camisola cinzenta de mangas

compridas que lhe ficava curta e evidenciava a sua magreza excessiva.

Gaspar inspirou fundo antes de falar.

— Porque é que me fizeste tocar no que estava dentro da caixa?

A biblioteca estava quente e cheirava a pó; o pai, que acabara de

tomar um duche e tinha o cabelo húmido, cheirava a sabonete.

— Às vezes não sou eu próprio. Desculpa.

Gaspar sentiu um arrepio.

— O que é que isso quer dizer, que às vezes não és tu próprio?

— Quer dizer exatamente isso: que às vezes eu não sou eu.

Gaspar apoiou os cotovelos na secretária e, distraidamente, pegou no

desenho que o pai ainda não acabara de fazer. Parecia uma cidade
pequena, poucas casas numa planície e, no céu, um sol preto ou talvez

um borrão, mas muito grande e central.

— Porque é que nunca me dizes o que fazes, o que é isto tudo? — E

Gaspar apontou para os livros, para a porta fechada, para os cantos

escuros.

— O pai da tua amiga Vicky conta-lhe o que faz, por exemplo?

— Sim. É farmacêutico.

— E que mais sabe ela, além de que é farmacêutico? Sabe quantos

antibióticos vende por semana? Sabe como mudam os preços? Sabe se a

insulina é gratuita? Sabe se ele gostava de ter uma secção especializada

em homeopatia?

Gaspar cerrou os dentes.

— Se calhar, sabe.

— Claro que não sabe. O que faz o pai do Pablo?

— Qualquer coisa relacionada com o gás.

— O que é que ele faz com o gás?

— Não sei! Põe gás nos carros.

— Para quê? Achas que o Pablo sabe mais do que tu?

Gaspar resignou-se.

— Não tem nada a ver. O que tu fazes é mais esquisito.

— Quantas vezes já tivemos esta conversa? É aborrecido, Gaspar.

— Só quero saber.

O pai agachou-se para ficar à altura dele. Tinha olheiras inchadas

como se o tivessem agredido na cara, mas estava melhor do que noutros

dias, menos cansado.

— Escolhe o livro que quiseres. Lê o que quiseres.

— A sério?

— A sério.
Gaspar aproximou-se da estante em bicos dos pés. Havia tanto por

onde escolher! No cimo de tudo, dentro de uma caixa de madeira, na

prateleira situada mais perto do teto, estavam a cinzas da mãe. Uma vez,

Gaspar pediu ao pai para abrir a caixa, queria vê-las. Não se

impressionou: parecia mais terra do que cinza. Chorou por a mãe ser

apenas isso, um monte de pó numa caixa, mas não teve medo. Aquela

caixa arrumada num canto não o perturbou. O pai disse-lhe que, quando

chegasse o momento, lançaria as cinzas ao rio. Mas os anos passaram e

ainda ali continuava.

Inspecionou as prateleiras, os livros empilhados, virou os que tinham

a lombada contra a parede. Alguns eram em inglês. Dion Fortune, leu,

The Training and Work of An Initiate. Também havia livros em

castelhano. Juan Carlos Onetti, O Poço, Thomas Hardy, Jude, o

Obscuro, Françoise Sagan, Bom dia, Tristeza. García Lorca, Keats,

Yeats, Blake, Eliot, Neruda: os de poesia, que Gaspar pedia sempre

emprestados por gostar deles. Passou para outra estante, mais alta:

Babylonian Magic & Sorcery, Leonard M. King. The Magical Revival,

Kenneth Grant. Finalmente, numa ponta e um pouco descaído,

encontrou um que lhe pareceu o eleito: Dogme et Rituel de la Haute

Magie, de Éliphas Lévi. Era um livro de capa mole, cinzenta, muito

usado. Tirou-o e mostrou-o ao pai, que disse que sim com a cabeça.

— Lê o que quiseres.

Gaspar abriu-o ao calhas. Na página 40, havia um desenho de uma

estrela de seis pontas parecida com a estrela judaica, mas diferente dela.

Leu: «Os elementos materiais análogos aos elementos divinos

concebem-se como quatro, explicam-se como dois e só existem,

finalmente, como três. A revelação é o binómio: todo o verbo é duplo e

implica, por conseguinte, dois.» Não percebo nada, pensou. Abriu o

capítulo «A magia negra» e ficou dececionado por só ocupar uma


página. Dizia que aqueles que tivessem medo podiam fechar o livro, mas

a advertência não lhe serviu de nada. E o capítulo também não. O que

dizia era muito menos aterrador do que ele próprio vira em vários

filmes. Olhou para o pai com curiosidade e ele sorriu-lhe uma vez mais

sem sarcasmo, com uma certa tristeza.

— Uma seca, não é?

— Posso pegar noutro?

— Não. Não são assim tão diferentes. Gaspar, é isso que eu faço.

— O quê?

— Estudar o que dizem esses livros.

— Só isso? Há um lugar onde se estuda?

Gaspar viu o pai voltar para o cadeirão e a atirar um almofadão para

o chão, perto dele.

— Sou um autodidata. Estou demasiado velho e doente para ir para a

universidade. Senta-te.

— Não és velho. Quantos anos tens? Já alguma vez deste aulas,

como a mamã?

— Não. Tenho trinta e quatro anos, mas sinto-me como se tivesse

duzentos.

Gaspar sentou-se no almofadão e, com o joelho, sem querer, quase ia

derrubando uma garrafa. O pai pegou nela para não entornar e depois

levou-a à boca e deu um grande gole. Porque é que não se apercebera de

que ele cheirava a álcool? Agora, Gaspar percebia porque é que estava a

receber tanta informação: o pai estava bêbedo. Outra vez.

— Estudas isso porque sempre adivinhaste coisas ou foi ao

contrário? Estudaste isso para conseguires adivinhar coisas? Sempre

viste pessoas?

— Sempre, mas incomodam-me. Há uma técnica para não as ver, se

quisermos, e eu uso-a muito bem.


— Nunca falha?

— Tudo falha, mas não tenho medo delas. São ecos. Manifestações.

Não podem tocar-nos. É só desconcertante.

— O que quer dizer desconcertante?

— Algo que nos surpreende, que nos apanha desprevenidos. Que

vocabulário aprendem vocês na escola onde andas?

— Não ensinam mal, eu é que não uso muito o dicionário.

— Está bem.

— Papá, eu vou ver essas coisas, esses ecos?

— Não. Mas se os visses, apercebias-te logo sem qualquer tipo de

dúvida.

Gaspar ficou pensativo. Mais um grande gole. O livro que o pai

estava a ler caiu ao chão e Gaspar olhou para o título de relance:

Selected Poems, John Keats. Depois, pegou nele, abriu-o e leu: «Season

of mists and mellow fruitfulness.» Estação de névoas. Temporada de

névoas.

— Posso levá-lo?

— É difícil. Usa o dicionário. Vais gostar de Keats. Morreu muito

novo, sabias? Com vinte e quatro anos. E que mais contas, filho. Quero

saber que coisas normais andas a fazer. Diz.

Gaspar apoiou a cabeça nas pernas do pai e decidiu que o episódio

da caixa das pálpebras não era importante, que fora parte de um

pesadelo, que estava perdoado, esquecido. Sentiu a mão do pai a

acariciar-lhe o cabelo e contou-lhe que Adela não tinha gostado do

presente da caixa de espelhos.

As pessoas doentes são diferentes, disse-lhe o pai. Ela não está

doente, retorquiu Gaspar. Eu sei, mas, seja como for, nós, os que temos

problemas físicos, somos todos iguais e diferentes dos saudáveis. Se tu,

por exemplo, me oferecesses uma cadeira de rodas, eu não te ia


agradecer. Precisas? Não, ainda não. Mas se me oferecerem uma cadeira

de rodas, pego-lhe fogo. Não precisas de perceber isto, só de saber. A

zanga vai passar-lhe? Talvez sim, é diferente ter um defeito e estar

moribundo. Não digas isso, papá. Como queres que o diga? E que mais?

Tens namorada? Ouvi-te a falar com uma rapariga ao telefone. Ouviste?

Estavas aqui fechado, julgava que não conseguias ouvir nada. Tinha, mas

acabou comigo. Chama-se Belén. Acabou contigo? Sim, escreveu-me

uma carta a dizer que já não queria ser minha namorada. E o que é que

tu fizeste? Nada. O Pablo disse-me que, se eu lhe escrevesse a pedir-lhe

para continuarmos a ser namorados, ela diria que sim, porque as

raparigas fazem isso. Não gostas dela? Gosto, mas não sei do que é que

lhe hei de falar, ela não fala muito.

Gaspar ouviu o riso suave do pai. Nisso, não te posso ajudar, não sei

nada sobre mulheres.

Permaneceram em silêncio durante algum tempo. Gaspar fechou os

olhos. Não se ouvia nenhum barulho lá em casa. Sentiu o pai a acariciar-

lhe o cabelo, devagar, com uma delicadeza quase feminina. Não lhe

contou que, depois de ler a carta de Belén, curta e escrita com letras

maiúsculas, tinha esmurrado os azulejos da casa de banho. Não por

causa dela, que era um pouco secante, a não ser quando o deixava beijá-

la e tocar-lhe; mas por ele, por não ter sabido retê-la. Ajeitou-se no

almofadão com as pernas esticadas e fez descair a cabeça até ficar

apoiada nas costelas do pai, lembrando-se do que sentia quando era

pequeno e dormia ao lado dele, junto daquele corpo enorme e do

coração que batia de modo violento e irregular.

— Gaspar, a tua amiga está à porta.

— Que amiga?

— A Adela, acho eu.

— Como é que sabes?


— Ela chamou-te. Atirou qualquer coisa, uma pedra, à tua janela.

Estavas a dormir.

— Prefiro ficar aqui contigo.

— E eu prefiro que te vás embora. Ela está à tua espera, vai.

Gaspar levantou-se, mal-humorado; tinha mesmo adormecido, sentia

o gosto a sono na boca. Pegou no livro de Keats e olhou para o pai da

porta. Ia dizer-lhe qualquer coisa (o quê?, que gostava dele?), mas ele

bebeu outro gole da garrafa e fechou os olhos.

Adela estava à sua espera no meio da estrada: àquela hora, aos fins de

semana e já de noite, não havia muito trânsito e os faróis dos carros, e

mesmo o barulho, deixavam-se ver e ouvir com tanta antecedência, que

não era perigoso, e tanto as crianças como os adultos estavam

acostumados a caminhar indistintamente pelo passeio e pela estrada.

Esperava com as pernas cruzadas e olhava para o chão; mudara de

roupa, pensou Gaspar, estava com os sapatos Kickers azul-claros, as

calças de fato de treino bordô da escola e uma t-shirt com folhos na

cintura e desenhos de flores muito pequeninas. Gaspar sentiu o silêncio

da rua de uma maneira tão esmagadora, que se aproximou de Adela e,

com um gesto da cabeça, pediu-lhe que caminhasse a seu lado, pela

estrada, em direção à avenida. Como ela não falava, só tentava

acompanhá-lo, e também não levantava o olhar, Gaspar decidiu

começar. Não gostava, e nunca gostara, de ficar calado, nem de olhares

esquivos e de silêncios desconfortáveis, da maneira, sobretudo no caso

dos adultos, como olhavam uns para os outros e engoliam as palavras, da

forma como o pai lhe dizia isto é tudo o que te vou dizer e não vais saber

mais nada. Sentia que, se o deixassem perguntar e falar, nunca mais

pararia, que a curiosidade o invadia como as formigas se apoderavam

das compotas abertas e esquecidas nas cozinhas.


— Peço-te desculpa se não gostaste da caixa — disse Gaspar. —

Pensei que podia ser-te útil.

Adela pegou-lhe inesperadamente no cotovelo, com muita força. Às

vezes, Gaspar esquecia-se da força daquela única mão.

— É o melhor presente que me deram em toda a minha vida —

disse. Tinha as faces irritadas de tanto chorar.

— Então porque é que ficaste zangada? Diz. Não suporto que me

digam não sei. Estou farto.

Ela recomeçou a andar. Estavam perto da casa da Rua Villarreal e

Gaspar, instintivamente, dobrou a esquina que a evitava e ia dar a uma

pequena sala de videojogos que aos domingos ficava aberta até muito

tarde.

— Porque fiquei zangada com a minha mãe. Porque é que ela não se

lembrou disso? Porque é que não perguntou ao médico? Nunca

acreditou que me doía o braço ou que tinha comichão. Não fiquei

chateada contigo. Mas vocês foram-se embora, deixaram-me sozinha.

— Fez-nos impressão, pensei que estavas zangada comigo.

— Nada disso. És o melhor de todos. Já vi os outros e disse-lhes que

eram uns cagões por se terem ido embora.

Gaspar sentiu as orelhas a arder. Gostou de ouvir dizer que era o

melhor. Assim, sacudiu o cabelo que lhe tapava a testa e disse:

— Quando precisares, ajudo-te a coçares-te ou a fazeres massagens,

não sei. Mas não vou estar sempre contigo, vais ter de pedir à tua mãe.

— A minha mãe que vá à merda. Já pedi ao Pablo e à Vicky. Se tu

também me ajudares, é suficiente.

Gaspar conseguira afastar Adela da casa da Rua Villarreal, num

desvio que os reconduzia à porta da sua própria casa. Como a toda a

gente do bairro, a casa abandonada provocava-lhe uma sensação de

desconfiança, e já ouvira Adela sugerir que um dia podiam lá entrar.


Uma excursão, uma visita à casa assombrada do bairro. Gaspar não

achava graça nenhuma à ideia. Tinha fome, mas não podia convidar

Adela para comer: estava proibido de convidar quem quer que fosse sem

avisar primeiro. A bicicleta acorrentada às grades do pátio deu-lhe uma

ideia.

— Já comeste?

Adela disse que não tinha muita fome, depois do bolo e das

sanduíches. As raparigas são assim, pensou Gaspar, não gostam de

comer: é estranhíssimo. Ele estava sempre com fome e os amigos

também.

— Bom, se não quiseres comer, podes fazer-me companhia na

mesma. Vamos ao La Curva, boa?

— Até comia uma fatia de pizza — disse Adela.

— Monta.

Gaspar apertou o cinto: estava mais magro e tinha as calças a cair.

— Porque é que não compras um do teu tamanho? — riu-se Adela, e

Gaspar respondeu-lhe que nunca se lembrava disso.

— É do meu pai, é por isso que é tão comprido. Fico com ar de

palhaço?

— Não — respondeu ela. — Não sei porquê, mas fica-te muito bem.

Adela pôs-se em cima dos apoios da roda de trás. Assim, podia ir de

pé, agarrada aos ombros de Gaspar. Pediu-lhe que andasse depressa, que

pedalasse com força e, como não havia ninguém na rua, Gaspar fez-lhe a

vontade e deu uma volta enorme antes de ir para a pizzaria para que ela

pudesse desfrutar um pouco mais da velocidade e do vento no cabelo.

Havia muitas histórias sobre a casa da Rua Villarreal. Nem todas se

contavam, no entanto. Uma tarde, Haydée, a mulher de Turi, o

merceeiro, falou aos clientes dos donos, que, segundo ela, eram uns
velhotes que viviam sozinhos sem ninguém que os ajudasse, sem

enfermeiros, sem os filhos; enlouqueceram lá dentro. Loucos de velhice:

demência senil. A velha, sempre que alguém passava, aproximava-se da

janela e abria a boca como se estivesse a gritar, mas não gritava. Depois,

ia-se embora a correr. Às vezes, andava nua. O velho era muito mais

calmo, mas recusava-se a despejar o lixo e uma vez tinha lá ido alguém

— um parente ou um assistente social — buscar uns sacos com coisas,

sobretudo com comida podre, enquanto o velho chorava sentado no

pátio que, naquela época, ainda tinha uma ou outra planta, e dizia agora

é que o vai encontrar, agora, sim.

Turi, o merceeiro, dizia que não conhecia essa história, mas que

sabia que, quando a velha morreu, foi encontrada na cama com dois

esqueletos de gato ao lado dela, um em cima do lençol e outro, da

almofada. O dono do café do parque corroborava a história, mas garantia

que os esqueletos dos gatos tinham sido encontrados ao pé do frigorífico,

que estava cheio de bolor e de pacotes de fiambre e de pão de forma por

abrir.

O que era estranho era que nenhum dos velhos do bairro, nenhuma

das avós nem dos avôs, se lembrava de quando os donos da casa eram

novos. Como se sempre tivessem sido idosos. Ou como se fossem

produto da imaginação. A avó de Vicky, uma vez, disse: quando eu e o

teu avô viemos para cá viver, os donos, que já eram velhos… Vicky

interrompeu-a quase a gritar. Mas quando tu te casaste eras nova, eles já

cá viviam? E eram velhos? Impossível, não digas palermices. A avó

vacilou e disse que julgava que sim, que já eram velhos, sim, que se

calhar eram polacos. E o que é que interessa se eram polacos? As

pessoas louras envelhecem mal, respondeu a avó. Não são como tu,

Vicky, que és uma crioula morena linda, minha preta. Vicky

desprendeu-se do abraço dela e, mais tarde, quando contou esta conversa


à mesa — a avó já se tinha ido deitar —, Hugo Peirano limpou os lábios

ao guardanapo e disse bom, ela está a ficar velhota, os velhos baralham

tudo.

Dessa vez, Vicky calou-se e juntou os pratos, que eram de vidro

verde; os copos eram castanhos. A mesa-bosque, como lhe chamava ela.

Comera pouco. Adela também comia pouco. Tinham as duas o mesmo

problema. Medo. O medo era difuso e Vicky não conseguia perceber

claramente a que é que se devia, mas tinha começado há menos de um

mês, diante da televisão. Estava no sofá da sala a ver as notícias das oito,

que lhe causavam tédio — notícias sobre como os radicais tinham

ganhado as eleições legislativas, sobre as ameaças de bomba nas escolas

e o estado de sítio, que andava a dar com a mãe em doida —, quando viu

uma notícia que lhe chamou a atenção: um vulcão da Colômbia entrara

em erupção. Vicky gostava de vulcões, mas também tinha medo deles, e

andou uns tempos obcecada com Pompeia e Herculano. Nessa noite foi

só a erupção, mas no dia seguinte Vicky sentou-se para ver se

continuavam a falar sobre o vulcão e ouviu uma coisa que a deixou

muda e a tremer, tanto que deu a mão a Gaspar, que estava deitado no

sofá, ao lado dela. A lava do vulcão arrastara o gelo e a lama; e todo esse

material fora parar aos rios, que quadruplicaram o seu caudal e

inundaram as aldeias das imediações.

— Tenho pavor de inundações — disse a avó, e Vicky mandou-a

calar.

Numa aldeia chamada Armero, algumas pessoas tinham ficado

presas nas suas casas, à espera de serem resgatadas. Mas todas as

câmaras, numa transmissão instável e com cores estranhas, focavam uma

rapariga de treze anos, Omaira — que nome tão estranho, pensou Vicky

—, que estava meio afundada entre o entulho e a lama; não se conseguia

mexer, mas conseguia falar e, quando lhe apontaram o microfone, lá


longe na Colômbia (onde é que fica a Colômbia?, perguntou Vicky a

Gaspar, e ele disse-lhe nas Caraíbas, mas não é uma ilha, fica ao pé da

Venezuela), a rapariga disse qualquer coisa que fez com que Vicky

tivesse vontade de fugir dali a correr: apertou o braço de Gaspar até ele

dizer ei, para com isso, o que era difícil, a ele nunca lhe doía nada. A

rapariga, Omaira, disse: consigo tocar com os pés na cabeça da minha

tia. A tia morta, afogada, claro, pensou Vicky, e imaginou os pés

escorregadios apoiados numa cabeça morta e, mecanicamente, apertou

os atacadores dos ténis.

Durante três dias seguidos continuaram a mostrar Omaira, e já não

apenas nas notícias da tarde: nas da hora do almoço também. Vicky via-

a quando voltava da escola e à tarde, depois das aulas de ginástica. A

rapariga sabia que não podia ser resgatada, mas Vicky não percebia

porquê e a mãe, à sua maneira brutal de médica, disse-lhe que só se lhe

amputassem uma perna, mas que ali, na lama, não estavam reunidas «as

condições de higiene necessárias». Omaira dizia quero que ajudem a

minha mãe porque vai ficar sozinha. Queria ir para a escola. Tinha medo

porque não sabia nadar e, quando a água a cobrisse por inteiro, afogar-

se-ia. Cantava. Queria estudar para um exame de matemática. Chamava

pela mãe — estava longe, em Bogotá — e pedia-lhe que rezasse para eu

poder andar e para as pessoas me ajudarem. Dizia que gostava dela,

dizia oxalá consiga ouvir-me, e também dizia que gostava do pai. A avó

de Vicky disse já não consigo ver isto, que dignidade, a desta menina,

não deviam passar isto, e foi-se embora e nunca mais se voltou a sentar

diante da televisão para ver Omaira a morrer.

Numa dessas tardes, enquanto via a agonia televisada de Omaira,

Lidia Peirano apareceu com Juan Peterson, que aceitara entrar por uns

instantes para tomar um chá — nunca bebia café —, e Vicky observou-o

atentamente, porque o pai de Gaspar nunca ia à casa dela. A mãe gostava


dele, insistia sempre que era um tipo bom e fascinante. Era isso que

dizia: «fascinante». Vicky sabia que discutia muito com Gaspar e ela

ficava muito zangada quando via que o amigo estava triste e fora, muitas

vezes, espancado. Nessa tarde, no entanto, Gaspar estava sentado ao lado

do pai e conversavam em voz baixa, de vez em quando, como se

estivessem sozinhos. Não eram parecidos fisicamente, mas tinham

gestos idênticos: o modo como afastavam o cabelo da cara, como se

encostavam no sofá, com as costas muito direitas.

— Queres comer alguma coisa, Juan?

— Não, obrigado, não tenho fome nenhuma.

20
Lidia insistiu numa pastafrola que comprara na padaria, mas o pai

de Gaspar voltou a dizer que não. Lidia disse:

— Estes miúdos estão obcecados com a rapariga colombiana, é

horrivelmente mórbido. A Adela, a filha da Betty, também não fala de

outra coisa. Eu só os deixo porque, se os proibir, vão ver noutra casa.

Juan não disse nada. Todos se calaram, de qualquer modo, porque,

da Colômbia, um médico anunciava que tinham tentado retirar a lama

que rodeava Omaira, mas que, infelizmente, a gangrena das pernas já

estava demasiado avançada. Acabou, coitadinha, disse Lidia. Ela vai

morrer, filha, já está. Não vejas mais, é muito triste.

Mas Vicky quis ver e viu o médico a chorar, a chorar, e a dizer: não é

justo, depois de termos lutado tanto por ela e do que ela teve de suportar.

E a mãe perguntou ao pai de Gaspar: Juan, lembras-te de há uns anos ter

acontecido uma coisa parecida a um rapaz italiano?, e ele respondeu que

sim com a cabeça, demasiado sério, e não disse mais nada e passou uma

mão pelos ombros de Gaspar, que agora também estava hipnotizado à

frente da televisão, porque o que ia acontecer era que a veriam morrer,

pois transmitiriam a sua morte, não a deixariam a sós naquele momento.

Omaira ocupava todo o ecrã da televisão a cores e a imagem era clara,


sem fantasmas, sem chuva: tinha os olhos totalmente pretos, como se

não tivesse íris nem branco dos olhos, as pálpebras inchadas e as mãos,

agarradas a um pedaço de madeira, estavam desproporcionadamente

grandes e muito brancas, já mortas, mas não a pele da cara, que

continuava linda e moreninha, as mãos pareciam estar cobertas por cera,

é por estarem há tanto tempo debaixo de água, pensou Vicky, ficam

assim, enrugadas e esbranquiçadas, mas mesmo assim eram estranhas.

Porque é que tem os olhos tão pretos?, perguntou Vicky à mãe, mas ela

limitou-se a responder vou desligar, hã, é uma barbaridade estarem a

passar uma coisa destas na televisão. Mas não desligou e também se

virou e ficou a olhar para a rapariga que agonizava no seu túmulo de

lama e imundície, com as pernas presas e os pés apoiados na cabeça da

tia.

Foi Juan, que nunca falava, quem respondeu à pergunta dos olhos. É

sangue, disse de repente. Tem os olhos cheios de sangue. Já não circula

no corpo dela e acumulou-se lá. Vicky olhou para a mãe a modo de

confirmação e ela disse que sim, é mais ou menos isso. Se fossem as

pupilas dilatadas, já não estaria agarrada, não teria forças. E, depois,

cumpriu a sua promessa: desligou a televisão. Basta. Nunca mais vão

conseguir tirar essa imagem da cabeça se continuarem a ver isto.

Vicky protestou e foi para o quarto com Gaspar e com o telefone,

que tinha um fio compridíssimo para poderem andar com ele de um lado

para o outro. Ligou a Adela: também estava a ver a rapariga a morrer.

Pablo estava com ela porque não lhe tinham deixado ver aquilo em casa.

Porque é que a tua mãe te deixa?, perguntou Vicky, e Adela, do outro

lado, respondeu: porque não está em casa, saiu um bocadinho. Se

estivesse, também era capaz de não me deixar. Querem vir para cá?

— Queres ir? — perguntou Vicky a Gaspar, e ele, depois de pensar,

disse que não.


— Vai tu, se quiseres.

— Eu vou, claro. Porque é que não queres?

Gaspar permaneceu calado durante um instante e depois disse:

— Lembras-te de quando ela disse, ou seja, pediu que fossem

descansar e que tentassem salvá-la depois? Acho que já estava a delirar

um bocado, mas foi como se pedisse que a deixassem em paz, não é?

— Mas ela não nos consegue ver, estamos muito longe, não a

incomodamos.

— Tu sabes lá.

— És mesmo esquisito.

E Vicky foi a correr até à casa de Adela, apesar das ameaças da mãe,

para ver a agonia com precisão e detalhe. Ela, Pablo e Adela choraram

juntos de mãos dadas à frente da televisão. Betty não apareceu para

acabar com aquilo. Depois, Adela disse que o pior tinham sido os

barulhos do fim, os estertores dolorosos como cães a gemer, é assim que

as pessoas morrem?, perguntou-lhes, mas eles não sabiam a resposta.

Pablo disse que jamais esqueceria as mãos cinzentas e parecidas com as

dos pássaros; também tivera medo dos olhos cheios de sangue preto.

Para Vicky, eram os pés, os pés a morrer e a tocar numa cabeça morta

na lama, deixar de sentir os pés, mas saber que continuavam apoiados

numa coisa que estava a apodrecer. Nunca mais conseguiu dormir com

os pés de fora, nunca mais conseguiu dormir sem meias, e nas noites em

que caía na cama esgotada, despois de estudar muito ou por estar muito

stressada, costumava sonhar com Omaira na água, agarrada a um ramo,

com a língua de fora, tão negra como os seus olhos, enquanto morria na

lama.

Hugo Peirano conseguiu acabar a piscina que prometera às filhas mesmo

antes do Natal. Não puderam usá-la na noite de consoada porque tinham


de esperar que a tinta secasse e depois enchê-la e verificar se o filtro

estava a funcionar bem, mas festejaram o Ano Novo na água: Hugo

levou para a piscina a taça de champanhe, enquanto as raparigas

entravam e saíam da água e faziam bombas, comiam nozes e esperavam

pelos fogos de artifício. Vicky não queria entrar descalça: tinha

comprado umas sandálias de plástico porque o chão da piscina, às vezes,

era escorregadio e fazia-lhe lembrar Omaira de pé em cima da cabeça da

tia e toda aquela lama da morte na Colômbia.

No dia em que estrearam a piscina, no Ano Novo, de madrugada,

depois do brinde apareceram Gaspar, Pablo e Adela. Gaspar e Pablo

nadavam, Adela só se atrevia a entrar na parte mais baixa e Vicky

preferia boiar. Quando foram deitar foguetes para a rua, Gaspar e Pablo

foram os únicos que permaneceram na água a brincar a que se afogavam,

a suster a respiração debaixo de água e, sobretudo, a brincar às lutas até

as cadelas começarem a ladrar. Vicky não percebia porque é que agora

passavam a vida a brincar às lutas, e ainda por cima com o calor que

fazia. Percebia Gaspar, porque era forte, era bruto e ganhava quase

sempre; sabia que os rapazes queriam sempre ganhar. Mas Pablo, que

era tão alto e magro como ele, não tinha tanta força, e às vezes ela

notava o seu sofrimento quando Gaspar se sentava em cima das costas

dele no chão ou lhe torcia o braço. Enfim: não percebia como é que

podiam bater um no outro sem se zangarem, porque eles, claramente,

não andavam zangados; pelo contrário, davam-se melhor do que nunca.

Aquele verão estava a ser estranho para ela. Tinha medo e não sabia

do quê. Já o dissera à mãe: às vezes, tinha tanto medo que, quando

queria respirar fundo, sentia que não conseguia encher completamente

os pulmões. Foi um erro desabafar com a mãe, que a auscultou e depois

a levou para o hospital para ela respirar para dentro de uma espécie de

assobio — chamavam-lhe «espirómetro» — e, quando viu que os


valores estavam normais, teve uma longa conversa com ela sobre se

devia ir ao psicólogo ou não, que se resolveu, provisoriamente, com um

«é melhor esperarmos» e «são coisas da idade». Vicky sabia que a idade

nada tinha a ver com aquilo. Não conseguia explicar o que é que lhe

parecia tão ameaçador e, ao mesmo tempo, a obcecava. Em parte, era

Omaira, mas não só. Tinha medo de a encontrar na escuridão, mas era

mais qualquer coisa do que a rapariga dos olhos pretos. Quando à noite

lhe apetecia fazer chichi, não tinha coragem de se levantar da cama,

mas, ao mesmo tempo, podia passar horas a ouvir todos os barulhos da

casa à espera daquele ruído diferente, aquele que lhe resolveria as

dúvidas relativas à existência, ou não, de uma presença, uma mão a

desarrumar de propósito os livros e os pratos, alguma coisa negra a

pairar no teto falso e que podia descer para lhe mostrar a sua cara.

E também havia o zumbido, tão forte nalgumas noites. No início,

pensou que eram as luzes da rua a piscar, ou a lâmpada fluorescente da

garagem, ou qualquer coisa elétrica nova no bairro, mas tornava-se mais

profundo e mais intenso com o calor e parecia vir do chão. Perguntou ao

pai se o metro passava por ali, mas ele disse que não, que, embora

houvesse uma estação a uns oitocentos metros da casa deles, no parque o

comboio desviava-se para o outro lado, não passava perto deles e era

impossível ou muito estranho sentir vibrações. Além disso, sou mesmo

estúpida, pensou Vicky, o metro não funciona à noite. Numa noite de

calor, para verificar se a vibração vinha do solo, como lhe parecia, Vicky

foi até à rua e tocou no asfalto. Os pais e a avó tinham-se sentado na

garagem depois de jantar; ali, a casa estava quase fresca, talvez por o

teto ser mais alto ou por não receber diretamente os raios solares durante

metade do dia. Conversavam com ar entediado, sentados nas suas

cadeiras, à volta de uma ventoinha de pé, o oposto de uma fogueira. Não

vinha de lá. Voltou a falar do assunto ao pai, uma vez descartada a teoria
do metro; e ele disse deve ser o autódromo. Que sensível, filha! Victoria

conhecia o zumbido do autódromo, que só funcionava aos domingos de

manhã, e o barulho ouvia-se ao longe, por vagas. A vibração noturna

nada tinha a ver com as corridas. E também não havia corridas noturnas.

Não voltou a falar do assunto com a família. Quando a viam sair à rua e

pôr-se de cócoras no meio da estrada, olhavam para ela com uma

curiosidade preguiçosa, uma vez ou outra a avó disse cuidado, por causa

dos carros.

Adela encontrou-a uma vez na rua, quando voltava da pizzaria com

Betty. Vicky não falara do zumbido aos amigos, ainda não: tinha medo

de tocar no assunto, era como admitir que existia mesmo. Acabou por

contar a Adela e a amiga pôs-se a olhar para todos os lados, como se o

zumbido se pudesse ver, como se fosse uma sombra no ar. Betty

obrigou-a a ir a casa comer pizza, mas depois deixou-a voltar para junto

de Vicky. Era verão. Naqueles meses, era mais permissiva.

— Acho que vem da casa — disse Adela. — Da casa que está ao

virar da esquina, a da Villarreal.

Vicky viu-se refletida nas pupilas de Adela e o medo que já sentia, e

que nunca se ia embora, intensificou-se como se lho tivessem injetado

nas veias.

— Já tinhas percebido — disse, triunfante, Adela. — Vamos ver se

vem de lá.

E puxou-a pelo braço. Vicky pensou: não a conheço. Não sei quem é

esta miúda.

— Não. Tenho medo. Larga-me!

Não teve de discutir com ela. Adela largou-a imediatamente. Tinha

gotas de suor na testa. Não era de admirar, estava muito calor.

— A casa é assustadora, OK? Sabes o que se diz dela, não sabes? Se

entrares e dormires lá, ficas com a sensação de estar rodeada de quadros.


De retratos. Que estranho, pensas, mas, como está escuro, porque não há

luz, não se vê bem. Além disso, a casa dá sono. Uma vez, a minha mãe

levou-me a uma curandeira e também me deu sono.

— Levou-te a uma curandeira? Para quê?

— Não me lembro bem, mas acho que não andava a dormir à noite

e, então, aquela senhora fez-me dormir. A ideia é dormires na casa e,

quando acordares, com a luz do dia, veres que não há retratos há tua

volta.

— E depois?

— Se não eram retratos, as caras eram de tarados. De pessoas que

olham para as pessoas quando elas estão a dormir!

Vicky ficou com vontade de chorar e Adela pareceu aperceber-se

disso, mas não parou. Como se estivesse zangada, como se a estivesse a

castigar.

— Quando passaste à frente da casa, nunca viste a velha com a boca

aberta à janela?

— Não vive lá ninguém — disse Vicky em voz baixa.

— Talvez a velha lá vá, não é? E como é que sabes que não vive lá

ninguém? Há pessoas que vivem em casa abandonadas. Vagabundos. No

cemitério dos frigoríficos também vivem pessoas. O Gaspar não me quer

levar lá, achas que ele me leva à casa da Villarreal? É o que mais quero

na vida.

— Não sei — respondeu Vicky, e disse a Adela que, agora, ela teria

de ir comer. Foi a correr para casa com a sensação de que a sua garganta

se fechava e, no entanto, com a ideia da casa abandonada a crescer

nalgum lugar da sua cabeça, a ideia de seguir o rasto do zumbido e

verificar se vinha de lá, uma colónia de bichos, um formigueiro, moscas

a esfregarem as patas como se estivessem a planear um ataque antes de

se lançarem sobre a carne podre.


Dois dias depois do Ano Novo, a maior parte das lojas do bairro e da

avenida ainda estavam fechadas, de férias, e Gaspar sabia que, nesse

verão, não iria de férias com Vicky. Dali a dez dias, os Peirano iriam de

carro para um chalé nos arredores de Esquel, onde ficariam até inícios

de fevereiro. O insólito é que levariam Betty e Adela, que não passariam

o verão na quinta dos avós, como sempre. Alugaram uma carrinha pão

de forma para irem todos juntos. Gaspar já tinha ouvido falar da

Patagónia, das florestas, do deserto, dos lagos, e sentiu uma pontinha de

inveja, mas o pai pedira-lhe — não ordenara nem obrigara: só pedira —

que ficasse com ele. Gaspar percebeu logo. O pai quase não dormia ou

comia e tinha muita dificuldade em ir à casa de banho, tinha de parar

várias vezes para recuperar o fôlego quando andava. Depois, passava

muito tempo na banheira e deixava que Gaspar lhe falasse enquanto

descansava na água morna com a porta entreaberta. Nesses dias de calor

e de doença davam-se muito bem e muito mal. Gaspar ouviu a médica,

numa das visitas, dizer-lhe que tinha de ser internado, que era uma

loucura ficar em casa, e o pai percebeu que ele estava a ouvir porque a

seguir bateu violentamente com a porta e, quando ela se foi embora,

deu-lhe uma chapada que o fez sangrar dos lábios e disse-lhe nunca,

nunca mais me ouças às escondidas. Dormia com oxigénio todas as

noites, deixou a barba crescer e quase nunca largava o caderno, onde

desenhava uns símbolos que Gaspar também não se atrevia a espiar. Deu

com ele, uma manhã, a tentar barbear-se na casa de banho com as mãos

trémulas e um corte no queixo a deitar sangue, e Gaspar sentiu, com

toda a certeza e de maneira contundente, que aqueles eram os últimos

dias do pai. Em vez de ficar assustado e de chorar — era o que lhe

apetecia fazer, pedir-lhe por favor que se curasse, dizer-lhe que não sabia

viver sozinho —, entrou na casa de banho, tirou-lhe a máquina de


barbear da mão e limpou-lhe o queixo, primeiro com uma toalha húmida

e depois com álcool.

— Ficaste a meio — disse-lhe. — Eu não sei como se faz a barba,

mas, se quiseres, posso tentar.

O pai disse que não fazia mal, mas Gaspar insistiu: tens barba em

metade da cara, estás uma lástima. E ajudou-o a levantar-se e a ir até à

cama.

Encostado nas almofadas, o pai disse-lhe:

— O teu tio Luis vem para cá nos próximos meses.

Gaspar falava com o tio quando fazia anos e também no Ano Novo:

os presentes que lhe enviava sempre todos os anos tinham chegado há

pouco tempo. Eram sempre dois: este ano, enviara-lhe uma caixa com

quatro carrinhos de coleção Chevrolet Bel Air 1957 e um relógio robô;

nenhum presente superaria o Scalextric de há dois anos que estava na

garagem. A notícia surpreendeu-o.

— A mim não me falou sobre isso.

— Decidiu há pouco tempo. Separou-se da mulher. Sempre disse

que regressaria quando a ditadura acabasse.

— Vem um pouco atrasado.

O pai sorriu.

— Queria voltar com a mulher, mas não conseguiu convencê-la.

Vem sozinho.

— Vem visitar-nos?

— Vai ficar cá. Tem de começar a tratar da papelada para a tua

adoção depois de eu morrer.

— Não quero ser adotado por ele, tu não vais morrer.

— Filho, não digas parvoíces. Acorda.

Gaspar cruzou os braços, um pouco ofendido, mas decidiu

permanecer calado. Vou preparar-te alguma coisa para comeres, disse. O


pai respondeu-lhe fechando os olhos. Gaspar verificou com o olhar se

ainda tinha oxigénio e foi para a cozinha. Uns minutos depois, quando

abriu o frigorífico, sentiu o chamamento do pai em todo o corpo. Jamais

seria capaz de explicar aquela sensação, era qualquer coisa semelhante a

quando nos apercebemos de que perdemos a carteira ou quando a

professora nos apanha com cábulas, um alarme sob a pele e na garganta.

Voltou a correr para o quarto e encontrou o pai sentado na cama, pálido

e brilhante de suor. Tentava inalar ar, mas Gaspar ouvia-lhe a farfalheira

dos pulmões, um estertor de assobios e de asfixia. Sabia o que estava a

acontecer-lhe, não era a primeira vez que sucedia e era uma daquelas

circunstâncias em que tinha de agir rapidamente, de acordo com o plano

de emergência que ele, o pai e a médica tinham concebido, uma série de

passos a cumprir sem perder os nervos e por ordem. Primeiro,

aproximou-se do pai e segurou-lhe a cara com as mãos.

— Calma — disse-lhe. E pegou no oxigénio. Não teria sido capaz de

se erguer para o alcançar? Isso era muito preocupante. O pai obedeceu e

pôs a máscara. Gaspar foi a correr à casa de banho buscar uma toalha

para lhe enxugar um pouco o suor, especialmente no peito e na testa.

Logo a seguir, retomou o plano. Primeiro, telefonar à doutora Biedma.

Ela nunca demorava a atender, como se conseguisse adivinhar a

procedência da chamada, e, se fosse necessária, só demorava uns

minutos a chegar. Vivia perto deles, mas Gaspar nunca a vira pelo

bairro. Devia trabalhar o dia todo. Depois, telefonar aos advogados:

tinha de avisar que o pai estava a ter uma crise. Depois, telefonar a

Esteban. Para Gaspar, essa chamada era a mais difícil porque, uma vez,

o pai dissera-lhe: é a única pessoa que sabe o que fazer comigo e contigo

se eu morrer. Esteban demorava um pouco mais a atender do que os

outros.

— Ele consegue falar? — perguntou-lhe.


Gaspar olhou para o pai, sentado de olhos fechados e com a

respiração a fazer aquele barulho desesperante que soava a humidade.

— Não — respondeu.

— Então, espero por vocês na clínica.

E desligou. Gaspar sentou-se ao lado do pai e pegou-lhe na mão, que

tremia. Não lhe restava fazer mais nada a não ser ficar com ele e impedir

que se deitasse porque, caso contrário, seria pior, acabaria por sufocar

completamente. Já tinha as pontas dos dedos azuis. Gaspar concentrou-

se em esperar pelo barulho do motor da ambulância, que aparecia

sempre uns minutos depois, no máximo cinco. Estava tudo bem

organizado. A doutora Biedma dizia que precisavam de uma enfermeira

permanente e Gaspar concordava, mas ouvira o pai dizer, calmamente,

se trouxerem uma enfermeira sabes o que eu sou capaz de fazer.

Sabia como seriam os dias seguintes: os quinze minutos ao fim da

manhã e os quinze minutos à tarde de visita nos cuidados intensivos,

esperar que o levassem para o quarto partilhado e a recuperação lenta e

o mau humor; Gaspar sentir-se-ia como se vivesse numa bolha de

plástico, isolado, capaz de ouvir e ver tudo, mas a flutuar, como se

andasse em bicos dos pés e o seu corpo fosse mais leve e tivesse de se

esforçar para não perder a estabilidade. Acariciou as costas do pai.

Gaspar sentiu uma dor na garganta como se tentasse engolir uma noz

inteira e, então, ouviu o motor da ambulância: nunca vinha com a sirene

ligada.

— Já venho — disse, e desceu a escada a correr para abrir a porta à

médica e aos maqueiros. Subiram depressa a escada e Gaspar esperou na

rua. Não queria ouvir nem ver mais nada. Já lhe bastava acompanhá-lo

na ambulância, os fios, as máquinas, as explicações dos médicos que o

tratavam como se fosse estúpido, as corridas e as incómodas cadeiras da

clínica.
Chegaram muito depressa porque era de noite e a clínica também

ficava perto de casa. Gaspar sentou-se à frente, ao lado do condutor; não

o deixaram acompanhar o pai e ele não discutiu. Saltou da ambulância

assim que chegaram, mas a maca entrou a correr e as portas das

urgências fecharam-se na sua cara; teve de as empurrar para entrar e viu-

se sozinho, não sabia por que corredor tinham levado o pai, nem se o

tinham metido no elevador e, sem se aperceber, quase tapou os olhos

com as mãos, a luz fluorescente feria-o, incomodavam-no os canteiros

com flores de plástico, o chão plastificado, o cheiro a desinfetante, os

gestos esgotados das pessoas naquela madrugada quente. Ninguém veio

ter com ele até que ouviu a voz tranquilizadora de Esteban, muito perto:

— Gaspar, estou aqui. Temos de esperar no terceiro andar.

Subiram no elevador em silêncio. Esteban estava despenteado e tinha

a camisa amarrotada. Chegaram à pequena sala de espera dos cuidados

intensivos e Gaspar viu entrar e sair, durante horas, as enfermeiras e os

enfermeiros vestidos de verde, até que apareceu a doutora Biedma, com

o cabelo muito curto e de bata branca. Parecia tranquila e, antes de olhar

para Gaspar, disse que sim com a cabeça a Esteban. Gaspar falou antes

dela.

— Posso vê-lo?

— Agora não. Amanhã. Está sedado, a descansar. Gaspar, o teu pai

teve um edema pulmonar agudo, sabes o que é ou queres que te

explique?

— Sei o que é, já teve um e tu explicaste-me o que era. Não me

esqueço das coisas.

E, depois, ela dirigiu-se a Esteban e disse-lhe que Juan estava em

estado muito grave, mas que, felizmente — Gaspar agarrou-se àquele

«felizmente» —, fora causado por uma arritmia, que iam experimentar

uns medicamentos novos e que a insuficiência cardíaca estava


descompensada. Depois, com uma familiaridade — conheciam-se assim

tão bem? — que surpreendeu Gaspar, apoiou-lhe uma mão no ombro e

disse-lhe: não precisam de ficar cá, mas vão para um sítio onde haja

telefone. Esteban respondeu-lhe que iriam para a casa de Juan. Ela, antes

de voltar para os cuidados intensivos, disse a Gaspar: portaste-te muito

bem, meu querido. Agiste com muita calma e, sobretudo, muito

depressa.

— Acabaste de dizer que está em estado muito grave.

— O teu pai está muito mal, Gaspar, mas podia estar morto.

Gaspar cruzara os braços e olhava para a médica com uma fúria que

não sabia de onde vinha, uma raiva que só conseguia conter a muito

custo; decidiu não continuar a falar. Seguiu Esteban até ao carro, um

Mercedes cinzento. O parque de estacionamento da clínica era muito

grande e o barulho das chaves fazia eco. Esteban mal lhe falou na sala

de espera, apesar de terem lá passado horas. Nunca falava muito com

ele. Gaspar sentou-se no banco da frente e pensou em como conhecia

pouco o amigo do pai. Trabalhava no Consulado de Espanha; uma vez,

explicou-lhe que era como uma embaixada, mas menos importante.

Conheceram-se na Europa, quando a mãe estava a estudar em Inglaterra.

Não tinha família, não era casado. E era praticamente tudo o que Gaspar

sabia dele.

— Porque é que não vamos para a tua casa? — perguntou.

Esteban ligou o carro, depois acendeu um cigarro e a seguir disse:

— Porque o teu pai não quer que saibas onde é que eu vivo.

A sinceridade da resposta surpreendeu Gaspar; ficou a olhar para

Esteban, que fumava sem pressa de arrancar com o carro.

— A sério?

— Mas achas estranho? Vá, vamos para tua casa.


Já amanhecera e Gaspar levou a mão aos olhos a modo de pala para

proteger os olhos dos raios solares: havia horas que não comia nada e

isso podia provocar-lhe dores de cabeça. Disse-o a Esteban, que parou

rapidamente o carro ao pé de um café para tomarem o pequeno-almoço.

Não sabe o que fazer comigo, pensou Gaspar, e está muito preocupado.

Embora tivesse fome, custou-lhe engolir o croissant. Oxalá morra,

pensou. Oxalá morra de uma vez por todas e isto tudo acabe e eu possa

ir viver com o tio ou com a Vicky ou sozinho em casa e nunca mais

tenha de pensar em quartos fechados, vozes na cabeça, sonhos com

corredores e mortos, famílias-fantasma, pálpebras em caixas, sangue no

chão, o sítio para onde vão os que partem, de onde vêm quando voltam,

oxalá conseguisse deixar de gostar dele, esquecê-lo, oxalá morra. O

croissant passou-lhe pela garganta com dor. Esteban engoliu de um só

trago o seu café simples e acendeu outro cigarro. Pagou sem chamar o

empregado, deixou o dinheiro em cima da mesa e fez sinais a Gaspar

para que entrasse no carro e esperasse por ele: tinha de fazer uma

chamada do telefone público do café. Deve ser por causa do trabalho,

pensou Gaspar, mas, e se estivesse a avisar alguém sobre a situação do

pai? Não teve tempo de descobrir: Esteban regressou ao carro muito

depressa, a conversa durara escassos minutos. Chegaram com a mesma

rapidez a casa: havia pouco trânsito, mas, além disso, Esteban guiava

com precisão e uma certa brutalidade temerária que Gaspar adorou.

Continuavam sem se falar. Mas quando entraram em casa, Esteban

disse:

— Vai dormir um pouco, eu acordo-te se alguém telefonar.

— Porque é que não falas como os argentinos? — perguntou Gaspar,

enquanto descalçava os ténis. Não tinha sono.

21
— Nunca consegui acostumar-me ao «vos» . E escapam-me

algumas expressões, ou misturam-se, melhor dizendo. Tu e eu nunca


falámos muito.

— Porquê?

— Porque és uma criança. Eu não me dou bem com crianças.

Gaspar assentiu com a cabeça e depois:

— Não acredito em ti. Bom, se calhares não te dás bem com os

pequenos, mas eu não sou pequeno. É ele que não quer que tu fales

comigo. Eu sei. Não compreendo porquê, mas dá para perceber.

Esteban não pareceu ficar incomodado. Gaspar deu um pontapé nos

ténis e saiu da sala a correr para o quarto, descalço. Sentou-se na cama.

Não ia conseguir dormir. Não sabia o que fazer. Esteban apareceu à

porta do quarto: seguira-o.

— Tens muitos discos — disse.

— Comprei uma aparelhagem no Natal e alguns discos são meus,

mas a maioria era da minha mãe.

— Queres ouvir música?

Gaspar tentou continuar ofendido, mas Esteban também parecia

desconfortável e estava a tentar ser amável. A culpa não é dele, pensou

Gaspar. A culpa é do meu pai e da loucura dele.

— Ainda não pude testar as colunas porque a música incomoda o

meu pai, não gosta, ou sei lá eu. Ele foi sempre assim?

Esteban sentou-se no chão e pegou em metade da pilha de discos.

Pô-la em cima das pernas cruzadas. É muito mais novo do que parece,

pensou Gaspar.

— Quando éramos mais novos, eu e a tua mãe ouvíamos muita

música. Era ela que comprava os discos e ia aos concertos. Ele sempre

preferiu o silêncio e, desde que ela não está cá, bom, a música fá-lo

pensar nela, suponho eu. Sabes quais eram as canções favoritas da tua

mãe?

— Ela assinalou algumas. O meu pai não me diz nada.


Esteban procurou na pilha de discos e pôs ao lado dele, no chão,

alguns que escolheu. Gaspar apontou para o álbum Ziggy Stardust.

— Adoro este. Tem muitas notas dela.

— Este artista era amigo da tua mãe. Amigos, bom, do género de

amizade que se tinha naqueles anos, mas conheciam-se. Depois ele ficou

famoso e deixaram de se ver.

— Acho que não é conhecido cá.

Esteban pôs um disco dos Led Zeppelin.

— Quando a tua mãe gostava muito de uma canção, e gostava desta,

punha-a uma e outra vez a tocar até dar connosco em doidos.

Gaspar olhou para o que ela escrevera ao pé do título. Eram uns dez

sinais de exclamação, a vermelho.

— Eu não faço isso — disse Gaspar. — Não sei se gosto assim tanto

de música. É estranho? Gosto mais de filmes. Ou de livros. E tu?

— De música? Não especialmente.

Esteban pensou.

— De casas — disse. — De arquitetura.

— Como o meu tio.

— Ah, este disco. Enviei-o à tua mãe de Barcelona quando saiu. Tu

devias ter menos de um ano. Nem sei como conseguiu chegar aqui são e

salvo.

— Enviaste-lho por correio?

— E mais algumas coisas.

— A mãe da minha amiga Vicky gosta muito do Serrat.

— Mas tu, não.

— É um bocado chato.

— É muito chato. Aqui, no entanto, há uma canção bem bonita, a

favorita da tua mãe. Se achares que é chata, procuramos outro.


Stephen deteve-se em várias capas, mas ficou surpreendido quando

viu o disco Space Oddity.

— A minha mãe anotou esse todo. Olha, escreveu coisas ao lado do

título de todas as canções.

— Já sabes ler em inglês?

— Sim, mas essa letra é difícil.

— O rapaz de olhos selvagens de Freecloud. Deixa ver. «A aldeia

não detetada pelas estrelas.» Vamos ouvi-la.

Gaspar tentou perceber a história, mas, mesmo com a ajuda de

Esteban, era difícil para ele. Um jovem enforcado que ia para o cadafalso

a sorrir. «É a loucura nos seus olhos.» Um dia que terminava para

alguns, uma noite que começava para alguém. Viu Esteban abanar a

cabeça e virar o disco para pôr outra canção. «A Letter to Hermione».

— Esta é para a namorada dele?

— É isso mesmo, e uma namorada a sério, ainda por cima. Uma

rapariga lindíssima. Já tens namorada, Gaspar?

— Tinha, mas não estava apaixonado, nem nada.

— Como assim?

— Não fico triste quando penso nela dessa maneira, como na canção.

A canção é boa, mas não gosto da parte instrumental.

— Muitos músicos deviam voltar a gravar o repertório inteiro. Esta

não envelheceu bem. É sempre triste apaixonar-se.

— E tu?

— Não tenho ninguém, não.

— Gostavas de ter?

— Não, é demasiado complicado.

— É complicado por causa do que as pessoas vão dizer, e assim?

Tratam-te mal? O meu pai diz que são todos uns preconceituosos e que

as pessoas são estúpidas.


— A opinião dos outros é-me indiferente, mas apaixonar-se é uma

coisa atroz, Gaspar. Nisso, tens razão.

— Não estás apaixonado pelo meu pai?

Esteban sorriu. Não parecia surpreendido. Foi muito difícil para

Gaspar fazer a pergunta, tão difícil que sentiu necessidade de apertar os

punhos e olhar para a janela.

— Achas? Não.

— Mas há qualquer coisa. Eu gostava de que ele, não sei, não gosto

de o ver sozinho.

Esteban olhou para ele com franqueza, mas não disse nada.

— A minha mãe gostava muito desta canção?

— Também gostava de coisas mais alegres. Deixa ver o que há aqui.

Ouviram música durante duas horas. Os Rolling Stones, os Beatles

— que o rapaz achou que era música para crianças, e disse-o a Esteban,

que assentiu e disse então, ouçamos coisas mais sérias —, Donovan,

Leonard Cohen, Bob Dylan, Pink Floyd, Janis Joplin. Jimi Hendrix, Led

Zeppelin, Caetano Veloso, Maria Bethânia. Gaspar deitou-se vestido

enquanto Esteban punha canções e, a dada altura, pediu-lhe que baixasse

um pouco o volume, porque tinha começado a bocejar. Gaspar fechou os

olhos ao som de uma mulher que cantava em português: «Para além dos

abraços de Iemanjá / Adeus, adeus…»

Os dias continuaram como costumavam continuar quando o pai estava

internado; Gaspar sentia-se livre e preocupado, sensações essas que,

intuía, não deviam andar lado a lado. As breves visitas, o pai meio

sentado e a dormir, alguns pacientes a queixarem-se à volta dele, lavar

as mãos antes de entrar e ouvir a médica antes e depois a dizer a mesma

coisa de sempre: as primeiras vinte e quatro horas são as mais

importantes, estamos a experimentar uma nova medicação. Depois da


primeira visita, Esteban deixou-o em casa de Vicky. O que é que vai

acontecer quando eles forem de férias?, perguntou-lhe. O que é que vai

acontecer se o meu pai não sair da clínica? Vai sair, disse Esteban.

Gaspar não discutiu. Passava o dia com Vicky e Virginia, que recebera

no Natal um presente simples, um brinquedo de plástico em forma de

lupa, mas sem vidro que, acompanhado por um pequeno recipiente com

água e sabão, servia para fazer bolhas. E passava o dia a fazer bolhas no

pátio, sob o olhar curioso das cadelas.

Gaspar ia à clínica todos os dias: às vezes, era Esteban que o ia

buscar; outras vezes, ia com a mãe de Vicky; outras, com o motorista do

pai. Ele queria ir sozinho, mas não o deixavam enquanto o pai não

melhorasse. Esteban disse-lho muito claramente: eu sou responsável por

ti e não vou deixar-te andar sozinho na rua. Não me importa que sejas o

rei das bicicletas.


Ao quinto dia, a médica decidiu que o pai já podia ir para o quarto e

Gaspar preparou-se para o ouvir insistir em que lhe dessem alta. O pai

detestava as camas, demasiado curtas para a estatura dele, detestava o

desconforto e os horários e os barulhos e ficava tão nervoso que várias

vezes tinham decidido dar-lhe alta só para que o stresse não o impedisse

de melhorar. Mas a doutora Biedma era disciplinada e não dava ouvidos

a caprichos. Vais ficar cá porque a decisão não é tua, disse-lhe uma

tarde, enquanto Gaspar fingia olhar para a janela para que o pai não

visse que estava a sorrir.

Gaspar respeitava os horários das visitas, à tarde, porque passar mais

tempo na clínica aborrecia-o. Esteban incumbira-se de levar a roupa a

Juan, os livros e os cadernos que queria e que lhe faziam falta e, por

isso, a Gaspar só lhe restava esperar.

— Não precisas de vir todos os dias — disse-lhe o pai durante uma

visita. — Fica em casa da tua amiga, brinquem. Eles têm uma piscina,

não têm?

— Hoje já estive na piscina. Está demasiado sol, fiquei com dores de

cabeça. Posso deitar-me um bocado aqui?

Como sempre, o pai não partilhava o quarto dele; havia outra cama,

vazia, mas feita. Esteban passava lá algumas noites. Às vezes, também

uma enfermeira particular para ele não ficar sozinho ou mesmo a

doutora Biedma, que, durante estas crises, se dedicava exclusivamente

ao pai. Deviam pagar-lhe uma fortuna.

O pai mudou de atitude e, com a mão, pediu-lhe que se aproximasse.

— Porque é que não me disseste isso antes?

— Só começou há bocado, só me dói o olho, se eu dormir, passa.

Carregou na campainha que estava ao lado dele, em cima da

almofada, para chamar a enfermeira. A mulher, vestida de azul-claro,

apareceu logo. O meu filho está com enxaquecas, disse-lhe, e pediu-lhe


alguma coisa para o aliviar; ela voltou a sair e regressou com um copo

de água e um comprimido. Também lhe deu um pano húmido muito frio

para ele pôr na testa. Gaspar usou-o como se fosse um barrete, na

cabeça, e a enfermeira sorriu antes de se ir embora.

— Vai para a cama.

Gaspar não ligou e sentou-se em cima do colchão da cama do pai.

Ele acariciou-lhe a mão com cuidado. Desta vez, tinha agulhas de soro

ou de medicação espetadas nos dois braços, a pele coberta de nódoas

negras, algumas já esverdeadas. Gaspar ajeitou o lenço frio na cabeça e

estudou a cara do pai. Pareceu-lhe mais cansado do que nunca; percebeu

que o plástico duro do tubo de oxigénio lhe magoava a pele delicada do

nariz. Surpreendeu-o que a mão que o acariciava se desprendesse da sua

para o segurar pela nuca e, pouco a pouco, o obrigar a reclinar-se.

Gaspar descansou no ombro do pai. Não se levantou quando Esteban

entrou; com a extrema sensibilidade que acompanhava as suas

enxaquecas, notou o ténue cheiro a cigarro. O analgésico adormeceu-o

um pouco e só acordou quando Esteban lhe pegou ao colo e o deitou na

outra cama, em cima do colchão duro, com a cabeça apoiada na

almofada fria.

Não adormeceu logo: queria desfrutar da frescura da almofada. E

ouviu, como que em sonhos, Esteban e o pai a falarem.

Já tenho o que me faz falta e também sei qual é o sacrifício

necessário.

O esforço quase te matou.

Consegui, deram-mo, finalmente. Num destes dias, espero completar

o signo sozinho.

— Que sacrifício? — perguntou, de repente, Gaspar, e os dois

homens olharam para ele boquiabertos, com um ar de surpresa que os

fazia parecer muito jovens e muito longe do cansaço, do oxigénio, da


clínica ao entardecer. A expressão de assombro na cara deles era quase

cómica.

— Tu ouviste? — perguntou Esteban.

— Não estou a dormir — riu Gaspar.

— Merda — disse Juan.

— Tu sabias disto? — perguntou Esteban.

— Estás a gozar? Claro que não. Trata disso.

— Como se fosse muito fácil. Trata disso. Está bem.

— Do que é que estão a falar? Que sacrifício?

Esteban levantou-se e aproximou-se de Gaspar. Instintivamente,

procurou um cigarro no bolso da camisa e estalou a língua quando se

lembrou de que não era permitido fumar no quarto.

— É que o imbecil do teu pai só está a dizer parvoíces, diz que o teu

tio vai ter de cuidar de ti quando ele for desta para melhor e que isso será

um sacrifício para ele. Olha, eu conheço-o há vinte anos e desde essa

altura que está quase a morrer, por isso, o sacrifício será nosso, que

teremos de continuar a aturá-lo.

Gaspar riu-se. Estava um pouco drogado por causa do analgésico.

— Durante uns dias, teremos de ter mais cuidado — disse Esteban.

— Porra.

Gaspar mergulhou na piscina de Vicky e chegou ao outro lado com

cinco braçadas. Era ótima para uma pessoa se refrescar, mas, para nadar,

não servia. Tinha de esperar pela abertura do clube, em março, para

voltar a nadar a sério. Estavam os quatro na piscina. Pablo tinha a água

pelo pescoço, Vicky estava em cima de uma boia com as suas sandálias

de plástico, Adela caminhava pela zona onde havia pé com um fato de

banho de cor fúcsia.


— Ela estava muito assustada, mas eu levei-a lá na mesma, de dia a

casa é diferente. E juro-te que o zumbido vem de lá.

— Se calhar, é um gerador, há muitos cortes de luz — disse Gaspar.

— O que é um gerador?

— É como um motor que dá eletricidade, algumas lojas têm um para

a mercadoria deles não apodrecer quando há apagões. Como a casa está

abandonada, se calhar puseram um no pátio.

Pablo enfiou a cabeça debaixo de água para molhar o cabelo e

penteá-lo para trás. Usava-o comprido e muito encaracolado.

— Se têm assim tanta vontade de lá ir, porque é que não vão e

pronto? — perguntou.

— Temos medo de ir sozinhas — disse Vicky.

Gaspar suspirou.

— Têm é a cabeça cheia de histórias que o bairro conta sobre a casa.

— Tu não tens medo? — perguntou Adela. — A minha mãe diz que

é estranho tu não teres medo.

— Tenho um bocado — disse. — Eu também estou sugestionado.

— Sabes alguma história? — quis saber Vicky.

— Há muitas — respondeu Pablo. — A minha mãe diz que os donos

emparedaram a casa porque não queriam que ninguém lá entrasse,

porque lhes aconteceram coisas horríveis lá. Mas não me quis dizer que

coisas.

— A Adela não ouve o zumbido — disse Vicky. — Mas é mau. A

sério que é mau. Não é um gerador. É de qualquer coisa viva. Às vezes,

parece que canta. Ninguém o ouviu?

Pablo e Gaspar responderam sinceramente que não. Gaspar também

pensou que, se tivesse ouvido alguma coisa, não o diria à frente de

Adela. Não queria entusiasmá-la ainda mais.


Gaspar saiu da piscina e não aceitou a toalha que Pablo lhe ofereceu.

Preferia secar-se ao sol.

— Eu levo-vos lá — disse. — Quando o meu pai sair da clínica.

Adela começou a pular na água, tão selvaticamente feliz como se lhe

tivessem dito que ganhara um prémio maravilhoso. Como se lhe tivesse

anunciado que, graças a um avanço da medicina até então desconhecido,

poderia recuperar o braço.

— Vamos de férias daqui a uns dias — disse Vicky. — O teu pai está

quase a sair?

— Não sei. Mas, se não, podemos lá ir depois de vocês voltarem.

— Eu acompanho-vos — disse Pablo.

— Tens medo.

— Todos temos medo — suspirou Pablo. — Mas acho que, se não

formos a essa casa, não nos vai passar.

Estava internado havia dez dias e recuperara mais depressa do que a

médica esperava, como lhe disse uma enfermeira. Estava morto por se ir

embora e disse a Gaspar que, nesse ano, iriam passar uns dias numa

quinta. De quem é a quinta, quis saber Gaspar. Tecnicamente, da tua

mãe. Isto é: tecnicamente, tua. Da tua família materna. Mas vocês não se

dão pessimamente mal?, perguntou Gaspar, e o pai disse que sim, damo-

nos pessimamente mal, é por isso que nunca os vemos, mas não vão

negar-me um lugar onde eu possa convalescer. Esteban iria com eles, e

talvez Tali, se pudesse. Há muito tempo que Gaspar não via Tali; ela

telefonava muitas vezes, mas o pai fechava-se sempre para falar com ela.

A doutora Biedma visitá-lo-ia todos os dias e haveria uma enfermeira de

plantão todo o dia. Há piscina, disse-lhe o pai, e cavalos, o tratador pode

ensinar-te a montar. Gaspar gostou da ideia. O pai já superara o

momento afetuoso do dia da dor de cabeça e tratava mal toda a gente.


Gaspar estava acostumado, mas preferia não o ter por perto. Detestava os

filmes e as telenovelas em que heroicos doentes suportavam o

sofrimento em silêncio e ainda motivavam os outros. Ele conhecia

suficientemente bem os hospitais e a doença para saber que a maior

parte dos doentes eram autoritários e mal-humorados, e que faziam o

possível para que os outros se sentissem tão mal como eles.

A última coisa de que se lembrava antes de sair para a quinta era do

carro. De entrar no carro com o motorista, a médica e Esteban.

Perguntou pelo pai, que viajava noutro carro apenas com a enfermeira

para ir mais confortável. Pareceu-lhe estranho, mas Gaspar sabia aceitar

o que era estranho. Perguntou quanto faltava para chegarem a

Chascomús e disseram-lhe que menos duas horas. E quando saíram da

cidade, adormeceu.

Acordou numa cama desconhecida, uma cama de casal, num quarto

muito grande que, quando o tentou ver bem, virando a cabeça, começou

a girar; a tontura imobilizou-o, de barriga para cima. A dor era diferente:

não era uma enxaqueca, vinha de fora, um apertão com duas tenazes de

ferro nas fontes, e apercebeu-se de que estava nu sob os lençóis e o

cobertor. Um cobertor em pleno verão? Não iam para Chascomús? Não

era longe, o clima não era diferente. Destapou-se e tentou focar: não se

tratava de uma tontura comum, era semelhante ao que sentiu quando ele

e Pablo se embebedaram com licor de café. Dessa vez, vomitou e Pablo

riu-se e depois desatou a chorar e também acabou por vomitar. Se não

mexesse a cabeça, seria melhor: aprendera isso. A dor era forte, mas de

modo algum pior do que as que estava habituado a suportar.

Tinha os braços cheios de nódoas negras. De todos os tamanhos,

mas, entre os ombros e os cotovelos, claramente provocados por mãos:

alguém o agarrara. Alguém o segurara.


no chão, não, numa mesa, uma mesa escura, várias mãos enquanto

se tentava defender, o que é que lhe queriam fazer?, não se conseguia

lembrar, mas das mãos, sim

Uma das nódoas negras em forma de mão era muito parecida com a

marca, a queimadura que o pai tinha no braço. Estava quase no mesmo

lugar. É a mão dele, pensou Gaspar, são os dedos dele, eu conheço-os.

sinto-os, não os conheço apenas, é a mão dele, também me tentou

segurar, porque é que me impedia de ir, para onde queria eu fugir

Quase gritou quando viu o resto do corpo, o peito, a barriga. Estava

todo arranhado e negro; não percebia o que o poderia ter magoado

daquela maneira. Não estava a sangrar porque alguém o tratara e, além

disso, as feridas não eram muito profundas. Raspadelas. Unhas? Teria

ficado preso nalgum lado e aquelas feridas eram fruto dos esforços para

o libertarem? E as pancadas no peito e nas costelas?

Tenho de fugir, pensou. Estou nu porque não querem que fuja, mas

eu não me importo de passar pela vergonha, tenho de ir-me embora.

Devo ter sido sequestrado. Não reconhecia nada no quarto, a roupa dele

não estava lá. Mas também não estava amarrado. Saiu da cama e, assim

que tocou no chão, a porta abriu-se — ouviu a chave — e o pai entrou,

seguido pela doutora Biedma.

E, então, a certeza foi tão clara como saber que tinha cinco dedos em

cada mão ou que os dentes servem para mastigar ou que a sombra era

mais fresca do que o sol. Bastou-lhe olhar para o pai para saber que era

o responsável por aquilo, para saber que tinha sido ele a atacá-lo. Não

fora sequestrado por desconhecidos.

Não conseguia lembrar-se do motivo, não conseguia imaginar o

motivo, mas era verdade: fora ele a magoá-lo. Viu o olhar satisfeito do

pai. Há algum tempo que não via aquela expressão, a boca relaxada e

sorridente.
Tentou, primeiro, retroceder na cama: não ficou com vergonha de a

médica o ver nu. A janela estava fechada, mas tinha grades. Se quisesse

fugir, teria de sair pela porta e passar pelo pai e pela médica. Pensou que

devia tentar uma fuga inteligente, falar com eles, enganá-los e, uma vez

lá fora, correr, mas algo básico lhe gritava que estava em perigo e tinha o

corpo completamente tenso de medo e expetativa.

Saiu da cama, mas era um movimento inútil e sabia-o, barrar-lhe-iam

a passagem. Tinha de tentar, nem que tivesse de desatar à dentada. Não

se conseguiu ter de pé: a dor num dos pés obrigou-o a ajoelhar-se. Só

então viu que tinha o tornozelo inchado como uma bola de ténis. Era

uma entorse, soube-o porque já vira colegas do futebol com o mesmo

problema e, além disso, se estivesse partido teria gesso. Ouviu a médica

dizer está assustado; tentou devolvê-lo à cama e Gaspar resistiu como

um gato, repeliu-a com um empurrão e atacou-lhe diretamente a cara;

ela teve de recorrer a toda a sua força, que, percebeu Gaspar, não era

pouca, para o sentar. Fica quieto ou ponho-te a dormir, disse-lhe. E

depois começou a explicar-lhe o que acontecera — tranquilamente e

sem grandes pausas, procurando os seus olhos —, mas Gaspar não

olhava para ela, olhava para o pai, que estava de braços cruzados com

uma calma horrível. Porque não se aproximaria dele? Porque não tentava

detê-la? A médica continuava a falar e Gaspar, agora sim, ouviu, porque

era melhor saber, sempre era melhor saber. Ela dizia, pacientemente, que

estava magoado por ter tido um acidente. Um acidente de automóvel,

dois dias atrás, durante a viagem da clínica para a quinta. Estamos numa

quinta, explicou-lhe. A quinta para onde vinhas com o teu pai: o teu

carro bateu a meio do caminho. O Esteban também se magoou, mas não

tanto como tu. Eu saí ilesa por sorte. Seja como for, não tens nada

fraturado e nada de grave, mas, como bateste com a cabeça, tiveste de

ficar no hospital em observação.


Eu não estive em hospital nenhum, disse Gaspar. Ela insistiu:

estiveste, sim. Não te lembras do acidente, nem do internamento. É

frequente haver períodos de amnésia após uma concussão, embora a tua

seja leve. A memória pode chegar aos poucos ou nunca.

Gaspar olhou fixamente para a médica e, depois, para o pai, que não

parecia inquieto. Sentiu, então, uma humilhação que lhe encheu as faces

de sangue.

Estão a dizer-me que estou amnésico, como nas telenovelas. Estão a

tratar-me como se fosse estúpido. Depois, apontou com um dedo para o

pai, que continuava impassível. Foste tu, gritou-lhe. Foste tu que me

magoaste.

Finalmente, o pai falou. Devagar, como a médica. As nódoas negras

são de quando te tirámos do carro. Os traumatismos, da colisão. Não era

eu que vinha a guiar, não te fiz mal.

É mentira, disse Gaspar, e voltou a sair da cama. Apoiar o pé era

terrível, mas tentou. Deu três passos: a médica, seguindo uma

discretíssima ordem do pai, apenas um gesto com a mão, deixou que o

fizesse. Gaspar foi ao pé-coxinho até à porta: lá fora, no corredor, estava

Esteban com uma ligadura no pescoço e o braço esquerdo — tinha uma

t-shirt de manga curta, escura — cheio de raspões ensanguentados.

Quando o viu, Gaspar hesitou: e se a história do acidente fosse mesmo

verdadeira? Não. Amnésia, disseram-lhe. Não lhe podiam mentir assim,

eram ridículos. Agiu depressa: à esquerda, o corredor ia dar a outros

quartos, mas, à direita, havia luz, um pátio? Correu. Já não lhe doía

apoiar o pé. O professor de ginástica dizia-lhe sempre que não devia

correr lesionado porque a adrenalina bloqueava a dor, mas não se

importou. Não era um pátio: era uma sala luminosa com uma janela

enorme com dois tipos de vidros, um translúcido e outro cor de

mostarda, em forma de tabuleiro de damas; o chão, que conseguiu ver


durante a corrida, era de tijoleira, com um padrão semelhante ao de um

caleidoscópio. A porta estava aberta e dava para um jardim. Gaspar,

antes de acelerar, na medida do possível — coxeava, não conseguia

correr —, ouviu o pai gritar deixa-o!, e pensou que o grito seguramente

se dirigia a Esteban, que, julgava ele, o seguira. Lá fora, percorreu um

caminho de cimento até uma mesa com cadeiras, todas de pedra,

decoradas com azulejos partidos, e depois uma árvore com uma rede, e a

seguir o limite do jardim, fechado por uma vedação de arame que,

mesmo no seu estado, não lhe custou abrir e franquear. Depois o campo,

ou melhor dizendo, um descampado, e Gaspar correu o mais que pôde,

que não era muito, o pé fazia-o gritar, mas, enquanto corria, lembrava-

se, estava numa mesa e o pai noutra, e havia gente, não muita, parecia

qualquer coisa médica, uma operação, o pai estava como que a dormir,

ele tentava acordar e não conseguia, não conseguia ver bem as caras

das pessoas, ou estariam demasiado longe? Lembrava-se de alguém a

prendê-lo pelos braços, forte, como se tivesse dedos de metal, dedos a

fecharem-se sobre os seus braços. Estaria no carro?

Não, a história do carro era mentira. Ainda se sentia sujo sob a pele,

mas não encontrava uma explicação para isso, ter-lhe-iam injetado óleo?

Olhou para os braços. Estavam picados. Correu. Voltou a torcer o pé e

caiu, e, quando se tentou levantar, já não foi capaz, a dor, agora,

imobilizava-o. Não fazia sentido arrastar-se. Caíra de bruços, estava a

sangrar dos lábios, virou-se. Olhou para o céu. Estava cinzento-escuro,

uma massa compacta sem nuvens que parecia muito próxima, prestes a

esmagá-lo. Só vira o céu assim uma vez, na cidade, e dessa escuridão

baixa caíra um potente granizo, pedaços de gelo, alguns tão grandes

como bolas de golfe ou ameixas. Doía-lhe o corpo todo, e ainda mais

por causa da queda, e ardia-lhe o pé, mas, quando tentou voltar a pôr-se

de pé, viu a cara do pai, os olhos transparentes mimetizando o cinzento


do céu. Gaspar gemeu ao tentar levantar-se e voltou a cair, de costas.

Queria acreditar na história do choque e da amnésia, mas, com uma

certeza que reconhecia e que não tencionava abandonar, sabia que fora o

pai a magoá-lo. Profundamente e de uma maneira inimaginável, de uma

maneira da qual as nódoas negras e os traumatismos e o galo na cabeça

eram um rasto mínimo e superficial.

Não conseguiu levantar-se: a dor no pé fê-lo perder o equilíbrio. E

então o pai, com uma força incrível — não estava a morrer?, não devia

estar fraco? —, reteve-o no chão, na relva, apoiando-lhe a manápula no

peito, uma pata de elefante, a roda de um camião.

— Gaspar, não vou discutir o que sentes. Mas eu não te fiz mal. Só

estou a proteger-te o melhor que posso e sei.

— De que é que me estás a proteger?

Gaspar sentiu a mão do pai a libertá-lo, ir-se-ia embora, diminuía a

pressão sobre o peito, mas não fugiu. Sentou-se. Chorava e só agora se

apercebia disso: as lágrimas inundavam-lhe o pescoço. O pai parecia tão

calmo e frio como antes.

— Não acredito em ti — disse Gaspar.

— Está bem. Eu também não acreditaria numa coisa que não

percebesse. Mas preciso que confies em mim. O que tenho de fazer para

que confies? Quando eu morrer, deixar-te-ei protegido. É a última coisa

que farei e sei que chegarei a tempo.

Gaspar viu Esteban de pé ao lado do pai. Olhava para cima,

cheirando a tempestade. Estava mudo e os ossos da mandíbula

endureciam-lhe a cara. Tirara a ligadura do pescoço e a ferida — a

ferida provocada pelo alegado acidente — tinha mau aspeto, estava

escura e com os rebordos muito vermelhos. Parecia que tinha sido

mordido.
— Demonstra-o. Se estive no hospital e tirei radiografias, quero vê-

las.

— Está bem. Vamos para lá agora.

Gaspar viu o pai a levantar-se. Esteban aproximou-se dele e Gaspar

não aceitou o ombro que ele lhe ofereceu para se apoiar. A quinta ficava

muito perto dali, tinha corrido pouquíssimo. Quis ir à frente para ter

vantagem sobre eles. Caiu duas vezes durante a corrida: a eletricidade da

tempestade, a humidade e a pancada na cabeça provocavam-lhe tonturas.

Esteban e o pai deixaram-no chegar primeiro.

Esteban levou-o para o quarto para se vestir: a roupa estava na mala,

ainda ninguém a tirara nem arrumara nas gavetas, que permaneciam

vazias, e depois ajudou-o a sentar-se no assento da frente do carro. Não

desconfiava tanto de Esteban, pelo menos não tanto como do pai. De

alguma maneira, a ferida que tinha no pescoço levava-o a pensar que, se

calhar, o tentara defender. O pai não tinha nem uma arranhadela.

Tinham-lhe crescido as mãos, as mãos enormes, lembrava-se dessa

imagem, tinha essa recordação, de onde viria? O pai com uns dedos tão

compridos como os de um animal? Com as unhas douradas? Não quis

olhar para ele. Agora, o céu estava negro e a doutora Biedma disse o que

era óbvio, que se estava a aproximar uma tempestade, que se

despachassem. Ela e o pai iam no assento de trás. O pai cofiava a barba

curta que deixara crescer. Como podia estar tão calmo? Gaspar pôs-se

de joelhos no assento, abraçou-se ao encosto e esticou a cabeça: assim,

ficava ao nível da cara do pai.

— O que é que tu me fizeste? Diz-me o que é que me fizeste.

O pai estava a perder a paciência e Gaspar apercebeu-se do ambiente

abafado do carro e do perigo no ar, a eletricidade da tempestade a eriçar-


lhe os pelos dos braços, e, por um segundo, pensou abrir a porta e atirar-

se para o meio da estrada.

— Eu não te fiz nada. Estás enganado e és estúpido.

— Não me chames estúpido.

— Estás a portar-te como um estúpido.

— Então, ajuda-me.

— Eu tirei-te do carro. E tu lembras-te.

— É mentira. Não me lembro.

Esteban puxou Gaspar pelos ombros com força, obrigando-o a virar-

se e a sentar-se. Já chega, disse-lhe. Chegámos.

Gaspar ficou admirado, o hospital devia ficar a menos de seiscentos

metros da quinta. Que perto, disse em voz baixa, e a doutora Biedma

respondeu-lhe que, caso contrário, não o teriam levado para a quinta. O

pai também não teria escolhido um lugar para descansar longe de um

centro de saúde. Disse-o assim mesmo: «centro de saúde.» Gaspar

decidiu que ela era credível e também lhe pareceu credível a história da

proximidade do hospital, mas, se isso era verdade, toda a história podia

ser verdadeira, e então eles tinham razão; e não queria ouvir nem pensar

nada que fosse razoável, o corpo ainda lhe tresandava a perigo e sentia

que, se lhe cortassem a pele do braço, surgiria uma película preta como

de gelatina, sentia-se infetado, com um rio negro a latejar dentro das

veias. Puxou a t-shirt preta para ver as feridas. O sangue, seco, ainda

estava vermelho.

Uma vez mais, foi Esteban quem o ajudou a subir a escada da

entrada do hospital ao pé-coxinho. O pai não se tentou aproximar e a

doutora Biedma tomou a dianteira, mas Gaspar conseguia ver todos os

seus movimentos e ouvi-la, nunca se sentira tão alerta. Hospital de

Agudos Pedro Galíndez, dizia um letreiro, mas não acrescentava onde

ficava, onde estavam. Na mesa da entrada, a doutora Biedma perguntou


por outra médica, uma neurologista, e quando disse o seu próprio nome,

pediram-lhe que esperasse cinco minutos. Gaspar continuava de pé,

apoiado numa só perna e em Esteban. O pai sentara-se num banco

comprido de madeira e parecia esgotado, mas Gaspar não ficou

preocupado, sentia que era tudo teatro, mesmo os lábios vagamente

azulados do pai e aquele hospital tão sólido e velho, uma maquete, é

tudo uma maquete, pensou.

De repente, ouviu um martelar que rapidamente se converteu num

tiroteio: a tempestade deflagrara, finalmente, e caía granizo, uma

tempestade de verão tão forte, que da porta aberta do hospital se viam

ramos de árvores a voar arrastados pelo vento como se estivessem a ser

sugados por uma boca gigante.

A neurologista chegou muito depressa. Tinha o cabelo grisalho,

curto. Ouviu o que a doutora Biedma lhe disse: está confuso, assustado,

e pediu que a acompanhassem. O consultório ficava no segundo andar e

da janela viam-se os raios e o céu negro, era de noite em pleno dia.

Gaspar entrou sozinho com a doutora Biedma: o pai e Esteban

aguardaram lá fora. Nas paredes havia pósteres de cérebros e diplomas

da médica, que, quando Gaspar se sentou — obrigou-o a apoiar o pé

noutra cadeira —, disse é normal, é normal, é normal. Gaspar deu um

salto até às radiografias que brilhavam na parede, iluminadas pela parte

de trás. Verificou que tinham nome e data. Gaspar Peterson. 17/1/1986.

Eram suas ou era possível falsificar uma coisa daquelas assim tão

depressa?

A neurologista explicou-lhe que as pancadas na cabeça produziam

amnésias temporais, e que isso era a coisa mais normal do mundo. Outra

vez a telenovela, disse Gaspar, e a médica, para sua surpresa, riu-se.

Usam muito isto nas telenovelas, não é? Mas não é raro. É possível que

nunca te consigas lembrar do acidente.


— Também não me lembro de ter estado cá.

— Uma vez, tratei um jogador de futebol que bateu com a cabeça no

final do campeonato e se esqueceu do jogo. É um bocado pior do que

esquecer um acidente.

Gaspar sentiu-se um pouco mais relaxado, mas resistiu.

— Não é só isso — disse.

A doutora Biedma interveio:

— Acha que nós é que lhe fizemos mal.

Gaspar não disse nada. Preferia não revelar a extensão da sua

desconfiança. A neurologista disse-lhe que percebia que, para ele, o que

sentia fosse real. Explicou-lhe que, às vezes, os golpes mais

insignificantes produziam efeitos que podiam ser muito assustadores.

Ontem não te lembravas de nada, nem de quem eram as pessoas que

estavam contigo. Foi por isso que pensei que, como a lesão é

organicamente insignificante, seria melhor que, em vez de ficares no

hospital, fosses para um lugar conhecido.

— A quinta não é um lugar conhecido, é a primeira vez que lá vou

— disse Gaspar.

Um lugar familiar, precisou a médica. Com uma cama normal e um

quarto normal e um jardim. Disseram-me que tens piscina, não é? Que

sorte, com este calor. Às vezes, os hospitais ainda baralham mais os

doentes, porque são demasiado desconhecidos para as pessoas. E eu

tinha razão, porque, embora estejas alterado, já te lembras de toda a

gente, não é?

Gaspar não respondeu.

— Quem é ela?

— É a médica do meu pai.

— E quem é o senhor de madeixa branca que está lá fora?

— É o Esteban, o melhor amigo do meu pai.


— E o senhor louro?

— É o meu pai.

— Vinhas com ele no carro quando tiveste o acidente?

— Não sei, não me lembro.

— De que é que te lembras?

— De sairmos do centro em dois carros. Eu vinha com o Esteban e

com ela — apontou para a médica —, e com um motorista. Depois,

acordei na quinta.

— Sabes quando é que isso foi?

— Não.

— Anteontem. Esta é a tomografia de ontem.

A médica pegou nas chapas e pô-las contra a luz. Gaspar, de pé e

apoiado só numa perna, viu a data. 19/1.

— Hoje não me vão fazer nenhuma?

A médica explicou-lhe que o estudo não detetara nada de anormal. E

que era por isso que lhe tinha dado alta. Que não era necessário fazer

mais nenhuma. Voltou a dizer-lhe que o tinham sedado durante aqueles

dias porque, quando reduziam a medicação, ele ficava agitado.

— Como agora. Bastante mais, na verdade, mas é frequente. Vamos

ao ortopedista.

Gaspar deixou-se levar. Ouviu gelo, imóvel, gesso não. Viu o pai

dizer à doutora Biedma que se ia embora e ela protestou e ele, como

sempre, ignorou a queixa e foi-se embora sozinho, provavelmente a pé.

No corredor, encontrou-se com Esteban.

— Quero ver o carro — pediu-lhe Gaspar.

— És pior do que o teu pai — disse Esteban.

— Porquê?

— És casmurro.

— O que quer dizer casmurro?


— Ser como estás a ser agora. E para de saltar, estás a pôr-me

nervoso. Não sei onde está o carro, vamos para casa. Ou pensas que isto

tudo é uma encenação? Já chega de disparates.

Esteban pegou-lhe ao colo; Gaspar percebeu que era muito forte,

tinha os braços musculados.

— Como fizeste isso no pescoço?

— Foi na janela do carro, quando se partiu.

— E porque é que eu sei que foi o meu pai que me fez mal?

Esteban agachou-se. Sob a chuva, Gaspar viu que tinha os pelos dos

braços muito compridos e escuros. Só a madeixa do cabelo era branca.

— Acho que deve ser porque foi o teu pai que te tirou do carro e, ao

fazê-lo, magoou-te um pouco.

— Porque é que me magoou?

— Porque te tirou do carro à bruta. Ficou com medo de que o carro

explodisse. A tua mãe morreu num acidente e a mente prega-nos

partidas. Vamos para casa, tens de dar descanso ao raio do pé.

Gaspar apoiou-se no carro e deixou que a chuva lhe escorresse pela

cara.

— Não quero estar com ele.

— Então, ficas comigo ou com a Tali. Tens medo de nós?

— Não. Não sei porquê.

— Ainda bem.

— Tu não me mentirias, ou sim?

Esteban sorriu-lhe.

— Gaspar, claro que te mentiria se fosse necessário, mas não há

nenhuma razão para mentir. O que é que tu achas que aconteceu?

Gaspar molhou o assento. O céu voltou a escurecer e um trovão

retumbou no carro; voltaram para a quinta às cegas, ensurdecidos pelo

aguaceiro, muito devagar. À porta, sob um chapéu de chuva enorme,


esperava-os Tali. Gaspar sentiu um alívio físico quando entrou em casa e

não ouviu nem viu o pai; estava na quinta, pressentia-o, mas, por agora,

preferia esconder-se dele.

Gaspar entrou em casa ao colo de Esteban, que o sentou num sofá da

sala das janelas de vidros coloridos. Disse que ia mudar de roupa. Do

corredor saiu uma mulher alta de cabelo comprido e escuro. Estava

vestida com umas calças de ganga e uma camisola de alças e, por uns

instantes, Gaspar esqueceu a sua perturbação, o medo que tinha do pai e

o vazio dos dois dias de que não se conseguia lembrar; esqueceu as suas

suspeitas. A mulher, apesar de já ter bastante idade, era bela, não estava

maquilhada — Gaspar não gostava de maquilhagem, sobretudo de

batom — e andava descalça.

Lembras-te de mim?, perguntou-lhe ela. E Gaspar falou-lhe de uma

viagem e de uma festa ao pé do rio, de uma árvore e de um gato e da

casa dela. Tu também estiveste em minha casa há pouco tempo, mas

foste-te embora logo depois de eu voltar da escola e de nos

cumprimentarmos. És a Tali. Sim, sou, disse-lhe a mulher. Vamos pôr-te

gelo nesse pé.

Tali foi ao frigorífico, que tinha congelador, meteu uns cubos de gelo

num saco de plástico e, com um martelo pequenino que encontrou numa

gaveta, partiu-os. Ela disse assim ficam todos esfrangalhados, e Gaspar

sorriu porque não conhecia aquela palavra e pareceu-lhe esquisita e

parva. Era a primeira vez que sorria em todo o dia. Levantou sozinho o

pé: o tornozelo estava inchado e roxo. Ela rodeou-o suavemente com o

saco e deu um nó nas pontas. Depois, ligou a televisão e passou-lhe o

comando. Não há muitos canais, lamentou, mas há futebol.

— Não quero ver o meu pai — disse Gaspar.


Tali não respondeu. Ajeitou-lhe o gelo no pé e depois disse: o teu pai

está na cama. Só se vão ver quando se quiserem ver, a casa é grande.

Sorriu-lhe e Gaspar sentiu o pé e a cabeça a latejarem e teve de molhar

os lábios. Ela tinha os dentes muito brancos e os olhos eram tão escuros

como o cabelo.

Ficaram sentados um ao lado do outro, em silêncio. Gaspar não

conseguia ouvir nada do que estava a acontecer na casa. As paredes

eram grossas. Chovia lá fora e corriam pequenos rios de lama. Esteban

apareceu, já seco, e foi buscar uma cerveja. Quando o gelo derreteu — e

derreteu depressa —, Tali trocou de saco e depois foi-se embora. Foi ter

com o meu pai, pensou Gaspar, e apesar de continuar doente de

apreensão e de lhe apetecer fugir outra vez apesar do pé e da chuva,

sentiu um pouco de ciúmes.

Os dias que passaram na quinta foram aborrecidos e estranhos. O pé

ia desinchando pouco a pouco; por incrível que parecesse, conseguia

dormir à noite, talvez por a medicação que a doutora Biedma lhe dava

conter algum tipo de calmante. O pai era uma sombra que escrevia no

jardim, à sombra de uma árvore, e quase nunca se cruzava com ele em

casa porque passava a maior parte do tempo na cama. Estranhamente, os

guarda-costas estavam na quinta e, quando Gaspar perguntou porquê,

Esteban disse-lhe desconfiavam de que o acidente pudesse ter sido uma

tentativa de sequestro. Tu tens muito dinheiro. O teu pai, por muito que

não queira, é viúvo de uma mulher muito rica e seu herdeiro. Não sabias

que neste país sequestram as pessoas ricas? Gaspar disse que sabia, que

o pai já lhe explicara, mas eles eram assim tão incrivelmente ricos? Os

sequestrados de que ouvira falar eram banqueiros ou empresários. São,

22
sim, disse-lhe Esteban, só não vives como um pijo por causa da ética

23
do teu pai. O que é um pijo? Ah, não tem a ver com a pija , como vocês
dizem. A melhor tradução seria cheto, suponho eu. Mas é mais do que

um cheto. Um filho de ricos, quero dizer. Tu percebes.

A doutora Biedma levou-o outra vez ao hospital: disseram-lhe que,

por ter batido com a cabeça, precisava de ser vigiado, e que, por causa

do pé, tinha de fazer cinesiologia. Podia começar no hospital local ou

em Buenos Aires. Começou no hospital da aldeia. Não lhe faziam

grande coisa. Envolviam-lhe o pé em gelo isolado por plásticos e

metiam-no dentro de um cilindro que, quando estava ligado, emitia

ondas de ultrassons. Depois, o fisioterapeuta passava-lhe um aparelho

untado de gel no inchaço. Gaspar levava, para essas longas e aborrecidas

sessões, uns livros que encontrara num dos quartos da quinta. Suspeitava

de que fossem do pai porque eram quase todos livros de poesia, mas

também havia alguns romances. Só que não conseguia ler. Passava o

tempo todo a tentar recordar, de olhar fixo no teto, o acidente. E o que

lhe chegava, quando adormecia, nos sonhos agitados da manhã, na

concentração com que observava uma mancha do teto do gabinete de

cinesiologia até ficar desfocada, não era um choque. Lembrava-se do

pai, mas nas imagens que recordava tinha as mãos enormes e unhas

compridas. Recordava-se de ter estado de barriga para cima, como

agora, a dormir enquanto mexiam nele. Lembrava-se de mais pessoas, ao

longe. Percebeu que era possível que, se o pai realmente o tivesse tirado

à bruta do carro, e baralhado pela dor e pelo acidente, as suas mãos lhe

parecessem animalescas na altura. E estar de barriga para cima e a

dormir era a mesma coisa que estar num hospital. Tal como sentir que

mexiam nele: nunca tinha estado internado, mas, graças ao pai, conhecia

os procedimentos de memória, as enfermeiras a tirarem sangue, as

ligaduras, o pessoal a entrar no quarto para medir a tensão e administrar

o soro, os medicamentos e até para dar banho, era normal que se

lembrasse de toques na pele, mas também sob a pele, o que ainda era
mais nojento. E as pessoas ao longe podiam ser médicos com máscaras

ou os mirones que surgem sempre que há um acidente.

Depois da sessão de cinesiologia, comia o que Tali lhe preparava.

Esteban também cozinhava. Ensinou-o a fazer ovos mexidos, que eram

muito mais saborosos do que os estrelados, e a fritar bacon até ficar

duro, caramelizado. Na piscina aparecera uma câmara de ar preta para

Gaspar a usar como boia. Às vezes, Esteban nadava um pouco à tarde.

Na primeira vez, Gaspar viu que tinha as costas marcadas por duas

longas cicatrizes paralelas. O que é que te aconteceu, perguntou. Caí de

umas rochas, disse-lhe Esteban. Ia saltar para mergulhar no mar, como

costumava fazer nas tardes de verão quando era novo. As pedras

costumam ser muito escorregadias.

— Parecem de uma operação, como as do meu pai.

— Mas não são. As pedras podem cortar como bisturis. Passei o

resto do verão deitado de barriga para baixo. Foi mais aborrecido do que

este verão está a ser para ti.

— Quantos anos tens?

Esteban enxugou-se com a toalha antes de responder. Gaspar

percebeu que fazia sempre isso, que nunca deixava que o sol lhe secasse

a pele. Assim que saía da água, secava-se com a toalha e vestia uma

camisa.

— Trinta e nove.

— Só? Mas tens essa madeixa completamente branca.

— Muitas pessoas ficam com brancas antes do tempo.

— Não conheço ninguém assim.

— Talvez não conheças muitas pessoas.

Gaspar empurrou a água com as mãos para se aproximar da beira da

piscina. Esteban acendia um cigarro e Gaspar queria fumar. Pediu-lhe


uma passa e Esteban surpreendeu-o oferecendo-lhe o maço. Fumaram

ambos em silêncio, atirando a cinza para a água.

O telefone da quinta não funcionava bem desde a tempestade e Gaspar

tentou falar com os amigos da central da ENTel que existia na aldeia,

mas ninguém atendeu. De certeza que estavam de férias. Pablo tinha ido

para Mar del Plata com os pais; a gravidez da mãe já ia muito avançada.

Vicky e Adela ainda não tinham voltado do Sul. Não saía muito e ainda

não tinha aprendido a andar a cavalo. Como tinha muita dificuldade em

caminhar, passava o tempo todo à frente da televisão. Não havia crianças

por perto: quando ia até à entrada, percebia que a quinta estava bastante

isolada ou, então, que o jardim da casa era muito grande. Do outro lado

da estrada de terra havia campo, algumas vacas pastavam, aborrecidas, e

os cavalos estavam muito quietos, tinham as patas largas e eram bastante

feios, alguns deles brancos e gordos. Tinha estudado um pouco o terreno

para preparar a sua fuga, mas, a cada noite que passava, a vontade ia-se

desvanecendo. Tinha medo. O pai encontrá-lo-ia rapidamente. As lesões

que tinha não eram nada comparadas com o que o pai lhe faria se

fugisse.

Tali dormia no quarto do pai e, tentando não fazer barulho, Gaspar

sentou-se ao pé da porta fechada uma noite para ouvir o que diziam.

Chegavam-lhe fragmentos, palavras soltas ou frases inteiras de pouca

importância. Seria sua namorada agora? O que pensaria Esteban? Teria

ciúmes? Soube que Esteban não ficaria lá muito mais tempo. Tali queria

saber quem tomaria conta dele «em Buenos Aires» e Gaspar não ouviu a

resposta. Ela deslocava-se pelo quarto: aqueles passos leves não podiam

ser do pai. Gaspar fechou os olhos e viu-a, de cabelo escuro preso num

rabo de cavalo muito alto e sem sutiã. Sentiu vertigens ao perceber que

era um pouco parecida com a mãe, mas muito, muito mais bonita, pelo
menos comparada com as fotografias. Ouviu alguém, provavelmente

Tali, a servir água. Agora falavam sobre «a próxima tentativa». «Seis

meses é bastante tempo», dizia Tali. «Já verificaram que o corpo não

ficou lesionado.» Agora, sim, eram os passos do pai a aproximar-se e a

abrir a porta, e Gaspar ia fugir, mas não fazia sentido. Fechou os olhos

com força e levantou as mãos para amortecer a pancada; sentado no

chão, esperou pelo castigo, mas este não chegou.

— Quantas vezes já te disse que não quero que me espies?

Gaspar não respondeu.

— Entra, se quiseres.

Obedeceu, ao pé-coxinho; o pé já estava completamente desinchado,

mas doía-lhe e, sobretudo, estava rígido: vai custar-te recuperar «a

mobilidade», disse-lhe o fisioterapeuta. Tali estava sentada na cama com

uns calções de ganga, a pele bronzeada e uma camisola às riscas como

as dos marinheiros. Tinha o cabelo solto e as faces coradas. O pai

manteve-se à distância, como fazia naqueles dias. Não voltara a barbear-

se nem a cortar o cabelo e parecia descuidado, sujo. Voltou para a cama

e Gaspar ficou de pé ao lado da porta.

— E então? — perguntou o pai.

— O quê?

— O que é que ouviste, o que é que queres saber?

Gaspar soube que, se não respondesse, levaria pancada, e não queria

que o pai lhe batesse, sobretudo à frente de Tali.

— O que é que vai acontecer daqui a seis meses?

Gaspar estudou a reação do pai. Não houve nenhuma. Tinha os olhos

tão encovados, que pareciam escuros.

— A Graciela quer voltar a operar-me. Desta vez, é mais

complicado: preciso de um transplante. Na Argentina fazem este tipo de

operações, mas, por agora, os resultados não são bons e quer que o faça
nos Estados Unidos. Havia um candidato: é por isso que estávamos a

dizer que o resto do meu corpo, dos meus órgãos, digamos, estão em

boas condições. Mas, afinal, o candidato é incompatível comigo. Não me

apetece explicar-te o que quer dizer incompatibilidade. Procura no

dicionário. Ela acha que fazer a tentativa daqui a seis meses é o ideal e

quer que eu vá em breve para os Estados Unidos.

— Vão fazer-te um transplante?

— Não, porque não vai servir de nada e não estou para isso. Quero

morrer. É o melhor para todos.

— Juan — disse Tali. — Não lhe digas isso.

O pai parecia furioso e frágil.

— Quando eu morrer, ficas liberto e até é possível que tenhas uma

vida. Agora, vai-te embora. Não suporto ver-te.

Gaspar abriu a porta e ouviu Tali a segui-lo, mas só se virou quando

ela o chamou pelo nome e lhe ofereceu o braço para ele se apoiar e não

arrastar o pé. Foram para o jardim. A noite estava fresca, e não parecia

haver mais ninguém na quinta, embora a luz do quarto de Esteban

estivesse acesa e se ouvisse, através da janela, música a tocar baixinho.

Sentaram-se nos bancos de pedra decorados com azulejos e Gaspar

apoiou os cotovelos na mesa. Estava cansado.

— Vem connosco. Venham os dois — disse a Tali. — Não me deixes

sozinho com ele.

— Não posso, meu querido — respondeu ela.

— O Esteban disse a mesma coisa. Mas também dizem que gostam

dele. Porque é que o deixam sozinho?

A música que vinha do quarto de Esteban calou-se e no parque

apenas restou o silêncio acariciado pelo chapinhar dos insetos noturnos

na piscina e pelo remoto ronronar de uma ventoinha. Tali disse

simplesmente o teu pai quer estar contigo, quer a tua companhia e mais
nenhuma. Gaspar sentiu a raiva a endurecer-lhe o estômago, que morra

sozinho, pensou. Alguém caminhava no jardim. Esteban. Gaspar virou-

se para o ver chegar: a madeixa branca brilhava ao luar.

— Não quero ficar com ele — disse-lhe Gaspar. — Por favor.

— Olha — disse Esteban. — A única coisa que o teu pai fez por ti,

desde que o conheço, foi proteger-te. Até da tua família, porque são más

pessoas. A maneira como o faz, meu querido, também a mim me parece

questionável, mas tens de ir com ele. Não há nada a temer. O teu tio virá

em breve. Não ficarás sozinho com o teu pai. E o Luis é a tua família, a

tua família verdadeira.

— Ele sempre disse que os meus avós e os meus tios não são bons e

que não querem estar comigo. Então é mesmo verdade?

— É a mais pura verdade — disse Esteban. — São do pior que este

país tem, do pior, e ponto final. Não são a tua família, apesar de seres do

mesmo sangue que eles.

— E vocês, o que são?

Tali e Esteban olharam um para o outro e Gaspar viu-os sorrir, mas

não percebeu porquê. Ela disse nós somos amigos. E Esteban

acrescentou, enquanto acendia um cigarro, amigos de que oxalá nunca

precises.

O rio verde de Los Alerces não era assim tão verde como diziam. Era

mais azul-turquesa esverdeado. Mas não a dececionou, sobretudo porque

Adela se sentia tão contente a passear pela margem, enquanto pedia aos

gritos que lhe tirassem fotografias. A viagem com Adela e Betty fora

ainda mais divertida do que as viagens com a sua família costumavam

ser. Alinhavam quando todos cantavam na roulotte, que tinha leitor de

cassetes, e ambas gostavam de churrascos à beira da estrada. Vicky,

além disso, reparou numa coisa que até à data lhe passara despercebida
em Betty. Era elegante, tinha sempre o que dizer numa conversa, e a sua

cara estranha — o nariz comprido e os lábios finos — era linda, ou

interessante, como dizia a sua avó. Usava sempre saias compridas e

anéis maravilhosos que pareciam caros. E as suas opiniões eram mais

fortes do que as da mãe. Quando os mandaram parar na estrada, por

exemplo, para lhes pedirem os papéis da roulotte, Betty pôs a cabeça

fora da janela e disse ao guarda que com certeza que podiam pedir o

livrete e os papéis do seguro, mas não os bilhetes de identidade, nem

pensar. Os tropas já não mandam no país, hã, gritou-lhe com desprezo.

Vicky viu o pai a pedir-lhe, com um gesto, que se calasse, e ela voltou a

sentar-se. Estava furiosa. Os lábios finos tinham-se convertido em duas

linhas pálidas sobre os dentes afiados. Quando acendeu um cigarro,

tremiam-lhe as mãos.

Às tantas, a história de o pai de Adela ser um desaparecido era

mesmo verdadeira.

Agora, no parque de campismo, Adela e Betty partilhavam uma

tenda. Os adultos dormiam na roulotte. Adela estava contente por não ter

ido para a quinta. Gostava de ir, mas era sempre a mesma coisa. Havia

cavalos, mas eram feios, tinham as patas gordas, não eram nada

parecidos com os cavalos árabes. A piscina sim, era boa. E não havia

nada à volta, as outras casas ficavam longe. Falavam sobre tudo antes de

dormir. Adela confessou a Vicky que gostava de Gaspar. Eu já tinha

percebido, respondeu-lhe Vicky, nem sei porque é que não me disseste

nada até agora. E Adela, que iluminara a própria cara com uma lanterna,

disse porque ele nunca vai reparar em mim dessa maneira, não vai

querer andar comigo, sou deformada. E ele é tão giro, Vicky. É giro, não

é?

Deixavam-nas afastar-se um pouco do parque de campismo e ir até

às árvores, e também estavam autorizadas a molhar os pés no rio,


embora não a nadar; fosse como fosse, era impossível, porque a água

estava demasiado fria. Betty ensinou-as a enterrar o papel higiénico

depois de usado — havia gente muito badalhoca que deixava o papel

pendurado nos ramos, e cheirava mal; e também a defender-se das

varejeiras, que eram grandes e zumbidoras. À noite, Betty e os pais

cantavam canções acompanhadas à guitarra e bebiam vinho: Vicky

gostava de uma muito triste que dizia «e nas multidões o homem que eu

amo». Ficou admirada por Betty saber tantas canções e até tocar

guitarra. Uma noite, ela e a mãe cantaram à vez canções da Violeta

Parra. Betty tinha muito boa voz: na brisa da noite, o seu vestido de seda

verde movia-se como o rio e Vicky imaginou-a com uma espingarda no

meio de uma planície. Um dia, ganharia coragem para lhe fazer

perguntas sobre a sua vida, mas, por agora, Betty intimidava-a. Além

disso, todas as noites bebia muito vinho. Tinham comprado umas

garrafas de vinho chileno porque, pelos vistos, era melhor do que o

argentino.

À noite, Vicky e Adela iam até à floresta contar histórias uma à

outra. Mas não se adentravam muito: do ponto onde estavam podiam

ouvir as pessoas a conversar no parque de campismo, e até a tomarem

duches tardios. Não convidavam outras crianças: não tinham conseguido

travar amizade com nenhuma. Sentavam-se frente a frente e iam

passando a lanterna uma à outra, pondo-a debaixo do queixo para que a

luz as deformasse. Contaram histórias sobre assassinos com machados e

espíritos canibais. Adela voltou a falar sobre o cão preto que lhe

arrancara o braço e também sobre a sombra do enforcado que aparecia

no bairro de Buenos Aires, e mais algumas das suas histórias de terror

clássicas. Vicky tolerou-as até uma noite em que Adela lhe disse olha o

que eu encontrei. Alguém se esqueceu dele na sala de refeições, estava

ao pé de uns guias do parque e de alguns livros com fotografias e mapas


da Patagónia. São mitos e lendas locais. São quase todos aborrecidos,

mas ouve este. Adela abriu o livro e leu. Era uma história sobre as ilhas

de Chiloé, no sul do Chile. Lá havia uma seita, a Bruxaria. Tinham mais

duas sedes, uma em Buenos Aires e outra em Santiago. Reuniam-se

numa gruta subterrânea, numa floresta parecida com esta. Os seus fiéis

chamam-se noviços e são iniciados, é assim que se diz. Para fazerem

parte da seita tinham de matar o melhor amigo e depois esfolá-lo: com a

pele, faziam um colete que brilhava na escuridão. Imagina, eu teria de

esfolar-te, riu-se Adela, mas Vicky teve medo do riso dela. Calçou as

meias e os ténis e, quando fechou os olhos, viu as mãos cor de cinza de

Omaira agarradas a um ramo, Omaira na lama. Ao que parece, são

terríveis. É possível distinguir as vítimas porque têm cicatrizes deixadas

pelos bruxos. Isto é o pior, disse Adela. Têm um guardião na cova da

Bruxaria chamado invunche. É um rapaz com seis meses a um ano que

foi sequestrado pelos bruxos e depois deformado por eles, partindo-lhe

as pernas, as mãos e os pés. Quando acabam de parti-lo todo, dão-lhe a

volta à cabeça como se fosse um torniquete até ficar com a cara virada

para as costas, como n’O Exorcista. No fim, fazem-lhe um buraco muito

profundo nas costas, debaixo da omoplata, e enfiam-lhe o braço direito

lá dentro. Quando a ferida sara e o braço fica definitivamente colado, o

invunche está completo. Alimentam-no com leite humano e, depois,

quando puder, com carne humana. Deve andar como um bicho meio

espezinhado.

Assustaram-se quando Betty as interrompeu. Do que é que estão a

falar, perguntou-lhes com ar zangado, bêbeda. Adela tentou sossegá-la

mostrando-lhe o livro, mas Betty arrebatou-lho furiosamente e apertou-o

contra o peito. Vão já dormir e chega de conversas parvas. Tremia.

Adela sussurrou está cá com uma buba, e Betty deu meia-volta e desatou
a correr: para sua surpresa, as raparigas viram-na atirar o livro dos mitos

e das lendas para uma fogueira.

Nessa noite, Vicky e Adela dormiram abraçadas. Vicky não sonhou

com Omaira. Sonhou com um rapaz com a cabeça virada ao contrário e

um braço enfiado num buraco do peito, não das costas. Um rapaz com

uma cicatriz igual à do pai de Gaspar, só que, em vez de estar seca,

sangrava. Adela contou-lhe, depois, que também ela sonhara com o

invunche. Sabes onde estava?, e Vicky adivinhou a resposta. Naquela

casa, disse. Adela assentiu. Era o guardião da casa, no meu sonho.

Dois dias depois, voltaram a Esquel. As noites estavam frias, apesar

de ser verão, e podiam acender um fogão a lenha. Havia muita, já

cortada, junto à casa, protegida por um pequeno telheiro para que não

ficasse húmida. Uma manhã, foi necessário cortar mais e Betty assumiu

a tarefa: transpirava sob o blusão e o suor fazia com que o cabelo ficasse

colado às fontes. Em Esquel, Betty comprou whisky, é por causa do frio,

disse, e Adela zangou-se, mas em silêncio, porque, como disse a Vicky

mais tarde, tinha vergonha de que os outros a vissem bêbeda. Bebia

whisky sem gelo e, às vezes, ficava a olhar para o fogão. Foram todos

juntos para uma montanha, La Hoya, que era uma estância de esqui, e,

embora não pudessem esquiar porque não tinham dinheiro para pagar

nem o equipamento, nem o instrutor, tiraram fotografias e beberam

chocolate quente numa pastelaria lindíssima. Betty disse, quando por lá

passou, que, quando era pequena, esquiava, mas que nunca gostara de o

fazer porque se magoava muito. Onde, perguntou-lhe Vicky. Em

Mendoza, respondeu Betty, há lá uma estância chamada Las Leñas. É

onde vão os famosos, disse Vicky, não é caro? Os meus pais podiam

permitir-se isso, disse Betty. Os pais dela, aqueles velhos tristes que

estavam na festa de aniversário de Adela? Eram ricos? As pessoas são

mesmo esquisitas, pensou Vicky.


A viagem de regresso do Sul na roulotte foi bastante aborrecida, iam

todos a dormir e Vicky estava convencida de que Betty bebia às

escondidas, porque se recusava sempre a conduzir. Ela não chegou

cansada, como os adultos, que foram logo dormir. Depois de comer

qualquer coisa e de se despedir de Adela, foi visitar Pablo. Ele fora para

a Costa e dizia que tinham sido umas férias horríveis. Os pais sempre a

discutir, a mãe a chorar porque ia perder o bebé, muita chuva e frio. Só

gostara do hotel. Os pais tinham reservado uma suite, o que queria dizer

que ele tinha uma espécie de apartamento próprio. Uau, disse Vicky,

agora têm dinheiro? Pablo teve de admitir que sim. O quarto dele tinha

televisão e, quando chovia, podia ficar lá. Isso e comer no porto: as

únicas coisas boas. Que pena, disse Vicky, nós divertimo-nos imenso. O

Gaspar já voltou? Não faço ideia, admitiu Pablo. Quando por lá passei,

estava tudo fechado e não quis bater. Hoje não fui lá.

Então vamos, disse ela.

Vicky experimentou atirar uma pedra pequena à janela do quarto de

Gaspar: a persiana estava fechada, mas, e isto era simplesmente insólito,

ouvia-se música. Não muito alta, mas o suficiente para se ouvir da rua.

Deve estar sozinho, pensou Vicky. Era inconcebível o pai de Gaspar

deixá-lo ouvir música tão alto, quando naquela casa mal se podia falar

sem o incomodar. Convencida de que a música não o deixaria ouvir as

pedras e de que estava sozinho em casa, Vicky tocou à campainha. O

volume da música não diminuiu e Pablo esticou-se para bater na

persiana com o punho. Quando a porta se abriu, Vicky estava à espera

de ver Gaspar. Mas não: era Juan Peterson e ela retrocedeu um pouco;

Pablo, atrás dela, respirava fundo. Também ele tinha medo do pai de

Gaspar.

Juan Peterson não gritou nem se zangou. Olhou para eles com uma

certa indiferença e disse-lhes entrem. Tinha o cabelo muito comprido


para um homem e a barba fazia-o parecer menos pálido, embora

estivesse magérrimo, as calças ficavam-lhe largas, tinha os pómulos

salientes. Vicky e Pablo entraram, mas permaneceram perto da porta e

viram o pai de Gaspar avançar para o interior da casa: ouviram o

barulho de uma porta a abrir-se, de repente a música tornou-se mais alta

e eles não tiveram a certeza, mas pareceu-lhes ouvir «andam à tua

procura». E depois nada durante algum tempo. A música tornou-se mais

baixa e não se ouviu mais nenhum barulho, nem os passos de alguém a

vir fechar a porta, por exemplo.

A música desceu para um volume baixíssimo, e então Vicky ouviu

passos, mas deformados, lentos, um pé a arrastar. Gaspar apareceu

muito sério e apenas com os calções de futebol, descalço e sem t-shirt.

Então, viram que estava coxo e que tinha feridas nos ombros, no braço,

no peito.

Vicky teve uma ideia horrível e repentina que a manteve afastada de

Gaspar, sem vontade de o abraçar, como teria feito noutro momento.

Inverteram os papéis, pensou. Parece o pai dele. Tem o mesmo olhar.

Porém, Pablo reagiu. Aproximou-se dele e abraçou-o, dando-lhe

palmadinhas nas costas; Gaspar só tinha um pé apoiado no chão e não

lhe devolveu o abraço.

— O que é que te aconteceu? — perguntou Pablo.

— Tivemos um acidente e eu fiquei um bocado maltratado, e

também bati com a cabeça. Isto do pé é uma entorse, torci o pé.

— Bateste com a cabeça?

— Sim. Estive no hospital. Foi o que me disseram, porque não me

lembro.

— Como não te lembras?

Gaspar perdeu a paciência, irritou-se. Embora estivesse bronzeado,

tinha olheiras vincadas sob os olhos. E, além disso, nunca se irritava


assim com eles, nunca lhes gritava como lhes estava a gritar agora.

— Não me lembro! O que queres que eu faça? O que querem?

Porque é que vieram cá?

— O que é que tu tens? — disse Vicky. Não estava zangada: estava

preocupada.

— Não tenho nada — disse Gaspar. — Nada! Quero que me deixem

em paz.

E, dizendo isto, voltou para o quarto a coxear, mas bastante depressa;

parecia doente, estava despenteado, um pouco sujo. Vicky agarrou em

Pablo pelo braço para o impedir de o seguir e deixaram ambos a casa,

fechando a porta com cuidado para não fazer barulho.

Nessa noite, Pablo e Vicky reuniram-se com Adela. Viram filmes no

leitor de cassetes de vídeo que Gaspar lhes emprestara e não pedira de

volta. Os três decidiram que o vestido da ruiva de’A Garota do Vestido

Cor-de-Rosa era horroroso, esperavam um tão bonito! Todo o filme está

pensado em função do momento em que surge aquele vestido! Ficaram

surpreendidos quando Lidia chegou do hospital. Hoje não tinhas banco?,

perguntou Vicky, e a mãe disse que sim, mas que lhe doíam os ovários e

estava maldisposta, e que tinha trocado com um colega, que

compensaria na semana seguinte. Lidia foi à cozinha fazer um chá e

depois sentou-se junto deles.

— Porque é que estão tão sérios?

Olharam uns para os outros e Vicky falou:

— Não é nada, só vimos um filme.

— Alguma coisa aconteceu, eu conheço-vos.

Então, Pablo ganhou coragem:

— É que fomos a casa do Gaspar e ele está esquisito, não quis vir

connosco.
Lidia bebeu um gole de chá, apoiou os pés na mesa de centro que

estava em frente do sofá e disse:

— Têm de lhe dar tempo. Teve um acidente e não o está a assimilar

bem.

— Como é que sabes?

— Porque fiz uma visita ao Juan, tomámos uma bebida juntos. Têm

de ter paciência com o Gaspar, meninos. Ele teve uma concussão

cerebral ligeira, mas reagiu muito mal, andou baralhado durante uns

dias. Não se esqueçam de que a mãe morreu num acidente e ele está a

reviver coisas tristes. E o Juan está em estado muito, muito grave. Vão

ter de ajudar o vosso amigo, porque vai ficar sem o pai.

— A sério? — perguntou Vicky.

— Tenho imensa pena. Sei que não gostam do Juan, ou que ele vos

faz impressão, não sei, mas é bom tipo. Um tipo especial, não é?, mas

boa pessoa.

Vicky pensou como podes dizer uma coisa dessas, se ele bate no

Gaspar e é doido, mas não queria discutir.

— E quem é que vai tomar conta do Gaspar?

— O tio dele, já começaram a tratar dos papéis para o tio se tornar

tutor dele, e depois vai adotá-lo.

— Vai morrer assim tão depressa?

— Filha, ninguém sabe ao certo quando vai morrer.

— Mas como é que o podemos ajudar, se o Gaspar não quer sair de

casa? — perguntou Adela.

— Têm de lhe dar tempo — disse Lidia, e acabou de beber o chá.

Gaspar descobriu que a maneira mais simples de se distrair era ver

futebol e ler o jornal El Gráfico até à última linha. Aborrecia-o um

pouco ler sobre o River Plate e ter de suportar a sua equipa imbatível,
embora tivesse de reconhecer que queria jogar como o Francescoli, que

não gostava tanto de nenhum jogador como do Francescoli, nem sequer

dos do San Lorenzo. Detestava o River porque tinha o Francescoli e uns

defesas brutais, que arreavam só por via das dúvidas; isso é bom, dizia-

lhe Hugo Peirano, não queremos cá mariquices. Tinham visto juntos o

River sagrar-se campeão por 3-0 contra o Vélez Sarsfield. Era como estar

num filme. Quando acabava, a realidade era o seu pai na cama, às vezes

em casa, cada vez mais frequentemente no hospital; de vez em quando

andava sozinho por aí, Gaspar não sabia por onde, e, quando voltava,

vinha zangado ou tão cansado que nem sequer conseguia falar. Gaspar

via a medicação a amontoar-se em cima da mesa e a casa a encher-se de

papéis, de rabiscos, de notas sem sentido. Não estaria a tomar os

comprimidos? O que eram aqueles desenhos? Por isso tudo, era melhor

estar no filme do futebol ou estudar para a escola enquanto ouvia

música, assim não tinha de ouvir os passos do pai no andar de cima,

nem de o ver a carregar a garrafa de oxigénio. Não conseguia ler poesia

nem contos nem aquilo de que gostava em geral: não o distraíam

suficientemente, e algumas coisas até o faziam chorar. Tirara do quarto

do pai um livro de uma poetisa inglesa, Elizabeth Barrett Browning, e,

quando o abriu, o poema dizia: «ENOUGH! we’re tired, my heart and I.

/ We sit beside the headstone thus, / And wish that name were carved for

us». Parecia de propósito. E a tradução era péssima, ainda por cima. Não

conseguia suportar coisas belas nem tristes. Preferia aprender frações.

Ainda não era capaz de nadar, por causa do pé, mas aguardava com

ansiedade o dia em que voltaria à piscina. Debaixo de água era fácil

pensar noutra coisa.

Estava a acabar de ler o capítulo sobre o sistema solar do manual da

escola quando o pai apareceu na cozinha — Gaspar estudava na cozinha:

no quarto não tinha secretária e na cama sentia-se desconfortável. Não


trazia a garrafa de oxigénio. Há algum tempo que o medo dos dias que

se seguiram ao acidente passara: até tinha ido à biblioteca do bairro e à

da escola procurar nos livros de medicina o que é que podia acontecer

depois de uma pancada na cabeça e convenceu-se de que era possível ter

ficado sugestionado. Mas, com o pai, não podia baixar a guarda. Não era

possível prever quando é que iria atacar, qual animal ferido.

— O que é que estás a ler?

Gaspar mostrou-lhe as páginas com os planetas. Então, apercebeu-se

de que a camisola azul-clara do pai estava manchada de sangue e que as

manchas cresciam na zona do estômago.

— Magoaste-te?

— Um bocado, mas não é nada.

— Puseste água oxigenada?

— Já fiz tudo o que tinha a fazer. Gostas de ler sobre o universo?

— Tenho de desenhar os planetas.

— Isso é fácil.

O pai foi buscar água e bebeu-a em dois goles.

— O que eu não percebo — disse Gaspar ao ver que, nessa noite,

podia falar com ele, algo impossível há meses — é porque é que de noite

o céu está escuro, com tantas estrelas devia haver mais luz.

— Isso até tem um nome: o paradoxo de não sei quem, não me

lembro. Estás a fazer uma pergunta que ainda não tem resposta, creio eu.

Ou talvez já tenham descoberto e eu não saiba. Há uma coisa chamada

matéria escura que empurra as estrelas, é por isso que cada vez estão

mais longe. Três quartos do universo são escuridão. Há muito mais

escuridão do que luz sobre nós.

Fez-se silêncio e Gaspar viu o sangue expandir-se na camisola do

pai.

— Mostra. Magoaste-te muito? Com o quê?


— Não te preocupes. Quero que venhas comigo. Já chamei o

motorista. Quero que venhas comigo lançar as cinzas da tua mãe.

Gaspar sentiu que o coração começava a martelar-lhe no peito e não

conseguiu falar. O pai pegou-lhe na mão por cima da mesa.

— Já não preciso dela cá em casa. Consegui libertá-la. Esta noite é

muito boa, a melhor em anos, e ela merece esta noite e que te despeças

dela antes de eu morrer.

Gaspar deixou que o pai lhe acariciasse a mão. O que dissera sobre a

libertação era esquisito, mas de certeza que se tratava de uma espécie de

metáfora. Pela janela viu as luzes do carro que os vinha buscar.

A viagem foi curta. Até à Costanera Sur, bela de noite, com cheiro a

chuva e a lama, o rio oculto e silencioso atrás do varandim de pedra,

porque é que a cidade parecia estar tão longe do rio, era estranho, um rio

sem praias que chocava contra os paredões, tão grande como um mar,

sem outra margem e castanho de dia, mas prateado de noite. A

Costanera Sur, com as suas escadas e candeeiros, pracetas, totalmente

vazia, os carrinhos de choripanes fechados, três da madrugada em

Buenos Aires e caminhar na relva e tocar nas folhas das árvores com a

ponta dos dedos, pouca luz a não ser a da Lua, três quartos do universo

são escuridão, disse o pai, e Gaspar percebia, o universo era noite, mas

nem todas as noites eram assim, frescas e belas, o motorista no carro a

ouvir rádio, um tango triste, todos os tangos eram tristes e caminhar até

ao varandim, não até à margem, porque não havia margens, porque não

se podia tocar na água, Gaspar recordava rios da sua infância e a

vontade de nadar de noite acariciou-lhe a pele. Na escuridão não se via o

sangue da camisola do pai; quando chegaram ao rio, uma brisa suave

sacudiu-lhe o cabelo e Gaspar recebeu a caixa com as cinzas da mãe, era

pequena, como se transportasse uma joia, tinha o tamanho de um


caderno, assim era ela há anos, mas Gaspar recordou-a cálida, agora tão

distante, agora terra, cinza, fria como a pedra do varandim. Aqui não,

disse o pai de repente. Vamos até à Reserva. Tens medo? E Gaspar disse

que não, nunca tinha medo quando estava com o pai, podia ter medo

dele, mas não com ele; apesar de o saber doente, parecia-lhe invencível e

perigoso, às vezes os animais feridos eram assim, muito mais fortes do

que quando eram saudáveis. Pode-se entrar de noite na Reserva?,

perguntou Gaspar. Já lá tinha ido várias vezes de dia com Vicky e a

família dela. Ainda estava em construção, ou não, não exatamente, como

se pode construir algo natural, um pântano de lagoas e planícies, cheio

de animais e de caminhos de terra, rematado pelo rio, do qual, ali sim,

era possível ir até ao rio. Estavam a convertê-lo num lugar protegido

para passear, mas também para os animais viverem, e de noite fechava,

julgava saber Gaspar, protegido por umas grades altas. Vejamos, disse o

pai, e quando chegaram ao pé das grades fechadas a cadeado, disse-lhe

entra, filho, entra se conseguires, e Gaspar, confuso, devolveu-lhe a

caixa onde estava a mãe e, quando tentou empurrar o portão, percebeu

que não precisava de chave, que, se quisesse abri-lo, ele abrir-se-ia

simplesmente, como era possível, não percebia de todo, mas, de repente,

a grade estava aberta, e ele só lhe tinha tocado — e pensado, sim,

pensado que a conseguiria abrir —, e o pai seguiu-o sem dizer nada,

como se fosse a coisa mais normal do mundo, e no outro lado, no meio

da vegetação alta e sobre um caminho lamacento, os charcos brilhantes

como espelhos sob a Lua, segurou-lhe a cara com as mãos, agachou-se

para o olhar nos olhos e acariciou-lhe o cabelo, a caixa estava no chão,

entre ambos, e disse-lhe tens uma coisa que é minha, deixei-te uma

coisa minha, oxalá não seja maldita, não sei se consigo deixar-te algo

que não esteja sujo, que não seja escuro, a nossa parte da noite. Gosto

disto, disse Gaspar, e o pai respondeu-lhe claro que gostas, porque agora
nada te pode fazer mal. Nada? Neste momento, nada. Caminharam sem

se esquivar das poças porque era impossível evitá-las, encharcando os

pés, as calças enlameadas, Gaspar parava de vez em quando para o pai

recuperar o fôlego, tinha tanta dificuldade em andar agora, vou sentir a

falta dele, pensou, vou ficar contente quando já não estiver cá porque vai

ser mais fácil deixar de estar triste, mas vou sentir a falta dele.

Caminharam uns trezentos ou quatrocentos metros: o rio não ficava

assim tão longe e chegaram à água afastando a vegetação alta. Ouvia-se

o barulho dos animais, Gaspar sabia que havia víboras lá, mas não eram

víboras venenosas, e, além disso, lembrava-se das palavras do pai, agora

nada te pode fazer mal, quanto durava o agora, quanto tempo era o

presente. Na margem, finalmente, havia areia e pedras, e o pai disse-lhe

que, dantes, mesmo quando ele era pequeno, as pessoas nadavam na

água, que na altura não estava tão contaminada. Gaspar parou e cheirou

a noite, a água, tanta que era incrível não ser salgada, e tirou os sapatos,

arregaçou as calças e entrou no rio. Vem comigo, papá, disse, e o pai

seguiu-o e ficaram ambos parados, Gaspar com a água pelos tornozelos.

Agora, o pai tinha a caixa e abriu-a. Ajoelhou-se para a esvaziar na água

e a cinza flutuou uns instantes antes de se afundar, e ainda havia um

resto no fundo e, então, Gaspar viu o pai tirar a camisola e pegar na

cinza com os dedos e esfregá-la na ferida, que já estava suja, tê-lo-ia

feito antes? Gaspar não teve medo: aproximou-se para ver a ferida e

apercebeu-se de que era um corte pouco profundo e com forma, parecia

uma espécie de mira telescópica, parecia os gatafunhos que o pai

desenhava nos papéis que estavam espalhados pela casa, e percebeu que

o pai falava em voz baixa enquanto acariciava a ferida com a cinza.

Gaspar também pegou num bocadinho, mas limitou-se a espalhá-la na

mão e a beijá-la, tinha um sabor antigo, rançoso, e, no entanto, não era

desagradável. Adoro-te, disse Gaspar em voz alta, e lavou as mãos na


água, e depois mergulhou toda a caixa, que o pai lhe devolvera. Os

mortos viajam depressa, recordou a frase que lhe dera tanto medo

quando a leu, mas agora já não, oxalá chegues depressa aonde tiveres de

ir, mamã. Deixamos cá a caixa? Enterramo-la, disse o pai, mas antes

agitou a água com as mãos enormes, com os seus braços compridos, e

quando uma nuvem tapou a Lua e a escuridão se apoderou de quase

tudo, Gaspar pensou que as mãos se tornavam ainda maiores, mãos-

garras na água, um animal a chapinhar. A Lua voltou e Gaspar deixou de

ver as cinzas da mãe na água negra e prateada, um pouco como o

alcatrão das avenidas do bairro quando arranjavam o asfalto.

O pai voltou à margem e fez uma cova com as mãos, mais animal do

que nunca. Deixara a camisola a flutuar na água e Gaspar foi buscá-la.

Estava encharcada, vesti-la-ia assim? Ajudou-o a cavar, o pai estava a

transpirar e com pieira, mas conseguiu fazer um buraco suficientemente

profundo para a caixinha. Taparam-no ambos e o pai desenhou qualquer

coisa no túmulo de cinzas vazio, algo que Gaspar não conseguiu

distinguir, ou talvez fosse apenas uma derradeira despedida, uma espécie

de carícia com o dedo. Sentaram-se cada um do seu lado do montículo

de terra e riram-se quando, ao mesmo tempo, disseram que lhes apetecia

fumar. Ah, finalmente, disse o pai. Parecia contente. Gaspar tentou não

pensar no que o pai fizera com as cinzas, ou no que fizera ele próprio,

eram canibais ao luar, lamacentos, impregnados do cheiro do rio.

O regresso foi como um sonho, mais lento, mas sem tantas pausas.

Quando chegaram às grades, que estavam de novo fechadas, o pai olhou

para ele: tinha os olhos quase amarelos, como sucedia de vez em

quando, e ainda não vestira a camisola molhada, e, por isso, as feridas

sujas pareciam um estranho graffiti no seu peito, um desenho mal feito.

Gaspar obedeceu ao olhar: quando apoiou as mãos nas grades do portão,

sentiu o sangue percorrer-lhe o corpo a uma velocidade preocupante,


palpitava-lhe na cabeça, no estômago, nos pulsos, e, quando o portão se

abriu, acalmou, mas estava alagado em suor como se tivesse acabado de

fazer uma corrida, como depois dos jogos de futebol no verão.

Com moderação, disse-lhe o pai. Gaspar ganhou coragem para

perguntar, encorajado pelas cinzas e pela Lua, se ele ficara doente por

causa daquelas coisas. Daquele tipo de esforços. Abrir portas daquela

maneira. Eu? Perguntou o pai. Não, a doença até me travou. Tenho isso a

agradecer-lhe. Sou teu pai por ser doente. Se fosse saudável, não sei o

que teria acontecido.

O motorista, quando os viu enlameados, ensanguentados, molhados,

não disse nada. Não ficou surpreendido. Está acostumado, pensou

Gaspar, e, quando o carro arrancou, o portão e a Lua e o rio e as cinzas

ficaram longe deles, e agora, fechado no carro com o pai seminu, com o

peito cheio de sangue e cinzas, teve de conter o tremor das pernas, a

sensação de que acabara de acordar e de que aquele tempo noutro lugar

era muito remoto, belo como um jardim secreto atrás de uma parede de

cimento, repleto de flores de cor violeta e de plantas que comiam

moscas.

Gaspar saiu da piscina a correr e, quando se embrulhou na toalha, o

professor de natação disse-lhe descalço não! Se escorregares, matas-te.

Obedeceu-lhe e calçou os chinelos. Ardiam-lhe os olhos: demasiado

cloro na água. Nadar tinha-o relaxado. O esforço dos braços, o barulho

da água e o estranho mutismo subaquático distraíam-no. Também o

distraía pensar no Mundial. Faltava pouco para começar e tudo cheirava

a futebol. Hugo Peirano dizia que, com aquela equipa, que era uma

autêntica chachada, não tinham hipóteses, mas Gaspar, embora sem

saber bem porquê, confiava neles.


Pensar no Mundial era a melhor maneira de se distrair. Porque tinha

outras preocupações. O tio. Quando viria. O pai não lhe telefonava e, se

ele não aparecesse a tempo, acabaria num orfanato ou numa casa de

acolhimento ou qualquer coisa do género. Ou poderia ficar com os

Peirano, entretanto? Pensar era uma tortura. Tinha de telefonar para o

Brasil, de perguntar à ex-mulher do tio onde é que ele estava e se tinha

um telefone na Argentina. Disse-o ao pai, pediu-lhe por favor durante

uma noite em que não conseguia dormir, o pai a contorcer-se por causa

das dores no peito e a transpirar tanto, que teve de virar o colchão ao

contrário. Num momento de trégua, Gaspar recebeu uma resposta

insuportável; já falta pouco, mas, para já, temos de estar sozinhos. De

que merda estás tu a falar, disse Gaspar, mas continuou a ajudá-lo o

melhor que pôde até ao amanhecer, quando o pai adormeceu com uma

respiração estranha, irregular. Gaspar receava que ele morresse nessa

manhã, mas horas depois estava acordado e aceitou beber um sumo de

laranja. Não vais chamar uma enfermeira?, perguntou Gaspar. Em breve,

respondeu-lhe o pai. Que nem te passe pela cabeça telefonares ao teu tio,

disse-lhe depois, e Gaspar saiu de casa batendo com a porta. No

quiosque das revistas comprou El Gráfico e dois jornais. Guardava os

suplementos desportivos e estudava todos os artigos, todas as entrevistas

com Bilardo e os jogadores. Era bom poder pensar tão intensamente

noutra coisa, mergulhar em conversas sobre se a Argentina jogara bem

contra o Nápoles, e ouvir uma e outra vez a equipa não se está a mostrar,

não se está a mostrar, como dizia um atribulado Hugo Peirano enquanto

sorvia mate desesperadamente. Deixam-se ficar para trás, tiram-me do

sério quando se deixam ficar para trás.

Em sua casa vivia-se noutro tempo. O pai entrava e saía da clínica, e

Gaspar não o visitava quando estava internado. Não podia e não queria.

O Mundial ajudava-o a esquecê-lo, mas, à noite, quando folheava as suas


revistas e, às vezes, esperava o carro que traria o pai de volta, sentia o

estômago às voltas. Com quem ficaria se ele morresse? Os avós

apareceriam? Porque é que não podia telefonar ao tio? Ia fazê-lo, mesmo

que isso lhe custasse uma tareia infernal ou um castigo ainda pior, seria

mais suportável do que a incerteza. Depois do Mundial, dizia a si

próprio, depois do Mundial telefono-lhe. Não devias ficar mais tempo

internado?, perguntou Gaspar ao pai enquanto a doutora Biedma lhe

tirava sangue. Sim, disse ele. Em breve. Mas antes tenho de acabar uma

coisa aqui.

A doutora Biedma injetou o sangue num tubo de ensaio e olhou para

Gaspar de uma maneira que ele não conseguiu decifrar. Obedece-lhe,

pensou depois, na piscina, enquanto tomava um duche de água quente.

Ela sabe que ele não pode estar em casa, mas deixa, porque será? O que

teria ele de acabar? Qualquer coisa relacionada com os desenhos. Gaspar

fechou a torneira e embrulhou-se na toalha que trouxera de casa, que era

velha e áspera, mas enxugava bem.

O Mundial prosseguiu com um triunfo contra a Inglaterra que fez

desmaiar homens grandes e chorar outros no chão, envoltos em

bandeiras. Agora, os poucos jogos que faltavam eram decisivos. Estavam

todos contentes por se jogar contra a Bélgica na semifinal e não contra a

Espanha. A semifinal foi menos tensa do que o jogo contra a Inglaterra e

já se adivinhava o triunfo final, o inevitável, o 2-0 de um Maradona

iluminado, tão elegante que Hugo Peirano dizia este filho da puta faz-me

chorar. Não foi uma boa notícia que a França tivesse perdido contra a

Alemanha, toda a gente sabia que a Alemanha era um autêntico perigo, e

os dias anteriores ao jogo foram uma espécie de sonho. Para que o

tempo passasse mais depressa, Gaspar decidiu aprender a fazer uma

tortilha seguindo todos os passos de um livro de receitas. Quando

acabou e conseguiu dar-lhe a volta sem a deformar demasiado e sem a


queimar, descobriu que estava tão boa, que era uma pena comê-la

sozinho. Nesse dia, não fora ver em que zona da casa o pai estava e ficou

surpreendido quando o encontrou acordado no quarto de baixo, com a

cama cheia de cadernos repletos de desenhos e notas e vários livros.

— Queres comer, papá?

— Fizeste-a sozinho? Não me consigo levantar, filho, vais ter de

trazer-me a comida.

— Como, não consegues?

Gaspar aproximou-se da cama do pai e, quando o viu — há dias que

não olhava para ele com atenção —, percebeu que ainda perdera mais

peso. E não telefonou ao tio, pensou. Quando acabar o Mundial, quando

acabar, telefono-lhe. Comeram juntos, em silêncio, à frente da televisão,

vendo mais um debate de futebol. Gaspar percebia que o pai não estava

interessado, mas isso era totalmente previsível. Comeu devagar e deixou

metade, mas disse-lhe é só porque me sinto mal, está deliciosa. Gaspar

perguntou-lhe se precisava de oxigénio e ajudou-o a ligar-se ao novo

sistema, já não usava máscara em casa, mas um tubo por cima da boca,

semelhante a um bigode, duas pequenas cânulas que se enfiavam no

nariz.

Na final, o 2 a 0 enlouqueceu-os de tal maneira, que Hugo Peirano

partiu um copo e as raparigas gritaram tão alto, que tiveram de as

mandar calar também aos gritos. Estão embrutecidos, disse Lidia. Estão

como se tivessem visto um ovni. Os alemães jogavam bem e empataram

com dois golos quase idênticos marcados do canto esquerdo. O silêncio

depois do empate foi total. Aos oitenta e quatro minutos, Lothar

Matthaus, o número 10 alemão, que fazia uma marcação cerrada a

Maradona, afastou-se dele. Não foi muito óbvio, apenas um segundo,

mas o suficiente para que Diego fizesse um passe longo, de primeira e

com o pé esquerdo, para Burruchaga. Que passe mais difícil de fazer,


pensou Gaspar. E então soube. É golo, disse em voz alta. Cala-te, cala-

te, disse-lhe Hugo Peirano, que também estava a perceber tudo, mas não

queria alimentar demasiado as esperanças. Quem se chegou à frente foi

Burruchaga, que atirou cruzado, suavemente, e marcou.

Gaspar não viu o que aconteceu a seguir. Saltou e abraçou-se a Pablo

e a toda a gente, e sabia que os seis minutos que restavam seriam duros,

mas inúteis para a Alemanha; eram campeões e era como voar, como se

nada mais existisse naquele momento, um momento que era para sempre

e que era alegre e tristíssimo ao mesmo tempo porque não podia durar.

Tinham de ir para a rua, não se podia estar sozinho. As ruas estavam

cheias de buzinas e de bonecos com a trunfa do número 10 e bandeiras e

confetes vejam vejam que loucura vejam vejam que emoção cantavam as

pessoas, algumas levavam os telefones para a rua para que os familiares

que viviam noutros países ouvissem os gritos, as bebedeiras, e

chorassem do outro lado, do Canadá e dos Estados Unidos e do Brasil e

do México e de Espanha e de França, eLivross pela ditadura,

trabalhando longe porque na Argentina nunca havia trabalho, alguns

tinham visto o jogo em bares, outros tinham-no ouvido na rádio, e todos

queriam voltar para viver aquilo, mesmo nas regiões onde chovia

festejavam completamente ensopados e com as camisolas coladas ao

corpo. Levaram altifalantes para o parque e houve bailarico e choripanes

e vinho, a casa das empadas cozinhou para a toda a gente e acabaram

todos deitados na relva, à noite, fartos de chorar e de comer e de gritar,

afónicos, vestidos de azul-claro e branco da cabeça aos pés.

Gaspar lembrar-se-ia desse dia, e dessa noite, como o último dia feliz

em muitos, demasiados anos.

Pablo foi logo ter com ele: viu Gaspar assim que saiu da escola. Era raro

que o esperasse à saída. Gaspar ofereceu-se para o levar de bicicleta.


Pablo disse-lhe que preferia caminhar. Depois, convidou-o para almoçar

no café do parque. Ou esperam-te em casa?

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou Pablo.

— Preciso de um favor teu. Que me emprestes o telefone da tua casa

para telefonar para o Brasil.

— Isso é caro, anormal. Tu tens telefone.

— O dinheiro não é um problema, eu pago aos teus pais. Adiantado,

antes de chegar a fatura.

— Mas pedes-lhes tu. Queres falar com o teu tio? Ele já não tinha

chegado?

Gaspar levou a mão à testa como quando hesitava, como quando

estava nervoso. Pablo percebeu que tinha as calças a cair por ter

emagrecido. O cinto largo pendia à cintura como uma serpente.

— Acho que já chegou. Só que não sei onde está. Mas a ex-mulher

dele deve estar lá e é capaz de ter o novo número de telefone dele. Ou

não, mas não custa nada tentar.

— E não podes telefonar-lhe da tua casa?

— O meu pai não quer que fale com ele. Diz que o fará ele quando o

momento chegar. Mas olha, eu não sei se está bem da cabeça.

Pablo ficou calado. Gaspar continuou.

— Não posso telefonar da minha casa. Ele vai saber. Não quero que

fique nervoso.

— E de que é que vais falar com o teu tio?

— Não sei bem. Vou contar-lhe do meu pai, vou dizer-lhe que tem

de vir para cá, ele disse que nos ia acompanhar. Se não, terei de entrar

em contacto com os meus avós, e aí, sim, é que o meu pai ficava louco,

porque os odeia. Não sei o que fazer. Ele tem de pensar num plano. A

alternativa é ser enviado para uma instituição para ser adotado.

— Isso não vai acontecer.


— Claro que sim, é assim que as coisas funcionam, Pablo.

— A minha mãe está em casa agora. Vamos pedir-lhe autorização.

— Tenho o dinheiro.

— Se calhar não te levam nada.

— Eu quero pagar.

A conversa telefónica foi muito estranha. Toda a situação, na

verdade. A mãe de Pablo aceitou prontamente o dinheiro da chamada e

Gaspar achou-a muito grosseira: esperava primeiro um «não, por favor»,

depois a sua insistência e, finalmente, um «está bem» resignado. Era

assim que se comportava a maior parte das pessoas. Não gostava daquela

mulher. Estava bastante grávida, mas não prestes a rebentar, e mexia-se

com uma lentidão exagerada que Gaspar achava pouco credível.

Em casa do tio, no Brasil, atendeu uma mulher. Gaspar sabia que ele

já não vivia lá e esperava que quem atendesse fosse a ex-mulher, que

sempre pensou, até àquele momento, que era brasileira. Até aprendera a

dizer olá e mais algumas palavras em português com a ajuda de um

dicionário da biblioteca. Mas a mulher falava espanhol. Um espanhol

estranho, com uma pronúncia que ele não conhecia: usava o «tu» e

arrastava os erres. E, no entanto, tratou-o bem. Disse-lhe que o tio ainda

não tinha telefone onde estava, mas que lhe podia dar a morada dele.

Deu-lha. A mulher contou-lhe, ainda, que o tio continuava em contacto

com ela — tratava-o pelo nome, Luis —, e disse-lhe que lhe ia pedir que

lhe ligasse. Gaspar disse obrigado, arrependendo-se enquanto o dizia,

mas, ao mesmo tempo, pensou, o tio telefonava de vez em quando, não

era assim tão estranho, não tinha por que dizer que recebera uma

mensagem da ex-mulher. Ocorreu-lhe pedir à mulher para não lhe contar

que ele telefonara, mas pareceu-lhe demasiado complicado e ela,

claramente, tinha vontade de desligar. Era amável, embora ficasse em


silêncio depois de responder às perguntas. Gaspar desligou depois de

agradecer e olhou para a morada que anotara à pressa.

— Sabes onde fica Villa Elisa? — perguntou a Pablo, que disse que

não com a cabeça, agachando-se para ir buscar o Guia T do pai.

Folhearam-no entre os dois e deram imediatamente com o lugar: ficava

perto de La Plata, a capital da região, e os nomes das ruas eram

números, tal como a mulher lhe dissera. Gaspar sentiu que o nó que

tinha na garganta havia uns dias começava a afrouxar: agora, pelo

menos, tinha um sítio para onde ir. Até o podia visitar, se quisesse: no

Guia T, dizia que havia um comboio para lá que saía de Constitución.

O frio era bom para passear Ariadna, a nova cadela de Vicky, que ainda

era pequena e puxava desesperadamente a trela. Depois do que

acontecera a Diana, Vicky não a largava nem por um minuto na rua.

Gaspar gostava de a acompanhar quando levava a cadela a dar um

passeio pelo bairro depois da escola, quando já começava a escurecer; a

trela era vermelha, tal como o elástico que Vicky usava para prender o

cabelo e o pulôver de lã em ponto trança de Adela, com a sua manga

cortada. O braço fantasma já não a incomodava, Adela falava dele a toda

a gente e mostrava a caixa que Gaspar lhe oferecera, a caixa mágica,

como lhe chamava. Confrontara a mãe e o fisioterapeuta em relação à

caixa e nenhum dos dois lhe dera uma resposta. Toda a gente mente,

insistia.

Uma tarde, depois do Mundial, Adela pediu a Vicky e a Gaspar para

terem uma reunião com ela. Pediu-o assim. Quero uma reunião. Com o

Pablo, não, porque se porta como um imbecil, disse-lhes. E na reunião,

que teve lugar no quarto de Vicky, contou: durante a viagem ao Sul, uma

noite, a mãe embebedara-se.


— Esta bebedeira foi diferente — contou-lhes Adela. — Começou a

chorar pelo meu pai. Eu aproveitei e arranquei-lhe informações, porque

ela nunca me fala dele. Disse-me que o tinham matado, que era um

desaparecido.

Vicky e Gaspar respiraram fundo, mas trocaram um olhar: e se fosse

mais uma das invenções dela, como a do braço e do dobermann?

Então, continuou Adela, a mãe fechou-se em copas e enfiou-se na

casa de banho.

— Eu não me apercebi de nada — disse Vicky.

— Foi em Esquel, quando estávamos no chalé. Não te disse nada

porque não tive coragem, não sei. Mas também me disse uma coisa

importante: que ela sonha com o meu pai muitas vezes e que sonha

sempre que está na casa da Rua Villarreal. Perguntei-lhe se ele se tinha

escondido lá e ela disse-me que sim, mas não sei se é verdade, porque já

estava meio bêbeda. Quando está bêbeda, a dada altura começa quase a

delirar e a dizer tudo e mais alguma coisa, diz que sim só para se

esquivar, por exemplo. Mas, se calhar, ele escondeu-se mesmo lá, não

acham?

— Voltaste a perguntar-lhe? — perguntou Vicky.

— Agora nega tudo, como sempre, mas quando se referiu à casa foi

muito clara.

— Por favor, Adela — bufou Gaspar. — Não inventes parvoíces. Eu

sei que queres lá ir, mas não assim.

— Tu sabes lá — gritou-lhe. — Toda a gente mente. Quero entrar,

sim, quero ver se encontro coisas do meu pai lá dentro.

Gaspar saiu da reunião muito transtornado, mas a zanga passou-lhe

depressa. Estava demasiado preocupado com o seu próprio pai para se

manter de mau humor por causa do desaparecimento imaginário do pai

de Adela.
Vicky correu arrastada por Ariadna e dobrou a esquina da Villarreal,

mas atravessou instintivamente a estrada para não passar pela porta da

casa. Gaspar seguiu-a, mas Adela não, e aproximou-se do portão de

ferro. Entrou no jardim. Gaspar e Vicky esperaram por ela no outro lado

da rua.

— Há algum tempo que não o ouço — disse Vicky.

— O zumbido?

— Sim, o barulho de bichos passou. Talvez regresse no verão.

— Se calhar era um gerador.

— Tu sabes que não.

— Eu não sei nada.

— Não discutas comigo.

— Não estou a discutir. O que é que ela está a fazer?

— Quer ver se consegue abrir a porta. Mesmo que a parta, às tantas

o cadeado está trancado.

— Não é possível abri-la. Eu trago-as cá quando quiserem entrar.

— Ela quer ir para cima do telhado.

— Não tem onde agarrar-se. Nem sequer há uma árvore, está tudo

seco, parece a minha casa.

E, ao dizer isto, quando disse «parece a minha casa», Gaspar sentiu

um arrepio a percorrer-lhe todo o corpo.

— Adela, despacha-te, a cadela está doida — gritou Vicky. E depois

disse a Gaspar: — Agora acha que o pai era guerrilheiro e anda a ler

livros e revistas sobre a ditadura.

Gaspar permaneceu em silêncio. Adela atravessou a estrada a correr.

— Quando é que me vais ajudar a entrar? — perguntou a Gaspar. —

Disseste que seria depois do Mundial.

— Vimos cá na primavera.
Gaspar olhou para a casa. As duas janelas tapadas, a relva amarela,

as paredes cinzentas. Não sabia explicar porquê, mas sentiu que a casa o

estava a desafiar. Vamos lá ver se consegues entrar, dizia-lhe. Estaria

louco? Pablo disse-lhe que fora obrigado a tapar a boca a Adela para que

deixasse de falar da casa, mas não só por estar farto: porque tinha medo

dela. Ariadna viu surgir outro cão com um vizinho e arrastou Vicky, que

teve de fazer um esforço para a controlar. E, assim, deixaram para trás a

casa, mas Adela lançou a Gaspar um dos seus olhares definitivos: seria

em setembro e ninguém lhe arrebataria agora essa data, esse objetivo.

Chegaram as férias de inverno e Gaspar passava a vida na piscina do

clube, com a sua água climatizada. Também passava bastante tempo em

casa à espera do telefonema do tio. Depois do Mundial perdera a

vontade de ver futebol e a única coisa que queria ouvir era o som do

telefone. Mas quando soube que o tio lhe telefonara, a notícia apanhou-o

de surpresa. Foi o pai que o informou da chamada, calmamente,

enquanto bebia um chá no jardim ressequido das traseiras. Há dias que

se sentia melhor.

— Porque é que ligaste ao teu tio sem me avisares, filho? —

perguntou-lhe. — Juan acabou o chá todo de uma vez. — Não tentes

mentir-me.

Juan deixou a chávena no pátio e entrou em casa. Gaspar seguiu-o,

zangado.

— Porque tu não lhe vais telefonar! — gritou-lhe. — Vais deixar-me

sabe-se lá com quem ou sozinho, és capaz de me deixar sozinho.

— Tu não sabes nada, filho.

Gaspar viu o pai a dirigir-se para o primeiro andar. Se se enfiasse no

quarto de cima, escapava. E não queria que ele se escondesse. Queria

dizer-lhe o que sentia. Agarrou-o pelo braço na escada e sentiu a raiva a

arder-lhe nos olhos. Conseguiu fazer com que não continuasse a subir e
se virasse. Parecia altíssimo ali, dois degraus acima dele, a olhar para ele

com os seus olhos um pouco verdes e um pouco amarelos ao lado da

janela da escada que dava para o pátio.

— Gaspar, o teu tio virá quando eu lhe pedir.

Gaspar sorriu e pressionou as fontes.

— Eu não quero estar contigo — disse-lhe. — Se calhar vou-me

embora antes, não me podes impedir. Tenho a morada do tio. Se não,

vou ter com os meus avós. Pode ser que me queiram ver. Às tantas, só

têm problemas contigo. Sei que estás doente, mas paciência, os teus

amigos que tomem conta de ti. Eu não aguento mais.

O pai olhou para ele de uma maneira tão diferente, tão

profundamente dececionada e furiosa, que Gaspar se assustou. Já o tinha

visto milhares de vezes zangado, mas agora sentia-se em perigo, o

mesmo tipo de perigo que sentira na quinta de Chascomús. Deu meia-

volta para descer a escada, para desistir do confronto, mas não

conseguiu mexer-se. O pai agarrara-o pela cintura. Gaspar pensou que

lhe ia bater e encolheu-se; o murro que esperava acertou no vidro da

janela, que se partiu e ficou com arestas pontiagudas. E depois, rápida e

inesperadamente, o pai virou o punho para ele. Aterrado, mas também

surpreendido, Gaspar viu o pai puxar-lhe com toda a força o braço e

espetá-lo nos estilhaços da janela; cortou-lhe a pele com precisão, com

sanha e precisão, como se estivesse a fazer um desenho. Gaspar gritou; a

dor era gelada e insuportável, cegava-o, e quando ouviu o vidro a roçar

no osso, a tontura que sentiu obrigou-o a gemer. Sentiu a humidade

quente nas calças: urinou-se, e quando olhou para o pai para que o

deixasse em paz, viu que ele estava concentrado na ferida, a estudá-la. A

dor enfraqueceu-lhe o corpo e ficou pendurado, a única coisa que o

impedia de rolar pela escada abaixo era o braço maltratado que o pai

segurava, e voltou a gritar quando o pai levou os lábios à ferida e a


lambeu, chupou, enchendo a boca de sangue. Sem o largar, o pai cortou

o próprio braço com um vidro partido. Brutalmente, pressionou a

própria ferida contra os lábios de Gaspar.

— Engole! — gritou-lhe. Gaspar, com a força que lhe restava,

mordeu-o. Mas o pai não retirou a mão, nem sequer quando os dentes

lhe rasgaram a carne. Agora Gaspar também tinha a boca cheia de

sangue e engoliu-o.

Quando o largou, Gaspar fechou os olhos, mas uma pancada na cara

arrancou-o do desmaio. O pai, agora de joelhos, olhava para ele com os

olhos desfocados, transparentes. Tinha o queixo cheio de sangue e os

lábios vermelhos. Não parecia estar sozinho. Era como se, atrás dele,

houvesse gente a mexer-se nas sombras.

— Vai. Corre!

Gaspar não percebeu e o pai arrastou-o pela escada abaixo pelo

braço saudável e levou-o aos encontrões para a porta. Abriu-a, deixou-o

no lado de fora e fechou a porta à chave sem dizer uma palavra. Por

favor, papá, disse Gaspar em voz baixa, depois olhou para as calças

mijadas e cheias de sangue, para o antebraço devastado. Levantou-se e

raciocinou depressa. Um táxi, pedir ajuda a alguém, que horas seriam?

Pablo podia levá-lo ao posto médico, a um hospital.

Levantou o braço para não sangrar tanto — tinham-no ensinado a

fazer isso uma vez, quando cortou o dedo com um x-ato na escola —,

mas não serviu de nada e estava a deixar um rasto vermelho por todo o

lado. No caminho até à casa de Pablo não se cruzou com ninguém.

Incrivelmente, o bairro estava vazio.

A campainha tocava sem parar, como se tivesse ficado bloqueada. Já

vou, gritou Pablo, mas o zumbido sem fim acabou por inquietá-lo.

Quem tocaria assim e para quê? Estava sozinho em casa. A mãe tinha
ido ao hospital a uma consulta de acompanhamento da gravidez, só

faltavam umas semanas, e o pai trabalhava o dia todo. Espreitou pela

janela antes de abrir e viu os ténis de Gaspar.

Ia dizer-lhe porque é que estás a tocar dessa maneira, anormal, mas

emudeceu quando viu o braço, a ferida do braço: no sangue do corte, tão

vermelho, a pele e o músculo desprendiam-se como algo comestível,

como a carne sob a luz de uma vitrina no talho; via-se o branco do osso.

Gaspar tinha a pele da cara cinzenta, suada, e estava apoiado na

campainha porque não conseguia ter-se de pé. O que é que te aconteceu,

entra, disse-lhe Pablo, e Gaspar negou com a cabeça. Não. Leva-me já

ao hospital de mota.

Entra, disse Pablo, e empurrou Gaspar para dentro da sala; foi a

correr à casa de banho buscar toalhas e envolveu-lhe a ferida com elas.

Quando o fez, Gaspar gritou. A mãe nunca usava a mota; era do pai,

para os fins de semana. Ele mal sabia guiá-la: tinham-lhe ensinado um

pouco, mas só o deixavam dar uma volta ao quarteirão e, uma vez por

outra, aos domingos, ir até ao parque quando não havia muito trânsito.

Mas o hospital ficava a pouco mais de um quilómetro dali e achou que

conseguiria lá chegar se evitasse a avenida.

— Quero vomitar — disse Gaspar.

— Aguenta, vamos já. Apoia-te em mim.

Gaspar levantou-se e deixou cair o peso todo do lado saudável sobre

o ombro de Pablo. As toalhas não estavam manchadas, ainda. Não estava

a sangrar assim tanto. Mas tinha as calças ensopadas e Pablo chegou a

ver uma pequena poça na zona onde Gaspar tinha esperado que ele

abrisse a porta.

Pablo abriu a garagem e tirou de lá a Zanella branca o mais depressa

que pôde. Gaspar sentara-se no chão a vomitar quase em silêncio. Seria

capaz de levantá-lo? Levou a mota para a rua e Gaspar caminhou como


pôde e sentou-se na parte de trás do assento, mas o corpo descaía-lhe

para o lado e para a frente, e não conseguia controlar as náuseas. Vai

desmaiar, pensou Pablo, e teve uma ideia.

— Façamos o seguinte — disse, e, rapidamente, usou o descanso da

mota para ela não cair, levantou a t-shirt ensanguentada de Gaspar e

tirou-lhe o cinto das calças de ganga. Sabia que andava sempre com os

cintos enormes do pai. Pablo sentou-se no lugar do condutor, pediu-lhe

que se abraçasse a ele com força com o braço saudável e se aproximasse

o máximo possível dele (Gaspar obedeceu-lhe mecanicamente, como se

lhe estivessem a dar ordens num sonho), e verificou se o cinto conseguia

dar a volta aos corpos de ambos, se era suficientemente largo para servir

de amarra, para manter o corpo de Gaspar preso ao dele. Era. À justa.

Ficava muito apertado e, também por ter as mãos a tremer, custou-lhe

usar o último furo, fechar a presilha, verificar se o amigo iria mais ou

menos seguro, sentado no lugar do pendura. Abraça-me e não desmaies,

disse-lhe. Pablo sentiu a cabeça de Gaspar no ombro, o cabelo suave que

lhe provocava arrepios na nuca. Arrancou.

Em vez de um quilómetro, pensou ter percorrido quatro antes de

chegar ao hospital, e o minuto que passaram parados no semáforo

vermelho no cruzamento da avenida com a Rua Zuviría afigurou-se-lhe

tão comprido, que pensou que devia estar avariado. Sentia a respiração

de Gaspar no pescoço, e sempre que o aperto do amigo afrouxava,

voltava a ajeitar-lhe o braço. Para seu alívio, os autocarros não passavam

por aquela rua. Perguntou a Gaspar várias vezes o que é que lhe tinha

acontecido, sobretudo para ouvir a voz dele, e Gaspar respondeu

tropecei na escada e bati contra a janela, lembras-te da janela da escada.

Pablo lembrava-se. Não percebia como podia ter acontecido um acidente

daqueles, mas não disse nada.


Quando chegaram ao hospital, Pablo estacionou a mota entre dois

carros sem lhe pôr o cadeado ou a tranca das rodas. Gaspar estava um

pouco mais composto e precisou de menos ajuda para ir até às

urgências; no caminho, tirou ele próprio as toalhas que envolviam a

ferida. Tirou-as com os olhos secos e respirando fundo, só tremia, Pablo

pensou que jamais teria conseguido lidar sozinho com uma ferida

daquelas, que teria pedido ajuda aos pais, seguramente a chorar e

assustado. Gaspar estava assustado, dava para perceber, mas também

tinha um autocontrolo que lhe pareceu incrível.

Assim que eles entraram, algumas pessoas que esperavam sentadas

no banco comprido das urgências — Pablo viu uma senhora a acariciar

a cabeça de uma menina com tranças, um casal de idosos, um homem da

idade do pai, mas mais gordo, com o pé descalço e inchado —

levantaram-se para ceder o seu assento a Gaspar, e uma mulher alta e

gorda começou a bater na porta atrás da qual os médicos estavam a

trabalhar, gritando é uma emergência, é uma emergência. Apareceu uma

médica com o cabelo apanhado e algumas madeixas grisalhas, de cara

séria, acostumada a pacientes ansiosos. Mas quando viu Gaspar, deixou

a porta aberta e disse entra, vem, enquanto o acompanhava arrastando-o

pelo ombro. Pablo seguiu-os com as toalhas na mão.

— Estão sozinhos? Onde estão os vossos pais?

— Não somos irmãos — disse Pablo. — Estão todos a trabalhar.

Claro que Pablo ignorava o que Juan Peterson, que não trabalhava,

estava a fazer. Ou porque é que não estava com o filho. Estaria

internado? Passava muitos dias internado ultimamente. Mas não naquele

hospital: numa clínica caríssima, exclusiva, dizia a mãe, oxalá eu

pudesse ter o teu irmão num lugar assim, num lugar fino.

A médica sentou Gaspar na maca e apoiou-lhe o braço numa mesa

de alumínio coberta por lençóis brancos. Observou a ferida de óculos


postos.

— Vais ter de ser operado — disse-lhe. — Não te posso dar uns

pontos e mais nada, é muito profundo.

Gaspar disse que sim com a cabeça.

— Como é que isto aconteceu?

Pablo interveio e explicou o acidente tal como Gaspar lho tinha

contado. A médica não levantou objeções e voltou a estudar a ferida.

Com luvas e uma pinça levantou um dos rebordos que estava a inchar e

deixou o osso à mostra. Gaspar abafou um gritou e, então, vieram-lhe as

lágrimas aos olhos, mas secou-as violentamente com o braço saudável.

— Agora vais para o bloco.

E saiu pela porta do fundo depois de lhe injetar um analgésico. Logo

a seguir, antes que Gaspar e Pablo pudessem falar, apareceu outro

médico, desta vez um homem, e repetiu as perguntas, a observação da

ferida, a insistência em que teria de ser operado. Falou do tipo de sutura,

perguntou pelos pais. Preciso de um adulto responsável, disse. Pablo, de

repente, lembrou-se do óbvio. O facto de ainda não ter pensado nisso era

inexplicável.

— A doutora Lidia Peirano trabalha aqui, não sei se a conhece. A

filha é a nossa melhor amiga, é nossa vizinha. É amiga do pai dele.

— Ah, a Lidia. Hoje está cá, eu vi-a.

O médico pegou no telefone e falou. Depois, preparou uma seringa,

baixou-lhe um pouco as calças e deu-lhe outra injeção. Também lhe

sorriu, pela primeira vez. Vais ficar bom, disse-lhe. Tens um corte muito

feio, vinhas a descer a escada a correr, estavam a brincar? Estava

sozinho, disse Gaspar, e sim, vinha a descer a correr. Temos de ter

cuidado, disse o médico, e voltou a sorrir-lhe, mas Gaspar não lhe

devolveu o sorriso. O que sentia não era só dor, apercebeu-se Pablo.

Parecia assustado.
Estava a mentir.

Lidia Peirano surgiu despenteada e a falar muito alto. Ai, meu amor,

o que é que te aconteceu. Outra vez a história da queda na escada.

Estavam juntos? Não, disse Pablo, ele veio à minha procura assim.

Viemos de mota. Lidia olhou com ar pasmado para eles. Depois

contam-me melhor essa história, agora tens de ser cosido. Já lhe dei a

vacina contra o tétano, um antibiótico e um analgésico, disse o médico,

que estava a medir o pulso de Gaspar. Já não se dirigia a eles, mas a

Lidia. Está com taquicardia, perdeu bastante sangue. Lidia também

olhava para a ferida e dizia que não com a cabeça. Deita-te, disse a

Gaspar, pondo-lhe umas almofadas debaixo dos pés. Assim ficas menos

tonto. Depois disse ao médico: o pai é doente cardíaco; tanto quanto sei,

ele não tem problemas, mas avisem e mantenham-no controlado, peçam

já um eletrocardiograma. E depois: porque é que o corte é tão profundo?

Ficou enterrado no vidro e tive de puxá-lo, disse Gaspar. Mas, querido,

mais valia teres partido o vidro com a outra mão. Foi sem pensar, disse

Gaspar, doía-me imenso.

O olhar que trocou com Pablo tinha qualquer coisa de feroz. Cala-te,

diziam os olhos dele com as pupilas dilatadas, olhos azul-escuros na sala

mal iluminada das urgências.

Depois falamos, respondeu-lhe Pablo mexendo quase

impercetivelmente os lábios, e Gaspar respondeu que sim com a cabeça.

O médico mediu-lhe a tensão e Gaspar fechou os olhos. Um pouco

baixa, disse o médico. Vamos levá-lo. É o Miller que está de plantão no

bloco, o miúdo está com sorte. Estás com sorte!, disse-lhe o médico a

sorrir, e depois disse qualquer coisa a Lidia sobre nervos e tendões. E

sobre a estranheza da ferida: a parte posterior do braço, que é muito

mais delicada, não tinha sequer um raspão.


— Tu, espera lá fora — Lidia acompanhou Pablo até à sala de

espera. — Eu depois chamo-te. E o Juan? Tens de avisá-lo — deu-lhe

duas fichas. — No corredor há um telefone público, telefona-lhe. Se não

atender, telefona para minha casa, avisa a Vicky e ela que insista.

Pablo hesitou e ia dizer qualquer coisa, mas Lidia interrompeu-o. Eu

sei que é uma pessoa esquisita e que não é muito simpático convosco,

mas é o pai dele. E aquela ferida é muito, muito feia. Faz o que te digo.

Em casa de Gaspar o telefone tocava e ninguém atendia, mas Pablo

imaginou Juan Peterson sentado no seu sofá amarelo a ouvir a

campainha soar como se fossem gritos até deixar de tocar.

Pablo ouviu o homem do pé inchado contar-lhe que, quando era novo, se

cortara com uma chapa da fábrica e que lhe fizera pior a vacina contra o

tétano do que o corte. Mostrou-lhe a cicatriz da mão. Pensei que me ia

afetar os dedos, mas não. Depois a fábrica fechou, mas isso já é outra

história. O teu irmão vai ficar ótimo.

Não é meu irmão, repetiu Pablo. Porque é que diziam aquilo? Não

eram nada parecidos. Telefonou a Vicky. Contou-lhe o que tinha

acontecido, ela perguntou várias vezes mas ele está bem? até ele ficar

chateado e, finalmente, disse:

— Eu não vou à casa do Gaspar, e muito menos sozinha.

— A tua mãe não disse para lá ires, disse para telefonares.

— Quero ir para o hospital, levo fichas e telefono daí.

A chamada caiu depois de Vicky dizer que ia ter com a mãe de

Adela: já devia ter chegado, ela que falasse com o pai de Gaspar, ou que

o procurasse, se ele não estivesse em casa. E Pablo voltou a sentar-se na

sala de espera. Ainda tinha as toalhas ensanguentadas na mão. De

repente, lembrou-se da mota e saiu para a prender. Ninguém a levara,

mas ele esquecera-se do cadeado. Foi a correr telefonar outra vez a


Victoria com uma ficha que encontrou no fundo do bolso e pediu que

lho trouxesse, e também a avisou de que deixara a porta da garagem

aberta. Depois, sentou-se no banco de fora das urgências, sob um

pequeno alpendre, diante de um canteiro.

Discutiram e ele bateu-lhe, foi o pai que o magoou. Tinha a certeza

disso, mesmo que fosse incrível e tivesse como única prova a atitude de

Gaspar. Lembrou-se da janela. Era grande e ficava precisamente onde a

escada virava. Passara por ela naquela noite, quando entrou na casa de

Gaspar e viu Juan com o amigo, com o namorado, a noite com que Pablo

sonhava e depois acordava a transpirar, húmido entre as pernas; às

vezes, tinha de trancar-se na casa de banho, enfiar-se na banheira, fechar

os olhos e recordar as costas de Juan, lisas e pálidas ao luar, e as do

amigo dele, marcadas por duas linhas pintadas, ou seriam cicatrizes?

Tentou pensar calmamente, esquecer o círculo no chão, o cheiro, os seus

próprios dedos peganhentos entre os lençóis sempre que sonhava com

eles ou pensava neles antes de adormecer. Não era difícil cair em cima

do vidro depois de escorregar ou tropeçar: ficava numa zona perigosa.

Porém, conhecia Gaspar suficientemente bem para saber que estava a

mentir. E ele, o que deveria fazer? Se Juan era capaz de fazer uma coisa

daquelas, tinham de tirar Gaspar daquela casa. Não lhe restavam mais

fichas, mas encontrou dinheiro e foi a correr até ao quiosque fazer outra

chamada.

— Nem imaginas — disse Vicky. — O meu pai teve de sair porque

não sei o que é que aconteceu na farmácia, chegou um pedido e estou cá

fechada com a Virginia, não a posso deixar com a minha avó, que se

sente mal. A mãe da Adela foi a casa do Gaspar. Diz que ela trata de

tudo.

Pablo comprou uma Coca-Cola, mas não conseguiu engoli-la, as

bolhas de gás eram demasiado grandes, e voltou para o hospital. Sentou-


se ao lado de um paciente recém-chegado com o braço apertado contra o

peito que dizia ter caído como um palerma na rua. Pablo sentiu-lhe o

cheiro a álcool no hálito. Teria de telefonar à mãe? Olhou para o relógio:

quatro da tarde. Já estaria em casa? Às vezes, demorava bastante no

médico. Era melhor telefonar-lhe porque, caso contrário, ficaria

assustada, havia sangue na entrada da casa, na rua, no sofá, na garagem,

e faltavam as toalhas da casa de banho. E também a mota, embora Vicky

tivesse tido tempo de ir a correr fechar a porta da garagem. Isso não era

um problema. O sangue, sim. Vai pensar que é meu e vai assustar-se, é

muito sangue, se calhar o Gaspar precisa de uma transfusão, e se lhe

derem um sangue diferente do dele? Podem matá-lo, se o fizerem.

Embora aqui, no hospital, de certeza que sabem isso. Qual é o tipo de

sangue dele? Eu sou dador universal, disseram-me uma vez, posso dar-

lhe o meu, se for preciso.

Lidia apareceu e surpreendeu-o, com a sua bata branca e o

estetoscópio pendurado ao pescoço, muito poucas vezes a via vestida de

outra maneira, nem sequer aos fins de semana, pois trabalhava sempre

aos sábados ou aos domingos.

— Já está tudo em andamento, estão a suturá-lo. Vai ficar perfeito.

Avisaram o Juan?

— A Betty avisa-o.

Pablo baixou a cabeça e apertou as toalhas. Onde teria deixado o

cinto? Voltou a sentir a respiração de Gaspar na nuca, em cima da mota,

quente no ar frio da tarde de inverno; se calhar podemos dormir juntos,

usar o edredão novo que o meu pai trouxe que é tão quente, de penas.

Isto se não morrer, pensou.

— Já venho — disse Lidia, e Pablo ficou na sala de espera das

urgências, uma rapariga da idade dele não conseguia respirar, a mãe

dizia aos gritos que tinha asma, enervando ainda mais a filha, e uma
médica mandou entrar a rapariga asfixiada e fechou a porta na cara da

mãe, e Pablo pensou em Gaspar, que estava sozinho enquanto o cosiam.

Onde estaria Juan? Talvez estivesse escondido num dos quartos daquela

casa tão grande e escura, ou com o amigo da madeixa branca que gemia

como se lhe doesse, doeria muito?, desde que os vira não parava de

pensar na mesma coisa, em se seria doloroso ou não.

Quem me dera estar enganado, pensou, apertando as toalhas. Quem

me dera que o Juan esteja internado e o Gaspar esteja a dizer a verdade.

Lidia voltou com várias notícias: já podes ver o Gaspar, vai ter alta

daqui a nada, mas prefiro que ele fique cá mais umas horas até o Juan

aparecer. Se não aparecer, levo-o para minha casa. Coitado do rapaz!

Ainda só passaram dois meses desde que bateu com a cabeça.

Gaspar não estava sozinho. Havia um médico ao lado dele, um novo.

— O teu amigo é um campeão! — disse-lhe. — Não se portou como

um mariquinhas, nada. Vai ficar fino.

Depois, levou Lidia para um canto e Pablo não conseguiu ouvir bem

o que lhe dizia, qualquer coisa sobre tratamentos e antibióticos. Quando

voltaram — Gaspar não olhou para ele em momento algum, não

despregava os olhos da ligadura —, alguém disse se for preciso, batem à

porta das urgências e nós vamos buscá-los.

Gaspar sentou-se na maca e fitou Pablo nos olhos quando os médicos

fecharam a porta.

— Não disseste nada, pois não?

— Sobre o quê?

— Se disseste alguma coisa, mato-te.

— Mas o que é que tu querias que eu contasse, anormal?

Gaspar baixou o tom de voz e dobrou as costas: parecia um animal.

— Discutimos e ele cortou-me. Tu percebeste. Se contares a alguém,

mato-te.
Gaspar ameaçava-o cheio de raiva, quase parecia que lhe queria

bater. Pablo, no entanto, não conseguiu ficar zangado com ele. A

revelação deixara-o esgotado, com falta de ar. Aproximou-se de Gaspar,

ignorando o facto de ele ter esticado a mão como que a dizer,

claramente, deixa-me em paz; continuou a aproximar-se e sentou-se ao

lado dele na maca, e viu que Gaspar evitava olhar para ele, explorando

com os olhos a parede pintada de verde, um pouco descascada, o póster

com os ossos humanos discriminados, o papel com os horários das

radiografias, colado com fita-cola, as garrafas e as seringas de vidro.

Pablo acariciou-lhe a mão e Gaspar deixou, e também consentiu que lhe

rodeasse os ombros com um braço, mas não aceitou outro tipo de

consolo. Vais contar-me o que aconteceu, perguntou-lhe Pablo em voz

baixa, e Gaspar assentiu com a cabeça; quando olhou para o amigo com

os olhos secos, disse: agora não posso, e Pablo respondeu que estava

bem.

— Obrigado — disse Gaspar passado um bocado, depois de respirar

fundo várias vezes, estaria a tentar não chorar ou a acalmar-se? Pablo

não percebia, não conseguia compreender como se sentiria alguém

maltratado daquela maneira pelo pai. — A sério. Se não fosses tu, não

sei o que teria acontecido.

— Tinhas apanhado um táxi.

— Talvez. A ideia do cinto foi genial.

Disse-o sem sorrir. Pablo pensou que nunca mais o voltaria a ver

sorrir.

— Se não fosse o cinto, ias à merda. Ainda estás enjoado?

— Um bocado.

Lidia voltou a entrar, quase batendo com a porta. Vamos lá ver,

disse, e mediu o pulso a Gaspar. Vamos para tua casa, a Betty diz que o
teu pai chegou há um bocado. O braço para cima, não o deixes

pendurado, já te explicaram isso.

Antes de seguir Lidia, Pablo deteve Gaspar apoiando-lhe a mão no

ombro do braço saudável.

— Tens a certeza de que queres ir para casa?

— Não tenho medo dele.

— Como não tens?

— Isto é entre mim e ele. Pablo: se disseres alguma coisa, não te

mato, mas nunca mais te falo na vida.

E, dizendo isto, saiu do quarto com o braço para cima, o cinto no seu

devido lugar e as calças, já secas, manchadas de sangue.

Gaspar enjoou um pouco com o balanço do carro, mas não disse nada a

Lidia. Pablo fora-se embora de mota. Vemo-nos depois, prometeu-lhe,

mas não tinha a certeza de quando seria esse depois, não sabia bem

porquê, mas não sabia se voltaria a ver Pablo, se voltaria a sair de casa.

Agora não havia escapatória. Mas queria fugir. Queria ver o pai.

A porta estava entreaberta. Quando o carro parou, apareceu Beatriz,

a mãe de Adela. Sempre tão magra e ossuda. Estranhou vê-la lá.

Conhecia a mãe dele. De que teriam falado aqueles dois? Parecia um

pouco nervosa. Gaspar sentiu os joelhos a falhar quando viu o pai de pé

no corredor com cara de falsa preocupação. Teve de apoiar-se na parede,

e Lidia, que se apercebeu da tontura, levou-o devagar para a sala, para o

sofá. No andar de baixo, à exceção das três cadeiras da cozinha, não

havia mais nenhum lugar onde sentar-se, a não ser no chão. Betty saiu e

fechou a porta. Aquela mulher esconde alguma coisa, pensou Gaspar.

Porque será que só me apercebi disso agora, sendo tão óbvio? Se calhar,

a Adela até tem razão em relação ao pai. Os pais não deviam existir,
devíamos ser todos órfãos, crescer sozinhos, bastava alguém ensinar-nos

a fazer comida e a tomar banho desde pequenos, e mais nada.

Lidia aproximou-se do pai e Gaspar não conseguiu perceber o que

lhe dizia. O pai fingia ouvir e dizia obrigado, Gaspar conseguiu perceber

isso pelo movimento dos lábios, dizia que sim com a cabeça enquanto

recebia as caixas de remédios, desinfetante e até gazes. O pai tinha o

cabelo muito limpo e, como estava um pouco comprido, tentava pôr uma

fina madeixa loura atrás da orelha. Lidia apoiou-lhe uma mão no ombro

— quase teve de esticar o braço completamente para o fazer — e Gaspar

ouviu tudo o que precisares, sabes perfeitamente que estamos à tua

disposição, e ele, tão falso, a dizer que tinha visto a janela partida e o

sangue e que só percebeu o que acontecera quando Beatriz lhe contou.

— Estava na clínica. Parece uma anedota de mau gosto, isto tudo. Eu

a ir para o hospital e vocês a virem para cá.

— Tudo o que precisares, Juan, a sério.

— Vai ficar tudo bem. A enfermeira ajuda-nos.

Continuaram a falar nos mesmos termos durante algum tempo. As

tonturas tinham passado, mas Gaspar já não estava interessado no que

eles diziam. Sentiu o braço a palpitar de dor; não era muito forte, devido

aos analgésicos que lhe tinham dado, mas ardia. Iria piorar.

Quando fechou a porta, o pai limitou-se a grunhir. Em vez de se

aproximar de Gaspar, foi para o quarto: pelo caminho, atirou para o chão

o saco dos remédios e da gaze e do desinfetante.

Gaspar não ia deixar que se fosse embora. Não ia deixar que o

abandonasse na sala sozinho e com dores.

— Vem cá! — gritou, e deixou de sentir as dores e o efeito dos

calmantes no corpo, apenas a raiva o fazia tremer. Naquele momento,

podia matá-lo. Queria que o pai percebesse. — Diz qualquer coisa, filho

da puta!
Gaspar estava de pé na sala à espera do pai, que se virou muito

devagar. Sentiu vontade de se aproximar e de lhe esmagar a cabeça

contra a parede. Mas quando olhou para ele, a raiva diluiu-se e só lhe

apeteceu atirar-se para o chão e deixar de respirar.

— Onde é que tu estás, papá? Tu não és o meu pai. Ele gostava de

mim. Quem és tu?

O silêncio foi tão completo, que Gaspar pensou que o homem que

não podia ser seu pai já se devia ter ido embora.

— Estou vazio.

— Não. Não. Quero que me digas onde está o meu pai.

— Está aqui. Ainda está aqui.

Gaspar ouviu os passos aproximarem-se dele e estendeu o braço

saudável. Não me faças mais mal, por favor, disse. O pai sentou-se no

chão, ao seu lado. Gaspar sentiu o cheiro dele, reconheceu-o.

— És o que mais amo nesta vida, Gaspar.

— Então o que é que tu tens? Mata-me, papá, por favor, não tenho

medo.

Gaspar olhou o pai nos olhos e viu uma cobiça horrível, um desejo

completamente novo para ele, como uma cor desconhecida.

— Não me peças isso.

— É o que tu queres.

— Não. Não é o que eu quero.

Gaspar sentiu a raiva a crescer. Mentiroso, pensou. Estava a fingir.

Nem sequer lhe perguntara se o braço estava bem.

— Não te perguntei porque sei que está bem.

— Sai da minha cabeça — rosnou Gaspar.

— Estou sempre na tua cabeça, mesmo que não percebas. Não te

feches. Se te fechares, vai doer. Basta de dor, Gaspar.


E então, Gaspar sentiu algo que anos depois viria a recordar, mas

não sabia nomear: uma transfusão de sangue, água quente nas veias,

imagens que não se viam com os olhos. Viu-se a dormir com o pai numa

cama de lençóis brancos, com uma ventoinha. Muito antes, pequeno,

bebé, deitado no peito do pai, que lia um livro num ângulo impossível

para não o acordar. O assento traseiro de um carro. O barulho das

cataratas. Nadar. Os pais a dançarem ao lado de um gira-discos. Uma luz

negra na noite, uma mulher sem lábios, a mãe com uma camisola

alaranjada a brincar com ele num jardim, o pai a falar num quarto

escuro, os desenhos geométricos nos cadernos e a recordação de uma

casa húmida com pessoas em redor, e o teto manchado e o pai ao seu

lado a dizer que não com a cabeça. Cheiro a gasolina e risos na água. E,

sobretudo, com as imagens, aquele calor em todo o corpo que o fez

atacar o pai, bater-lhe com os punhos. O pai não repeliu o ataque e

Gaspar tentou furar-lhe os olhos, rasgar-lhe as faces até se cansar. E,

quando se cansou, deixou-se cair no chão e olhou para o teto, o

candeeiro a oscilar como se uma corrente de ar de uma janela aberta o

atingisse. Oxalá tivesse sido diferente, ouviu.

— As pessoas que gostam umas das outras não se magoam — disse

Gaspar.

— Isso não é verdade — respondeu Juan. — Magoei-te para te

salvar.

— Estás louco?

— É possível que, para ti, eu esteja louco, mas é demasiado tarde

para perceberes e eu não quero que percebas, filho. Estou preparado para

que tu me odeies. Gostava de morrer e de te deixar uma boa recordação

minha, mas é impossível, e acho que é melhor assim.

— Eu não te odeio — suspirou Gaspar. — Mas tenho medo de ti.

Porque é que me magoaste? Diz-me a verdade. Obrigaste-me a chupar o


teu sangue, papá.

— Era necessário. Todos os passos foram necessários para te

proteger.

— De quem, papá? É só de ti que eu tenho de me proteger! E se eu

contar isto a alguém? Podes ir preso por me magoares assim, não é a

mesma coisa que dares-me uma bofetada.

— Também estou preparado para ser denunciado por ti.

— Acabaste de mentir à Lidia.

— Podia contar-lhes a verdade. Não me importa.

Gaspar sentou-se. Há quanto tempo estaria ali, no chão, com o pai?

Há horas? O braço doía-lhe terrivelmente.

— Sempre tomámos conta um do outro, eu tomei conta de ti este

tempo todo. Não me devias ter feito isto.

— Eu vou continuar a proteger-te. Espera — disse Juan, afagando-

lhe suavemente a mão do braço ferido. — Não tenhas medo de mim.

Não precisas de ter medo de mim.

Juan apoiou a mão na ligadura e Gaspar retraiu-se, mas logo a seguir

a dor passou. Não pouco a pouco: desapareceu como se nunca tivesse

existido. O pai olhou para ele. Tinha os olhos ensanguentados. Parecia

morto. Está morto, pensou Gaspar.

— A ferida continua aí. Cuida dela como se te doesse, mas nunca

mais te vai doer. Não tomes analgésicos, não é preciso. Toma só os

antibióticos.

— Para onde foi a dor?

— Deixo isso à tua imaginação, filho.

Gaspar deitou-se no chão. Queria dormir sem sonhar, queria dormir

durante anos.
Estava sentado no degrau da porta de casa quando viu chegar o tio.

Reconheceu-o imediatamente: o ar de família era inegável, embora Luis

não fosse tão grande como o pai e tivesse alguns cabelos brancos. Era

mais velho, Gaspar sabia isso, devia ter uns quarenta anos. O tio acenou-

lhe com a mão e aproximou-se a correr. Tinha um blusão de penas preto

por cima de uma camisa aos quadrados e uma mala pendurada ao

ombro. Quando se aproximou, Gaspar viu que estava bronzeado, era

estranho o contraste com o cabelo louro, ainda mais claro por causa dos

cabelos brancos; também tinha bastantes rugas. Olharam um para o

outro durante uns segundos até o tio lhe sorrir e dar um abraço, e o

despentear, e disse-lhe estás enorme, contou-lhe que a última fotografia

que lhe mandaram tinha mais de três anos. A voz de Gaspar tremeu-lhe

quando disse:

— Há café desta manhã. Bebes café?

O tio disse que sim, mas antes olhou durante algum tempo para a

casa. Que maravilha, disse, e apontou para a porta de madeira, as

persianas de ferro pintadas de verde-escuro e, finalmente, as assinaturas

gravadas ao lado da porta principal: O’Farrell e Del Pozo.

— São dois arquitetos famosos — explicou-lhe. — Vives numa casa

fantástica.

Gaspar sentiu um pouco de vergonha quando o tio entrou porque o

interior não era fantástico. Parecia um lugar desabitado. Luis não disse

nada, mas olhou à sua volta, um pouco surpreendido. Nada de quadros

nas paredes, nem de móveis onde guardar as coisas, apenas o sofá

amarelo. Gaspar agradeceu-lhe o silêncio. A cozinha era mais

acolhedora e Gaspar pôs a cafeteira a aquecer.

— E o teu pai?

— Acho que está a dormir.


— Vou ficar por aqui uns tempos, miúdo, vocês não podem estar

sozinhos.

Gaspar respirou fundo antes de perguntar:

— Porque é que não vieste mais cedo?

O tio sorriu.

— Soube que telefonaste para o Brasil, à Mónica. O teu pai pediu-

me que só viesse quando ele me chamasse. Sabes que o teu pai não é

uma pessoa fácil. Separar-se também não é fácil.

— Imagino — disse Gaspar. A voz do tio acalmava-o. Era a mesma

que tantas vezes ouvira ao telefone e que lhe ligava no seu aniversário,

no Natal, às vezes no Dia de Reis, todos os anos, desde que tinha

memória. Não era um desconhecido para ele, embora só o tivesse visto

em fotografias. Estranhamente, não lhe telefonara na altura do Mundial.

Perguntou-lhe porquê.

— Mas eu telefonei! — disse o tio, rindo-se com o riso que Gaspar

também reconheceu, uma gargalhada curta e bastante alta, um pouco

gritada. — Mas nunca estava cá ninguém durante os jogos.

— O meu pai estava, mas não atende o telefone. Eu via os jogos em

casa de uma amiga, por superstição.

— Que pena, teria gostado de falar contigo.

Gaspar derramou um pouco de leite quando o estava a juntar ao café.

Pareceu-lhe esquisito que o tio bebesse café sem açúcar, mas não disse

nada.

— Partiste o braço?

Gaspar estava à espera da pergunta porque ainda tinha o braço meio

imobilizado. Faltava pouco para lhe tirarem os pontos. Não queria falar

daquele assunto com o tio. De tanto repetir a mentira, talvez um dia

acabasse mesmo por acreditar nela.


— Fiz um corte feio ao cair da escada abaixo. Depois mostro-te, a

escada tem uma janela e eu escorreguei e espetei o braço no vidro. Fui

operado e tudo.

— A sério? O teu pai não me disse nada.

É claro que não, pensou Gaspar. A cicatriz picava-lhe, repuxava-lhe

a pele; Gaspar coçou-se com cuidado por cima do penso. O tio bebia o

café: não suspeitava de nada, acreditara na história do acidente. E

suspeitaria porquê? Por via das dúvidas, continuou a falar. Contou-lhe

que na segunda-feira seguinte voltaria para a escola e que ainda não o

deixavam jogar futebol, embora não percebesse porquê, pois havia quem

jogasse clandestinamente e com coisas piores.

Não teve tempo de dizer tudo, nem de receber uma resposta, porque

ouviu os passos inconfundíveis do pai na sala, e, para seu espanto, a

entrar na cozinha. Era raro levantar-se da cama. E mais surpreendido

ficou quando viu o abraço, os olhos emocionados do tio, o corpo alto do

pai que, naquele gesto de carinho, parecia frágil. Saíram ambos da

cozinha; o tio indicou-lhe com um gesto que não demoraria e o pai nem

olhou para ele. Gaspar lavou as chávenas só com uma mão, porque não

podia molhar o braço magoado.

Vicky ficou admirada quando, ao voltar da escola, e na desarrumada sala

da sua casa, viu Luis, o tio de Gaspar, a beber mate com a mãe, que,

nesse dia e no seguinte, não trabalhava no hospital. A mãe apresentou-a

como «uma das melhores amigas do Gaspar» e Luis disse-lhe que já

ouvira falar dela. Vicky pensou que ele era uma versão mais velha e

mais amável do pai de Gaspar. A conversa importante já terminara,

apercebeu-se Vicky, porque agora falavam sobre a vida de Luis no

Brasil. Num bairro chamado Gamboa, perto de Santa Teresa. Que lindo,

dizia a mãe, e Luis respondia: mais ou menos, já não me parecia assim


tão lindo por causa das saudades. Falavam sobre o exílio, Luis dizia que

tinha saudades dos cheiros, da comida, que o Rio era uma cidade

maravilhosa, mas também muito melancólica. E este regresso também é

triste, disse, e olharam ambos para Vicky, mas ela pegou num

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cañoncito de doce de leite e não se mexeu.

— Estaria muito mais confortável num hospital — disse Lidia, de

repente.

— É o que dizem, mas ele prefere permanecer em casa enquanto

puder. Vai ser internado em breve.

A casa de Gaspar já era como um hospital. Vicky só lá tinha estado

uma vez, mas dava para notar a mudança. Estava quentinha, com os

radiadores ligados. Tinham comprado uma cama nova para Juan, onde

podia ser tratado mais confortavelmente, alta, com grades e uma

manivela para subir a cabeceira, e quando olhou de relance para o

quarto, viu que todos os remédios estavam arrumados em cima de uma

mesinha. A enfermeira dormia lá, a médica, quase sempre. Nos dias em

que não trabalhava no hospital, a mãe também ajudava. Vicky achava

bem, mas apercebeu-se de que, entretanto, ninguém prestava muita

atenção a Gaspar, que andava nas ruas de bicicleta, ou ia nadar, ou ia ao

cinema ver filmes atrás de filmes e parecia triste e magro, já nem sequer

ficava contente quando via um jogo e faltava à escola.

— O Gaspar não anda nada bem — disse Vicky.

Luis olhou para ela com a bomba do mate entre os lábios e os olhos

azul-turquesa muito atentos. Apoiou a cuia na mesa, acrescentou um

pouco de água quente ao mate e passou-o a Vicky.

— Está de rastos. É o pai dele. E, além disso, teve dois acidentes nos

últimos meses, que má sorte, coitado.

— Se calhar não se dão bem.


— O meu irmão nunca foi uma pessoa fácil e acho que o Gaspar está

a ter dificuldade em aceitar que vai ter de se despedir do pai.

— Vai adotá-lo?

— Trata-me por tu.

Vicky estava admirada com aquele homem que lhe falava com

seriedade e como se fosse uma adulta, olhava para ela com franqueza e

sabia preparar um mate maravilhoso.

— Já dei o primeiro passo, agora sou o tutor do Gaspar.

— O que é isso?

— Quer dizer que sou o adulto responsável por ele.

— Então, se calhar devias prestar mais atenção, porque não anda a

ser lá muito bem tratado.

Luis entrelaçou as mãos sobre as pernas e pensou antes de

responder.

— Olha, Vicky. Isso que disseste é verdade. Eu também gostava que

o Gaspar me ligasse mais, que passasse mais tempo em casa. Porque

ainda é pequeno. Cada qual lida com a morte de um pai ou de uma mãe

à sua maneira. A minha mãe morreu quando eu era pouco mais velho do

que o Gaspar. Foi uma doença terrível e eu também me tornei um pouco

rebelde. Tenho a certeza de que vocês, como amigos, o podem ajudar

mais do que eu, porque o conhecem melhor.

Vicky cruzou as pernas no sofá; estava com a suéter da ginástica.

— Não sei o que fazer — disse.

— Estás a ver? — disse Luis — Ninguém sabe.

Gaspar chegou tarde a casa. O pai já estava internado e a casa era tão

sossegada sem ele, sem o movimento das enfermeiras, sem o imperativo

do silêncio. Não sabia se lá estava o tio, que dividia o tempo entre a

clínica e as tentativas de estar com ele. Havia pizza no forno, mas estava
fria — e faltavam várias fatias —, e comeu-a na mesa da cozinha. Era

uma sorte: o café do parque tinha fechado sem aviso prévio e ele estava

com muita fome depois de passar a tarde toda no cinema. A porta do

quarto do pai estava entreaberta e, por uns instantes, julgou ver a sua

figura em cima da cama, mas eram sombras a mover-se.

Ouviu a porta, as chaves. Os passos que se seguiram ao barulho eram

do tio: decididos, rápidos, de ténis. Foram direitos à cozinha e, quando

Gaspar viu a cara dele, cansada e de sobrolho franzido, com uma

expressão algures entre a preocupação e a tristeza, pensou: vem aí uma

conversa. A conversa, pensou Gaspar.

O tio sentou-se numa cadeira da cozinha e pediu-lhe, por favor, um

copo com qualquer coisa fresca. Gaspar serviu-lhe sumo de maçã com

gelo. Ou seria melhor vinho? Tê-lo-ia dito.

— Queres vir à clínica comigo? Ainda não lá foste desde que o teu

pai foi internado.

— Para quê? Mudou alguma coisa?

— Estás tão revoltado, filho.

Luis mexeu o gelo no copo como se fosse whisky e disse:

— Alguma coisa mudou, sim. O teu pai já não está consciente. Teve

um derrame cerebral esta manhã. Sabes o que é?

— Não.

— Explicaram-me mais ou menos o que é, mas eu também não

percebo grande coisa. Na prática, quer dizer que não sabem se vai

acordar.

Gaspar sentiu os joelhos a tremer e, ao mesmo tempo, um alívio tão

grande, que não soube como reagir.

— Acho que seria boa ideia despedires-te dele. Não sabem se

consegue ouvir ou não. Dizem que o teu pai é imprevisível.


— Para que queres que eu me despeça dele, se nem sequer vai

perceber, estás a mentir — disse Gaspar, e não quis ouvir mais nada. Foi

para o quarto e fechou a porta à chave para que não o voltasse a

incomodar. Como era capaz de bater à porta, Gaspar deitou-se de

barriga para cima, pôs os auscultadores e um disco dos The Cure — que

já estava na aparelhagem: virava-se sozinho — e, na escuridão, chorou

tentando não fazer barulho, até adormecer com a música na cabeça, e

sonhou que o pai estava a falar com ele com uma faca enorme nas mãos,

como as dos caçadores, sentado na sua cama de moribundo, e que

cortara as próprias pálpebras, provavelmente com a faca, embora não

houvesse sangue no sonho, apenas os olhos amarelos do pai abertos e,

em cima dos lençóis, as pestanas louras coladas a restos de pele seca.

Não conseguia perceber o que é que lhe tentava dizer, e essa era a

parte mais angustiante do sonho, porque parecia importante.

Aquele sábado era o dia prometido. Tinham combinado encontrar-se

diretamente na casa da Rua Villarreal, no pátio seco da entrada, depois

do lanche. Gaspar disse que preferia entrar com luz, às seis da tarde já

estava escuro, mas não lhe fizeram caso e ele não insistiu. Há dois dias

que o pai não acordava. Acabara por ir visitá-lo à clínica; o tio deixou de

insistir, mas ele resolveu ir. Estava sozinho num quarto de cuidados

intensivos especial, exclusivo para ele. Gaspar sentou-se na cama. O pai

tinha os olhos fechados. Abriu-os. A pupila do lado direito estava fixa e

preta, como se fosse um escaravelho. A outra estava normal. Tocar no

corpo dele era como tocar em argila. Não conseguia acreditar que se

tivesse apagado daquela maneira. Não estava morto, mas também não

estava completamente vivo, e embora Gaspar continuasse zangado, teria

gostado de falar um pouco com ele, talvez pela última vez, de lhe dizer

que não o perdoava, mas que gostava dele, será que ia morrer sem poder
falar antes com ele? Ter-se-ia acabado assim, tão repentinamente?

Quando o pai fez um movimento quase impercetível, Gaspar aproximou-

se dele, aliviado, ainda não estava morto. Mas era apenas aquela maneira

tão estranha de respirar, afinal não se mexera mesmo: passava quase um

minuto sem respirar, literalmente, e, de repente, inalava ar como se se

lembrasse de que tinha de o fazer, e então começava a respirar depressa,

de maneira agitada, para depois deixar de respirar outra vez. Não abria

os olhos, mas será que o podia ouvir? Agachou-se para lhe falar ao

ouvido e disse-lhe: acorda, papá. Deu-lhe a mão, mas não obteve

nenhuma resposta. Quando saiu do quarto, o tio estava à espera dele lá

fora, e Gaspar perguntou-lhe se reparara na respiração dele. O tio disse-

lhe que sim e passou-lhe uma mão pelos ombros, mas Gaspar afastou-o.

Não queria que lhe tocassem. Onde estavam Esteban e Tali, se eram

assim tão amigos dele, porque é que o tinham deixado sozinho? Na

sexta-feira de manhã, antes de ir para a escola, Gaspar passou pelo

quarto e julgou ver o pai morto na cama, tão imóvel, o sol entrava pelas

frestas, e ficou na porta até a imagem se desvanecer. Sim, iria viver com

o tio, e gostava dele, que era tão diferente e tão parecido com os pais dos

amigos, mas sentiu-se expulso da sua verdadeira casa, uma casa que não

conhecia de todo ou na qual lhe deixavam entrar apenas nalgumas

divisões, uma casa secreta que era completamente sua. Sentiu que lhe

tinham fechado a porta na cara, que o tinham enviado para um mundo

diferente onde seria criado por um desconhecido, como n’A Guerra das

Estrelas.

Chegou demasiado cedo ao encontro na casa da Rua Villarreal. Pelo

caminho, viu alguns rapazes a jogar futebol na rua e um grupo de

raparigas a jogar ao elástico. Era sábado à tardinha, os dias estavam a

ficar mais quentes e o céu parecia pintado, sem nuvens, e escurecia

primeiro em azul antes de chegar o negro da noite. Gaspar trazia na


mochila um ferro comprido que pedira na loja dos pneus para usar como

pé de cabra. Pablo ficara de trazer a lanterna, Adela, as chaves para o

cadeado, e Vicky, nada, porque, de repente, estava contra a ideia de

entrarem na casa. Disse-o muito claramente: tenho medo, há qualquer

coisa dentro daquela casa, que não sei se tem, ou não, alguma coisa a ver

com o pai da Adela, mas não quero saber. Então, não entres, se não

quiseres, disse-lhe Gaspar. Não vos vou deixar sozinhos, respondeu

Vicky, mas oxalá a porta não se abra.

A porta abrir-se-ia, Gaspar tinha a certeza.

Sentou-se no passeio à espera dos outros e acendeu um cigarro. Do

ponto onde estava não conseguia ver a casa, nem a porta, mas conseguia

imaginá-las.

Lembrava-se de, na Costanera, o pai lhe ter pedido para abrir o

portão de ferro para irem até à praia espalhar as cinzas da mãe. O que é

que ele fez? Limitou-se a obedecer. Achava que podia fazer o mesmo

sem o pai. O pai, que também seria cremado. Ninguém era cremado.

Porque é que os pais dele sim? Fez esta pergunta ao tio que, claramente

incomodado, lhe disse que lhe parecia um costume saudável, embora ele

preferisse a terra, o túmulo. Além disso, as cremações eram caras, mas

isso não era um problema. Perguntou se iam ficar com as cinzas e o tio

disse que podiam fazer o que quisessem. Que o pai lhe dissera: quando

as espalhares, atira-as ao rio. Mas, enquanto estiverem na mesma casa

que Gaspar, ele que decida. Outra vez a caixinha de cinzas numa

prateleira. Ser órfão era isso: ter caixinhas de cinzas e não saber o que

fazer com elas.

Adela foi a primeira a chegar. Trouxera as chaves. Sentou-se ao lado

de Gaspar, no passeio: trazia umas calças de ganga um pouco grandes e

uma suéter cor-de-rosa de mangas compridas. Pablo chegou depois, com

Vicky. Gaspar percebeu que estava assustada; de todos, era a que tinha
mais medo. Claro que ela fora a única a ouvir o zumbido da casa;

Gaspar também o tentara ouvir, mas, para ele, a casa estava em silêncio.

— Não entrem. Por favor — disse Vicky.

— Se não quiseres, não venhas — disse Adela, irritada,

aproximando-se da porta com a chave do cadeado na mão. Gaspar

deixou-a tentar abri-lo, deixou-a observar o cadeado e fazer várias

tentativas durante algum tempo, embora soubesse que, mesmo que fosse

possível abri-la, ela não seria capaz de o fazer apenas com uma mão.

Deixou que tentasse até ficar com demasiada pena dela. Pensou no pai,

em como estava a morrer sozinho numa cama de hospital, a respirar só

de vez em quando, e disse vá, vamos entrar de uma vez por todas nesta

casa, o que é que nos pode acontecer; se a Adela acha que há alguma

pista lá dentro, temos de ir ver se tem razão; vamos descobrir o que é

esse zumbido, porque é que as pessoas têm medo desta casinha de

merda, o que é que se esconde cá dentro, eu consigo abri-lo, eu consigo

entrar no que está escondido, sempre consegui, mas não sei se quero

viver assim, o meu pai terá vivido assim?

Foi a correr para junto de Adela e, com delicadeza, cobriu com o seu

próprio corpo as mãos e o cadeado, bloqueou a visão dos outros para

não se aperceberem de que nem sequer tentara, de que bastou pegar nele

para a porta se abrir à mínima pressão.

— Tinhas razão — disse ele a Adela, tentando disfarçar as gotas de

suor que começavam a perlar-lhe a testa e a escorrer-lhe pelas costas. O

seu corpo não fizera nenhum esforço, mas comportava-se como se

estivesse esgotado após uma corrida: o coração batia com força e muito

depressa. Essa chave abre tudo. Agora, só falta a porta. Passa-me a

mochila.

Adela deu-lha: Gaspar evitou olhá-la nos olhos. Ela olhava para ele

com ar apaixonado. Olhava para ele como quando lhe oferecera a caixa
que a ajudaria a mitigar o desconforto causado pelo braço fantasma.

Porque é que fazia coisas por Adela? Gostava dela, era sua amiga, não

era por ter pena dela. Mas era como se lhe devesse um favor. Pôs o pé de

cabra na porta. Era de ferro, não parecia a original, provavelmente

tinham trocado a de madeira para proteger melhor a casa.

— Queres ajuda? — perguntou-lhe Pablo. — Não te dói o braço?

— Um bocado, mas estou bem — mentiu Gaspar. O braço estava

curado. Não tinha sensibilidade em dois dedos, mas iria recuperá-la,

conseguia mexê-los, mas sentia-os menos do que os outros. Eram dedos

fantasma. Dedos fantasma no braço direito, o que faltava a Adela.

Gaspar fingiu estar a fazer força, apertou os dentes, pressionou o pé

de cabra. Mas não era verdade, limitara-se a apoiar o ferro na fenda da

porta. Já estava aberta. Deu-lhe um grande pontapé para que parecesse

que o movimento fora o mesmo, que o pontapé acompanhou o esforço

dos braços e do pé de cabra. Quando a porta se abriu, retrocederam

todos. Gaspar teve de se agachar para respirar e tentar acalmar-se: uma

vez mais, o esforço não fora físico, mas o corpo reagia como se tivesse

acabado de empurrar alguma coisa muito pesada. E, por causa desses

minutos que demorou a recuperar, não viu o que fez retroceder os

outros.

No interior da casa havia luz.

Adela entrou, decidida. Gaspar seguiu-a e percebeu que os outros

dois vinham atrás dele. Vicky deu-lhe a mão e ele apertou-a. O que

estavam a ver era impossível porque a luminosidade parecia elétrica.

Porém, não havia candeeiros no teto: havia buracos com fios velhos a

espreitarem que nem galhos secos. Também cheirava a desinfetante.

Tinha qualquer coisa de hospital, pensou Gaspar, e não disse nada. Ao

pé da porta, do lado de dentro, havia um telefone preto, velho. Estava

desligado, dava para ver o fio cortado, mas Vicky disse a Gaspar, ao
ouvido: Ai, espero que não toque. Pablo, um pouco mais afastado,

rodopiava olhando em seu redor.

— É demasiado grande — disse, sem olhar para eles. — A casa. É

maior por dentro do que por fora.

Tinha razão. A sala, o hall da entrada ou o que quer que fosse aquela

primeira divisão, parecia um salão vazio e tinha três janelas, embora, do

lado de fora, só se vissem duas. Só havia duas. Gaspar sentiu as unhas

de Vicky a espetarem-se na pele do braço, do saudável, ela tinha

cuidado, nunca lhe dissera que não tinha dores, nem a Pablo, mesmo que

ele soubesse o que tinha acontecido. Depois, disse em voz alta:

— Vamos embora. Está a zumbir.

Agora Gaspar também ouvia, embora de maneira muito ténue, numa

frequência muito baixa, como quando a aparelhagem ficava ligada e

vibrava de modo quase impercetível. Era como se, atrás das paredes,

vivessem colónias de bichos ocultos sob a tinta. Bichos pequenos,

provavelmente alados. Traças. Escaravelhos pretos. Pensou que, a

qualquer momento, a tinta cor de pintainho, muito clara, se fosse

descolar e deixar sair os bichos a voar, imaginava muitas traças, esses

animais que, quando os apanhamos, se transformam em cinzas.

Ser órfão é carregar com cinzas.

Adela ia à frente, entusiasmada, sem medo, adentrava-se na casa

iluminada pelo seu sol privado, a casa que era outra por dentro. Pablo

pedia-lhe espera, espera; mas ela não lhe dava ouvidos. A vibração

atraía-a. A luz, que não era elétrica, ou, pelo menos, não procedia de

nenhum candeeiro no teto, fazia-a parecer dourada.

Seguiram-na até à sala seguinte, que tinha móveis. Sofás sujos cor de

mostarda, acinzentados pelo pó. Havia estantes de vidro nas paredes.

Estavam muito limpas e cheias de bibelôs. Adela aproximou-se para ver

o que eram: chegavam quase ao teto. Na prateleira inferior havia uns


objetos brancos amarelados em forma de semicírculo. Alguns eram

arredondados, outros, mais pontiagudos. Gaspar ganhou coragem para

tocar num, mas largou-o logo a seguir, enojado.

— São unhas.

Vicky desatou a chorar. Pablo e Adela continuavam a olhar. Gaspar

observou-os. Estavam estranhos. Fascinados, mas como se tivessem

acabado de acordar, estremunhados. Ele e Vicky não, estavam alerta. A

sensação de que algo terrível ia acontecer era claríssima, pelo menos

para ele, mas deixou-se levar. A casa procurara-os e lá estavam eles,

entre os seus dedos, entre as suas unhas. A segunda prateleira estava

decorada com dentes. Molares com chumbo preto no meio, tratados;

depois, os caninos. A seguir, as favolas, ou, como lhe tinham ensinado

na escola, os incisivos. Dentes de leite, pequenos. Gaspar adivinhou o

que havia na terceira prateleira antes de olhar para ela, era óbvio.

Pálpebras. Expostas como borboletas, igualmente delicadas. Com

pestanas curtas ou escuras e compridas, ou, ainda, sem elas.

— Temos de levá-los — disse Adela, excitada. — Podem ser do meu

pai!

Gaspar impediu-a. Deteve-a com a mão antes de ela tocar nos

delicados restos humanos das prateleiras. E, então, fechou-se uma porta

do interior da casa. Gaspar recordaria esse som durante anos, claríssimo.

Uma pancada firme, não uma rajada de vento. Uma porta a bater com

força, sem ranger. Um som seco e definitivo. De que zona da casa viria?

Era impossível perceber de onde estavam. Vicky ficou histérica e queria

correr, mas não sabia para onde. Pablo agarrou-a pela cintura, mudo.

Gaspar olhou para ele com admiração e responsabilizou-se por Adela.

Olhou-a nos olhos — olhos escuros e ofuscados — e disse-lhe, muito

claramente:

— Agora vamos tentar sair daqui. Está alguém cá dentro.


— Não fales em voz alta — sussurrou Vicky, e Gaspar pensou as

coisas têm de ficar claras porque agora temos de nos salvar. Sentia-se

frio e decidido. Tinha o ferro na mão e sabia que era capaz de usá-lo.

— Vicky, já sabem que estamos cá.

— Não devíamos ter entrado — disse Pablo e, nesse instante, Adela

foi a correr para a outra divisão da casa. Gaspar tentou impedi-la, mas

ela conseguiu escapar. Foram atrás dela. Custava um pouco correr

naquela casa, era como se estivesse mal ventilada, como se houvesse

falta de oxigénio. Nenhum deles lhe gritou que parasse, mas também

não a deixaram sozinha. A assoalhada seguinte era uma espécie de sala

de jantar: ao fundo, via-se o que restava de um fogão enferrujado. Não

havia mesa. E o que havia não fazia sentido. Um livro de medicina, de

folhas acetinadas, aberto no chão. Um espelho pendurado perto do teto,

quem se refletiria lá? Uma pilha de roupa branca, aparentemente limpa,

bem dobrada. Lençóis. Adela ia pegar num, mas Gaspar deteve-a com

tanta firmeza, que quase lhe deu uma estalada. Não devemos tocar em

nada, pensou. Era como se tudo fosse radioativo. Era como Chernobil.

Se tocar na casa, nunca mais nos deixa sair, vai ficar colada a nós. Disse-

o em voz alta. Tinha medo de que a presença na casa ouvisse a sua voz,

mas não tinha alternativa. Era impossível esconder-se.

— Não toquem em nada. Estou a falar a sério.

Só tenho de a tirar daqui, pensou. Se for preciso, arrasto-a, mas tem

de ser. Ele também sentia, embora com menos intensidade do que

Adela, a atração: tinham de ir embora e não queriam ou alguma coisa os

impedia.

— Porquê? — perguntou ela. — Algumas coisas podem ser do meu

pai!

— Não conheces o teu pai.


— Aqueles dentes podem ser dele. Se calhar, tiveram muita gente cá

dentro. Muita gente. Tu e eu lemos que os militares usavam casas

comuns para torturar pessoas. Se calhar, usaram esta sem ninguém saber.

Aqui há partes de muitas pessoas.

Adela disse-o num tom que espantou Gaspar. Lembrou-se de Omaira

na lama e nos seus olhos de barata, lembrou-se das pupilas do pai,

pensou num mundo de vidros pretos e brilhantes. Aqui há partes de

muitas pessoas. Não fora Adela a dizer aquilo, alguém estava a usar a

sua voz. Quem falava através dela?

— Temos de sair — disse Gaspar.

Adela tremeu sob a luz artificial. Gaspar sentiu que estava num

teatro: soube que estava a ser observado. E quando ela desatou a correr e

entrou num corredor situado ao pé do fogão enferrujado, naquela casa

que, por dentro, parecia não ter fim, deteve-a. Atirou-a para o chão e

ouviu o queixo dela a bater. Ela contorceu-se debaixo dele e, com uma

força inexplicável, conseguiu libertar o seu único braço e enfiar-lhe os

dedos nos olhos. Um segundo depois, libertara-se. Gaspar mal queria

acreditar. Ele devia ter, pelo menos, mais quinze quilos do que Adela, e

era forte, nadava, sabia lutar. No entanto, não podia com ela.

Porque não estava a lutar com ela, pensou, estava a lutar com a casa.

Ou com o dono da voz.

Vicky também tentou detê-la e não conseguiu. Pablo limitou-se a

correr atrás dela, a arfar. Depois, os três seguiram-na por um corredor

largo que tinha várias portas de cada lado, um corredor tão comprido,

que parecia impossível naquela casa tão pequena, metros e metros, com

um chão de madeira um pouco sujo, mas não abandonado, e as paredes

forradas com papel de parede com flores de lis. Os três viram Adela

abrir uma porta que devia dar para um quarto. Parecia um corredor de

hotel, pensou Gaspar. Antes de entrar, ela virou-se e acenou-lhes com a


única mão que tinha. Ninguém a impediu, porque tencionavam segui-la.

Não podiam imaginar que, depois de acenar, ela fecharia a porta. Ou que

alguém fecharia a porta.

Gaspar soube, então, quando viu desaparecer o seu cabelo amarelo

na escuridão — o quarto onde ela entrou estava às escuras —, que não

conseguiria abrir aquela porta. Que estava fora do seu alcance. Sentia-o

no corpo e na mente com uma claridade luminosa. Primeiro, foi Vicky

que a tentou abrir: a maçaneta mexia-se, mas apenas isso. Nenhum deles

ouviu um barulho de chaves. A seguir, tentou Gaspar, embora soubesse

que era inútil. Tentaram os três, sem pensar na presença, naquele alguém

que podia estar na casa. Usaram o ferro, deram pontapés, correram e

atiraram-se contra a porta, como tinham visto fazer nos filmes. Não

havia maneira de a abrir.

— Temos de ir buscar ajuda — disse Pablo, e, nesse preciso instante,

como se se tivesse dado uma ordem, a luz apagou-se.

Vicky gritou, e depois começou a chorar muito e muito alto, e

Gaspar percebeu que o seu pranto vinha de baixo; sentara-se ou caíra,

não era fácil perceber no meio da escuridão, que era total.

— Dá-me a lanterna — pediu, e Pablo tateou-lhe as costas até dar

com o seu braço, e Gaspar pegou nela e ligou-a. A luz era pouca, mas

teria de ser suficiente. Pablo também chorava: reconhecia aquele choro

contido e baixo. Ele não tinha vontade de chorar. Teria de ser ele a tirá-

los dali, porque eles, sozinhos, não iam conseguir.

— Vicky — disse —, levanta-te e agarra-me pela cintura. Pablo,

agarra-te a ela, assim não nos perdemos.

— E porque é que nos havíamos de perder? — perguntou Vicky, e na

sua voz havia uma nota de menina pequena, de terror tão paralisante que

Gaspar lhe apertou um braço e permaneceu agarrado a ele com a mão

que tinha livre, enquanto tentava empunhar a lanterna. Metera o ferro no


bolso, que devia ficar de fora, embora, na escuridão, não o conseguisse

ver. Não respondeu a Vicky. Era óbvio porque é que se podiam perder:

as paredes do corredor já não estavam ali. Aquilo já não era um

corredor. A hipótese de voltar a atravessar a sala das prateleiras (o que é

que haveria nas de cima?, corações, pulmões, cérebros, talvez cabeças?)

assustava-o, mas sabia que não deviam continuar a avançar pela casa

dentro. O que havia lá estava demasiado longe da rua, das casas, do

bairro, dos pais. Se Pablo percebeu que já não estavam num corredor,

não disse nada. Ouvia-o a fungar na escuridão. Até ouvia o seu próprio

coração tão acelerado, que às vezes se esquecia de bater. Levantou a

lanterna até à altura do pescoço e iluminou o que já não era um

corredor. Sentia o hálito de Vicky na orelha e ouviu-a dizer:

— Liga a lanterna, por favor, por favor.

Ficou surpreendido. Teria os olhos fechados?

— Está ligada — disse.

— Não mintas, anormal! Não vejo nada.

Pensa depressa, pensa depressa, disse a si próprio Gaspar. Se

perceber que a lanterna está ligada e, mesmo assim, não consegue ver

nada, vai pensar que ficou cega. Se fingisse que não tinha pilhas ou que

não estava a funcionar, ela ficaria chateada com Pablo. Se Pablo fosse

capaz de ver, talvez percebesse o suficiente para ficar calado. Era melhor

assim. Era melhor uma Vicky furiosa do que aterrorizada.

— Eu também não vejo nada — disse Pablo. Já não chorava. Gaspar

sentiu que confiava nele, que não tinha de tomar conta dele. Não

conseguia perceber porque é que os amigos não viam. A lanterna

iluminava pouco espaço, mas muito bem. Notava-se que as pilhas eram

novas. Era o tipo de pormenor que Pablo nunca teria deixado escapar.

— É que se apagou. Vicky, fica descansada, que eu ainda consigo ver

qualquer coisa.
Ela nunca se comportava como uma criancinha. Por isso, era tão

fácil ser seu amigo. No entanto, agora estava histérica. E começou a

dizer em voz alta, mesmo na orelha de Gaspar:

— É que não aguento mais o zumbido, e o pior é que agora estão a

falar! Não estão a ouvir alguém a falar?

Era por isso que se estava a portar assim, pensou Gaspar. Vicky não

se descontrolava facilmente: estava a ouvir coisas, o que lhe estava a

acontecer era diferente do que ele ou Pablo sentiam. Estava fechada na

sua própria cabeça, além de na casa. Gaspar não ouvia absolutamente

nada. Nem o zumbido — que ouviu ao entrar e agora desaparecera —,

nem, como era óbvio, uma voz. Gritou na escuridão:

— Pablo, estás bem?

— Estou — disse Pablo, hesitante. — E também não estou a ouvir

nada.

— Bom, agarra na Vicky e andem. Eu guio-vos, vocês limitem-se a

andar. Não me larguem.

E vou deixar de vos ouvir, pensou Gaspar. Porque, ao apontar a luz

para os lados, vira as paredes cobertas de trepadeiras e musgo. E,

quando as iluminou melhor, entre as plantas viu umas coisinhas brancas.

Ossos. Alguns muito pequeninos. De animais, pensou. De frango. Pelo

menos, agora parecia-se mais com uma casa abandonada. Mexeu a

lanterna e viu um piano preto e, perto dele, algo parecido com

manequins pendurados no teto. O chão estava cheio de velas gastas e

disse em voz alta:

— Tenham cuidado, está escorregadio.

Vicky e Pablo não perguntaram porquê; o mais provável era estarem

a imaginar qualquer coisa horrenda, mas Gaspar não pôde sossegá-los

dizendo que era cera, porque a lanterna iluminou uma janela e o que

havia do outro lado era impossível. Gaspar não queria parar para ver,
mas fê-lo: do lado de fora do vidro sujo via-se a Lua sobre as árvores,

muitas árvores, uma floresta quieta, como se a casa estivesse numa

colina, num lugar mais alto do qual se visse aquela paisagem, aquele

panorama. A floresta não lhe pareceu bonita. Também pode ser um

quadro com muitos pormenores, pensou. Um quadro de uma janela que

dava para uma floresta. Era isso. Mas o quadro parecia ter qualquer coisa

de desagradável, parecia uma armadilha. Toda a casa era uma armadilha.

Deixou de iluminar as paredes. Ou o chão. Apontou a lanterna para a

frente, e por vezes tinha a certeza de que, se estivesse alguém na casa, a

dada altura tirar-lhe-ia a lanterna da mão, bater-lhe-ia (bater-lhes-ia) e

arrastá-los-ia até um daqueles quartos escuros, como o que Adela

escolheu. Porque é que lhes acenara assim? Fora um gesto tão

pequenino, uma despedida.

E se tivesse sido o pai de Adela a bater com a porta algures na casa?

E se ainda estivesse vivo? E se não fosse um desaparecido, mas um

assassino em série? Pablo deu um pequeno grito na escuridão e Gaspar

perguntou o que foi, o que é que tu tens.

— Alguma coisa tocou em mim. Nas costas — disse Pablo.

— Basta — disse Gaspar. — Vamos sair. Não te vires.

Vicky não disse nada. Teria ouvido Pablo? Era impossível que não.

A lanterna iluminou uma escada de madeira com um corrimão muito

bonito: ia dar a um piso superior. O problema, claro, era que a casa da

Rua Villarreal não tinha andar de cima.

— Estás a ver a porta? — perguntou-lhe Vicky. Tinha o hálito muito

quente e cheirava a moedas. Mas já não parecia tão assustada. As mãos

dela apertavam-no com tanta força, que o magoavam um pouco.

— Já chegámos — respondeu Gaspar, e pensou: a Adela ficou

fechada nesta casa, o Pablo está prestes a ter um irmão e a Vicky é

muito amada. Basta, pensou. Papá, dá-me a porta. Temos de sair.


— Vicky, estás a ouvir alguma coisa?

— O zumbido, mas menos.

Gaspar repetiu sem mexer os lábios: papá, dá-me a porta, e sentiu a

respiração a humedecer-lhe a nuca, as costas, e continuou a andar.

A lanterna iluminou a porta, totalmente aberta. Tê-la-iam deixado

assim, de par em par? Não importava. Despachou-se sem dizer nada, por

via das dúvidas, e sentiu o alívio de Vicky quando também viu as luzes

da rua, a noite lá fora, e se desprendeu da sua cintura e foi a correr para

a rua, a salvo. Pablo fez o mesmo, instintivamente. Gaspar apagou a

lanterna e olhou para a casa. Por fora continuava na mesma. Pequena,

feia, cinzenta, de janelas tapadas. Escura. Deu a lanterna a Pablo. Não

conseguia falar. Vicky estava diferente, agora: o cabelo comprido,

despenteado, dava-lhe um ar adulto. Abraçou-o depressa, mas com

força, e disse-lhe estás todo suado, e depois obrigada, obrigada. Lá fora,

continuava a ser decidida.

— Vamos para minha casa, para chamar a polícia. Têm de tirar a

Adela de lá.

E, dizendo isto, foi-se embora a correr, direita a casa; Pablo e Gaspar

foram atrás dela. Tens a certeza de que te tocaram?, perguntou Gaspar, e

Pablo, sem deixar de correr, mas olhando-o nos olhos, disse que sim e

que não. Que podia ter sido fruto da sua imaginação. Vais contar a

verdade?, perguntou Pablo, e Gaspar disse que sim. Ia contar o que vira

até Adela entrar no quarto. Não ia falar da luz da lanterna que os outros

não tinham conseguido ver, nem da escadaria grandiosa e do piano, nem

de que abrira a porta sem esforço, como se esta lhe obedecesse, como se

estivesse à espera dele.

Foi ele que levou Adela para lá. Tinha a certeza. Entregara-a à casa.

Não conseguiu detê-la quando desatou a correr, uma rapariga leve como

um brinquedo, uma rapariga sem um braço, ele, que já era grandalhão,


não conseguira impedi-la só porque ela lhe enfiou um dedo no olho!

Agora a culpa torcia-lhe o peito por dentro, agora sabia que a única

pessoa que lhe podia dizer onde estava Adela e quem a levara era o pai,

e o pai nunca mais falaria com ele.

Tudo o que aconteceu depois, para Gaspar, parecia coberto por uma

espécie de nevoeiro. Como se tivesse esfregado os olhos até os deixar

meio cegos. E como se essa cegueira parcial, essa bruma cinzenta, se

tivesse estendido a todo o corpo. Uma distância entre ele e os outros,

entre o que diziam e faziam os outros, como se estivesse a ver um filme

com o volume baixo atrás de fumo.

O tio estava zangado por terem entrado na casa. E por ter sido

obrigado a ir com ele falar com os polícias, com o juiz de menores, com

outras pessoas que Gaspar não conhecia. Betty desmaiou quando lhe

deram a notícia do desaparecimento de Adela: foi até à casa, bateu com

a cabeça nas paredes e na porta, arranhou os tijolos que cegavam as

janelas. Alguém disse a Gaspar que a porta estava novamente fechada. E

também que Betty o culpava a ele, que gritara a culpa é do filho do Juan,

foi ele que a levou lá, foi ele que a entregou. Não estranhou: Betty tinha

razão. Mas ele já não podia responder. Porém, falou, embora pouco, com

os polícias e com as pessoas do tribunal, que chegaram muito depois, de

madrugada.

Viu o pai entre uma coisa e outra. Continuava imóvel. Quantos dias

teriam passado? A doutora Biedma disse-lhe que estava em coma, que

era definitivo, que não ia acordar. Gaspar não soube o que dizer. Tinha

de falar com o pai. Deixaram que se aproximasse dele. Estava

completamente quieto, a não ser pela respiração, que continuava

estranha, espaçada. Disse-lhe ao ouvido: se me estás a ouvir, diz-me

onde ela está. Porque é que não consegui abrir aquela porta, se consigo
abrir outras, quem é que a levou. Como é que a tiramos de lá. Porque é

que eu a levei para lá. E esperou, sinceramente, que aquilo o acordasse,

mas esperou em vão. O pai tinha os lábios secos e ensanguentados,

quase roxos. Também os dedos estavam azulados. Tinha os braços

cobertos de nódoas negras, e também o peito, nódoas negras grandes, e

parte da pele queimada. Tinham tentado reanimá-lo.

Não quero ir à escola, disse Gaspar ao tio, e ele respondeu: está bem.

Sentia o corpo de Adela sob o dele, a contorcer-se, quase de borracha, e

os dedos dela no seu olho, mas sabia, sabia que, se se tivesse esforçado

um pouco mais, ela não teria escapado. Foi ele que a deixou escapar.

Quando não o chamavam para falar com algum polícia ou com alguma

outra pessoa num gabinete (seria juíza?, seria psicóloga?), Gaspar

permanecia numa cama ao lado da do pai. Deixavam-no ficar lá. O

barulho do monitor cardíaco impedia-o de dormir, mas não queria sair

do quarto. O tio tinha de insistir para ele tomar banho e comer qualquer

coisa. Numa das suas saídas da clínica, soube que Betty se tinha ido

embora, que não estava em lado nenhum, como podia fazê-lo

precisamente agora que a filha desaparecera, e Gaspar fechou os olhos.

Se calhar, fora buscar Adela. Tinha de voltar para junto do pai porque,

mesmo que só acordasse durante um, dois segundos, dir-lhe-ia onde

estava Adela ou o que fazer para a encontrar. Olhara para os olhos dele

outra vez. Agora estavam ambos completamente pretos, como se

refletissem o céu de noite. Como os de Omaira, a rapariga com que

Vicky continuava a sonhar.

O tio sentou-se a seu lado enquanto ele devorava umas empadas no

restaurante da clínica, que era tão giro e tinha um menu tão bom como o

de um restaurante comum. Notava-se que não sabia o que dizer-lhe,

primeiro, pediu-lhe desculpa por se ter zangado, disse-lhe que

«percebia», que eram «travessuras», que era normal tentar «evadir-se»


do que estava a acontecer. Tio, disse-lhe Gaspar, deixei escapar a Adela.

Tentei segurá-la, na casa, mas ela soltou-se. Deixei-a ir. Ela queria entrar

lá e eu levei-a e foi um erro, mas, sobretudo, deixei-a ir. A culpa não é

tua, não faças isso a ti próprio, disse-lhe o tio. Alguém a levou. E a culpa

foi minha, disse Gaspar. De quem mais seria a culpa?

Voltou para junto do pai. Se ainda não morreu, é porque quer falar

comigo, pensou. Agachado, insistiu: tu sabes onde ela está. Tu sabes

onde a posso encontrar. Tu ajudaste-me a encontrar a cadela. É a última

coisa que te peço. Deves-me isto. Abre os olhos. Eu consegui abrir a

porta, a primeira, mas não a segunda. Porque é que eu posso abrir umas

portas e outras não? Tens de falar comigo.

Pablo foi vê-lo. Por ele, saiu do quarto do pai e sentou-se no

restaurante. Pediram café com leite. Pablo contou-lhe que a polícia

entrara numas vinte casas. Que também entrara na dele. Rusgas. Depois,

disse-lhe que a polícia não encontrara portas na casa, nem nada. E que

ninguém acreditava neles. Dizem que o que vimos lá dentro foi uma

ilusão ótica. Uma coisa do choque. Não acreditam na história dos

dentes. Parece que encontraram roupa na casa, roupa nova, e acham que

deve pertencer ao tipo que levou a Adela. Dizem que, se calhar, o tipo

acendeu a luz da casa para nos atrair. Dizem que a Adela foi sequestrada

por alguém. Seria o tipo que estava dentro da casa?

— Não sabemos se havia alguém na casa — disse Gaspar. — Aquela

casa é uma armadilha. Vivemos um filme. Vou voltar para junto do meu

pai.

— Espera… — disse-lhe Pablo, e continuou a falar: — um canal de

televisão foi lá ao bairro entrevistar os vizinhos, até o Hugo.

Entrevistaram a Vicky depois de ela prestar declarações no tribunal.

Andam a falar sobre a Adela na televisão. Não viste?

— Não tenho visto televisão.


— Querem entrevistar-te porque eu disse que foste tu que nos tiraste

de lá.

— Não vou falar com ninguém.

Gaspar levantou-se sem tocar nos croissants. Viu Pablo agachar a

cabeça e, de repente, sentiu-se sozinho e, sem pensar, empurrou a mesa

para ficar perto do amigo que, pasmado, se levantou. Gaspar abraçou-o

com força e sem chorar. Tenho de voltar para junto do meu pai, disse-

lhe. Tenho saudades vossas. Da Vicky também, mas tenho de estar com

ele.

No quarto, sentado na cama, ouviu alguém dizer ao tio: o rapaz está

em estado de choque, está stressado, está deprimido. Gaspar escondera-

se debaixo da cama e, do chão, observava o que acontecia no quarto.

Nem sequer saía quando uma enfermeira vinha «higienizar» o pai, como

diziam. Chamaram-no do tribunal mais uma vez, e o tio disse que ele

não podia ir, que estava doente, e aceitaram a justificação. Um advogado

da família apresentou um pedido para que o dispensassem de prestar

declarações, soube mais tarde. Uma psicóloga avaliou-o e determinou

que não estava em condições de o fazer.

Gaspar sentia-se doente e cansado porque dormir era sonhar com

Adela a fugir como um pequeno peixe, eles tinham estado num aquário,

uns olhos grandes tinham visto tudo, olhos de quem, apenas o pai sabia,

e estava tão longe, com os seus próprios olhos pretos e opacos. Gaspar

falava-lhe todos os dias, o tio olhava para eles e fungava um pouco.

Juan morreu de madrugada e Gaspar sentiu. Primeiro, o silêncio:

deixou de o ouvir respirar. Depois cessaram os bipes do coração a bater,

apenas um som contínuo, um alarme. E a seguir veio a dor, tão forte que

o forçou a dobrar-se em posição fetal, embora isso não o tivesse aliviado.

Porém, levantou-se para olhar para ele passado uns instantes. Não estava

sozinho no quarto: também lá estavam o tio e a doutora Biedma.


Noutras ocasiões, no hospital, sobretudo, Gaspar vira-a a dirigir as

equipas que tentavam reanimar o pai. Vira-a, inclusivamente,

empoleirada em cima dele a dar-lhe murros no peito. Fizera isso dias

antes. Agora já não fazia nada porque já não fazia sentido. Gaspar

aproximou-se da cabeceira do pai ainda contorcido: a dor que sentia era

como se mãos invisíveis de unhas como facas lhe dilacerassem o corpo.

Viu que o pai ainda tinha os olhos pretos e abertos. Não percebeu. Tê-

los-ia aberto para morrer? Quando ia perguntar, a doutora Biedma

também se aproximou e fechou-lhe os olhos fixos, duas pedras

brilhantes, e então Gaspar começou a chorar e chorou de pé junto à

cama — não se atrevia a tocar-lhe, não conseguia tocar-lhe — e depois

sentado em cima da cama onde dormira nas últimas noites e o tio teve

de tirá-lo ao colo do quarto porque ele não queria sair. Gaspar fechou os

olhos e foi como apagar a luz. Tinha sonhos, apenas. Sonhos em que

abria a porta e encontrava Adela. Sonhos em que ela não lhe escapava e

ele a carregava ao ombro como se fosse um saco de batatas e a tirava da

casa. Sonhos em que o pai lhe explicava como fazê-lo. Ou em que

acordava e lhe dizia onde procurá-la. Sonhos em que Gaspar se

levantava do colchão, o pai já morto, já cinza sobre a cama, e ele ia até à

cozinha e cortava o pescoço com uma faca, o sangue a jorrar,

encharcando as paredes, as calças, a cara, as mãos, até ver tudo

vermelho e deixar-se morrer de uma vez por todas. Até ficar, também

ele, com os olhos pretos.

19 Pãozinho de trigo típico da Argentina e do Uruguai, ligeiramente doce e semelhante ao pão de

leite, também conhecido como pebete. (N. da T.)

20 Tarte típica de alguns países da América Latina, normalmente recheada com marmelada ou

doce de leite e decorada com tiras de massa entrecruzadas. (N. da T.)

21 Em vários países da América Latina, como a Argentina, o Uruguai ou o Chile, pronome

pessoal equivalente a «tu». (N. da T.)


22 Em Espanha, «betinho». Na Argentina, cheto. (N. da T.)

23 Pila. (N. da T.)

24 O cañón ou cañoncito é um folhado em forma de tubo ou cornucópia, com recheio. (N. da T.)
Círculos de giz,

1960-1976

«Gods always behave like the people who make them.»

ZORA NEALE HURSTON


1.

A MINHA MÃE TEM O CABELO GRISALHO E FINO; vê-se-lhe o couro

cabeludo. Acima da testa está quase careca e há algum tempo que deixou

de disfarçar o vazio com postiços. O cabelo da família da minha mãe

começa a cair muito cedo, e também a ficar grisalho, como se

padecessem de uma velhice prematura. A mim não me acontece a

mesma coisa e o meu pai assegura que foi ele que me salvou graças ao

seu sangue crioulo; quando o diz ergue o punho aos céus, mas nunca os

olhos.

Nasci em Buenos Aires, no edifício da família, na Avenida

Libertador. A nós os três, porque não tenho irmãos, calhou-nos o quarto

andar. A minha tia materna herdou o quinto, e o meu tio, o terceiro. Os

dois primeiros pisos destinavam-se a festas e a refeições e a outras

situações sociais pouco habituais, de modo que estavam quase sempre

vazios, embora impecáveis, os soalhos encerados, as pratas brilhantes.

Nunca gostei daquele edifício solene com os seus móveis pesados e

escuros, o chão de madeira tão caro que não podíamos andar calçados

para não o riscarmos, e a coleção de arte do meu pai, que não deixava

um único espaço em branco nas paredes.


Gostava um pouco mais da casa de campo de Chascomús. Nunca

íamos para as outras fazendas, mais confortáveis, algumas magníficas,

porque a minha mãe preferia aquela quinta modesta, a primeira onde se

instalou a família quando chegou à Argentina vinda de Inglaterra, há

duzentos anos. Perto da casa está o cemitério a que, na aldeia, chamam

«dos ingleses», embora a maior parte dos túmulos seja de escoceses. É

pequeno e está muito bem tratado. A minha avó está lá enterrada:

morreu muito nova e eu gostava de ir visitá-la com o meu vestido preto e

os sapatos de verniz. O cemitério é nosso, de alguma maneira, porque é

a minha família que paga as despesas da paróquia, sempre vazia, e da

limpeza, e de alguns, muito poucos, turistas interessados nesta

curiosidade das pampas com cruzes celtas e musgo verde-escuro que fica

impregnado na roupa.

Quando eu era pequena, a Florence Mathers ficava na casa da

Libertador apenas o tempo suficiente para recuperar da viagem, e depois

aceitava o nosso convite para ir para a casa de Chascomús. Não sei

quantas propriedades tem nas pampas, seguramente muitas: cria cavalos

e gado. Gosta do campo argentino, do vazio e da tristeza dos

entardeceres, do perpétuo cheiro a queimado das folhas no outono e do

fumo dos assados noite e dia.

As nossas famílias estão ligadas por história e por uma amizade de

centenas de anos, mas a dela dirige a Ordem. Várias vezes perguntei ao

meu avô de onde lhe vem semelhante privilégio. Segundo ele, na Europa

eram muito mais consequentes com o Culto da Sombra do que nós.

Além disso, a Argentina fica muito longe. Longe do quê?, perguntava eu.

Fica no cu do mundo, respondia. Não podemos participar na

organização da mesma maneira do que eles. Embora, nos momentos-

chave, sempre tenha havido um Bradford presente. Somos importantes,


embora, às vezes, secundários. O dinheiro é um país onde há cidades

mais prósperas do que outras, embora todas sejam ricas, dizia-me.

O que aprendi, com os anos, é que a pátria da fortuna é monótona.

As propriedades, os campos, as empresas que outros administram por

nós, as velhas casas escuras, as novas casas luminosas, as peles curtidas

das mulheres que passam os verões no sul de França ou de Espanha ou

de Itália, as pratas, as tapeçarias, os quadros, as coleções de arte, os

jardins, as pessoas que trabalham para nós e sobre as quais não sabemos

nada. Não importa que seja Buenos Aires ou Londres. Não importa,

também, que as nossas famílias sejam as fundadoras da Ordem. Ser rico

iguala-nos a todos os ricos. Ser fundadores da Ordem diferencia-nos do

mundo inteiro.

O meu avô foi incumbido de me contar a história da Ordem. Nós, os

descendentes das famílias originais, somos os filhos do sangue, e todos

aprendemos a nossa história graças aos relatos dos mais velhos. O meu

avô, Santiago Bradford, sentou-me a mim e à minha prima Betty, as suas

duas netas, no pátio de Puerto Reyes; de todas as nossas propriedades,

esta é a minha favorita, a minha amada casa de Misiones, incómoda e

abafada e belíssima. A casa que a minha mãe odeia, porque odeia tudo o

que é belo e quer destruir; essa é a sua verdadeira fé e a sua natureza.

Ouvimos a primeira história acerca do jardim das orquídeas,

iluminados por um candeeiro que conferia aos seus olhos escuros um

reflexo amarelado. O meu avô, Santiago Bradford, nasceu na Argentina e

herdou os campos e as plantações de mate e as serrações e os barcos da

família, que enriqueceu no século XIX. Como é que enriqueceram? O

costume: saques, sociedades com outros poderosos, saber de que lado

ficar durante as guerras civis e alianças com políticos poderosos. Os

primeiros Bradford chegaram a Buenos Aires em 1830 ou 1835, há duas

versões diferentes, mas essa data não é importante. O nosso Ano Zero é
1752. O meu tataravô, William Bradford, era livreiro e impressor, e o

melhor amigo dele, Thomas Mathers, era latifundiário. A diferença

social entre ambos era importante — creio que essa origem continua a

marcar as posições das nossas famílias —, mas tornaram-se amigos

porque partilhavam a paixão pelo folclore e o ocultismo. Nos seus

tempos livres, percorriam juntos o país para comprar livros e compilar

as histórias que lhes interessavam. Eram homens educados,

investigadores e colecionadores de relatos e de testemunhos de pessoas

com dons, gifted or cursed.

Encontram a Escuridão e o primeiro médium na Escócia. Não deram

com ele por acaso; não iam às cegas. Tinham lido referências oblíquas

acerca de um espírito que se manifestava como uma luz negra e que

tinha capacidades divinatórias e proféticas. As referências, muito breves,

asseguravam que certas pessoas podiam contactá-lo e fazê-lo falar. Nas

palavras havia conhecimento, e, no contacto, a hipótese de obter o seu

favor. Claro, dizia o meu avô, que não andavam à procura da Escuridão

de forma específica, mas, por alguma razão, cativou a atenção deles,

talvez por saberem que aqueles que eram capazes de estabelecer

contacto com ela sofriam uma metamorfose física em diversas partes do

corpo, mas, sobretudo, na língua ou nas mãos.

O médium era filho de um camponês: prognosticava o futuro usando

a omoplata de uma ovelha, um pormenor que sempre me fez rir pela

precisão da escolha do osso. O rapaz alertava sobre coisas úteis para a

sua comunidade, como deviam tratar o gado, quanto dinheiro ganhariam

ou perderiam na seguinte colheita, a iminência de uma tempestade, se

corriam perigo numa época de violência política. Gostava do nome do

método e como o pronunciava o meu avô: silinnenath.

Em que lugar da Escócia, perguntava sempre a Beatriz. Perto de

Inverness, dizia o meu avô. Bem no Norte. A aldeia chamava-se


Tarradale, mas, se a procurares no mapa, aparecerá como Muir of Ord,

porque lhe mudaram o nome. Era uma aldeia isolada por dois rios:

custou-lhes lá chegar, mas conseguiram, felizmente, porque queriam

conhecer o vidente.

Os dois amigos assustaram o jovem, que era fraco, magro, com uns

olhos que, nos jornais, descreviam como «de bacalhau». Convenceram-

no a ir com eles para Londres. Era a época das rebeliões na Escócia e

insistiram em que, se não o fizesse, morreria num confronto, porque,

pela sua constituição e condição doentia, não seria capaz de lutar.

Ofereceram-se para tomar conta dele. Não foi difícil levá-lo da aldeia: os

pais confiaram nos elegantes senhores ingleses. E os aldeões, apesar de

apreciarem a sua vidência, também a receavam. Os mais religiosos

acreditavam que o seu dom era obra do demónio.

Levaram-no para casa do Thomas Mathers e não tiveram de esperar

muito tempo pela primeira manifestação. O jovem mostrou-lhes a luz

negra num campo próximo. Na altura, o ritual levava-se a cabo de

maneira diferente. O jovem tinha de deitar-se no chão quando invocava a

luz que, segundo eles, na altura não feria. Era menos selvagem, ou estava

adormecida. «Quando lhe tocamos, é fria ao tato e húmida, como a

chuva», escreveu o Thomas Mathers no seu diário. «O jovem é o cristal

negro de Dee. É médium, como a Kelly.»

Usamos a palavra médium para designar os que trazem a Escuridão,

embora, tecnicamente, os devêssemos chamar de outra maneira, talvez

sacerdotes ou xamãs. O jovem, tal como o Juan, sofria uma

metamorfose nas mãos. O Thomas Mathers falava de unhas como as dos

gatos. O jovem falava durante o transe, dizia as palavras da Escuridão.

Agora também é diferente: a Escuridão fala, mas não através da voz do

médium.
Uma vez, quando o avô nos estava a contar a história — repetia-a

muitas vezes, para que não a esquecêssemos: até nos fazia

interrogatórios em pormenor —, perguntei-lhe como se chamava o

jovem. Eu devia ter oito anos. O avô teve de reconhecer que não tinham

registado o seu nome. Nos diários, apenas se referiam a ele como «o

jovem escocês». Ser rico também é isso, pensei na altura: esse desprezo

pelo que é precioso e a incapacidade de oferecer a dignidade de nomear.

Os transes do jovem escocês ocorriam quase diariamente e sempre

no campo. Flutuava num hálito escuro e falava com os olhos fechados.

Dois meses depois, sofreu aquilo a que o médico que o atendeu chamou,

com a terminologia da época, uma apoplexia. Ou seja: um derrame

cerebral. Sobreviveu, mas uns dias depois teve outro ataque do qual já

não acordou, morrendo sem recuperar os sentidos. Obrigavam-no a fazer

invocações quase diariamente, por vezes em duas alturas do mesmo dia.

Após um dos transes, o jovem ameaçou matá-los, e, uma noite,

conseguiu sair do quarto e morder o pescoço do Thomas Mathers. Não o

feriu com gravidade: naqueles anos, e sem antibióticos, o sarro

transmitido por uma dentada podia ser letal. Amarraram-no. Foi a

imobilidade, provavelmente, que provocou o coágulo que o matou. Não

enlouqueceu, como dizia o diário: enlouqueceram-no. Nas suas palavras

havia instruções, muito complexas, para invocar a Escuridão sem um

médium. E também outros métodos, cruéis e perigosos, para lhe pedir

favores.

Os filhos de William Bradford emigraram para a América à procura

de melhores oportunidades de negócio. O que se instalou nos Estados

Unidos era impressor, como o pai, e morreu novo. O que veio para a

Argentina participou na Campanha do Deserto e recebeu terras do

governo como recompensa pelas suas ações militares. As terras mais

férteis do mundo. Além de ser um assassino muito eficiente de


indígenas, também era um investigador do oculto e nunca se cansou de

procurar a Escuridão nas pampas. Não a encontrou, não a sabia invocar,

mas era capaz de ensaiar os métodos mais cruéis sem remorsos. Morreu

a gritar o seu fracasso na quinta de Chascomús, onde hoje descansámos

e cavalgámos.

Sou antropóloga por causa destas histórias. O meu caderno, os meus

apontamentos, as minhas gravações, tudo tem origem na minha infância.

Comecei a compilar histórias e mitos antes de saber que os podia

estudar. Sei ouvir, perguntar, seguir os dedos que assinalam e indicam a

casa de uma curandeira ou a lápide de um morto milagroso, reconheço o

medo nos olhos dos que se benzem, gosto de esperar pela noite para ver

os fogos-fátuos sobre os túmulos. Estou grata por ter nascido nesta

família, mas não a idealizo ou, pelo menos, tento não o fazer. Todas as

fortunas se constroem em cima do sofrimento dos outros, e a construção

da nossa, embora tenha características únicas e insólitas, não é uma

exceção.

Herdei o cabelo escuro e os olhos castanhos do meu pai, mas falta-me a

elegância dele, o seu corpo esbelto e a sua beleza. Ele disse-me, quando

eu era muito pequena, que, se quisesse ser uma mulher linda, teria de

me esforçar. Fez-me chorar, mas agradeci-lhe. Ser rica pode substituir a

beleza, mas não completamente. Não sou como a minha mãe, que exerce

a autoridade de maneira repulsiva. Aprendi, sem esforço, que cores

fazem brilhar a minha pele; que meias ficam bem com as minhas pernas

e porque é que devo usar sempre acessórios: o colar comprido, para que

o meu pescoço pareça mais estilizado; os brincos de esmeralda, para

contrastarem com o meu cabelo castanho; os anéis em vários dedos,

para que os outros percebam que tenho caráter. A minha prima Beatriz

também não é bonita e herdou os traços felinos da família inglesa, o


nariz largo, os lábios finos. Sempre teve um rosto duro e uma expressão

cruel. Um pouco de leopardo e um pouco de pássaro. Lembro-me dela

na escada da nossa casa. Só a usavam as mucamas, os motoristas e o

resto do pessoal de serviço. Os nossos pais e o tio Jorge optavam sempre

pelo elevador. Em Buenos Aires havia cortes de luz frequentemente, mas

nós nunca dávamos por isso: tínhamos gerador. A primeira lenda que

anotei no meu caderno pertence ao folclore urbano do meu bairro. Numa

das propriedades das imediações, a família foi de férias para a Europa e

cortou a luz quando o último deles entrou no carro. Esqueceram-se da

mucama encarregue de tomar conta da casa no elevador. Ninguém a

ouviu gritar e morreu lá fechada, de fome; o elevador era dos de grades e

não tinha falta de oxigénio, o que prolongou ainda mais a sua agonia.

Durante um tempo, eu e a Beatriz nunca usávamos o elevador e

encontrávamo-nos na escada, o nosso lugar secreto. Uma noite, antes do

jantar, na escada, ela perguntou-me se eu acreditava mesmo nas histórias

do avô e na Ordem. Lembro-me dela com os seus dentes pequeninos e o

seu nariz grande, dona de uma verdade que me esfregaria na cara. É

tudo tretas. Disse-me o meu pai, e não quer que eu ouça estas histórias

nunca mais. As lágrimas queimaram-me os olhos e apeteceu-me bater-

lhe, mas, em vez disso, perguntei-lhe por que razão nos mentiria ele.

Porque a inglesa os controla a todos. Não me lembro do que disse a

seguir, mas foi qualquer coisa relacionada com os negócios partilhados

por ambas as famílias. Nessa noite, Beatriz disse-me que se iam mudar

para a casa do pai, em San Isidro. Nós não queremos continuar a fazer

parte desta farsa, insistiu, repetindo, palavra por palavra, as expressões

do pai porque ela não falava assim. E vão deixar-vos ir?, perguntei.

Porque não?, respondeu ela, desafiante. Naquela época, soube que a

Ordem não tem por hábito tentar reter os membros que se querem ir

embora. A minha mãe diz que os deixam ir porque acabam sempre por
regressar, a chorar, feitos em cacos, porque a Escuridão é um deus com

garras e focinho, a Escuridão captura, a Escuridão dá às suas presas um

avanço, tal como os gatos deixam brincar as suas durante algum tempo

apenas para verem até onde conseguem chegar.

Continuei a ver a Beatriz, mas só na escola, que agora ficava perto da

casa dela. Eu, que vivia no centro de Buenos Aires, ia e vinha com um

motorista. No mesmo ano em que a Beatriz se foi embora do nosso

prédio com toda a sua família, o tio Jorge levou o Juan para a casa dele.

A mim não me tinham de prestar contas de nada, mas senti tanta

curiosidade e fazia tantas perguntas sobre o rapaz, que acabaram por me

contar uma parte da verdade. É um paciente do teu tio, foi operado por

ele. Tem uma malformação cardíaca gravíssima e os pais, que são muito

pobres, não podem tomar conta dele. Vai viver com ele. Eu era pequena,

mas já sabia que a minha família, e o meu tio em particular, eram

incapazes de ser generosos àquele ponto. O meu avô acrescentou: é um

caso que pode fazer a diferença na carreira do Jorge, porque ainda

ninguém, no mundo inteiro, conseguiu realizar com êxito as cirurgias de

que esta criança precisa.

Às vezes pergunto-me se, no fundo, o Jorge não andaria à procura de

um filho. Nunca soube de mulher alguma que tivesse sido sua, mas

também não era homossexual; é claro que não era capaz de se

reproduzir. As famílias da Ordem não têm muitos filhos: é um castigo,

creio eu, ou uma marca. O que fazer com os jovens da Ordem é uma

questão difícil de resolver precisamente pela sua escassez. Treinar os

jovens devia ser uma prioridade, mas, como também é perigoso, porquê

arriscar o futuro?

Pedi para ver o rapaz e deixaram-me, passados uns dias. Deram-lhe

um dos quartos principais, o que me pareceu estranho, porque pensava

que o iriam pôr na zona da criadagem. Entrei em bicos dos pés, lembro-
me. Pediram-me que tivesse cuidado porque um sobressalto podia matá-

lo. Porém, assim que o vi soube que aquele rapaz não seria fácil de

matar. Tinha uma dureza no olhar um pouco parecida com a dos rapazes

que trabalhavam no campo, mas também uma certa altivez. Lembro-me

de o cumprimentar e de ele não ter respondido. Só fala quando quer,

disse-me o Jorge, com ele nada é fácil. Tinha os lábios escuros,

azulados; e também as pontas dos dedos, apoiados nos lençóis brancos.

As olheiras manchavam-lhe a tez pálida, e tinham-lhe cortado

demasiado o cabelo, que de tão louro parecia branco. És como um

fantasma, disse-lhe eu, e ele fulminou-me com o olhar, o que me deu

alguma vontade de rir. Nessa mesma noite, voltei a visitá-lo; a

enfermeira tinha ordens para não deixar entrar ninguém, mas não ia

contrariar a filha da Mercedes Bradford. A minha mãe inspirava um

terror incomparável.

— Não te rias de mim — disse-me o Juan assim que me viu entrar.

— Não sou um fantasma. Os fantasmas existem. Eu vejo-os quando

quero, mas, quando não quero, não os vejo.

Foi assim que começou o nosso hábito de falarmos todas as noites. O

Juan não se limitou a substituir a minha amizade com a Betty:

converteu-se no meu irmão e confidente. Havia coisas que ele não

percebia, como, por exemplo, quando eu ficava furiosa por causa de

alguma coisa da escola, ou dos maus-tratos da Mercedes ou de alguma

colega, mas ele, mesmo sendo tão pequeno, queria ajudar. Às vezes,

ficava a dormir com ele: a cama era muito grande e ele tinha de dormir

sentado, amparado por almofadas, porque sufocava quando estava

deitado. Adorei-o desde o início. Sempre quis tomar conta dele, mas

também sempre o respeitei e, de alguma maneira, tinha um certo medo

dele e aceitava a distância que impunha. Ele não andava na escola e eu

adorava reforçar as lições das suas professoras particulares lendo-lhe


poesia, de que ele sempre gostou desde criança, ou textos sobre

mitologia, e até o ensinei a ouvir música, coisa que nunca aprendeu

completamente. Não nos deixavam correr ou brincar a nada de brusco,

mas ele mostrou-me as suas cicatrizes na cama, de noite, iluminados

pela Lua. És um Frankenstein, disse-lhe eu, e lembro-me de ele não

perceber e de eu lhe prometer que lhe leria o romance. Fizemo-lo

durante meses.

A não ser as minhas visitas e as do irmão mais velho, o Luis, o Juan

vivia praticamente sozinho no apartamento escuro do meu tio Jorge. A

mãe dele visitava-o, mas morreu muito cedo. Lembro-me bem dela:

andava com a farda da fábrica e, às vezes, tinha as unhas sujas. Até se

ofereceu para trabalhar lá em casa para ficar perto do filho. Parecia tão

triste. Tinha o cabelo curto e bem cuidado. O tamanho dela era

impressionante; e também o do pai, que só vi uma vez. Eram imigrantes

suecos vindos de Misiones, trabalhadores das plantações de mate que

tinham deixado para trás uma aldeia onde não sabiam como tratar

medicamente uma pessoa tão doente como o Juan. O pai conformou-se

com o acordo que fez com o meu tio e entregou-lhe o Juan por bastante

dinheiro, mas a mãe não se rendia e, sempre que o visitava, pedia que,

por favor, a deixassem voltar a viver com o filho. Eu ouvia-a chorar e

tinha pena, mas não queria que levassem o Juan. Pedi ao meu tio que,

por favor, não lho devolvesse, e ele disse-me: podes ficar sossegada.

Seja como for, nunca imaginei o que faria a Mercedes, a minha mãe.

Estou farta dela, disse um dia, e, pouco depois, soubemos da doença da

mãe do Juan: morreu dali a poucas semanas de um cancro fulminante. O

Luis, irmão do Juan, contou-nos que a mãe tinha adoecido e morrido.

Nessa altura, o pai já se tinha desligado do filho. O homem queria livrar-

se do filho doente porque era um filho caro. O Luis, pelo contrário,

vinha visitá-lo todos os fins de semana e, sempre que podia, ia passear


ou nadar com ele, ouvindo com atenção as recomendações do meu tio

sobre o que podia e o que não podia fazer. A minha mãe costumava

fazê-lo esperar no patamar e, às vezes, quando chovia, também dizia ao

porteiro para não o deixar entrar. Uma vez, o Luis lançou à minha mãe

um olhar assassino carregado de um ódio de gerações, e, então, amei-o

para sempre. Eu vou ajudar-vos, prometi-lhe quando, nesse dia, trouxe

de volta o Juan, não vou consentir que ela vos separe. Disse-o só por

dizer, nunca tive, nem terei, poder algum sobre a minha mãe. Ela só não

matou o Luis porque não quis ou por preguiça ou por não lhe parecer

perigoso.

O Juan mudou um pouco quando a mãe morreu. Sentava-se no chão

de madeira, junto à janela, e eu sentia que, às vezes, nos encontrávamos

num lugar desolado. Da varanda víamos os jacarandás da avenida. Ele

estava triste e muito distante: eu pensava durante todo o dia em como o

haveria de entreter, em quais seriam as histórias que deixariam satisfeito

o jovem rajá. Quando percebi que a minha família tirara de cena os pais

do Juan para ficar com ele, quis saber mais. Não se tratava, apenas, da

carreira do tio Jorge. Confrontei o meu avô: tenho o direito de saber,

disse eu. E ele contou-me tudo sem muitos rodeios. Achamos que o

rapaz pode ser o médium de que a Ordem anda à procura. O teu tio teve

uma revelação quando o operou que não voltou a repetir-se. É por isso

que, às vezes, quando vamos ao hospital, o levamos para o bloco, para

vermos se volta a manifestar-se. Ainda não aconteceu, acho que temos

de dar-lhe tempo, ainda é muito novo.

Foi uma sorte ter-me contado isto. Caso contrário, quando o Juan se

manifestou, eu teria corrido perigo. Naquela tarde, o meu avô salvou-me

da Escuridão.
Nesse ano, a Tali, a minha meia-irmã, veio estudar para Buenos Aires.

Foi uma etapa violenta e difícil. A Tali não suportava a cidade e

chorava, chamava pela mãe, arrancava os cabelos. A Mercedes batia-lhe;

quando eu intercedia por ela, também levava por tabela. Tentámos fugir,

uma vez, com o Juan. Descobriram o plano e estivemos um mês sem

jantar.

A Mercedes odiava a Tali porque odiava a mãe dela, a Leandra.

Nunca se importou com as amantes do meu pai e, além do mais, na

Ordem este tipo de ciúme possessivo era e é considerado vergonhoso.

Mas a mãe da Tali não disputava apenas a atenção erótica do meu pai.

Era curandeira e tinha o seu próprio templo votado a São Morte em

Corrientes. E era uma beleza, não sei se alguma vez voltei a ver uma

mulher tão naturalmente magnífica e deliciosa. O meu pai passava muito

tempo com a Leandra, no Norte, e, quando podia, levava-me com ele. Eu

e a Tali corríamos pelos caminhos de terra e sacudíamos os limoeiros,

fazendo cair sobre nós uma chuva de flores brancas. A Leandra recebia

fiéis no seu templo; eu e a Tali limpávamos os São Morte ao som do

pranto dos peregrinos. O calor era sufocante: a Tali andava sempre com

o cabelo solto e, quando transpirava muito, atirava-se ao rio. Nunca

aprendi a nadar como ela. O Paraná tem remoinhos: diz-se que são os

mortos que vivem debaixo de água e que andam à procura de

companhia, produzem aqueles piões de água que matam e afogam os

nadadores. A Leandra ensinava-nos a evitá-los e beijava o meu pai na

praia. Percebi porque é que a Tali não queria ficar em Buenos Aires: eu

também não teria ficado. A cidade e, especialmente, o nosso

apartamento eram uma seca. A única coisa má era que o meu tio não

permitia que o Juan viajasse, dizia que não estava em condições de ir

para tão longe. O Juan, no entanto, ouvia-nos contar as nossas aventuras

com muito entusiasmo.


Quando a notícia de que a Leandra tinha cancro chegaram à nossa

casa, a minha mãe aplaudiu e festejou com um dos seus típicos bailinhos

de quando está eufórica, uma mão na barriga e a outra no ar, como nos

tangos. Depois, deixou-se cair num sofá e disse-nos, a mim e ao meu

pai: vocês são uns cagões, nunca têm coragem suficiente para se

desfazerem do que vos incomoda. Eu já me livrei da mãe do rapaz com

que o Jorge anda obcecado.

E a Leandra incomoda-te porquê, diz lá, perguntou-lhe o meu pai.

A mim, essa índia não me incomoda nada, respondeu a minha mãe.

O meu pai mandou-me para o quarto, mas a Mercedes disse: deixa a

Rosario ficar, ela que ouça, tem de aprender, vocês só lhe ensinam

histórias de cacaracá e parvoíces. A tua amante índia, Adolfo, é-me

indiferente. Mas tu importas-te com ela. Eu posso deixar que te deites

com todas as putas do país, mas não que te importes com uma delas.

Queres saber, filha, como é que fiz com que a Leandra ficasse doente?

Queres saber como é que fiz com que a mãe do teu amiguinho

moribundo ficasse doente? Vem ter comigo ao meu quarto esta noite,

que eu digo-te. Está na hora de aprenderes quem és realmente. Estes

protegem-te demasiado, são uns maricas.

Não fui ao quarto dela para descobrir como tinha feito com que a

Leandra ficasse doente. A minha mãe, quando se fartou de esperar por

mim, saiu: pintou os lábios, pôs os sapatos de cunha, atravessou a rua e

foi até à pastelaria do hotel de que gostava, festejar com champanhe. Não

me deixou ir visitar a Tali a Corrientes e ela nunca mais voltou a Buenos

Aires. O meu pai desistiu de lhe proporcionar uma educação na capital e

respondeu às minhas súplicas com uma explicação dissuasora: se a tua

mãe começar a embirrar com a Tali, já sabes o que lhe acontece.

Nesse verão, a Mercedes mandou-me sozinha para a casa de campo

de Chascomús. Compreendi que era um castigo, mas não percebi como


podia sê-lo. Gostava do campo, dos cavalos, de correr com os cães, das

noites à volta das fogueiras, de todas as histórias que podia registar no

meu caderno, dos entardeceres com cheiro a fumo. Implorei-lhe que me

deixasse levar alguém, o Juan ou a Tali ou uma colega da escola, ou

mesmo a Betty, mas ela recusou-se e bateu-me na cara com a mão cheia

de anéis até me fazer sangrar das bochechas. Faz-te amiga dos pretinhos

que lá trabalham, disse-me. Tu entendes-te com essa gente, sua burra.

Foi ela mesma que me levou de carro até Chascomús. E deu-me as

instruções. Tinha de alimentar todos os dias os enjaulados. A minha mãe

não é o único membro da Ordem que anda à procura de um médium ou

que tenta invocar a Escuridão por conta própria, mas, tanto quanto sei, é

a única que usa este método. Meteu-me na choça onde estavam as jaulas

e foi-se embora. O cheiro fez-me vomitar e dei cabo dos sapatos de

fivela encarnados, os meus preferidos. Saí a correr. Mas, no dia seguinte,

entrei: um dos empregados deixara a comida à porta do meu quarto e

tinha ordens para me obrigar a cumprir a tarefa de que fora incumbida.

Caso contrário, a minha mãe voltaria. Essa hipótese era pior do que

voltar para a choça. Estava fechada com um cadeado e, no seu interior, a

escuridão era total. Eu deixava-lhes os tabuleiros nas jaulas. O cheiro a

merda e a urina e a sangue fazia-me sempre vomitar. Durante todo o

verão levei pratos de comida, muitas vezes estragada aos enjaulados.

Caminhava com as mãos esticadas e, quando me pareciam demasiado

quietos, tocava-lhes para verificar se estavam vivos ou mortos. Quando

algum morria, também tinha de ocupar-me do corpo. Enterrei dois

debaixo das pereiras, onde me disse, por telefone, a minha mãe. Não

pareciam humanos, e o mais pequeno não tinha olhos. Uma tarde, ouvi

uns gemidos tão intensos a um canto que, apesar das instruções que

recebera, fui buscar a lanterna. A luz fez gritar os outros todos e,

durante um minuto, julguei estar rodeada de demónios alados, mas


respirei fundo e endureci. Sempre soube endurecer. Reconheci a cara do

que gritava: andavam à procura dele na aldeia com um retrato-robô,

havia cartazes com o desenho tosco por todo o lado, na mercearia, nos

postes de luz, na esquadra. Alguém o queria de volta, alguém que o

amava. O trapo que lhe vendava os olhos estava tão sujo, que tinha

vermes. Suportei vários dias essa imundície e a sua dor até não

conseguir mais e tirei-lhe a venda. Limpei-o como pude, mas de certeza

que perdera os olhos antes de a Mercedes decidir que não servia para

nada e descartá-lo, como aos outros. Chamava-se Francisco e tinha

quatro anos. O retrato-robô dizia que tinha o cabelo escuro, mas na

prisão da minha mãe já estava completamente careca.

Foi naquela choça que a minha mãe levou a cabo os rituais que lhe

permitiram livrar-se da Leandra e da mãe do Juan. Há outras maneiras

de uma pessoa se livrar dos inimigos que não envolvem a Escuridão.

Métodos mais clássicos, menos desgastantes, conhecidos de todos os

que pertencem à Ordem. Mas ela prefere este. Os enjaulados, ou alguns

deles, conseguem, no meio do seu sofrimento, fazer aparecer o deus, e,

então, há que pedir. A aparição é breve, mas as súplicas funcionam. É

claro que não se trata apenas de os manter presos, mas também de

praticar com eles invocações que eu, na altura, me neguei a aprender, e

daí o castigo. Agora já sei quais são, mas não as exerço. O meu avô e

alguns membros mais velhos julgam que o que vem não é a Escuridão

absoluta, mas um figmentum parecido com ela, uma sombra, embora,

por vezes, uma divisão inteira escureça. Não é a mesma Escuridão

indomável trazida pelo médium, que fala e corta e captura. É uma cópia,

o outro lado de um espelho: é falsa. Mas destrói de modo muito eficaz,

inexorável e impiedoso. Em Misiones, a plantação de mate do meu pai

tinha uma concorrente, a de outra família muito rica que também

cultivava chá. Não havia lugar para ambas. A minha mãe encarregou-se
de pedir à Escuridão que se livrasse deles. A outra família tinha uma

casa linda, com colunas brancas neoclássicas, sobre uma lagoa: fomos

vê-la quando a destruição era completa. O céu estava cor-de-rosa e as

palmeiras projetavam uma longa sombra na água. Não ficámos com a

casa: quando algo é tocado por este tipo de infortúnio, é melhor

abandoná-lo. O filho mais velho, que herdaria tudo, afogou-se na lagoa,

diante do seu palácio da selva.

Vi o Juan chegar da janela do meu quarto de Chascomús. Vinha com

o meu tio e com o meu avô. Como ficava perto de Buenos Aires,

deixaram-no viajar. Eu tinha onze anos nesse verão; ele, oito. Saiu do

carro e subiu a escada devagar, fazia tudo devagar quando era pequeno.

Nisso, mudou completamente. Esperei por ele sentada na cama. Da

porta, disse: não vou deixar-te sozinha. Eu comecei a chorar e estendi as

mãos, pedi-lhe que entrasse. Apoiou a cabeça nos meus joelhos nus para

eu lhe acariciar o cabelo. Chorámos juntos. Sabia dos enjaulados. A

minha mãe falou-lhe deles, sem necessidade nenhuma, claro, só para o

assustar. Assim que chegou, começámos a fazer o trabalho juntos. O tio

ficou connosco para tomar conta dele e o Juan ia todos os dias comigo à

choça. Com ele era mais fácil porque conseguia orientar-se na escuridão

e guiava-me pela mão de jaula em jaula. Nenhum deles morreu enquanto

o Juan lá esteve. Apesar dos enjaulados, como estávamos juntos

podíamos divertir-nos: éramos crianças. À tarde, brincávamos com os

vidros coloridos das janelas da entrada. Uma mão azul, um olho verde,

um pé amarelo. Mexíamo-nos para que a luz nos pintasse. Muitos anos

depois, recordei esses jogos quando, ao mexer as mãos, o LSD criava um

arco-íris entre os meus dedos.

Em Buenos Aires, no regresso, a minha mãe gritou: se este pirralho

de merda não nos for útil em pouco tempo, atiro-o para a rua. Eu disse-

lhe que, nesse caso, teria de nos atirar aos dois, e ela bateu-me com a
bengala nas costas. Durante dias tive dificuldade em respirar. O mais

provável é ter-me partido alguma costela, mas proibiu o meu tio de me

fazer radiografias. Nessa mesma noite desci a escada e, desde então, vivo

sob o mesmo teto que o Juan. E embora tenhamos passado alguns anos

separados, nenhum dos dois deixou de estar, realmente, perto um do

outro.

Gostava de poder dizer que o primeiro homem por quem me apaixonei

foi o Juan, que o amava desde a infância, mas a verdade é que o meu

primeiro amor foi o George Mathers, o homem que encontrou a médium

Olanna. Até tinha a fotografia dele e andava com ela na minha carteira

infantil: uma vez, pedi-a à Florence e ela enviou-me uma cópia por

carta, de Londres. O George Mathers tinha cara de herói romântico, com

os seus pómulos altos e os seus olhos redondos, ingénuos; a mandíbula

dura, hominídea, fazia-o parecer forte, viril. Era perfeito.

O George Mathers era o tio-avô da Florence, a atual líder da Ordem.

Encontrou a Olanna quando a National African Company, a companhia

para a qual trabalhava, se estabeleceu em Ibadan, um protetorado

britânico que, no futuro, se viria a chamar Nigéria. Toda a sua história

está contada em pormenor nos diários dele: vi os originais quando fui a

Londres, com as suas belas ilustrações a lápis, preservados pelos

protetores especialistas da Ordem, mas quando era pequena li a edição

fac-símile que todos os Iniciados recebem. Era o meu livro preferido. O

George amava a região, a beleza dos nativos altos e magros, a roupa

branca, a floresta e até a comida, que os outros britânicos detestavam.

Era o que mais e melhor comunicava com os nativos, e depressa o

escolheram para negociar com os chefes. Poucos meses depois, era

convidado para os banquetes e presenciava as danças locais; interessava-

se pela religião e pelos ritos dos nativos, via na sua sofisticada


simplicidade algo de profundo, algo que em Inglaterra, em cujos salões

os membros da Ordem vestiam túnicas e usavam espadas e redomas, era

inimaginável.

Numa das cerimónias a que assistiu, deixaram-no ver a Olanna, uma

sobrinha afastada do rei sacerdote de Nri. Acreditavam que a família real

descendia de um ser celestial. O reino já não existia: pouco antes, em

1911, as tropas do Império tinham obrigado o rei a renunciar ao seu

poder ritual e político. A Olanna fugiu, ajudada por sacerdotes, para

Ibadan. Aos quinze anos, era frágil e tinha a testa marcada por

cicatrizes, um labirinto de pele inflamada para sempre acima dos olhos.

O George Mathers apaixonou-se por ela, mas não podia falar-lhe, não

podiam comunicar um com o outro; e ela, Olanna, de família nobre,

sacerdotisa, jamais tocaria num homem branco. O retrato que o George

fez da Olanna, tão delicado e várias vezes retocado — notam-se os

traços erráticos, depois delineados com esmero —, mostra uma

adolescente de olhar cansado.

Chamavam-lhe A Que Traz a Noite. E também A Serpente da Lua.

Apesar do escasso inglês falado pelos guias e pelos chefes amigos e dos

rudimentares conhecimentos da língua nativa à disposição do George, e

recorrendo também a algumas frases em dialeto, percebeu que a Olanna

não era apenas uma sacerdotisa possuída por espíritos. Comunicava com

os deuses ocultos, os que dormiam sob a terra, no leito dos rios e entre

as estrelas. Era aquilo a que os seus familiares, membros da Ordem,

chamavam médium. No primeiro ritual que o deixaram presenciar, numa

clareira da floresta, de noite, embriagado com vinho de palmeira, viu o

corpo da Olanna mover-se com uma fluidez impossível sob a mão do

sacerdote e a sangrar. Também sangravam as mulheres participantes,

que, contrariamente à Olanna, estavam vestidas. O cheiro metálico e

carnívoro enchia a floresta de uma maneira estonteante e excitante. Após


os rituais, a Olanna era levada pelos curandeiros locais para a sua grande

palhota: ardia em febre e, às vezes, recusava-se a beber, o que piorava o

seu estado. Depois de recuperar, permitia que o George lhe pegasse na

mão e falava-lhe de muitos outros deuses e sobre uma floresta secreta. O

George Mathers aprendia e tomava apontamentos, chegando mesmo a

recusar a mulher que lhe tinham destinado como companheira noturna

para escrever sozinho na cama, protegido pelo mosquiteiro branco. Os

sacerdotes falavam-lhe de Champana, o deus deformado da doença que

aparecia sob a forma de mosquitos e moscas; não percebiam por que

razão estava a salvo dele. Todos os seus colegas tinham sofrido algum

tipo de doença, e muitos morreram de malária. Ele só estava um pouco

mais magro e moreno do que quando saíra de Londres. Dava pouca

importância aos negócios da National African Company, mas ninguém

lhe exigia que se dedicasse à empresa. Passava pelos seus escritórios

todos os dias, por muito cansado que estivesse. Ouvia os colegas falar

sobre o rio Níger, as tribos rebeldes, a riqueza do país, os parentes e

amigos mortos na Europa, na Grande Guerra.

Corria o ano de 1919. Numa noite de setembro, na floresta, o George

viu, finalmente, a Olanna trazer a Escuridão. A luminosidade prateada,

reflexo da Lua na sua pele suada, foi vencida, aos poucos, por uma

escuridão que procedia dela, que lhe escapava pelos poros. As mulheres

e os sacerdotes gritavam: os tambores afogavam a noite e o George

Mathers viu, pendurada na boca da Olanna, uma língua bífida, e traças a

aproximarem-se dela e a caírem mortas assim que a luz negra lhes

tocava.

Após este ritual particularmente intenso, o George Mathers recebeu

na porta de sua casa uma estátua de barro muito pequena que

representava um homem sentado com as mãos nos joelhos, nu e com um

longo falo ereto. O grande deus Pã, pensou, em Ibadan, nas florestas de
África? Assustou-se e decidiu regressar a Inglaterra. Mas não queria

voltar sozinho: queria levar a Olanna com ele e oferecer uma médium à

Ordem. Ela viera ter com ele, para ele: tinha a certeza.

Levá-la foi muito simples para um homem da sua posição. É sempre

fácil, para nós, conseguirmos o que queremos.

A viagem por terra e mar foi esgotante para a jovem, que, além disso,

era observada e apontada; o George Mathers apercebeu-se de que a sua

fraqueza não se devia apenas ao ritual, mas ao facto de a Olanna estar

doente. Perdia os sentidos frequentemente. O balançar do barco enjoava-

a de tal maneira, que não conseguia sair da cama. Porém, na penumbra

do camarote, necessária para aliviar as suas constantes dores de cabeça,

aprendia inglês a uma velocidade espantosa. Ele falava-lhe de Londres,

da mulher, Lily, que o esperava, apesar de ele estar ausente há mais de

um ano. Falou-lhe do mar frio e da neve. A Olanna ouvia-o com ar

sério: o George percebeu que ela ia assimilando os conhecimentos, mas

sem se maravilhar com o que ele lhe dizia. Era, simplesmente, diferente

do que conhecia. Ela também falava e, quando não se conseguia fazer

entender, desenhava no ar, com as mãos. Falou-lhe de uma floresta onde

viviam milhares de demónios, mas só um reinava, um que costumava

estar pendurado nas árvores e tinha os pés virados ao contrário, de modo

que as suas pegadas nunca denunciavam o lugar para onde se dirigia.

Falava-lhe das estátuas de madeira que o tio fazia e da riqueza e da

honra do pai. Tinha saudades das suas joias. Falava-lhe das florestas de

ossos, das caveiras que rodopiavam no meio das árvores. Uma noite,

quando o barco balançava delicadamente, disse-lhe que certos seres se

conformavam com vinho e flores, mas que os deuses verdadeiros

exigiam sangue.

Quando chegaram a Londres, ela, magra e com olheiras, ele,

saudável como se a viagem não tivesse durado meses, Olanna de Nri


falava inglês e o George Mathers amava-a, mas proibia-se a si mesmo de

lhe tocar. Em Londres, esperavam por ele os membros da Ordem, que

pareceram dececionados quando a viram sair do Vauxhall. Imaginavam,

como me contou o George depois, uma mulher alta e magra, mais

parecida com as das fotografias da África Oriental, com os seus longos

pescoços; não esperavam aquela rapariga pequena com a cara cheia de

cicatrizes e de cabeça redonda. Mas trataram-na com reverência. Parecia

admirada com a cidade, mas de modo algum intimidada por ela. Quero

ver o comboio que anda debaixo da terra, disse ao George. E ele

acompanhou-a até ao underground, deram um passeio em Hyde Park e

admiraram Kensington. A Olanna chegou muito cansada ao Palácio e

cheia de frio; ele cobriu-a com o seu próprio casaco e teve o impulso de

a levar ao colo até à casa do pai, em St. John’s Wood.

O pai, Christopher Mathers, líder da Ordem nesse momento, e os

principais integrantes do Culto esperavam-nos no salão principal da

casa, nos sofás vermelhos, sob o candelabro. A Olanna olhava para a

decoração a pestanejar, e o George estudava a rigidez da mãe, a inveja

nos olhos das mulheres e nos do irmão mais novo. Soube que não

poderia salvar a Olanna e compreendeu: a Ordem vinha em primeiro

lugar. Acumulavam anos de frustrações e, embora as suas práticas os

tivessem tornado ricos e poderosos, precisavam de mais qualquer coisa.

O meu pai sempre acreditou que a Ordem e os rituais ajudam a manter a

riqueza, mas há que ajudá-la com heranças ou bons negócios. E tem

razão. Estive a ler Ramon Llull e ele diz exatamente a mesma coisa

sobre a alquimia: para fazer ouro é preciso, primeiro, ter ouro. Não se

faz nada do nada. A riqueza, naqueles anos, já não era suficiente para

eles. Queriam evitar a morte e estavam convencidos de que a Escuridão

lhes daria esse dom. É a mesma coisa em que acreditamos agora, claro.
O Christopher Mathers sabia que, para construir uma fé, era necessária

uma promessa incalculável.

Foi a mãe do George que organizou a Cerimónia. Era uma mulher

amarga, escreveu ele, que passava horas à frente da lareira a chorar de

raiva por ter perdido o filho favorito, o mais velho, na Grande Guerra,

que considerara estúpida e desnecessária. O seu belo filho, que morrera

numa trincheira doente de febre tifoide e que fora voluntariamente para

o massacre, desobedecendo-lhe a ela e à Ordem. Além disso, era o único

na família que possuía o dom. Não era um dom notável, mas, pelo

menos, tinha algum, contrariamente ao que sucedia com o George e o

Charles, o jovem e ambicioso Charles, que estudava oito horas por dia e

conseguia explicar durante horas o significado de Sefirot, mas era

absolutamente incapaz de produzir qualquer tipo de magia natural. Ou o

George, que preferia viajar e tomar notas, mas era sempre o enfeitiçado

recetor da magia dos outros.

A Cerimónia ficou marcada para o dia 31 de outubro de 1919.

Realizar-se-ia na sala especialmente concebida para o efeito da casa de

St. John’s Wood. É a mesma sala que ainda se usa atualmente, onde eu

própria tracei círculos de giz e me ensinaram a mais requintada

caligrafia para melhorar os meus selos. O George Mathers prometeu

estar presente e voltou para sua casa e para a mulher, a Lily, que

enfeitava o cabelo com fitas douradas e passava horas a tratar do jardim.

A Lily, que escrevia poemas de amor violentos e românticos. Abraçou-a

no portão de ferro e lamentou não poder dar-lhe um filho, um rapaz

sorridente que lhe fizesse companhia durante as suas ausências. Os

outros, os seus pais e mesmo os médicos, pensavam que a Lily era

estéril, mas ele sabia a verdade porque tinha estado com muitas

mulheres, não tanto por gosto, mas para se testar a si próprio, e nenhuma
delas engravidara. Os Mathers estavam em extinção e só restava o

Charles, tão novo.

Abriu a mala dos presentes que comprara para a Lily: máscaras

esculpidas, extraordinários tecidos da África Ocidental, perfumes

comprados em Paris — ela gostava de frascos com cores inesperadas —,

litografias de Alphonse Mucha, um ilustrador que já na altura era tido

como um pouco antiquado, mas que a Lily adorava. Na mala, estava

também a estatueta de barro que alguém deixara à porta da sua casa de

Ibadan, possivelmente a modo de aviso. Quando a Lily pegou nela, o

George arrebatou-lha com firmeza. O Grande Deus Pã também vive tão

longe, disse ela. A Lily era uma devota desorganizada, incapaz de

nomear as constelações ou de traçar um selo, mas era crente. E queria

saber se a médium era realmente poderosa. Vê-la-ás em breve, disse-lhe

o George, e mostrou-lhe um colar, o último presente, que a fez sorrir. O

vento abriu uma das janelas e a Lily fechou-a, mas não conseguiu evitar

que entrasse na sala uma rajada de folhas secas.

Agora, a estátua está protegida atrás de vários vidros na biblioteca da

Ordem, em Londres. Faz-me lembrar, tirando o falo, São Morte. Há algo

na pose sentada, um gesto idêntico ao de uma representação particular

do Santo Esqueleto a que chamamos Senhor da Paciência porque parece

estar à espera. Estudo para tentar encontrar essas correspondências e

essas familiaridades, mas causam-me sempre um pouco de vertigens. A

estatueta parece seguir com os olhos quem olha para ela e é repulsiva de

uma maneira inexplicável.

Os Iniciados chegaram à hora combinada. Muitos preferiam usar

máscaras, a maioria venezianas, outras de animais: só queriam ser

reconhecidos pelos chefes da Ordem.

A Olanna esperava, nua e de barriga para baixo, em cima do altar. A

única luz era a das velas. Aconteceu tudo muito depressa. Começaram
os cânticos e, a seguir, as mulheres, algumas com um grito, outras com

expressões sufocadas, sentiram o sangue a escorrer-lhes entre as pernas.

A Olanna mexia-se em cima da mesa como um ofídio: a fragrância do

sémen e do sangue dilatava-lhe as narinas. Pouco tempo depois, atirou-

se para o chão. A Serpente estava fora de controlo. Não lhe deviam tocar

quando a luz negra a iluminasse, e não o fizeram.

Estão a ouvi-la?, gritava o chefe, Christopher Mathers. Estão a ouvi-

la? Muitos assentiram e o Mathers quebrou todas as regras e protocolos

e saiu do círculo protetor. Foi buscar papel e lápis, que entregou aos que

conseguiam ouvir. A Serpente falava e eles transcreviam as palavras que

se murmuravam nos espaços entre as estrelas, entre a vida e a morte.

Cada qual usava o seu sistema de escrita favorito, e cada qual escrevia

na língua que ouvia. E é assim que se faz ainda hoje, embora as atuais

Cerimónias sejam muito diferentes, porque ninguém sangra — não

sangue menstrual, pelo menos —, porque já não é sexual e porque

continua até de madrugada, quando o médium se retira. As transcrições,

tal como agora, eram muito diferentes, e algumas impossíveis de

compreender. Não faz mal, dizia um exaltado Christopher Mathers: a

Serpente Escura fala e muito do que diz está para além da nossa

compreensão, mas o pouco que consigamos apender será suficiente.

O Christopher Mathers chamou a esta etapa «a fase do oráculo».

Quando acabou, a Olanna estava inconsciente numa poça do seu próprio

sangue; a língua bífida pendia-lhe entre os lábios entreabertos. Mulheres

e homens choravam abraçados, nus; alguns não conseguiam olhar para

ela, outros deixavam cair as máscaras. Apenas o George reagiu e,

quando a aura negra abandonou a Olanna, aproximou-se dela e tomou-a

nos braços. Não tinham preparado um quarto para ela, apesar de o

George lhes ter explicado o procedimento. Deitou-a na primeira cama

que encontrou e os lençóis ficaram logo encharcados. A febre sacudia-a.


Soube que ia morrer. Não naquela noite, mas em breve. Nenhum corpo

podia suportar a intensidade da visita da Escuridão. E o pai usá-la-ia até

à exaustão. Se pudesse, todos os dias. Vira a sua ambição. Todos o

apoiariam: a Olanna era a médium, mas também era uma selvagem, e

nenhum dos Iniciados acreditava que fosse inteiramente humana.

A Lily irrompeu no quarto e tapou a Olanna e mandou trazer gelo,

água fresca, jasmins. No quarto do lado, ouvia o Christopher Mathers a

explicar aos Iniciados homens que deviam conter o sémen e a bater nos

que tinham ejaculado. Também lhes perguntava sobre as visões extáticas

que tinham tido. A Olanna ardeu em febre durante duas noites. O

Christopher Mathers não queria mandar chamar um médico, dizia que

os químicos podiam arruinar o fluido da energia, falou do apanga e do

bindu e da pureza das secreções. Porém, estava preocupado. No terceiro

dia, a Olanna saiu da semi-inconsciência e aceitou uma sopa que a Lily

mandara fazer. Nessa mesma noite, convocaram uma nova Cerimónia.

A Olanna sobreviveu dois meses. A noite do último ritual não foi

diferente em quase nada, mas a Escuridão que rodeava a Olanna saltou,

não havia outra forma de explicar o sucedido, segundo o diário do

George, e, quando roçou numa das Iniciadas, uma jovem com a cara

coberta, fez-lhe um corte profundo no braço esquerdo. Ela não se

apercebeu da dor por estar sumida no êxtase, mas quase perdeu o braço

e precisou de ser operada várias vezes. Após o salto da Escuridão, a

Olanna ficou imóvel, como sempre, prateada e vermelha, mas agora

terrivelmente magra, com os dentes salientes, a caveira perfeita sob a

pele, os olhos encovados. Já não mostrava a língua. Quando o George a

tomou nos braços, ficou surpreendido: estava fria. Não tinha febre. Não

lhe pareceu um bom sinal. No seu último delírio, a Olanna chorava. A

Lily enxugava-lhe as lágrimas: o sogro ordenara-lhe que as recolhesse

em pequenos recipientes parecidos com tubos de ensaio, mas ela só o fez


uma vez e, depois, disse ao marido que não obedeceria àquele homem

cruel, porventura não veria ele as costelas que pareciam querer rasgar a

pele da Olanna, o belo tom da sua pele a tornar-se cinzento, as cicatrizes

do rosto esbranquiçadas. Olanna, ninguém te obriga a isto, disse-lhe a

Lily, nua e apenas com uma fita de charleston dourada que lhe dividia a

testa e mantinha o cabelo curto no lugar. Menos de uma hora depois, a

princesa de Nri e médium da Escuridão deixou de respirar. A Lily

chorou com as mãos submersas num alguidar cheio de gelo.

A Lily e o George trataram do enterro da Olanna em Highgate, o

cemitério mais belo de Londres, embora, na altura, estivesse decadente.

A Lily mandou construir uma esfinge de pedra e deu instruções para que

a colocassem à sombra de um carvalho. O túmulo não tinha nome, nem

datas: o enterro de uma adolescente africana em estado de desnutrição

chamou a atenção das autoridades, mas o dinheiro dos Mathers

conseguia abafar qualquer escândalo. O Christopher teria preferido

conservar o corpo ou usar as suas cinzas nos rituais, mas o George

impôs a sua vontade. Não lhe tires toda a dignidade, pediu-lhe. Ela deu-

nos muito. O pai deu o seu consentimento para o túmulo.

Uns anos depois, no entanto, seria profanado. Poucos sabem isto,

mas o crânio da Olanna, ornado com joias, é usado pelas mulheres da

Ordem em reuniões secretas, danças e invocações. Eu assisti pelo menos

a duas, em Londres. Digo pelo menos porque a Florence me deixava

usar drogas psicadélicas em certos rituais, e, às vezes, sonho com a

caveira com um brilho vermelho na testa — tem uns rubis incrustados

—, e com uma mulher a levantar a saia e a mostrar algo parecido com

uma cauda comprida entre as pernas.

Foi a Lily que quis acompanhar o marido a África: o George tinha de

voltar para tratar dos negócios da família, desta vez em postos

comerciais junto ao rio Níger. Durante a longa e feliz viagem de ida, a


Lily engravidou. Mas não voltaram para trás: o menino nasceria em

terras quentes e, com sorte, seria um grande mestre, poderoso e

compassivo. Um menino que mudaria a Ordem e a sua exploração dos

médiuns.

O George Mathers, que nunca adoecera em África, nem sequer com

um mal-estar estomacal, foi atacado pela malária durante a primeira

semana perto do Níger. Morreu sem recuperar os sentidos. A Lily

perdeu o filho e ela própria teve febres — quanto à doença em si, os

médicos ocidentais não sabiam qual era, parecia-se com a malária, mas

podia ser qualquer coisa — e sobreviveu, mas apenas uns meses.

As notícias chegaram depressa a Londres. O Christopher Mathers

entregou o controlo da Ordem ao filho mais novo, o Charles. Já tinha

perdido dois filhos e sentia-se consumido e velho.

Seria a filha do Charles Mathers, a Florence, a confirmar a chegada

do médium mais poderoso que a Ordem jamais teve na Argentina, numa

noite de inverno de 1962, o rapaz louro e frágil que lhe trouxe a

Escuridão, desta vez em casa da outra família do sangue, os Bradford.

Uma vez mais, na selva e no calor. Ela pode ter confirmado a sua

chegada, mas fui eu que o encontrei. O médium manifestou-se perante

mim e para mim.

O que a Escuridão dita à Ordem são as instruções para alcançar a

sobrevivência da consciência. Chamar-lhes «instruções» é inapropriado,

mas é o termo mais simples para ajudar a compreender o fenómeno.

Sempre que fala e comunica através do médium, dita os passos

necessários para essa transição. Era o que a Escuridão ditava à Olanna

quando estava com ela; e também durante os transes do jovem escocês,

embora, nessas primeiras sessões, não tenham conseguido decifrar

completamente o significado das palavras. Dita o método de maneira


muito lenta, espaçada e enigmática. É tudo registado no Livro. Aquilo

em que nós acreditamos, e o que a Escuridão, e, por conseguinte, a

Ordem oferecem é a hipótese de manter a existência para sempre neste

plano. Mas a Escuridão é caprichosa. Às vezes, fala e é impossível

encontrar um sentido para as suas palavras. Às vezes, limita-se a dizer

palavras soltas. Às vezes, dita métodos para outros propósitos, em geral

maléficos, porque um deus assim só pode ser cruel. Frequentemente

narra pequenas histórias sobre a sua existência solitária num ermo

vazio: convida-nos a visitá-lo, mas não diz como, porque a sua natureza

é o capricho.

Só os médiuns podem invocar esta Escuridão que fala e que nos

ajudará a viver para sempre, a caminhar como deuses. Os mortais são o

passado, disse-me uma vez a Florence. O método de sobrevivência

demorou muito a revelar-se e é, obviamente, repugnante. Devo

acrescentar, também, que, para já, além de repugnante, tem sido um

rotundo fracasso. A fé, no entanto, não se discute. E é impossível deixar

de acreditar quando a Escuridão surge. É por isso que confiamos e

continuamos. Pelo menos, é assim que muitos de nós nos comportamos.

Outros, estão doentes de dúvidas.

Antes de 1962, vivi durante dois anos no apartamento do meu tio

com o Juan. Passava metade do dia na escola, onde me encontrava com a

Betty como se as nossas famílias não tivessem decidido uma separação

que, na altura, parecia definitiva ou, pelo menos, atipicamente

demorada. Nunca mais voltei às terras de Chascomús, embora tivesse

saudades delas: o monte dos esporões-de-galo, das acácias, das coroas-

de-cristo e, especialmente, os cães. Percebo e sempre percebi que a

Ordem queira tocar nos extremos para obter o conhecimento e que, em

muitos casos, isso implica esquecer o afeto ou abraçar a loucura, implica

crueldades difíceis de compreender, mesmo para os Iniciados. Mas


quando tive de dar de comer aos enjaulados, soube que aquele era o meu

limite, ou um dos meus limites.

O meu avô ensinou-me a traçar os círculos de giz; dizia que eram

magníficos. Não me deixavam fazer invocações, ainda: naquele

momento, os mais jovens da Ordem eram preservados até à

adolescência. (A Florence quebrou esta regra com o filho mais novo,

mas ninguém soube até ser impossível continuar a ocultar o mal.) O meu

avô, no entanto, ia-me transmitindo conhecimentos que ele considerava

menores. O Tarot. Os traços. Alguns rituais locais que eu e a Tali

considerávamos divertidos e nojentos, como crucificar sapos e rodeá-los

de círculos de sal para evitar as tempestades. Também me deixavam

ajudar o Juan, que, quando se sentia muito mal, perdia as defesas que o

mantinham afastado das presenças e dos desencarnados. Quando isso

acontecia, eu punha um signo ao lado da porta dele ou um talismã

debaixo da almofada. Sempre precisou destas pequenas ajudas em certos

momentos da sua vida, embora, na maior parte das vezes, fosse capaz de

evitar qualquer tipo de intrusão sozinho. Uma vez explicou-me que,

quando conseguiu aplicar com naturalidade o método que o meu tio lhe

ensinou, este lhe pareceu absolutamente normal, como não fazer chichi

na cama.

Durante esses dois anos, recebi a minha formação mais aprazível,

longe da minha mãe, a quem nunca mais voltei a chamar mãe e comecei

a tratar por Mercedes. Longe dela e perto dos homens da minha família,

falhados e alcoólicos, caçadores, colecionadores, que me faziam lembrar

os fundadores da Ordem e o George Mathers, o meu primeiro amor.

Em Puerto Reyes comecei a fazer listas. Sempre gostei de escrever

tudo: receitas e instruções, catálogos e indicações, dicionários e índices.

Quando o Juan se revelou, eu estava a fazer um dicionário elementar de

todos os seres que viviam na zona de Puerto Reyes. Falava com as


pessoas, registava o seu testemunho, andava com os meus cadernos. O

meu avô disse-me que podia estudar as religiões e as culturas, se

quisesse; que podia estudar antropologia em Oxford ou em Cambridge

ou na universidade que eu escolhesse. A Ordem manteve sempre o seu

perfil de investigação e de estudo: a Escuridão tinha de ser interpretada,

não se limitavam a adorar cegamente. Era difícil, mas possível, manter o

equilíbrio, através da incorporação de outras tradições esotéricas e de

outros sistemas de magia; assim, havia especialistas em cabala e na

doutrina mística do judaísmo, em sufismo, em espiritualismo, em

necromancia, em alquimia. A Ordem congregava os mais reputados

estudiosos da tradição mistérica, e também havia médicos,

especialmente neurologistas, porque a epilepsia, a esquizofrenia, a

hyperia, o êxtase místico, tudo era pensado e investigado. Eu queria

fazer parte dessa tradição que, obviamente, também incluía estágios.

Conhecer, atrever-se, querer e guardar silêncio: a definição dada por

Éliphas Lévi, um charlatão, como dizia o meu avô, mas um charlatão

que escrevia muito bem.

Lembro-me perfeitamente do dia e da noite da revelação: de resto, ao

longo dos anos tive de a relatar a diversos Iniciados. Estava farta de

nadar e do sol; e também estava um pouco enjoada por causa do barco.

A Tali tinha apanhado uma insolação há uns dias e estava com a

Marcelina, a mulher que tomava conta de nós e da casa. Essa foi a única

razão pela qual não estava connosco nessa noite. Ocultei-lhe a revelação

até o meu pai decidir que tinha chegado o momento de a iniciar. A Tali

não é do sangue, para ela os tempos eram diferentes. Nunca me

recriminou por isso.

Nesse inverno, o meu tio consentiu que o Juan viesse ao Norte pela

primeira vez. Trouxe-o ele próprio, de avião. Passámos o dia juntos e eu

acompanhei-o até ao quarto nessa noite: apesar de ter passado o dia todo
a viajar, não estava muito cansado, ou talvez estivesse tão excitado com

tanta coisa nova, que não conseguia dormir. Eu disse-lhe para de ser

chato e fecha os olhos, se virem que ainda estamos acordados, matam-

nos.

Fui para o meu quarto, liguei a ventoinha e deitei-me com o caderno

azul e a camisa de dormir de seda que o meu avô me tinha trazido de

Paris, linda, fresca, com uns pormenores muito imbrincados nas alças.

Lembro-me de escrever com uma esferográfica Parker de tampa banhada

a ouro, outro presente do meu avô que, entretanto, perdi. O meu pai

também me dava presentes muito bonitos: todos os anos, por exemplo,

me dava uma joia com uma pedra diferente. Nesse ano, ofereceu-me um

anel Lalique. Os anéis que todas as minhas colegas da escola desejavam

eram os Vendôme, mas eu preferia os que o meu pai escolhia, muito

mais estranhos e mais caros, peças de museu.

Abri o caderno e tomei nota de dois novos seres. O Guachu Ja Eté.

Escrevi: chamam-lhe «o dono dos veados» e assobia. Também converte

em veados aqueles que roubam. Foi o que me disse a Marcelina, mas

não me explicou que forma tinha este assobiador em particular. Há

muitos assobiadores e gritadores. O gritador mais impressionante,

idêntico à Banshee irlandesa, é o Mgogua. Quando grita, anuncia uma

desgraça, mas o grito só é ouvido por quem a vai sofrer. Assinalei com

uma seta a correspondência: Banshee e keening, o nome do uivo. A

Marcelina andava a ensinar-me um pouco de guarani. Eu sonhava

escrever livros sobre os mitos locais iguais aos que lia em inglês sobre

os seres das ilhas britânicas.

Como não tinha sono, guardei o caderno e saí do quarto para ir

buscar um copo de água. A casa estava em silêncio. O meu avô e o meu

pai já estavam a dormir, tinham-se retirado cedo. O meu tio também.

Tinha de passar pela porta do quarto do Juan no andar de baixo para ir à


casa de banho e lembro-me de andar em bicos dos pés para não o

acordar. Reyes, de noite, é uma casa linda. A Mercedes nunca lá ia, o

que convertia a casa, a meus olhos, num santuário. Em Reyes estava

longe da fúria dela. Continuava a bater-me com frequência, embora já

não vivesse com ela. Costumava pedir-me que lhe fizesse companhia ao

jantar, mas depois descarregava em mim se eu dissesse alguma coisa

inconveniente — e eu dizia sempre qualquer coisa que não lhe agradava.

As agressões da Mercedes nunca me fizeram chorar, e se alguma vez me

humedeceram os olhos, mais de raiva do que de dor, nunca deixei

ninguém ver. Só o Juan.

Descer a escada sem fazer barulho era fácil porque estava coberta

por uma passadeira, mas nos corredores o chão era de madeira e rangia.

O meu pai costumava dizer que devia ser de mármore ou de mosaico,

que a escolha da madeira tinha sido uma loucura, com aquele calor, mas

não havia dúvida de que era mais bonito assim. Puxei a camisa de

dormir para baixo, apesar de não ser curta, mas não queria que, se

alguém se cruzasse comigo de noite, sobretudo um homem, me visse as

pernas. Não eram muito compridas, mas eram lindas, pelo menos na

altura, o meu corpo mudou muito depois da gravidez. Quando secavam

ao sol, na praia do rio, ficavam com uma cor muito suave que parecia

verniz.

Quando passei, em bicos dos pés, pela porta do quarto do Juan,

estava aberta. Não era estranho: o meu tio obrigava-o a mantê-la assim.

No entanto, tive um pressentimento. Não estava na cama dele. Calculei

que tivesse ido à casa de banho e esperei. Dez minutos, quinze minutos,

até ficar alarmada. E se se sentisse mal? Procurei-o na casa de banho.

Nada. Depois, fui ao jardim e chamei-o. Só alguns pássaros noturnos me

responderam, para se calarem logo a seguir, e os cães da casa, que

vieram ter comigo. Havia muito silêncio, o que me assustou, porque a


selva é tão ruidosa que atordoa. Quando está calada, é porque está alerta.

Acariciei o lombo do Osman, o cão mais novo, um cachorro de manto

preto muito dócil que, se não recebesse constantemente sinais de que

estava tudo bem, ficava em guarda.

Não queria, lembro-me, que me responsabilizassem pelo seu

desaparecimento. Voltei a entrar na casa, ainda descalça, e bati à porta

do quarto do meu tio, que se levantou muito depressa, surgindo com a

camisa desabotoada e as calças desapertadas.

O Juan foi-se embora, anunciei. Não tinha a certeza disso, mas saiu-

me assim, aos borbotões. As pancadas na porta acordaram o meu pai.

Irra, que rebaldaria é esta, disse ele, e expliquei-lhe a situação. O meu

tio retorceu as mãos e eu senti-me nauseada.

Os homens organizaram-se para irem à procura dele e ordenaram-me

que ficasse, mas eu não liguei, estava a borrifar-me para as suas ordens

de bêbedos. Saíram os três, meio nus; o meu avô com um candeeiro a

petróleo, os outros, com lanternas. Os cães seguiram-nos, a ladrar.

Gritavam o nome do Juan. Fui atrás deles, de camisa de dormir e botas.

Não sei de onde nos vinha a convicção de que o Juan não estava

escondido algures na casa, mas ninguém pôs em causa a intuição. O

Osman deixou de seguir os homens e voltou para trás, para me

acompanhar. Acariciei-lhe a cabeça e levantei a lanterna à altura da

minha cabeça. Pensei no Juan afogado no rio. Pensei no Juan caído

nalgum poço, fora do nosso alcance. Pensei no Juan atacado por um

animal. Foi então que vi a roupa no chão, ou melhor dizendo, que a

pisei. Iluminei-a com a lanterna e percebi que era a que ele usava para

dormir, uma camisa comprida de manga curta às riscas azuis e brancas.

Estaria nu na selva? Gritei o nome dele, gritei sou eu, a Rosario, onde

estás, e corri por entre as árvores, raspando as pernas nas ervas altas.
Depois, imitei o que vi num filme: dei a cheirar ao Osman a roupa do

Juan. O cão não percebeu e ganiu.

Corri até entrar na selva e parei numa clareira, entre várias árvores.

A lanterna estava a piscar um pouco, mas abanei-a e a luz voltou a ficar

estável. De onde eu estava não conseguia ver a casa e pensei que, se

avançasse mais, me perderia no monte. Iluminei as árvores e foi então

que vi o Juan. O Osman, que estava ao meu lado, gania como se o

estivessem a torturar. Não o mandei calar porque o susto me emudeceu.

O Juan estava completamente nu e caminhava no meio das árvores como

um sonâmbulo; não se apercebia da nossa presença, nem da luz da

lanterna, e tropeçava. Tinha os olhos cobertos por uma película

amarelada, como se fosse a segunda pálpebra de um animal, e estava

esgotado: bateu num tronco e, embora não tivesse caído, parou, agitado

e a transpirar. Apontei a lanterna para as mãos dele. Já não pareciam as

de um rapaz. Estavam muito grandes e com as unhas muito compridas,

douradas, semelhantes às de um animal de bronze. Duvidei, pensei que

o rapaz não era o Juan, mas depois vi a cicatriz da cirurgia no peito.

Voltou a andar em círculo, de gatas, as mãos enormes a arranharem a

terra do chão, as árvores, a sua própria pele. Estava à procura de

qualquer coisa desesperadamente e não respondia quando eu dizia o

nome dele. Percebi o que estava a acontecer. Esperei pela luz negra.

Lembro-me de que o orgulho me fez tremer as pernas. Também tinha

medo. Meu deus, disse, e, pela primeira vez na vida, disse-o não como

se fosse uma exclamação ou uma frase feita, mas como um

reconhecimento.

Ele levantou-se. O corpo magro e demasiado alto do Juan estava

rodeado de algo parecido com insetos, imensos besouros ou borboletas

pretas a zumbir, mais escuros do que a escuridão da selva. Fez uma coisa

muito simples quando a Escuridão o começou a rodear: esticou os


braços e juntou as palmas das mãos à altura do peito, como se estivesse

prestes a mergulhar na água. O silêncio era absoluto: o Osman

emudeceu, nem um inseto, nem uma folha, nem o rio ao longe, nada,

apenas o silêncio e aquela película escura que envolvia o Juan, uma

linha de sombra à sua volta, e tudo me fez saber que alguma coisa estava

a mudar e que essa mudança era terrível e maravilhosa.

O corpo dele ficou sozinho e a flutuar na negrura e, então, retrocedi,

porque sabia que a Escuridão podia saltar, cortar, magoar.

Os homens chegaram nesse momento com o calor dos seus hálitos e

o fulgor das suas lanternas. O meu avô ergueu o candeeiro a petróleo e

vimos a Escuridão a cobrir as árvores como uma cortina pesada e

aparentemente impenetrável. Caiu de joelhos e retrocedeu, como um

peregrino cristão. O silêncio foi quebrado pelo ruído da Escuridão,

marítimo e voraz, um ruído de água. Não tinha cheiro. Nunca senti o seu

cheiro. A algumas pessoas cheira-lhes a decomposição; a outras, a

fresco. É diferente para todos. O meu pai estava boquiaberto, como um

imbecil, mas o meu tio chorava e aproximava-se rapidamente do Juan,

dirigia-se para ele de braços abertos, a gritar não sei o quê, não me

lembro ou não percebi; o meu avô tentou detê-lo e conseguiu, mas não

antes de a sua mão esquerda roçar na Escuridão aberta. A seguir, o meu

tio caiu no chão com a mão ensanguentada: faltavam-lhe vários dedos.

Gritava, mas nós não lhe prestávamos atenção. Olhávamos para o Juan,

que tinha a cabeça pendida e o cabelo sobre a cara e parecia morto.

Continuou assim mais alguns instantes, até que a Escuridão pareceu

regressar ao seu corpo. (Continuo a acreditar que é isso que acontece:

ele tira a Escuridão e depois recupera-a.) Quando levantou a cabeça, não

reconheci os olhos. Ainda não eram os seus. Começou a caminhar,

seguro e direito, e abandonou o espaço entre as árvores, a sombra

continuava a rodeá-lo como se fosse fumo, e agachou-se ao lado do meu


tio, que deixou de se queixar quando o viu. O Juan tocou ao de leve na

ferida com as suas mãos enormes e cauterizou-a. Antes disso, o sangue

manchou-lhe o corpo nu.

Então, o candeeiro a petróleo do meu tio apagou-se e os homens

rodearam o meu tio. Deixaram de prestar atenção ao Juan, que se afastou

deles de gatas, nu. Não sei porque é que não o viram ou seguiram, talvez

por a Escuridão desejar que eu e ele ficássemos a sós. O Juan não

conseguia ir longe, não tinha forças para o fazer, estava alagado em suor

e tocava no peito, que lhe doía, com a mão. Parecia um recém-nascido

enorme, húmido, meio a sufocar. Sentei-me na relva e chamei por ele da

mesma maneira que se chama por um cão, porque ele não perceberia

outra coisa. Veio até mim a rastejar e eu abracei-o, tomei-o nos braços,

estava tão molhado, a escorrer, mas olhava para mim, e eu pedi-lhe que

se acalmasse, porque estava comigo. Então, beijei-o. Foi um beijo muito

infantil, com a boca fechada, mas longo e inadequado. Porque fiz isso?

Ainda não sei. Estava louca. Ele rodeou-me o pescoço com os braços e

eu desatei a chorar, a única coisa que sentia era o corpo dele a molhar-

me a roupa, as mãos quentes, a respiração a queimar-me o rosto, o

palpitar irregular do seu coração.

Os homens vieram buscá-lo e eu resisti, não o queria largar, mas é

claro que não podia lutar contra eles. A menstruação veio-me nesse

momento, o sangue manchou-me a camisa de dormir, senti que também

manchou as ervas. Levaram-no a correr para casa, para tratarem dele.

Quando os segui, com as pernas ensanguentadas, não parava de pensar

fui eu que o encontrei, é meu, não mo vão tirar.

Creio que enlouqueci durante aqueles minutos, tocada pela

Escuridão. Se o meu pai não me tivesse dado o valente sopapo que me

deu quando cheguei a casa, teria continuado histérica. O meu pai diz

sempre que, na Ordem, de uma maneira ou de outra, todos acabam por


enlouquecer; percebi que era assim naquela noite. Certo dia, depois de

uma Cerimónia, o meu pai veio ao meu quarto cumprimentar-me de

whisky na mão, e eu perguntei-lhe como é que se pode continuar depois

disto, como é que vocês podem, o mundo é estúpido, as pessoas que

ignoram tudo são desprezíveis. E ele respondeu-me uma coisa que é tão

certa, que às vezes até a repito em voz alta. É que nada acontece depois

disto, filha. No dia a seguir temos fome e comemos, queremos estar ao

sol e nadar, temos de fazer a barba, temos de falar com os contabilistas e

visitar as terras porque queremos continuar a ter dinheiro. O que

acontece é real, mas a vida também.

Decidiram afastá-lo de mim durante os primeiros dias, que foram de

correrias e carros a arrancar a toda a velocidade levantando a terra

vermelha. A Mercedes apareceu. Tentei esgueirar-me para o quarto do

Juan num momento de distração, mas ela arrastou-me pelos cabelos e

acabei no chão. Cheirava a perfume de rosas, uma fragrância barata,

asquerosa, podia comprar todos os frascos que quisesse, mas ela preferia

aquele porque gostava de cheirar mal. A Tali fora recambiada para

Corrientes, onde a tia tomava conta dela.

Eu não conseguia dormir nem pensar nem escrever, e fechavam-me

as portas na cara, mas conseguia ouvir. O meu tio falava dos dedos

perdidos. Dizia que tinha sentido frio nas mãos do Juan. Dizia-o a

chorar. Também lamentava nunca mais poder voltar a operar. Estava

devastado e, ao mesmo tempo, contente, como o meu avô. A única que

não perdia a compostura era a Mercedes. Andava pela casa e pelos

jardins de camisa branca e calças bege de cintura alta. Se fosse outra

mulher, com o cabelo pelos ombros, um chapelinho a tapar-lhe as

peladas e os óculos escuros que usava dentro de casa, teria dito que

estava linda, que, pelo menos, conservava uma certa elegância no meio
do caos e das correrias, mas eu só conseguia ver a satisfação e a

arrogância. Caminhava com ares de superioridade, troçava dos homens,

troçava de mim. Gritava: nenhum tem caráter para lidar com isto,

cambada de capados! Capados: era assim que chamavam aos touros

castrados da fazenda.

Aguentei dois dias sem ver o Juan e depois fui ter com o meu avô.

Estava sentado num cadeirão de ferro, a fumar. Tinha a pele dos braços

muito irritada. Quando me viu, fez-me um sinal para eu me sentar ao

lado dele. Lá em baixo, no rio, um homem e uma mulher, a bordo de

uma lancha enferrujada, lançavam flores brancas à água. Pedi licença

para ir ver o Juan. Fui eu que o encontrei, disse-lhe. Estou no meu

direito e, além disso, ele precisa de mim.

O meu avô negou com a cabeça e acrescentou: amanhã chega a

Florence Mathers. Ela vai explicar-nos o que fazer. E a ti também,

porque quem se vai incumbir dele és tu, tu és a custódia. Tal como o

George era da Olanna. És tu a primeira responsável.

Vão levá-lo?, perguntei, e a reação do meu avô foi surpreendente.

Agarrou-me pelos ombros e vi que os seus olhos estavam diferentes,

mexiam-se muito, como se estivesse à espera de que alguém o viesse

prender. Não, disse-me. Não o vão levar. Ele veio até nós. Procurou-nos.

Podia ter morrido quando era pequeno, mas aguentou. Nós esperámos

por ele e ele cumpriu. Depois, começou a murmurar sem grande

coerência, dizia que honra, a porta está cá, para onde o levariam?

Deixou de me apetecer estar com ele e corri até à plataforma. Eu não

tinha assim tanta certeza. Se o levarem, vou com ele, pensei. Nunca nos

vão separar, acabou de dizer o avô. Os homens não o teriam encontrado.

Sem mim, pensei, o médium não teria aparecido.


2

VOMITEI DURANTE TODO O VOO. As hospedeiras pensavam que estava

nervosa ou enjoada: estavam sempre a dar-me sacos, guardanapos e até

uma toalha. Passaram-me para outro assento para que deixasse de enojar

e incomodar o passageiro que estava sentado ao meu lado: viajava na

primeira classe e havia vários lugares livres. O avião tremia e as

turbulências eram incessantes, mas eu não me importava nada com isso,

não tinha medo, como os outros passageiros. Ir estudar e viver para

Inglaterra, estar sem o Juan durante alguns anos, era a coisa mais

decisiva que tinha feito na vida e, embora não tivesse qualquer tipo de

dúvidas quanto à minha decisão, não conseguia deixar de pensar na

despedida, que fora longa e desesperada e enraivecida. O Juan fez tudo o

que pôde para que eu ficasse com ele. Jurou que se suicidaria se eu o

abandonasse. Que nunca mais voltaria a fazer invocações nas

Cerimónias. Que nunca mais falaria comigo. Ouvia-o sempre de braços

cruzados na sala do apartamento do meu tio, e todas as noites deixei que

me beijasse encharcado em lágrimas, e repetia-lhe sempre a mesma

coisa: precisava de estar longe dele, queria ser alguém sem ele. Planeara

tudo muito bem. Tinha quem o acompanhasse durante as Cerimónias: o

Stephen, o filho mais velho da Florence. A minha função, no ritual,

podia ser substituída por uns tempos. Não queria lançar-me numa

existência dedicada ao Juan sem ter tido a hipótese de saber se seria

possível viver fora daquele vínculo obsessivo e devocional. Estava

esgotada de todas as formas possíveis, e assustada, porque me

apercebera de que eu e ele íamos ficar juntos, íamos ser o casal, os

herdeiros, e, naquele momento, queria fugir dessa certeza. Sentia que, se

não aproveitasse o tempo, toda a minha vida consistiria em acompanhá-

lo. Isto enfureceu-o: qual é o mal, ele precisava da minha companhia, ele
revelara-se a mim porque eu tinha de ser a sua companheira e estávamos

apaixonados, uma palavra que ele se limitava a repetir sem saber o que

significava, porque só tinha quinze anos e nunca conhecera outra

rapariga, nem sequer gostara de outra, e eu não queria isso nem para ele,

nem para mim. Não sabia se a minha partida resolveria alguma coisa,

mas a minha presença não ajudava, certamente. Podes visitar-me, disse-

lhe, o que era uma crueldade, porque não o deixavam andar de avião,

pelo menos por enquanto: estava descompensado e em breve teria de ser

operado de novo. Nas discussões, também me culpou pela sua recaída, e

suponho que tinha razão. Entre as Cerimónias, bastante frequentes,

quatro por ano naquela altura, e a angústia, os sintomas da insuficiência

cardíaca tinham-se agravado. Apesar do estado de deterioração e da

fraqueza dele, pensei que seria capaz de me bater durante uma

discussão. Era tão alto e tinha uma envergadura tão demolidora, quanto

eu era pequena e desajeitada; desejava-me com a raiva de um

adolescente e a arrogância de um semideus. Apenas uma vez não quis

soltar-me de um abraço depois dos beijos, e eu tive de o empurrar

brutalmente, de o tirar de cima de mim, acusando-o de ser um macho

violento e idiota. Podes abusar do teu poder com todos os outros, gritei-

lhe, mas não comigo. Passou a noite no lado de fora da porta do meu

quarto a pedir desculpa. É isso que fazem todos os homens violentos,

disse-lhe, pedir desculpa. Foi a única coisa, em toda a nossa horrível

despedida, que serviu para alguma coisa.

O Juan não foi o primeiro homem com quem fiz sexo. Antes de me ir

embora, quando soube, foi buscar uma das espingardas do meu avô e

disparou contra as taças de cristal e as louças francesas da Mercedes. A

polícia apareceu porque os vizinhos denunciaram os disparos. Faltavam

poucos dias para o Natal e mentimos, dissemos que os fogos de artifício

que estavam guardados para as celebrações tinha rebentado devido ao


calor. Acreditaram parcialmente na história. O meu primeiro amante foi

um corredor de longa distância que conheci no clube Regatas. Atraiu-me

porque parecia compreender a minha sensação de urgência, de falta de

tempo. Ele disse-me que, como era desportista, tinha uma noção

diferente do tempo. O corredor não era muito atraente e nunca mais o

voltei a ver, mas penso muito nele porque me falou da importância dos

segundos, de que nada é mais complicado do que lutar contra eles, dois

ou três faziam toda a diferença, e, ao mesmo tempo, era tão estúpido, tão

fútil lutar todos os dias contra milésimas, contra aquilo que os relógios

quase não registavam, contra algo que quase mais ninguém tinha em

conta.

O meu avô disse apre, que o Juancito sabe disparar, por esta é que eu

não esperava e foi tudo. Já estava muito deprimido naquela época e

suicidou-se poucos anos depois. Tenho saudades do meu avô todos os

dias, embora seja um destino previsível para os membros da Ordem e

somos ensinados a aceitá-lo. A casa cheirou a pólvora durante semanas e

o Juan passou-as fechado no quarto. Quando saiu, eu disse-lhe que

também ele podia procurar alguém, e ele gritou achas que alguém vai

gostar de mim. Ah, qualquer pessoa, é só escolheres. Desdenhou das

minhas palavras com um gesto de derrota. Nunca compreendeu o

desconcerto e o fascínio que provoca nos outros. Eu estava a dizer a

verdade. Aos quinze anos, o Juan não parecia um adolescente e, embora

fosse delicado e pálido, parecia um homem, de costas largas, braços com

veias proeminentes, uma expressão triste e arrogante no olhar.

Fui-me embora de noite e deixei-o a chorar: o motorista estava à

minha espera, as malas já no carro. A viagem até Ezeiza foi longa, mas

hipnótica, e só me senti doente quando entrei no avião. Não sabia se

teria muitas saudades dele, nem até que ponto seria insuportável a sua
ausência, mas sentia-me livre e longe e sozinha. Era o que eu queria.

Vomitar durante toda a viagem foi uma limpeza.

No aeroporto, tinha o Stephen à minha espera. O vento despenteara-

o e a madeixa de cabelo banco cobria-lhe os olhos. As brancas

apareceram-lhe no dia após a sua primeira Cerimónia: o Juan marcou-

lhe as costas com as unhas douradas. Foi um momento inesquecível

porque o Stephen era muito novo, era o filho da Florence e porque as

feridas eram profundas e compridas, iam desde a parte inferior das

omoplatas até à cintura. Todos os presentes gritaram: pensavam que o

tinha matado. A cura foi tão terminante, imediata e perfeita como

quando cauterizou a mutilação da mão do meu tio. As duas linhas

elegantes, como costumava dizer o Stephen agora, provavam que ele era

um anjo caído e eram muito atraentes para os seus amantes. No entanto,

na altura, quando foi ferido, o trauma deixou-o mudo e com aqueles

cabelos brancos repentinos. A marca também indicava que ele era o

companheiro do médium, se assim o desejasse. Nunca tive ciúmes: pelo

contrário, foi um alívio ter com quem partilhar a tarefa.

Abraçámo-nos como se fôssemos namorados: ele levantou-me no ar

e fez-me rodopiar entre os viajantes e os turistas, os bagageiros, a voz

que anunciava os próximos voos. Eu adorava o Stephen, tinha toda a

alegria e a ousadia que a mim me faltavam, pelo menos naquela época.

Carregou com as malas até ao carro que nos levaria até à casa central da

Ordem, a da sua mãe, em St. John’s Wood. Embora a minha família

também tivesse casas em Londres e me pudesse arrendar uma, a

Florence preferia que eu, pelo menos no início, ficasse hospedada na

dela. Quer perceber porque é que abandonaste o Juan, disse-me o

Stephen. Mas eu não o abandonei. Seria assim tão difícil de perceber?

Há seis anos que vivia dedicada a ele. Queria sentir a sua falta e voltar

para ele com um verdadeiro desejo. Queria que se transformasse num


homem. Compreendo perfeitamente, amiga. Oxalá o Juan também

compreenda. Vai compreender, e, se não, eu explico-lhe ao pontapé. Ri-

me e beijei o Stephen na cara. Ele também estava apaixonado pelo Juan,

mas nunca interferiu e eu sempre o quis ter por perto, como um outro

esposo, o pacificador.

A casa de St. John’s Wood não era visível da rua porque estava

rodeada por um muro de tijolo. Eu já a conhecia: tinha lá ido há uns

anos, durante uma breve viagem anterior. Tinha um jardim lindo, mas

triste, com uma fonte de pedra, rosas vermelhas e amarelas e caminhos

de gravilha. O verde muito intenso da relva obrigava a semicerrar os

olhos. A casa albergava a biblioteca principal da Ordem. Um grupo de

especialistas zelava por mais de três mil livros; também havia duas

divisões dedicadas a edições contemporâneas. E no lugar mais vigiado, o

Livro que se ia escrevendo com as palavras da Escuridão, o texto

sagrado da Ordem cujas melhores e mais extensas páginas se deviam ao

Juan. Esse contributo crucial ajudou a que lhe concedessem uma vida

normal, com Cerimónias espaçadas entre si e uma metodologia

completamente diferente da praticada até então com os seus

predecessores, usados até à exaustão. A Florence orgulhava-se de ter

tomado essa decisão porque os resultados eram evidentes: jamais a

Escuridão dera tanta informação, embora, por vezes, de modo errático e

confuso. A nossa missão é interpretá-la, dizia, temos de aprender a ser

pacientes.

Recebeu-nos com um abraço: estava sozinha, descontando os

empregados e o Eddie, o filho mais novo, que vivia com ela por não

haver nenhuma instituição capaz de lidar com ele. A primeira coisa que

fez foi perguntar-me se queria tomar banho antes de comer, porque devia

estar esgotada após o voo noturno. Eu estava esgotada e esfomeada: já

não sentia náuseas nem enjoos. Fui com a Florence até ao quarto de
hóspedes e um dos empregados deixou a minha mala em cima do

elástico do móvel destinado à bagagem. O papel de parede tinha rosas

com espinhos, como o jardim. Da janela viam-se a rua húmida e as

pessoas a caminharem depressa, geladas pelo frio de fevereiro. A

banheira, para minha surpresa, já estava cheia. A Florence era pródiga

em atenções deste género, que, em minha casa, a minha mãe nunca

aprendera a pôr em prática. Saí da água quando comecei a ficar com frio

e escolhi um vestido preto simples, comprido, largo, e uns mocassins

abotinados. A casa era bastante quente, e não precisava de usar casaco.

Tivemos um almoço um pouco incómodo, os três. A Florence ouviu

os meus planos para estudar em Warburg e Cambridge; limitou-se a

dizer-me que já estava tudo tratado, que dali a duas semanas poderia

começar a frequentar umas aulas e, depois, dar início ao meu plano de

estudos. Não falámos do Juan, mas sobre o Eddie. Enquanto comíamos,

ele estava amarrado à cama, porque tentava morder-se e já tinha

conseguido dar cabo dos pulsos com os dentes. A Florence mantinha em

segredo o que tinha feito com o filho mais novo, mas contava o essencial

porque, julgava ela, a aparição do Juan tinha sido um wake up call para a

sua arrogância, uma maneira de lhe dizer que nem ela, nem ninguém,

podiam contrariar as decisões da Escuridão. Ao treinar o filho para ser

médium, arrasou com a psique dele. O Eddie estava louco e era

perigoso, para ele e para os outros. Ela lamentava-o profundamente e era

sincera na sua dor, porque amava o Eddie com desespero.

O Stephen não me deixou descansar depois de comer. Quando

retiraram os pratos e a Florence mandou vir o chá, disse-me hoje vamos

sair, tens de conhecer a cidade, é maravilhosa. O resto do país não vale

nada, mas Londres é o centro do mundo.

A Florence não nos impediu. Não gostava da companhia dos jovens.

Fazíamo-la lembrar-se do que perdera na adolescência, por ter sido


obrigada a assumir as rédeas da Ordem. Nós, para ela, não tínhamos

nenhuma responsabilidade. À porta de casa, sob o chapéu de chuva, o

Stephen beijou-me e, com a ponta da língua, colou-me um ácido ao céu

da boca. É só um quarto, disse, espero que não tenhas uma má viagem, é

a tua primeira vez e é melhor voares baixo. E entrámos no seu Lotus

Elan verde-musgo, que podia ser usado como descapotável, embora,

dizia ele, nesta maldita ilha só se pode tirar a capota três dias por ano.

Estava a exagerar, claro, mas não muito.

Antes da Florence, o líder da Ordem era o Charles Mathers, o avô que o

Stephen nunca conheceu. O Charles estava decidido a encontrar um

médium para a sua geração, como tinha feito o irmão mais velho, o

George, com a Olanna. Mas não conseguia, apesar de procurar

freneticamente. Expandiu a Ordem pelo mundo inteiro anunciando a

promessa da Escuridão: a possibilidade de os seus membros

perpetuarem a consciência neste plano, ou seja, uma forma de

imortalidade na Terra. De facto, encontrou muitos médiuns em vários

lugares do mundo, mas não conseguiu manter nenhum com vida durante

tempo suficiente, nem fez progressos significativos. Está tudo no Livro.

Um jovem que morreu durante uma Cerimónia. Um adolescente que se

suicidou apenas um mês depois de se tornar médium da Ordem. Um

jovem que, nos Estados Unidos, tentou enforcar vários Iniciados antes de

morrer devido a um derrame cerebral. O Charles percebeu como seria

difícil manter com vida e lucidez aquelas crianças tenebrosas, mas não

sabia como fazê-lo. A Florence foi a primeira a perceber.

A notícia sobre a Encarnación, a adolescente encontrada em

Figueras, na Catalunha, chegou-lhe após os bombardeamentos do

inverno de 1939. O Charles não teve medo de ir para um país em guerra,

nem de entrar numa região tão conflituosa naquele momento. Fê-lo a


partir de França. Viu a menina ainda traumatizada, enlouquecida pela

dor e pelo terror: tinha perdido toda a família no ataque franquista.

Levou a menina para França com a ajuda dos Margarall, uma família

aristocrática que fazia parte da Ordem; a cidade escolhida foi Perpignan.

A menina foi violada várias vezes, eu chamo-lhes violações, embora

a Ordem fale de magia sexual. A Cerimónia não precisa de nenhum tipo

de magia sexual, nem sequer no caso do médium, e o Charles sabia isso.

Deixou-se levar pela ambição, cedeu à perversão de alguns membros da

Ordem que disputavam o seu poder e caiu na voragem demente da

guerra. Depois de não a deixarem sair durante meses, a Encarnación

esgueirou-se por uma das janelas do rés do chão, voltando depois para a

casa, onde estavam quase todos a dormir, com uma espingarda roubada

numa quinta vizinha. Matou-os a todos. O Charles e os filhos, os irmãos

da Florence — ela, por indicação do pai, ficara em Londres, o que lhe

salvou a vida; os Margarall; as famílias mais importantes da Ordem,

pelo menos as que se tinham atrevido a atravessar a Europa. Além de

matar todos os homens da Ordem, destruiu-lhes os genitais com uma

faca. A Encarnación tinha catorze anos e estava grávida. O Stephen

enviou-me uma fotografia dela: era uma rapariga magra, com uma fita

no cabelo escuro para que este não lhe descaísse para a cara. O Stephen

diz que há que cortar o círculo, parar a roda. E insiste na ideia de que

cada médium está relacionado com a sua época. Um camponês na

revolução industrial, uma mulher negra das colónias britânica antes da

descolonização, uma adolescente pobre na guerra cuja carnificina passa

despercebida no meio da carnificina geral. É o que somos, diz, e é

possível que a Escuridão se alimente dessa dor e desta exploração. Não

quero que seja assim, disse-lhe eu uma vez, e ele respondeu-me que

poderia tentar uma mudança se quisesse ser líder. Mas eu sei que ele

acha que não é possível.


Depois de matar e mutilar toda a gente, a Encarnación atirou-se da

janela do andar mais alto da casa. Teve morte imediata.

Foi o pai do Stephen, Pedro Margarall, que encontrou o corpo dela.

Tinha saído de casa por um motivo estúpido: estava frio, faltava álcool

para acender a lareira, e também lâmpadas, porque se fundiam muito

depressa, e precisavam de velas para quando havia cortes de luz, alguns

relacionados com avarias no sistema elétrico provocadas pela guerra,

outros com as forças libertadas durante as Cerimónias. Encontrou a

médium morta na gravilha, os cães enlouquecidos e a Ordem

assassinada. Pedro Margarall tinha vinte anos, estudava filosofia e

religião e era filho de um marquês: não sabia resolver absolutamente

nada. Assim, fez a mala, tirou algumas fotografias para que acreditassem

nele e atravessou a fronteira antes de ser preso. Chegou a Londres com

as notas dos escribas, porque era um Iniciado diligente mesmo perante o

desastre. A Florence e a mãe pediram-lhe que ficasse com elas.

O Pedro e a Florence reconstruíram a Ordem durante e depois da

guerra. Ela convocou uma reunião na qual compareceram menos de dez

Iniciados e anunciou que era a nova líder. Muitos desprezaram-na, mas

outros reconheceram a sua coragem. Era necessário fazer uma purga,

disse-lhes, o meu pai não estava a obedecer à Escuridão, mas à sua

própria ambição, e arrastou-nos a todos para perversões desnecessárias.

Foi a Florence que fez tudo, a ajuda do Pedro foi consistente, mas

mínima. Até se ocupou, pessoalmente, dos negócios em Inglaterra, na

Argentina, na África do Sul e na Austrália. O Stephen diz que o pai, que

é um tipo completamente diferente da Florence, um scholar e uma

pessoa doce, delicada, se apaixonou pela força de vontade dela. E ela

escolheu-o não apenas por ser a única testemunha viva do massacre, mas

porque já era, e ainda é, a pessoa mais bem formada intelectualmente da

Ordem. Pedro Margarall está vivo: devia tratá-lo como lhe é devido, por
Marquês de Margarall. Está recluso na sua casa de Cadaqués. Só recebe

o Stephen e a Florence. Cometeu um erro com o Eddie e não se perdoa a

si próprio. A força de vontade que o apaixonou acabou por destruí-lo.

O meu ano zero, 1967. Bengalis que vendiam estolas com signos

mágicos na rua, músicos de rua vestidos com trajes isabelinos,

braceletes de plástico da Biba, os sáris indianos que nunca me ficaram

bem e acabava por enviar por correio à Tali, que namorava com o Juan e

eu não me importava, tinha um pouco de ciúmes, mas percebia: eu e ele

precisávamos de uma vida separados para nos voltarmos a encontrar. As

boutiques de Walton Street, as botas até às coxas com minissaias que

não me ficavam bem, porque é preciso ter pernas muito magras para as

usar. Em Carnaby Street, uma estilista explicou-me o que devia vestir de

acordo com o meu corpo e o meu estilo: saias compridas ou calças à

boca de sino, boas, brincos de bronze, o cabelo ripado se a humidade lhe

tirasse o volume. Comprei a uma rapariga uns brincos enormes, pretos,

em forma de pentagrama. Aprendi a fazer os símbolos da chave de

Salomão na perfeição. Comecei a fazê-los quando era muito pequena,

mas em Londres a Ordem aperfeiçoou-os. Não usava os materiais

tradicionais: fazia-os com giz. Às vezes, com sangue. O tempo parecia

infinito. Pegava no meu Mustang e ia a Cambridge, às aulas, conseguia

conciliá-las com as de Warburg, e ainda sobravam horas para a magia e

a roupa e os passeios. O tempo, de repente, esticou. Sabia que seria

assim: era disso que andava à procura. A massa do Alvaro’s quando

tínhamos muita fome. O Baghdad House, o restaurante onde as pessoas

fumavam haxixe abertamente e se ouvia música maqam. Ir com o

Stephen à King’s Road, ao seu alfaiate favorito. O clube Seven and a

Half, onde vi o Jimi Hendrix, uma cave carregada de fumo e tão

opressiva, que o ácido me fechou a garganta e me fez chorar. Os


espetáculos incríveis do Marquee. Planeávamos as nossas viagens de

ácido a destinos imprevisíveis; o Cavalo Branco de Berkshire, que

contemplávamos durante horas ao longe, a sua figura estilizada de giz,

de um minimalismo incrível; os círculos de pedra neolítica de Avebury;

Glastonbury e Stonehenge, onde sempre encontrávamos hippies e

travellers e as centenas de neopagãos e de místicos que povoavam o

país: uma vez, demos com uma cerimónia «druídica», e a Laura, uma

colega minha, que estava a tripar e bêbeda, riu-se tanto, que nos

expulsaram. You don’t know anything, gritava-lhes, if only, e o Stephen

tapava-lhe a boca, porque se a Florence descobrisse que andávamos por

aí a insinuar o nosso segredo, o castigo podia ser considerável. Eu

gostava de ir a Stonehenge: muitos músicos visitavam o círculo e não

havia nada de que eu mais gostasse do que de música. Alguns levavam

guitarras e era maravilhoso cantar com eles embrulhada num casaco de

pele afegão e a fumar haxixe. Nos nossos passeios, incluíamos quase

sempre a casa de Edward James em West Sussex, a mansão dos

surrealistas com o seu bosque e o seu couto de caça. Anos mais tarde, a

Tali perguntou-me várias vezes como é que fazíamos para conseguir

guiar drogados. Como é que eu conseguia estudar naquelas condições. A

verdade é que é possível funcionar sob o efeito de drogas muito melhor

do que as pessoas pensam e, além disso, eu era tão nova, que podia

deambular cheia de ácido um dia inteiro e no seguinte assistir a várias

aulas e estudar as que fizessem falta. A nossa resistência era invejável.

Quando falo de nós, refiro-me ao Stephen e aos nossos amigos, que

eram quase todos filhos de membros da Ordem: a Sandy, que estudava

História do Médio Oriente em Cambridge; o Tara, o amante mais estável

do Stephen, herdeiro de uma empresa de construção naval; o Robert, que

nos levava aos melhores concertos da cidade e participava na

organização de alguns festivais livres; a Lucie, que queria ser fotógrafa,


mas trabalhava como modelo e tinha uma inveja terrível da Penelope

Tree. Mas, sobretudo, quando digo nós, refiro-me ao trio formado por

mim, o Stephen e a Laura. Não era um requisito, mas a Ordem exortava

os seus membros a viverem sob a premissa do andrógino mágico, ou

seja, podíamos escolher amantes do mesmo sexo para os rituais e para a

vida, para que essa energia nos abraçasse e nos fosse útil nos trabalhos

mistéricos. O Stephen tinha dezanove anos, eu, dezoito, e a Laura, vinte

e dois. Éramos jovens e atrevidos: nunca hesitámos em aceitar a

sugestão porque, além disso, quase todas as pessoas da nossa idade e do

nosso círculo viviam assim. O ácido é uma droga muito sexual e, sob os

seus efeitos, a ideia de que os sexos se devem relacionar exclusivamente

com os seus opostos é absurda.

O mundo é parecido com a Ordem, dizia o Stephen, e, claro, não se

referia ao mundo na sua totalidade, mas ao nosso, ao da juventude

boémia e herdeira, libertina e poderosa, que inventou a cena londrina

dos anos sessenta. Posições políticas radicais, hedonismo,

promiscuidade sexual, roupa estranha, miúdos com demasiado dinheiro:

isso era parecido com a Ordem. Mas o espírito da época, o cânone

hippie, é que era idêntico. Nunca foi mais fácil camuflar-se, dizia a

Florence, e, por isso, em parte, permitia que os jovens participassem no

exoterismo ambiental. Nas festas falava-se da polícia do pensamento, de

William Blake e de Hölderlin, lia-se Castaneda e Blavatsky, viam-se os

quadros de Escher para estimular as viagens, discutia-se sobre ovnis e

fadas no campo. Era comum fumar haxixe e, enquanto o cachimbo

circulava, folhear Le mystère des cathèdrales ou discutir sobre se o

melhor Tarot era o de Crowley ou o de Waite (ou, como eu e a Laura

insistíamos, o da Frieda Harris ou o da Pamela Colman). Consultava-se

o I Ching, usava-se ouija, ia-se a Primrose Hill, onde nascem as linhas

de ley, o mapa do território mágico das ilhas com os seus megálitos


alinhados; tentava ver-se o Sol avistado por Blake. Uma manhã, a Sandy

julgou ver uma luz negra, os corvos do deus Bran, em Tower Hill.

Ficámos alerta, mas não aconteceu nada. O Tara, com a sua enorme

fortuna, trazia-nos objetos, tapetes e roupa de Marrocos, o seu lugar

preferido do mundo, onde nunca fui.

O nosso epicentro era a casa do Stephen em Cheyne Walk, perto do

rio, em Chelsea. O Stephen escolheu-a porque tinha uma escadaria

projetada nos anos trinta por Sir Edwin Lutyens com um corrimão de

ferro maravilhoso e, em baixo, porque fazia uma curva de serpente, uma

pequena mesa sobre mosaicos de design art déco ligeiramente arcano.

Mudei-me para a casa dele dois meses depois de chegar a Londres.

Ficava longe de St. John’s Wood e da Florence, mas isso ajudava-me a

conhecer um pouco melhor a cidade. A minha cama estava sempre

coberta de livros e de discos, como as camas de toda a gente que eu

conhecia: era o lugar de reunião, algo normal entre pessoas que

passavam do mandrax para o haxixe, toda essa languidez e lentidão em

que vivíamos. Às vezes, não percebíamos o que dizia o Robert, e então

ele tinha de escrever as datas e as horas dos concertos, porque ficava

com a língua presa. Incenso, bálsamo de tigre e sono.

A Laura era a única que não levava aquela vida. Deitava-se comigo,

fumava tabaco e despia as calças de corte direito e masculino que usava;

eu admirava as suas pernas magras e firmes e ela perguntava-me pelo

Juan. Nunca assistira a nenhuma Cerimónia e, por isso, não o conhecia.

A Laura era a filha adotiva da Anne Clarke, a tia da Florence. Faltava-

lhe o olho esquerdo e vestia-se de tal maneira, que era impossível

adivinhar-lhe a forma do corpo: não só usava roupa de homem, como de

vários tamanhos acima. Tinha o cabelo comprido e, no entanto, sempre

oleoso, e bebia de uma maneira atroz, tanto, que costumava perder-se, e

o Stephen tinha de ir à procura dela pela cidade. Encontrava-a a dormir


nos parques e nos cemitérios, os seus lugares prediletos, porque a Laura

era, de todos nós, quem mais estudara a comunicação com os mortos ou,

como lhes chamava a Ordem, os desencarnados. As mãos dela

costumavam cheirar a terra e, às vezes, a sangue; quando não tomava

banho, podia tresandar a decomposição. Eu incumbia-me de a limpar, às

vezes: esfregava-lhe a pele com a esponja e tratava das cicatrizes que ela

fazia a si própria quando estava demasiado bêbeda. Líamos The White

Goddess em voz alta até a água ficar fria e, depois, quando nos

secávamos, fazíamos cócegas uma à outra e ela dava-me mordidelas no

rabo. Conservava a pálpebra do olho, mas recusava-se a usar uma

prótese de vidro: preferia uma pala de cabedal. Para mim, era linda.

Conheci-a durante um ritual em casa da Florence e fiquei impressionada

com a ferocidade dela: com a maneira como usou uma faca para fazer

um corte no braço, como mandou calar a mulher que gritou quando

também a teve de cortar, como pronunciou as palavras, com autoridade

e sem tremer, como me estimulou até a energia sexual se converter em

algo palpável sobre o meu círculo de giz, como se dirigiu à entidade

invocada com uma familiaridade surpreendente. A Laura era infalível e

fazia-se respeitar: não ia a todos os rituais, nem aceitava trabalhos

menores. Costumávamos percorrer Highgate e acariciávamo-nos em

cima dos túmulos. Eu confessei-lhe que o George Mathers tinha sido o

meu primeiro amor; ela lamentava que a Ordem não tivesse recuperado

o seu corpo, que estava enterrado na Nigéria.

Na cama de Cheyne Walk, a Laura queria saber mais sobre o Juan.

Sabes o que é que ele pensa sobre o que a Escuridão dita?, disse-lhe eu

uma vez. O Juan acreditava que o que os escribas escreviam era apenas

fruto de sugestão. Ou que, na melhor das hipóteses, o que a Escuridão

dizia não podia ser interpretado neste plano. A Laura virava-se na cama

e, através da camisa de dormir branca desabotoada, espreitava um peito


tatuado; tatuava-se sozinha, quando podia, ou pedia a uma amiga dela

que pouco conheci, uma criadora de raposas que lia vísceras como

sistema de adivinhação e que me odiava porque queria ser a única

amante da Laura.

He’s right, dizia, e o fumo do seu tabaco adquiria o cheiro do perigo,

porque o que estávamos a dizer sacudia os alicerces da Ordem:

questionar o Livro. Ela continuava com a sua tagarelice alcoólica e eu

punha um disco a tocar para que ninguém nos ouvisse do outro lado do

quarto. O Livro contém fragmentos que não valem nada, dizia. Há

passagens teoricamente ditadas pela Escuridão que são idênticas a

fragmentos de grimórios existentes na biblioteca da Ordem. Ou que

reproduzem, mais ou menos fielmente, textos mais modernos de

ocultistas deste século. Há fragmentos da Clavicula Salomonis! Está lá

inteira a Ars Paulina. É grosseiro. Será que a Florence sabe?,

perguntava-lhe eu. E ela repetia: a Florence é escriba, pelo menos

quando lhe apetece sê-lo. É uma grande mulher, mas não é a primeira

vez que se engana e, se reconhecesse uma fraude, também teria de

reconhecer que o método para a preservação da consciência ditado pela

Escuridão pode ser igualmente falso. E ela não pode admitir isso, porque

perderia o seu poder.

Quando a Laura me dizia isto, eu ficava angustiada. A minha

garganta fechava-se, doía-me o peito. Tudo mentira. A hipótese de viver

para sempre ou, pelo menos, durante uma vida muito longa, uma

mentira. Ela beijava-me os lábios e, enquanto os seus dentes chocavam

contra os meus, dizia I can be wrong, baby. Um culto que não oferece

benefícios para sempre ou, pelo menos, durante um tempo

inusitadamente longo, não constrói uma fé. E a crença não é passível de

discussão. A Florence acreditava. Precisava de acreditar, não só por

causa do seu próprio poder, mas porque tinha destruído o filho no


processo. Hermes é o deus da escrita, mas também é o deus das

falsificações, pensei, e não o disse à Laura: preferi desembaraçar-lhe o

cabelo, que estava prestes a converter-se nas rastas que usavam os

antilhanos de Brixton.

Fora do quarto, dos meus livros, dos meus discos e da minha

companheira, o apartamento do Stephen era glorioso. O Tara passeava-

se nu pelo meio da roupa, dos jornais e das revistas, dos almofadões, dos

tapetes. Vivíamos no chão, mesmo para comer; a Sandy pintava os

lábios de branco porque queria ficar parecida com a Juliette Greco e

ouvia chansons enquanto lia Camus. A Lucie tirava-nos fotografias sem

avisar. Cheyne Walk era uma mistura estranha de veludos, William

Morris e uma ou outra extravagância vitoriana com quadros obscenos,

que o Stephen colecionava, e de elementos hippies clássicos, como

xailes em cima de candeeiros para esbater a luz, tambores marroquinos,

máscaras africanas, fotografias de Rimbaud e livros de arquitetura. O

Stephen costumava dizer que o tailoring da época era o mais requintado

desde a Restauração, e eu tinha de dar-lhe razão, especialmente quando

nos visitava o David, um músico amigo da Lucie a meu ver

extraordinário, com o seu cabelo louro comprido e camisas femininas

criadas pelo Michael Fish. Era como uma boneca com dentes esquisitos,

tão atraente, que o sexo com ele me dava um pouco de medo, não queria

apaixonar-me, de todo, por aquele rapaz. Uma vez, escrevi-lhe o próprio

nome nas costas, com cinza, em cima da coluna vertebral; o David tinha

qualquer coisa de réptil, mesmo na sua boca de dentes ingleses, uma

autêntica desgraça nacional. Ele começou a falar do espelho, do medo

que tinha de espelhos. Contei-lhe a história de Borges sobre a guerra do

espelho, sobre como um dia o azougue se revoltaria e deixaria de refletir

a nossa imagem, desobedecendo e deixando de replicar os nossos

movimentos perante o nosso olhar de pasmo e pavor. E como a primeira


coisa que apareceria, no fundo do espelho, seria uma cor desconhecida;

a seguir, o clamor das armas e a conquista. O David sentou-se diante do

espelho e procurou a cor, e acho que a encontrou: estava cheio de ácido,

como sempre e como todos. Teve medo. Conhecer, atrever-se, desejar e

guardar silêncio, disse-lhe, para o sossegar. E sossegou, dormiu em cima

de um dos cobertores dourados do Tara, o que estava destinado para o

Juan. Estamos a criar a corte dele, dizia o Stephen, a corte do deus

dourado. Quando ele vier a Londres, pensava eu, vou embrulhá-lo neste

cobertor que cheira a pêssego. Tinha muitas saudades dele, mas nunca o

dizia. Em segredo, chamava-lhe a minha Perséfone, como tirar-te do

inferno, não posso, sou uma das donas do inferno, mas há recantos e

podemos reinar num deles, reinar e não obedecer. O avô lia-nos Milton

no jardim das orquídeas, mas ele gostava mais de Blake, quando viesse a

Londres levá-lo-ia a ver os Blake da Tate Britain e as casas de todos os

poetas de que gostava.

Naquela época, na primavera de 1967, enquanto acompanhávamos

nos jornais e na televisão o julgamento do Mick Jagger, do Keith

Richards e dos amigos deles, que tinham sido apanhados com drogas

numa casa de campo do Sussex, voltei a falar por telefone com o Juan. E

começámos a comunicar todos os dias. A qualquer hora. Ele estava, em

geral, no apartamento da Libertador; quando ia para Reyes, avisava-me.

Às vezes, parecia agitado, apesar da interferência na linha, sempre que

falava com ele imaginava os fios a passarem por baixo de água, a

tocarem no fundo do oceano, mordidos por peixes cegos com dentes

enormes. O Jorge disse-lhe que a próxima cirurgia seria em Londres.

Juan tinha medo de morrer. A Tali ajudava-o com os seus terrores

noturnos, mas ninguém o ajudava como eu. Estava desolado, porque a

Florence lhe tinha dito que, quando os médiuns morriam, eram

reclamados pela Escuridão, onde passariam a eternidade, como no mito


cristão. Uma noite, chorou até adormecer e só desligou de madrugada,

ou alguém desligou por ele, provavelmente o meu tio. Não falava destas

coisas com a Tali, o que me fazia sentir um impreciso orgulho.

Que merda pensam eles que são, disse ao Stephen. Porque é que o

assustam desta maneira, a falar-lhe de uma eternidade com os deuses.

Porque vão fazer tudo o que estiver ao alcance deles para evitar que

desista, respondeu o Stephen. Um professor de Warburg explicou-me

que a alquimia nunca foi uma técnica para multiplicar a riqueza. Era, e

é, um exercício místico. A procura de ouro é a tentativa de encontrar a

substância da imortalidade. O Juan abria o caminho para essa

substância. Jamais o deixariam em paz, jamais diriam basta, o corpo

dele não aguenta mais.

Ainda sonho com o papel do meu quarto, que se transformava em

aranhas e bailarinas; ainda me lembro de como a minha mão, quando a

esticava contra o sol, ficava envolta nas cores do arco-íris. E também

com os rituais, nos quais dançávamos até os nossos corpos se

desfazerem em partículas de luz, e com a Laura a abrir a barriga de uma

lebre em cima do meu círculo de giz, em casa da Florence. O Juan, por

telefone, misturava a Tali com o meu avô, que às vezes tinha de ir buscar

à selva, onde se escondia nu e bêbedo, aterrorizado. Na selva, debaixo de

uma árvore, finalmente, matou-se com um tiro. Eu ainda estava em

Londres e não fui ao funeral dele. Uma noite, falou-me de portas que

conseguia abrir e de casas que, por fora, tinham um aspeto e, por dentro,

eram completamente diferentes. O que andas a fazer, sussurrei. Nada,

respondeu, simplesmente, aconteceu. Passei pela porta de uma casa que

me pareceu estranha e, quando a abri, deparei-me com algo que não era,

de todo, uma casa. Não contes a ninguém e não entres, pedi-lhe. Falei

com a Laura sobre estas portas: eu pensava em espaços liminares, ela


sugeriu-me que não voltássemos a falar das portas por telefone, não

fosse alguém estar a ouvir, e quase de certeza que estava. Se se abrisse

um novo caminho, eu teria de proteger o Juan. Estava uma manhã

horrível em Londres, o céu parecia de açúcar húmido e as pessoas, em

geral acostumadas a isso, corriam pela rua sob os chapéus de chuva,

tentando evitar os pingos gelados. Temos de protegê-lo, disse a Laura.

Tenho um mau pressentimento, disse ela, e nunca me engano.

Costumávamos ir a um clube do Soho chamado Colmena. Ficava ao

lado de um edifício em ruínas que ainda não fora reconstruído desde o

Blitz. Era um lugar para homossexuais, para queers, que fechou no

início de 1969. O David, uma vez, tocou lá, e também vários amigos

nossos que eram músicos. Para entrar tínhamos de bater a uma pequena

porta marcada a verde de uma rua curta, e um olho do outro lado do

óculo perguntava se éramos membros, embora não houvesse afiliados, o

Colmena não era o White’s, era apenas uma maneira de evitar a polícia.

O espelho sujo na parede, as boas de plumas, os sapatos de salto alto

baratos, os homens altíssimos com plataformas e a melhor música da

cidade. Durante um tempo, fiz leituras de Tarot numa mesinha situada

perto do balcão. Uma noite, estava eu bêbeda, pediu-me que lesse as

cartas um rapaz de olhos azuis, tão magro que parecia tuberculoso, e tão

belo que parecia uma rapariga de Carnaby Street. De facto, demorei a

decidir se era um homem ou uma mulher. Não me contive e descrevi-lhe

a teoria do andrógino mágico: solve et coagula e por que razão

Baphomet tem tronco de homem e seios de mulher. Falei-lhe do número

11, o da magia homoerótica, que representa o duplo falo. Ensinei-lhe

que todos os instrumentos mágicos devem ser duplos, duas espadas,

duas varinhas, dois cálices, dois pentáculos, e porque é que os ocultistas

deviam ser todos homossexuais. Achou graça. Não estava interessado no

que eu dizia. Ouvia-me como quem ouve uma doida. O rapaz falava
polari com uma facilidade avassaladora e pedi ao Stephen, por favor,

para ir com ele, que por favor me deixasse vê-los juntos, mas o Stephen

gosta de homens masculinos e tive de me conformar com olhar para ele

até se ir embora. Para de recrutar, disse-me o Stephen, de mau humor.

No Colmena, o Stephen dizia piadas brutais, grosseiras, e conhecia

metade da freguesia por ter dormido com ela, e a outra metade por

terem sido colegas de escola. Uma vez, dei a mão à Laura e levei-a para

a casa de banho, e acabámos aos gritos, eu agarrada ao lavatório e ela de

joelhos, e fomos tão escandalosas, que umas queens que se estavam a

drogar num canto aplaudiram e pediram bis. Costumávamos perder o

Stephen, e também o Tara, que iam para a Regent’s com os seus amantes

ocasionais, ou voltavam com eles para Cheyne Walk. Mas eu e a Laura

passeávamos até ao amanhecer, os nossos caminhos eram diferentes.

Íamos até à igreja de Hawksmoor, em Spitafields, o local dos crimes de

Jack, o Estripador. Quando conheceu o Juan, a Laura passou horas a

falar-lhe sobre as igrejas de Hawksmoor: ele fotografou-as para o irmão,

o Luis, e enviou-lhas com uma longa carta. A Laura elaborava

cartografias alternativas. Linhas em mapas que eram um texto

subterrâneo que encerrava enigmas e profecias. Se os caminhos

alternativos fossem percorridos sem pensar e os selos traçados a pé,

acabariam por revelar-se. Tal como na alquimia, disse-lhe: parecem

passeios, mas são um processo. O sentido é o tempo destinado a esse

processo, não o resultado: a disciplina da repetição. Enlightened

boredom. That’s it, respondeu-me ela. Uma noite, falei-lhe da vez em

que a Mercedes me obrigou a dar de comer aos rapazes enjaulados, de

como o Juan me ajudou, de como a Mercedes me batia todos os dias

para que eu soubesse que podia ter sido eu a encontrar o Juan, mas que a

chefe era ela; de como o Juan me deixava dormir ao lado dele depois das

tareias e me prometeu matar a minha mãe, embora não o tivesse feito:


para me defender, porém, disse à Mercedes que, se voltasse a tocar-me,

se injetaria com uma overdose da medicação dele. Morrer é muito fácil

para mim, gritou-lhe, e vais perder tudo. A Mercedes nunca mais me

bateu.

Ele é fiel, disse-me ela. Gosto muito dele, disse eu, e faz-me falta.

Sentámo-nos na relva e ouvi os esquilos a treparem os troncos. A Laura

passou-me uma garrafa de vinho que tinha comprado no Colmena.

Quem é que te arrancou o olho?, perguntei-lhe ao ouvido. Gostava do

cheiro do seu cabelo oleoso, e também do brilho com que ficava quando

estava assim tão sujo. A tua mãe, disse-me. Foi em casa da Florence.

Não me anestesiaram, mas não desmaiei de dor. You’re strong, disse-lhe.

No, I was just surprised.

Um dia, haveremos de eliminá-la, assegurei-lhe. Se não for o Juan,

será outro qualquer.

O Juan chegou a Londres no inverno de 1969. Depois da Cerimónia

desse ano, a saúde dele deteriorou-se. A cirurgia, que, de resto, já estava

programada — a da infância fora meramente paliativa ou, em todo o

caso, com o crescimento tornara-se obsoleta —, estava marcada para o

mês de julho no National Heart Hospital, onde o meu tio tinha estudado

e só ocasionalmente dava aulas, apesar dos repetidos convites, porque

estar longe do Juan lhe era insuportável. Claro que seria outro cirurgião

a operar, porque a Escuridão lhe levara os dedos, embora ainda se

tivesse tornado mais lendário após a mutilação, ou graças a ela,

publicamente atribuída a um acidente de caça. Seria uma cirurgia longa

e arriscada.

Custou-me manter a calma quando a porta das chegadas se abriu. O

Juan pareceu-me esgotado, frágil, nem uma mala carregava e tinha de

apoiar-se na Graciela Biedma, a médica que passaria a acompanhá-lo

desde então. O meu tio já estava em Londres, a preparar a equipa de


cirurgiões. Os sapatos Oxford castanhos, a camisa branca e o cabelo

louro quase até aos ombros; já tinha atingido os dois metros de altura e

não era nada desajeitado, como costumam ser os grandalhões, era

elegante e lento, regal, como diriam os ingleses, tinha qualquer coisa de

gato enorme. Desprendeu-se da médica para me abraçar: com uma mão,

abrangia-me toda a cara, os dedos entrelaçados no meu cabelo, a palma

na face, o pulso no queixo. Tinha perdido todos os vestígios da

adolescência, era só pómulos agressivos, o queixo com cova que parecia

lesionado, os olhos escurecidos. Nem sequer o sorriso de

reconhecimento era o mesmo: o Juan costumava sorrir com alguma

timidez, mas agora era uma expressão seca, oblíqua, apenas reconhecível

como alegre ou de alívio por mim, porque o conhecia bem. Mergulhei a

cabeça no peito dele, cheirei-lhe a camisa transpirada, não sei se tinha

febre, suponho que sim, e senti a respiração árdua, o coração rápido e

arrítmico, sempre a mesma coisa, tantas noites passadas ao lado dele,

junto daquele corpo. Inclinou-se para me beijar e rodeei-lhe o pescoço

com os braços e recebi o seu hálito pesado pelas horas de confinamento

e pela aversão a voar, os lábios suaves e a agressividade da barba que já

lhe crescia como a de um homem. Estava quase a fazer dezoito anos:

parecia ter, pelo menos, vinte e cinco. Acariciei-lhe a testa com os

polegares para que deixasse de franzir o sobrolho: doía-lhe a cabeça. Ele

acariciou-me as costas debaixo da camisa; fechei os olhos, a mão do

Juan nas costas fez-me lembrar uma garra; obriguei-me a separar-me do

abraço porque, se não, outra pessoa o faria por nós, provavelmente o

meu tio ou a Florence, que esperavam, ansiosos.

Fomos para a casa de St. John’s Wood de carro. Seria lá que o Juan

aguardaria pela operação e depois convalesceria quando lhe dessem alta.

Os médicos observaram-no no quarto e eu esperei do lado de fora. O

meu tio saiu contrariado, esfregando as mãos.


— O cirurgião que o vai operar está constipado e temos de adiar a

cirurgia até ele recuperar. É uma péssima notícia.

— Quanto tempo?

— Não sei. Esta semana, o Juan tem de ir ao instituto fazer exames.

Não o vou internar, não quero que fique stressado. Teve um voo

complicado e precisa de dormir, mas quer ver-te. Entra antes de o

sedativo começar a fazer efeito. Depois, temos de falar sobre o teu

comportamento no aeroporto. Foste lá marcar o teu território, como uma

gata. Como uma puta.

Senti os olhos a ficarem cheios de lágrimas perante o insulto e o

desprezo, mas não disse nada. Entre nós havia uma guerra surda. Lá fora

tinha começado a chover intensamente, tanto, que não parecia ser pouco

mais que meio-dia, o céu cinzento-escuro, uma árvore a fustigar a

janela. O Juan tinha as pernas tapadas por um cobertor verde. O quarto

estava aquecido; agora, ele estava com uma t-shirt branca de algodão.

Apesar da palidez e das pálpebras pesadas, parecia poderoso em cima

das almofadas. Só era frágil porque estava doente. Frágil como as

relíquias, as ruínas antigas, os ossos sagrados que deviam ser cuidados e

protegidos por serem incalculavelmente valiosos, porque a sua

destruição era irreparável.

A recuperação foi muito lenta. Permitiam-me que o fosse ver ao

hospital, mas a minha presença não lhe servia de nada. Estava

inconsciente, com a respiração assistida, irreconhecível. Perdia peso e já

não havia lugar nos seus braços para mais tubos. Quando pudesse sair

do hospital, acabaria de convalescer em casa da Florence, comigo. O

Stephen tinha discutido com a mãe porque lhe parecia mal que o Juan

tivesse de recuperar sob o mesmo teto que o Eddie. Ele odeia-o, está

convencido de que lhe usurpou o lugar, disse-lhe, e sabe-se lá o que

pode fazer. E tem o dom de fugir. Por acaso não te lembras de como,
quando era pequeno, conseguia entrar em qualquer casa e, de noite,

mudava os objetos de lugar, sujava as camas, acordava quem estava a

dormir mordendo-lhes as pernas? A Anne encontrou-o a arrastar-se há

pouco tempo, como uma enguia. Se quiser, consegue entrar no quarto do

Juan.

Ela não estava de acordo. Não o conhece, não sabe da existência

dele, dizia-lhe. O Eddie pode não falar, mãe, mas não é imbecil: ouve,

compreende e apercebe-se das coisas muito melhor do que qualquer um

de nós. E sabe perfeitamente o que quer: morrer e matar quem usurpou

o lugar dele. A Florence negava com a cabeça e insistia que o Juan

estaria perfeitamente seguro: o Eddie vivia na ala oeste da casa, vigiado

por um pequeno exército. O Stephen abandonou a discussão e recorreu a

mim. Está cega, explicou-me. Sabes como é que o meu irmão fugiu da

clínica psiquiátrica? Falou com os enfermeiros e convenceu-os a

injetarem-lhe uma overdose de sedativos. Ela treinou-o e sabe do que ele

é capaz, é ridículo pensar que tem tudo controlado. É dona de dezenas

de casas em Londres e o Juan pode ir para qualquer uma delas. Irra,

quanta omnipotência. Quer ter ambos lá em casa sabe-se lá porquê.

Eu não via o Eddie há meses. Na última vez, reparei que lhe faltava

um dedo, o mindinho. Tinha-o arrancado a si próprio, à dentada. O

Eddie mutilava-se cada vez mais. A dor aliviava-o, segundo o Stephen.

Era ruivo, como a mãe, e tinha os olhos muito claros, de um cinzento

transparente: era daltónico. Às vezes, quando caminhava pelo jardim,

via-me da janela e cumprimentava-me, a sorrir. Os dentes dele

horrorizavam-me. Tinham sido afiados e eram bicudos e amarelados.

Sempre precisei de me vestir bem para ter conversas sérias. Com a roupa

adequada, toda a minha insegurança desaparecia. Telefonei à Sandy e à

Lucie para irmos às compras. O Juan teria alta dali a uns dias, a não ser
que, entretanto, houvesse alguma complicação. Eu andava com dores nas

costas por dormir ao lado dele numa cama de hospital. Já conseguia

andar sozinho; não lhe tremiam as pernas e não tinha dores; lidar com a

dor tinha sido o mais difícil, porque só tolerava analgésicos leves. Far-

me-ia bem, além disso, sair do hospital, estava há dias entre aquelas

paredes esverdeadas, a ouvir gemidos e choros.

A Sandy andava louca, há anos, com as calças de chiffon do Ossie

Clark, mas o meu estilo nunca foi esse e, por isso, deixei-a provar a

roupa e esperei. Tudo lhe ficava bem. Eu tinha de ter mais cuidado.

Adorava os tecidos do Ken Scott, um estilista italiano que conheci numa

viagem fugaz a Roma com o Stephen: a Lucie tirou-me fotografias com

um vestido estampado dele, com caras de mochos, tão psicadélico que

costumavam pedir-me que o vestisse e dançasse quando tomavam um

ácido poderoso. Tinha visto um vestido maravilhoso dele perto da nossa

casa, na Fulham Road Clothes Shop; preto, comprido e largo, de seda e

lã, com um decote em V do qual pendiam fios com contas vermelhas,

amarelas e verdes. Tinha um pouco de túnica, um pouco de vestido de

cerimónia e outro tanto de africano. Com umas botas altas Biba, verdes,

de camurça, ficaria perfeita. Não precisava de mais nada. Sempre que ia

à Biba, em Kensington, sentia uma alegria eufórica: era um lugar escuro,

com uma luminescência ténue e dourada, e havia espelhos e penas de

pavão por todo o lado. As suas modelos rodopiavam pelos salões: a

própria Biba dizia que tinham padecido de desnutrição durante o pós-

guerra e que era por isso que agora eram belas e magras. Eu fui criada

como uma milionária da América do Sul, à base de proteínas e

laticínios, e não era nada parecida com os jovens que deambulavam pela

loja e que, às vezes, conversavam com os atores e as celebridades. Corria

o boato, naqueles dias, de que a Anita Pallenberg, a mulher do Keith

Richards — agora: antes dele, namorou com o Brian Jones; era tão
bonita, que não gostava de olhar para ela — tinha uma Mão da Glória.

Não sei como entenderiam aquilo as raparigas que coscuvilhavam sobre

o assunto: só sabiam que tinha qualquer coisa a ver com magia negra.

Eu andava morta por ter uma e pedira-a à Laura várias vezes; a Ordem

conservava as suas na biblioteca, perto da estatueta do deus africano do

George Mathers. Usavam-nas muito, embora fossem relíquias valiosas: a

mão esquerda de um enforcado cortada enquanto ainda estava

pendurado. A mão, depois, levava um tratamento de cera para se

converter numa vela. Como é que a Anita podia ter uma? Não tinha

nenhum tipo de relação com a Ordem, embora flirtasse com ocultistas,

como todos os jovens ricos de Londres. Uma Mão da Glória bem usada

podia servir para muitas coisas: a que mais me interessava era a

capacidade de abrir portas. Eu e o Juan já tínhamos falado muitas vezes

sobre a descoberta, na Argentina, das portas que conseguia abrir. Não

entrei, disse-nos, porque, no corredor, o ar parecia viciado e eu não me

sentia bem. Quando recuperar, pediu-me, temos de ir à procura dessas

passagens. Beijei-o: já não tinha os lábios feridos, embora o nariz ainda

continuasse a sangrar, porque o material plástico das sondas magoava-

lhe as mucosas delicadas. Passou o aniversário no hospital,

semiconsciente e dorido. Toda a minha determinação, na altura,

orientava-se para que ele pudesse estar comigo, connosco, para partilhar

a nossa vida. Tinha a certeza de que era possível.

Só me faltava convencer a Florence. Esqueço-me sempre, porque

não acreditei na altura e agora também não, de que ela estava convencida

de que havia outros membros da Ordem a conspirar para lhe tirar — ou

devia dizer para nos tirar? — o Juan. E também outros cultos secretos,

os autodesignados cultos da sombra ou do caminho da mão esquerda.

Segundo ela, a presença constante de guarda-costas era necessária para


evitar o sequestro e para garantir que o médium não se magoasse ou

tentasse fugir, o que era altamente improvável.

Não estava a chover e, por isso, deixei a Sandy no Warburg e a Lucie

na Biba e fui a pé até à casa da Florence. A cidade torna-se mais

cinzenta e mais verde, ao mesmo tempo, quando se entra nos bairros

mais elegantes. No entanto, tinha saudades das flores lilás dos

jacarandás, que as glicínias não conseguiam substituir, embora também

fossem belas: ao lado da nossa casa de Cheyne Walk, crescia uma planta

frondosa. Tinha de contar toda a verdade à Florence e expor-lhe um

plano simples. Eu e o Juan estávamos juntos e apaixonados. Ela sabia e

não aprovava. Pensa que o amor é uma impureza. Eu, pelo contrário, tive

tão pouco amor, que me parece uma joia delicada e aterroriza-me a ideia

de a perder. Não só medo de que se extravie como um brinco numa noite

de sexo ou de dança suada, mas de que evapore como o álcool.

Esperei por ela meio reclinada na chaise-longue que estava à frente

da lareira. Trouxeram-me um chá. Estava sempre a ouvir passos, embora

me encontrasse sozinha. Naquela casa, os sons eram enganadores, havia

correntes de ar frio em todos os recantos. Sentei-me muito direita e

ajeitei o cabelo quando a Florence chegou. Ouviu-me com atenção. O

pedido parecia razoável. O Juan passará os primeiros dias após a sua

saída do hospital nesta casa, mas depois, Flo, por favor, não o mandes de

volta para a Argentina, quero que ele conheça a cidade, e também será

bom, sobretudo para ele, passar uns tempos sozinho, comigo.

Não gostou, mas não o suficiente para se recusar. Primeiro, temos de

falar com o teu tio, e também quero ouvir o que o Juan tem a dizer. Ou

será que ele não confia em mim?

Claro que confia, mas está muito cansado. Queremos estar juntos,

Florence. Aceitamos a vigilância, aceitamos que montem um hospital no

quarto do lado, se for necessário. Ele tem mais facilidade em comunicar


através de mim, por enquanto. Não o estou a manipular, jamais me

atreveria. Nunca houve um médium como ele, e isso deve-se, em parte, a

ter sido menos pressionado. Peço-te um tempo de tranquilidade.

A Florence olhou para mim de uma maneira que nunca esquecerei e

tive medo dela pela primeira vez. O seu poder diluía-se; eu estava calma

e muito segura, e o meu tom de voz continha uma ameaça velada,

embora, claro, também estivesse em perigo. Não podia transformar-me

num estorvo ou seria eliminada.

Retomaremos esta conversa quando ele estiver fora do hospital.

Na altura, eu não precisava de mais.

O Stephen sentou-se na cama com uma alegria que nunca lhe vira e

abraçou o Juan com a ternura que professavam um pelo outro. Reprimi

uma inesperada onda de ciúmes que me azedou a boca. Porém, excitava-

me bastante vê-los a beijarem-se sem pudor, com esse desconforto dos

beijos entre homens que, no início, parece uma luta, e depois desagua

numa emoção que eu não compreendia, numa fraternidade perdida e

recuperada.

Estás gelado, disse-lhe o Juan. Nesta cidade, faz um frio de cripta,

respondeu-lhe o Stephen, e percebi o que ele queria dizer: o frio húmido

que se cola à pele e nunca mais nos larga, dizer que se impregna nos

ossos é uma parvoíce, o problema é que se forma uma segunda pele,

como a de um animal preparado para um mar quente. O Stephen

levantou-se para ir buscar os discos que nos tinha trazido: os americanos

que eu pedi, The Byrds e Leonard Cohen e The Velvet Underground.

Nem ele nem o Juan percebiam de música. O Juan, um pouco mais,

porque gostava de poesia. O Stephen preferia as estruturas, os edifícios,

a noite.
Deitou muito açúcar no chá para, como dizia sempre, se esquecer de

que era chá. Porque é que não fazem café neste país: hei de morrer com

a pergunta entre os lábios. Vão ter de ouvir os discos à noite para

abafarem os gritos do meu irmão. Não o ouçam. Deviam arranjar mais

qualquer coisa para se protegerem dele.

Quando grita, o teu irmão fala sobre mãos, disse o Juan de repente.

O Stephen e eu olhámo-nos surpreendidos. O Juan só estava há uma

noite em St. John’s Wood. Não dormiste? Disse que sim com a cabeça

um pouco inclinada, como se estivesse a ouvir qualquer coisa naquele

preciso instante. Os gritos acordaram-me. Há mãos que lhe tocam. Não

o podem ajudar? Eu posso, senti a mesma coisa várias vezes. Sei o que

fazer para que se vão embora.

O meu irmão fala de mãos e de violações, disse o Stephen, e baixou

a cabeça. Não podes ajudar o meu irmão, ninguém pode, nem sequer tu.

Não penses no meu irmão, porra.

O Juan insistiu. Perguntou se o Eddie também estivera preso numa

jaula e o Stephen disse que desconhecia os pormenores do que tinham

feito ao irmão. O meu pai confessou-me certas práticas, mas não todas.

O que lhe fizeram é o seu segredo imundo e vergonhoso. O que tentaram

fazer com o Eddie foi conduzi-lo ao estado de hyperia, ou seja, ligar um

número excessivo de neurónios do seu sistema nervoso. O Juan olhou

para nós. Disseram-me que o violaram com restos humanos. Quem é

que te disse isso?, perguntei, horrorizada. A Mercedes, respondeu o

Juan, e o Stephen engoliu saliva. Não sei, mas se foi a Mercedes que

disse, é possível que seja verdade. Porque é que te contaria uma coisa

dessas durante a tua convalescença? Porque ela é uma merda, disse eu.

Enfim, o meu irmão atingiu o estado de hyperia e é por isso que

enlouqueceu. O estado de clarividência, quando é permanente, equivale

à loucura.
Dessa vez, o Juan não fez mais perguntas sobre o Eddie. O Stephen

tirou de dentro de um saco enorme um casaco afegão muito comprido,

de camurça e pele de cabra: era suficientemente grande para o Juan.

Com isto, não passarás frio, garantiu-lhe. Nessa tarde, visitámos os Kew

Gardens e, nos dias seguintes, de chuva, os museus. Na Tate estão os

favoritos do Juan, os Turner e os Waterhouse. Disse-lhe que gostava de

tirar uma fotografia como o da mulher d’O Círculo Mágico: ir ao campo,

imitá-la, fotografar-me assim, os corvos, o caldeirão e o vestido

sensacional da bruxa, ela a fazer o círculo sem olhar, como se se

apoiasse na vara. A Lucie podia ajudar-me. O Juan passou meia hora à

frente do seu Blake favorito, o monstro amarelo, a Pulga. Umas

raparigas da escola de arte olhavam para ele à descarada, rindo

nervosamente. Se soubessem a verdade, porém, teriam morrido de

medo.

De regresso a St. John’s Wood, o Stephen decidiu ir ao Colmena; a

Laura, disse-nos, estava bêbeda há três dias. Tem medo de conhecer-me,

reconheceu o Juan. Há de vir quando puder, disse o Stephen,

desvalorizando o assunto. No nosso quarto, o Juan abriu a janela porque

havia uma brisa perfeita e eu abracei-o por detrás. Perguntou-me se

queria saber a verdade sobre o Eddie. Eu disse-lhe que tinha muita

curiosidade. Posso descobrir, se formos ter com ele. O andar está

completamente vigiado, não querem que te aproximes dele e eu tenciono

obedecer-lhes, porque têm razão. O filho da Florence não pode

controlar-me, sussurrou, mas os guardas, sim. Desprendeu-se do meu

abraço e bufou, de mau humor. Traz-me qualquer coisa dele. Seja o que

for. Cabelo, por exemplo. Ou também não te deixam lá ir? Porque é que

o mantêm preso? És mais curioso do que eu, disse-lhe, e ele murmurou:

quero saber do que é que eles foram capazes.


Nessa noite, não pude ir à zona da casa ocupada pelo Eddie, e nos

dias seguintes também não, mas passei o tempo a estudar os

movimentos dos guardas. Consegui entrar no quarto do Eddie quando os

seus cuidadores o levaram a dar um passeio pelo jardim. Eram sempre

dois, e o Eddie erguia a cara ao sol. Quando ele descia, os guardas, que

só lá estavam para evitar que ele fugisse, relaxavam. Assim, consegui

entrar no quarto dele. Observei-o durante algum tempo. Mantinham-no

arrumado, mas era impossível não reparar nas manchas de sangue seco

nos lençóis, nas grades das janelas e nos desenhos do Eddie nas paredes.

Os lápis e os tubos de tinta estavam espalhados pelo chão. Por cima da

cabeceira da cama, na parede, a modo de mural, havia uma enorme

lápide preta pintada, sem nome. E, noutras zonas, arcanos do Tarot, mas,

sobretudo, e de uma maneira esmagadora, o Enforcado. Não parecia o

quarto de um louco, mas de um místico. Um monge a lutar contra

Satanás. Aproximei-me da almofada e peguei em vários cabelos

eriçados, quase num molho: o cabelo estava a cair-lhe, já tinha reparado

nisso há uns meses, da última vez que estive ao pé dele. Ou talvez o

arrancasse. Levei-o ao Juan sem me cruzar com ninguém, mas

sobressaltada pelos constantes rangidos e queixumes daquela casa.

Depositei-lhe o cabelo nas mãos e ele levantou-se. O quarto pareceu

maior e senti vertigens: o Juan amparou-me, segurou-me com força nos

braços dele e, então, derramou-se, não sei como explicar, apesar de

voltar a fazê-lo comigo várias vezes no futuro. Talvez a palavra mais

adequada não seja derrame: talvez seja transfusão. Uma invasão

sanguínea de imagens: membros cortados, o sangue coagulado nas

unhas douradas, um lago negro do qual saía uma mão como se fosse

uma boia no Paraná, falésias no horizonte, homens nus pendurados num

candeeiro com pingentes gigantes, um corpo morto muito seco e belo

acariciado por uma mulher magra com a cara coberta por um lenço
escuro, um tanque rodeado de juncos, um sapal, um pântano do qual

saíam mãos desesperadas por agarrar qualquer coisa, tateando o ar, um

enforcado muito quieto pendurado num ramo. E, depois, com uma

enorme qualidade, um abanão que me atirou para o chão e uma voz a

contar-me:

Outro filho, disse ela, e o ramo ardia no deserto. O resto era frio e a

escuridão no céu. O fogo não deixava ver as estrelas. Neste preciso

instante, que venham os demónios do pó. Um filho que possa abrir-nos

as portas. O cheiro a haxixe e o cheiro a fumo e Pedro despiu Florence

na areia enquanto ela pronunciava as palavras requeridas e alguém na

penumbra traçava o círculo de proteção com um ramo a arder. A

proteção não era suficiente. Ela gritava que não importava, que a

deixassem sem o sangue da Lua, não era importante, nada era

importante a não ser o filho do deserto que teria o cabelo como o fogo e

os olhos sem cor.

Se fechasse o círculo de giz em redor da casa só poderiam sair

quando o Ritual acabasse. Ficariam encerrados durante o tempo que

durasse o Ritual, e alguns duravam meses. O Livro dizia claramente que

não podia usar-se uma criança nem confiar na sua escrita ou nas suas

palavras. Mas Florence julgava que o menino era especial, tinha-o visto

no parque de olhos fechados e mãos estendidas a brincar, a rir. O

menino aprendia e repetia as palavras indicadas como se fossem

próprias. São a linguagem dele, dizia Florence. Foi concebido quando

teve de ser e como devia ser. Pedro fechou a casa. Lá dentro, havia

provisões para vários meses. O menino já tomara banho um quarto de

hora antes de amanhecer, vestido de branco, uma camisa muito larga. O

seu rosto sardento olhava para a janela pela qual sairia o sol. Dar-lhe-

iam pouca comida nos dias seguintes e passaria todos os amanheceres

naquele quarto. Dar-lhe-iam gotas do alucinogénio experimental que o


levaria mais longe do que eles podiam ir. Era imprudente usá-lo numa

criança, mas eles tinham de ser imprudentes, o caminho da mão

esquerda era a imprudência. As mulheres traçavam o símbolo no chão,

a giz. Eddie repetia com Pedro as palavras diante do oratório. Seis

Luas. O pai cobriu de cinzas o cabelo do menino. Seis Luas.

Se uma palavra fosse mal pronunciada, os espíritos viravam-se

contra a pessoa. Também se a pessoa proferisse as palavras com má

intenção ou com escárnio. Eddie pronunciou-as bem e, no entanto,

todos viram as sombras a puxar-lhe a mão e a arrancá-lo do quarto.

Portas a bater e corridas. Uma porta fechada e, atrás dela, a voz de

Eddie a chamar pela mãe, e depois os seus pés a correr no andar de

cima, claríssimas as pisadas dos seus pés pequenos. Florence atrás de

uma porta fechada, os joelhos magoados por se arrastar debaixo dos

móveis porque, de lá, conseguia ver os olhos de Eddie, o filho perdido

da casa, levado pela Escuridão, e de nada servia que a tia lhe gritasse

que tinha de voltar para o oratório, proteger o candeeiro, que o menino

voltaria se continuassem com o Ritual. Pedro voltou para o oratório.

Anne também. Ambos continuaram. Florence resistia a abandonar o

filho às sombras, gosta demasiado dele, disse Anne enquanto acendia o

candeeiro, e o amor é impuro.

Florence voltou e pediu para ser lavada. Anne despiu-a e usou água

fria. O menino só voltou ao amanhecer. Dizia que estava cego e

chorava. Tinha os olhos em branco.

O menino escolheu a forma que adquiririam os espíritos na

Invocação. Escolheu bocas. Rezava olhando para o Este e invocava

olhando para o Oeste sem que lho tivessem de explicar.

Foram necessários dias de fome e de frio para conseguir afastar os

espíritos. O Eddie não deixava que se fossem embora. A batalha de

vontades afetou a saúde de Pedro, que passou meses na cama, de corpo


carcomido por uma brotoeja que não o deixava dormir. Sugado por

centenas de pequenas bocas. Todo o corpo a arder por causa das

mordidas.

O menino não conseguia reter os símbolos, não conseguia recordá-

los e, consequentemente, não conseguia situá-los sob almofadas e

camas, em limiares e portas, nos lugares necessários. Ele que se limite a

sentir a noite, ouviu Florence. É a única maneira de só conseguir

pensar nos símbolos. Pôs Eddie na cave pequena. Antes, traçou os

símbolos no ar e ordenou-lhe que os recordasse. Deixou-lhe uma bacia

com água. Deixou-o gritar noite e dia. O menino não gritava de medo,

gritava de fome e de raiva, o menino não tinha medo, não teve medo

quando caminhou cego e de mãos atadas, não teve medo quando foi

oferecido aos homens e aos mortos para que fruíssem dele. Chorou

depois, mas porque o magoaram na Oferenda, chorou de dor. Também

não teria medo quando fosse levado para perto da morte. Ela, sim, teria

medo. O amor é impuro, dizia a sua irmã, mas Florence acreditava que

o amor era inevitável e, também, que podia ser deixado de lado. Era

esse o sinal da verdadeira força. Deixar de lado o amor. Quando saísse

da escuridão, sujo e esfomeado, o menino lembrar-se-ia dos símbolos e

ela poderia ignorar que o menino, quando estava sozinho, feria os

próprios braços com as unhas e amanhecia com os lábios

ensanguentados de tanto apertar os dentes e trincar as bochechas.

Começou a falar-lhe, a explicar-lhe que seria a porta, que seria o

sangue a trazer a noite, que seria o médium, que se ajoelhariam perante

ele e que agora doía, mas que, depois de ser tocado, tudo valeria a pena

e ninguém, jamais, o substituiria, ela tinha-o escolhido, seria o único,

não podia duvidar disso. Seria como um deus. A derradeira Oferenda.

Tentei mexer-me. Não queria continuar a ver. O Juan largou-me as

mãos e abri os olhos, embora já os tivesse abertos. Voltei a abri-los,


abri-os para esta realidade.

Não posso mais, disse-lhe. Precisava de processar o que tinha ouvido

e visto.

O Juan fez um atilho com o cabelo do Eddie e guardou-o no bolso

do casaco. Depois, estendeu-me uma mão para me ajudar. Sentei-me no

chão. O que é que fizeste, perguntei-lhe. Dantes, não conseguias fazer

isto. O Juan encolheu os ombros. Aprendi a fazer muitas coisas ao longo

destes anos. Contei-te algumas por telefone, mas pediste-me que não

falasse e obedeci. Guardei para mim outras. Ninguém me ensinou a

mostrar assim. Treinei sozinho com a Tali. Ela detesta. Nas primeiras

vezes, ficava cansado, mas agora não tanto. Mas não sei se lhes faz bem.

Aos outros. Vou guardar isto, e apontou para o bolso, para quando

quiseres saber mais sobre o Eddie.

Sentei-me com as pernas cruzadas e uma sombra de preocupação

atravessou a testa do Juan. Tens medo de mim? Nunca, disse-lhe. Estou

surpreendida. Tenho frio.

Isso costuma acontecer, disse ele.

A Florence convidou-nos para um almoço de despedida. Eu tinha uma

aula nesse dia, mas cancelei-a, porque me pareceu que o almoço era

importante. O Juan estava há três semanas em Londres e a fase crítica da

convalescença já tinha passado. De facto, passava a vida a caminhar pela

cidade com a Laura enquanto eu estudava. Tornaram-se melhores

amigos quando ela conseguiu vencer a resistência a conhecê-lo, o

respeito sagrado que sentia por ele, e, às vezes, voltavam tarde, o que

irritava a Florence.

Comemos e bebemos cerveja e a Florence falou sobre o Livro, os

progressos, e ofereceu-me dois volumes, The Palm-Wine Drinkard e Tell

My Horse, de uma antropóloga que eu admiro. Foi muito amável, apesar


da ansiedade, porque ela desejava, mais do que tudo, o regresso do Juan

a Misiones e a continuidade das Cerimónias. Mas decidiu conceder-nos

uma espécie de férias. É que, dizia, a Revelação está muito perto, e isso

aflige-me, mas compreendo que uma pausa também pode ser benéfica.

Como eu estava um pouco bêbeda, perguntei-lhe porque é que estava

convencida de que a Escuridão nos faria essa revelação. E em troca de

quê. Quais eram os termos da troca. Nas Cerimónias damos-lhes de

comer, disse: todos os deuses, em todas as culturas, pedem e recebem

oferendas de comida. Mas a imortalidade vale isso? Parece-me que

entregamos pouco.

Ela ficou incomodada e disse que não era a altura certa para termos

aquela conversa. Eu sabia que ela fugiria à inquirição e que evitaria dar

explicações. Falar de tudo isto à frente do Juan, seja como for, era

desconfortável, porque é o mesmo que falar sobre ele, porque a Ordem

depende do seu corpo doente para obter a Revelação. Ele não pode fugir.

Se o fizer, é possível que voltem ao método tradicional, defendido pela

Mercedes: usá-lo com maior frequência, tratá-lo apenas como mero

mensageiro ou escravo, e que viva o que o corpo aguentar, que não será

muito.

Preciso de que estejas feliz, Juan, disse-lhe repentinamente, e ele

ficou surpreendido, mas apenas durante um segundo. Quando quer, é tão

inexpressivo como uma estátua. A Florence pegou-lhe nas mãos. Tudo

isto é teu. Nada seria possível sem a tua ajuda. Às vezes discutimos,

outras vezes sentir-te-ás prisioneiro. É normal. A tua situação é única. O

mundo será para sempre e para nós, Juan. Os mortais são o passado,

como eu costumo dizer, é nisso que eu acredito. Jamais poderei

agradecer-te o suficiente. Nem aos outros, aos anteriores, que sofreram

tanto. Quero que a tua vida seja diferente. Não deixarei que um médium

sofra assim nunca mais. Eu própria caí nessa armadilha, a do


sofrimento, com o meu filho. Gostas da tua vida, Juan? É a que posso

dar-te.

O Juan não lhe largou as mãos e também não baixou a cabeça.

Depois, falou mais do que o ouvi falar com a Florence em toda a minha

vida. Vou contar-te o que quero, disse. Quero viver com ela perto do

mar. Aqui ou noutro lugar, mas de preferência onde as águas forem

quentes, para poder nadar. Quero esperar pela Rosario depois do estudo

ou do trabalho, quero aprender a cozinhar. Quero chegar a velho. Se ela

assim o entender, quero ter um filho. Não creio que compreendas o que é

não ser dono de nada: um filho seria meu, o meu único bem. E quero

poder abrir a Escuridão só quando me apetecer, sem datas, sem

obrigações, sem recear morrer de cada vez. Não quero guarda-costas,

não quero ser vigiado. Tu não podes dar-me isso e eu compreendo, mas

não me perguntes se gosto da minha vida ou se sou feliz. Sou pobre e

estou doente. Não tenho educação, não tenho família, não tenho

dinheiro. Creio que não sou capaz de trabalhar. Preciso da assistência

que vocês me dão. Sou um servo.

Dito isto, largou-lhe as mãos.

Não soube logo o que dizer. O Juan levantou-se e pediu desculpa

antes de sair. Eu também pedi desculpa à Florence e fui atrás dele.

No quarto, esperavam-nos o Stephen e a Laura. No corredor,

encontrámo-nos com Genesis e Crimson, o casal que usava nomes sem

género e tinha dado início ao processo cirúrgico da mudança de sexo

para elevar a um novo patamar a ideia dos andróginos mágicos. Crimson

já tem mamas, disse-me o Stephen, acabou de mostrar-mas, nem

imaginam o que perderam. São bastante bonitas.

As cirurgias decorrem no mesmo hospital onde operaram o Juan. Se

os cidadãos britânicos soubessem que a Ordem está infiltrada no


National Heart Hospital e noutros tantos centros de saúde pública, seria

um escândalo.

Do que é que a minha mãe vos falou, perguntou o Stephen, e pôs um

disco a tocar. O Beggar’s Banquet. O que é que ela disse? Que somos o

futuro e os mortais são o passado? O monstro do Frankenstein podia ter

dito isso, se fosse capaz de pensar, claro.

Qualquer coisa do género, respondeu o Juan, empurrando-o para

também se poder sentar na cama. Vai deixar-me viver na tua casa de

campo durante um tempo.

Tenho uma história sobre uma mulher que viveu para sempre, disse a

Laura, excitada. Pôs-se de pé em cima da cama e abriu os braços para

declamar, como se estivesse a representar no teatro. Uma dama comia e

bebia alegremente, e tinha tudo o que o coração pode desejar e desejou

viver para sempre. Durante os primeiros cem anos, tudo correu bem,

mas depois começou a encolher e a ficar cheia de rugas, até não

conseguir andar, nem estar de pé, nem comer ou beber. Mas também não

podia morrer. No início, alimentavam-na como se fosse uma menina

pequenina, mas tornou-se tão diminuta, que a meteram dentro de uma

garrafa de vidro e a penduraram numa igreja. Ainda lá está. É do

tamanho de uma ratazana e mexe-se uma vez por ano.

Pela maneira como o Stephen se riu daquela história, que era muito

mais macabra do que engraçada, percebi que tinha tomado ácido. Mexe-

se uma vez por ano, repetia. E depois acendeu o cachimbo de marijuana.

Enquanto falavam e riam, pensei que, se a imortalidade fosse possível,

queria partilhá-la com eles. Não com os velhos. Oxalá o Juan

conseguisse controlar a Escuridão para se desfazer dos outros.

As primeiras semanas foram lindas. O Stephen foi-se embora para nos

deixar a sós; eu e o Juan não nos separávamos nem para tomar o


pequeno-almoço. Juntos na cama e na banheira e no belo jardim de

inverno, falando em voz baixa. Comprar fruta e chocolates, a surpresa de

descobrir que era capaz de dormir toda a noite sem acordar a tossir; a

cirurgia tinha-o ajudado muito, especialmente com a dispneia, já não

estava cianótico, não tinha os dedos azuis, olhava para eles com ar

espantado e também estudava os lábios no espelho todas as manhãs,

como se esperasse o regresso da cor da morte. Observava-o a dormir

com as pernas entrelaçadas nos lençóis do nosso quarto, que tresandava

a sexo e a sal. Passávamos dias inteiros na cama e eu acariciava-o em

silêncio, os pelos dourados das pernas, o peito largo e maltratado, a

barriga afundada, as cicatrizes, as veias cinzento-escuras dos braços sob

a pele clara, o cabelo muito comprido que não lhe dava um ar de viking

nem de cantor de rock nem de hippie mas de algo que só estava de visita

no presente, algo de selvagem e desolado.

A Graciela, a médica, dois guarda-costas e alguns assistentes

tinham-se mudado para a casa do lado: os vizinhos aceitaram arrendá-la

imediatamente após uma oferta exorbitante de dinheiro. No entanto,

conseguíamos ignorar a sua proximidade. O meu tio também nos vinha

visitar. Os amigos só viriam quando fossem convidados. Nada

interrompia os nossos dias de passeios e leituras, em que dançávamos

nus na cozinha iluminados pela luz do frigorífico ou partilhávamos os

nossos segredos sem medo de sermos ouvidos. Convenci-me de que

tinha engravidado naquelas semanas e chorei quando vi o sangue nos

lençóis. O Juan virou o colchão, que também ficou manchado.

Depois das duas primeiras semanas, começaram as mudanças subtis.

O Stephen ainda não voltara: creio que tinha ido a Atenas, um dos seus

destinos favoritos, à procura do calor como um animal de regaço. O

primeiro sinal chegou de noite, quando o Juan se levantou e não voltou

para a cama. Eu ainda não tinha adormecido, estava a ler à luz do


candeeiro enquanto esperava por ele, convencida de que só tinha ido à

casa de banho. Ao ver que não voltava, tive um déjà-vu da noite da sua

Manifestação em Puerto Reyes. No início, acalentei a esperança, leve, de

que se estivesse a sentir mal. Apesar da medicação, sofria arritmias

prolongadas, mas não o tínhamos dito aos médicos: ele pediu-me que

não o fizesse e eu acedi, porque compreendi que também precisava de

descansar de tantos exames e manipulações ao seu corpo. Encontrei-o

no corredor do primeiro andar, a olhar à sua volta e para a escada, a

escada de ferro pela qual se apaixonara o Stephen. Ouviste alguma

coisa?, perguntei. Eu e ele sabíamos que a hipótese de haver um intruso

era remota, tendo em conta que havia sempre um guarda-costas

acordado durante toda a noite e que a casa não tinha muitas entradas,

apenas a principal e outra de emergência. Disse-me que sim com a

cabeça: tinha os olhos brilhantes. Podes abrir a porta? Apontou para ela.

Era um dos quartos mais pequenos. As mãos tremiam-me quando

agarrei na maçaneta, mas do outro lado só havia uma cama estreita

iluminada pela lua, um pequeno sofá e dois quadros de Forrest Bess que

o Stephen tinha comprado a uma galerista nova-iorquina.

Voltou para a cama mudo. Pensavas que era uma daquelas portas que

conseguiste abrir na Argentina? Abraçou-me e disse que sim com a

cabeça, mas nessa noite não voltou a levantar-se. De manhã, mal falou

durante o pequeno-almoço. Há alguma coisa lá, disse ele, depois de

brincar com as torradas que não foi capaz de comer. Não é uma

presença, nem um desencarnado, é muito mais poderoso. Não consigo

explorá-lo sozinho. Somos dois. Não é suficiente. Porque é que o

Stephen escolheu esta casa? Nunca se aperceberam? Nem sequer a

Laura?

O Juan sempre foi muito desconfiado, muito mais do que eu.

Vamos lá, disse-lhe.


Não. Para isso, preciso da Laura e do Stephen. Tu não és suficiente.

Fui dar um passeio sozinha, frustrada. Queria ser a companheira dele

também nisto, segui-lo até ao desconhecido, nunca tive medo. Mas só o

posso ajudar em questões menores, as minhas estúpidas proteções, ele

detesta que lhes chame estúpidas porque gosta de mim e respeita-me,

mas são. Todos os pequenos feitiços deste mundo são pó, são nada, são

terra no sangue de alguém como ele.

Quando regressei do meu passeio, telefonei à Laura, que demorou

menos de meia hora a chegar. Pensava, pela expressão que tinha na cara

quando lhe abri a porta, que se tratava de um convite para jantar, de

mais uma noite divertida em Cheyne Walk. Apercebeu-se do seu erro

quando viu o Juan. Sentaram-se em cima das almofadas e ele contou-lhe

o que estava a sentir. Ela disse que nunca se apercebeu da existência de

nenhuma porta — eu acreditei nela, e ainda acredito — e, para minha

surpresa, recusou-se a acompanhá-lo. A desculpa que deu fez-me bufar

de pasmo.

O Livro não diz nada sobre a abertura de portas, murmurou. E o que

é que isso importa?, perguntou o Juan. Levantou-se do chão e,

calmamente, com as mãos entrecruzadas, aproximou-se dela, que

parecia diminuta e só lhe dava pelos joelhos. Porque é que estás a falar

do Livro? A Laura tremia um pouco: rodeei-lhe os ombros com o braço.

Nas transcrições não há nada sobre nenhuma porta ou nenhuma casa,

repetiu. O Juan irritou-se e disse-lhe: tenho a certeza de que há alguma

coisa importante e repulsiva atrás daquela porta e não acredito nas

transcrições, e tu também não. Porque é que tens tanto medo? Olhou

para ela e tinha os olhos verde-escuros.

Porque seguir-te é desobedecer, disse.

Com o dedo indicador, o Juan tocou, ao de leve, na pala da Laura.


Quem é que to arrancou? A Rosario não me contou nada. Ela guarda

para si esse tipo de segredos cruéis. Na Ordem dizem que foi o teu pai e

que a Anne te adotou por causa disso. É essa a mentira que contam. Um

pai brutal que esvaziou o olho da filha para evitar que tivesse uma

segunda visão. O teu pai era cigano? Traveller? É verdade? De certeza

que foi a Mercedes que te fez isso com as próprias mãos. Embora a

Florence também seja capaz de fazer uma coisa dessas. Acreditam na

dor acima de tudo, mentem quando dizem que esses métodos ficaram

para trás. Se, como diz a Rosario, os deuses são parecidos com os seus

crentes, então é este deus cruel que quer e permite as mutilações. Não

vou enumerar o que fizeram comigo, ou com o Eddie, ou com todos os

outros. O teu pai também te vendeu, como o meu? Somos os servos

desta gente, somos a carne que torturam. Os que alombam com as

raparigas na Índia, eu sou o mateiro que fode com a filha do fazendeiro.

Se quiseres seguir-me, terás de lhes desobedecer. Há alguma coisa atrás

daquela porta e eu preciso de ti. Não sejas cobarde.

A Laura fugiu e passou entre nós. Saiu de casa, mas ficou sentada na

escada da entrada. Estava a chorar.

O Juan subiu a escada. Fui atrás dele, zangada. Disse-lhe que não

havia necessidade de a tratar assim. Mas ele não estava furioso: estava

desolado. Perguntei-lhe se se sentia mal e ele disse-me que não com a

cabeça, mas eu medi-lhe as pulsações e vi que estava tão acelerado, que

o obriguei a deitar-se. Levou a minha mão ao peito para controlarmos

juntos a taquicardia. Não gosto de lhe falar assim, disse, mas preciso

dela. Se ela me seguir, terá de manter o segredo e de se virar contra eles.

Tu vais seguir-me e não te importas de os trair. Mas ela é diferente.

Pôs a almofada debaixo da cabeça e desabotoou as calças. Naquele

verão, usava umas calças de bombazina muito escuras que o faziam

parecer ainda mais alto. Vem, disse, e encavalitei-me em cima dele.


Porque é que a Laura tem aquele cheiro, perguntou. Nunca limpa bem os

restos de sangue dos trabalhos dela, expliquei-lhe. Tresanda a talhante,

sorriu, e eu acrescentei que, às vezes, também tresandava a morte.

Quando me penetrou, senti vertigens, uma sensibilidade no útero que me

assustou. Fiquei quieta a olhar para a sua cara gloriosa em cima da

almofada, ele é glorioso, o seu corpo, a sua frieza fingida, o seu suor

com cheiro a químicos. Não destruas a Laura, pedi-lhe, e ele disse-me

que se tratava precisamente do contrário. Fechei os olhos e imaginei-nos

aos três nos círculos de giz, ele pode partir a Laura em duas, é tão

pequena. Da boca para fora passo a vida a dizer que gosto de homens

delicados, há duas semanas discuti, na aula, sobre o autoritarismo e a

hipermasculinidade no cristianismo, disse que estava farta do

falocentrismo e do egocentrismo, mas quando o Juan domina e manda,

arfo como uma cadela submissa. Ele sentou-se e distraiu-se com os

meus brincos, uns pentagramas pretos enormes e leves que substituo

sempre que se partem.

O Juan disse-me que gostava de comprar esta casa. Eu guiei-lhe a

mão para que me acariciasse como eu gosto. Pensei em tomar um ácido,

o Stephen tinha trazido muitos papéis, que guardei na minha gaveta.

Disse-lhe que a casa seria sua, que tudo seria dele, porque nos iríamos

casar. Tinha ficado a pensar depois da última conversa com a Florence.

Não pode ser que não tenhas nada. A Ordem deve-te tudo. Pedi-lhe que

me mordesse a barriga e rodeei-lhe o pescoço com as mãos para sentir a

sua pulsação irregular na ponta dos meus dedos. Sempre gostei de ver

nos olhos dele que não tem medo da morte ou, pelo menos, que lhe será

indiferente se morrer comigo.

Quando o Juan adormeceu, fui buscar a Laura. Encontrei-a sentada a

olhar para o rio. Estava calor e tinha desabotoado a camisa. As suas


tatuagens pareciam bichos na pele.

Se fosse de noite, disse-lhe, teríamos de nos despir e de contemplar

as estrelas daqui. Podemos fazê-lo quando quiseres, respondeu-me. No

inverno é melhor. O vento do rio é doloroso. Tinha tirado a pala e a

pálpebra, abatida e mole, tremia-lhe. Sempre que falava, o ar enchia-se

do cheiro a álcool. Se ele tiver razão e houver mesmo alguma coisa na

casa, tal como ele a descreve, é uma passagem, disse ela. Quer que o

ajude a atravessar o limiar e que não diga nada à Ordem. Está a pedir-me

muito. Não sei porque é que te tratou mal, disse eu. Eu sei, respondeu.

He wants to know how broken I am. Vou fazê-lo, mas tenho medo

porque, se descobrirem, serão implacáveis. E ele também me assusta.

Disse-lhe que não tinha nada a temer do Juan, e ela riu-se, desmanchou-

se tanto a rir, que receei que caísse à água: a modo de protesto,

acenderam-se algumas luzes nas casas que estavam ao pé de nós.

Perguntei-lhe, em voz baixa, o que é que nos pediriam em troca da

transferência da consciência para outro corpo. Refletiu, de pernas

cruzadas, e pediu-me um cigarro. O sol, que se abatia sobre nós antes da

hora azul, não nos incomodava. Não sei, disse, por fim, mas será algo

obsceno: eu decidi que não quero. A resposta dela surpreendeu-me.

Quem é que não deseja manter a consciência viva? Quem se recusa a ser

praticamente imortal? Perguntei-lhe se sabia que, antes de compreender

para que servia, os chineses pensavam que a pólvora podia ser o

ingrediente de um elixir da imortalidade. Como é que descobriram que

estavam enganados, perguntou-me. Da maneira mais lógica: rebentou-

lhes na cara e, desde então, usam-na para fazer fogos de artifício. E a

verdade é que eu, quando vejo fogos de artifício particularmente bonitos,

me sinto imortal. Somos diferentes, respondeu.

Apagou o cigarro e regressámos juntas.


Antes de entrarmos na porta, esperámos pelo Stephen. Ele decidiu que

mais ninguém devia saber, nem o Tara, nem a Sandy, nem nenhum dos

nossos amigos. Pelo menos por enquanto. O Juan pediu ao Stephen,

como fizera comigo, que abrisse a porta. Ele fê-lo e vimos o quarto

normal com a cama, as cortinas azul-turquesa, os quadros. Um lavatório

perto da janela que dava para uma casa de banho pequena. Os ingleses

são absurdos, disse o Stephen, quem é que põe alcatifa no chão da casa

de banho, é claro que ninguém a usa, diz-me se estou a mentir, e o Juan

quase sorriu. Saímos e o Juan fechou a porta. Quando a abriu ele, do

outro lado já não havia um quarto. Nem cama nem quadros nem

lavatório. Havia um túnel escuro parecido com aqueles a que chamam

underpass, uma passagem subterrânea que é muito comum nas estações

de comboio. Qualquer coisa o iluminava, mas a luz não parecia elétrica.

Pensei imediatamente em Arnold van Gennep e em Turner e nos espaços

liminares, nos umbrais, internos ou externos. Encruzilhadas, pontes,

margens. Não disse nada. A Laura pôs-se de cócoras.

Do outro lado da porta ficava-se logo com falta de ar. Parei o Juan

quando me senti asfixiada, tive medo por ele e pus-lhe a mão no peito: o

coração batia depressa, com demasiada força, mas de maneira regular. A

Laura estava agitada, sem fôlego. O que se sente é igual ao mal das

alturas, da montanha, disse. Assenti. Fazia-me lembrar La Paz. Fomos lá

com o meu pai e eu não conseguia andar e assustei-me. Pensei: é assim

que o Juan se sente sempre, e chorei numa esquina que cheirava a urina

enquanto o meu pai me gritava que íamos chegar tarde a uma reunião

com o embaixador.

O canal ou passagem subterrânea ia dar a um caminho de montanha

muito largo. Ouvia-se a água a correr por perto. Um rio sem grande

caudal. Era de noite atrás da porta, embora não estivesse escuro. Não foi

necessário ligar a lanterna que tínhamos levado connosco. Eu e a Laura


ficámos esgotadas passados trezentos metros, o Juan, menos.

Aproximou-se da beira do caminho, seguimo-lo e vimos que a varanda

não dava para o vazio. Havia um trilho entre as árvores que se podia

descer sem grandes vertigens nem dificuldades aparentes. Ao fundo,

vimos os reflexos prateados de um rio.

O silêncio era poderoso e horrível. Um lugar assim, uma floresta com

um rio, não pode estar tão quieto. E os animais, os pássaros, o crepitar

das folhas? Talvez tivéssemos os ouvidos entupidos por causa da

altitude. Também não sentíamos frio nem calor. O lugar estava quieto

em todos os sentidos. A Laura disse que lhe fazia lembrar as montanhas

do País de Gales, mas como se fosse uma cópia imprecisa. Um esboço.

Faz frio nas montanhas, há nevoeiro, disse, e as cores estão erradas.

Está tudo errado, disse o Juan. É um cenário. Avançou. O caminho a

seguir à curva voltava a alargar-se e abria-se para um passadiço

flanqueado por árvores. A Laura apontou com o dedo para os ramos e o

Juan aproximou-se. Os ramos e o chão estavam cheios de ossos. Quase

todos roídos, limpíssimos e velhos. As árvores estavam estranhamente

enfeitadas com falanges e fémures entrelaçados, unidos com ramos

finos, formas delicadas, geometrias de carnívoro. O Juan tocou nalgumas

e tentou memorizá-las. Parece uma escrita, disse à Laura. No chão, os

ossos estavam espalhados sem um objetivo claro. Passaria por ali

alguém, mais tarde, para pendurar os enfeites? O Juan tocou num deles,

que se desprendeu e caiu na sua mão aberta como um fruto maduro.

Observámo-lo. Formava um signo, um selo. O Juan deixou a mão aberta

e caíram mais três. Ele agradeceu e guardou-os no bolso.

O caminho estava coberto de ossos a perder de vista. Eram de todas

as partes do corpo e de todos os tamanhos. Seriam restos de banquetes

ao longo dos séculos? Levariam pessoas para lá para morrer? Ou teriam

trasladado os ossos para lá para fazerem um caminho mortuário? Não


cheirava a nada. Eram ossos antigos ou que tinham sido devorados até

não restar nenhum resto de carne.

A descida até ao rio foi mais fácil do que esperava. O ar continuava

ressequido, apesar da vizinhança da humidade. Estive quase para tocar

na água, mas o Juan impediu-me de o fazer com bastante violência,

como se me estivesse a arrancar de um estado hipnótico. Fez bem, todos

sabemos o que acontece quando se rouba um pouco de faery. Mas

aquele não era o país das fadas. As regras, no entanto, não têm de ser

diferentes. As regras quase nunca o são. As formas podem variar, as

regras, não.

Alguém dorme no Outro Lugar. É assim que lhe chama o Juan. Daí o

silêncio. Para que não acorde. E os ossos são um templo. Respirou

fundo. Não há absolutamente nada aqui, disse. O rio não tem peixes.

Nem um inseto. Quanto mais teremos de caminhar até encontrarmos

algo?

A Laura pediu-lhe paciência. It’s our first time.

Ele olhou para as mãos e falou. Ouvimo-lo porque, pelo seu tom de

voz, adivinhámos que ia contar um segredo. Quando invoco a Escuridão,

ou quando a Escuridão se apodera de mim, como preferirem, não

consigo ver o que acontece. Durante o transe, fico cego. Só sei que a

Escuridão corta e leva os Iniciados porque me contam. Uma vez, a

Florence mostrou-me um vídeo da Cerimónia que depois queimou. E só

fico a saber o que aconteceu depois de regressar e curar as feridas, e de

marcar quem tiver de ser marcado com cicatrizes. Mas, durante o transe,

estou inconsciente. Vou para um lugar ou, melhor dizendo, vejo cenas.

Pensava que eram alucinações como as que se sofrem durante um coma

ou uma paragem cardíaca.

É parecido com este lugar?, perguntou a Laura.


Sim e não. Vejo um corredor pelo qual não me atrevo a caminhar. Há

pessoas, ou seres, pendurados em candeeiros. Vi um piano. E há uma

janela da qual se vê uma floresta; a floresta, sim, é parecida com esta.

Todas as florestas são parecidas, interrompi-o.

Eu sei, mas são idênticas. Já vi essa janela muitas vezes, em todas as

Cerimónias. Umas vezes está mais perto; outras, nem tanto. E é este

lugar, seria capaz de o reconhecer entre milhares de imagens

semelhantes.

A Laura deu-lhe a mão e ele agarrou-a com força. Entrelaçaram os

dedos. Avancemos, disse ele.

A floresta continuava no outro lado do rio e havia também uma

suave colina que mal se via no meio da escuridão. Voltámos para o

caminho dos ossos e dos enfeites: os fémures organizados em formas

imbrincadas, as caveiras penduradas como se fossem espanta-espíritos,

quietíssimas, os pequenos ossos de mãos e de pés montados como joias

delicadas e, no chão, ossos pisados, quantos metros seriam, alguns

flanqueavam o caminho a modo de sentinelas, caixas torácicas

completas erguidas, e havia delicados caminhos de colunas vertebrais,

algumas inteiras, rematadas pelas pequenas caudas de animais

aquáticos.

Então, aconteceu-me uma coisa estranha. Senti-me nauseada. Um

sabor amargo encheu-me a boca e fiquei com espasmos. Estamos a

profanar este lugar, disse ao Juan, e ele apoiou as mãos na minha barriga

e conseguiu acalmar-me para que eu não vomitasse ali, em cima dos

ossos. Os espasmos roubaram-me todo o ar que me restava e procurámos

a saída.

Do outro lado, eu e a Laura deitámo-nos no corredor para recuperarmos.

O Stephen só prestava atenção ao Juan, que apertava os olhos, cego pela


dor de cabeça, uma enxaqueca monstruosa. Levou-o para a cama. Segui-

os. O Stephen pediu-me que fosse buscar gelo e água. Não quis ouvir

nada sobre a expedição, não naquele momento, temos de tratar dele,

disse-me, e eu desci a escada com os punhos cerrados. Deixei-lhe a água

e o gelo na mesa de cabeceira e fui-me embora com a Laura,

inexplicavelmente ofuscada. Nenhuma das duas descansaria ou

dormiria, estávamos demasiado excitadas. Tivemos de pôr azeite nos

lábios porque estavam secos, o Lugar deixa a pele áspera, o ar arranha o

nariz, se permanecermos lá demasiado tempo pode fazer-nos sangrar.

Discutimos sobre a conveniência de voltarmos a abrir a porta em breve

ou se não seria melhor esperarmos algum tempo. Falei-lhe de São Morte

e dos ossos dos guaranis, e de que era muito óbvio que andavam à

procura do Juan, de que o tinham seguido até ali. A Laura desenhou, no

chão, o percurso: lembrava-se de pormenores incríveis, eu distraíra-me

mais do que pensava. Não tinha olhado para o céu, por exemplo, nem

levantado a cabeça. A Laura, sim, e tinha visto um céu negro, sem

estrelas, sem Lua. Sinto que estou a divulgar um segredo, a traçar o

mapa de uma terra proibida, disse. Temos de documentar tudo, respondi.

E a Laura copiou o plano do chão num papel que trazia consigo, porque

ela desenha sempre os seus mapas e planos alternativos. Mas, pelo

menos, quem vir este mapa não pensará que tem nada de mal. Podia ser

um plano da Terra Média, disse eu a rir.

Nessa primeira vez, senti-me enorme, porque aquele lugar era nosso.

Com isto podemos assumir o controlo, pensei. Voltei para o nosso

quarto para ver como estava o Juan e pareceu-me bem, calmo, nos

braços do Stephen.

Fizemos uma segunda expedição quando o Juan decidiu fazer uma

oferenda ao Lugar para lhe pedir algo em troca. O quê? Ter os meus
segredos, respondeu. Pareceu-me tão estranho. Porque não pedes que te

cure? Precisa de mim doente, disse, apontando para a porta. Só é capaz

de me encontrar porque estou perto da morte.

Havia mais ossos no caminho nesta expedição. Uma quantidade

maior. O número de enfeites pendurados nos ramos também aumentara.

O Juan despiu a t-shirt, ajoelhou-se sobre os ossos e mergulhou as mãos

nos restos. As suas costas nuas alargaram; barulho dos joelhos a

esborrachar ossamentas antigas. O rio soava como se tivesse mais

caudal. Cresce porque come. O Juan é a boca dele e os deuses têm

sempre fome.

Passar demasiado tempo atrás da porta é como perder horas a olhar

por um telescópio. De tanto olhar para as estrelas, sentimo-nos perdidos,

fora deste mundo. No espaço, a vida humana não tem significado. Neste

lugar também não. O Juan desfez os ossos com os dedos. Estava a

sangrar e o sangue era a sua oferenda. A Laura rapou uma parte do

couro cabeludo do Juan por cima da orelha esquerda. Tentei não olhar

porque estava convencida de que levar ferro para o Outro Lugar era um

erro, disse-o, mas não me ouviram. O Juan usou o gume de um osso

para fazer um desenho no seu próprio couro cabeludo. A dor só o fez

morder o lábio. Não sei como é que o conseguiu fazer sem um espelho,

mas o desenho ficou perfeito.

Esta comunhão era perigosa, mas necessária. Precisávamos que a

Laura decifrasse os traços dos enfeites. Precisávamos de manter os

nossos percursos, aquele lugar, em segredo. Para isso, era necessário que

o Juan entregasse qualquer coisa. Depois de fazer o desenho no crânio e

de deixar o osso em cima dos outros, caiu à frente dele um enfeite de um

ramo comprido de uma árvore; um enfeite pequeno. O Juan olhou em

volta, e creio que nos seus olhos havia agradecimento.


Havia um caminho novo ao pé do dos ossos, cinzento como a noite e

de um verde tão escuro como o de uma vegetação estranha, musgos e

líquenes nas árvores. O chão assemelhava-se a um pinhal. Senti que o

silêncio se quebraria muito antes de ouvir um som distante, não lhe

posso chamar música, sons desarticulados e desajeitados de um

instrumento de sopro, e esporádicos, como se o flautista estivesse sem

fôlego. Durou menos de um minuto. Estava lá alguém, mas muito longe

de nós.

Não sei se é um instrumento, disse o Juan. Talvez seja um animal. A

boca de algo ou de alguém. Um canto. Apoiei-me no seu ombro e ele

passou-me o polegar ensanguentado pelos lábios. O sangue dele é

delicioso. O que aconteceria se fizéssemos sexo aqui, sob o céu sem

Lua? Como seria o nosso filho?

Continuámos a andar. Havia mais oxigénio, também. Os troncos das

árvores tornaram-se mais magros. A Laura apercebeu-se antes de nós do

que estava em cima das árvores: não era fácil de perceber à primeira

vista. Havia mãos a abraçá-las. Muitas: umas em cima das outras. Mãos

cortadas, soltas, presas aos troncos, com as palmas completamente

dobradas, os dedos arqueados, mãos humanas, rígidas e em posição de

garra. Naquela zona, toda a floresta era assim. Troncos e troncos com

mãos mortas. Alguém as unia quando lhes chegava o rigor mortis. No

primeiro tronco que vimos havia doze mãos. Alguns tinham mais.

Outros, apenas uma. Pensei na Mão da Glória que tanto desejava.

É um colecionador, disse. Um artista. Ou vários. À direita da

Floresta das Mãos, como a batizámos, estava o que mais tarde o Juan

marcaria no mapa como o Vale dos Bustos. Pareciam pedras direitas ou

lápides; um cemitério de soldados, pela sua simetria. Mas eram bustos

humanos. Sem os braços, sem a cabeça, sem as pernas. Bustos com a

pele manchada de um homem mais velho, bustos com belos seios de


rapariguinha, bustos de meninos, de homens gordos, de homens magros,

bustos de pele escura e bustos de pele muito pálida, barrigas afundadas,

grandes panças de obesos, bustos de mulheres que já tinham dado de

mamar. Reconheci numas costas marcas de unhas como as que o Juan

deixa na Cerimónia, como as que o Stephen tem nas costas.

Nunca nos deixes sozinhas neste lugar, disse a Laura. Não

conseguiríamos sobreviver longe de ti. Isto é uma boca. Pode estar a

dormir, pode estar a comer noutro lado, mas só nos respeita porque

estamos contigo.

Neste ponto, o Juan disse-nos que já chegava, que tínhamos de

voltar. Doía-lhe a cabeça outra vez. Tinha os olhos irritados e parecia ter

vontade de chorar.

A Laura decifrou o significado dos enfeites no dia seguinte.

Surpreendida, disse-nos que se distraíra com outras explicações em vez

de considerar a mais óbvia, talvez por ser a mais próxima dela. Julgava

que eram símbolos diferentes, selos, e não conseguia encontrar nenhum

sentido para eles. Mas são letras. Tive em conta os pormenores, as

imperfeições dos enfeites de ossos, são cuneiformes, querem comunicar

com precisão e exatidão. É uma só palavra, disse, e um número.

Pôs os desenhos em cima da mesa, a progressão de como os tinha

decifrado, os seus erros à procura de um significado mais complexo.

HUNGRY, dizia.

O Juan apoiou-se na ombreira da porta da cozinha e pediu-me um

cigarro com a mão.

Tem fome? Qual é o número?

O 4, respondeu a Laura. Não percebo, a não ser que se refira à casa

do lado, onde vivem os guarda-costas e a tua médica.

Olhei para o Juan, que tinha fechado os olhos.


Eu sei reconhecer um Lugar de Poder. O meu ficou em Misiones.

Não tem por que ser assim, insistiu a Laura. O dogma não diz que o

Lugar de Poder tem de ser sempre óbvio para o médium. Às vezes, tem

de procurá-lo. As mulheres têm-no dentro de si e podem invocá-lo. Os

homens têm de encontrá-lo.

E não teria dado já por isso?

Não necessariamente. Alguma vez foste à casa do lado?

Nunca, reconheceu o Juan, é sempre ela que vem cá, ou o assistente.

Podemos fazer-lhes uma visita.

A casa do número 4 era extraordinária, maior do que a nossa e mais

antiquada: a Graciela não trocara de móveis e, além disso, não era hippie

e não tinha outros interesses para além de ser a melhor discípula

possível de Jorge Bradford. O Juan não queria fazer-lhe mal e, por isso,

decidiu explorar a casa quando a Graciela estava a ter aulas ou de banco

no hospital, nunca soube bem quais eram as suas atividades em Londres,

não falava comigo. No número 4 de Cheyne Walk estavam dois guarda-

costas e o assistente da Graciela, um estudante de medicina muito novo

que nos cumprimentava sempre com um sorriso sincero. Ofereceu-nos

qualquer coisa para bebermos e pediu desculpa por a Graciela estar

ausente. Então, o Juan pediu-lhe autorização para ver a casa: é que não a

conheço, explicou. O assistente, não me lembro do nome dele, disse que

era uma casa muito bonita. O Juan assentiu e entrou, decidido. Os

guarda-costas ficaram do lado de fora.

A descoberta foi tão incrivelmente rápida, que ainda hoje não a

consigo explicar, não percebo como é que não a encontrou antes, como é

que pôde passar despercebida durante tantos dias. Quando o Juan

chegou ao centro da sala, ouvimo-lo respirar fundo e dizer em voz baixa,

muito depressa, palavras de reconhecimento e de alívio. Estava virado de


costas para nós. Quando se virou, estava praticamente irreconhecível.

Esticou os braços num gesto claro: pedia-nos que não avançássemos

mais. Apercebi-me da transformação antes dos outros, nas mãos. Gritei,

não me consegui conter, e o grito foi tão agudo e histérico, que um dos

guarda-costas abriu a porta. O Stephen reagiu. Pediu-lhe que entrasse e

que fosse chamar o colega. Percebi. O Juan ia abrir a Escuridão e a

Escuridão teria fome. O assistente da Graciela perguntou o que estava a

acontecer, mas ninguém lhe prestou atenção.


O Juan despiu a roupa. Tinha de apresentar-se sempre nu perante a

Escuridão. Era necessário, fazia parte do ritual. Os rituais não se

discutem porque os rituais protegem. Os guarda-costas seguramente

terão pensado, nos segundos que precederam a invasão da casa pela

Escuridão, que estávamos a meio de uma orgia e que eles tinham sido

convidados. Não creio que tiveram tempo de imaginar muito mais. O

Juan deteve-se no lugar indicado e tocou no chão com as suas mãos

animais. Alguma coisa lhe respondeu e todos o sentimos. Quando se

levantou, uma linha escura rodeou-lhe o corpo e foi-se alargando, como

uma irradiação. A Escuridão é diferente quando surge sob um teto, num

lugar fechado. Confinada, ruge. É um trovejar contínuo de vibrações

baixas. Retrocedi o máximo que pude, mas era mais difícil escapar

daquilo.

O corpo do Juan elevou-se na Escuridão apenas uns centímetros: o

espaço não era suficiente, mas ficou suspenso numa mancha negra em

expansão. A Laura avançou uns passos e o Stephen correu atrás dela e

atirou-a para o chão, ouvi-a a bater no chão.

A Escuridão tornou-se tão grande e tão pulsátil, que já não se viam

as paredes, nem a escada, nada. Estava faminta, senti-o no meu corpo.

Foi o Stephen que guiou os guarda-costas. Como estavam estupefactos,

aproximaram-se demasiado do Juan e o Stephen disse-lhes c’mon, go, e

eles obedeceram-lhe, claro, porque já não pertenciam a este mundo e

nem lhes ocorreu tentar escapar. O golpe atingiu-os. A Escuridão

alargou-se como um chicote para levar o que queria. Nem tiveram tempo

de gritar. Num abrir e fechar de olhos, já não estavam lá, engolidos de

uma só vez. O assistente avançou sozinho para o abraço da negrura,

atraído por uma força que não teria sido capaz de explicar. A cara do

Juan não revelava nenhuma mudança. Roguei que fosse o fim porque, se

a Escuridão quisesse mais, nada teria o poder de a deter, nem nós de


escapar. Já não se via a porta da rua. A Escuridão conformou-se com o

engodo. Após uns instantes de hesitação, voltou lentamente a converter-

se num contorno do Juan e pousou-o no chão, de pé, mas ainda rodeado

pelo halo negro. O Stephen aproximou-se antes de mim e deitou-o no

chão com segurança e delicadeza. Por alguma razão o Juan lhe dera, há

muitos anos, a sua marca e a sua confiança. Com a sua própria roupa,

secou delicadamente o suor do peito e do pescoço do Juan. Depois,

sentou-se ao lado dele. Se não acordasse depressa, teria de ir buscar a

Graciela. Medi-lhe as pulsações e fiquei admirada: estavam muito

aceleradas, mas regulares; respirava com ansiedade, mas sem desespero.

Quando a Laura se atreveu, finalmente, a aproximar-se, o Juan já estava

quase calmo, mas ainda inconsciente. Também não estava febril. Não foi

necessário levá-lo ao hospital ou recorrer à médica. Tirámo-lo de lá

entre os três e regressámos a nossa casa.

A Laura contou-nos, depois, que ouvira a voz da Escuridão. Abriu

um whisky e bebeu do gargalo, acrescentando que não tinha percebido

nada, em nenhuma língua, que era um idioma completamente

desconhecido para ela. Ninguém a percebe, amiga, disse-lhe o Juan, que

descansava com os olhos fechados, mas perfeitamente lúcido. A questão

não é se é possível percebê-la. A questão é se fala para nós ou apenas no

seu abismo, se o que diz é a fome no vazio. Se tem mais qualquer coisa

para além da inteligência da tempestade ou da terra quando treme. Se é

mais do que uma outra cegueira, que apenas nos parece iluminada por

não a conhecermos.

Nesse mesmo dia, soubemos, por uma chamada da Florence, que o

Eddie tinha fugido. Ela queria saber se estava connosco. O

desaparecimento do Eddie e o surgimento do Lugar de Poder estavam

relacionados, sem dúvida, mas não nos atrevemos a conjeturar como.


Acordei sozinha na cama e dei com o Juan sentado num cadeirão a olhar

para a janela. Lá fora o céu estava muito azul e havia pássaros nas

árvores do passeio do outro lado da rua. Sentei-me ao colo dele: tinha

estado a chorar e fiquei alarmada, porque o Juan nunca chorava. Despi-

lhe a t-shirt e apoiei-me, nua, sobre ele: precisava de que sentisse o meu

corpo.

— Lamento imenso — disse eu. — Queria que este lugar fosse

diferente para ti. Não fazes ideia da quantidade de coisas que imaginei.

Apanharmos o comboio, irmos a Brighton, o peixe é tão bom lá, embora

os pássaros sejam tão atrevidos, que o roubam às pessoas. Aqui comem-

no na praia como nós comemos churros. Estava a pensar pedir ao meu

pai que nos comprasse uma casa ao pé do mar. Também imaginei que

podíamos dar festas nesta casa, com os rapazes, ninguém se queixa da

música alta. Tencionava encher este quarto de discos e de livros, tratar

de ti, adiar o regresso, não se oporiam. Mas depois aconteceu isto,

primeiro a porta, depois o Outro Lugar: no início, gostei, é como se

fôssemos exploradores, pensei, sabes que eu me pelo por uma

expedição, tenho inveja das mulheres que abriram as pirâmides, inveja.

Mas sempre que voltávamos do Outro Lugar eu pensava que injusto, é

injusto. Não te deixa em paz. Eu queria outra vida para nós, um tempo.

Uma pausa. E agora acontece isto. Um Lugar de Poder a poucos metros

de nós. Trouxe-te para uma armadilha.

— As armadilhas é que me encontram. Foi por isto que te afastaste

de mim, não foi? — perguntou, beijando-me a cara com delicadeza.

Tinha os lábios ressequidos. — Porque, no fundo, sabias que a vida é

impossível comigo e querias experimentar como seria viver sozinha;

porque sabias que, comigo, os deuses estarão sempre em primeiro lugar.

— Vais perdoar-me?

— Nunca houve nada que perdoar. Ainda bem que o fizeste.


Aninhei-me em cima dele. Peguei-lhe nas mãos, levei-as ao meu

pescoço, ao estômago, queria que ele sentisse o movimento da minha

barriga e da minha respiração. Tinha os olhos demasiado mortiços.

— Vai, meu amor. Deixa-me. Eu não posso ir-me embora, mas tu

sim, podes fugir de mim, deles. Não há nada, Rosario, só campos de

morte e de loucura, não há nada e eu sou a porta para esse nada e não

conseguirei fechá-la. Não há nada que procurar, nada que perceber.

— Jamais te deixarei. Pede-me outra coisa.

— Então, se não te vais embora, não me deixes sozinho. Nem depois

de morta. Persegue-me como um fantasma, haunt me.

— Claro — respondi-lhe. — Faria qualquer coisa por ti.

A Florence pediu que a Cerimónia se realizasse em breve e o Juan

acedeu: percebia que ela precisasse de ver para crer. Quase desmaiou

quando lhe dissemos que havia um Lugar de Poder em Cheyne Walk.

Não é possível, repetia. Em Chelsea? Devias ter sentido isso. Procurou-o

e encontrou-o, dizia eu. Nunca lhe dissemos exatamente como ou

porque é que o tinha encontrado. Proibimo-nos uns aos outros de falar

sobre o Outro Lugar. Era nosso. Para quê, ainda não sabíamos, mas

pertencia-nos.

Os Iniciados acenderam as velas. Parecia-se tanto com uma vigília

cristã: tinha a mesma beleza ténue e sinistra, as ruas iluminadas por uma

luz ambarina, as igrejas das aldeias e os sussurros dos fiéis. Era

perigoso, em Londres, no entender da Florence, e foi por isso que pediu

a toda a gente para se vestir como se se tratasse de uma festa. Chegaram

com máscaras e vestidos de seda; com cravats sofisticados e saltos

vertiginosos. Alguns permaneceram vestidos. Outros, como o Stephen,

esperaram nus. Invejei as cicatrizes que tinha nas costas. Também queria

umas, mas nessa noite não seria possível. O Juan pediu-me que não
participasse. Os escribas situaram-se num dos lados, como sempre. Não

havia espaço para muitos Iniciados. A Graciela foi reinstalada noutra

casa das imediações. Ela, por ser a única médica do médium, não podia

assistir à Cerimónia. O meu tio não perdia nenhuma. Uma imprudência,

mas ele era o sangue.

O Juan levantou as mãos no quarto que escolhemos para o

prepararmos. Desceria a escada para presidir a Cerimónia. Pensei na

Laura e pedi: oxalá esta noite seja ela a receber as suas cicatrizes, as

suas medalhas, merece-as. Vesti-o, cobri-o com uma bela túnica de

renda preta que lhe tapava a cara e lhe descaía sobre o peito. A minha

mãe estava presente entre os Iniciados, com o couro cabeludo a espreitar

por entre os escassos cabelos brancos, quase careca, o corpo horrível,

seco, com a pouca gordura que tinha nos lugares errados. Segurei o Juan

pelo pescoço sem delicadeza, não era necessário, senti as pulsações na

palma das mãos. Não morras hoje, ordenei-lhe, e olhei-o nos olhos um

pouco verdes e um pouco amarelos. Não morras e, se puderes, leva

contigo a minha mãe.

Quando ficou pronto, pegou-me na mão e apoiou-a em cima da

cicatriz que tem no braço, essa outra mão marcada, queimada, a mão

esquerda da Escuridão. Não morras esta noite, repeti, embora já não me

ouvisse. Vi-o sair, o corredor, a escada, e acariciei a pena de caburé que

o Juan me entregou antes de se ir embora, o amuleto que eu lhe dera há

muito tempo e que ele nunca usa nas Cerimónias, nas quais os pequenos

feitiços deste mundo de nada servem. Sozinha, ouvindo os gritos dos

Iniciados a serem mutilados e comidos e envoltos pela Escuridão

implacável, cada vez percebia melhor o poder do segredo. Caminhamos

entre os outros sem fazermos parte deles. Alguns, suponho que a

Florence, por exemplo, devem sentir que caminham sobre os outros, mas

eu não. Sinto que caminho por passagens coloridas que mais ninguém
conhece, sinto que os outros estão iluminados por uma lamparina ténue

e que a mim me ilumina uma luz ofuscante. É estranho pensar na luz,

porque sempre me explicaram que somos para a Escuridão.

Depois da Cerimónia, que, de acordo com os padrões da Florence, foi

um êxito, o Juan decidiu que passaríamos uns meses sem irmos ao

Outro Lugar e que o outono serviria para eu começar a escrever a minha

tese. Já tinha título: O culto dos ossos na etnia mbyá. Origem e

ressignificação urbano-migratória: a figura de São Morte na cultura

crioula do Litoral. Faltava-me, claro, grande parte do trabalho de

campo, as entrevistas, o território. Planeava ir a Misiones

exclusivamente para recolher testemunhos: a Tali prometeu ajudar-me e

pôs-me em contacto com um antropólogo paraguaio que sabia mais do

que ninguém sobre religiosidade guarani. O Juan queria estudar com a

Laura e ela estava fascinada. A casa encheu-se de círculos e eles

pareciam crianças, trancados no quarto ou a passear pelos cemitérios de

Londres como se o trato com os espíritos fosse uma brincadeira. O

Stephen e o Juan eram perfeitos como andróginos mágicos: a dupla

corrente, como chamavam ao encontro sexual ritual, funcionava na

perfeição entre eles. Deixavam-me sem fôlego: eram capazes de invocar

várias entidades num só dia e faziam-no com uma descontração e um

desenfreio tais, que a minha ponderação inata resistia a acompanhá-los.

Eu era a rapariga dos livros e das listas: embora arriscasse, também

gostava de ordem. Um dia, recusei-me a traçar o círculo e o selo porque,

disse-lhes, para vocês isto não passa de um jogo e eu estou farta disso. O

Juan pegou-me ao colo e, rindo, prometeu que, quando soubesse de

algum suicídio, me arranjaria a Mão da Glória com que eu andava

obcecada. E que deixasse de ser tão trombuda. Logo ele.


Naquele tempo, além disso, a Laura e o Stephen e o Juan tinham

aprendido a comunicar em segredo. A Laura chamava-lhe pishogue. Não

conseguia fazê-lo muitas vezes e nunca sem o Juan, porque irradiava

dele: era a consequência do selo que traçara no couro cabeludo no Outro

Lugar, quando pediu esse poder em segredo. Tratava-se de alterar a

perceção dos outros para que só vissem e ouvissem o que eles

quisessem. Um pestanejar na realidade. Eles falavam e os outros

percebiam outra coisa. Faziam-no à minha frente, sem qualquer tipo de

consideração, e era desesperante. O Juan ensinou-me o método em

pormenor, mas não funcionava comigo, tentámos muitas vezes, durante

horas, até eu me fartar e me trancar na casa de banho a chorar. Não era

capaz, e também não conseguia engravidar e garantir a continuidade do

sangue. O Stephen não podia ter filhos e o Eddie continuava a monte. Eu

não podia ou não sabia como adquirir nenhuma aptidão para além dos

mecânicos círculos de giz. Não me apetecia estudar. Só queria ir ao

Outro Lugar e pegar numa das mãos mortas que se aferravam aos

troncos da floresta. Mas o Juan recusava-se a acompanhar-me. Estava

frustrada e furiosa. Até lhe disse e se fores tu que não consegues ter

filhos?, mas não ficou nada ofendido. É possível, disse. Temos de pedir

ao Jorge que nos faça exames.

É que, minha querida amiga, isto não é como andar de bicicleta,

disse-me o Stephen. É como tocar piano. Esquece o Juan nesta conversa

porque ele não é como nós. Se não se aprendem certas coisas desde

pequeno, jamais se atingirá o nível necessário. Eu e a Laura recebemos

instrução desde crianças. Tu também, mas de outro tipo. Deve-lo ao teu

pai, porque não é correto usar assim as crianças. A Mercedes sempre me

acusou de ser uma incapaz e estéril, e tinha razão. A tua mãe nunca tem

razão. Serás a mãe do filho dele, Rosario. E ele ama-te. Eu só tenho as

minhas cicatrizes, mais nada.


Para me acalmar, o Stephen sugeriu uma viagem. Podemos mandar

vir o Tara e os outros para fazermos uma viagem juntos à Espanha, à

Grécia e à Itália. Iríamos com os guarda-costas, com a Graciela e toda a

comitiva, mas não seria muito diferente do que sucede com outros

jovens milionários. Não é assim que viajam os herdeiros do Getty e os

Rolling Stones? E afastar-nos-íamos da Escuridão, desta ilha e da

obsessão por encontrar o Eddie, que estava a enlouquecer a Florence.

Detetives espalhados por toda a Grã-Bretanha procuravam pistas do filho

mais novo e, claro, também a polícia. Imaginei o sol sobre o mar e as

casas brancas de Cadaqués e disse imediatamente que sim, e fiquei tão

contente que me pus logo a fazer a mala, tinha de comprar um biquíni,

os óculos de sol mais giros, umas sandálias para usar em Roma. Levaria

os meus livros. Seria a primeira doutora em antropologia argentina

graduada em Cambridge e isso enchia-me de um orgulho ridículo.

Alguém se tinha de sentir assim porque, à exceção do Juan, mais

ninguém se importava com isso. Tinha de rever o Pureza e Perigo, da

Mary Douglas, e Les Structures Élémentaires de la Parenté, do Lévi-

Strauss. Podia demorar um mês a fazê-lo. A Laura também aceitou vir

connosco: ainda mal saíra de Inglaterra. Custou convencer o Juan, mas

não muito. Ele estava preocupado com o Eddie. Dizia que era uma ponta

solta e estava convencido de que, enquanto ele não aparecesse, não

estaríamos a salvo.

A fuga do Eddie foi violentíssima. Aconteceu de manhã e ninguém

ouviu o ataque aos guardas que o vigiavam, apesar de não haver dúvidas

de que teriam gritado, porque o Eddie lhes comeu os olhos com os seus

dentes bicudos, os dentes que lhe afiaram quando era pequeno.

Conseguiu paralisá-los ou adormecê-los, ninguém sabia ao certo, os

homens não se lembravam do que tinha acontecido, acordaram do transe

cegos e enlouquecidos pela dor. O Eddie levou com ele roupa e dinheiro,
um sinal muito claro de que não estava assim tão louco como os outros

acreditavam. Eu lamentava nunca ter falado com ele. A Florence ter-me-

ia deixado. O Stephen dizia que qualquer relação com o Eddie acabava

sempre da mesma maneira, e enumerou os animais que ele maltratara,

os colegas da escola que levara ao suicídio, os diversos cuidadores que

tinham acabado mortos ou mutilados. O Juan ouvia. Têm de encontrá-

lo, repetia. Porque é que o deixaram viver?

A ti também te deixam viver, respondeu-lhe uma vez o Stephen.

E talvez estejam enganados, disse o Juan em voz baixa.

Na noite anterior à viagem planeada, o Tara e a Sandy fizeram-nos

uma visita. Vieram com outros amigos, todos membros da Ordem, filhos

de altos Iniciados. O Navid, que era amante da Sandy; o Lucian, um dos

filhos da Anne e meio-irmão da Laura — o outro filho era um

verdadeiro old etonian, com os seus fatos e os seus sapatos luzidios:

queria ser o membro mais novo do Parlamento. A Susie, que vivia na

Escócia e estava sempre a convidar-nos para irmos à sua casa à beira-

mar, em Portobello. A Lucie, com a sua câmara. Os gémeos Crimson e

Genesis. Quase conseguimos reproduzir a vida em Cheyne Walk antes

da chegada do Juan. Ouvimos o Blonde on Blonde e Otis Redding e The

Velvet Underground, tomámos ácido e dançámos até deixarmos de ver

os nossos próprios corpos, desintegrados em partículas brilhantes. A

Laura gritava que ninguém devia sair da casa, que não podíamos

interromper a viagem, que o grupo tinha de se manter unido. É verdade

que é estranho quando alguém abandona uma trip: alguma coisa se

perturba. O Juan não dançava, mas a Sandy sentou-se ao colo dele e

beijou-o. Deixei que o fizesse. Lembro-me da boa de plumas brilhantes

dela, vermelha, que parecia sangue falso a jorrar. Tive um

pressentimento horrível e, para afugentar o medo, pus a tocar de novo o

disco do David e deitei-me ao lado da coluna. A primeira canção fez-me


chorar e deu-me vontade de rir porque falava de uma viagem à Lua, e só

então me apercebi de que tínhamos perdido a alunagem uns meses atrás.

Pior ainda, tínhamo-nos esquecido dela! Não a vimos. Nem sequer

chegámos a ligar a televisão. Onde teríamos estado nessa tarde? A

observar os bustos? As mãos? A caminhar sobre ossos?

Acho que dormi um pouco e, quando acordei, estavam todos

sentados em círculo. Pensei que estavam a olhar para as aguarelas do

Outro Lugar e pouco faltou para ter um chilique ao supor que os idiotas

da Laura e do Stephen, drogados, estavam a mostrar o segredo aos

nossos amigos, a quem não podíamos confiar semelhante coisa. Mas

quando vi o Juan a ouvir com ar muito interessado percebi que ele

jamais permitiria que isso acontecesse e que, por conseguinte, se devia

tratar de outra coisa.

O Tara estava a ler uma carta. A Sandy disse-me que alguém a tinha

enfiado por baixo da porta, mas não sabiam quando. O tempo, com o

ácido, era impossível de definir. Viram-na quando eu me afastei deles,

mas não sabiam há quanto tempo esperava que alguém a abrisse.

Era uma carta do Eddie.

Têm a certeza?, gritei, e o Stephen disse que sim, que reconhecia a

letra do irmão.

Lembrei-me da lápide que o Eddie desenhara por cima da sua cama,

dos desenhos de enforcados nas paredes, e olhei para o Stephen e para a

Laura: estavam pálidos de medo. Ouvi com atenção a voz do Tara.

Fechado nunca mais, há mãos na escuridão e não me deixam em paz.

Não te importa que me doa, mãe, e à velha também não, ela afiou-me os

dentes, ela quer que a morda. Ninguém ajuda.

A velha. A Mercedes, disse eu. Os rapazes das jaulas tinham dentes

pontiagudos. Tinha de evitar que me mordessem porque, como ela me

disse, podiam transmitir-me a raiva e eu morreria entre espasmos e seria


abatida a tiro como os cães do campo. Também terá deixado uma carta à

Florence? Não sei, disse o Stephen. A minha mãe não está em

Inglaterra. Ontem viajou. Foi ver o meu pai.

Ninguém ajuda. Quero ir às montanhas, posso deixar-me cair para

as pedras magoarem o meu corpo, para ficar com nódoas negras e

depois lhes tocar e sentir a dor. Estou na escuridão e na dor. O

usurpador também? Ele não é médium. Foi a grávida que me disse.

Vocês acham que não, mas eu conheço-o. Parece um leão. Eu sou como

uma raposa e mexo-me melhor do que ele.

A lucidez paranoica do ácido, que já não era uma placidez de cores,

mas um alerta em todo o corpo, o cabelo eriçado, cosido por arames,

obrigou-me a quebrar o círculo e a agarrar no Stephen pelos ombros. O

teu irmão anda à procura dele. Temos de partir já.

A sem olho também é uma usurpadora, como o leão. Eles não

merecem nada, não são o sangue. Mãe, arrancaste-lhe o olho com os

dentes. Ou foi a velha. Ela também esteve na Escuridão? Nunca se sabe

quem é real e quem não, todos são reais, não faz sentido tentar

distingui-los. Não sei se as mãos são reais. Não me deixam dormir.

Mãe, tu também não me deixavas dormir, temos de mantê-lo acordado,

dizias, eu ouvia-te, estava de pé. Acham sempre que não ouço porque

não falo. Vocês são inteligentes porque fazer mal com simplicidade é

ser-se inteligente. Eu também sou inteligente.

O Stephen perguntou ao Juan se o Eddie o tinha visto alguma vez.

Não sei, respondeu-lhe o Juan. Passei a convalescença em casa da tua

mãe e ele vivia lá. Passava as noites com a Rosario, mas ela saía durante

o dia e eu ficava sozinho. Não me lembro de ter sentido a presença de

ninguém no quarto, mas a medicação para as dores é bastante forte e

passava muitas horas a dormir.


Percebes porque é que te faço esta pergunta. Desde pequeno que o

meu irmão se dedica a um jogo muito simples, entra furtivamente nas

divisões das casas e, à noite, muda os objetos de lugar. Ou faz outras

parvoíces, como deixar uma marca nas paredes, um desenho. Se houver

um jardim, pisa as flores de um canteiro. De manhã, o dono da casa

repara nas mudanças e nos modestos atos de vandalismo e não percebe

nada. Chama-lhes creepy crawlers. Antes de a minha mãe o prender,

fazia-o com uns amigos que desencantou em Mayfair, uns dementes que

agora estão na Califórnia. Acho que te viu. Seja como for, conhece-te.

Olhei para o Juan. Nós tínhamos roubado cabelo do Eddie para

desvendarmos a história dele. Talvez se tenha apercebido. O Juan

devolveu-me o olhar e percebi o que os seus olhos me ordenavam: não

digas nada. Tentei acalmar-me, mas não conseguia deixar de pensar no

facto de as portas da casa não estarem fechadas à chave.

O que é que ele pode fazer, exatamente?, perguntou, por fim, o Tara.

O Eddie não tem poder sobre nada nem ninguém, não controla os seus

próprios atos. Isso não é verdade, disse o Juan.

Não me vão encontrar. Há sempre formas de mudar os sentimentos

de uma pessoa, só tenho de encontrar as palavras. Posso escrevê-las na

minha pele. O leão tem cicatrizes? Todos os filhos têm cicatrizes. Nunca

quis morrer porque não há assim tanta diferença entre a morte e a vida,

mãe, ensinaste-me isso nesta casa, e também mo ensinaram os poços,

algo vivo morria e pouca diferença fazia. A grávida sabe-o, é por isso

que me visita. Ensinaram-na mal. Vocês ensinam mal. Têm de deixar de

nos ensinar assim, com as mãos, com a noite e com a dor.

A grávida é a Encarnación, disse a Laura, mas nem todos lhe

prestaram atenção. É que muitos Iniciados não sabem que a médium

estava grávida quando se matou. Só sabem do suicídio e do massacre. O

Sandy levantou-se: tinha-lhe contagiado a minha inquietação. Temos de


revistar a casa, disse. Todos percebemos. Tínhamos de procurar o

esconderijo do Eddie. O Juan tomou-me pela cintura e, em voz baixa, ao

ouvido, sussurrou: não te preocupes se eles abrirem a porta. Eles só

conseguem ver um quarto. A chave para o Outro Lugar é minha.

Esta casa já não é segura, disse o Stephen. Temos de ir embora o

mais depressa possível. Temos carros, temos passaportes. Temos guarda-

costas. A agulha levantou-se do disco e ficámos em silêncio. Dividimo-

nos em grupos para revistarmos a casa. A cozinha, todas as gavetas e os

aparadores. Ouvi alguém levantar as tábuas da escada que estavam

soltas: era a Laura, a única que sabia desse defeito. Não sei quanto

tempo passámos assim, drogados, sobressaltados, a revistar inutilmente

todos os recantos, às vezes perdidos de riso, às vezes gritando de medo

ao sentirmos, no fundo de uma gaveta, uma mão fantasma. Tentámos

fazer um ritual para o encontrarmos, mas não nos conseguimos

concentrar e a Laura suspendeu-o. Também não me lembro claramente

dele. Tracei o círculo, como sempre.

Dormimos na casa trancada com todas as chaves que encontrámos e

com a certeza de que não estava ninguém lá dentro, mas ainda com

medo. Não sei porque é que não nos fomos embora. Estávamos

demasiado drogados para tomarmos decisões firmes. Todos partilharam

camas: lembro-me de cinco amigos nossos terem dormido juntos numa

delas. O Stephen conseguiu falar com a Florence de madrugada. Já

estava em Cadaqués. Leu-lhe a carta e ela ordenou-nos que partíssemos

imediatamente. O Eddie não podia sair de Inglaterra, não tinha

passaporte e era procurado nas fronteiras. Não obedecemos à Florence.

Por muitas voltas que dê ao assunto, não me lembro exatamente de

porque é que não nos fomos embora no dia seguinte. O ácido é a

desculpa, mas não é suficiente. A Sandy sentia-se mal, disso tenho a


certeza: reagia muito mal quando misturava ácido com álcool e foi o que

fez durante toda a noite. Mas a Sandy não importava: quem tinha de

deixar o país éramos eu, o Juan, o Stephen e a Laura. A busca frenética

pela casa durara muito mais tempo do que pensávamos: até o Juan

acordou depois do meio-dia. Não tínhamos feito as malas. Os guarda-

costas sossegaram-nos: não havia ninguém na propriedade, nem nenhum

perigo. Estávamos numa das ruas mais elegantes de Londres, vivíamos

rodeados de vizinhos ricos e célebres, também eles protegidos. Um

intruso teria sido detetado. Tínhamos fome e, por isso, a Susie e o Tara

improvisaram um esparguete e, de certa maneira, os ânimos mudaram.

Éramos jovens. A noite anterior começou a ser recordada como uma má

trip, e o fantasma do filho perdido da Ordem, aquilo que nós, de alguma

maneira, tínhamos evitado ser. Embora o Eddie o dissesse na sua carta:

todos os filhos têm a suas cicatrizes.

Passámos a tarde em cima dos almofadões e dos tapetes, como

sempre, a beber vinho para nos acalmarmos porque a marijuana podia

voltar a pôr-nos paranoicos. Limitámo-nos a jazer pela casa, a ouvir a

tempestade, sobressaltados pela trovoada. Fizemos as malas com uma

lentidão anormal ou, pelo menos, é assim que me lembro. Passei horas a

decidir se levava um ou dois sáris, por exemplo, e eu nunca usava sáris.

Genesis fez chá e comemos um doce de groselha que a cozinheira nos

tinha oferecido. Estava uma tempestade fortíssima e convencemo-nos de

que seria impossível metermo-nos à estrada; tínhamos a certeza, além

disso, de que o ferry não poderia zarpar. Nenhum dos nossos amigos se

foi embora. Como se algo os impedisse de o fazer.

Genesis e Crimson abraçaram-se, tapados por um cobertor, e foram

os primeiros a adormecer. Os outros retiraram-se pouco a pouco:

bocejavam, espreguiçavam-se, diziam que o stresse da noite anterior os

deixara esgotados. O Stephen disse podemos ir embora mesmo assim, só


nós os quatro, eles podem ficar cá, mas não parecia entusiasmado. Fui

eu que tive a última palavra: é melhor deixarmos a chuva passar. Vamos

amanhã de manhã. Cedo, disse ele. Muito cedo, respondi. Vou pôr o

despertador para as seis.

Deixei-me abraçar pelo Juan, que cheirava a vinho e a terra nas mãos

e no hálito. Beijei-o, mas não fizemos sexo nessa noite. Dormimos sob

uma mata de pele branca que nunca esquecerei e com a qual ainda

sonho.

O disparo partiu a noite: um trovão a acordar de um sonho, uma pedra a

partir um vidro, um lago gelado a quebrar-se. O Juan sentou-se na cama

e eu saltei. Não era a tempestade, não era um móvel a cair, não era um

fenómeno mágico ou sobrenatural: era o disparo de uma arma. Conhecia

esse ruído seco, o meu avô e o meu pai tinham-me ensinado a disparar.

Era uma arma grande, de caça, que eu também reconhecia porque o meu

pai caçou durante toda a vida e porque, quando estava bêbedo,

costumava disparar dentro de Puerto Reyes.

O segundo disparo chegou acompanhado de gritos de homem

indecifráveis. O Juan também saiu da cama, descalço. Com um pudor

insólito, vestiu as calças à pressa. Quando me preparava para ir até ao

corredor, agarrou-me pelo braço com força, mas consegui libertar-me e

espreitei pela janela. Do nosso quarto conseguíamos ver os guarda-

costas. Não estavam no posto deles. Ouvi Genesis, com a sua voz

inconfundível, com a pronúncia escocesa, a pedir por favor. Disse o

nome do Eddie. Pessoas a correr. Corpos a cair ao chão. Mais gritos. A

porta abriu-se uns minutos depois. Gritei, não me consegui conter. Era o

Stephen. Estava meio despido, pálido e furioso, como sempre que tinha

medo. É o meu irmão, disse. Anda à tua procura.


Mais um grito, de mulher, e um novo disparo. A Laura. Mais gritos e

móveis a cair. Mais três disparos. A sucessão era lenta. O Eddie tinha de

carregar a espingarda, mas estava a matá-los a todos. Depois dos

disparos, um uivo.

Então estava mesmo cá, disse o Juan.

Mas nós procurámos em todo o lado!, gritei-lhe.

Estava no Outro Lugar, Rosario, murmurou o Juan.

Percebi, mas já era tarde. O Juan também percebera tarde. Sou uma

raposa, pensei, e sei mexer-me melhor do que ele.

É melhor não corrermos, sussurrou o Stephen. Eu tinha-me tapado

com a manta branca porque estava nua. O objetivo era irmos até à escada

de serviço que estava ao fundo do corredor e ia dar à cozinha. Ouvimos

mais disparos e portas a fecharem-se. Quem corria não chegava muito

longe. Nós também não. Mais dois disparos e o Eddie saiu do quarto da

esquina, deu meia-volta e viu-nos. O sangue manchava-lhe a cara e a

roupa. A luz do corredor não estava acesa, mas conseguíamos vê-lo

bem. Na sua cara muito nova, sardenta, de olhos pálidos e com o cabelo

tão ruivo como o da mãe, surgiu uma expressão de alívio. Tinha

encontrado quem procurava. E fez pontaria. Por incrível que pareça, não

acertou no Juan. Errou por pouco. Apenas por um dedo, pensei. Não

domina muito bem a arma. O projétil raspou-me o ombro, que sangrou e

manchou a manta. Era uma ferida sem importância, mas foi o suficiente

para enfurecer o Juan: quando o Eddie tentou carregar a arma,

desajeitadamente, porque os cartuchos de uma espingarda de caça são

dois, o Juan abalançou-se sobre ele e, com um só movimento, arrebatou-

lhe a espingarda e atirou-a por cima do corrimão. Caiu no andar de

baixo. Não sei como é que teve coragem: a manobra requeria reflexos de

animal. Não receei por ele, lembro-me. Sempre intuí que ganharia

aquela luta. Queria ajudá-lo, também me lembro disso, mas não sabia
como. Não era a minha história, penso agora. Devia ser resolvida por

ambos. O Juan agarrou no Eddie pelo pescoço e arrastou-o até à porta

do Outro Lugar. Abriu-a. Eu segui-os. O ombro ardia-me como se

estivesse em chamas. Com um pontapé, atirou o Eddie para o Outro

Lugar e arrastou-o até ao fim da passagem. Segui-os a correr e em

silêncio. O Juan sabia o que fazia. Caminhava com a segurança de um

predador.

Foi o Stephen que fechou a porta, soube-o depois. Não quis

presenciar o destino do irmão.

O Eddie tentou levantar-se, mas o Juan pôs-lhe um pé em cima do

peito. Deviam ter a mesma idade, mas o Eddie parecia um adolescente,

uma criança, mesmo. Tentava resistir, mas estava muito magro e o Juan

tinha uma vantagem impossível: o Outro Lugar estava do lado dele.

Quando é que te enfiaste cá, gritou-lhe o Juan. O Eddie mordeu-lhe a

perna e recebeu um pontapé na cara que lhe partiu o nariz e o afogou em

sangue. No Outro Lugar a temperatura tinha subido. Era um calor

semelhante ao do hálito. Percebi, finalmente, porque é que a Laura dizia

que era uma boca. O Juan soltou o Eddie, que tentou levantar-se outra

vez, mas não conseguiu: desabou de barriga para cima, a arfar. O Juan

aproximou-se dele calmamente e sentou-se em cima das suas ancas

raquíticas. O filho da Florence: o que fora treinado para ser médium,

como se isso fosse possível, como se todas as experiências tentadas ao

longo dos anos não tivessem demonstrado amplamente que era a

Escuridão que encontrava o médium e não o contrário. Porque é que me

queres matar, perguntou-lhe o Juan, aproximando a boca do Eddie. Era

uma cena amorosa. As lágrimas não me deixavam vê-los bem. Eram

belos a lutar sob o céu sem estrelas, envoltos pela respiração pesada do

Outro Lugar.
— Disse que estavas no primeiro, mas não era verdade. Estúpida,

estúpida.

Referia-se ao primeiro quarto, ao do rés do chão, onde começou a

disparar.

— Quem é que te disse isso?

— A rapariga grávida. Ela não vê bem! Queimaram-lhe os olhos.

— Conhecias este lugar?

— Esta porta, não, mas já cá estive. No Outro Lado. Não tem

limites. Não a devemos abrir. Ela mostrou-me esta porta. A rapariga

grávida. Não a devemos abrir.

Não sei em que língua falavam, mas conseguia ouvir a conversa

distintamente. O Eddie fazia um grande esforço para se levantar e abria

a boca: os dentes de menino-raposa eram tudo o que lhe restava contra o

Juan. It has to end, percebi subitamente, e a voz que o disse era do

Eddie, cheia de calma, convincente.

— Vocês têm razão — respondeu o Juan. — Não deve ser aberta.

Tem de acabar. Mas eu não posso fazê-lo, porque esta é a minha terra.

O Eddie continuou a debater-se e a dar dentadas no ar. Acho que não

tinha medo porque sabia onde estava. O Outro Lugar acompanhava as

dentadas do Eddie com arquejos fétidos: agora tudo tresandava a uma

boca com fome. O Juan deu-lhe um murro e eu ouvi, no silêncio do vale,

o barulho do pómulo a partir-se. O Eddie não sabia lutar, era apenas

contumaz e insensível à dor.

— Porquê? — gritou o Juan. Com um puxão, deslocou o ombro do

Eddie. O Outro Lugar pareceu aplaudir, acompanhar o estalo da

articulação.

Finalmente, o Eddie respondeu. Por seres um impostor. Porque tudo

isto devia ser meu, como me prometeram. Não podia ser de mais

ninguém. A rapariga grávida disse-lhe que devia acabar com a


descendência, não podia haver mais filhos, as portas tinham de ser

fechadas.

O Eddie já não resistia. Queixava-se. Não é a dor, disse, a dor não

me importa, a dor é perder e perder e perder.

— Ajuda-me — disse-me o Juan sem olhar para mim.

Aproximei-me e, quando cheguei ao pé dele, levantou-se e partiu o

esterno do Eddie com um pontapé. O rapaz gritou e desmaiou. Porque é

que estava tão fraco? Tinha lutado e o ar no Outro Lugar roubava o

fôlego, mas senti que não resistiu o suficiente. Do lado de fora, tinha

matado. Uma vez ali dentro, rendia-se. O Eddie começou a tossir sangue

e a sangrar do nariz. Reagi e passei a manta de pele branca ao Juan.

Estar nua no Outro Lugar fez-me sentir vulnerável de uma maneira nova

e obscena. Esperava uma unhada, uma mão entre as pernas, que alguém

me levasse para o Vale dos Bustos para usar o meu corpo como

decoração. Mas eu estava com o Juan e ele era o guardião; cuidaria de

mim.

O Juan depositou o Eddie em cima da manta e fez-me um sinal para

eu o levantar pelo lado dos pés. Ele fez o mesmo no extremo oposto.

Carregámo-lo como se fosse um soldado ferido a ser retirado do campo

de batalha numa maca improvisada. Magoei os pés nus com os ossos e

senti diretamente na pele a respiração do Outro Lugar. O Eddie pesava

muito pouco, mas eu estava com falta de ar. O Juan olhou para mim uma

só vez para ver se eu me sentia capaz e eu disse que sim.

Não sabia para onde íamos, mas o caminho de ossos alargara-se.

Agora, era uma avenida. Encontrámos uma passagem estreita no sentido

oposto ao que ia dar ao Vale dos Bustos. Descemo-la com dificuldade

até chegarmos a uma clareira semelhante às outras, mas com árvores

muito separadas entre si, algumas só tinham o tronco, outras tinham

copas altas. Pedi ao Juan para descansar um pouco e ele assentiu. O


Eddie gemia. Quando consegui focar a clareira e as árvores, vi as figuras

penduradas nos ramos. Eram pessoas. O Juan tirou o Eddie da manta e

empurrou o corpo para que rebolasse pela colina abaixo. Depois,

descemos nós, sozinhos, com maior facilidade. O Juan pegou na manta e

deu-me a mão: estava gelada, contrariamente à minha, que ardia. É

porque estás viva, disse ele, e não lhe respondi. Ia pendurar o Eddie ao

pé dos outros. Era um ato mecânico, um trabalho antigo e repetido.

Havia várias árvores vazias e escolheu uma com a copa relativamente

baixa, com os ramos ao seu alcance.

Porém, não o ia pendurar vivo. Sob a árvore, levou as mãos ao

pescoço do Eddie e apertou-o. Olhei para ele, fascinada. O Juan matava

com ar sério e seguro, como se já o tivesse feito muitas vezes. Era o

sacrifício desejado pelo Outro Lugar. Quase o ouvia a saboreá-lo.

Ouviam-se estalos em todo o vale e não eram ramos, mas os sons de

satisfação de uma língua enorme. Tinha pena do Eddie, mas foi

fascinante vê-lo morrer. Não havia maior deceção do que acreditar ser-se

o eleito e não o ser. Estou convencida, até hoje, de que aceitou o seu fim.

Talvez até o tenha procurado. O Eddie tinha os olhos vermelhos, a boca

azul, sangue nos lábios, no pescoço, o esterno abatido. Estava destruído.

Tinha cortado a própria língua com os dentes. O Juan levantou-se. O ar

do Outro Lado era fétido. Perguntara-me muitas vezes porque é que um

lugar decorado com restos humanos não cheirava a nada, mas apercebi-

me de que era apenas uma questão de perceção, de reconhecimento do

território. O Lugar ia-se revelando aos poucos: como se fosse acendendo

as luzes de cantos escuros para revelar novos cenários, portas ocultas,

horizontes que até ao momento pareciam quadros.

Ao lado de cada árvore havia cordas: estava tudo preparado. O Juan

não sabia fazer nós, mas eu, sim. O meu pai tinha-me ensinado no

barco. Mostrei-lhe como se fazia. Tinha de ser ele a pendurá-lo, mas eu


podia oferecer-lhe os meus conselhos. Antes, aproximei-me dos que

estavam pendurados à volta para tentar compreender o processo. Era

muito simples. Estavam de cabeça para baixo. O Juan tinha de amarrar o

pé direito do Eddie num ramo e deixá-lo cair.

Quando pegou no Eddie ao colo, teve dificuldade em içá-lo: já estava

cansado. O preço que pagaria pelo esforço era incalculável. Para não o

deixar cair, amparou-o com a força do seu próprio corpo, mas

escorregou no chão várias vezes. Quis ajudá-lo, mas ele impediu-me

com um gesto da mão. Eu não podia profanar o sacrifício. O Eddie tinha

os olhos abertos e, no chão, de barriga para cima, parecia olhar para o

céu sem estrelas. À terceira tentativa, conseguiu pendurá-lo. Dobrou a

perna esquerda do Eddie de maneira que ficasse atrás da que estava

pendurada. A seguir, amarrou-lhe a cintura à árvore com a corda; usou o

resto para lhe amarrar as mãos atrás das costas. Algumas versões do

Tarot deixavam as mãos soltas, mas lá, no Outro Lugar, parecia mais

adequado respeitar a versão tradicional.

Quando acabou, contemplei a sua obra. O Arcano 12. O Eddie

pintara-o no seu quarto. Essa história era antiga. Afastámo-nos do Eddie

para irmos ver os pendurados mais próximos. Alguns nós eram

profissionais, outros pareciam frouxos: não era realmente a corda o que

os sustinha. Havia homens e mulheres e os seus corpos estavam

conservados; nenhum apresentava sinais de putrefação nem,

aparentemente, de violência, embora, claro, todos tivessem sido

assassinados de uma maneira ou de outra. Já não havia mais nada a

fazer, mas algo nos retinha, e o Juan percebeu. Podia levar alguma coisa,

como sempre que oferecia um sacrifício: o Lugar queria recompensá-lo.

Olhei para as mãos dele. Estavam rodeadas de luz negra. Obrigado, disse

o Juan em voz alta. Com um roçar certeiro, porque agora ele era um

gume e uma arma, cortou uma das mãos do Eddie. É para a minha
mulher, disse. A sua Mão da Glória, que tanto quer. Ofereceu-ma e eu

chorei, desconsolada e agradecida.

Voltámos para casa. O Stephen estava à nossa espera. Não ia chamar

a polícia: a Ordem trataria do desastre. A arma que o irmão tinha usado

continuava no rés do chão, a prova de que precisávamos para não sermos

acusados, agora que o Eddie jamais voltaria a ser encontrado neste

mundo.

Os mortos estavam mortos e a culpa era desta vida escolhida ou

condenada, conforme o olhar. O sacrifício do Eddie tinha sido

necessário, e também a purga. Só sobrevivemos eu, o Juan e o Stephen.

Irritava-me que o Juan não percebesse isso e que estivesse convencido,

com um desespero negro e, no meu entender, exagerado, que a

responsabilidade era toda dele. O monstro está sempre à espreita no

labirinto, e qualquer pessoa que lá entre percebe que, se não aparecer

depois da primeira curva, estará na seguinte. Alguns sabem valer-se de

um fio para fugir. Quem chega demasiado longe sabe que pagará um

preço. O Juan acreditava que o disparo do Eddie podia ter-me atingido e

culpava-se por isso. Mas eu não queria que tomasse conta de mim.

Disse-lho tantas vezes. Quem poderia ele proteger, estando destinado a

viver no abismo.

Fomos, como estava previsto, para Cadaqués. Na bela casa dos

Margarall, acompanhámos as notícias do massacre de Cheyne Walk, que

se juntou a outras matanças de 1969. O Eddie Mathers, o Charles

Manson, os Hell’s Angels, a bomba na Piazza Fontana, o artigo sobre

My Lai. O Eddie foi considerado o responsável: a arma tinha as

impressões digitais dele, que também estavam espalhadas por toda a

casa. Dissemos à polícia que ele tinha fugido; eu, por estar ferida, não

tinha podido ir atrás dele, o Juan teve de abandonar a perseguição por

motivos de saúde e o Stephen chegou mais longe, mas depois perdeu-o.


Contámos à Florence a mesma história e ao Pedro, e eles acreditaram:

como não haveriam de acreditar, se eles se tinham conhecido graças a

uma purga semelhante. A Florence ficou surpreendida por o Eddie não

se ter suicidado; ela tinha as suas próprias e imprecisas dúvidas.

Procuraram o corpo dele no rio, em vão. A outra testemunha viva era a

Graciela, a médica: quando ouviu os disparos, tentou telefonar à polícia,

mas o telefone estava morto. O Eddie tinha cortado os fios.

Na esplanada, a olhar para o mar tão azul, para as frágeis

embarcações, as casas brancas, tive tempo de pensar. A Encarnación,

morta e grávida, suicida, violada pelos homens da Ordem. O Eddie, o

filho destruído. Ambos queriam deter a estirpe e ambos quase tinham

conseguido acabar com a Ordem de diferentes maneiras: a Encarnación

exterminou os velhos; o Eddie, os filhos. Não todos, claro. Estavam

certos, disse o Juan, mas agora, mais do que nunca, eu queria ter um

filho. O meu filho não seria entregue nem maltratado. E seria o primeiro

filho de um médium. Eu teria uma família com o Juan e, quando

chegasse a hora de liderar a Ordem, ou quando chegasse a interpretação

correta de como manter a consciência viva, não seriam a Florence, a

Mercedes e a Anne a dar as ordens. Ou, pelo menos, teriam de negociar

comigo.

Lidar com a depressão do Juan foi o mais difícil. Nos dias de

Cadaqués, não saiu do quarto. Não suportava estar em casa dos pais do

Eddie e estava sempre prestes a confessar o crime. Só não se suicidou

por estar permanentemente vigiado. Não me prestava atenção. Não

queria ver o Stephen. Eu percebia que tinha de esperar e tinha a certeza,

além disso, de que um filho o curaria. O Juan precisava de tomar conta

de alguém que fosse dele e indefeso. Precisava de se esquecer de si

mesmo.
A depressão do Juan não estava apenas relacionada com as mortes

pelas quais se sentia responsável. Nem com o sacrifício do Eddie.

Depois do massacre, passámos um dia inteiro a prestar declarações. E o

seguinte em casa da Florence. Não precisávamos de regressar a Cheyne

Walk: se precisássemos de roupa ou de documentos, um assistente podia

ir buscá-los. O Juan quis voltar porque tinha uma certeza e o Stephen

acompanhou-o. A passagem para o Outro Lado fechara-se. Agora,

quando o Juan abria a porta, só se via a cama, os quadros, a janela.

Insistiu várias vezes. Pediu por favor, apoiado na madeira. O Outro

Lugar desapareceu depois de receber um sacrifício. Pássaro que ceou,

voou, como se dizia na Argentina. O Eddie estava perdido naquele

mundo morto. É claro que o Lugar de Poder também tinha secado. A

Florence recebeu a notícia com um grito. Não sabia como interpretá-la.

Claro que a relacionava com a purga levada a cabo pelo Eddie, mas

faltavam-lhe dados para compreender completamente o que tinha

acontecido. Só uma Cerimónia em Londres, disse-me. Que desperdício.

O Juan sentiu-se livre e, ao mesmo tempo, desesperado quando

descobriu que os seus centros de poder se tinham desvanecido. Pensei

em ir-me embora. Em ir a pé até à estação de comboios mais próxima, ir

até uma aldeia, beber uma cerveja num bar, instalar-me numa quinta

abandonada, deixar-me morrer nas ruínas de algum castelo ou à beira de

alguma estrada.

Porque é que não o fizeste?, perguntei-lhe. Estão sempre a dizer que

te podem encontrar, mas, e se fores a ponta solta, aquele que pode

escapar? Estávamos na penumbra do quarto dele de Cadaqués e eu

conseguia sentir-lhe o coração a palpitar, arrítmico e desenfreado, contra

o meu próprio peito.

Não quero morrer asfixiado num hotel de aldeia com os pulmões

cheios de fluidos e meio corpo paralisado. Não sei trabalhar. Não sei
orientar-me com um mapa. É fácil falar em abandonar, deixar, morrer,

mudar, quando deixar tudo não significa nada. Sentir o poder em todo o

corpo, desgarrar costas, o meu contributo como companheiro do deus da

noite, isso significa qualquer coisa. Isso é meu.

E eu, disse-lhe em voz baixa.

E tu, respondeu.

Regressar à Argentina, para o Juan, era um fracasso, e, para mim, era a

língua recuperada, as mãos que se libertavam, o sangue limpo de drogas,

acabar os estudos em minha casa, procurar o meu filho onde o haveria

de encontrar. Puerto Reyes, as tempestades de verão, tomar uma bebida

no barco do meu pai, ir com a Tali à selva e às reservas, viajar até ao

Paraguai mortas de riso. Ter um casamento burguês, o meu marido

frágil e belo à espera no alpendre, a ler poesia. Era uma vida de jovens

milionários à espera de um herdeiro. Embora já não fôssemos jovens

depois do massacre. Antes de voltarmos para a Argentina pude,

finalmente, ir visitar a campa da Laura. Também queria partir para a

esquecer. Toda a cidade me fazia pensar nela. Todas as ruas tinham um

significado nos seus mapas alternativos. Tínhamos percorrido a pé todos

os parques e cemitérios. Estava perto da médium Olanna, em Highgate.

Cresciam morangueiros em cima das campas. O Stephen disse-me que,

quando lá foi pela primeira vez, viu uma raposa. Deitei-me em cima da

campa da Laura, recordei o seu corpo sujo e tatuado e disse-lhe adeus e

prometi-lhe que pensaria nela, mas quando me levantei senti um puxão

no ombro, a dor surda do disparo inofensivo que, no entanto, às vezes

voltava, pensei que era o meu momento e o do Juan e que aquela morte

e as outras deviam ficar para trás, como, a dada altura, as tinha deixado

para trás a Florence.


O Outro Lugar também me tinha mudado. Caminhar nua com o seu

fôlego na pele deixou-me uma espécie de couraça. E, embora nos tenha

custado, eu e o Juan conseguimos recuperar a intimidade. Agora

partilhávamos um segredo. Agora estávamos ambos marcados. Fazíamos

sexo com doçura e frenesim, e mais do que nunca. Eu ia perdendo as

gestações, mas não lhe dizia. Ficava a olhar para o sangue espesso e

atrasado a flutuar na água da sanita ou na banheira. O momento haveria

de chegar. O meu filho seria concebido em Puerto Reyes. Lá, também

desapareceria a depressão negra do Juan, que seria substituída por um

agastamento permanente: nunca lho consegui curar. Ele tinha medo por

causa do nosso filho. Receava não poder ou não saber tomar conta dele,

morrer antes de o conhecer; amá-lo demasiado ou que lhe fosse

indiferente. Não sei o que devo sentir, disse-me uma vez.

Vais sentir o que fizer falta, respondi.

— ACHO QUE A MARCELINA ME ENTERROU A FAQUINHA. Já não tenho

pachorra para as manias dela.

A Tali acariciou o seu cabelo comprido. Estava calor, mas o vento,

que anunciava chuva, sacudia as árvores e refrescava o pátio das

traseiras de Puerto Reyes, situado precisamente antes do começo do

jardim, e ao fundo via-se o parque, a casa de hóspedes, o resto da

propriedade, que se fundia com a selva. Depois de se instalar nos

almofadões, serviu um mate e ofereceu-mo. Nunca o bebíamos frio, nem

sequer no verão. O Juan ainda recuperava da Cerimónia no quarto-

hospital e nós estávamos perto dele, mas do lado de fora: estar naquele

quarto era insuportável, com os médicos, as máquinas barulhentas, a


espera. A maior parte dos Iniciados regressara aos seus locais de origem,

e em Puerto Reyes já só estava a família. O meu pai passeava a

bebedeira na praia. As três mulheres estavam fechadas com os escribas

há dias. O Stephen tinha ficado para fazer companhia ao Juan e era o

mais fiel, muito mais ainda desde a morte do Eddie. Aos meus pés

estava o Gaspar, de gatas e a tentar comer as folhas, as flores, os bichos.

— Levaste-lhe o menino? Faz-lhe bem.

— A ele, sim; mas ao Gaspar, não. Hoje apercebeu-se de que o Juan

estava a sofrer e demorei horas a acalmá-lo.

— Angá, não me disseste nada.

— Foi esta manhã.

A Tali tirou da boca de Gaspar uma flor de jacarandá. Gostava delas

com loucura e comia-as como se fossem rebuçados.

— Gostava muito dessa faquinha.

— Pergunta-lhe onde está, que ela devolve-ta. Os guaranis adoram

enterrar coisas, herdou o costume da avó.

— Quando o pai recuperar, temos de voltar para Asunción. Podemos

levar o menino. Podemos ir os quatro.

Estávamos a ajudar a montar a sala de artesanato do Museu Regional

de Asunción e tínhamos conseguido que o diretor nos deixasse ocupar

uma sala inteira com as estatuetas de São Morte. O meu pai queixou-se,

mas já não tinha autoridade: estava quase sempre tão bêbedo, que era

incapaz de se lembrar do que queria. É claro que não era uma doação: a

coleção seria emprestada por tempo indeterminado. E as estatuetas mais

importantes tinham ficado no templo da Tali, em Corrientes. Ela jamais

se separaria das poderosas.

Acabei a minha tese em Puerto Reyes e fui defendê-la sozinha a

Cambridge. Passei apenas uma semana em Inglaterra e visitei a campa

da Laura todos os dias. Depois, publiquei a tese em revistas de


antropologia de vários países. Em breve começaria a dar aulas na

Universidade de Buenos Aires e precisava de uma casa na capital que

não estivesse no edifício da minha família, ao qual não queria voltar.

Entretanto, o Juan dedicava-se a tomar conta do Gaspar, a estudar e a ler

e, com o Stephen, a procurar uma porta, uma passagem para o Outro

Lugar. Ainda não tinham encontrado nada: o Juan estava convencido de

que Puerto Reyes albergava um portal, mas que não estava ao seu

alcance, só o pressentia. Onde procurar, então? O Stephen teve uma

ideia: perto do hospital onde o Jorge operara o Juan e onde ele alcançara

pela primeira vez a Escuridão. Iam muitas vezes a Buenos Aires com um

pretexto qualquer, embora já não lhes pedissem tantas explicações. Na

nova etapa da Ordem, após o desaparecimento do Eddie e do massacre,

muitas coisas tinham mudado.

Outras, nem tanto. Depois de muitas discussões, a Florence aceitou

monitorizar o Gaspar num ritual aceite, simples e eficaz que eu propus.

Duas vezes por ano, seria levado ao Lugar de Poder do Juan e as

mulheres traçariam à sua volta um círculo com sangue. Sangue arterial,

que é o que procura e encontra, como ensinava a Laura, sangue que os

próprios Iniciados ofereciam. Usavam, também, a caveira da Olanna

com as suas incrustações de rubis. Com dois anos, o Gaspar já tinha

estado dentro do círculo várias vezes, e em todas elas tinha gatinhado e

olhado para os expectantes membros da Ordem com um misto de

curiosidade e preocupação, nunca com medo. Não dava um só sinal de

compreender o que se estava a passar ou de estar em contacto com

alguma energia surgida do Lugar de Poder. Eu e o Juan estávamos

sempre presentes. O Gaspar era um bebé normal, talvez mais chegado ao

pai do que era comum na idade dele. Dormia muito, chorava pouco e, às

vezes, ficava a olhar para algum inseto ou para a televisão com

demasiada concentração.
Eu e o Juan discutíamos muito por causa do Gaspar. Muito e todos

os dias.

— Se se manifestar, sei como evitá-lo — dizia. — Há muitas

maneiras de o bloquear e tu sabes quais são.

Eu ficava aborrecida.

— O Gaspar tem o direito de fazer parte da Ordem se quiser. Eu

também tenho poder. Não vão fazer o que bem entenderem com ele.

— Confio em ti, mas não confio neles. Também posso evitar que

faça parte da Ordem, se quiser.

Não gostava de discutir, mas se não fosse com ele, não tinha

ninguém com quem falar sobre o meu filho e sobre o que o esperava.

Antes de nascer, eu desejava que sucedesse o improvável: que herdasse

as aptidões do pai. Acreditava mesmo que era possível e que o Gaspar

seria um médium diferente. Foi concebido na data indicada e com os

signos indicados. O Juan não se opôs, pelo menos não ativamente. A

gravidez foi incrivelmente simples. Só senti náuseas e mal-estar no

primeiro mês. Depois, foi como se me tivessem injetado luz. Trabalhei

todos os dias, estava cheia de energia. Ideias, escrita, entrevistas na selva

e mesmo discussões com o meu pai sobre a plantação. Eu, a Tali e a

Betty, que estava totalmente embrenhada na política e às vezes nos vinha

visitar — o companheiro dela, o Eduardo, era um militante de esquerda

e sentia um desprezo enorme pela nossa família —, praticamente

obrigámos a plantação a legalizar os trabalhadores. Agora ganhavam

uma miséria, mas era melhor do que nada. E foi assim quase todos os

dias, desde então: nem sequer tinha sono, apenas um apetite voraz.

Estava gorda e chorava por estar gorda, o que fazia rir o Juan. Mas nunca

me senti infeliz: a excitação não deixava.

Agora, o Juan fumava. O meu tio andava desesperado por causa

disso, mas ninguém o conseguia convencer a mudar nenhum hábito.


Ainda fumava mais quando discutíamos aos gritos. A Escuridão ditou

como perpetuar a consciência: tínhamos de transferi-la de um corpo

para outro. Transmigrar, como diriam noutras tradições. Eu chamava-lhe

ocupar, porque era disso que se tratava: de roubar um corpo. Era um

método repulsivo, porque consistia em apropriar-se de outra vida e de

outra identidade. O que ainda não conheciam eram os pormenores do

método: quem seriam os recetores da consciência, se podiam ser

escolhidos ou se tinham de ser marcados ou determinados. A Escuridão

devia ditar os passos a seguir e, como de costume, era hermética e

caprichosa. Segundo o Juan, não havia nada de verdadeiro nos ditados:

jamais atingiriam a transferência da consciência porque estavam a

interpretar mal ou mesmo a inventar, guiados pelo poder da sugestão. As

discussões começavam porque eu não estava de acordo com esta

afirmação. Eu não desconfiava dos ditados, como ele ou como a Laura.

Eu acreditava. Porventura a Escuridão não saía do Juan e não cortava?

As suas mãos transformavam-se em garras, isso também não era

impossível? A divergência de opiniões, no entanto, não nos distanciava.

Passávamos noites acordados, a falar, e nenhuma zanga era

completamente amarga, nem quando batíamos com as portas e

gritávamos. Era impossível ter a certeza e era impossível não acreditar,

porque havia provas físicas. Era impossível confiar porque tudo era

nebuloso. E lá estávamos nós, num lugar parecido com o fim do mundo,

cheios de segredos e de dúvidas.

— Para que é que queres a faquinha, mana?

— Para umas plantas. Eu sei que há jardineiro, não é preciso dizeres,

mas estas plantas são minhas. Gosto de ser eu a tratar delas.

A expectativa face à tempestade era sufocante: até o Gaspar se tinha

deitado por cima do cobertor a olhar para o céu. Seria normal?,

perguntava-me. A atenção que presta às coisas? Distraí-o e o Gaspar,


que raramente se zangava, quase chorou. O Osman, o cão velho, arfava

ao pé de nós. Era uma crueldade que tivesse de passar os seus últimos

dias no calor de Misiones.

Vi o Stephen aproximar-se, vindo de casa. Entrou no pequeno jardim

tão pálido, que fiquei assustada. O Juan está bem, acordado e alerta,

disse, e relaxei os ombros. É a minha mãe. Precisa de falar contigo a sós.

— Não pode ser nada de bom, a avaliar pela tua cara.

O Gaspar abraçou a perna do Stephen, que pegou nele ao colo.

— Vem, vamos ver o teu pai. — E acrescentou: — Já não precisa de

oxigénio, o miúdo não vai ficar assustado.

Estavam à minha espera na sala do primeiro andar, onde sempre se

reuniam. A escada de madeira rangia e o tapete estava muito húmido.

Detive-me um pouco, para acalmar os nervos, a olhar para os quadros do

meu pai. O do Cándido López, tão bonito, começava a estalar. Devia

levá-lo comigo algum dia, roubá-lo, levá-lo para um museu. Ele não

daria por nada. Entrei com alguma desconfiança na sala onde me

esperavam a Florence, a Anne e a minha mãe. Era sempre de desconfiar

quando estavam juntas. Como é que dizia o poema que o Juan me lera

uns dias antes? Uma é puta, a outra é uma menina que nunca olhou para

um homem com desejo e a outra pode ser uma rainha.

A Florence cumprimentou-me com um beijo e ajeitou-me o cabelo.

As mãos dela cheiravam a bálsamo de tigre e as pulseiras que tinha no

pulso tilintavam. A Mercedes olhou-me de cima a baixo: posse

misturada com escárnio. A maneira habitual de olhar para mim, desde

sempre.

— Querida, este é um dia maravilhoso — disse a Florence, abrindo

uma garrafa de vinho. Um Leroy. O aroma do borgonha encheu a sala. A

alegria desmedida da Florence costumava ser um presságio de más

notícias. Incomodou-me especialmente que estivesse a festejar fosse o


que fosse enquanto o Juan, no andar de baixo, sofria com os estragos

causados pela Cerimónia no seu corpo.

— Não podia esperar, querida. O Juan devia estar aqui, eu sei, mas

não é conveniente dar-lhe a notícia no estado dele, it might upset him.

Vou esperar até estar forte. Devemos-lhe tanto, devemos-lhe tudo. Minha

filha, já sabemos como manter viva a consciência. The words were so

clear. I heard them too. Os deuses ditaram o Ritual para o médium e

para o seu recipiente. O médium transferirá a sua consciência para o

corpo do filho. A continuidade da vida ser-lhes-á dada a eles, primeiro, e

depois chegará a nossa vez. O que queremos dizer, I’m so excited, custa-

me dar com as palavras certas, é que o Ritual está completo. Os

pormenores da sua execução já nos foram dados. Primeiro, para eles os

dois; depois, para os outros. Podes consultá-los.

Aproximei-me das páginas abertas em cima da mesa, ao pé da

janela. Não conseguia ler porque estava enjoada, mas fingi fazê-lo. Claro

que não se tratava do Livro, cuja versão física se conservava em

Londres. Havia cópias que ninguém na Ordem, nem sequer eu, sabia

onde estavam. Li os signos traçados pela elegante mão da Anne.

Quando acabei de folhear as páginas e me virei para elas, as três

brindaram. Tinha deixado o meu copo em cima da mesa e obriguei-me a

bebê-lo. Senti o sangue a invadir-me a cabeça, o corpo a arrefecer e uma

tontura que me fez cambalear. Era tudo? Era assim que acontecia? Nada

de trovões ou um signo no céu? Nem grandes discursos para os

Iniciados de um púlpito na selva? Não se reuniriam todos numa festa

que duraria dias em Londres ou na fazenda das pampas ou nas margens

do Mediterrâneo? Apenas aquelas velhas a festejarem num quarto

abafado? Teria de passar a vida eterna com elas?

Queria isso?
— Ah, estás impressionada — disse a Florence. E acendeu um

cigarro como um homem a celebrar o nascimento de um primogénito.

Estavam eufóricas, com os rostos vulgares ruborizados pelo vinho. A

minha mãe, com os cabelos grisalhos cada vez mais escassos, falou.

— Se o Gaspar não for um médium capaz de continuar o trabalho do

pai dele, já não importa. Se não herdou o dom, não interessa. Porque, de

alguma maneira, é! A Escuridão disse que a consciência se conserva

quando é transferida para outro corpo. Isso nós já sabíamos. Mas agora

disse-nos que o médium poderá continuar indefinidamente. É o que a

Escuridão deseja, claro. E o teu filho será o seu Recipiente.

— Eu já percebi, Mercedes — esforcei-me para que a irritação na

minha voz fosse evidente, mas não a queria insultar. Detestava, isso sim,

que repetisse sempre as explicações da Florence como se os seus

esclarecimentos fossem necessários. O Recipiente. Foi assim que lhe

chamaram. Como se fosse um balde. O corpo que receberia a

consciência do Juan seria o do Gaspar. E sabiam como fazê-lo. Tentei

não chorar, não à frente delas. Falei e não me tremeu a voz.

— E quando se poderá fazer essa transferência? Quando terá o Juan

de abandonar o corpo dele para se transferir para o do nosso filho?

A Florence franziu o sobrolho. Não gostou de que tivesse dito o Juan

e o nosso filho. Fazia-a duvidar. Será que espera que eu não resista?,

pensei. Que deixe ir assim tão facilmente o meu bebé e que perca,

também, o meu homem? Porque, como é óbvio, eu não seria a

companheira de quem ocupasse o corpo do meu filho, mesmo que se

tratasse do Juan! Mas elas não suportariam uma conversa nestes termos.

Naquelas conversas formais, exigia-se distanciamento e precisão nos

termos. Sabia que devia ter dito «o médium e o recipiente», mas não me

importava que intuíssem o meu mal-estar. O amor é impuro, diziam os

olhos da Anne. E era verdade. Contamina e torna-nos possessivos,


selvagens, destrutivos. A Florence disse-me isso uma vez: amamos os

nossos filhos e os nossos companheiros até ao momento em que

devemos deixá-los ir. O sacrifício por algo maior exige o nosso

desprendimento.

— Não será agora, we’ll have to wait. Só quando o rapaz tiver doze

anos. Foi essa a idade indicada pela Escuridão.

— E vão tentar com outros, antes disso?

— Não nos proibiu de tentarmos.

— Não faltarão candidatos — disse.

O teu filho é a continuidade, repetiram. Poderão continuar a fazer a

vida normal que vos prometemos até chegar a hora. O Ritual será daqui

a dez anos. O médium e o Recipiente deverão ser preservados com vida

durante dez anos.

— Então, quero que sejam menos exigentes com o médium. Se

quiserem que viva mais dez anos, terá de haver ainda menos Cerimónias.

Ontem tivemos de reanimá-lo. O Jorge está a planear mais cirurgias.

Não é possível manter este ritmo durante tantos anos. Já falámos sobre

isto demasiadas vezes.

— Tenho um entendimento com o médium que pode ser

renegociado. As Cerimónias já se fazem when he wants to do them. Não

vou partir para a guerra quando as notícias são boas. Estamos todas

agitadas. O importante é que we can go on. Alegra-te, filha. Será a tua

família a trazer o futuro.

Bebi o vinho em vários goles e pedi licença para sair e pensar. Claro

que sim, disse a Florence. Nós percebemos. É uma responsabilidade tão

grande! Ninguém é mais importante do que tu, hoje, neste mundo. Claro

que precisas de estar sozinha.

Quando fechou a porta, caminhei o mais lentamente que pude até ter

a certeza de que não me podiam ouvir. Então, fui a correr até ao rio.
Desci a escada tão depressa que, quando cheguei à praia, estava agitada.

Sentei-me, enxuguei o suor com a saia e fiz um buraco na areia com o

dedo grande do pé. Tinha ido até à praia pelo outro extremo da casa,

pelo da entrada. Ainda não estava pronta para voltar para junto do

Gaspar e do Juan, ou da Tali e do Stephen. Tinha de me recompor, tinha

de saber o que pensaria depois da primeira reação.

Pari um substituto para o corpo do Juan. Talvez o tivesse intuído.

Olhei para a água castanha, furta-cor nalgumas zonas devido ao óleo

dos barcos. O caráter circular do processo seduzia-me. Era um fecho.

Fui eu que vi o médium a convocar a Escuridão pela primeira vez, na

selva: fui eu que o encontrei. Apaixonámo-nos. Isso era inevitável. Dei-

lhe um filho no mesmo lugar onde ele se revelou perante mim.

Finalmente, ofereci-lhe esse corpo para que continuasse vivo. Foi a

Escuridão que guiou todos os passos que dei. Eu é que era a verdadeira

sacerdotisa. Não aquelas três velhas.

Mas o Juan jamais aceitaria isso. Seria capaz de se matar e de me

matar. E tinha razão. Eu aceitava os argumentos dele. Jamais

entregaremos um filho à Escuridão, repetia-me. A escravatura tem de

acabar. Rebelei-me contra esta ideia, diante do rio. Não teria de ser

assim. O Gaspar já era do sangue, o Gaspar não era um escravo. Pensei

no meu filho. Não gostara dele imediatamente, não sentira o amor

desmedido de que falavam as mulheres. Tinha-o protegido e alimentado

sozinha, quase sem ajuda, a não ser a do Juan. Nunca quis ter nenhuma

ama. E tinha-o observado enquanto dormia todas as noites para me

tentar apaixonar por ele. Só me chegava uma onda de ternura que não

reconhecia como sendo amor. Até que uma madrugada, quando tratava

dele por estar um pouco constipado, pensei que tinha deixado de

respirar; a luz baixa do corredor fazia-o parecer imóvel. Herdou a


doença do pai, pensei na altura. O seu frágil coração deixou de bater

enquanto eu olhava para ele.

Aproximei-me a correr do berço e, durante o pouco tempo que

demorei a chegar até ele para lhe pegar ao colo, urinei-me. Encharquei

as pernas nuas, deixei uma poça no chão de madeira. Aquele era o medo

que se sentia perante a certeza da morte de um filho. Percebi. O amor

era isso. Só havia morte depois da morte de um filho. Uma negrura sem

futuro.

Brinquei com a areia e vi, na superfície humedecida, um cabo de

madeira. Desenterrei-o. Uma pequena faca. Devia ser a da Tali. Guardei-

a no bolso da saia e assim, armada, subi a escada: entre a praia e a casa

havia menos de duzentos metros, mas pareceram-me quilómetros,

porque travava uma luta sem fim e eu era a minha principal inimiga.

Sonhara com orgulho, soberbia e alegria sobre a hipótese de entregar um

filho aos deuses cruéis porque o Gaspar era do sangue e merecia a

oportunidade de ter um principado e eu, o domínio que um filho

poderoso me podia dar. Eu, que nunca tive dons, invejava a Olanna, a

Laura e até a Tali, e imaginei-me coroada de sombras.

Voltaria a imaginar-me assim. Sempre fui capaz de trair. Porém,

quando duvidava aferrava-me à recordação da noite em que acreditei que

o meu filho estava morto. E à felicidade que senti quando o ouvi chorar.

Foi a nossa maior zanga, a que pareceu definitiva, e tive medo,

inclusivamente, por antecipação. Era a primeira vez que o Juan

desconfiava de mim. Conhecia aquele olhar e o seu fundo escuro de

deceção, mas jamais dirigido a mim.

— Há quanto tempo sabem e me escondem isso? Porque é que

criaste esta farsa do filho se o estavas a criar para a morte?


Eu tinha pedido à Tali que levasse o Gaspar de Puerto Reyes: estava

em Corrientes com ela. Convenci-me de que o Juan, na sua fúria, seria

capaz de nos matar. Além disso, em Puerto Reyes, perto do Lugar de

Poder, poderia fazê-lo com uma grande facilidade. Acabar com tudo

onde tudo tinha começado. Seria esse o seu desfecho.

— Podem chantagear-me como quiserem, podem, não sei, torturar e

matar todos vocês, a Tali, o Stephen. Mas eu não ocuparei o corpo do

Gaspar.

Tentei argumentar com ele, mas foi inútil. Nunca se tratou apenas de

lhe parecer impensável tomar o corpo do filho. O Juan identificava-se

com o Eddie e com a Encarnación, com o jovem escocês, com a Olanna:

era essa a sua linhagem, a dos médiuns usados contra a sua própria

vontade. A linhagem dele não era a da Ordem, a dos seus exploradores.

Ao mesmo tempo, a sua postura em relação ao Culto tinha mudado:

agora, graças ao Gaspar, fazia parte da família. Consegui que acreditasse

que eu ignorava a existência do Ritual. Era verdade e o Juan nunca foi

idiota. Do que ele desconfiava era da minha recusa a realizá-lo e, quanto

a isso, não estava enganado. As dúvidas faziam-me gritar, a

ambivalência não me deixava dormir. Estávamos ambos desesperados e

ele decidiu ir-se embora. Esteve fora durante vários dias, com o Stephen.

Eram capazes de fugir juntos. A minha mãe insultou-me, bateu-me

como quando eu era pequena, nada dura nas tuas mãos, é a única coisa

que tens de fazer, reter o médium, mais nada. Mandou buscar o Gaspar e

avisou-me de que, se o rapaz fosse entregue a mais alguém sem a sua

autorização, haveria consequências. É o corpo do médium, disse. É

valioso. Muito mais do que tu. A Florence foi mais compassiva.

Podemos encontrá-los facilmente, não vão escapar, temos empregados

capazes de o fazer, e também a polícia. No entanto, olhou-me com

desprezo. Eu era descartável. Tinha parido o herdeiro e pensavam que


era prescindível. Suspeitavam de que o Juan rejeitaria o Ritual porque

conheciam o seu temperamento, mas tinham a certeza de que acabariam

por lhe quebrar a vontade. Não precisavam de mim. Eu estava sozinha.

Dormi algumas noites com o Orman no quarto: o cão, quase agonizante,

ainda me acompanhava. Morreu uma madrugada antes do regresso do

Juan e eu chorei-o com toda a angústia da nossa separação, do futuro

incerto do meu filho, das minhas próprias dúvidas.

O Juan chegou sem o Stephen, a tresandar a sexo e a cigarros. Desde

então, sempre que volta depois de passar um tempo fora, a primeira

coisa que faço é abrir-lhe a camisa, desabotoar-lhe os botões, levantar-

lhe a t-shirt: preciso de lhe tocar na pele. Os dias sem ele são fisicamente

dolorosos para mim. Tê-lo recuperado depois dessa ausência fez-me

sentir insegura pela primeira vez. Ele também não precisava de mim e

era capaz de deixar-me. Antes disso, nunca imaginara essa hipótese. Tal

era a minha omnipotência. Quando voltou, o Juan disse-me tive

saudades tuas, preciso de ti, perdoo-te, seria capaz de matar-te, não

posso estar longe de ti e do Gaspar. Senti o seu amor endurecido e a sua

exigência.

Nessa noite, a do regresso, dormimos juntos com o Gaspar no meio.

Ou, melhor dizendo: o Gaspar dormiu, porque nós pusemos um disco a

tocar com o volume suficientemente alto para que ninguém nos

conseguisse ouvir. Naquele quarto enorme, costumávamos dançar com a

Tali e com o Stephen enquanto o Gaspar aplaudia: eu comprava discos

no Brasil e o Stephen trazia sempre alguns da Europa. Os três

conseguiam falar em segredo, mas não o faziam à minha frente. Eu

nunca consegui aprender. Como podia fazê-lo com a Tali, se nunca fora

treinada? Cada vez me sentia, e estava, mais sozinha.

O Juan pegou no braço do Gaspar com delicadeza e fez-lhe um traço

fantasma no pulso com o dedo indicador. Um traço grande que quase


chegava ao cotovelo, do lado exterior do braço. Depois, tocou na cicatriz

que tinha debaixo do cabelo.

— Preciso de um selo específico para manter o Gaspar longe da

Ordem quando fizer doze anos. Um signo que os impeça de o encontrar.

Tenho de pedi-lo à Escuridão: o que sabemos não será suficiente.

— Em que estás a pensar?

— Não vou viver mais dez anos e não quero que o Gaspar faça parte

da Ordem. Se o conseguir marcar com um selo que os impeça de o

encontrar, fá-lo-ei. Têm de correr bem demasiadas coisas. Tenho de

encontrar o Outro Lugar e fazer com que me ofereça o signo.

Certamente exigirão outro sacrifício. É claro que o farei. Um signo no

braço, visível, que os desoriente. Se tentarem encontrá-lo, perder-se-ão.

Não conseguirão descobrir onde está e, se descobrirem, não conseguirão

chegar a ele. Um signo, uma marca, para o esconder.

— E eu? Se não quiser separar-me do meu filho, escondê-lo-ás de

mim?

Ele continuou a traçar o selo fantasma no braço do Gaspar. Só

poderia ser marcado com violência: teria de ser uma ferida profunda e

dolorosa, inesquecível, disse. Teria de magoá-lo.

— Sim, também permaneceria escondido de ti, mesmo que saias da

Ordem. Mas pretendo que o selo funcione de uma só maneira. Manterá a

Ordem longe do Gaspar. É isso que faz, e apenas isso. O Gaspar poderá

aproximar-se da Ordem se assim o desejar. E, se quiser voltar a ver-te,

também o poderá fazer. Merece essa liberdade horrível e tu também,

suponho eu. Espero não estar vivo se ele quiser voltar. A marca vai

afastá-lo de ti e de mim. Eu estou disposto a fazer esse sacrifício e tu

também devias estar para lhe salvares a vida. Viverá com o meu irmão.

É o único que não está contaminado. Já está decidido, Rosario, e não


poderás impedi-lo. Se não me acompanhares, terás de tomar a tua

própria decisão.

— Vais afastar o nosso filho de nós e chamas a isso amor.

— Claro. Ou é amor roubar-lhe o corpo?

O que era incrível é que não discutíamos. Até o volume das nossas

vozes era baixo para que a música abafasse as nossas conversas.

— E o Ritual, Juan? Vais marcá-lo antes? O Gaspar é o Recipiente

da tua consciência…

— O Gaspar não é o recipiente de nada. Vou marcá-lo quando o selo

me for dado. Também posso fazer com que o Ritual fracasse ou fingir

que não o consigo fazer. Terás de descobrir quais são as regras. Tu ou o

Stephen. Assim, poderei elaborar o meu plano, a encenação do fracasso.

O Gaspar virou-se, a dormir, e apoiou a mão no peito do Juan.

Costumava fazer esse movimento quando estava a dormir. Os ciúmes

fizeram-me chorar. Também chorava porque não queria decidir, mas

tinha de o fazer. A ventoinha do teto distribuía a luz da mesa de

cabeceira em intervalos exatos; olhei para os olhos amarelados do Juan.

Também me deixaria para trás. Não lhe respondi logo.

— Como podes pensar em entregar-lhes o nosso filho? —

perguntou-me.

— Fui educada para obedecer — disse.

— Esse conforto acabou. Terei de salvar o Gaspar sozinho? Talvez

não te devesse revelar os meus planos. Não é possível fazer-te mudar de

ideias?

— Sim, é possível — respondi. — Eu posso mudar de ideias. Sim.

A praia ainda estava limpa, embora a água castanha já arrastasse ramos,

flores mortas, camalotes perdidos e até animais. Depois de uma

inundação, era sempre a mesma coisa: o rio rouba, afoga, suja e


derrama-se. Olhei para o Gaspar, que brincava à beira-rio. Era muito

diferente do pai fisicamente. Tinha o cabelo escuro, os olhos azuis, uma

energia impressionante. Já tinha personalidade e ainda não contava três

anos. Era raro fazer birras. Só via a angústia nos olhos dele quando eu

me ia embora para passar um dia inteiro em Asunción com a Tali ou

para dar aulas em Buenos Aires. Mas, quando voltava, ficava sempre a

saber que estivera bem durante a minha ausência, calmamente, com o

Juan, sozinhos no mundo calado que partilhavam.

Desde que ficámos a par da situação do Ritual, eu, o Juan, o Stephen

e a Tali nunca mais nos separámos. Unia-nos a certeza de que tínhamos

de salvar o Gaspar, de que tínhamos de deter o ciclo. Já não havia

discussão. Já não duvidava de que fosse a decisão certa, mas, por vezes,

a hipótese de continuar, de o Juan continuar vivo através do Gaspar,

ainda me parecia uma atroz maravilha que valia a pena tentar.

O Juan estava em Buenos Aires porque tinha encontrado um portal.

O Stephen acompanhava-o. Esta viagem tinha como propósito verificar

se a porta continuava aberta, se era, realmente, uma passagem para o

Outro Lugar e se voltaria a abrir-se para ele. Finalmente, passados tantos

anos, o Outro Lugar reaparecia.

Também surgiu algo inesperado com o qual a Ordem não sabia lidar

e com que eu teria de lidar, porque, em parte, a culpa era minha.

A Betty era o novo problema, a minha prima, afastada da Ordem há

tantos anos. Porque teria eu sentido compaixão por ela? Uns dias antes,

tínhamos ouvido juntas, na rádio, o anúncio do golpe de Estado. Ela

chorou; felizmente, os meus pais estavam nalgum ponto afastado da

casa, porque de certeza que ficariam contentíssimos. O meu pai disse-

me, porém, que teria de ter cuidado com os que tomaram o poder. Dizia

a mesma coisa em relação aos militares do Stroessner sempre que eu ia

ao Paraguai. O meu pai concordava com a ideologia deles, mas eram


umas bestas, insistia. Eu sabia tomar conta de mim. Se passados tantos

anos na Ordem fosse incapaz de me proteger de uns militares imbecis,

então tudo teria sido inútil. E, além disso, era dona de uma Mão da

Glória. Nunca me acontecera nada. Nem sequer olhavam para mim. Na

fronteira, cumprimentavam-me com respeito.

A Betty desceu o caminho até à praia com a filha e sentou-se ao pé

do Gaspar. Gostavam de brincar juntos. O Gaspar parecia não notar que

a Adela não tinha um braço. É claro que o Gaspar não sabia que tinha

sido o Juan a cortar-lho, certamente contra a vontade da bebé e da mãe.

Não o Juan, claro. A Escuridão. A menina fora escolhida. A Betty

ignorou a minha ordem de não sair de casa durante os dias da Cerimónia

e a Escuridão viu a bebé, a Adela, tão pequena, mais nova e mais miúda

do que o Gaspar. A mutilação num corpo tão pequeno era

impressionante.

Quando chegou, não me pude recusar a recebê-la. Era minha prima,

minha amiga de infância, e a Ordem queria-a de volta. Apareceu com a

filha a meio da noite, picada pelos insetos e arranhada pelos ramos, em

pânico, desidratada. Atravessara a selva a correr com a bebé, a fugir. Eu

sabia que vivia perto de nós, na selva, com a organização a que

pertencia, e sempre intuí que o plano deles correria muito mal, mas a

Betty não me deu ouvidos porque estava confiante. Ela e os camaradas

tinham sido treinados e eram donos de um arsenal. Quando surgiu ao pé

dos guardas na entrada de Puerto Reyes, sozinha e derrotada, dei-lhe

refúgio. Falei com a Florence, com a minha mãe, com o meu pai. Claro

que é bem-vinda, disseram. É da família, é uma Bradford. A Cerimónia

estava marcada para dali a poucos dias. Teria de permanecer fechada até

acabar, porque a Betty não era uma Iniciada. Depois decidiriam o que

fazer com ela e com o seu regresso, de resto, esperado.


A Betty, no entanto, fugiu, apesar das minhas ordens e súplicas. Era

desobediente, não rebelde. Podia ser corajosa, não discuto isso, mas não

compreendia os limites. Porque teria saído. Porque não a fechei à chave.

A culpa era minha. O seu momento de curiosidade desencadeou mais

um peso para o Juan, que agora também teria de arcar com a Betty e a

filha. Custou-lhe tanto acalmá-la depois de assistir inesperadamente à

Cerimónia. Não fazia ideia do que tinha visto, não percebia. Passou

semanas em estado de choque, falava de uma luz negra que tinha levado

a filha, embora isso não tivesse sucedido, só lhe tinha cortado o braço, e

depois o homem, gritava, o homem tinha curado a ferida com as mãos.

Com as mãos, repetia. A luz negra e as mãos. Gritava toda a noite.

Enlouquecia. Eu só cuidava da filha a meias. Felizmente, a Marcelina e a

Tali estavam lá, porque eu perdia a paciência com a Adela, que era

nervosa e chorona. Além disso, eu não gostava de crianças. Só do meu

filho, e nem sempre. Disse à Betty que o homem das mãos era o Juan,

mas ela não acreditava. Irritava-me tanto.

A Mercedes, a Florence e a Anne tinham ficado eufóricas com

aquilo que consideravam ser um presente, um milagre negro. Era assim

que lhe chamavam: aparecera a criança mais nova jamais tocada pela

Escuridão e era da família! A Betty era um presente para a Ordem.

Atira-as ao rio, disse-me o Stephen. Tê-lo-ia feito de bom grado, mas

haveria consequências e eu continuava em perigo, porque era

descartável. Via-o nos olhos da Mercedes. Nunca mereceste a honra de

parir esse filho, dizia-me. Nessa época, o meu romance com Puerto

Reyes acabou. O trabalho no museu estava prestes a terminar e eu queria

viver numa cidade, voltar a Buenos Aires, tinha propostas não só da

universidade, mas de instituições estrangeiras que tinham extensões na

capital.
— Onde está o Juan? — perguntou a Betty. Olhei para o perfil dela:

tinha o nariz comprido dos Bradford e os olhos muito separados.

— Volta amanhã — respondi.

Não podia ser específica. A Betty não estava autorizada a saber o

que é que o Juan fazia. Talvez um dia. À sua maneira, a Betty poderia

vir a ser uma boa Iniciada. Presenciara a Cerimónia da maneira mais

brutal possível, sem qualquer tipo de preparação ou precaução ou

explicação. E não tinha enlouquecido, finalmente. A pertença estava nos

genes. A mãe, a tia Marta, era uma Bradford, e regressara timidamente à

Ordem nos últimos anos, aterrada por a filha ser uma militante

revolucionária. Isso era pior do que a Ordem? Para ela, sim. A Ordem

não se enganava quanto à certeza do retorno dos seus díscolos: bastava

ver o caso da Betty, cujo regresso foi o mais espetacular de que havia

memória. Apesar dos seus esforços para se manter longe da sua família

de burgueses exploradores, o acaso e a violência, a noite e o terror

tinham-na reconduzido ao coração da Ordem.

Adela, o milagre negro. Naquele preciso instante, o Gaspar enfiava-

lhe um dedo cheio de terra na boca, como se quisesse dar-lhe de comer,

e a Betty sorria. Se alguém nos estivesse a observar do Paraná, ter-lhe-ia

parecido uma cena ternurenta. Duas jovens mães com os seus filhotes.

Parecia que ia chover, como sempre.

— Vamos ficar muito tempo aqui, não é?

— É mais seguro para todos nós — respondi.

A Betty prendeu o cabelo atrás das orelhas.

— Mataram todos os meus camaradas aqui perto. Vocês dizem que é

seguro, mas não sei se hei de confiar.

— Nós protegemos-te. Eles estão maravilhados com a Adela. Vais

viver perto de nós em Buenos Aires, quando encontrarmos uma casa.

— Vão deixar-nos levar uma vida normal?


— É uma das condições do Juan. Querem que a Adela fique perto

dele. Teremos proteção, como sempre, mas isso é conveniente para ti.

A Betty riu-se com um tom amargo e irónico que me irritou.

— Se não quiseres a nossa proteção, podes ir-te embora, Betty —

disse-lhe.

— Não sei o que quero — respondeu ela. — Quero que o tempo

volte para trás, quero estar com o Eduardo, quero esquecer tudo.

Pegou na filha ao colo e o Gaspar resmungou como costumava fazer

quando alguma coisa o incomodava, com um choro que desaparecia logo

a seguir. Uma leve brisa trouxe o perfume dos jasmins até à praia e vi

chegar a Marcelina com um tereré, gelo e laranjas.

— Há prisões piores do que esta — disse à Betty.

Ela não respondeu e foi a correr ajudar a Marcelina, que fazia

equilibrismo com os copos, o termo e o saco da fruta. Atrás da

Marcelina, vi o Juan. Regressava antes do tempo de Buenos Aires. Não

estava sozinho, mas não vinha com o Stephen: era outro homem louro,

mais baixo do que ele, mas igualmente imponente. Não o via desde a

adolescência, mas reconheci-o, surpreendida pela audácia da visita. Era

o Luis, o irmão mais velho do Juan. Parecia esgotado, com os olhos

azul-turquesa afundados na cara. Tinham vindo juntos de Buenos Aires.

— Por favor, Marcelina — disse o Juan —, podes levar as bebidas

para dentro? Para a sala das janelas coloridas, se não for muito

incómodo. Acabámos de fazer uma viagem muito comprida.

Aproximei-me do Juan e, juntamente com o beijo, recebi o cheiro a

gasolina e a suor. Acariciei-lhe as costas húmidas. A Betty seguiu a

Marcelina: não queria que os desconhecidos a vissem, ou à filha.

Protegia muito a Adela dos olhares alheios que se concentravam no coto

de modo verdadeiramente grosseiro, e também se protegia a si própria.


Todo o cuidado era pouco, e não conhecia o homem que estava com o

Juan.

Fomos os três para casa. O Juan levou o Gaspar ao colo. Antes de

entrar, o Luis parou por uns instantes.

— Que maravilha — disse. Do passadiço via-se quase toda a casa.

Lembrei-me de que o Luis era arquiteto.

— Foi o Von Plessen que a projetou. É muito quente, não é adequada

para este clima. A zona mais bonita é a dos jardins.

— Devem ser do Blanchard.

O Juan entrou sem nos prestar grande atenção e eu fiz companhia ao

Luis. As mãos grandes, com os dedos compridos; rugas ao lado dos

impressionantes olhos que não pareciam pestanejar, de uma cor

compacta, artificial, parecidos com os do Gaspar; as calças de ganga

com uma discreta boca de sino. Se o Juan tinha vinte e quatro anos, o

irmão devia ter trinta e parecia ser ainda mais velho. Era cortês, embora

parecesse assustado.

O Juan sentou-se no sofá virado para as janelas e para o jardim das

orquídeas. A Marcelina serviu água fresca para todos, gelo, deixou as

laranjas no centro da mesa e foi buscar chá frio. Em casa, o Juan despiu

a camisa e sentou o Gaspar em cima de uma das pernas.

— O Luis está cá porque tem de ir para o Brasil. Não pode fazê-lo

sozinho e precisamos da tua ajuda.

— És mesmo bruto — disse o Luis.

— Queres andar com rodeios?

— Com rodeios, não — disse o Luis. — Mas estou a pedir um favor.

Deixa-me ser eu a falar.

O Juan levantou as mãos num gesto de «rendo-me».

— Calma — disse eu. E, depois, dirigi-me ao Luis. — Quando o teu

irmão está esgotado, fica assim. Já deves saber que não anda bem de
saúde.

O Luis olhou para as mãos. Tinha um anel largo, dourado, mas não

era uma aliança de casamento.

— Durante o caminho todo de Buenos Aires até aqui não disseram

uma palavra — adivinhei.

— Dormimos por turnos — disse o Luis, olhando para o Juan com

um certo ar de recriminação.

— Bom. Anda bastante descompensado e, por isso, se te foi buscar a

Buenos Aires, suponho que tenha sido por alguma coisa importante.

— Não o fui buscar — disse o Juan. — Fui à minha vida e

encontrámo-nos. Contou-me que tem de sair do país. E eu ofereci-lhe

ajuda.

O Gaspar apoiou-se no peito nu do pai e bocejou. As olheiras do

Juan pareciam cortes. A viagem de regresso de carro dera cabo dele. Eu

estava um pouco incomodada com o mau humor dele, mas conhecia-o

suficientemente bem para saber que, quando demonstrava afeto, se

comportava como se o mundo fosse um porco-espinho e ele não

conseguisse encontrar um lugar onde sentar-se.

O Luis bebeu um gole de água e explicou. Foi preciso: agradeci-lhe

que não me subestimasse.

— Sou arquiteto e, até ao ano passado, também trabalhava numa

fábrica de cerâmica. O meu cargo na fábrica era, ou é, político. Também

exercia cargos territoriais. No último ano, tudo se complicou: o

secretário do sindicato, que era um grande amigo meu, foi assassinado.

Fizeram passar o crime por um desastre de automóvel. Continuei com os

meus estudos em arquitetura, mas, há duas semanas, um tipo fez-me

uma espera ao pé da minha porta e disse-me só não te mato porque tens

um filho doente. Fez confusão: quem tem um miúdo com problemas é o

meu sócio. Não demorarão muito a dar comigo. A minha companheira já


aterrou no Rio. Quero ir ter com ela, sinto a respiração deles na nuca.

Desde o dia 24 que deixei de estar a salvo aqui.

— A tua mulher não te conseguiu levar?

— Ela acha que eu sou um cagão por não estar de acordo com a luta

armada. Foi-se embora sozinha. Se for ter com ela, veremos como é que

as coisas correm, não sei se me vai aceitar de volta, espero que sim.

— E és? Um cobarde?

— Agora que nos estão a matar, não tem importância. Do ponto de

vista dela, sou um cobarde, mas continuo a pensar que está enganada.

— Não tens filhos, Luis?

— A minha companheira tem duas filhas que eu criei como se

fossem minhas. Não tenho filhos meus, ainda.

— Podemos falar de como é que o vamos fazer? — disse o Juan.

Ignorei-o.

— Queres refrescar-te, Luis? Nesta casa aquecer a água é um desafio,

mas se a água morna estiver bem para ti, podes tomar um duche ou um

banho, o que preferires. Depois vemos como faremos. Eu vou ao

Paraguai uma vez por semana, em trabalho, às vezes com a minha irmã.

Costumamos ir ao Brasil porque há um bar muito giro na fronteira.

Podemos ir hoje mesmo. Ou amanhã de manhã. Os militares conhecem-

me.

— A situação mudou — disse o Luis.

— Tenho a certeza de que não mudou assim tanto. Vão deixar-nos

passar sem problemas. Conheces esta fronteira? É bastante precária e

aqui há apelidos que pesam. Como o meu.

O Luis levantou-se para agradecer e abraçou-me com sinceridade.

— Obrigado — disse-me ao ouvido. — Nem sequer nos

conhecemos. Uma vez, prometeste ajudar-me e jamais o esquecerei.


— Eu também não me esqueci — disse. E era verdade. O Juan

gostava daquele homem e eu também. Sempre foi incondicional, mesmo

quando o impediam de ver o irmão com ameaças e mentiras. Sem ele, o

Juan nunca teria sido uma pessoa capaz de ser leal e de sentir afeto.

Lembrava-me dele, anos antes, insistente, teimoso, à espera do irmão na

praça quando a crueldade da Mercedes o impedia de entrar no

apartamento. Nunca o abandonou. O Juan também não. Quando estava

em Inglaterra, enviou-lhe por correio um livro muito bonito sobre o

arquiteto que projetou o Big Ben, não me lembro do nome dele, só de

que morreu louco aos quarenta anos. Pareceu-me brutal aquela vida,

aqueles monumentos, aquelas igrejas imaginadas pela febril insistência

de um jovem que queria estar perto de Deus e encontrou a demência.

Porventura não é sempre assim?

Luis desculpou-se pelo abraço suado e disse que aceitava o duche.

Só tinha uma muda de roupa porque não podia fugir com uma mala,

devia parecer uma viagem curta. Chamei a Marcelina para que lhe desse

uma camisa limpa. Quando o Luis saiu da sala, fechei a porta e

aproximei-me do Juan. Também ele precisava de um banho. Tirei-lhe o

Gaspar dos braços e pu-lo no chão, onde havia um carrinho que em

breve voaria contra o vidro da janela.

— Como é que fizeste para te livrares dos guarda-costas e vires de

carro?

O Juan tocou num dos lados da cabeça para se recordar da marca.

— São demasiadas horas para manteres um segredo. É por isso que

estás arrasado.

Molhei os dedos na água e refresquei-lhe a testa. Como sempre, o

meu marido excedia-se, conseguia o que queria e, como é lógico, para a

próxima exceder-se-ia ainda mais.

— Conta.
— O portal continua aberto, obedece-me, consigo entrar e sair. É o

Outro Lugar, sem dúvida. O Stephen está a ver se arranja uma casa para

nós perto de lá. Não devíamos falar sobre o Outro Lugar, não consigo

conversar em segredo contigo e agora não nos podemos afastar para

ninguém nos ouvir porque, para ser franco, não consigo levantar-me

desta cadeira. Levas o meu irmão? Foi impossível avisar-te de que

vínhamos ambos para cá.

Afastei-me para lhe observar a cara. Estava a dizer a verdade em

relação ao portal. Quando se sentisse melhor, teríamos de ir ao nosso

lugar privado perto da praia, onde tínhamos as nossas conversas

secretas. Tive um momento de histeria. O Outro Lugar tinha voltado.

Era nosso. Podíamos pedir, pedir pela saúde do Juan, pedir sabedoria

nas nossas relações políticas com a Ordem, pedir, finalmente, a morte da

Mercedes e a minha ascensão ao poder das Três. É claro que também

podíamos pedir o selo para marcarmos o nosso filho e salvá-lo do seu

destino.

— Claro que posso levá-lo — disse, enxugando as lágrimas. — Os

militares conhecem-nos. Mas vou pedir-lhe que não fale sobre isto com

os camaradas dele. Não podemos ser um porto de saída, nem pôr este

lugar em perigo. Já está em risco por causa da Betty, na minha opinião.

Ela também não pode saber. Ia implorar-nos que também as tirássemos

do país e isso é impossível. Há planos para a miúda. O Stephen está a

par?

— Também anda à procura de uma casa para elas.

O Juan massajou as fontes e reconheci os sintomas da enxaqueca, os

olhos injetados de sangue, o lado direito da cara um pouco paralisado.

Medi-lhe as pulsações. Pareceu-me fraco e perigosamente acelerado. Era

uma arritmia grave.


— Posso ir convosco. Quando tudo estiver pronto, temos de enviar a

nossa morada ao Luis. Não podemos perder o contacto com ele. Os teus

pais não vão perceber porque é que queremos viver nesse bairro e eu não

quero que suspeitem de nada. Fica longe do edifício da Libertador, mas

perto do hospital, como intuímos.

— Vão pensar que o fazemos para os contrariar, é tudo. Sabes

porque é que querem que a Beatriz e a Adela vivam perto de nós, não

sabes? Enfiaram na cabeça que a rapariga vai desenvolver o seu

potencial se permanecer ao teu lado e do Gaspar. Agora não é a melhor

altura para irmos para Buenos Aires, mas já não espero que alguma

coisa seja fácil para nós e já não aguento viver nesta casa, preciso de

trabalhar.

Tirei o Gaspar de debaixo da mesa, para não se magoar, e peguei

nele ao colo. Tinha sono.

— Não precisas de vir comigo. Seja como for, os militares vão

confundi-lo contigo. Não te conhecem assim tão bem para se

aperceberem das diferenças. Sabem que o meu marido é um homem alto

e louro, e isso é suficiente. Tens de descansar.

— Eu sei — respondeu.

Lá em baixo, o jardineiro preparava-se para regar as plantas. Seria

melhor partirmos no dia seguinte. Os guarda-costas não me seguiriam

até à fronteira se não fosse com o Gaspar. Tínhamos tempo. Iríamos até

Asunción, como todas as semanas. Antes, faria um pequeno desvio até

Foz. Deixar-me-iam passar. A filha do fazendeiro. A filha dos poderosos.

Os guardas da fronteira tinham um entendimento com o meu pai. Em

Foz, o Luis podia apanhar um transporte qualquer ou alugar um carro.

Uma vez no Brasil, estaria a salvo. Demoraria dois dias a chegar ao Rio.

Todos íamos sobreviver. Pressentia-o. O meu filho, o Juan, o Luis, a

Betty, a Adela. Durante uns tempos, pelo menos. A Escuridão estava


aberta e a noite não estava cerrada.
O poço de Zañartú,

por Olga Gallardo, 1993


— NÓS, POR CÁ, SABÍAMOS — diz a mulher com os olhos arrasados pelas

cataratas e uma pele demasiado suave para alguém que está perto dos

cem anos. — Meteram os corpinhos ali.

Aponta com extrema precisão para o lugar onde está a vala comum,

como se não estivesse cega.

— Mas o que é que nós íamos dizer, menina? A minha irmã ouvia-

os pedir de noite.

— Quem?

— As alminhas. Angá. Há centenas!

Ela, Margarita Gómez, é guarani, vive numa periclitante casa feita de

troncos e lama, teve dez filhos e morreram-lhe cinco, e os seus netinhos

«estão barrigudos». Porém, ainda entrança o longo cabelo cinzento.

Ainda põe uma flor atrás da orelha quando acaba a trança, e as pétalas

vermelhas iluminam-lhe as brancas. Lembra-se da guerra. É assim que

lhe chama. Lembra-se dos rapazinhos a serem cravejados de balas à luz

do dia. Lembra-se deles com pena, mas sem se horrorizar, porque

Margarita Gómez já viu muita coisa. Viu morrer os filhos, viu os filhos

sobreviventes chorarem de fome, viu os vizinhos espancados e com as

costas marcadas pelas chicotadas dos capatazes das plantações. Tem


pena dos rapazinhos, mas não é a primeira, nem a única desgraça que a

sua aldeia viu. E, por isso, prefere regar as plantas e oferecer-me um

tereré antes de continuar a falar comigo.

Estou cansada, embora a viagem não seja extenuante: o trajeto entre

Posadas e a aldeia não demora mais de duas horas a percorrer. O calor, a

vegetação densa, uma humidade que faz crescer brânquias, tudo convida

à preguiça, e depois de falar com Margarita, a minha primeira

entrevistada na aldeia de Zañartú, a quinze quilómetros de Puerto

Iguazú, em Misiones, o sono atira-me para a cama da modesta pensão

onde eu e um punhado de jornalistas estamos alojados. Estamos cá

todos pelo mesmo motivo: a Justiça autorizou, finalmente, as escavações

nos terrenos que rodeiam a Casinha de Zañartú, o Destacamento de

Subprefeitura utilizado como centro clandestino de detenção na zona.

Foi, também, a sede da Operação Itatí, talvez o menos conhecido de

todos os ensaios repressivos do genocídio anterior ao golpe de março de

1976. Durante as escavações, foi descoberta uma vala comum inédita:

um poço com vinte e cinco metros de profundidade, dos quais, até ao

momento, apenas se cavaram dez, embora já tenham sido recuperados

cerca de trinta corpos. A identificação dos restos mortais é complexa.

Em Misiones, os antropólogos forenses não contam com a tecnologia

necessária e, por isso, os restos mortais têm de ser enviados para

Corrientes: é lá que se trabalha, na morgue do hospital central, em

colaboração com a universidade. Durante a primeira fase das escavações

foi convocado um grupo de jornalistas para assistirem aos trabalhos.

Somos ostensivamente poucos para a dimensão da descoberta. Na

pensão, enquanto me resigno à ideia de que terei de dormir sobressaltada

por insetos de tamanho horripilante, tomo nota dos meios de

comunicação que aceitaram o convite do governo de Misiones e fico


pasmada. Somos quase todos independentes. Para já. O poço de Zañartú

não é um assunto que faça vender jornais.

É que, contrariamente ao que sucedeu com outras operações de

preparação para o genocídio — sobretudo a Operação Independência,

em Tucumán —, o confronto entre o EL (Ejército de Liberación) e o

exército argentino quase não teve impacto fora do âmbito local, por

muitas razões; sobretudo, pelo curto alcance das ações de uns e de

outros. O Ejército de Liberación instalou-se em Zuñartú e arredores e

tentou ser demasiado abrangente: por um lado, tentaram consciencializar

os historicamente explorados e maltratados trabalhadores das plantações

de mate e, por outro, queriam melhorar as condições de vida da

população aborígene mbyá-guarani. Foram relativamente bem acolhidos

pelos trabalhadores da região (no momento em que escrevo esta crónica,

quase setenta por cento vive de trabalho ilegal que, em muitos casos, se

pode considerar escravo, reside em habitações precárias e não tem

acesso aos serviços básicos, e registam-se altos índices de trabalho

infantil), quase todos empregados na empresa Isondú, propriedade da

poderosa família Reyes Bradford e, em menor medida, na Obereña,

propriedade da família Larraquy. A extrema concentração da

propriedade fez com que o Exército, muito presente na zona fronteiriça e

em conivência com as empresas — com as quais tem relações desde

sempre e para as quais exerce, inclusivamente, funções de segurança —,

atacasse os guerrilheiros rápida, mas não eficazmente. Os jovens

estavam treinados, o que surpreendeu os militares, e resistiram na selva

durante quase uma semana. Acabaram por ser quase todos abatidos e,

exceto os sobreviventes Agustín Pérez Rossi (vinte e dois anos, de

Béccar, Buenos Aires) e Mónica Lynch (vinte e três anos, de Martínez,

Buenos Aires), continuam todos desaparecidos. Pérez Rossi e Lynch,

que falaram com esta cronista do exílio — vivem em Paris e continuam


amigos —, estão convencidos de que os seus camaradas jazem na vala

comum que acaba de ser exposta publicamente. Nenhum dos dois quer

voltar para a Argentina; dizem que só o farão, e apenas de visita, quando

os corpos começarem a ser identificados.

O que nem Lynch nem Pérez Rossi mencionam, e eu também não,

porque por vezes custa falar do horror, é que a guerrilha do EL tinha

vinte e dois membros na selva. E que, se já desenterraram mais de trinta

cadáveres da vala, isso quer dizer que o exército a usava como cemitério

de todas as operações clandestinas na fronteira. Ou seja: que há muitos

mais mortos lá do que os que sucumbiram na Operação Itatí.

OSSOS NA SELVA

Nossa Senhora de Itatí é a igreja mais importante do Litoral. Fica na

região de Corrientes, mas a devoção à Virgem de Itatí é homogénea na

zona e fundiu-se com outras crenças populares. Alguém colocou, fora do

perímetro de segurança que a Justiça criou à volta dos trabalhos no

poço, uma imagem da Virgem à sombra de uma árvore, um ipê. Na

maior tasca da aldeia — só há duas para cerca de 700 habitantes —, as

pessoas bebem aguardente de arruda e todos falam sobre a quem pedir o

payé (amuleto) mais eficaz. Têm medo dos ossos. Não de todos, claro. O

sr. Segundo, dono do bar, diz que em sua casa sempre foram devotos de

São Morte e que os ossos não o impressionam.

«O que foi impressionante», conta, «foi ver aqueles rapazes de

Buenos Aires a instalarem-se aqui, desprotegidos. Como é que lhes

passou pela cabeça que as pessoas iam ficar do lado deles. Aqui as

pessoas são muito de baixar a cabeça e deixar andar.» Tento defendê-los,

aos militares, mas percebo que o sr. Segundo não os está a atacar. Está
apenas a recordar, com um certo assombro, o que aconteceu há mais de

vinte anos. E insiste em que estavam bem preparados militarmente,

apesar da sua ingenuidade. Arrendaram umas casitas. Trouxeram

móveis. Um casal até teve uma criança. Não é o primeiro a falar-me da

criança (ninguém lhe chama bebé). É a filha de Liliana Falco,

desaparecida, provavelmente capturada durante a Operação. Estariam a

mãe e a filha na vala comum? Desconhece-se a identidade dos restos

mortais, mas, por agora, só há ossos de adultos.

Pérez Rossi e Lynch falaram-me da menina há meses. Nenhum dos

dois sabe se foi assassinada ou se a tiraram à mãe para a darem

ilegalmente a uma família de adoção. «A menina era loura», disse-me

Mónica Lynch. «Era ideal para ser comprada ou desejada.» Pérez Rossi

recordou a mãe, Liliana Falco. «Era a típica rapariga da Zona Norte,

como todos nós. Sempre me pareceu estranho não a ter conhecido antes,

mas ela movia-se noutros círculos, tinha saído de casa. Veio com o

Eduardo, o companheiro dela, da Zona Sul. Viviam juntos e ela estava

grávida. Levá-la para Misiones estando grávida, agora, pode parecer

uma loucura, mas naquela altura achávamos que, como revolucionários

que éramos, tínhamos a obrigação de não nos conformarmos com as

regras da família burguesa. Além disso, foi impossível deixá-la para trás.

A Liliana queria ir para Zañartú e isso não nos pareceu um problema de

segurança. Nós queríamos crianças revolucionárias.» O que é certo é

que se diz que a menina nasceu num hospital de Puerto Iguazú e tinha

mais de um ano quando a Operação Itatí arrancou os militares das suas

casas ao pontapé e ao tiro. Pérez Rossi e Lynch não acreditam que a mãe

tenha sobrevivido. Mas têm a certeza de que o pai morreu, porque o

viram ser cravejado de balas pelas costas na segunda manhã de

resistência na selva.
Os sobreviventes não sabem porque é que lhes pouparam a vida.

Foram facilmente capturados: ficaram ambos sem munições e

limitaram-se a correr até não poderem mais. Pérez Rossi passou seis

anos preso na Unidade II de Oberá; durante os primeiros anos, viu

serem levados para lá e torturados outros presos cujo paradeiro se

desconhece. Mónica Lynch foi transferida para a prisão de mulheres

Nuestra Señora del Rosario, em Corrientes, e a sua família abastada

conseguiu que fosse amnistiada no ano seguinte. Ambos dizem que

nunca conseguiram superar o sentimento de culpa e a pergunta de

porquê. Porque é que todos os outros foram assassinados ou

desapareceram e eles tiveram o privilégio de sobreviver. «É uma forma

refinada de tortura», diz Pérez Rossi, e arrepende-se de ter dito o que

disse. «Na verdade, não quero comparar. Nós não sofremos nada.»

O trabalho de recuperação dos restos mortais não é lento, mas

minucioso. No segundo dia, deixam passar a imprensa. O poço está

coberto por um toldo de rede, uma espécie de tenda para proteger os que

têm de fazer a descida no meio de um calor brutal — no exterior, está

muito abafado; mas no poço, dizem os antropólogos, é um inferno. Com

fatos brancos, descem os dez metros usando uma plataforma que

funciona como um elevador. Se se partir, há escadas coladas às paredes.

Tiram os ossos com as mãos. Os corpos, dizem, estão todos misturados.

Como se tivessem sido atirados para lá por um camião do lixo. Talvez

tenha sido isso mesmo que aconteceu. Na aldeia, não sabem que veículo

utilizavam: aquela zona fora isolada pelos militares. Lembram-se,

porém, de que as luzes da Casinha estavam acesas toda a noite e que

havia movimento de camiões vindos da estrada, nos dois sentidos.

O sr. Segundo conta que, na noite anterior ao ataque, a sua obsessão

(é mesmo essa a palavra que utiliza: obsessão) era procurar a criança.

«Viviam aqui, na aldeia, a Liliana e o Eduardo. A Liliana era fina, mas


mais prò feia, coitada. Eu pensava que era muito louvável o que queriam

fazer, educar as pessoas, e assim. Aqui, a gente é analfabeta. Mas

quando soube que tinham armas, fiquei zangado. Queria salvar a criança

e fui a correr até à casa deles. Estavam aos tiros. Nem consegui lá

chegar.»

Quase todos os ossos são agrupados por tipos. Fémures com

fémures, ancas com ancas, vértebras com vértebras. Só nalguns casos

podem ser reunidos como pertencentes ao mesmo corpo: a posição

denuncia-os. Noutros, é impossível saber. Pergunto a um antropólogo

porque é que passados pouco mais de dez anos de enterro estão assim,

descarnados. Explica-me que é por causa da humidade. Não tem

autorização para nos dizer muito mais do que isso. Responde às

perguntas técnicas, que são as menos importantes, embora possam ser

objeto de um fascínio mórbido. Há um poço com ossos a poucos metros

de um centro clandestino de detenção. Não há, nem haverá, nenhum

detido, por causa das leis de impunidade para as Forças Armadas

vigentes no país. As vítimas terão identificação, mas não justiça.

O procurador encarregue do caso, o dr. Germán Ríos, convoca uma

conferência de imprensa a metros da vala comum. É uma localização

inquietante, outra tenda branca, mais apropriada para um coquetel do

que para dar informações sobre a descoberta e identificação dos restos

mortais. Ríos confirma trinta e dois corpos, todos de adultos. A equipa

de antropólogos está a trabalhar nas identificações, mas, contrariamente

ao que sucede com os bancos de dados de Buenos Aires, no norte do

país a população não facilitou informações genéticas para os estudos de

adn e não está a par do processo, que, de resto, não é publicitado. As

organizações de direitos humanos lançaram a sua própria campanha e

esperam obter resultados. Em geral, as suas campanhas têm sucesso.


— No entanto, muitos dos militantes aqui enterrados procedem de

Buenos Aires — intervenho.

— É verdade — responde o procurador. — Suspeitamos de que a

vala também tenha sido usada para enterrar os desaparecidos de

Corrientes, Misiones e Formosa. E até mesmo trabalhadores das

plantações de tabaco e de mate que participavam em protestos sindicais.

Até agora só contávamos com as denúncias, mas não possuíamos

nenhum dado sobre os corpos, a não ser o lugar e a data das detenções.

Num perímetro de sessenta quilómetros, há registo de três centros

clandestinos de detenção confirmados. Acreditamos que todos eles

usavam esta vala comum para enterrarem os corpos.

Há silêncio na selva. Descubro, nestes dias, que a selva é muito mais

silenciosa do que eu julgava. Imaginava um pandemónio de pássaros e

de outros animais, pensava mesmo que era possível ouvir as plantas a

crescerem, as quais, de facto, parecem aumentar todos os dias muitos

centímetros com uma vitalidade anormal, estimulada. Há vida em todo o

lado, mas a quietude é gritante. De noite, costuma haver cortes de luz na

pensão e alguns colegas meus ficam nervosos. É por causa do calor e da

humidade, que atravessa as paredes e faz os colchões cheirar mal, e é por

saberem que estamos num território de massacres e segredos. A selva

está no silêncio e, também, nos habitantes de Zañartú. Depois dos

primeiros dias, em que contaram as suas memórias na tasca, voltaram

para as suas vidas e já ninguém menciona as luzes dos camiões

noturnos, nem os trabalhadores detidos, muitos deles conhecidos na

aldeia, ou mesmo seus habitantes.

Passar outra tarde junto ao poço parece-me inútil. Sonho com ossos.

Não percebo que mais posso fazer. Talvez ir até Corrientes, onde estão a

ser levadas a cabo as identificações. Já assisti ao processo em Buenos

Aires: é triste e minucioso. Quero saber mais sobre as vidas dos


trabalhadores detidos e desaparecidos. Quero saber quais são as

recordações dos habitantes locais em relação à invasão dos jovens do

EL, mas custa-me obter testemunhos. O filho de dona Margarita Gómez

diz-me que ela está cansada e não pode falar, mas a mãe sai de casa,

oferece-me um chipá um pouco duro e uma laranja, e senta-se comigo

no pátio. Uma rapariga, talvez sua neta, varre o chão com uma vassoura

feita de ramos de palmeira. Dona Margarita diz que eles sempre se

mantiveram caladinhos, caladinhos, e que se calhar tem mesmo de ser

assim porque só Deus é que grita. É possível que o filho dela,

trabalhador numa plantação de erva-mate, esteja no poço. Mas ela não o

diz assim, desta maneira.

— Era um homem orgulhoso, e o orgulho fazia-lhe mal. E a bebida

também. Mas eu gostava do meu filho, gosto de todos os meus filhos.

— Era um dos dirigentes. Falava consigo sobre isso?

— Eram maltratados e ele queixava-se muito. E o dinheiro não

chegava para a comida, nem para comprar roupa para os meninos.

Sempre foi assim.

Sempre foi assim. Margarita tem razão. O poço quebra a resignação

quotidiana com a sua monstruosidade, tão perto desta aldeia parada no

tempo com os seus frigoríficos barulhentos e as marcas de refrigerante

importadas do Paraguai. Os antropólogos limpam os ossos com cuidado.

Têm de retirar a lama, mas não podem parti-los ou danificá-los, sob

pena de destruírem alguma prova. De um disparo, por exemplo. Seja

como for, vou até ao poço, apesar da minha relutância, no segundo

horário de visita, o da tarde. Um dos antropólogos mostra-nos um crânio

sem mandíbula com um buraco no parietal esquerdo. Perguntamos-lhe

se é um disparo e ele, como profissional que é, responde que não está em

condições de confirmar isso, mas que aparenta ser uma lesão compatível

com uma arma de fogo.


Nessa noite, jantámos em silêncio. Partiremos no dia seguinte. A

sensação é de derrota. Há um túmulo, há crimes, mas não haverá uma

investigação sobre a autoria dos mesmos. Para dissipar a angústia, decidi

fazer uma pequena excursão antes de regressar a Buenos Aires. Numa

aldeia próxima, uma lagoa chamada Totora atrai os turistas locais.

Muitas pessoas preferem o sossego da pesca na lagoa, os pores do sol

nos matagais, em vez do rio, mais imprevisível. Na lagoa estão proibidas

as lanchas a motor e não há tibiros, a versão local e menos temível das

piranhas. Não vou à procura de sossego, embora talvez possa aproveitar

para escrever um pouco: os hotéis de lá são melhores do que a pensão

onde estou — na verdade, a pensão não foi concebida para alojar

ninguém durante mais do que uma noite ou talvez umas horas —, e

dizem que é lá que se encontram os familiares dos desaparecidos-

assassinados que poderão estar no poço. Como se precisassem de estar

por perto, de velar os seus corpos. Porque é que não vêm para cá?,

pergunto a mim própria. E apercebo-me de que lhes devia fazer a

pergunta a eles, se for mesmo verdade que ocuparam a aldeia da lagoa

com um velório em suspenso.

O ESCURO ENTARDECER

A aldeia da lagoa Totora chama-se San Cosme del Palmar e deve o seu

nome a um santo muito venerado localmente e ao palmeiral que se vê

das margens, à distância. Surpreende-me, faz ruir os meus preconceitos.

Um dos hotéis é simples, mas francamente confortável e bonito, com

quartos arejados, móveis de vime, cheiro a madeira e a laranjeira. A

rececionista é a dona, uma mulher de uns sessenta anos, proprietária

desde a década de oitenta. A casa, diz, estava bastante abandonada e era


uma das residências de fim de semana de uma família abastada da zona

que caiu na miséria após várias desgraças. Não enumera as desgraças,

como se contá-las pudesse contaminar o ambiente diáfano do seu

adorável hotel. Depois de me dar uma série de indicações, o horário do

pequeno-almoço, como ir até à estância balnear, o lugar onde posso

comprar protetor solar se não tiver, os poucos, mas, garante, bons

restaurantes — «tem de provar o pacu, fazem-no panado com erva-mate,

não parece muito bom, mas é uma delícia, não se vai arrepender» —,

acompanha-me até ao meu quarto, o único livre. À porta, enquanto me

explica que a chave tem um pequeno truque («mas o quarto fica bem

trancado, além disso, aqui está bastante segura»), pergunto-lhe se no

hotel também estão hospedados familiares dos mortos do poço de

Zañartú. Pergunto-lho assim, de chofre, porque há dias que o silêncio

me deprime e paralisa. A mulher endireita-se e diz, sinceramente, que

não pergunta aos hóspedes porque é que lá estão e que não lhe compete

dizer-mo. Que os donos dos hotéis, tal como os barmen, têm o seu quê

de psicólogos, ouvem confissões e o dever de sigilo está implícito. «Pode

perguntar-lhes a eles», diz, acendendo a luz. Não é necessário: o quarto

é muito luminoso e dá para um pátio interior com limoeiros e relva

acabada de cortar.

O pacu panado com erva-mate é realmente delicioso. E fico

admirada por quase não haver mesas vazias no restaurante. O pequeno

cais, até onde dei um passeio, está a abarrotar de lanchas. A esta hora,

depois do almoço, não há ninguém a pescar, só aparecem com o

crepúsculo. Perto do hotel há um pequeno passeio ribeirinho e um

passadiço flanqueado por jacarandás: ainda se vislumbram os restos da

casa de fim de semana que dominou aquela zona da lagoa. Pergunto-me

qual das famílias ricas da região terá sido sua proprietária. Na aldeia há

um museu regional onde posso investigar a história — a rececionista do


hotel é exagerada na sua discrição —, mas está fechado e é possível que,

como sucede frequentemente nas aldeias, não tenha funcionários, ou

apenas um, que só vai de vez em quando ao seu gabinete arrumar papéis

antigos.

Depois de comer, muitas pessoas dormem a sesta. Eu nunca me

acostumei a isso, nem sequer em Zañartú, onde o peso da humidade e da

aldeia anestesiada davam vontade de dormir durante horas e sem sonhar.

Prefiro ir buscar água para o mate ao hotel e sentar-me no passeio

ribeirinho, à sombra das árvores, num dos cadeirões de vime, que são

mais cómodos do que parecem. Tomo notas no meu caderno. De vez em

quando, leio. Outros sentam-se na pequena praia ou preferem andar pelo

passeio ribeirinho. De onde eu estou vejo um casal, um homem e uma

mulher de uns sessenta anos, e uma mulher nova muito magra de vestido

comprido e braços pálidos. Aproximo-me deles e não demoro a

perguntar-lhes o que quero saber. Eles abrem-se logo. Querem falar. Isto

está sempre a acontecer e, no entanto, ainda me surpreende. As pessoas

querem sempre falar, querem contar a um desconhecido a sua história,

mesmo quando sabem que esse desconhecido a publicará distorcendo as

suas palavras, porque essa é a natureza do ofício.

São o pai e a mãe de um jovem de Corrientes, um dirigente

estudantil da Universidade do Litoral. Levaram-no em abril de 1976,

logo a seguir ao golpe. Vivia com eles numa dessas grandes casas de

província com um terreno onde vão sendo construídas as casas de todos

os membros da família: a loja dá para a rua; o edifício principal é para

os pais; o de trás, depois do pátio das azáleas, para os filhos. Eles foram

amarrados e amordaçados. Não se puderam defender. Levaram-no só a

ele, tinha namorada, mas não estava em casa.

— Ele achava que não o iam levar. Dizia que essas coisas só

aconteciam na capital. Está a ver? Nós também pensávamos assim.


Alguns colegas dele tinham ido para o Brasil e outros estavam

escondidos, eram clandestinos, sabe. Sinceramente, nós achávamos que

vinham… O meu filho apenas militava na faculdade, mais nada.

Garanto-lhe que sim, porque ele contou-nos e dizia-nos para não termos

medo. Com isto não estou a justificar o que fizeram com os rapazes que

optaram pela luta armada, mas não era o caso do Gustavo.

A mulher faz parte do pequeno grupo de Mães dos Desaparecidos de

Corrientes Capital. Devia ter adivinhado pela forma como se exprimia.

O homem permanecia em silêncio. Os pais das vítimas costumam ser

companheiros silenciosos. Muitos deles foram morrendo ao longo dos

anos em que acompanharam as mulheres em segundo plano. Mata-os a

impotência e o amor, não estão preparados para isto. As mulheres sabem

gerir melhor estas emoções.

Dizem que me vão apresentar outros pais, e mesmo algumas

mulheres. Não são assim tantos, afirmam, acham que são oito, há alguns

que não falam ou que têm vergonha. Eu quero saber porque é que estão

na lagoa Totora e, à noite, quando nos juntamos todos para jantar no

restaurante que serve pacu com erva-mate — fui a única que o pediu —,

dão-me todos uma explicação diferente, mas semelhante. Não os deixam

aproximar-se do poço e, além disso, em Zañartú não há espaço para

todos. Os habitantes da aldeia recomendaram-lhes este lugar por ser

confortável e próximo. Não iam lá ficar durante muito tempo. Há dois

meses que estão cá, desde que se soube do poço. Vão a Zañartú todos os

dias para ver se têm sorte, se os deixam passar, se alguém decide falar

com eles. Já perceberam que não há grande coisa a fazer.

— Se calhar, deviam ir a Corrientes, onde estão a fazer as

identificações.

— Tem lógica — acredita uma mãe de Castelar, que pertence à

região de Buenos Aires. O filho dela, Guillermo Blanco, mais conhecido


como Piru, era um dos militantes do EL. É a única mãe de um membro

do EL presente. Falo-lhe dos sobreviventes que entrevistei, mas a

informação enche-lhe os olhos de lágrimas e endurece-lhe a cara. Nunca

soube os nomes deles, o filho nunca nomeou nenhum dos seus

camaradas. Não quer saber dos vivos: não consegue refrear a raiva.

— Seja como for, teremos notícias da identificação: já lhes dei

material para o ADN e, quando o identificarem, telefonam-me para casa.

O meu marido está lá à espera. Não pôde vir. Está mal de saúde. Estava

zangado com o Guille quando ele veio para cá. Eu nem sequer sabia que

estava no Norte. Foi o meu outro filho que me contou, o irmão dele,

depois de tudo acontecer.

— Estar aqui é a coisa mais parecida com um funeral — explica-me

Sonia, a mãe do militante estudantil de Corrientes, Gustavo. —

Queremos estar perto, velar os seus restos mortais. Estamos a vários

quilómetros de distância, mas eu sei que ele me sente. Levamos-lhes

flores, aqui, na lagoa, e perto do poço, nas árvores. Viu a Itatí? Não nos

deixam aproximar. Mas deviam, não acha? É uma desconsideração.

— Este país não tem consideração pelas vítimas — diz María

Eugenia, de uns cinquenta anos, a mulher de um capataz de uma

plantação de erva-mate que apoiou uma tentativa de greve. Ela, quando

o mataram (é assim que o diz, embora não tenha o corpo, sabe que o

mataram), não estava de acordo com ele.

— «Para com isso, olha que o patrão corre contigo e depois o que é

que damos de comer aos miúdos.» Gritava-lhe isto dia e noite. Ele dizia-

me que as pessoas estavam a passar mal. Agora percebo-o e não sabe

como estou arrependida.

— Para quem é que ele trabalhava?

— Para os Reyes, aqui metade das pessoas trabalha para eles. Eu

conheci o dono, o Adolfo Reyes. Até pensava que era boa pessoa. Mas
nem me recebeu quando o meu marido desapareceu.

María Eugenia chora e o empregado traz-lhe um chá Cachamai. Lá

fora, a lua beija o sapal e os insetos batem na lâmpada do restaurante.

Há besouros. Penso que tenho medo de besouros, mas sei que, se um

cair em cima de mim, o tirarei do cabelo como se fosse um mero

gancho. O medo modifica, força a adaptação. Não quero acostumar-me a

isso. À noite não sonho com ossos, mas com uma enorme escuridão

sobre a lagoa, uma tempestade enorme carregada de granizo.

A MULHER MAGRA

Ao pequeno-almoço, despeço-me de alguns familiares. Dos que vão a

Zañartú levar as suas flores e tentar a sorte, e dos que se vão embora.

Uns vão para Corrientes. Outros, para Posadas. María Eugenia e a mãe

de Castelar ficam mais uns dias. Ontem vi-as juntas, à beira da lagoa, a

acender velas. É um ritual secreto destas famílias, íntimo, ao abrigo da

água e do calor, muito delicado. Também cumprimento os novos

hóspedes. Alguns vêm de Zañartú, como dizem na receção, não

encontraram alojamento lá e enviaram-nos para San Cosme, a história

do costume. Outros já sabem que devem ficar aqui, conta-me María

Eugenia. Sobretudo os que são da zona.

Há uma mulher, chamo-lhe a mulher magra, que não compareceu no

jantar da noite passada e que toma o pequeno-almoço sozinha, a fumar,

numa mesa do pátio. Tem uma cara extraordinária que, além do mais,

me parece familiar. Talvez se trate apenas da peculiaridade das suas

feições: uma cara angulosa que de frente é bonita, mas de perfil e sob

uma certa luz parece a de uma das Meninas de Avignon. Sei que

também está cá por causa dos ossos. Quero respeitar o seu


distanciamento, mas ela fascina-me, com o seu cabelo comprido

ligeiramente grisalho e os vestidos, sempre diferentes, que a cobrem até

aos pés.

Surge uma oportunidade de falar com ela depois do pequeno-

almoço. É ela que vem ter comigo. Pede-me lume no passeio ribeirinho.

Dou-lho. Está sempre a fumar e eu também. Agora que a vejo à luz

impiedosa do fim da manhã, reconheço-a, mas mal posso acreditar no

que vejo ou recuso-me a acreditar. Há uns dez anos, no limite dos

bairros de Caballito e Parque Chacabuco, em Buenos Aires,

sequestraram uma menina de doze anos. Uma menina que chamou a

atenção da imprensa porque lhe faltava um braço, nunca se soube se se

tratava de um defeito congénito ou da consequência de um acidente. A

situação foi o resultado de uma brincadeira que se tornou macabra: a

menina e os amigos entraram numa casa do bairro que estava

abandonada. Uma travessura. Alguma coisa aconteceu no interior que os

rapazes não conseguiram ver bem e a menina nunca mais saiu de lá.

Chamou-me a atenção que o desaparecimento, rotulado como sequestro,

só aparecesse nos meios de comunicação durante pouco tempo, embora

se tenham feito muitas reportagens com a mãe da menina, que não se

esquivava às câmaras da televisão. Aventou-se a hipótese de que o

sequestrador fosse um homem misterioso nunca apanhado: a polícia

encontrou roupas de adulto ensanguentadas no interior da casa, embora

não se tenha conseguido relacionar a roupa com ninguém em concreto, e

a menina nunca mais apareceu. Na altura, quis entrevistar a mãe, mas o

meu editor não estava interessado. Recorri ao chefe de redação. Disse-

me que as pessoas não estavam interessadas numa história tão mórbida e

que o que lhes devíamos dar eram boas notícias. Nunca acreditei nele.

Dizia-o de maneira mecânica. Noutras circunstâncias, teria matado por

uma história assim. É verdade que 1987 foi um ano terrível, com a
25
insurreição dos carapintadas e a profanação do corpo do Perón:

ninguém podia acreditar que alguém tivesse cortado as mãos do cadáver

mais vigiado da nação. A história da rapariga sem braço desaparecida

tinha qualquer coisa de tétrico, sim, e talvez tenha sido por isso que não

lhe deram grande destaque. São coisas que acontecem no jornalismo. A

imaginação do público apaixona-se por certos horrores e é indiferente a

outros. Quando tentei entrevistar a mãe, apesar de tudo, talvez para

outro órgão de comunicação, a mulher já abandonara a sua casa e o

bairro. O paradeiro dela era um mistério.

— Estou cá por causa do meu companheiro — disse a mulher magra

e, quando falou, dissiparam-se todas as minhas dúvidas. A voz costuma

funcionar como um pontapé na memória. Se não fosse a mãe da rapariga

desaparecida, era sua gémea. Ou, então, a parecença era sobrenatural.

Estávamos a meio do dia e o calor podia matar pássaros em pleno voo,

mas lembro-me de ter tido um arrepio. Senti medo. A coincidência

parecia uma ficção sinistra.

Ela apercebeu-se, mas demorou a dizer mais qualquer coisa.

— Eu e o meu marido éramos militantes do Ejército de Liberación

Maoísta Leninista. Era este o seu nome completo, embora até os livros

de História e todos os jornalistas lhe chamem EL. Eu sobrevivi.

Impressionou-me. Perguntei-lhe como se chamava. Disse-me.

Beatriz Bradford. Olhei fixamente para ela. Eu reconstruíra a Operação

Itatí e não me constava que nenhum militante tivesse esse nome. O

apelido da rapariga desaparecida também não era esse. Chamava-se

Adela Álvarez. Lembrei-me de repente, passados tantos anos sem lhe

dedicar um só pensamento.

— É justo que duvide — disse. Tinha uma voz grossa e, apercebi-

me, marcas no pescoço e nos braços. Pequenas cicatrizes de cortes

superficiais e finos. Como se se tivesse coçado demasiado com umas


unhas compridas. — O meu nome de guerra é Liliana Falco. Só o meu

companheiro conhecia a minha verdadeira identidade, e também o nosso

chefe de operações, porque parte do plano, que fracassou, consistia em

sequestrarmos alguém da minha família para nos financiarmos. A minha

família, como sabe, é imensamente rica. E também são uns terríveis

filhos da puta, cúmplices da ditadura que usaram os seus meios e a sua

influência para ajudarem a fazer desaparecer corpos. É por isso que me

junto às pessoas que aqui vêm. A minha família foi cúmplice dos crimes

praticados contra muitos dos seus entes queridos. O Eduardo queria

salvar-me deles, mas nunca soube o que é que enfrentava. Eu também

não sabia completamente.

Senti uma espécie de tontura. Se, como militante, usava o nome de

Liliana Franco, então era mesmo a mãe da menina talvez assassinada ou

entregue a uma família. E se era mesmo membro da família Bradford,

estava perante uma história monumental. E credível, porque a lendária

casa da família estava situada a apenas dez quilómetros rio acima. Como

podia ser, também, a mãe da menina sem braço desaparecida em

Caballito?

Tentei que a minha pergunta fosse certeira. Receava deixá-la escapar.

Havia algo de esquivo nela. Já desde a primeira entrevista me apercebera

do seu desequilíbrio, dos estragos que a família e a sua história lhe

tinham causado na psique.

— Uns camaradas seus disseram-me que teve uma filha em Zañartú.

Perguntam-se pelo destino da menina.

— A Adela não está no poço. É provável que o Eduardo lá esteja.

Não sei porque é que a identificação está a demorar tanto. A mãe do

Eduardo já deu sangue. Ela não gosta lá muito de mim, mas confirmou-

me que o fez. Digo ao Eduardo todas as noites que tentei salvar a nossa
filha. Os que vêm para cá não sabem como chegar perto do poço porque

não estudam o terreno. É preciso estudar o terreno.

Eu tinha ligado o gravador sem lhe pedir autorização, vibrava na

minha mão sob o livro que estava a ler. Ela disse:

— Não o esconda. Pode gravar-me, se quiser. Não tenho nada a

perder. Além disso, se eles não quiserem que esta conversa veja a luz,

não verá. As regras deles são outras. Já não estão nervosos. Como sabe,

a casa da minha tia, a Mercedes Bradford, fica perto daqui. É minha tia,

que fique claro, não quero aparecer como filha desse monstro. A minha

mãe e o meu pai são muito diferentes dela, apesar de tudo.

— Relaciona-se com eles?

— Com a minha tia ou com os meus pais?

— Com todos.

— Não lhe vou falar da minha tia. Não consigo. Com os meus pais,

faço o que posso, e eles também.

A partir daqui, transcrevo a conversa. Seria muito difícil parafraseá-

la. Foi breve, a conversa dessa tarde. E a da noite também, mas ambas

me pareceram compridíssimas e lembro-me de ter olhado várias vezes

para o gravador para verificar se a cassete não tinha acabado.

— Lembra-se da Operação?

— Os tiros acordaram-nos e sabíamos que eram eles e, por isso,

desatámos a correr. Melhor dizendo, eu corri com a minha filha.

Conhecia o caminho através da selva para nos pôr a salvo. Tínhamos

planeado a fuga, a ideia era irmos até à casa de uma mulher que nos

ajudaria, a esposa de um trabalhador da plantação de erva-mate. Era a

única que nos ajudava naquela aldeia de merda. Nunca lhes teria

chamado pessoas de merda, mas já não consigo falar de consciência de

classe ou de contradições, e já não tenho pachorra. Nem quero saber

deles. Não encontrei a casa, estava desorientada. Por isso, fui como pude
até à casa da minha tia. Tinha de salvar a minha filha e tencionava deixá-

la lá para ir buscar o Eduardo. Estava cansada e aterrada. A minha

família tem seguranças privados. Preferi ficar com a menina em casa.

Devíamos ter morrido nessa noite. Às vezes, iludir a morte é o pior que

pode acontecer.

A voz de Beatriz, grossa, de fumadora, nunca quebrava. Falava com

a frieza de uma pessoa que não se importa de morrer ou que quer

morrer, mas antes tem de resolver duas ou três coisas.

— Fiquei com eles em casa. Com a minha prima Rosario e os outros.

Não lhe vou contar a minha vida. Quero dizer-lhe que a sua intuição está

certa: a minha filha é a Adela Álvarez, a menina desaparecida. Nunca

ocultei o meu nome: perante as câmaras, disse que o meu nome é

Beatriz Álvarez. Nunca casei com o Eduardo, mas adotei o apelido dele.

A Adela foi registada com o nome verdadeiro e não morreu na selva.

Não a mataram durante a Operação. Tentei salvá-la. É o que eu digo ao

Eduardo. Tentei, mas havia outros planos para a nossa filha.

— A senhora é a mãe da menina desaparecida em Buenos Aires?

— Foi o que acabei de dizer. A menina entrou na casa da Rua

Villarreal com os amigos, perto do parque Castelli.

— Reconheci-a da televisão. A sua família é muito rica. Mas, se bem

me lembro, a sua casa de Caballito era bastante modesta, refiro-me à

casa onde vivia com a sua filha.

— A casa era boa. Era a que eu queria. Não vivia como eles, se é a

isso que se refere.

— A sua filha perdeu o braço durante a ofensiva?

— A minha filha saiu intacta da selva. Perdeu o braço na casa dos

meus tios.

— Teve um acidente?
— Sabe o que há nesta selva? Eu também não. Nunca percebi

completamente. É grande e terrível, voraz. A minha família venera-o há

centenas de anos. Foi o que vive nesta selva, e que agora está a dormir,

que levou o braço da minha filha e a marcou como própria. Deixou de

ser minha. Sempre quis escapar dos Bradford e, quando me apaixonei

pelo Eduardo, passei a acreditar no que ele acreditava porque era uma

maneira de me afastar deles, e uma maneira nobre, ainda por cima.

Conseguiram fazer com que eu voltasse e ficaram com a minha filha.

— Não percebo.

— Ainda bem para si.

Pensei, então, que estava desequilibrada. Mas quando se foi embora

e me deixou sozinha no meio do silêncio, apenas quebrado pelo

chapinhar dos animais na lagoa, senti uma apreensão irracional em

relação à selva e a toda aquela paisagem bela e hostil, capaz de albergar

tanto sofrimento e tanta morte. A que é que ela se referia quando dizia

que a sua família «venerava» algo terrível daqueles montes? Seria uma

metáfora ou era literal? Foi assim que terminou a primeira parte da

conversa. O encontro perturbou-me pela coincidência e pelo

desequilíbrio da mulher magra, evidente na maneira de mexer os olhos

escuros, no cabelo, que, de perto, parecia demasiado quebradiço e fino,

nas unhas descuidadas. Era uma mulher elegante e destruída. Também

fiquei perturbada com a insinuação da existência de um monstro voraz e

que relacionava com o desaparecimento da filha. Foi dar um passeio ao

sol, sem chapéu. Não a segui e regressei ao hotel, para transcrever a

entrevista. Queria fazer-lhe mais perguntas. Na lista dos membros da

Operação Itatí figurava Eduardo Álvarez (mais conhecido como Mono

Álvez). Desaparecido e companheiro de Liliana Falco (pseudónimo).

Não me tinha mentido. As metáforas que usava para compreender a

tragédia da sua vida comoviam-me, mas também me faziam estremecer,


especialmente aquela espécie de delírio místico sobre os poderes da

selva. Embora percebesse que podia enlouquecer nesse sentido. Se

fizermos uma viagem de carro por um caminho que atravesse o mato,

em Misiones, a selva torna-se uma prisão rodeada de muros e a terra

vermelha é um rio de lava. Ali, perto da lagoa, a selva parecia mais

distante. Talvez fosse por isso que os familiares escolhiam aquela aldeia,

pela sua abertura. Imaginei os corpos em camiões, a atravessar caminhos

enlameados, e depois lançados para dentro de um poço, os pássaros

noturnos calados pelo ruído dos motores. Vi, pouco antes, um altar a

São Morte. E no primeiro dia, durante a viagem de carro quando

vínhamos de Posadas, o de San Güesito, uma criança morta e venerada,

um animita, como lhes chamam no Chile. Pensei nos ossos secos pelo

calor, o calor que come a carne até não restar nada.

Encontrei Beatriz Bradford de novo, nessa noite, no corredor do

hotel. O quarto dela ficava no extremo que dava para a sala de refeições.

Estava bêbeda. Tanto, que senti compaixão ou solidariedade e a levei

para o meu quarto. Fechei a porta à chave e ela atirou-se para cima da

cama, de barriga para cima. Tive medo de que se afogasse no próprio

vómito. Não a tinha visto comer nada e acho que, de qualquer maneira,

não comia muito. Estava bêbeda, mas bastante lúcida. Queria falar.

Voltei a gravá-la.

— Ninguém se lembra da minha filha. Só você.

— Chame-me Olga.

— Olga. Que nome tão feio, é como Beatriz. A Rosario é que tinha

um nome bonito. Coitadita da Rosario. Era uma cabra, mas queria

salvar-nos e salvar-se. Era uma cabra, mas tinha amor para dar, sabes,

Olga? Ela tinha amor.

— Quem é a Rosario?
— A minha prima, a filha da Mercedes. Foi ela que me deixou entrar

naquela noite e que me disse Betty, não saias, Betty, esta noite, não, as

pessoas vão estar cá hoje, vai haver uma Cerimónia, tu sabes que não

tens de participar na Cerimónia, que não estás autorizada. Fica cá

dentro, Betty. Mas eu saí. Sou tão estúpida.

Começou a coçar os braços, a levar as unhas ao pescoço, era assim

que fazia as cicatrizes. Ficou num desespero que era terrível de se ver.

Afastei-lhe as mãos do corpo e ofereci-lhe água, mas ela preferiu um

cigarro. Obriguei-a a fumar sentada, para que não incendiasse os

lençóis.

— Saí apesar de ela me ter pedido: Betty, não. E isso cortou o braço

à minha filha. Não me peça que lhe explique o que é isso, não tem nome.

Fê-lo através do Juan, que já não era o Juan, e a luz negra tocou na

minha filha. Porque é que saí do quarto com a minha filha, Olga? Porque

é que não obedeci à Rosario? Ela sempre foi sensata. O Juan era

obscuro, mas ela amava-o, sem o amor da Rosario não sei o que teria

sido dele. Qual quê! Claro que sei. Foi ele que entregou a minha filha.

Enganou-me, disse-me que a ia salvar, que ia salvar o filho dele e a

minha filha, era esse o pacto, mas não o cumpriu. Devia ter percebido, é

que nem sequer falava comigo! Agora não me posso aproximar do filho

dele. Gaspar, é assim que ele se chama, chama-se Gaspar. É como ele,

mas não sabe, mas alguém tem de lhe contar. Queres dizer-lho tu, Olga?

A minha tia quer que ele saiba. Há muito tempo que não vejo a minha

tia. É possível fugir deles durante algum tempo, mas eles esperam,

sabem que voltaremos. Ai, não sei se vais conseguir aproximar-te do

Gaspar. Ele também o marcou, e quando o marcou afastou-o para

sempre de nós. Não o conseguem encontrar, eu também não o consigo

encontrar. Por causa da marca. A marca afasta-o. Está protegido.

Odeiam-no, sabes, Olga, odeiam o Juan porque os venceu, um pouco. É


a única alegria que tenho. Só estou viva porque eles o odeiam e porque

quero enterrar o Eduardo e dizer aos ossos dele que tomei conta da

nossa filha, mas que não a consegui afastar da minha família. Tu não és

o apelido deles, dizia-me ele. Não estás condenada a ser a exploradora.

A isso, não, mas estava condenada. Ele não sabia. Ele também tinha

amor para dar.

Deu uma grande passa no cigarro. Está na gravação. Soa como se o

tivesse fumado todo. Depois, endireitou-se na cama.

— O Juan traiu-me e trocou a minha filha pelo dele. Entregou-a. E

salvou o dele. Em troca da minha. Embora, às vezes, também pense que

a salvou, de alguma maneira. Quando ela se perdeu na casa, salvou-a. A

minha família já nunca mais a terá e não a poderá usar. Também o

odeiam por isso. Tinham planos para a Adela. Onde estará ela? E o filho

dele vive sossegado. É injusto, Olga. Posso chamar-te Olga? É injusto.

— A sua filha foi sequestrada?

— Olga, não queiras saber. Não queiras saber! Já estás em perigo por

minha culpa. Destruo tudo aquilo em que toco. Não soube tomar conta

dela. Mas o Eduardo tem de saber que a tentei salvar e não consegui,

não consegui, mas a culpa é deles e do deus negro que os guia. O deus

negro, Olga, chamavam-lhe o deus dourado, mas é negro. O Juan tinha

medo do deus. Talvez fosse decente, afinal. Eu também teria entregado o

filho dele em troca da minha. É por isso que não revelava os planos dele,

porque sabia como é que eu sou. Preferia fingir que estava louco.

Esperto, hã, fingiu que estava louco. Ele sabia que não era ninguém. O

deus vive na sombra, tem cuidado, dorme, mas está vivo.

Saiu do meu quarto a correr, foi até ao dela e trancou-se lá dentro.

Ouvi-a gritar e chorar, pedir desculpa e, creio eu, agredir-se a si própria.

Ouviam-se as pancadas secas da cabeça contra uma parede. Depois,


silêncio. A rececionista decidiu entrar no quarto e verificou que Beatriz

estava a dormir. Bêbeda, desmaiada.

— Não é a primeira vez — disse-me, e estalou a língua. — Coitada,

tem mau vinho. Não é a única, alguns dos que cá vêm também são

assim. E come como um passarinho.

— Já cá esteve hospedada?

— Duas vezes. Acho que vive aqui perto, mas não lhe pergunto.

Uma vez, trouxeram-na para cá porque se aproximou da vala, não sei

como é que passou os controlos. Foi a polícia que a trouxe. Ela foi-se

embora e pensei que nunca mais voltasse, mas voltou.

Estive para dizer à rececionista quem era aquela mulher, o que é que

lhe tinha acontecido, mas calei a boca. Nunca me pediu discrição nem

segredo, mas não quis espalhar a história dela. Considerei que tinha

autorização para a escrever, como estou a fazer agora.

Apesar de ter pensado que não seria capaz de dormir, consegui e

nem sequer tive pesadelos, que me lembre, embora tenha acordado toda

transpirada. Houve um corte de luz e a ventoinha do teto deixou de

funcionar. Tomei um duche demorado. A água quente acabava depressa,

mas a água fria, passado o primeiro sobressalto, animou-me.

Cheguei tarde ao pequeno-almoço. Beatriz Bradford não estava na

sala. A rececionista disse que se tinha ido embora de madrugada, no

carro dela.

— Acho que só volta daqui a uns meses — disse-me. — Às vezes,

quando bebe muito e faz algum estrago, parte antes do tempo. Fica com

vergonha. É uma mulher fina.

Ainda fiquei durante alguns segundos com a rececionista. Não sei

porque é que pensei que me podia ter deixado qualquer coisa. A morada

dela, o telefone, mas não. Passei o dia a conhecer os familiares recém-


chegados e, à noite, reservei um voo de Posadas para Buenos Aires. Não

voltei a Zañartú nem ao poço.

A MENINA ESQUECIDA

Em Buenos Aires, escrevi a crónica sobre o poço, a última de uma série

sobre a Operação Itatí e a repressão nas plantações de erva-mate do

Litoral, próximas da fronteira. Esta crónica, no entanto, é diferente:

pertence a uma escrita mais íntima, menos ligada à informação e à

História. O encontro com Beatriz Bradford impressionou-me de tal

maneira que, depois de entregar o artigo, me dediquei a confirmar a

identidade dela, a verificar se era mesmo a mãe de Adela Álvarez.

Não me mentiu. Os artigos da imprensa sobre o caso de Adela

Álvarez não são muitos, mas remeto os leitores para o de Guillermo

Triuso publicado na Panorama dois meses após o desaparecimento

(Revista Panorama, n.º 139, «O desaparecimento de Adela», 27 de

novembro de 1986). É um documento único porque cita os documentos

do processo, que estavam arquivados na cave do Tribunal, mas que se

perderam pouco tempo depois, insolitamente por se tratar de um caso

ainda não findo, na inundação de 1987. Eram apenas dois volumes, nada

de extravagante. Prestaram muito pouca atenção à menina e às suas

circunstâncias, bem como às declarações prestadas pelos menores, Pablo

Fonzi, Victoria Peirano e Gaspar Peterson, que não eram contraditórias

entre si, mas muito fantasiosas. Apesar de já não existir um processo

judicial que contenha a declaração de Gaspar Peterson, o testemunho

que deu à polícia ainda se conserva na 5.ª Esquadra de San José de

Flores, e nele consta o seu nome completo e filiação. Beatriz Bradford

não me mentiu: os pais do rapaz eram Juan Peterson e Rosario Reyes


Bradford. Ambos falecidos. Foi adotado legalmente pelo tio, Luis

Peterson. A declaração inclui uma descrição dos factos ocorridos na

noite do desaparecimento. Segundo o testemunho das crianças, entraram

na casa e permaneceram numa das divisões durante cerca de quarenta

minutos: passaram o resto do tempo a tentar abrir a porta pela qual a

menina desapareceu, que ficou hermeticamente fechada. Deram-se por

vencidos após quase uma hora. Então, saíram e avisaram os pais de

Victoria Peirano, que fizeram a denúncia à polícia.

Os três disseram, resumidamente, que no interior da casa havia luz,

que era enorme, que tinha prateleiras com restos humanos dispostos

como bibelôs: dentes, ossos e unhas. Adela entrou numa divisão, fechou

a porta atrás de si e nunca mais a conseguiram abrir. Victoria estava

convencida, como declarou o oficial, de que alguém na casa tinha

fechado a porta à chave. Os polícias demoraram mais de cinco horas a

chegar à casa, já de madrugada. A partir daí, é só despropósitos. A juíza

Carmen Molina ordenou uma série de rusgas nos dias seguintes nas

casas vizinhas, inclusivamente na de Adela Álvarez. É estranho que não

tenha ordenado a revista da casa de Juan Peterson. Até ao dia de hoje,

ainda não há suspeitos, nem qualquer pista, sobre quem levou Adela

Álvarez, se é que alguém a levou. Entre a denúncia e a apresentação dos

agentes no local do crime, um ou mais sequestradores tiveram tempo de

eliminar todas as provas. As declarações das crianças são incríveis e

foram incluídas, a modo de citações, na investigação do meu colega para

a Panorama: recomendo ao leitor que consulte o seu trabalho.

Infelizmente, Guillermo Triuso saiu da Argentina no início de 1988

devido à situação económica e agora é jornalista no México. Telefonei-

lhe para lhe pedir mais pormenores e ele foi muito amável comigo, mas

disse que o assunto estava arrumado para ele. O que referiu, no entanto,

durante a nossa conversa telefónica, foi a perplexidade que sentiu


quando leu as declarações das crianças em relação às dimensões da casa.

A casa da Rua Villarreal, n.º 525, tem 40 metros quadrados, 44, mais

exatamente, mais 10 extra se contarmos com o pequeno jardim da

entrada e o pátio das traseiras que inclui um abrigo muito simples,

segundo a planta original, disponível nos arquivos municipais. A

distribuição da casa, além disso, era muito simples: uma assoalhada para

vários fins na entrada, uma cozinha com uma zona para as refeições

diárias, um quarto e uma casa de banho. As crianças falavam de divisões

enormes, de corredores e vários quartos. Não há dúvida de que entraram

naquela casa e não noutra. Ou seja: declararam que era muito maior por

dentro do que por fora, uma impossibilidade física. Além do mais,

quando os polícias lá entraram, constataram que a parede que separava a

sala do quarto tinha sido derrubada. E também as paredes da casa de

banho, que estava à vista. As pilhas de entulho permaneciam dentro da

casa e só uma parte estava acumulada no pequeno pátio das traseiras. A

casa encontrava-se à venda como terreno: estava devoluta. Não tinha

eletricidade, embora as crianças assegurassem que havia luz, e não tinha

nenhuma porta: tanto a da casa de banho, como a do quarto, tinham sido

retiradas. A casa estava à venda, embora ainda não tivesse nenhuma

placa: uma imobiliária oferecia-a em privado e pertencia à família

Ordóñez; o filho dos donos também prestou declarações, mas o

testemunho dele é irrelevante: há anos que não ia a Buenos Aires; ele e a

irmã tinham-se mudado, por questões de negócios, para Córdoba del

Tucumán. Depois da morte da mãe, tinham posto a casa à venda. Não

havia motivo para suspeitarem deles, tinham um álibi irrefutável.

A juíza confrontou as crianças com a esta informação e as crianças,

como consta no artigo de Triuso da Panorama, embora se tenham

mostrado surpreendidas, mantiveram o seu testemunho.


O RAPAZ MARCADO

Um caso arquivado, como dizem os penalistas, e é um assunto velho

para os jornalistas. Não podia regressar para procurar Beatriz Bradford,

pelo menos por enquanto. Questões profissionais e pessoais retinham-me

em Buenos Aires. Consegui falar com a mãe de Eduardo Álvarez, que

me pediu que fosse discreta. Tinha dado uma amostra de ADN para

identificar o filho, mas não militava em nenhuma organização de direitos

humanos. Estava zangada com a nora e com o filho e acreditava que o

desaparecimento da neta, que só via de vez em quando («a culpa é da

Beatriz, que é má pessoa»), podia estar relacionado com a militância do

filho. Não consegui extrair mais nada dela, exceto a promessa de uma

entrevista que não se veio a realizar.

Não tive acesso à família de Beatriz. Após um telefonema para os

escritórios deles, recebi imediatamente a resposta de um advogado: se

insistisse, seria denunciada por assédio. O tom do advogado era

ameaçador. Seria possível que Beatriz vivesse com a mãe? Algumas das

minhas fontes com acesso a informações sobre a família Bradford

disseram-me que quem tomava conta dela era a mãe. Insisti por outas

vias, mas aceder aos Bradford era extremamente complexo: a cada

tentativa minha, era logo contactada pelos seus advogados. As chamadas

eram sempre atendidas por secretários gélidos. As propriedades deles

estavam vigiadas. A família é um país dentro do país.

Entretanto, queria falar com alguma das crianças que tinham entrado

na casa com Adela. Já não eram crianças, de resto. Mas não foi assim

tão simples. Os pais de Victoria Peirano não me quiseram receber e a

mãe, por telefone, disse-me que a filha tinha superado a muito custo o

que acontecera e que não precisava, de todo, que eu a obrigasse a

recordar tudo de novo tantos anos depois só para satisfazer a minha


vaidade. Tentei dizer-lhe que isto não tinha nada a ver com a minha

vaidade, mas ela desligou o telefone. Obtive uma resposta semelhante da

família Fonzi, embora, curiosamente, me tenham dado a morada de

Gaspar Peterson, o terceiro rapaz, que vivia com o tio. Deram-ma com

uma certa displicência, como se não lhes importasse. Mas não me deram

o telefone dele, que também não estava na lista telefónica. Decidi fazer-

lhe uma visita. Vivia em Villa Elisa, um subúrbio de classe média

situado perto de La Plata.

Villa Elisa é uma pequena cidade na qual é difícil alguém perder-se.

As ruas estão numeradas: de norte a sul, vão da rua 31 à 1, e de este a

oeste, da 32 à 60. Curiosamente, as avenidas e as ruas maiores estão

numeradas do 403 ao 426, mas esta aparente dificuldade é rapidamente

esclarecida por um mapa. Além disso, os serviços municipais são

eficientes e todas as ruas têm o seu número indicado nas esquinas. A

casa de Luis Peterson ficava no cruzamento da rua 6 com a 43, perto da

estação de comboios. Fui até lá de carro e rapidamente descobri para

onde me devia dirigir.

E é aqui que começa algo que não compreendo e que me levou a

abandonar a investigação. O que me fez renunciar ao caso e ao meu

instinto jornalístico e me fez suspeitar de que me encontrava no início de

uma história que não queria conhecer. Porque o que aconteceu naquela

tarde, e na seguinte, é impossível.

Não consegui encontrar a casa. Não estou a dizer que me perdi.

Chegava ao cruzamento das ruas 6 e 43, virava para a 6 e procurava o

número 147. A morada era rua 6, n.º 147. Não havia dúvida nenhuma

quanto a isso. Perguntei aos vizinhos. Todos conheciam o senhor Luis

Peterson. Era arquiteto, informaram-me. E também Gaspar. Um amor de

rapaz, como o descreveram. Todos me indicavam o mesmo caminho,

simples. Mas sempre que eu entrava na rua 6, os números não


coincidiam. Eram o 451, 453, 455… e depois, quando retrocedia,

apercebia-me de que tinha virado noutra rua. Na 7, quase sempre. E

também na 8, na 43, na 44. Tentei lá ir de táxi, mas o taxista enjoou

assim que virou a esquina e vomitou em cima do volante. Achei que

estava bêbedo e discuti com ele, mas o homem disse-me que nunca

bebia durante as horas de expediente e que tinha sentido uma dor de

cabeça repentina que o assustou, como se fosse «um derrame cerebral».

Desisti nessa tarde. Havia qualquer coisa estranha no ar ou na minha

cabeça: a sensação pantanosa daqueles pesadelos em que não

conseguimos gritar ou caminhar, os sonhos em que temos a certeza de

que a casa da qual não conseguimos sair se encontra ocupada por algo

que está escondido.

Regressei no dia seguinte, enfrentando os meus medos.

Nesta segunda ocasião, experimentei pedir ajuda a um vizinho.

Contei-lhe a verdade, que não era capaz de dar com a casa. O homem

ofereceu-se para me ajudar e lá fomos. Perdemo-nos. Duas vezes. O

homem irritou-se um pouco, estava contrariado: sentia, creio eu, essa

realidade dos sonhos. «Desenrasque-se sozinha, minha senhora, que eu

não tenho o dia todo.» Tentei mais algumas vezes, mas recordei as

palavras de Beatriz Bradford. Não vais conseguir encontrá-lo. Ele

marcou-o. Não vais conseguir. Apercebi-me, com a lucidez da

irracionalidade, que estava a ser impedida de encontrar a casa do

cruzamento da 6 com a 43. Não compreendo porquê. Passei algumas

horas na esquina, acreditava que, se esperasse tempo suficiente, veria

algum deles. Não aconteceu e, além disso, não sabia que aspeto teriam:

aqueles a quem perguntei indicaram-me que fosse à casa do cruzamento

da 6 com a 43. Um deles deu-me o telefone. Telefonei de uma cabina

telefónica. No início, dava sinal de ocupado. Depois, saltou para um

atendedor de chamadas. Quando voltei para a rua, senti medo e


impotência, e resolvi regressar. Para a próxima, voltaria com um colega

fotógrafo para documentar aquele percurso estranho, ou para encontrar,

finalmente, a esquiva casa.

A terceira tentativa também foi um fracasso. Fui de comboio até

Villa Elisa. A linha Roca tinha uma má fama justificada: janelas sem

vidros, muitos assentos destruídos, repetidos roubos nalgumas estações

das localidades mais pobres e uma quantidade inaudita de vendedores

ambulantes e de artistas de rua. Na estação Hudson, em geral uma das

menos frequentadas, vi um mendigo a percorrer as carruagens. Havia

sempre tantos mendigos, que este não me devia ter chamado a atenção,

mas não consegui deixar de reparar nele. O homem não tinha um braço.

A coincidência com a falta de um braço de Adela desconcertou-me.

Tentei acalmar-me. Havia muitos mendigos amputados. Muitos. Nunca

sentira medo de nenhum e não tinha razões para estar assustada. As

pessoas mutiladas, se forem pobres, têm muitas dificuldades de inserção

na sociedade.

O homem vendia canetas. Anunciava-as como se fossem as melhores

do mercado a um preço insólito. As pessoas compravam-nas: tinha

qualquer coisa de amável, simpático, carismático. A minha aversão

crescia. E, quando ele se aproximou do meu lugar — que eu não

partilhava com ninguém: a pessoa que viajava ao meu lado saiu na

estação Pereyra —, o homem parou. Guardou as canetas que oferecia

numa pequena mala que carregava ao ombro. Percebi que estava bem

vestido: uma camisa de manga curta de boa qualidade, calças com

bainhas de pele ou de napa para que não se sujassem no chão e durassem

mais tempo, um relógio digital novo e o cabelo limpo, bem penteado. De

perto, não parecia um vendedor ambulante. Se tivesse uma prótese,

passaria por alguém que trabalhava num escritório.

— Todos queremos vê-lo. Mas não vai conseguir — disse.


— Como? — respondi, e a adrenalina fez-me puxá-lo pelo ombro.

Não queria que se fosse embora. Não foi.

— Não faz sentido.

Olhámo-nos nos olhos. Os dele eram castanhos, grandes. Tinha o

cabelo branco bem penteado.

— Quem? — perguntei.

— A senhora sabe quem. Não vai conseguir aproximar-se dele. Não

pode interferir. Deixe-o.

Olhou fixamente para mim, mas o seu rosto não denotava nada. Era

inescrutável. Saltou do comboio ainda em movimento, embora lento, e

vi-o afastar-se rapidamente no cais. Desci do comboio disposta a segui-

lo. Não reparei em que os atacadores de um dos meus ténis estava

desatado. E, lentamente, caí entre o cais e a carruagem, naquele espaço

terrível tão próximo dos carris e das rodas do comboio. O cheiro a metal

quente inundou-me a boca: gritei e o meu grito foi ouvido, apesar do

barulho das rodas a chiar. Não é verdade que, quando estamos perto da

morte, vemos passar a vida à nossa frente. A única coisa que se sente é

um medo atroz e pena, pena pelo que ficou por fazer, pelos filhos, pela

própria estupidez, pelo desperdício, mas, sobretudo, medo.

O comboio deteve-se mesmo antes de me atropelar. A menos de um

centímetro. O chefe da estação chamou uma ambulância e tiraram-me da

armadilha. Estava convencida de que o comboio voltaria a arrancar, mas

não queria mexer-me, não fosse o mais leve movimento aproximar a

minha barriga da roda de metal. Quando conseguiram tirar-me de lá, e

digo conseguiram porque, curiosamente, resisti, fiquei sentada no cais, a

chorar, enquanto os médicos me observavam. Ilesa, mas assustada, jurei

que abandonaria a investigação que tinha começado ao pé de um poço

de ossos.
Não sei quem era o homem do comboio. Pensei em denunciá-lo, mas

o que diria? Podia ter tido uma alucinação. Pergunto-me se a

impossibilidade de encontrar a casa e o encontro com aquele homem

não são parte da mesma alucinação, ou se, pelo contrário, se trata de um

plano cujas regras desconheço. Mal posso sair de minha casa sem olhar

por cima do ombro. Receio, inclusivamente, que o homem sem braço

leve a minha filha, que tem a idade de Adela quando desapareceu. Ponho

um ponto final nesta crónica hesitando quanto à sua publicação.

25 Grupo de rebeldes do exército argentino responsável por diversos golpes militares entre 1987

e 1990, durante as presidências de Raúl Alfonsín e Carlos Menem. Costumavam pintar o rosto

para se camuflarem, daí o nome. (N. da T.)


As flores negras que crescem no céu,

1987-1997

«One need not be a Chamber — to be Haunted»

EMILY DICKINSON
LUIS PETERSON MUDOU-SE PARA UMA QUINTA descuidada que comprara

barata com o dinheiro que poupou no Brasil; uma casa em Villa Elisa,

perto de La Plata, que estava em muito mau estado, mas era bonita, e

Luis queria recuperá-la e, por isso, pôs-se a trabalhar obsessivamente na

reconstrução da casa e na reconstrução de Gaspar.

O rapaz estava revoltado e, quando não estava revoltado, estava

deprimido, com uma depressão adulta que o prendia à cama. Não

conseguia ir à escola. Mal comia, apenas uns lanches em que dava

muitas voltas às sanduíches de presunto (só conseguia comer isso:

presunto e queijo em minibaguetes) e chorava lágrimas pesadas que

deixavam pequenos charcos na mesa de madeira, como as primeiras

gotas espessas de uma chuva de verão.

O tratamento com a primeira psicóloga foi um desastre. Ela

recomendou um psiquiatra; disse a Luis que achava que Gaspar sofria de

esquizofrenia. Foram ao psiquiatra, que confirmou o diagnóstico e

receitou comprimidos. Gaspar só os tomava às vezes; outras, vomitava-

os. As dores de cabeça faziam-no contorcer-se na cama. Discutia com o

psiquiatra e gritava ao tio que nunca mais o queria ver, que o iam

internar, que era óbvio que se queriam desfazer dele. Porque é que dizem
que não consigo distinguir o que é real?, gritou-lhe uma noite, na

cozinha, com gelo envolto num lenço apoiado nas fontes para mitigar a

enxaqueca. O psiquiatra combinou uma entrevista com os peritos do

tribunal, que mal examinaram Gaspar e aceitaram o seu diagnóstico sem

reservas: a entrevista só durou cinco minutos. Enquanto continuasse a

insistir em que o interior da casa era diferente do exterior, não haveria

muitas hipóteses de contar com uma segunda opinião. O mesmo não

acontecia com as outras crianças e Luis adivinhava porquê: Gaspar era o

que vinha de uma família estranha, era o filho do viúvo, o rapaz que se

estava a criar sozinho. O rapaz esquisito. Os outros, como disse a juíza,

limitaram-se a imitá-lo.

Na tarde em que Luis encontrou uma faca debaixo do colchão de

Gaspar quase concordou com os médicos e teve medo. Mas chamou-o,

pôs a faca em cima da mesa, entre ambos, e perguntou-lhe porque é que

a tinha escondido. Gaspar suspirou, mas não chorou. Para me matar,

disse. Ainda não decidi se é melhor espetá-la no pescoço, e apontou para

a jugular, ou aqui, no peito. Mas parece-me mais difícil, por causa do

osso. Luis não o conhecia muito bem, mas percebeu que não estava a

mentir, que não pretendia usar a faca para o matar a ele ou a outra

pessoa. Nessa mesma tarde, depois de esconder a faca, decidiu falar com

Julieta, a mulher que conheceu assim que chegou ao Brasil, uma amante

jovem e imprevista que estava rodeada de amigas psicólogas. Há meses

que não a via, desde que teve de mudar-se para a casa de Juan. Ela

entendê-lo-ia, pensou. Deixou Gaspar com o Negro Sánchez, um

camarada da militância dos anos setenta, ex-delegado sindical, como ele,

um dos seus melhores amigos antes do exílio que agora vivia perto dele;

ajudara-o a encontrar aquela casa barata. Luis confiava mais no Negro

Sánchez do que em qualquer outra pessoa no mundo.


Num bar de La Plata contou tudo a Julieta. Que o juiz lhe dera a

custódia de Gaspar: agora era, tecnicamente, seu filho. Falou-lhe da faca

que estava debaixo da cama e de como Gaspar lhe dissera que queria

morrer, que não queria viver estando louco. Que lhe fora diagnosticada

esquizofrenia. Ele insiste que não está louco. Disseram-me que é normal

que o negue, que não distingue a realidade das suas próprias

alucinações. Mas, não sei porquê, Julieta, eu acredito nele. Sei que é um

disparate, é uma criança, como é que há de ter mais razão do que os

médicos. Mas ele é muito racional. Fala como um velho.

Contou-lhe o que sabia sobre os últimos anos do irmão. Falou-lhe da

morte de Rosario, do psiquiatra e de como Gaspar não conseguia ir à

escola, porque os comprimidos lhe provocavam dores de cabeça e um

cansaço brutal, e lá estava ele, com os seus treze anos, sem fazer nada

durante todo o dia, a pensar em si mesmo, batendo com a cabeça contra

a parede quando não conseguia suportar a culpa que sentia em relação à

sua amiga Adela; é obsceno, disse Luis a Julieta, é um espetáculo

obsceno num rapaz da idade dele.

O que é que queres que eu faça?, disse ela.

Quero que o conheças e que me ajudes a procurar uma profissional

adequada para ele, não este filho da puta que só quer dar-lhe

comprimidos, interná-lo e sei lá mais o quê.

Vamos agora, disse ela, leva-me. Jantemos juntos. Uma coisa

normal. Não percebo porque é que o deixaste com o Negro. Não há

ninguém mais leal do que o Negro, disse Luis. Acredito que sim, mas

não sabe tratar de um rapaz com problemas. Ninguém sabe, disse Luis.

No caminho, falaram de política, para desanuviar; foi por isso que se

conheceram, ele evitava falar sobre a sua situação familiar nos primeiros

encontros. Luis ainda estava aborrecido com a vitória de Menem nas

primárias. O Alfonsín vai antecipar as eleições, disse ela, e o Menem


será presidente: vais ter de conformar-te. Ela apoiara o governador de La

Rioja nas primárias. Com o que nós vamos ter de nos conformar é com o

desastre que serão os próximos meses; felizmente, tenho dólares, e o

Gaspar recebe uma pensão mensal também em dólares.

A casa de Villa Elisa, com o seu telhado vermelho e as paredes

brancas, parecia e estava bastante arruinada. Levaria muito tempo a

recuperar se a economia não melhorasse, mas Luis conseguira remodelar

a cozinha. O quarto de Gaspar estava em bom estado, embora o soalho

tivesse de ser substituído ou de ser encerado e polido durante meses. O

pior era a humidade, as infiltrações, mas, por agora, o dinheiro não

chegava, e não havia nada a fazer. Depois de um bom contrato, graças ao

qual comprara a casa, não conseguira arranjar novamente trabalho.

Ainda lhe restavam algumas poupanças e, finalmente, o moroso

processo de divisão do dinheiro com a ex-mulher, no Brasil, estava

concluído. Arranjar trabalho, em março de 1987, era uma loucura. Tal

como arranjar uma boa psicóloga. Andava toda a gente assustada,

empobrecida, apenas preocupada consigo própria.

Gaspar e o Negro Sánchez estavam na cozinha a fazer massa de

pizza. Luis sentiu um alívio visível — relaxou os ombros, descontraiu os

dedos da mão esquerda, que apertava sempre, inconscientemente, num

punho — quando viu Gaspar a polvilhar a farinha e a levantar a cabeça

quando o viu chegar. Era apenas uma lufada de normalidade, ele sabia;

mas eram lufadas tão limpas, tão frescas, que ficava cheio de esperança

quando via Gaspar com ar saudável ou a sofrer um pouco menos.

O Negro Sánchez cumprimentou Julieta e olhou para eles com

curiosidade; Luis fez-lhe um gesto com a cabeça que tanto podia

significar tem paciência, como cala a boca. Foi com Julieta até ao jardim

para lhe mostrar os progressos. Era um jardineiro amador, mas muito

bom.
Nesta família são todos lindos, disse ela. O puto parece saído de um

conto de fadas.

Agarrou na cara de Luis e beijou-o, mas não disse mais nada. Ele

apercebeu-se, no entanto, de que ela não estava zangada, de que agora

percebia porque é que fora obrigado a não a ver durante tanto tempo,

percebia que estava atolado em problemas. Comeram a pizza na cozinha:

era março, mas já se sentia um pouco de frio. Gaspar conseguiu comer

uma fatia e meia — Luis contava-as obsessivamente — e fez muitas

perguntas, da forma direta, um pouco brutal, com que o fazia às vezes e

que alternava com os períodos de mutismo.

— És a namorada do meu tio?

— Já não nos vemos há muito tempo.

— O que é que aconteceu? Foi por minha causa?

— Tu não tens culpa de nada, Gaspar, por favor — disse Luis.

— É normal que ela não queira estar contigo, agora que tens de

tomar conta de mim.

— Eu não sabia grande coisa sobre a história dele contigo —

explicou Julieta, a sorrir. — O teu tio deixou-me antes de me explicar

como era. Fica descansado, os homens não sabem gerir duas crises ao

mesmo tempo.

— Em que é que trabalhas? Trabalhas?

— Sou advogada. Mas não sou uma filha da puta.

— Os advogados são quase todos uns filhos da puta, não é?

— Infelizmente, sim.

Depois, Gaspar ligou a televisão e deixou de lhes prestar atenção.

Julieta experimentou conversar sobre outra coisa, mas as respostas já

eram telegráficas.

— O que é que estás a ver?

— Nada.
— Gostas de ver televisão?

— Não gosto de nada.

— Toda a gente gosta de alguma coisa.

— Eu não.

— Então, tens de gostar de alguma coisa. Diz lá, ou não te deixo em

paz.

Gaspar olhou para ela e Julieta pensou que, passados uns anos,

depois de crescer tudo o que tivesse de crescer, e se a adolescência não o

deformasse demasiado, aquele olhar enlouqueceria as mulheres, ou os

homens, no caso de o rapaz preferir estes últimos. Ou quem quer que

fosse.

— Gosto de nadar. E de correr também, e de jogar futebol.

— O teu tio sabe?

— Não sei se lhe disse. Acho que não.

— E porque é que não nadas, se gostas? Neste bairro há vários

clubes com piscina.

— Porque me sinto cansado o dia todo.

E, com isto, deu a conversa por terminada e aumentou o volume da

televisão. Julieta foi até à cozinha, para ajudar. Nessa noite, ficou a

dormir com Luis, que se levantava várias vezes para fumar no pátio e,

quando voltava ao quarto, parava sempre durante uns segundos diante do

de Gaspar.

Custou muito convencer Gaspar a ir a outro psiquiatra. Segundo quem a

recomendara a Julieta, tratava-se de uma especialista em rapazes com

muitos problemas — especialista em psicóticos, embora essa palavra

não fosse mencionada — e era irmã de um pediatra famoso de La Plata,

26
uma mulher de esquerda, muito gorila , muito doce. Luis quis conhecê-

la antes de pedir uma consulta para o sobrinho: gostou de tudo, da casa,


com a sua escada de madeira, dos sóbrios objetos de decoração que

estavam em cima da mesa — peças de artesanato, fotografias da família

—, dos gatos, que se limitavam a entreabrir os olhos quando detetavam

algum movimento, e, sobretudo, gostou dela, baixinha e um pouco

marreca, uma mulher com mais de sessenta anos que o abraçou como se

já o conhecesse e pareceu compreendê-lo imediatamente: não foi

necessário falar das semanas de ressaca do primeiro tratamento falhado,

de Gaspar a gritar que via Adela pelos cantos da casa ou o pai ao lado

dele, na cama, com a cabeça na mesma almofada que ele, umas vezes

morto, outras vezes vivo, mas a primeira coisa que acontecia quando o

dia começava eram aqueles gritos e, de vez em quando, a imobilidade

total na cama de olhos abertos e pupilas dilatadas. Luis falava com ele e

o rapaz não dizia nada, não o ouvia, pestanejava e franzia o sobrolho,

estava noutro lado.

— O outro psiquiatra disse-me que as alucinações podem ser

comuns após um trauma.

— Isso é o que vamos avaliar, continue a falar. Ter presenciado o

desaparecimento da amiga é brutal. O Gaspar fala da morte?

— Diz que, se estiver louco, não faz sentido viver.

— Acabou de me contar que encontrou uma faca que ele tinha

escondido debaixo do colchão e que falou de suicídio.

— Tem trezes anos, não sei se o hei de levar a sério ou não.

— Os adolescentes suicidam-se com frequência.

Também falaram de como fazer para iniciar um novo tratamento e

abandonar o outro psiquiatra. Deixe que eu trato disso, eu conheço-o,

todos nos conhecemos, nesta profissão. É para o bem do Gaspar que o

médico esteja perto da casa dele e que não tenha de ir até Buenos Aires

duas vezes por semana. Uma má relação com o médico pode provocar
crises desnecessárias. Deixe isso comigo. Não haverá problemas legais,

também conheço o sistema, já trabalhei para algumas instituições.

— E a medicação? O Gaspar diz que não lhe faz nada e ainda se

sente pior.

A psiquiatra hesitou.

— Vamos baixar a dose — disse. — A primeira entrevista não é

suficiente para fazer um diagnóstico, mas dá para tentar outra

abordagem. Também não quero que o obrigue a vir a estas sessões. Ele

precisa de vir, mas finja que não o está a obrigar. Insista. Faça-o sentir

que se preocupa com ele. Insista todos os dias.

Insistiu tanto, que ficou esgotado: com o choro de Gaspar, a

violência dos seus gritos. E isso não foi o pior, nem a horrível magreza

de Gaspar que, pensava Luis, se o país não fosse um inferno de apagões,

protestos, hiperinflação e eleições antecipadas, e porque ninguém do

tribunal os visitava (estariam em greve?), teria sido causa suficiente para

uma intervenção urgente de uma assistente social. O pior foi quando,

depois de uma discussão estranha, quase silenciosa, Gaspar decidiu

voltar para o quarto — como todos os dias, passava demasiado tempo

deitado, na cama ou no sofá da sala — e ficou à porta, imóvel. Luis viu,

do corredor, o rapaz a ficar sem força nos joelhos, e correu em seu

auxílio para evitar que caísse ao chão. Não desmaiou, mas transpirava,

apesar de estar bastante frio naquela tarde de outono, e Luis, ao abraçá-

lo, sentiu o corpo em convulsões.

— O meu pai está no quarto, não entres — disse o rapaz.

Luis pegou nele ao colo. Pesa menos do que uma cadeira, pensou, e

levou-o para o jardim porque não lhe ocorreu outra coisa; mas não

conseguiu evitar espreitar rapidamente para dentro do quarto, pela porta

que ficara aberta, e julgou ver a estatura intimidante, inconfundível, do

irmão mais novo, um reflexo de cabelo louro e os ombros largos, os


dedos compridíssimos da mão, os braços pendurados ao lado do corpo.

Embalou o rapaz, que estava sentado no banco do jardim, assustado.

Vais ficar bem, repetia, vais ficar bem, até que o rapaz o interrompeu,

inesperadamente.

— Deixa de mentir.

— Vais ficar bem, Gaspar, eu vou ajudar-te.

— Era ele. Prefiro quando é ele que vem. A Adela vem de noite.

Acena-me com a mão. Comeram-lhe a cara.

— Não há ninguém cá em casa, só cá estamos nós os dois.

O silêncio reforçou as suas palavras. Ao longe, ouvia-se o barulho de

algum vizinho a cortar relva. E também o burburinho de uma televisão,

alguns pássaros. Ainda havia sol. O dia estava lindo. As rosas amarelas

balançavam discretamente ao sabor da brisa: Luis conseguira ressuscitar

as roseiras do pátio. O facto de Gaspar não conseguir fruir daquela tarde

parecia uma injustiça a Luis. E disse-lho. Falou-lhe da escola onde

pensava matriculá-lo, de como os imaginava a remodelarem a casa e o

jardim juntos, da vontade que tinha de voltar a trabalhar e de um clube

que ficava perto dali onde poderia voltar a praticar desporto, se quisesse.

Não sabia se o rapaz o conseguia ouvir, também não percebeu quando

adormeceu, mas acabou por levá-lo para o sofá da sala e esperou,

sentado, em silêncio, até acabar por adormecer também, e sonhou com

corredores e grades e o mar. Quando acordou, Gaspar olhava para ele, na

semipenumbra; as luzes do jardim estavam acesas, a casa estava repleta

de sombras.

— Não estás desconfortável, aí?

— Amanhã vai doer-me tudo.

Gaspar sentou-se com o cobertor nos ombros.

— Essa médica dá consultas amanhã? — perguntou.


Luis apercebeu-se de que gostava imenso do sobrinho quando o viu

entrar no consultório de Isabel, a psiquiatra; antes de a porta se fechar,

olhou para ele e Luis fez-lhe um aceno tonto com a mão, que Gaspar não

devolveu. Nunca se sentira tão desamparado como naquela altura, nem

quando se viu obrigado a partir para o exílio ou quando, já na sua casa

do Brasil, lhe chegavam notícias das detenções e dos assassínios de

alguns colegas e amigos seus. Tudo isso foi monstruoso, mas o olhar de

Gaspar era pior. Imaginou várias noites que o encontrava morto na

banheira, sonhou que ele aparecia coberto de sangue e, outras vezes, que

morria, simplesmente, durante o sono.

Gaspar surgiu com a psiquiatra a rodear-lhe os ombros com o braço.

A consulta demorou imenso tempo, quase duas horas.

— Voltamos a ver-nos na sexta-feira? Eu e o Gaspar decidimos que

temos de ver-nos duas vezes por semana. Se fizer falta, até podem ser

três vezes.

Luis esperava que a psiquiatra o convidasse a entrar, mas ela

despediu-se de ambos com um beijo e disse pagam-me a próxima.

E foi tudo.

Já no carro, Gaspar limitou-se a dizer acho que esta é melhor do que

o outro.

Finalmente, a mãe acabou por deixá-la telefonar para a casa onde o

Gaspar vivia agora com o tio. Porque é que o levou assim, sem avisar? O

Gaspar tem problemas, filha. O quê? Todos temos problemas. A Adela

desapareceu ou mataram-na, não sei, naquela maldita casa assombrada,

e agora também levaram o Gaspar.

E Victoria chorava e não conseguia dormir e a mãe ligou ao tio de

Gaspar e contou-lhe a situação e ele contou-lhe a sua e continuaram a

falar.
— O tio prometeu-me que nos vamos manter em contacto um com o

outro. Combinei com ele telefonar-lhe uma vez por semana. Não há

problema. O Gaspar está a seguir um tratamento.

— Um tratamento para o quê?

— Vicky, tu também andas no psicólogo, é a mesma coisa.

— Não é a mesma coisa se não o posso ver.

— O Gaspar está pior do que tu.

— Ele não está maluco.

— Hão de ver-se um dia destes, mas só quando ele estiver melhor.

— Porque é que pensam que lhe vou fazer mal?

E a mãe abraçava-a, mas não lhe dava mais explicações. E Vicky via

Adela pelo menos uma vez por semana, mas de relance, como uma

sombra mesmo atrás das costas, mas quando se virava, não estava lá

ninguém. Falou com Pablo e ele, depois de a ouvir na fresca sala de sua

casa, que a Victoria parecia tão silenciosa, foi até à estante, tirou um

livro pequeno de capa verde e leu-lhe: «O Hidebehind está sempre atrás

de qualquer coisa. Por mais voltas que um homem dê, está sempre atrás

dele, e é por isso que nunca ninguém o viu, embora tenha matado e

devorado muitos lenhadores.»

— Por que raio é que me leste isso?

— Porque me fez lembrar este texto. É do Borges.

Mostrou-lhe a capa do livro.

— É um conto?

— Não, não é um conto, é uma lenda. Uma lenda dos Estados

Unidos, diz aqui.

— Pablo, és mesmo deficiente. Venho cá para te contar o que tenho e

tu vens-me com o Borges e essas merdas.

Foi-se embora zangada, ignorando as desculpas de Pablo e a pensar

que também ele estava maluco. A pensar que Gaspar a perceberia. Como
é que eu lhe posso fazer mal, perguntou depois à mãe. Sou a melhor

amiga dele. Dá-me o telefone dele, não sejas filha da puta.

— Voltas a dizer isso e dou-te uma tareia.

— Estás sempre a dizer-me isso, a mesma merda de sempre, dou-te

uma tareia, que me dás uma tareia. Dá-me o telefone dele!

— Será possível falar sem dizer asneiras nesta casa? — disse o pai

de Victoria, saindo da cozinha com uma chávena de café na mão e o

jornal debaixo do braço.

— Hugo, não te metas.

Ele voltou para a cozinha e bateu com a porta.

— Eu dou-te o telefone, mas o Luis não te vai deixar falar com o

Gaspar. Podes falar com ele.

Arrancou-lhe o papel onde estava apontado o número da mão da mãe

e telefonou: tinha os dedos a tremer, custou-lhe marcar no telefone novo.

Luis foi muito amável com ela e explicou-lhe que Gaspar estava doente,

que precisava de tempo.

— Tempo para quê?

— Para recuperar.

— Eu nunca vi o senhor com o Gaspar. Quando vivia com o seu

irmão maluco e superdoente, ele estava sempre sozinho. Eu e o Pablo

íamos buscá-lo. E o senhor, onde estava? Quem é que julga que é? Não

sei o que andava a fazer nessa altura. Nós somos amigos. Tenho

saudades dele e de certeza que ele também tem de mim.

Silêncio do outro lado. Velho jarreta, pensou Victoria.

— Mas agora está à minha responsabilidade. Estou a tomar conta

dele e a psiquiatra diz que, para já, para o bem dele, é melhor que se

mantenha afastado, não de vocês, mas de tudo o que lhe faça lembrar o

que aconteceu.

— O senhor é um imbecil.
— Dá-lhe tempo, rapariga. Ele há de melhorar.

Victoria desligou-lhe o telefone na cara e enfiou-se no quarto. No dia

seguinte, teria de voltar para a escola, como o faria, não sabia, era a

secundária, era diferente, felizmente já não era um colégio de freiras, era

uma escola normal onde não conhecia ninguém, embora de certeza que

alguns soubessem que ela era a rapariga da casa da Adela, e bastava que

um soubesse, para saberem todos. Telefonou a Pablo. Estás desculpado e

vem para cá, mas não me venhas com parvoíces para me assustares,

porque eu já estou suficientemente assustada. Mas tu não estás assustado

porquê?

Vou para aí e já te conto, disse Pablo.

O que tinha para lhe contar era tão simples e tão horrível, que

Victoria ficou com vontade de chamar a mãe e pedir-lhe para fazer

qualquer coisa; ela era adulta, de certeza que conseguia mudar e

melhorar as coisas. O que Pablo lhe contou só acontecera duas vezes,

mas ele agora não saía do quarto antes de o sol nascer. Quando tinha

vontade de fazer chichi, aguentava; levara um balde para o quarto, pelo

sim, pelo não. Mas sair de noite, nunca mais. Tinha ido fazer chichi,

uma coisa totalmente normal. No corredor, antes de chegar à casa de

banho, alguém lhe agarrou na mão. Não de maneira amável; foi um

puxão forte que quase o fez perder o equilíbrio, e a mão estava quente e

seca, como se estivesse com febre. Gritou pensando tratar-se de uma

pessoa real, a casa estava totalmente às escuras e podia lá ter entrado um

ladrão. O pai levantou-se, mandou Pablo para o quarto, percorreu a casa,

e a mãe gritava-lhe não te armes em machão, pensa no bebé, e assim, até

quis chamar a polícia, mas o pai não deixou. Disse que não queria fazer

figuras tristes. Disse que Pablo tinha medo do escuro. E mandou toda a

gente para a cama.


Aconteceu a mesma coisa, poucas noites depois. Tentou aguentar o

chichi até de manhã, mas a dada altura não foi possível e levantou-se.

Decidiu acender a luz. A mão agarrara-o quando tateava na escuridão,

quando caminhava às escuras com os braços esticados para não derrubar

nada. Nesta segunda vez, a mão agarrou-o pelo ombro: estava atrás dele,

na escuridão da sala. E atirou-o para o chão. Não conseguiu ver nada.

Não havia nada ou a mão escondeu-se demasiado depressa. Ele também

fugiu para o quarto e, desde essa altura, nunca mais saiu de noite. Tinha

o balde, se precisasse. Queria mudar de casa.

— Se fugires, mato-te — disse-lhe Victoria. — Não contaste ao teu

pai?

— Não. É a mesma mão de quando aconteceu aquilo à Adela. Na

casa, tocaram-me por detrás.

— Sim, tu contaste-me.

— É a mesma coisa, sente-se a mesma coisa. E não vou contar nada

disto ao meu pai, porque sempre que lhe digo que tenho medo, chama-

me maricas. E, ainda por cima, tem razão. Mas isso não tem nada a ver

com o medo.

Victoria ficou calada. Era a primeira vez que Pablo lhe dizia aquilo.

— Contaste a mais alguém?

— Estás doida? O Gaspar sabe, percebeu. Se calhar, não se importa.

— Para ele é normal — disse Victoria.

— Tenho tantas saudades dele, e medo de que lhe aconteça alguma

coisa.

— Gostas dele?

— É óbvio que sim, Vicky.

Ela suspirou e disse: ouve uma coisa. Temos de arranjar um plano

para não te chamarem maricas na escola, porque se vão meter contigo e

tu não sabes lutar. Depois pensamos em qualquer coisa.


Nessa noite, dormiram juntos, abraçados, na cama de solteira de

Victoria, e, antes de adormecerem, picaram os dedos com agulhas e

misturaram o sangue e prometeram que jamais se separariam. Depois,

para dormirem sem sonhar, tomaram uns comprimidos que Victoria

roubava todas as semanas da farmácia do pai.

Gaspar não falhava nenhuma consulta e quase nunca parecia zangado

com Isabel. Agora era Isabel e não «a médica» ou «a psiquiatra», só

Isabel. Pouco a pouco, retirara-lhe a medicação antipsicótica e só lhe

receitava ansiolíticos e antidepressivos que o ajudavam a comer. Mas

ainda continuava a ter aqueles períodos de ausência em que ficava

paralisado, com as pupilas dilatadas, derreado na cama, surdo, incapaz

de responder quando lhe tocavam.

Luis teve uma reunião com a psiquiatra. Disse-lhe que achava que

Gaspar fora mal diagnosticado. Luis sentiu um alívio que lhe desanuviou

a testa. As ausências do Gaspar, disse-lhe, são cenas retrospetivas: revive

o trauma com as mesmas sensações e emoções. É stresse pós-

traumático, as cenas retrospetivas e os ataques de ansiedade são

sintomas óbvios. Quero que volte a ser visto por um neurologista, não vá

tratar-se, também, de um caso de epilepsia.

— Ele não tem convulsões. Que eu me tenha apercebido.

— Nem todas as epilepsias são acompanhadas de movimentos

tonicoclónicos, de convulsões. Há alguns momentos de ausência: o

senhor descreveu-os, o Gaspar não se lembra deles. Há episódios

semelhantes a terrores noturnos. A epilepsia também pode dar origem a

alucinações visuais complexas. Em geral, as alucinações são muito

simples, mas podemos estar perante uma exceção.

— Tem cura? — perguntou Luis.


— É tratável — disse ela. — O Gaspar falou-me de um acidente e de

uma pancada na cabeça. Diz que ficou com amnésia. Fez exames e eu

pedi que mos enviassem. Tenho um bom amigo neurologista com quem

costumo trabalhar. Estranhei que ainda ninguém tivesse pedido estes

exames, mas o Gaspar não falou do acidente nem da perda de memória a

nenhum médico, e depreendo que a si também não. Eu percebo-o, não

tem porque saber. Algumas epilepsias estão relacionadas com lesões. É

verdade que não parece haver sinais nos exames que lhe fizeram até

agora, mas, insisto, algumas epilepsias são difíceis de diagnosticar e

todas são diferentes.

— Eu não sei o que se passava com o meu irmão. O Gaspar contou-

me muito pouco, falou-me de um acidente de carro, mas deu-lhe pouca

importância.

— Ele contar-lhe-á o que tiver de saber. O que ele me conta a mim, o

que acontecer entre nós os dois, é segredo profissional. E eu considero,

para já, que não há nada que tenha de saber por mim. Quando

recordamos o passado, as lembranças autobiográficas são verbalmente

acessíveis, isto quer dizer que podemos contá-las. No trauma, estão

isoladas e não podemos aceder a elas voluntariamente, e é por isso que o

Gaspar as revive em pesadelos e em cenas retrospetivas. Não se trata

apenas do desaparecimento da amiga dele. A morte do pai

desestruturou-o: eram muito próximos. O meu trabalho consiste em

tentar fazer com que algumas dessas recordações se tornem biográficas,

que as integre, que as consiga contar.

— E isso é possível?

— Às vezes, não. Vejo pacientes maltratados ao longo dos anos que

só apresentam uma leve depressão. Outros vão-se completamente

abaixo. O Gaspar está muito vulnerável. Mas vamos tentar.


E deu-lhe três instruções: que mantivesse uma rotina — as quatro

refeições, horários, passeios, cinema —, que controlasse a medicação e

que fizesse desporto. Luis perguntou se podia voltar a estar com os

amigos: eles tinham ligado a perguntar. Ainda não, disse a psiquiatra.

Não podemos arriscar, podem fazer disparar qualquer coisa. Quando ele

pedir para os ver, logo reavaliaremos a situação.

— Ele gosta de ler.

— Então, que faça isso também. Inscreva-o numa biblioteca. Assim,

terá obrigatoriamente de sair de casa para devolver os livros. Preciso que

ele estabeleça laços, que assuma responsabilidades simples.

Durante toda a semana anterior viram, na televisão, os carapintadas

tomar o Campo de Mayo. Foi uma tentativa de golpe de Estado, mas

desta vez as pessoas saíram à rua para defender o governo democrático.

Luis queria ir às manifestações, mas optou por ficar em casa com

Gaspar. O Negro Sánchez e Julieta foram para Buenos Aires e ficaram

na Plaza de Mayo até o Alfonsín aparecer na varanda e dizer «Páscoa

Feliz», a saudação que deu por terminada a ocupação do quartel. Gaspar

disse-lhe: com a história da minha loucura, nem nos apercebemos de

que o país estava a ir pelo cano abaixo. Em vez de se sentir angustiado, a

piada encheu Luis de esperança. Quando Carlos Menem ganhou as

eleições no meio de um desastre que mal se fez sentir na casa de Villa

27
Elisa, houve fogos de artifício numa unidade básica do outro

quarteirão e Luis levou Gaspar com ele para os verem juntos.

Encontrou-se com um conhecido que lhe disse maravilhas do novo

presidente. Gaspar bebeu uma Coca-Cola e Luis perdeu-o de vista.

Quando voltou, estava a comer um choripán.

— É um milagre peronista que tenhas fome.

— Está mesmo bom — disse Gaspar com a boca cheia. Nessa noite,

comeu um choripán e meio, mais do que comera em toda a semana.


Passados dois meses, Luis notou que os flashbacks, aquelas ausências

aterradoras, já não tinham uma frequência tão implacável. No fim do

ano, aconteciam tão poucas vezes, que até Gaspar teve coragem de o

dizer em voz alta, durante o pequeno-almoço: agora até tenho medo de

ter um episódio, porque são mais raros, não é? Foi assim que lhe

chamou, «episódio», seguramente um termo que aprendeu durante a

terapia. Luis começou a convidar pessoas para irem lá a casa, amigos

seus, amigos de Julieta. Ficavam até tarde, falavam de política, bebiam

cerveja e fumavam. Gaspar desconfiava, quem é que vais trazer hoje,

perguntava-lhe. Finalmente, acabou por aceitar. E quando começou a

confiar, ficava com eles, fazia perguntas com curiosidade. No fim do

ano, Gaspar já comia quase normalmente, tanto que até pedia pizzas

diferentes e reclamava a presença de Julieta para os molhos não se

queimarem e chega de quiches, que nojo. Também concordou em ir a um

neurologista. Quando Luis via o telejornal ou os programas políticos e

gritava com a televisão, Gaspar dizia-lhe tio, não precisas de te

comportar como um doido, que eles não te ouvem, e riam-se os dois.

Quis inscrever-se no clube para fazer natação e praticar atletismo; só

então Luis descobriu que Gaspar jogava mal futebol, mas não quis

acreditar e desafiou-o para um jogo improvisado, e acabaram os dois a

rebolar de riso no chão, agarrados à barriga, porque eram ambos

péssimos.

— E qual é o teu clube, ó palerma, é uma falta de respeito rires de

mim assim.

— Não me chames palerma, que eu sou doente mental, tens de ter

cuidado comigo. O San Lorenzo.

— Olha para ele. Eu também.

— O meu pai dizia que todos os homens da família são do San

Lorenzo.
— Correto. O teu avô também era.

Ficaram em silêncio.

— O meu pai nem sempre foi mau para mim, sabes, tio. Havia

épocas em que lia para mim todas as noites. Outras vezes, era eu que lia.

— O que é que ele te lia?

— Poesia. Mas não digas nada a ninguém, porque depois chamam-

me maricas.

— Ler poesia não é coisa de maricas.

— Eu sei, mas não estou para ter esse problema, sei que não há mal

nenhum na poesia ou em ser maricas, ele ensinou-me isso tudo. Bom, eu

só queria dizer que ele não era sempre mau, às vezes era muito bom.

— O teu pai sofreu muito e há pessoas que se tornam ressentidas

quando passam por tanto na vida.

Gaspar apoiou um cotovelo na relva e a cabeça na mão para olhar de

frente para o tio, que estava sentado com as pernas cruzadas e a bola em

cima de um dos joelhos.

— Sim. Mas não era só isso. Eu conto estas coisas à Isabel. Lembro-

me de imensas coisas, mas é como se me tivesse esquecido de algo

importante. Lembro-me muito pouco de quando fomos sozinhos para

Misiones, para a casa dos meus avós. A minha mãe tinha acabado de

morrer. Aconteceu alguma coisa lá.

— Como é que foram para lá?

— De carro.

— E era ele que ia a guiar? Que grande maluco. Podiam ter-se

matado. E não te lembras dos teus avós?

— De quase nada. Mas o meu pai não queria que estivesse com eles,

e dizia que a minha mãe também não. Eles nunca me procuraram.

— Isso é verdade. Mas estiveste mesmo sozinho, porra. Perdoa-me

ter-te abandonado, filho.


— Tu não me abandonaste.

Luis tentou abraçá-lo, mas Gaspar esticou o braço para o afastar:

queria falar.

— Quando voltarmos à minha casa, temos de entrar no quarto que

usava para as coisas dele, vais ver os livros, e também quero trazer

alguns, gosto de ler. Às vezes, ele trancava-se lá dentro imensos dias e

eu não podia incomodá-lo.

— E quem é que te dava de comer?

— Eu sei cozinhar. Havia uma senhora que nos fazia a comida. E, se

não, ia comer à casa do Pablo ou da Vicky, ou ao café do parque. O meu

pai também passava alguns dias fora de casa. Às vezes, uma semana

inteira. Não sei aonde ia, nunca me disse. Tenho muitas saudades dele.

Agora, Gaspar estava sentado e tinha os olhos cheios de lágrimas.

Luis teve medo do que podia estar a acontecer, um ataque de ansiedade,

uma crise. Gaspar limitou-se a dizer:

— Gostava de voltar a vê-los, ao Pablo e à Vicky. Mas não sei se

posso.

— E se esperarmos até ao ano que vem?

— Está bem. Eles telefonaram alguma vez?

— Olha, eles telefonam muitas vezes. A tua amiga Victoria até se

fartou de me insultar uma vez, é danada.

Agora, Gaspar sorria, e a expressão da sua cara mudou tanto, que

Luis não o reconheceu.

— Diz-lhes que esperem por mim, porque acho que estou melhor.

— Estás a ver? Eu disse-te.

Nesse fim de ano, Luis deixou que Gaspar bebesse uma taça de

champanhe. No verão de 1988, foram com Julieta para uma casa em Mar

28
del Tuyú: Gaspar foi pescar com Luis. Comeu cornalitos , nadou com a
tia e, quando fazia corridas com outros rapazes na praia, deixava-os de

joelhos ou meio mortos. Não foi necessário telefonar a Isabel, pois não

teve nenhuma crise. Gaspar pediu a Julieta um livro de poesia. Ela ficou

surpreendida e Gaspar limitou-se a dizer que o pai dele tinha muitos

livros, que ambos liam muito; que queria ir a casa dele buscar livros,

pois o tio só lhe trouxera discos, e ele gostava de música, sim, mas ainda

gostava mais de ler. Uma tarde, quando os homens estavam a dormir a

sesta e eles a beberem mate na praia, Gaspar disse a Julieta que queria

saber coisas, que estar doente o tinha «embrutecido». Que quando estava

com os amigos ouvia música, via filmes. Que tinha saudades deles.

— Quando quiseres, nós arranjamos uma maneira de se verem.

Queres torradas?

— Sim, com doce de leite, só que o raio da areia cola-se a tudo.

— Trouxe churros. Estás farto de só teres velhos à tua volta, Gaspar?

— Farto, não. Mas acho que devia voltar para a escola.

Gaspar começou os estudos secundários no ensino noturno, numa

escola de La Plata; era menos exigente e os professores, que estavam

acostumados a trabalhar com adultos e com alunos problemáticos, eram

menos rigorosos e mais compreensivos. Depois do primeiro dia, em que

o foi buscar de carro, Luis prometeu-lhe que ia procurar trabalho.

Parece-me que isso vai ser mais difícil do que lidar com a minha

loucura, disse Gaspar. Temos de ser otimistas, disse Luis a rir.

A escola ficava numa praça e muitos colegas de Gaspar, quase todos

mais velhos do que ele, chegavam cedo e, antes de irem para as aulas,

sentavam-se na relva a fumar marijuana e a ouvir música. Nos primeiros

dias, não lhe prestaram atenção, mas uma sexta-feira, quando lhes

disseram que as aulas só começariam uma hora mais tarde porque a

professora de História não ia dar a aula, convidaram-no para beber uma

cerveja. Gaspar aceitou, mas só bebeu dois goles e recusou o charro.


Nem te passe pela cabeça embebedares-te ou drogares-te, dissera-lhe o

tio havia pouco tempo, enquanto tentavam arranjar entre os dois a porta

da casa de banho, que não fechava bem. Sabes que não digo isto por ser

um moralista, estou a borrifar-me para isso e eu não sou nenhum santo,

mas tu tomas comprimidos. E o ano passado foi terrível. Para já, dar-lhe-

ia ouvidos. Os outros não gozaram com ele, não disseram nada.

Perguntaram-lhe porque é que andava no «noturno». Gaspar respondeu

com uma meia mentira, dizendo que estivera a convalescer de um

acidente durante quase todo o ano anterior. A cicatriz do braço, que era

grande e muito evidente, ajudava a corroborar a mentira.

Falara muito com Isabel sobre o que fazer se o reconhecessem. Se

alguém se apercebesse de que era um dos rapazes da Casa de Adela. Ela

disse-lhe que, mesmo que lhe perguntassem, ele não era obrigado a

responder. Que podia dizer: não falo sobre isso. Para ele não era fácil

recusar-se a falar, mas tinha uma vantagem: as pessoas não conheciam a

cara dele. As câmaras, quando os jornalistas estiveram no bairro, não o

tinham filmado: ele passou quase todo o tempo na clínica, ao lado do

pai. Mas as caras de Victoria, Pablo e Betty eram conhecidas. E a de

Adela, graças às fotografias exibidas durante as buscas inúteis. As

pessoas sabiam que ele existia, sabiam o seu nome, mas nunca o tinham

visto e os nomes não se retêm da mesma maneira.

Além disso, estavam a acontecer outras coisas. Os saques aos

supermercados, as pessoas das favelas eram tão pobres, que comiam

gatos, tinha havido um acidente com um camião cheio de vacas e

algumas pessoas, sem qualquer tipo de pudor, tinham matado e

esquartejado os animais numa tentativa de recuperarem os churrascos

perdidos. A Casa de Adela era uma notícia velha. Não para ele, que

sempre que sonhava com ela acordava com náuseas e vomitava durante

toda a noite, noites inteiras na casa de banho, o tio trazia-lhe uma


almofada e sentava-se ao lado da banheira, à espera de que a crise

passasse. Mas, pelo menos, já não a via quando estava acordado.

Não podia falar disso com os colegas.

Também não foi necessário. Os colegas da praça tratavam-no bem e

convidavam-no sempre para jogar futebol. Gaspar dizia-lhes que era

péssimo, que ninguém o havia querer na equipa. Mas sim, queriam. É só

um campo aqui perto, há vários cromos, disse o dono do gravador. Foi e,

como era costume, jogou muito mal, mas passou muito bons momentos

e divertiu-se com as anedotas dos colegas. O campo ficava perto da

escola e pertencia a um clube de râguebi que tinha piscina e pista de

atletismo. Gaspar tornou-se sócio para voltar a correr e a nadar. Dava-se

bem com as pessoas que frequentavam o clube. Corria ou nadava sempre

que podia e não chovia; muitas vezes depois das aulas, antes de jantar,

sozinho, apenas acompanhado pela luz do buffet do clube e pelo dono do

café, que ouvia música atrás do balcão. No clube, já tarde, fumava

alguns cigarros sentado na relva; quando corria, deixava o maço num

dos lados da pista, junto das chaves, da garrafa de água e da suéter que

vestia quando estava todo transpirado. O tio e Julieta não sabiam que ele

fumava. Isabel, sim: deixava-o fumar durante a sessão, mas nunca mais

de dois cigarros.

Quando anoitecia, fumava em silêncio e costumava observar os

pirilampos, que espreitavam por entre os eucaliptos e o caminho de terra

que ia dar às piscinas e aos campos de ténis e de râguebi. Eram ainda

mais bonitos quando ainda havia um pouco de luz: ao entardecer,

pareciam faúlhas libertadas pelo sol. Mas, de noite, Gaspar não sabia se

gostava deles ou não: faziam-no pensar em olhos a pestanejar,

desapareciam de repente ou aproximavam-se demasiado dele. E, no

entanto, eram belos misturados com a vegetação alta e com os troncos.


A casa de Villa Elisa era tão diferente da casa que partilhara com o pai,

que Gaspar sentia que era profundamente alheia e, ao mesmo tempo,

fruía e gostava dela como se as paredes fossem uma pessoa cuidadosa

que pensava sempre antes de falar. E nunca estava em silêncio: o tio

costumava ter o rádio ligado e, se não, quando Julieta lá passava vários

dias — cada vez estavam mais perto de viverem juntos —, ouvia música

numa miniaparelhagem que trazia com ela ou aumentava o volume da

televisão, dizendo que era como ter companhia. Levantavam-se ambos

cedo, mesmo quando faziam noitadas — e faziam-nas amiúde, as

garrafas de vinho vazias ficavam como peças de decoração de vidro

verde em cima da mesa do pátio e da cozinha —, e abriam as persianas

para deixar entrar o sol. No início, Gaspar ficava um pouco incomodado

com a luz, mas, depois de se acostumar, tomava o pequeno-almoço fora,

na mesa do pátio, a não ser que estivesse muito frio.

Além disso, não havia nada lá em casa. Nada de perigoso, nada de

mau. A casa estava limpa. O que via, as aparições do pai ou de Adela,

eram coisa dele: não do lugar. Levá-las-ia para onde quer que fosse.

Desde que o pai o magoara, a cicatriz funcionava como uma espécie de

alarme: palpitava e ardia-lhe quando passavam diante de certas casas,

algumas que, pelo seu aspeto, tinham um ar ameaçador, outras

perfeitamente inocentes. Gaspar percebia que lhe indicava onde não

devia entrar, onde havia outros lugares como o que engoliu Adela.

Também não podia partilhar isso com ninguém. Só com Vicky e Pablo,

mas ainda não se sentia com coragem para estar com eles.

Essa sensação e o inexplicável horror que lhe causavam certos

lugares podiam ser atribuídos ao que quer que fosse que discutiam entre

si médicos e psiquiatras: sequelas do trauma, uma epilepsia provocada

pelo acidente, algum tipo de transtorno mental. Gaspar fingia ignorância,

mas ouvia-os falar. E pensava que era provável que algum deles tivesse
razão. Adela já quase se fora embora, mas ainda aparecia no canto do

seu quarto a olhar para ele com ar de recriminação. Eu gostava de ti,

dizia-lhe sem mexer os lábios, e tu traíste-me. No entanto, Gaspar

conseguia conviver com essas sensações e com a culpa. Enquanto

existisse a casa de Villa Elisa, o tio a destratar a rádio de manhã, o

Negro Sánchez a experimentar diferentes tipos de pizza e Julieta a

fornecer-lhe livros de poesia, podia confiar que, algum dia, voltaria a ver

os seus amigos. Quando alguma recordação impossível o deixava mudo

e paralisado, já sabia que também era possível sair da imobilidade e

sentar-se ao sol com o chocolate que o tio tinha sempre no frigorífico.

O jardim das traseiras da casa de Villa Elisa foi a primeira zona da

casa a ser melhorada, e Luis fê-lo apenas por ser a única coisa a que

Gaspar se referira. Sem demasiado entusiasmo, nem sequer foi um

pedido, nos primeiros dias não pedia nada, apenas lhe disse que seria

muito bom ter um jardim. Luis, surpreendido, lembrou-se dos postais

que lhe enviara o irmão quando estava em Londres para ser operado e

receber um tratamento de melhor qualidade. Falava sempre de jardins e

de flores e do verde inglês; enviava-lhe fotografias de jardins escondidos

e antigos, de parques públicos e também de edifícios e castelos e igrejas.

Ele achava que eram postais muito estranhos para um rapaz que, embora

com limitações físicas, estava a viver e a divertir-se numa das capitais do

mundo. Decidiu não mostrar os postais a Gaspar, ainda não, mas pouco

a pouco foi retirando o cimento, os mosaicos, comprou terra, relva,

desempoeirou algumas ideias de um curso de paisagismo que tirara no

Rio e passou tardes num viveiro a escolher plantas já crescidas. Pensou

em construir uma piscina, mas não tinha dinheiro suficiente. Teriam de

se contentar com uma autossustentável. Além disso, preferia que Gaspar

nadasse na piscina do clube; era melhor que saísse de casa, como

recomendava a psiquiatra. Os dois entretinham-se a arranjar o jardim.


Gaspar era muito bom a seguir instruções e gostava de trabalhos

repetitivos. Luis acreditava que o ajudava a ter uma certa sensação de

ordem e ele percebia-o, porque sentia a mesma coisa.

Com a melhoria de Gaspar, chegaram os ajustes. Luis tentava fazê-lo

perceber que, se quisesse dinheiro, teria de pedir-lhe, mas Gaspar

interpretava essa indicação apenas como uma sugestão. Quando esgotava

o dinheiro da semana, entrava no quarto de Luis e tirava o que queria da

gaveta. E às vezes excedia-se. Não pedia ajuda para nada: quando

precisava de alguma coisa que estava muito alta, trepava; quando lhe

caía um botão, cosia-o e, de passagem, cosia os de Luis também. Isso

era bom, ternurento. Mas quando ia ao centro de La Plata e se atrasava

ou ficava cansado, voltava de táxi: eram vários quilómetros, o táxi era

caríssimo, não se podiam permitir tais despesas. Pior ainda: às vezes só

voltava muito tarde, já de madrugada, e quando chegava e se deparava

com Luis acordado e inquieto, perguntava-lhe o que é que tinha

acontecido, como se fosse a coisa mais normal do mundo passar a noite

inteira na rua com catorze anos e com uma doença mental. Quando Luis

o recriminava por isso, encolhia os ombros não propriamente por

rebeldia ou desinteresse, mas como se não percebesse. Não compreendia

porque é que não se podia atrasar e porque é que isso angustiava os

outros. Cozinhava coisas simples, mas bem: esparguete com molho,

empadas de queijo e fiambre, às vezes dedicava-se com muito esmero a

fazer um empadão, tortilhas, um bolo, pescada no forno com queijo.

Mas não limpava a cozinha nem mudava os lençóis nem levantava a

mesa nem lhe passava pela cabeça ajudar, aos fins de semana, nas

limpezas. É filho de ricos, dizia Julieta a Luis quando ele se zangava.

Há meses que Julieta tinha reuniões com advogados da família da

mãe de Gaspar. Tinham-lhe comunicado que os avós de Gaspar não

reclamariam a custódia dele, nem exigiriam que os fosse visitar. Na


verdade, não tinham nenhuma palavra a dizer em relação à custódia,

porque o pai tomara a sua decisão em vida, embora Julieta tivesse a

sensação, peculiar mas concreta, de que Juan passara por cima deles

deliberadamente ao entregar o filho a Luis antes de morrer, e que isso os

incomodava sobremaneira, e que era por isso que se tinham referido à

custódia sem motivo aparente. Passar por cima deles? O que é que

queres dizer com isso?, perguntava Luis, e ela não sabia o que dizer. Era

o seu olfato. Os advogados pareciam aceitar que o rapaz não estivesse

com os avós como se fosse um jogo perdido que não valia a pena

disputar. As reuniões tinham lugar numa das imobiliárias da família

materna de Gaspar, não na sede principal, mas num pequeno escritório.

A sala de reuniões era invulgar, segundo Julieta. Além da lareira, que já

estava um pouco passada de moda, com a lenha falsa a cobrir os

queimadores de gás, havia uma salamandra e um samovar que parecia

autêntico. Nunca fazia assim tanto frio em Buenos Aires a ponto de

justificar tantos aparelhos de aquecimento. As paredes estavam

revestidas por aquilo que ela supunha serem troféus de caça, mas só

havia chifres de vários animais. Bois, veados, como lhe explicaram. Sem

as cabeças. A mesa era de madeira de carvalho, muito grande, e

mandavam-na sempre sentar-se numa ponta. Os advogados, um homem

e uma mulher, eram amáveis e diligentes, mas demoraram muito tempo,

meses, a aprovar a sucessão de Gaspar, a lista dos bens que lhe

caberiam. Sempre que saía das reuniões, Julieta tinha a sensação de que

nunca mais se voltaria a encontrar com eles. Mas a pensão de Gaspar,

que era alta, continuava a ser depositada pontualmente no banco. Luis

não queria tocar no dinheiro: queria que fossem as poupanças de Gaspar.

Julieta não interferia neste ponto. Disse-lho uma vez, quando estavam

ambos a fumar na cama, a conversar em voz baixa para que Gaspar não
os ouvisse, embora o rapaz costumasse adormecer com os auscultadores

nos ouvidos ou o rádio ligado.

— É maduro, como estamos sempre a dizer. Partilharia o dinheiro

dele com todo o gosto.

— Noutra altura. Não quero o dinheiro deles. É uma história

perversa, mas eu nunca soube ou nunca tive coragem de a desmontar.

Não sei do que é que estou a falar. Esse tipo, o médico, sequestrou o

meu irmão para seu benefício profissional e sabe-se lá mais para o quê.

Permaneceram em silêncio e Luis consumiu o cigarro ao fim de três

passas.

— Suspeitas de alguma coisa?

— Suspeito, mas o Juan nunca me quis contar nada. O Bradford era

uma sumidade, o médico mais respeitado do país e a puta que o pariu,

no outro dia fui a La Plata e descobri que deram o nome dele ao novo

edifício da Faculdade de Medicina. O tipo era esquisito e, quando

perdeu a mão, piorou, era como o Narciso Ibáñez Menta, mas mais

inglês. Como o dos filmes dos sábados.

— O Christopher Lee.

— O outro.

— O Vincent Price. Luis, não era nada parecido com o Vincent

Price, tinha um tipo físico completamente diferente.

— Estou a falar-te das vibrações que emanava. Era meio degenerado.

Salvou a vida ao meu irmão e continuou a tratá-lo mesmo depois de

perder os dedos. Teve uma morte muito esquisita, que um tipo daqueles

estivesse a conduzir ele próprio, sem motorista, e ainda por cima ficou

todo esturricado porque não chegaram a tempo de apagar o incêndio no

carro, não sei.

— E eu acho estranho que os teus pais não tivessem lutado para ficar

com ele. Com o teu irmão.


— A minha mãe tentou. O meu velho não queria ter esse problema,

dizia que estava melhor com os ricaços. O meu pai não era lá muito boa

pessoa. Quando descobri que lhe tinham dado dinheiro em troca do

Juan, discuti com ele e nunca mais lhe falei, nem sei se ainda está vivo.

— Então, pagaram-lhe.

— Os filhos da puta compraram o meu irmão. E, ainda por cima, foi

com esse dinheiro que o meu velho financiou os meus estudos. Também

estou em dívida para com eles. Nem sabes como isso me revolta. É por

isso que não quero o dinheiro deles. Eu sei que o Gaspar o partilharia

comigo, a questão não é essa. Ele é amoroso, como a mãe, uma miúda

fantástica, valente. Quando a conheci, fiquei muito impressionado,

porque pensava que nada de bom podia sair daquela família. A mãe era

fantástica e acho que não sabia como é que o meu irmão chegou à

família dela.

— O Gaspar sabe que foi ela que te tirou do país?

— Não sei como abordar esse assunto com ele. Tenho medo de o

desestabilizar.

— E porque é que isso lhe faria mal? É a mãe dele, tem o direito de

saber. Bom, mas isso é convosco. Outra coisa: quando me derem a lista

completa dos bens e se souber o que é que o Gaspar vai herdar, vais ficar

de queixo caído. Fiz uma investigação informal. Não fazes ideia. Ainda

por cima, não têm dívidas, acho eu. O Gaspar é rico.

— Era o que me faltava.

— Mal não te faz.

Luis resmungou na escuridão.

— O meu irmão deixou bem claro que não queria que ele tivesse

contacto com os avós. Eles ainda não pediram para o ver?

— Mesmo que pedissem, tu és o pai, eles não têm o poder de

decidir.
— Mas têm armas para o fazer.

— Isso não vai mudar.

Nesse verão não foram de férias, mas a ex-mulher de Luis veio do

Brasil para lhes fazer uma visita com as duas filhas dela, uma mais velha

do que Gaspar e outra mais nova. As raparigas ignoraram um pouco

Gaspar ou talvez fossem tímidas, e falavam mais português do que

castelhano. Luis criara-as como se fossem suas filhas e tinha saudades

delas, queria vê-las, e a ex-mulher concordou. Durante uma semana,

Luis levou as raparigas a passear por todo o lado e Gaspar agradeceu-lhe

que não insistisse em acompanhá-los.

Já estava acostumado ao desfile de gente naquela casa e quase nunca

ficava angustiado com isso. Interessava-se pelas conversas. Pela forma de

falar dos homens. Especialmente do Negro e das suas comparações

futebolísticas. O que este tipo disse foi como um golo olímpico de canto.

O inferno é estar a ganhar e que, nos últimos dois minutos, o jogo vire.

Ou as suas tiradas: o férreo argumento defensivo do rival perante a nossa

sólida demonstração de bem jogar. Ou as suas acusações: tornaste-te

29
bilardista . Lembrava-lhe um pouco Hugo Peirano; cada vez tinha mais

saudades de Vicky e de Pablo, não fizera amigos novos; não amigos

assim, pelo menos. Numa dessas noites, o Negro, que tocava guitarra,

dedicou uma canção à ex-mulher do tio, Mónica, uma canção que dizia

coisas lindas e terríveis, «e pagarão a sua culpa os traidores», cantava

com voz trémula e todos choraram e gritaram um nome e depois

«presente, agora e sempre». Aquilo parecia-lhe lindo. Era lindo que o tio

abraçasse as meninas e a ex-mulher, e que Julieta se emocionasse: eram

como gente perfeita, pensava Gaspar. Havia sempre uma altura em que

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punham música para dançar. E o Negro gritava um sapucai . E de

repente era uma festa, partiam-se copos, os homens suavam, as mulheres

perdiam sapatos e brincos e ficam com a maquilhagem escorrida — as


que se maquilhavam, que não eram muitas — e abraçavam-se, diziam

que se amavam, assim, amo-te, preto de uma figa, e Gaspar sentia que

não conseguia subir aquele degrau. Já o tinha dito a Isabel. É como se

subíssemos juntos uma escada e a dada altura eu dissesse «eu fico aqui».

E no degrau deles, mais acima, eles são felizes e eu fico a olhar para

eles. Teria sido sempre assim? Não era timidez nem retraimento nem

adolescência, como pensavam os outros. Não lhe ia passar. Podia dançar

sozinho, podia emocionar-se no seu quarto com um livro, mas quando

estava numa festa desligava, os outros convertiam-se num filme que ele

conseguia ver, mas no qual não podia participar. E era por isso que se

tornava invisível, o que não era difícil, porque estavam todos bêbedos. E

retrocedia até ao seu quarto. E sentia o mais puro alívio.

Uma vez, quando ia bater em retirada, chocou com o Negro.

— Sentes-te mal, campeão? — perguntou-lhe.

Gaspar respondeu-lhe que não. Depois, ouviu o Negro a dizer ao tio

«é um puto triste». E esperou pela confirmação do tio, o sim, de

deceção. Mas ficou surpreendido. Não, disse ao Negro. Não é triste. É o

temperamento dele. E se fosse triste, qual era o problema. Ele é como é.

Nem toda a gente gosta de se embebedar e de dar gritos. Nós fazemos

barulho para taparmos o buraco que temos cá dentro.

Gaspar, nessa noite, atirou-se para cima da cama com os

auscultadores e pensou que tinha de voltar para a sua casa, aquela em

que vivera com o pai. Queria inspecionar tudo. Alguém teria levado as

coisas de lá? O tio disse-lhe que estava tudo intacto. Porque é que o

Esteban não lhe telefonava? Preferia que já não fizesse parte da sua vida,

mas sentia curiosidade em relação ao que lhe teria acontecido. E à Tali.

A Tali também não estaria interessada nele?

Nessa noite, pela primeira vez desde que estava em Villa Elisa,

pensou sem medo — ou controlando o medo — em Adela e na casa.


Recordou-a. Recordou a rua. Recordou a caminhada na escuridão.

Fechou os olhos e voltou a vê-la na porta por onde desaparecera, a

acenar. As sombras atrás dela. A escuridão atrás dela. A lembrança de

Adela fê-lo tremer. Mas não tanto. Nem com náuseas.

Ao meio-dia, quando acordasse, pediria ao tio o telefone para

telefonar a Vicky. Não queria fazê-lo a meio da noite, para não assustar

a família dela. E queria que o tio estivesse presente, não fosse sentir-se

mal.

Mas não se sentiria mal, tinha a certeza.

Da sua casa não restava muito porque, em primeiro lugar, não tinha

assim tantas coisas. O tio limpara os quartos para que, quando Gaspar

encontrasse os livros, os objetos, a roupa, não tivesse de enfrentar a

sensação de abandono. Quando entrou, ficou nervoso, mas não teve

medo. Entrar no quarto do pai foi mais difícil, mas, uma vez lá dentro, o

cheiro a pó escondeu as recordações.

Porém, evitou passar pela Rua Villarreal e ver a casa onde Adela

desaparecera. Não estava preparado para isso e julgava que não estaria

nunca.

Em sua casa teve um impulso supersticioso. Queimou a roupa no

pátio, como vira o pai fazer com a da mãe anos atrás. Vicky e Pablo,

entretanto, metiam livros em cestos e ele controlava as labaredas com

um pau e ia reconhecendo as calças, a camisa de mangas arregaçadas, a

t-shirt branca com buracos feitos pelas traças depois de passar anos

fechada. O pai fora cremado. Não sabia onde estavam as cinzas: não quis

perguntar. Parecia-lhe justo queimar a roupa dele.

Vicky e Pablo já tinham voltado à sua vida normal. Durante um

tempo, o contacto com Vicky fora apenas telefónico, mas sempre

torrencial e direto, sem rodeios, sem precauções. Vicky tomou a


iniciativa: interrogou-o, contou-lhe que à noite dormia de meias porque

sentia a cabeça de Omaira; que não evitava passar à frente da casa da

Rua Villarreal, mas tinha de fugir para a ver, porque não a deixavam lá

ir, que tinha mudado de escola e que, se os colegas a tinham

reconhecido, nunca lho tinham dito. Quero ver-te, não te vai fazer mal,

por alguma razão não conseguimos fazer amigos novos, ou tu

consegues? Gaspar admitiu que não. Ela foi visitá-lo à casa de Villa

Elisa, feliz e ansiosa; Gaspar pensou, além disso, que estava muito

diferente, alta e com o cabelo pesado de sempre agora compridíssimo,

bem tratado, e a pele tão fina, que se viam pequenas veias azuis nas

faces. O regresso de Pablo foi mais cauteloso. As conversas telefónicas

eram incómodas e nervosas, mas a primeira visita foi um alívio imenso,

uma tarde de frio sob um cobertor no sofá, foi como chegar à margem e

conseguir atracar e esquecer o mau tempo. Eram sempre eles que iam a

Villa Elisa, nunca ao contrário. As visitas de Pablo em breve se

tornariam mais frequentes: o pai, que enriquecera com a empresa de gás

natural, tinha uma parceria com o Ministério da Produção daquela zona

e o mais conveniente era mudarem-se para La Plata, a capital. Já tinham

arrendado um apartamento no centro que fazia as vezes de escritório,

mas em breve precisariam de uma casa para a família. Gaspar disse a

Pablo que sentia que alguém os estava a juntar. Pablo ouvi-o, pensou na

mão que às vezes lhe tocava na escuridão e não disse nada. Vicky

também queria ir para a cidade quando acabasse o secundário, para

estudar medicina na universidade. Luis tinha as suas reservas em relação

a esta reunião: o facto de se juntarem parecia-lhe uma recriação do

drama, teria preferido que mantivessem uma amizade de telefonemas, de

festas de aniversário, de idas a concertos. A maneira como eles se

entendiam inquietava-o. Falou com Isabel, e a psiquiatra surpreendeu-o

quando lhe disse que a ela também não lhe parecia o mais conveniente.
Mas eram adolescentes: obrigá-los a separarem-se já não era uma opção.

Sugerir-lhes que continuassem afastados após anos sem se verem

também podia ser contraproducente.

Gaspar pediu a Vicky que inspecionasse ela as gavetas do pai porque

não se atrevia a fazê-lo. Não havia grande coisa. Umas poucas de

fotografias da mãe, que Gaspar guardou na mochila. Vários maços de

cartas: também os levou. Deitou para o lixo todos os medicamentos fora

de prazo. Encontrou gavetas cheias de velas e de giz e de panelinhas

manchadas com qualquer coisa castanha que podia ser ferrugem ou café.

Levou também alguns postais da Europa e cadernos com apontamentos.

Os livros foram parar a uma mala.

Pablo confessou-lhe, enquanto lavava as mãos na casa de banho —

Luis continuava a pagar a luz e a água —, que tentara entrar algumas

vezes na casa. Não tinha chave, mas levantar as persianas não me

parecia assim tão difícil, nem trepar pelo telhado aberto da garagem.

Mas nunca consegui; era como se a casa não me quisesse lá, não me

deixasse. Acabei por ficar com muito medo. Além disso, na noite do dia

em que lá tentei entrar pela última vez, a mão que me tocava agarrou-me

pelo ombro na casa de banho da minha casa. E acabou-se.

Gaspar passou-lhe a toalha e apoiou-se com os braços cruzados na

parede da casa de banho.

— Tenho a certeza de que a casa te expulsou.

Disse aquilo e sentiu a ferida a arder. Acariciou-a: à frente de Pablo,

não sentia necessidade de a esconder.

— Há meses que não sinto a mão, que não me agarra. Há quase um

ano.

— Não se foi embora, ou achas que sim?

Pablo disse que não com a cabeça.


— Acho que está à espera. Eu também tinha medo de me encontrar

contigo, já te disse. Pensava que, se te visse, a mão me ia, por fim,

apanhar e nunca mais me largaria. Mas aconteceu o contrário.

— Vamos — disse Gaspar. Começara a sentir uma leve picada no

olho, o sinal de uma enxaqueca; era preciso tomar qualquer coisa antes

que avançasse e tinha comprimidos na mochila. Pablo segui-o pelo

corredor vazio; passaram à frente do quarto vazio que em tempos servira

como lugar de castigo, olharam para a sala, que parecia estar à espera de

uma festa, de convidados, de pessoas a rir, de tudo o que nunca

acontecera naquela casa. Quando desceram a escada, Gaspar viu que o

vidro da janela onde se magoara já fora substituído; ainda não reparara

nisso. Quem o teria feito? Pablo abraçou-o pela cintura exatamente

quando começou a tremer. Desce comigo, disse-lhe ao ouvido, está tudo

bem.

O cuidado, o cuidado constante; Gaspar estava farto dessa proteção,

que lhe parecia desmesurada, e compreendia o pai, a sua rejeição, o

confronto com os médicos e às vezes com ele ou com Esteban. No

entanto, podia deixar-se cuidar por Pablo. Entendia-se com ele, confiava

nele, embora Pablo tivesse mudado muito. Os três tinham mudado, mas

a mudança de Pablo era mais significativa porque era homossexual (ele

preferia dizer que era gay e ainda se estavam todos a acostumar à

palavra, muito mais amável), não o escondia e tinha o seu grupo de

amigas da escola que saíam com ele, que lhe telefonavam e lhe faziam

companhia e eram um escudo contra os rapazes cruéis. Além disso,

queria estudar Belas-Artes e pintava graffiti. Já tinha ido para a cama

com vários colegas, dizia. Tem cuidado, dizia-lhe Vicky, tem cuidado,

não imaginas a quantidade de doentes que a minha mãe atende lá no

hospital. Ai, não sejas parva, eu tenho cuidado, respondia ele, e isso só

contagia as pessoas mais velhas.


Gaspar voltou para o quarto do pai. Folheou os cadernos que ia levar

na mochila. Tinha a sensação de que faltava um: lembrava-se de um

caderno com desenhos, com muitos signos, que o pai revia e corrigia

com muita atenção. Não eram gatafunhos; não sabia o que significavam

aqueles traços geométricos e o pai sempre lhe mentira dizendo que os

fazia só para se entreter. Sempre pensaste que eu acreditava nas tuas

mentiras, disse Gaspar em voz baixa enquanto abria a mochila. Mas eu

também estava metido na tua cabeça. Não completamente, nunca

consegui ultrapassar a barreira, mas sabia da existência dessa barreira,

papá, eu sentia-a. Porque é que a tiveste de erguer?, é a pergunta que eu

faço.

Procurou o caderno em todas as gavetas, até nas da cozinha. Não o

encontrou. Perguntou ao tio, que lhe disse eu não toquei em nada. Não

sei se o amigo do teu velho tinha chave, não sei se levou alguma coisa.

Esteban: Gaspar conseguia imaginá-lo a levar as coisas especiais, as que

eles partilhavam um com o outro, os segredos que certamente

guardavam. Porém, os cadernos que restavam tinham algumas notas

inquietantes. «Quando se invoca o diabo com as cerimónias requeridas,

o diabo comparece e mostra-se. Para não morrer de horror perante a sua

presença, para não enlouquecer, há que ser louco. Lévi», dizia uma.

Então era isto que tu fazias. Invocar o diabo. Ou, então, o pai só se

interessava pelo assunto por puro tédio. Por passar tanto tempo na cama

sozinho, sem ninguém com quem falar. Mas não, havia mais qualquer

coisa, não era tédio. Os cortes que lhe fez e que fazia a si próprio. A

noite em que espalharam as cinzas da mãe. O facto de ele adivinhar

coisas. O pai conseguia encontrar o que estava perdido. O pai sabia

quando alguém ia morrer. O pai falou-lhe dos mortos que vinham com o

vento. The dead travel fast.


No último ano do secundário, Gaspar descobriu, a duzentos metros da

escola, o centro cultural Princesa. Tinha as paredes pintadas de

vermelho e a tinta devia ser recente porque a cor era impossível de

disfarçar, parecia uma casa sobre a qual se derramara sangue. Tinha,

também, o nome do lugar escrito em graffiti e néon para que se visse de

noite. Gaspar, a primeira vez que lá foi, às sete da tarde, com o néon já

ligado e a música a ouvir-se através da porta aberta, sentiu-se

suficientemente atraído por aquele lugar para atravessar a rua a correr e

ignorar as apitadelas. Chovia um pouco e ficou com os ténis pretos

molhados.

Do lado de fora, sob a varanda do terraço, uma rapariga fumava com

uma perna dobrada e o pé apoiado na parede. Tinha uns calções de

ganga cortados, a pele morena, botas militares, uma camisola de alças

branca e muitas pulseiras nos dois pulsos; algumas eram brilhantes,

pareciam de purpurina, de menina, outras eram de plástico preto. Tinha

cabelo curto e escuro. Gaspar pensou que era a rapariga mais bonita que

já tinha visto na vida. Aproximou-se dela sem vergonha, atraído como se

estivesse a morrer de calor e ela fosse gelo a derreter, tinha de ser rápido,

tinha de ser decidido.

— Está aberto? — perguntou-lhe, depois de a cumprimentar.

Do interior chegava uma canção que falava de pele que fazia voar

tudo à sua volta. Que letra tão estranha, pensou Gaspar. A guitarra

preguiçosa era muito apropriada para essa tarde de humidade e de

chuva.

— Agora só se pode beber cerveja ao balcão, mas à noite há um

recital de poesia. E depois toca uma banda.

A rapariga olhava para ele com curiosidade.

— Nunca tinha reparado neste lugar — disse Gaspar.


— Já aqui está há mais ou menos um ano, mas pintámo-lo de

vermelho para dar mais nas vistas. Andas na escola?

— No noturno, muito perto daqui. Estou atrasado. Estou no décimo,

mas já tenho dezoito anos.

— Chumbaste.

— Não — disse Gaspar, mas não explicou mais nada.

Ela era mais velha, percebeu. Não muito mais, apenas alguns anos.

Devia andar na faculdade. Não tinha estado com muitas raparigas,

embora não o dissesse a ninguém, por vergonha. Tinha beijado o umbigo

de Belén, uma colega, no parque; ela sentiu cócegas e ele teve uma

ereção repentina e um pouco dolorosa quando ela mexeu as pernas e lhe

chegou o cheiro das cuecas. Tentou deitar-se em cima dela e beijou-a

atrás da orelha, mas Belén assustou-se e ele parou imediatamente de

insistir. Gosto muito de ti, disse Belén, mas não quero. Ele sentiu a

cabeça a latejar, mas como ela estava quase a chorar disse-lhe não faz

mal, e desculpa, é que és muito bonita. Vamos, acompanho-te até à

paragem, queres?, ela disse que sim e começaram a falar de outra coisa,

Gaspar não se lembrava sobre o quê porque lhe doía a ereção e,

enquanto esperavam pelo autocarro, disse-lhe que ia fazer chichi e

masturbou-se rápida e furiosamente atrás de uma árvore perante o olhar

curioso de um gato branco e imundo que pestanejava. Quando voltou,

mais sossegado, o autocarro chegou e Belén falou-lhe sobre as suas

férias no Valle de La Luna e de como a paisagem era parecida com a da

Guerra das Estrelas. Nunca mais a viu. Tinha ido para a cama com

outras raparigas, depois, mas todas as vezes foram memoráveis e

profundamente insatisfatórias; tinha a certeza de que devia haver algo

mais, que não podia ser apenas aquela sensação desesperante de

urgência e de alegria e depois o desconforto de não saber se a rapariga

tinha gostado, se estava a fazer as coisas bem, se tinha posto o


preservativo de maneira correta, se fazia mal dormir depois, se tinha de

parar ou se se podia pedir mais uma vez, quando pedir e quando não.

Perguntou a Vicky e ela respondeu-lhe «é tão óbvio, Gaspar». Como

podia ser assim tão óbvio, se para ele era tão difícil?

— Tens um cigarro? — pediu a rapariga.

Gaspar procurou no bolso da suéter e passou-lhe o maço. Ela olhou

para ele com desconfiança.

— Le Mans suaves?

— Fiquei sem dinheiro. São da mulher do meu tio. Ela não nota

quando lhos roubo. Ele, sim.

— O que ele fuma é melhor?

— Não. Jockey.

A rapariga deixou que ele lhe acendesse o cigarro. Gaspar olhou para

as pernas dela. Tinha os músculos definidos. A luz do isqueiro

iluminou-lhe os olhos muito escuros, delineados a azul, como uma

Cleópatra punk. Disse que se chamava Marita, e quando ele respondeu à

apresentação dizendo-lhe o seu, ela disse que Gaspar lhe parecia um

nome fantástico. Um rei mago.

— Era isso que o meu pai dizia, que era por isso que a minha mãe o

tinha escolhido. Por causa do rei mago.

Marita observou-o por entre o fumo do cigarro e Gaspar apressou-se

a explicar porque não gostava de perguntas incómodas.

— Não tenho pais. Morreram há muito tempo. Vivo com o meu tio.

No rosto dela não havia compaixão ou pena, apenas disse que sim

com a cabeça e murmurou que cena. Manteve o cigarro entre os lábios

quando se baixou para apertar os atacadores das botas. E assim, como

quem não queria a coisa, como se fosse algo tão casual como apertar os

atacadores compridos, disse-lhe que ela já o vira algumas noites, do

centro cultural, a correr até à paragem do autocarro. Vives longe daqui?


Não, respondeu Gaspar, em Villa Elisa. Mas algumas vezes venho para

estas bandas de noite.

— Vem cá dançar quando quiseres — disse Marita. — Aos sábados

damos festas. Não me parece que gostes de poesia.

— Eu não sei dançar, mas adoro poesia — respondeu Gaspar.

— Que estranho — disse ela. — Isso da poesia. Porque nenhum

rapaz sabe dançar. A não ser os gays, claro.

Marita passou-lhe o cigarro para que ele o acabasse. O filtro estava

peganhento por causa do batom brilhante, mas Gaspar não se importou.

Gostava do mundo das raparigas e das mulheres, embora não o

percebesse completamente. Gostava de como as raparigas se riam às

escondidas, de como escreviam na roupa e nos ténis e preferiam as

coisas brilhantes e prateadas, de como se preocupavam em combinar as

cores e decorar os dossiês com autocolantes das bandas preferidas ou

com fotografias de atores protegidas por tiras de fita-cola que as

tornavam transparentes, adesivas e menos frágeis ao mesmo tempo.

Gostava de que chorassem e de que se preocupassem com os cheiros, os

bons e os maus, e com a intensidade dos aromas, se aquela tinha posto

demasiado perfume, se o perfume estrangeiro que tinham comprado no

free shop era incrível ou dinheiro deitado ao lixo, se a pele dos homens

tinha cheiro e se era verdade que as cuecas húmidas cheiravam a pêssego

ou a peixe. Gostava que Julieta dissesse mais palavrões do que o tio e

que passasse horas no cabeleireiro, e embora não percebesse porque é

que um corte de cabelo feio a fazia chorar, isso entristecia-o, não o

irritava (como irritava claramente o tio, que resmungava estas

palermices não me entram na cabeça). Gostava que Julieta reparasse

quando o fecho do seu blusão se estragava e que soubesse arranjá-lo;

sabia que era melhor não discutir com ela quando as coisas lhe corriam

mal no tribunal. Gostava que Vicky lhe telefonasse e lhe dissesse: já sei
o que fazer para não se ser gozado na escola. Tem de se ser lindo ou

estranho. É por isso que não se metem contigo: porque és lindo e

estranho.

Nessa noite, Gaspar não ficou no Princesa, mas decidiu que passaria

a ser o seu pouso: já gostava dele mesmo antes de conhecer as suas

paredes pintadas de vermelho para disfarçar as manchas de humidade,

do palco rangente, da cerveja um pouco choca, da grande tábua sobre

pernas de ferro onde vendiam fanzines, discos de vinil usados, livros de

arte com algumas folhas soltas.

Vicky apoiou a cara no volante do carro e suspirou. Estou tão cansada

que nem consigo ficar zangada, disse.

Gaspar acendeu-lhe o cigarro.

— Ficamos no carro até ele arrancar, não tenho nada para fazer.

A mudança para La Plata estava a tornar-se tortuosa. O apartamento

que Vicky arranjara era escuro, não tinha varanda e a cozinha era tão

pequena, que parecia impossível que lá coubessem duas pessoas.

Perguntava-se que tamanho de frigorífico devia comprar: o que o pai lhe

queria oferecer, que era velho mas ainda funcionava, era demasiado

grande. No entanto, arrendara mesmo assim o apartamento: a renda era

baixa, adequada ao seu aspeto miserável. Na imobiliária, para a consolar,

a senhoria disse-lhe que estava bem situado e que ficava perto da

faculdade.

Ela só perguntou se no edifício ou no bairro havia muitos apagões.

Gaspar, que, como estava de férias, lhe fez companhia durante todo este

processo — encontrava-se sozinho: Luis e Julieta tinham ido ao Brasil,

ele preferira ficar em Villa Elisa e passar o verão com Marita —, ergueu

o sobrolho quando ouviu a pergunta e sentiu a ansiedade na voz trémula


de Vicky. A mim nunca me aconteceu, garantiu a senhoria, a não ser os

cortes programados pelo Alfonsín.

Agora, no carro, a fumar, Gaspar quis saber porque é que lhe tinha

perguntado pela eletricidade.

— Então não é verdade o que dizes.

— O que é que eu digo, diz lá.

— Que já superaste aquilo da Adela.

— Sim, já superei. Mas ainda restam estas sequelas. Tenho medo do

escuro. Não suporto apagões. Sempre que uma lâmpada começa a

faiscar, entro em pânico. É mais forte do que eu.

Gaspar deitou a cinza para fora da janela e coçou a cicatriz do braço.

Estava calor.

— Consegues dormir sem meias?

— E tu, continuas a ver a Adela pelos cantos?

— Menos. Contei tudo à Marita.

— E então?

— Tem pena de mim, acho eu. Mas não faz mal. Pelo menos, não

tem medo.

Vicky apoiou-se no ombro de Gaspar.

— Fico contente por ti e pela Marita. Parece-me que ela gosta de ti.

— Esta noite vamos ao Princesa. Tu já tens casa, mas se quiseres

podes ficar connosco. O Pablo tem lá expostos os desenhos dele e disse-

me que o Andrés Sigal os foi ver.

— Quem é?

— Não sejas bronca, é famoso. Fotógrafo. É diretor da galeria de

fotografia do Museu de Belas-Artes e tem uma galeria dele que é top.

— Eu vou estudar medicina, amigo. É outro mundo. Mas olha, se

calhar passo por lá esta noite.


O carro arrancou e Gaspar pensou que nunca devia deixar Vicky

sozinha no escuro. Tinha de pedir que lhe instalassem um telefone

depressa para lhe poder telefonar a ele ou ao Pablo se ficasse sem luz.

No verão costumava haver apagões na cidade: a senhoria do

apartamento mentira-lhe. Gaspar, além disso, apercebera-se de alguns

pormenores que não lhe agradaram na mulher. As meias, por exemplo.

Viam-se por baixo das pregas da saia aparentemente elegante, mas eram

meias de homem, uma verde-tropa e outra azul-marinho. A verde-tropa

parecia tapar uma ferida, imaginou um corte, mas não produzido por um

gato ou pela esquina de uma mesa, acidentes normais numa mulher da

idade dela. Uma arranhadela de garras. Lembrou-se da mão que tocava

em Pablo. Não era fria, como costumavam ser as mãos fantasma. Era

uma mão febril, uma faca aquecida no fogo. Uma ferramenta para

marcar. A maquilhagem da mulher era exagerada, como se servisse para

cobrir a pele exangue, especialmente sob os olhos, onde as faces

começavam a descair a dada altura da vida. E quando olhou para ela,

Gaspar viu um desejo horrível, uma certa inveja: aquela mulher podia

morder-lhe. Isabel disse-lhe muitas vezes que essas sensações podiam

ser auras, manifestações da epilepsia, alucinações muito particulares.

Embora confiasse em Isabel, sobretudo na sua boa vontade, há já algum

tempo que, quando ela lhe explicava os seus sintomas, ele assentia sem

convicção. Já não tinha a certeza. Aquela mulher intuía qualquer coisa,

ocultava algo ou, simplesmente, ele provocara algo nela que permanecia

adormecido, latente.

Era por isso que Vicky não devia estar sozinha às escuras. Se ficasse

sozinha, podia ser apanhada. Levada, como tinham feito com Adela.

Não conseguia explicar esta intuição, tal como nenhuma outra, tal como

não conseguia explicar a aversão que sentia por certas casas, por certas

esquinas, por planícies abandonadas. No caderno do pai, impressionara-


o o fragmento de um poema de Neruda. Julieta gostava de Neruda, lia

poemas de amor e políticos, típico dela. Era um velho de merda, dizia-

lhe, péssimo com as mulheres, mas que poeta. Gaspar mostrou-lhe o

fragmento do poema copiado pela letra nervosa, mas clara, do pai, e ela

mostrou-lhe o livro a que pertencia. Agora tinha-o no quarto, na enorme

pilha que estava em cima da mesa de cabeceira. «E empurra-me para

certos recantos, para certas casas húmidas / para hospitais onde os ossos

saem pela janela, / para certas sapatarias onde cheira a vinagre, / para

ruas horríveis como fendas. / Há pássaros cor de enxofre e horríveis

intestinos / pendurados nas portas das casas que odeio.»

As casas que odeio. Não sentira ódio no feio apartamento que Vicky

tinha arrendado. Não acreditava que fosse perigoso, apesar da pele morta

que a senhoria tentava esconder. Iria lá muitas vezes para verificar se se

tratava de um lugar seguro. Não podia perder mais ninguém.

O cinema Moreno tinha este nome ilustre, mas era o único que passava

filmes porno em La Plata, e qualquer pessoa que soubesse alguma coisa

sobre aquela rua e sobre a noite percebia que não era frequentada pelos

típicos espectadores de filmes pornográficos, nem um lugar onde os

miúdos se fossem masturbar, nem um sítio de aventuras. Assim fora, até

há pouco tempo. Em 1992, quem queria ver pornografia ia aos

videoclubes. E o cinema era o epicentro do engate, o lugar onde os

homens gays da cidade se encontravam para fazer sexo a qualquer hora,

todos os dias da semana menos às segundas, quando se fazia uma

limpeza discreta, que se notava pelo cheiro a desinfetante barato.

— Eu apanhei um bicharoco qualquer lá — dizia Max, o DJ e

responsável pelo som em geral do Princesa, enquanto limpava os dedos

sujos de óleo; também se ocupava da sua precária manutenção. —

Nunca mais lá volto. É um hospital de doenças infeciosas.


— Eu quero ir lá ver como é, mas protejo-me — disse Pablo. —

Sabes que eu uso forro duplo.

— Olha, Paul, se estás tanática, o problema é teu. Eu é que não te

levo lá, nem quero saber se rebentam com aquilo. Não estou em

condições psicofísicas de andar a tirar maricas das esquadras, já me

fartei disso. E muito menos gajas menores.

Gaspar recusou o mate que Max lhe oferecia.

— Tenho curiosidade, só isso. E não sou menor, fiz dezoito anos há

meses, estás com demência senil.

— És mesmo atrevida. Faz o que quiseres, ninguém consegue travar

uma gaja com o cio. Não vás sozinho, leva algum namoradito contigo.

Tu — disse, apontando para Gaspar —, que nem te passe pela cabeça

ires com ele para experimentares, és tão giro, que ainda te violam em

massa.

— Nem que me pagassem lá ia.

— É tão giro, este miúdo, com essa cara trágica, dás-me a volta à

cabeça.

Max estava a acabar de colocar no seu devido lugar a porta da casa

de banho, que tinha caído há várias noites. Queria que o lugar estivesse

apresentável porque Andrés Sigal ia lá pela segunda vez e esperava que

ele, no mínimo, lhes doasse algum dinheiro. A bicha ilustre podia fazer

uma coleta para nós, as bichas pobres e vanguardistas, dizia. Os

desenhos de Pablo partilhavam agora o espaço com fotografias de

raparigas travestis que viviam todas juntas num hotel ocupado, perto da

estação. Andrés, que era colecionador, comprara uma: as raparigas

estavam numa festa de aniversário à volta de um bolo decorado com

creme e pareciam felizes. Era a única fotografia feliz. Andrés era rico

porque fotografava os lugares turísticos da Argentina e os seus livros

vendiam-se nos hotéis e nos aeroportos e nas lojas de souvenirs para


turistas. Além dessas fotografias comerciais, Andrés percorrera o país

várias vezes para retratar a vida dos gays e dos travestis desde a ditadura

até meados dos anos oitenta. Na sua última visita, disse que tencionava

fazer uma retrospetiva combinada com um pouco de tudo, fotografias da

Argentina, de gays, de todas as pessoas que tinha conhecido ao longo de

quase quinze anos de idas e voltas.

O centro cultural Princesa convertera-se num polo de agitação em La

Plata. Max e Marita, que eram muito amigos e tinham sido colegas de

escola, dirigiam-no com uma enorme flexibilidade. Os recitais de poesia

rebentavam pelas costuras. Poetas locais liam os seus textos e outros

interpretavam os de autores famosos; as noites de Pizarnik e Plath eram

um êxito. Também saiu de lá a até então primeira e única marcha do

orgulho gay, pouco concorrida, mas intensa. Marita, além disso,

começara a gravar conversas com os amigos de Max infetados com VIH.

Interessava-se pelo tratamento que recebiam por parte de vizinhos,

familiares, médicos; sobre as dificuldades que tinham para adquirir os

medicamentos; se eram discriminados, se se sentiam representados

pelos ativistas de Buenos Aires, se faziam ideia do que era a ACT UP.

Por vezes, Pablo ficava a ouvir essas conversas e fazia algumas

perguntas. Marita adorava que estivesse presente. Um dia, quando

finalmente descobrissem um medicamento adequado ou uma vacina —

e tinha a certeza de que isso acabaria por acontecer —, haveria de

escrever um livro sobre esses testemunhos ou, simplesmente, publicá-lo.

Era estudante de jornalismo. Tinha milhares de planos. Uma noite,

depois de trocarem carícias no sofá da casa vazia de Villa Elisa, Marita

perguntou a Gaspar porque é que não se sentia desconfortável entre

tantos gays. Gaspar, enquanto brincava com os seus brincos em forma de

caveiras, disse-lhe quase sem pensar: acho que o meu pai era maricas.
Ou bissexual, porque sei que gostava da minha mãe e que tinha amantes

mulheres, ou, pelo menos, uma. A Tali. Catalina.

— A sério? E era aberto em relação a isso?

— Nada era aberto no meu pai. Tinha um namorado, sim, um

amante, mas viam-se pouco.

— Nunca mais o voltaste a ver?

— Ele desapareceu, e isso parece-me tão à cagão, que não me

interessa voltar a vê-lo. O meu problema é com ele, não por ter sido

namorado do meu pai. Pelo contrário: queria que vivessem juntos.

— É por isso que te sentes tão à vontade.

— Não vejo nenhuma razão para não me sentir à vontade.

E não era mentira: era uma companhia tão confortável para ele como

a da sua equipa de futebol de cinco. Às vezes, Gaspar sentia que, no

fundo, não se podia aproximar completamente de ninguém, e era por

isso que a aceitação era tão fácil. Também no Princesa, quando as festas

faziam suar as paredes e toda a gente dançava com os copos de cerveja

na mão e aos gritos, ele tinha de ir para o pátio. É o medo do

descontrolo, dizia Isabel. Durante muitos anos, devido ao caos em que tu

vivias, precisavas de controlar, de estar alerta. O descontrolo podia

desestabilizar-te, é o que tu pensas. Gostava de mudar, disse a Isabel,

mas ela, como sempre que ele exprimia algum desejo, calava-se e sorria.

— Gaspar, meu amor, faz-me um favor — disse Max quando acabou

de limpar o polegar direito. — Trouxeste as cartas, como eu te pedi?

Marita, que era responsável pela chaleira — a água do mate era a sua

obsessão, estava convencida de que mais ninguém conseguia dar com a

temperatura certa —, disse-lhe:

— Não sejas chato, que ele não acha muita piada a ler as cartas.

— És mesmo superprotetora.
— OK, sou: tenho um namorado meio esquizoide e o meu melhor

amigo tem sida. Pronto, sou superprotetora. Não me lixes.

— Isso é porque gostas de doidos e andas com bichas. Não te armes

em Florence Nightingale, agora. Por favor. Não sei como é que a aturas.

É linda, mas não faltam morenas por aí.

Gaspar pediu que não se zangassem e pegou no baralho. Max teve de

baralhá-lo e depois devolveu-lho. O baralho não estava muito usado, a

não ser uma carta, o Enforcado, que, de tanto ser manuseada, parecia

pertencer a um jogo diferente. Porque é que o pai acariciava tanto com

as pontas dos dedos essa carta, a mais estranha de todas, para Gaspar a

mais temível?

Pablo limpou a mesa para que a superfície não humedecesse as

cartas. Recebeu o baralho das mãos de Max e olhou para ele antes de

deitar as cartas. Max estava sério. Brilhavam-lhe, talvez por ter febre, os

olhos escuros. Marita deitou-se em cima de uns almofadões e Gaspar

sentiu a sua mão, os dedos cheios de anéis, a acariciar-lhe as costas.

— Dizes-me tu ou pergunto eu?

— Pergunta tu.

— Tenho umas perguntas pesadas.

Gaspar ergueu o sobrolho esquerdo. Era um gesto que herdara do pai

e que tentava evitar, sem êxito.

— Todas as perguntas o são. Pesadas, quero dizer. Não conheço

ninguém que peça para lhe lerem as cartas e pergunte parvoíces. Isso

não existe.

E pensou: o Tarot é uma linguagem velha. Lera por alto num livro do

pai, embora nunca mais se tivesse esquecido disso, que as cartas

guardam um segredo de alguma coisa que talvez tenha sido esquecida.

As cartas são esse segredo.

— Pergunta-lhes se vou morrer de sida.


— Ai, Max — disse Marita, e deixou de lhe acariciar as costas,

como se quisesse evitar distraí-lo.

Gaspar estava à espera da pergunta e, por isso, não se alterou.

Sempre que deitava as cartas, e fazia-o poucas vezes, acontecia a mesma

coisa: mantinha uma calma profissional. Escolheu uma tiragem simples

que a mãe lhe ensinara quando era muito pequeno. Tão pequeno, que

mal se lembrava dessa lição. Pôs as cartas em cima da mesa e não fez

nenhum silêncio misterioso porque nunca representava, tal como não

conseguia simular o descontrolo.

— Vais ficar bem, Máxima, por isso, vou passar a ter menos

paciência contigo. Olha para esta, para a de baixo, é a única que

interessa porque é… o futuro, por assim dizer? A conclusão. É o Sol, a

melhor carta. Às tantas, até morres de outra coisa e tudo.

Max não conseguiu disfarçar um tremor na garganta e, por isso, não

falou durante uns segundos. Os olhos de Gaspar pareciam pestanejar

menos, como os olhos de certos répteis, e essa fixação conferia-lhes uma

frieza especial; também provocava uma certa desconfiança, a de se estar

perante uma espécie híbrida.

— Se estiveres a mentir, mato-te.

— Não me poderás matar no teu leito de morte.

Max apertou os olhos com a ponta dos dedos e depois disse:

— Agora, quero perguntar pelo machão da loja da fruta.

— Para isso, não preciso das cartas: se te fizeres a ele, parte-te a

boca.

— Muito confias tu nos machões, ó boneca.

Gaspar pôs as cartas umas em cima das outras, reuniu o baralho e

olhou em seu redor.

— Não queres que te leia as cartas? — perguntou a Pablo.

Pablo olhou para ele muito sério.


— Hoje, não. Amanhã, se nos virmos.

Claro que se iam ver. Viam-se todos os dias. Pablo estudava Belas-

Artes e já era tão bom, no primeiro ano, que o tinham convidado para

ser monitor. Gaspar vira e lera alguns dos seus projetos e desenhos. Era

ousado e brilhante. Se Andrés Sigal lhe desse uma mão, seria uma

estrela.

Pablo achava que era cedo para irem ao cinema, eram sete da tarde, mas

Julián disse-lhe que era assim mesmo, que iam àquela hora para

evitarem a polícia. Os donos pagavam-lhes, mas às vezes deixavam

passar o prazo e então os bófias podiam aparecer e eram terríveis com os

maricas, gozavam com eles, eram violentos. Julián era um rapaz que

conhecera no Princesa e com quem fora dançar a outras discotecas

menos artísticas, mais divertidas; alguém com quem podia ser palerma e

bêbedo e beijar outros. Gostava de Julián e pouco mais do que isso, mas

era um companheiro ideal para ir ao cinema, para aprender como se

conheciam e se encontravam os maricas grandes, como era dar uma

queca a alguém sem rosto e às escuras.

Não estava ninguém à porta, o que era estranho, mas, quando

entraram, foram recebidos por um homem meio escondido atrás do

vidro da bilheteira: era ele que recebia o dinheiro. Depois, desciam um

andar, para as salas. No chão, junto às paredes, contornando-as como um

fio prateado, um tubo de luz de néon: a única luz que servia de guia de

uma sala para as outras. Julián riu-se, um risinho parvo e excitado, e

Pablo irritou-se, teve vontade de lhe dar uma bofetada e de sair dali. De

repente, sentiu medo, uma claustrofobia indefinida, era a luz artificial,

tão parecida com a da Casa de Adela.

Havia três salas e Julián disse-lhe que, primeiro, teriam de entrar na

Wilde, e depois iriam para aquilo a que chamavam o Túnel; ele nunca lá
tinha estado, mas era o máximo, diziam, não sabes que pila estás a

comer, não sabes nada. Seguiu-o. A sala Wilde tinha a luz do filme que

estavam a passar e mais nenhuma, a não ser duas pequenas que

assinalavam a entrada. Alguns homens fodiam nas cadeiras, outros

passeavam pelos corredores do meio e dos lados, paravam para tocar uns

nos outros, pediam lume e até conversavam. Quase parecia uma

discoteca graças à música do filme, um filme hétero com raparigas com

mamas de plástico, cabelo louro e sémen nos olhos, os homens brutais

de pelo no peito, pele de solário e pilas descomunais. Perdeu Julián na

sala. Um homem com as calças de ganga abertas aproximou-se dele e

pediu-lhe ao ouvido que lhe fizesse um broche, e Pablo ajoelhou-se e

obedeceu, excitado por obedecer àquela voz grossa, e enquanto o fazia,

com a mão do tipo, muito maior do que ele, enfiada nos seus caracóis,

desabotoou as calças para se masturbar. Só muito tempo depois é que

pensaria se não teria uma afta na boca, ou em porque é que não tinha

olhado para o pénis do homem primeiro para ver se tinha alguma ferida.

Ficava com medo sempre que era descuidado, mas assim que a

ansiedade passava, sentia desejo outra vez. A vontade de se encontrar

com um homem numa esquina e de o levar para a praça e de rirem

quando alguém passava perto deles, para ver se os denunciava. A

vontade de entrar num carro que tresandasse a sémen e a merda. A

vontade de se sentir debaixo de um peito forte e de passar uma noite

inteira a beber vinho do gargalo de uma garrafa e a cheirar coca num

prato ou nas costas de alguém, um cinzeiro cheio até acima.

Encontrou Julián perto do ecrã: estava agitado, como se se tivesse

vindo, e quando o beijou, sentiu os restos da cocaína. Pablo perguntou-

lhe ao ouvido porque é que não o convidava, mas Julián não o ouvia e só

lhe falava daquele borracho, e do outro, e felicitava-se a si próprio por

ter conseguido que usassem preservativo, parecia orgulhoso, e Pablo


pensou que era o pior momento para pensar nisso e perguntou-se como

teria sido no tempo dos mais velhos, que nunca pensavam em ter

cuidado ou em morrer ou em ficar doentes, mas também era verdade

que, dantes, os velhos nunca saíam do armário e casavam-se. Alguma

vez teria sido bom ser maricas? Virou-se e, na porta, pareceu-lhe ver os

subtis cabelos brancos de Andrés Sigal, com a camisa aberta e um

cigarro na mão. Ele devia ser o seu objetivo, mas Julián insistia em

mudar de rumo e Pablo pensou que haveria tempo para conhecer

Andrés. Toda a gente dizia que era doido por miúdos.

Foram até ao Túnel. O nome não perturbou muito Pablo, mas pensou

que, se voltasse a sentir-se claustrofóbico, poderia sair e pronto. Era uma

cave e o seu carácter subterrâneo sentia-se até na maneira como, a cada

degrau que descia, os barulhos iam ficando cada vez mais abafados. Os

homens não eram assim tantos. Era preciso descer mais uma pequena

escada. Mas, a meio, Pablo deixou de ver os degraus. Julián teve de o

ajudar a descer, tropeçando com o corrimão, com os corpos. Lá em

baixo não havia luz. Nada. Não via ecrã, nem filme. Um ou outro

isqueiro furtivo mostrava corpos que pareciam demasiado pálidos, e

estava tão escuro que nem sequer se viam as paredes, como se a cave

fosse infinita.

Pablo retrocedeu e alguém lhe puxou o braço, e então sentiu a

inconfundível descarga de adrenalina provocada pelo pânico. Depois,

quando falou da experiência a outros amigos, disse-lhes que aquele lugar

era muito perigoso, que podiam morrer pessoas lá, que a música servia

para abafar os gritos, que era fácil imaginar alguém com uma faca,

ninguém revistava ninguém, um serial killer gay, um assassino de

maricas, um louco. Matar alguém lá era a coisa mais fácil do mundo.

Era isso que pensava: aquele lugar era uma armadilha. Mas os únicos

que souberam a verdade foram Gaspar e Vicky, porque eram os únicos


que percebiam. Ele soube que o puxão era da mão fantasma, a mão que

esperou por ele na escuridão dos corredores durante tanto tempo, a mão

febril que o queria levar, que, se lhe tocasse durante mais tempo,

acreditava Pablo, podia fazer-lhe uma marca. Agora estava a salvo, no

apartamento de La Plata que a mãe descrevia orgulhosamente como

sendo «racionalista» e com «soalho de carvalho esloveno». Porém, ele

detestava-o e queria sair de lá, mas ainda não tinha dinheiro. Detestava o

irmão mais novo, tão malcriado, e o cheiro a infelicidade no ar. Mas

tinha de reconhecer que, pelo menos, a mão já não esperava por ele nos

corredores.

No Túnel, na cave negra do cinema, a mão — que podia ser de

Julián, embora nunca se tenha convencido realmente dessa hipótese

racional — voltou a ser a que julgava perdida. E agora, em vez de

cabelos e de peles e de cus, via um homem no chão com a cabeça entre

as pernas da morte; via uma garrafa partida nas mãos de uma mulher

sem olhos; via um homem com uma corda à volta do pescoço: faltava-

lhe um braço. Não quis ver mais nada. O túnel era uma festa de mortos,

uma extensão da casa que levara Adela. Não se lembrava de ter gritado,

de certeza que o fez, mas a música encobriu a humilhação e subiu as

escadas a correr, caiu, pensou que alguém o estava a puxar para baixo e

deu um pontapé num desconhecido na escuridão, e depois correu pelo

corredor até à saída sem reparar em se alguém olhou para ele com

estranheza, se alguém ficara alarmado, se alguém o insultou ou ficou

preocupado. Não havia mais nada a não ser a saída e a Rua 2, com as

suas tílias e as pessoas cansadas que iam para ou vinham da estação.

Atravessou a rua a correr, nem reparou no trânsito, e, por instinto,

telefonou a Gaspar da cabina da esquina com a única ficha que lhe

restava. Rezou para que estivesse em casa, enquanto enxugava as


lágrimas e se agachava na cabina, tentando controlar o tremor das

pernas e o coração, que batia com força e não o deixava falar.

— Apanha um táxi — disse-lhe Gaspar. — Eu pago. Depois

telefonamos a avisar que vais ficar em minha casa. Apanha já um táxi.

Pablo nunca mais voltou ao cinema. Seis meses depois, Julián estava

infetado e as visitas ao hospital eram uma procissão. Nos corredores,

Pablo recordava a cave, o homem sem braço, a múmia com uma ereção.

Julián morreu depressa, poucos meses depois: passou os últimos dias a

falar com uma voz fina de criança e a recordar os brinquedos da sua

infância. Fizeram o velório na única casa mortuária que aceitava

infetados com VIH na cidade. Max, o DJ do Princesa e amigo de Marita,

morreu três semanas depois. Ela chorava debaixo dos cobertores na

cama de Gaspar e estava zangada, furiosa e um pouco assustada: quase

nunca queria fazer sexo. Ou pedia medidas exageradas.

— Mentiste-lhe — disse uma tarde a Gaspar quando foi levar flores

ao cemitério. — Disseste-lhe que não ia morrer de sida.

— O que é que querias que eu dissesse?

— Ele estava convencido de que se ia salvar. Falava do Sol, dizia que

era a melhor carta. Isso também é mentira?

— É a melhor carta, mas saiu invertida. Quando saem de cabeça

para baixo querem dizer o oposto.

Marita sentou-se em cima da campa e enxugou as lágrimas.

— Não quero que me mintas, nunca me mintas.

Gaspar disse-lhe que sim e beijou-lhe as faces manchadas pelo rímel

escorrido, mas pensou: às vezes, há que mentir para proteger. Já te

minto. Oculto. E vou continuar a mentir-te.

Pablo pediu a Gaspar uma tiragem depois do velório de Max. Saiu-

lhe a mesma coisa que diziam as suas análises: não estava em perigo.

Era verdade que tinha cuidado, que depois do cinema decidira nunca
mais se aventurar em encontros perigosos, mas estava admirado por ser

o único saudável naquele furacão de doentes. Nesse inverno, morreram

mais dois amigos seus que costumavam frequentar o centro cultural. Um

era mais velho, tinha uns vinte e sete anos. O outro acabara de entrar na

faculdade. Na marcha organizada por Marita e Max, antes de morrer,

alguns estavam tão fracos, que tiveram de ir de cadeiras de rodas. Mas,

mesmo assim, cantavam e seguravam no microfone no palco instalado à

frente do Ministério da Saúde: acabavam sempre com insultos e depois

regressavam as canções e as lantejoulas no ar.

Nesse inverno, a casa de infância de Gaspar foi, finalmente,

arrendada. Uma família de dois jovens com filhos. A renda era alta. É

uma casa cara, dizia Luis, porque é uma casa nobre. O teu pai não fez o

mínimo esforço para a conservar em bom estado e, no entanto, não tem

grandes problemas, nem sequer de humidade.

Foram meses tão tristes e intensos, que Gaspar quase não prestou

atenção à gravidez de Julieta, um autêntico acontecimento, a começar

pela discussão que teve com o tio quando recebeu a notícia. Gaspar

perguntou-lhe: mas tu não és demasiado velho para seres pai?, e a

pergunta provocou uma discussão cheia de recriminações (queres ter um

filho normal, não suportas o filho louco?) e algumas piadas (vais levá-lo

ao futebol de bengala?). A discussão escalou e Gaspar, num dos ataques

de ira que às vezes se apoderavam dele, atirou um jarro contra a parede,

um jarro de sumo de romã: o líquido vermelho manchou o chão e a

toalha. Luis exigiu-lhe que limpasse tudo e Gaspar recusou-se a fazê-lo,

batendo com a porta.

Julieta queria ser mãe: ainda era nova, mas não tanto assim; se

quisesse ter filhos, estava na altura certa. Não tinham colocado a questão

a Gaspar nestes termos, mas, afinal de contas, ele podia e devia sabê-lo.

O amuo passou no dia seguinte e pediu tantas desculpas, que Luis o


mandou calar. Pelo menos, dá-me os parabéns, porra, como é que podes

ter ciúmes, se tu soubesses o quanto eu gosto de ti. Gaspar não estava

com ciúmes, pensava. Detestava mudanças: era isso. Oxalá as coisas

permanecessem sempre iguais, oxalá esta casa, que é como um porto

seguro na tempestade, existisse para sempre e sempre para nós, sem

mais ninguém, sem tempo, sem futuro. O facto de os bebés serem

gémeos era esquisito: seria caro sustentar dois filhos, dariam muito

trabalho e isso significaria que Julieta teria de deixar de trabalhar

durante mais tempo do que o previsto.

Os meninos nasceram por cesariana e foram batizados com os nomes

de Salvador e Juan. Gaspar sentiu vertigens ao constatar que eles apenas

lhe provocavam um vago sentimento de ternura e muito tédio. Jamais

terei filhos, pensou enquanto pegava neles ao colo ansioso por devolvê-

los, por se afastar do cheiro a leite e dos sorrisos emocionados, das

preocupações com o dinheiro e o preço das fraldas descartáveis, das

lágrimas. Que faria se Marita quisesse ter um bebé? Nunca tinham

falado sobre esse assunto, e ultimamente não faziam lá muito sexo,

porque ela andava paranoica. Ou mais qualquer coisa. Não sabia.

Percebia que estava de luto pelos amigos e que isso era difícil; deixava-a

em paz. Se calhasse de engravidar, pensou, seria melhor falar com ele

primeiro, porque teria de a deixar. Embora gostasse muito dela. Quando

os trouxeram para casa, os gémeos revelaram-se uns chatos e uns

chorões e, na opinião de Gaspar, ocupavam demasiado espaço, mesmo

sendo tão pequenos. Ele, apesar do pedido calado nos olhos do tio e de

Julieta, decidiu não dedicar um só segundo aos bebés. Isso significava

passar cada vez menos tempo em casa. Tinha muitos lugares onde estar e

até mesmo onde dormir. O tio queria que fosse para a universidade, mas

Gaspar não sabia o que estudar nem para quê e passava o tempo todo no

Princesa. Pablo quase se mudara para lá. Também fui expulso por causa
de uma criança, disse-lhe uma tarde. O meu irmão é o problema e a

minha mãe não nos quer juntos, porque tem medo de que o contagie

com alguma coisa. O Princesa era uma casa ocupada e os senhorios

nunca tinham aparecido para a reclamar. Marita investigou, porque uma

casa tão perto do centro tinha muito valor e ela não queria que a

expulsassem de lá e, dizia, também não tinha energia para se barricar e

defender o lugar. Havia uns senhorios, tinha os nomes deles, mas

enquanto não reclamassem a casa, poderiam usá-la.

A informação sobre os senhorios inquietou Gaspar. O mesmo

sucedia com a casa da Rua Villarreal: ninguém a reclamava. Ele nunca

sentira nada de perturbador em relação ao Princesa e confiava no seu

instinto, mas não gostava de senhorios fantasma, não gostava de casas

que ninguém queria e que convidavam a ser visitadas com as suas

janelas semelhantes a olhos semicerrados, casas como putas que

exibiam as pernas nas esquinas, a boca vermelha e as luzes de néon, a

luz doentia idêntica à do hospital onde os amigos iam morrer e onde

Vicky estava a fazer o estágio e onde se despedira do pai, cujos olhos,

no fim, se tornaram pretos como escaravelhos, como os de Omaira, que

ainda regressava para tocar nos pés de Vicky à noite, pretos e brilhantes

como insetos, como os besouros que chocavam contra as luzes do pátio

da casa de Villa Elisa nas noites de verão. Tinha de pensar menos, às

vezes, de desativar as ligações. Marita queria sempre que fumassem

marijuana, vai acalmar-te, dizia-lhe.

Pablo estava a acabar o projeto de desenhos e fotografias de amantes

com caras de poetas. Gaspar ajudava-o a fazer as máscaras e também o

ensinava a ler poesia. Quero que tenham todos menos de trinta anos

porque o projeto se vai chamar «30 com menos de 30», e serão trinta

tipos, alguns fotografados, outros desenhados. Agora que penso nisso, na

verdade posso incluir mulheres.


Gaspar decidiu investigar. Conhecia vários poetas mortos antes dos

trinta, mas teve de procurar os outros nas bibliotecas. Os livros do pai

também ajudaram muito. Todos os dias a lista de Pablo aumentava.

Sylvia Plath tinha trinta, era à justa. Suicidou-se enfiando a cabeça no

forno, os filhos estavam no quarto do lado, isolou-o com fita adesiva,

toalhas e roupa para não lhes chegar o cheiro a gás, e deixou-lhes leite.

Porque é que se matou?, perguntou Vicky, que ia pouco ao centro

cultural porque o curso de medicina era muito exigente. Acabara de se

separar e parecia que aquilo a deprimiu. A Emily Brontë também dá à

justa, tinha trinta, morreu de tuberculose. Keats. Era o preferido do meu

pai e eu também adoro. Morreu de tuberculose com vinte e cinco anos.

Custava-me lê-lo, quando era pequeno, mas agora é dos que mais gosto.

Chatterton, acho que tinha dezassete, matou-se com arsénico. O Shelley

afogou-se com trinta, era o marido da Mary Shelley, a do Frankenstein.

O Novalis, tuberculoso, vinte e oito. Há um que tem mais, trinta e cinco,

caiu de bêbedo no chão em Londres, mas espera, o tipo era um maricas

reprimido e primo do Bosie, Lord Alfred Douglas, o namorado do Oscar

Wilde. Lionel Johnson, chamava-se esse bêbedo, era completamente

marado. Gosto muito dele. Um livro do meu pai tinha uma seleção de

poemas dele escolhidos pelo Yeats. Não tens o Yeats? Ganhou um

Nobel. Não importa. Põe o Lionel Johnson, é mais velho, mas encaixa.

O Asunción Silva deu um tiro no coração, obrigou o médico a desenhar

o ponto onde teria de disparar. Que anormal, o médico, que não

percebeu, disse Vicky. O Georg Trakl, vinte e sete anos, de uma

overdose de cocaína, acredita, naquela época. A Teresa Wilms Montt,

uma rapariga da classe alta chilena. Suicidou-se em Paris com vinte e

oito. Encontrei-a na biblioteca e fotocopiei tudo. É impossível ver uma

fotografia dela e não ficar apaixonado. Há um de cá, também, de La

Plata, mas é uma loucura total, parece que encontraram o corpo dele
mumificado num cemitério de Tolosa. Chamava-se Matías Behety.

Morreu louco, bêbedo, mas a múmia esteve exposta na capela durante

um tempo e tinha fiéis, parece que fazia curas milagrosas, fizeram-lhe

uma espécie de altar. Também tinha mais de trinta, mas diz lá se a

história dele não é fantástica. Procurei os poemas dele, mas o coitado era

péssimo. Porque é que não os citas, aos bons? O Trakl tem umas coisas

tremendas, muito sombrias. Podes pôr as fotografias e os desenhos e

alguma citação. Sim, disse Pablo, mas também não pode ser

esquemático. Podem ser citações, sim, e sobre o quê. Escolhe tu as

citações, que percebes mais disto. Depois eu logo seleciono as que

quiser. E não procures os grandes, mesmo que tenham histórias

incríveis. E ainda menos esse da múmia, não quero ter nada a ver com

múmias.

— Não sei se vais ter poetas suficientes, mas também há pintores —

disse Gaspar.

— Esses conheço-os eu — disse Pablo. — E já pensei. Não quero.

Só poetas. E nada de músicos, ainda é pior, é demasiado óbvio e muito

piroso.

Vou continuar à procura, disse Gaspar, e passava as noites com a

Marita a dormir a seu lado e ele a sublinhar poetas que morreram novos,

quase todos suicidas. Às vezes lia na cama e ela pedia-lhe que repetisse.

Não vão incluir o Rimbaud?, perguntou-lhe ela. Era punk. Era lindo,

como tu. Gaspar bufou. Quer que sejam mais novos, têm de ter todos

menos de trinta anos, e, além disso, há um fotógrafo famoso que já fez

um trabalho parecido só com a cara do Rimbaud.

— Ah, então está a copiá-lo — disse Marita.

— Ele diz que está a «citar».

— São rapazes com a cara do Rimbaud em Nova Iorque — contou-

lhe Gaspar. — Algumas das fotografias foram tiradas nuns edifícios


abandonados perto do rio. Têm uma máscara do Rimbaud, são muito

magros. Alguns estão a injetar-se com heroína no braço, outros a ler o

jornal, outros caminham de noite pela cidade. O Pablo tem as

fotografias. São muito bonitas.

— Como é que se chama o fotógrafo? — perguntou Marita, tapando

as pernas, que tinham ficado nuas.

— Não me lembro, mas morreu de sida há alguns anos.

— Ai, não, basta de mortos — respondeu-lhe, e pediu-lhe que

apagasse a luz, e quando Gaspar lhe tentou acariciar a barriga, deu meia-

volta com um queixume ligeiro, como se tivesse sono. Ele sabia que não

era cansaço ou mau humor, mas rejeição, e como deveria lidar com

aquela rejeição, perguntava-se; ia passar-lhe, era só uma fase, já não

gostava dele, todas as perguntas que queria fazer-lhe ficaram suspensas

na escuridão do quarto, na lâmpada cintilante, no desconforto entre dois

corpos que queriam estar separados.

Marita gritou-lhe durante uma zanga, disse-lhe que tinha o direito de

estar presente nos encontros deles, que suportara muita coisa. Gaspar só

percebeu a meias o significado da recriminação, mas sabia que não eram

ciúmes. Marita, como dizia o seu tio, estava a passar-lhe a fatura. Não

podia deixar que ela estivesse presente nos encontros dele com Vicky e

Pablo. Eram deles. Seria como meter a foice em seara alheia, e voltava a

citar o tio, que tinha ditados para tudo: era o tipo mais antiquado e mais

moderno do mundo, pensava Gaspar. E nunca lhe passara a fatura

durante todos os anos que cuidou dele, anos de sobrinho louco e de

neurologistas, psiquiatras, diagnósticos, esquizofrenia, epilepsia,

alucinações e agora aquele limbo, compensado, como se dizia, estava

compensado, tão equilibrado que Luis até se atrevera a ter a sua própria

família. Após os primeiros meses, deixara de lhe pedir que o ajudasse


com os gémeos. O que isso significava não era muito bom. Luis confiava

em Gaspar, exceto numa coisa: muito de vez em quando, mas com muita

intensidade, ficava zangado. E quando se zangava partia coisas e

magoava-se e era imparável, forte, tinha algo de animal aterrado. Partira

ao pontapé o roupeiro, que ainda estava esburacado. Todos os pratos

numa noite depois de uma discussão não muito importante. Atirara a

roupa toda para a rua, e uma vez, à mesa, magoara-se à frente do tio de

propósito com o garfo, que brandira nervosamente durante a discussão

para o espetar na mão. Isabel, a psiquiatra, falava de gestão da raiva, mas

não lhe recomendou nada urgente. A minha filha grita que me odeia,

deixa-te de merdas, é um puto fantástico, ouviu-a Gaspar dizer durante

um churrasco; o Negro levantava demasiado a voz quando estava

bêbedo. Para já, Gaspar não fora violento com ninguém, a não ser

consigo próprio. No entanto, às vezes, quando voltava da natação ou de

casa de Marita, ou do campo de futebol, decidia que podia insultar

alguém na rua só porque sim e desatava à pancada para descarregar. A

vontade de partir qualquer coisa ou alguém era como a vontade de correr

ou a sede: urgentes. Calmantes.

A casa era suficientemente grande para garantir a privacidade, fosse

como fosse. No pátio amplo, Luis e alguns pedreiros seus amigos tinham

construído uma pequena churrasqueira coberta não muito confortável,

mas bem feita. Como as festas lá em casa se tinham tornado menos

frequentes desde o nascimento dos bebés, Gaspar apoderara-se do

espaço e ninguém o recriminou por isso. Era o seu estúdio, quente no

inverno e fresco no verão: a churrasqueira tinha radiador e ventoinha.

Levou para lá o colchão, a aparelhagem, uma das televisões pequenas, os

livros. Tornou-se um lugar muito mais conveniente para estar com

Marita, que tinha deixado lá algumas cuecas, umas calças e pensos

higiénicos na mesa de cabeceira, tudo com os seus devidos detalhes: as


calças com corações pretos pintados com canetas de feltro, as cuecas

brancas de algodão, os pensos dentro de uma bolsinha de falso veludo

preto para disfarçar o seu conteúdo.

Lá, na churrasqueira, com o radiador ligado e a janela entreaberta,

em cima do colchão de casal, Vicky, Gaspar e Pablo juntavam-se quando

podiam, e podiam muitas vezes. Marita não era convidada para esses

encontros. Sentavam-se e recordavam e falavam sobre o que continuava

a acontecer. Se estivessem juntos, não fazia mal recordar. Gaspar, às

vezes, quando a recordação era demasiado intensa, tinha de respirar

fundo e avisava que tinha de parar, porque, se não o fizesse, sentiria a

carícia horrível do medo a paralisá-lo, a obrigá-lo a meter-se na cama e,

até, a imobilizar-lhe as pupilas. Um neurologista explicou-lhe que certas

epilepsias tinham sintomas apenas psíquicos, uma sensação de medo —

às vezes de euforia —, de déjà-vu, e às vezes esse medo era paralisante.

Nunca tinham encontrado nele as provas definitivas de uma epilepsia ou

de uma lesão cerebral. Os exames eram sempre incertos, passíveis de

várias interpretações. Tomava a medicação de maneira errática, em geral

fingia que o fazia. Vicky zangava-se com ele, Vicky, a médica, a

racional. Durante muito tempo, as enxaquecas foram diagnosticadas

como epilepsia, dizia-lhe, e tu tens imensas, demasiadas. É verdade, mas

o pai sofria de enxaquecas, o tio também, e nenhum dos dois era

epilético.

Porém, não falavam disso. Falavam sobre Adela e sobre a casa. Fora

demolida havia pouco tempo com o beneplácito dos donos, que nunca a

conseguiram vender e que, claramente, não o conseguiriam fazer nunca.

Vicky foi até ao terreno várias vezes, os pais ainda viviam lá perto.

Alguns rapazes tinham grafitado a única parede que permanecia de pé,

mas não muito. Aquele lugar assustava toda a gente. Tinha o mesmo

aspeto dos lugares onde aconteceu alguma coisa má: um ar de


expetativa. Os lugares maus esperam, ou procuram, que o mal volte a

acontecer.

— É como um íman — dizia Pablo, que passou diante dela uma vez

em que fora visitar os pais de Vicky. — Sempre foi.

E Gaspar dizia que preferia evitar qualquer visita ao bairro da sua

infância. Era uma pena por causa de Hugo e de Lidia Peirano, porque

tinha saudades deles. Não quero que pensem que sou um ingrato, disse a

Vicky, mas ela sossegou-o. Telefona-lhes de vez em quando. Isso será

suficiente para eles. Às vezes Gaspar tinha, em relação aos Peirano, a

mesma sensação que com Esteban e Tali: não percebia porque é que

tinham deixado de o ver. Ou porque é que se tinham ido embora, como

Betty, a mãe de Adela. Como se o seu pai tivesse ordenado a todos que

não o incomodassem.

Gaspar pegara num dos papéis de desenho do tio, muito grande, dos

que se usavam para fazer projetos. E lá, pouco a pouco, com as

recordações dos três, há mais ou menos um ano que estavam a

reconstruir a casa que tinham visto quando Adela desapareceu. Pablo

desenhava o plano. Demoraram algum tempo a recordar a localização

das estantes. O lugar da escada. As portas. O piano. A roupa velha, os

livros de medicina. Que livros seriam aqueles? Porque estavam lá? Um

era verde, dizia Viky. Pablo dizia que era azul-claro. No desenho, não o

pintavam. Escreviam ao lado do desenho: «Cor duvidosa».

— Escreve que não era vermelho — disse uma vez Vicky. —

Eliminemos hipóteses.

Havia pouco tempo, ela começara a falar do zumbido e das vozes

que tinha ouvido. Custava-lhe lembrar-se do que diziam, mas recordava

certas entoações. Uma voz de comando, uma voz assustada, uma voz

monótona.
Pablo falava das mãos que lhe tinham tocado dentro da casa.

Tinham-lhe tocado nas costas, sobretudo. E no braço. Sempre o braço.

Se calhar, a mão que o puxava nos corredores não era uma mão

fantasma, mas uma recordação materializada, pensava Vicky.

— Eu via, tu ouviste, ele sentiu — disse Gaspar. — Alguma coisa

haveremos de conseguir com isto.

Vicky, encostada à parede, pôs a tocar um disco de que gostava e

disse:

— Não vamos encontrar a Adela, Gaspar.

Ele acariciou o desenho, o plano, e queixou-se com um estalido da

língua porque o desenho lhe parecia incompleto. Não respondeu a

Vicky. Todos julgavam que era possível encontrá-la. Caso contrário, não

estariam ali, a relembrar os passos na escuridão com o zumbido nos

ouvidos.

— Ah — disse a Pablo, mudando de assunto —, encontrei mais dois

poetas, o Rupert Brooke, que morreu com uma infeção na guerra, com

vinte e seis anos. Na Primeira Guerra Mundial. Diziam que era o rapaz

mais bonito de Inglaterra, procura fotografias dele. Já leste Este Lado do

Paraíso? Bom, o título é um verso dele. Vocês leem muito pouco. Era

gay ou bissexual. E o Wilfred Owen, mais novo, vinte e cinco anos,

morreu uma semana antes do fim da guerra, a sério. É muito bom.

— Onde é que desencantaste estes?

— Num livro da minha mãe sobre a arte e a Guerra de 1914. Tem

uns quadros incríveis. É um livro muito triste.

Não ficou surpreendido com a notícia, porque havia meses que Marita

andava à procura de uma desculpa. Gaspar, porque não sabia o que fazer,

decidiu ir correr. Havia algum tempo que fazia um circuito na zona onde

acabavam as ruas asfaltadas de Villa Elisa e começavam as de terra, as


primeiras de vivendas com jardins em ambos os lados, a seguir terrenos

baldios, e depois pequenas quintas até ao campo. Bebia água em

pequenos goles antes de empreender o caminho de volta, sentado na

relva. Antevira aquilo. Ela não queria sair com ele ou, quando dizia que

sim, de repente ficava com dores de cabeça ou tinha frio e preferia ficar

em casa. Também lhe gritara por telefone, depois de uma discussão

idiota por causa de uns discos que ele se esquecera de lhe devolver.

Pirralho de merda, disse-lhe, para o magoar. Tentava ofendê-lo. E agora

Gaspar sabia porquê. Quando soube que lhe andava a pôr os cornos não

ficou surpreendido. O que o surpreendeu foi a sua própria fúria. Mal

conhecia o rapaz em questão. Chamava-se Guille. Sabia que estava com

Marita porque os seguiu. Tinha-os visto a beber cervejas no bar

Meridiano. Era filho de alguém, não sabia bem de quem, de um político,

de um legislador. Moreno, alto, usava casacos e botas militares e Gaspar

achava que parecia mais nazi do que punk. Conhecia-o como se conhece

toda a gente em La Plata: de ir buscar bilhetes para discotecas na Rua 8,

dos concertos, das marchas, até do Princesa uma ou outra vez. Não o

aquecia nem arrefecia, nunca pensara no rapaz. Até agora, que imaginá-

los juntos enlouquecia-o de ciúme. Tinha-os visto a beijarem-se no bar.

O Guille enfiava os dedos debaixo da t-shirt de Marita, uma t-shirt às

riscas pretas e brancas que Gaspar conhecia perfeitamente e que ela

salpicava com o seu perfume preferido, Obsession, da Calvin Klein, que

era caro, e às vezes os amigos do pai traziam-lho do duty free quando

iam ao Uruguai. Apesar disso, a t-shirt às vezes tresandava a churrasco,

porque a casa de Marita não tinha boa ventilação e o cheiro a comida

costumava ficar impregnado na roupa dela quando deixava a porta do

quarto aberta. Apoiava a outra mão nas calças de ganga, umas muito

justas que Gaspar detestava porque eram difíceis de tirar. Não lhe tocava
no cabelo, o imbecil. O cabelo de Marita cheirava a chuva sobre terra

seca.

Não conseguiu dormir depois de os ver, era por isso que agora corria

insone e esgotado, com os joelhos um pouco trémulos e o peito fechado

como o de um asmático. Queria correr até desmaiar, mas o seu corpo

não funcionava assim. Não estava fraco. Voltou para casa a pensar em se

devia lutar com Guille ou telefonar a Marita, mas quando se enfiou no

duche e a água quente lhe bateu na nuca, sentiu uma vontade feroz de se

magoar. Não conseguira fazer com que Marita ficasse com ele. Ela sabia

que não fazia sentido ficar com um louco, com um doente, com uma

pessoa arruinada. O que é que ele lhe podia oferecer? Nem sequer se

embebedavam juntos, porque ele e os seus comprimidos o impediam de

se divertir; muitas vezes, tinha de ir para a cama cedo porque estava a

morrer de sono. Falava-lhe de poetas e da sua infância numa casa vazia.

Acompanhara-a durante o enterro dos amigos porque disso sabia ele, da

morte e de amigos que se iam embora para sempre. Bateu com a testa

nos azulejos da casa de banho e a dor animou-o, encheu-lhe o corpo de

euforia e, por isso, continuou até ver a água a misturar-se com o sangue.

Saiu do duche e olhou-se ao espelho, a testa magoada, as pupilas dos

olhos dilatadas, o cabelo um pouco comprido a escorrer sobre os

ombros. Deu um murro no espelho do armário, e outro, até o partir, e

então arrancou o vidro para se cortar, lera que tinha de ser um corte

vertical na parte interior do braço, não podia ser nos pulsos, não se

atingia nenhuma artéria.

Começara a rasgar a pele quando Luis entrou na casa de banho.

— O que é que estás a fazer, filho? — gritou-lhe, tirando-lhe

imediatamente o pedaço de espelho da mão. Gaspar ficou furioso e

tentou bater-lhe, mas Luis era rápido e abraçou-o por trás, apertou-lhe a

barriga até o asfixiar, imobilizar, e arrastou-o para fora da casa de banho.


Com um só movimento, recuperou as calças e a t-shirt de Gaspar. Não

falou do corte no braço, nem do que vira. Não disse suicídio, não falou

da tentativa, nada. Só disse: Gaspar, seca-te e veste-te. E vamos para a

cozinha.

Gaspar obedeceu-lhe, mas estava furioso. Quando chegou à cozinha,

pegou na garrafa de vinho que estava em cima da mesa e atirou-a para o

chão. Os vidros saltaram para todo o lado. Julieta espreitou do quarto

com um dos bebés ao colo.

— Que merda está a acontecer? — gritou.

— Nada, nós tratamos disto — disse Luis com voz calma.

— Controla-me esse puto, estás a ouvir? — Julieta bateu com a porta

e Luis respirou fundo.

— O que foi? — disse Gaspar. — Tens medo de discutir com ela? És

um cagão. Foi por isso que fugiste do país, não foi?

Luis sentou Gaspar com um empurrão e depois sentou-se diante

dele, frente a frente, um de cada lado da mesa.

— Não me vais ofender, Gaspar. Nem me vais enfurecer. Não sabes

aquilo por que passei e não me importa a tua opinião acerca das minhas

decisões. Nada. Se andas a tentar que eu te ponha a mão em cima, fica

sabendo uma coisa desde já: eu nunca te vou bater, jamais. Podes

chamar-me cobarde horas a fio, se te der na veneta.

Gaspar levou as duas mãos à cabeça e, de repente, antes de que Luis

se conseguisse pôr de pé e aproximar-se dele para o impedir, bateu na

mesa com a mão magoada uma e outra vez, com muita força, e Luis

deteve-o quando ia bater com a cabeça outra vez. Abraçou-o por trás,

pediu-lhe ao ouvido que se acalmasse, como fazia quando era mais

pequeno, só que agora era difícil contê-lo, já era um homem da mesma

altura que ele, e Gaspar tinha uma forma física extraordinária e a força

de uma pessoa treinada.


— O que é que tu queres, filho?

— Que me deem um enxerto de porrada — disse Gaspar, e embora a

voz saísse de uma garganta endurecida, embora a voz fosse mais grossa,

não chorava e não ia chorar. — Quero que me matem à pancada. Matei

uma miúda, mereço tudo. A Marita deixou-me, está com outro, sou uma

merda.

— Tu não mataste ninguém, é essa história outra vez?

Luis bufou e largou Gaspar, que apoiou as mãos na mesa e ficou

calado.

— Levaste-a até à casa. Mas isso não significa que a mataste.

Quantas vezes te temos de dizer a mesma coisa, Gaspar. Bom, nesta casa

não te vamos castigar por aquilo que não fizeste. Podes dar cabo de ti

por causa de uma mulher se te der na veneta. Mulheres não te hão de

faltar. Estás assim tão zangado? Gostas muito dela?

Gaspar levantou-se para ir buscar uma garrafa de água fresca. Tirou-

a do frigorífico e apoiou-a na testa. Depois, encheu dois copos. Estava a

tremer. Luis pediu-lhe que lhe trouxesse vinho. Beberam em silêncio

durante um bocado.

— Todos fazemos merda, filho. Eu pus os cornos à Mónica e não

imaginas como eu gostava dela. Se calhar, tu vais acabar por perdoar a

Marita.

— Se ela não queria estar comigo, podia pedir-me um tempo.

Enganar-me é de filha da puta.

— Não sejas tão duro. A vida é diferente.

Lá fora já estava a anoitecer e Luis disse que ia cozinhar qualquer

coisa, e perguntou a Gaspar se queria comer. Gaspar preferiu esperar

pela comida numa espreguiçadeira, a olhar para o céu noturno.

Começara a doer-lhe a cabeça e, como sempre antes de uma enxaqueca,

tinha pequenas alucinações. Naquele preciso instante, por exemplo, a luz


ténue das estrelas produzia um estranho reflexo, uma espécie de talisca

que se sacudia e se abria, a primeira flor. As flores negras que crescem

no céu. De repente, a presença do pai foi tão esmagadora, que o

adivinhou de pé atrás dele, mas não sentiu medo. Levantou a mão

saudável para ver se conseguia sentir o pai a tocar-lhe.

Gaspar adormeceu na espreguiçadeira e só acordou quando o tio o

tapou com um cobertor antes de ir jantar sozinho na mesa da cozinha.

Julieta não quisera sair do quarto. Estava muito zangada.

Quando acordou, a casa cheirava a relva, a leite e ao perfume de

Julieta. A dor de cabeça insinuava-se com sanha atrás do olho direito;

tinha a cara dormente e mal conseguia esticar os dedos, mas sentia,

ainda, uma espécie de euforia.

Ouviu os passos inconfundíveis do tio a dirigir-se para a casa de

banho. Tinha de passar pela sala antes de lá chegar.

— Que fazes aí?, assustaste-me.

Em vez de voltar para a cama, quando saiu da casa de banho o tio foi

buscar um copo de vinho à cozinha. Também não conseguia dormir.

Não acendeu a luz: a Lua iluminava a sala, o candeeiro do pátio estava

aceso e o cortinado da janela, corrido.

Gaspar estendeu o braço na direção de Luis. Era o braço da marca,

da cicatriz escura de uma ferida profunda.

— Isto não foi um acidente, tio. Foi o meu pai que me fez isto.

Luis deteve o copo a meio caminho da boca.

— O que é que ele te fez?

— Cortou-me o braço com um vidro. E também me mordeu. Só o

Pablo é que sabe isto.

— Tu caíste em tua casa contra uma janela, Gaspar.

— Não. Essa foi a mentira que eu contei. Para o encobrir. Mas não

foi ele que me pediu, hã, ele estava-se nas tintas. Bah! Não sei: se calhar,
não estava. Às vezes penso que ele precisou de me fazer isto.

— Precisou? Meu Deus, o que é que tu estás para aí a dizer?

— Tem forma, estás a ver? Lembro-me de como ele fez para lhe dar

esta forma. Mexia-me o braço como se estivesse a desenhar o corte.

Nem sequer parou quando o vidro bateu no osso. Ele era assim e, se

calhar, eu também sou assim.

Luis levantou-se do sofá e sentou-se ao lado de Gaspar para o

abraçar, mas constatou que o braço da cicatriz, que estava esticado, o

impedia de se aproximar dele. Isso e os olhos de Gaspar, que não

queriam consolo. Luis falou passado um pouco. Queria saber mais

pormenores. Queria saber se já tinha falado disso a Isabel, a psiquiatra.

Não duvidava dele. Para Gaspar, falar deste assunto não fora um alívio.

Pelo contrário. Agora, a cicatriz ardia-lhe e conseguia imaginar o gesto

de desprezo do pai a dizer-lhe que era um fraco e um traidor.

Especialmente isso, um traidor. Sentia que o denunciara.

Vicky gostava daquele verão no hospital, o primeiro do estágio. Preferia

estar no hospital que na faculdade, apesar da tensão e das muitas horas

sem dormir e do estado febril das insónias forçadas. Alguns colegas seus

tomavam estimulantes — a maioria, anfetaminas; todos, café; alguns,

cocaína —, mas ela aprendera que, passado um tempo, a falta de sono se

tornava uma espécie de radiador ligado em modo económico: estava

alerta, ardia e poupava energia. Não era necessário avivar as chamas.

No hospital havia falta de gaze e de luvas, os colchões eram velhos e

muitos estavam cheios de humidade acumulada ao longo dos anos e

cheiravam mal, havia quartos com rachas e goteiras. Mas trabalhava-se

bem, apesar de tudo, embora nalguns sábados de madrugada tivessem de

acomodar os arruaceiros e os bêbedos nos corredores, embora às vezes

tivessem de discutir com os amigos e os familiares dos doentes que


ninguém impedia de ultrapassar os limites da sala de espera das

urgências, às vezes violentamente. O chefe de serviço era um médico

novo, muito arrogante e atraente. Há meses que Vicky lhe chamara a

atenção depois de um final de manhã estranho: dera entrada no hospital

uma rapariga com a pálpebra descaída, dificuldade em engolir, a cara

inerte. Um dos colegas disse que podia ser uma paralisia facial. O chefe

de serviço inclinou-se mais para um acidente vascular cerebral quando a

rapariga acrescentou que era hipertensa e que lhe doía a cabeça de vez

em quando. Victoria sentiu uma certeza tão grande, que chegou mesmo

a erguer a voz para defender o seu ponto de vista. É miastenia, disse.

Não a desautorizaram, mas não consideraram examinar a paciente de

acordo com essa hipótese porque, como disse o chefe, estatisticamente

era a menos provável. É isso que ela tem, insistiu Victoria, e foi muito

enfática; e quando viu que estava prestes a perder a discussão, perguntou

à paciente se estava com visão dupla. A rapariga disse que sim. Que

achava que devia estar a precisar de óculos ou que, se calhar, era do

cansaço. Vicky lembrou-se de uma coisa muito simples. Façamos-lhe

uma radiografia ao tórax, disse. A miastenia pode ser causada por um

timoma. Se tiver um timoma, ficamos a saber que tenho razão. É só uma

chapa, são dois minutos, é rotineiro.

Havia qualquer coisa na insistência dela e na pertinência das

perguntas (se lhe custava falar, por exemplo, pronunciar os erres, se às

vezes, de noite, se sentia tão cansada a ponto de não conseguir mexer os

braços), que atravessou a barreira da displicência e o chefe mandou tirar

a radiografia. Com efeito, tinha um grande timoma. Felicitaram Victoria

e ela sentiu-se eufórica, mas depois apercebeu-se de que o seu

diagnóstico era uma catástrofe para a paciente e que nem sequer fora ter

com ela para lhe explicar o que tinha. Mais tarde, quando contou a Pablo

o que acontecera, ele disse-lhe que relativamente a essa parte da


medicina, a empatia, ela não estava lá muito desenvolvida, e ela deu-lhe

um empurrão, ofendida, mas também magoada, porque tinha alguma

razão. Custava-lhe ver as pessoas por detrás das patologias. A mãe

dissera-lhe que, se calhar, seria melhor que ela se especializasse numa

área científica. Como a tua irmã, que vai estudar Ciências

Farmacêuticas. Vicky não conseguia, nem queria, forçar a afabilidade.

Tinha de ser eficiente e certeira para curar. Que outro se incumbisse de

enxugar lágrimas e acalmar pânicos: ela estava demasiado ocupada.

Os diagnósticos precisos continuaram a acontecer. Não com a

pontualidade de um relógio, mas o número de vezes suficiente para que

os colegas a olhassem ora com admiração, ora com inveja, para que o

chefe oscilasse entre a agressividade e a confiança e para que as notícias

da sua «aptidão» dessem a volta ao hospital e a passassem a chamar de

bruxinha e doutora da bola de cristal.

Victoria gostava disso, mas também a perturbava. Sentia que essa

aptidão vinha de um lugar irracional. Não tinha a ver com a aplicação de

métodos dedutivos. Sempre que acertava num diagnóstico — nem

sempre mau: às vezes, descartava quadros aparentemente graves, mas

que, na verdade, eram inofensivos, ou apercebia-se de que o menino que

parecia estar a ter um ataque de asma tinha uma insuficiência cardíaca

—, sentia um apagão na cabeça. Um apagão momentâneo, o contrário

de um clarão e, então, tinha a certeza. Muitas noites, após um

diagnóstico desse tipo, tinha dificuldade em adormecer ou, quando

dormia, sonhava com a casa ou com Adela. Os sonhos com Adela não

eram aterradores, em sentido estrito. A amiga aparecia nas urgências,

por exemplo, a queixar-se de uma dor fantasma no braço. Nos sonhos já

era uma mulher e estava diferente, tinha crescido ao mesmo tempo do

que ela. Não podia ser coincidência. Sabia que a casa lhe tirara coisas, a

começar pela amiga. Sentia que a distância que estabelecia com os


pacientes era mais uma consequência da casa, uma certa empatia

perdida naquela noite para se defender de uma derrocada mental como a

que sofrera, e sofria, Gaspar. É provável que tivesse sido a casa a dar-lhe

a sua aptidão. Às vezes, pensava que era uma forma de agradecimento

por lhe ter dado Adela. Sempre que fazia um diagnóstico, não só tinha

de dormir com meias, como sempre, como se tinha de tapar com um

lençol, se possível: não havia dúvida de que, nessa noite, sentiria os pés

na cabeça de Omaira na sua agonia. Não era a única recordação

desagradável, mas conseguia lidar com todas elas.

Adela não era a única que lhe aparecia em sonhos. Também sonhava

com Betty. Às vezes, também aparecia nas urgências, como a filha. Não

tinha medo dela. Uma vez acordada, Vicky até desejava que alguma vez

aparecesse mesmo. Nunca mais se soubera nada dela. A polícia não a

tinha procurado, estavam convencidos de que partira voluntariamente,

mas para onde. É tão fácil desaparecer, pensava Vicky. Nas urgências

costumavam atender pessoas sem amigos, sem família, sem passado.

Encontravam-nos desmaiados na rua, às vezes por causa da fome, outras

por estarem bêbedos, outras vezes, ainda, por causa de alguma doença.

Lembrava-se de uma mulher com um cancro terminal que nunca fora

tratada. Não era propriamente uma vagabunda. Fugiu de casa quando

soube o que tinha e que não adiantava experimentar nenhum tratamento.

Isso há menos de um ano. A mulher não tinha uma noção do tempo

assim tão clara. Estava desorientada, com metástases no cérebro.

Limitou-se a pegar em dinheiro e numa mala, e a sair de casa. Não disse

para onde ia, nem deu um nome para alguém a acompanhar nos seus

últimos dias. Falava com distanciamento, mas com afeto, dos filhos e do

marido. Disse que tinha aparecido no jornal e na televisão e que se rira

da sua fotografia, porque agora era outra: desde que me entrou no corpo

este bicho (chamava «bicho» ao cancro), tornei-me outra. As pessoas


viam a fotografia na televisão, olhavam para mim e não me

reconheciam. Isso acontecia-lhe, contou-lhe, nas estações de serviço.

Desaparecer era fácil. A mulher não dera nomes. Não tinha um

documento de identificação. Ninguém considerou necessário examiná-la

para determinar a sua identidade. Estava lúcida. Não queria ser

encontrada. Está no seu direito. Os outros processariam a sua dor da

melhor maneira possível. Vicky esperava, às vezes, que Betty aparecesse

da mesma maneira, e perguntava-se se seria capaz de a reconhecer. Uma

vez, em conversa com a mãe no pátio da sua casa, com as cadelas a

brincarem no cimento, esta confessou-lhe que também ainda estava à

espera de Betty. E que Hugo, o pai, uma vez julgara vê-la quando estava

a fechar a farmácia. Chamou-a, mas a mulher parecida com Betty

desatou a correr. Hugo ficou inquieto, como se se tivesse tratado de um

fantasma, com um pormenor mínimo: a mulher que vira fugir estava

descalça.

Gaspar visitava-a com frequência. Agora, também ele tinha horários

esquisitos. Começara a trabalhar filmando celebrações dos quinze anos e

casamentos, e por vezes ia ter com ela de madrugada, cansado, mas

acordado, e bebiam um café com leite na cafetaria do hospital. Uma vez,

ela perguntou-lhe se não o incomodava estar num hospital. Por causa do

teu pai. Por ti próprio. Tive medo quando tantos rapazes gays adoeceram

e tu os ias visitar, porque pensava que ias apanhar a doença. Não sou

assim tão óbvio, disse-lhe Gaspar. Além disso, acrescentou enquanto

barrava uma torrada, os momentos em que acompanhei o meu pai

quando estava internado não foram, nem de longe, os piores que passei

com ele.

Numa dessas manhãs, durante o pequeno-almoço, Vicky sentiu-se

esquisita e pensou que era o momento oportuno para tentar fazer um

diagnóstico a Gaspar e à sua esquiva epilepsia. Não teria de fazer nada


de especial, nem tocar nele ou pegar-lhe nas mãos, nem sequer precisava

de dizer nada ao paciente, se não quisesse. Deixou que o apagão

acontecesse quando Gaspar estava a deitar leite no café e a agradecer

com um sorriso à empregada. A certeza não chegou e, pelo contrário, a

luz não voltou, como acontecia sempre, e Vicky sentiu que ia perder os

sentidos e viu aparecer, na escuridão, uns pontos luminosos como

pirilampos: estava prestes a desmaiar. Gaspar também se apercebeu,

porque pegou na mão dela por cima da mesa e ela agarrou-se a ele como

o tinha feito na casa, e então a cortina negra levantou-se e ela retirou-se

do que parecia ser a beira de uma fossa sética, como se se tivesse

debruçado sobre um covil. Estás bem?, perguntou-lhe ele. Foi só uma

tontura, estou cansada, os bancos dão cabo de mim. Pedes-me uma

torrada? No restaurante do hospital tinham de fazer o pedido ao balcão e

Vicky precisava de que Gaspar se afastasse um pouco para poder

respirar, enxugar o suor e, sobretudo, não ter de responder a nenhuma

pergunta incómoda. Gaspar nunca lhe pedira que usasse com ele a sua

habilidade para fazer diagnósticos. Era estranho que nunca lho tivesse

pedido, mas agora Vicky percebia porquê. Gaspar sabia sempre um

pouco mais, foi por isso que os tirou da casa. Tinha de respeitar os seus

silêncios e as suas evasivas. Havia sempre um motivo. Só voltaria a fazê-

lo se ele lho pedisse.

Naquelas manhãs, Gaspar costumava falar-lhe das suas alucinações.

O neurologista dele tinha muito prestígio e era de confiança, mas ele

insistia em que certas aparições eram demasiado vívidas e estranhas;

nem o neurologista, nem Isabel o conseguiam convencer de que eram

sintomas estranhos, mas possíveis, normais dentro da patologia. Vicky

recomendou a Gaspar um livro que lhe podia interessar, Epilepsy, de

William Gowers, um neurologista inglês de finais do século XIX. Já só se

lia como uma curiosidade, mas, disse-lhe, algumas descrições são tão
alucinantes, que se calhar é mais útil do que aquilo que eu ou os teus

médicos te podemos dizer. Vicky tinha razão. Gowers escrevia sobre

uma mulher que dizia que lhe cheirava a miosótis, embora, claro, a flor

não cheire a nada. Uma senhora chamada B. contava-lhe que ouvia

sempre uma voz à sua direita a pronunciar o seu nome e que não era

como as vozes que se ouvem em sonhos. E também não era a voz de um

homem ou de uma mulher. Depois da voz, sofria convulsões.

Será que o teu pai tinha o mesmo problema e era por isso que

colecionava todos aqueles livros sobre ocultismo e magia? Pensaria ele

que se tratava de mensagens de outros mundos quando, na verdade, era

epilético? Segundo Vicky, era bem possível que, numa das primeiras

cirurgias ao coração, feitas nos anos cinquenta, o pai tivesse sofrido uma

lesão cerebral devido à falta de oxigénio. Essa podia ser a causa das suas

alucinações, se é que as tinha, mas ele acreditava que era algo místico,

uma realidade paralela. Não lhe chamavam a doença sagrada em vão.

Se calhar era as duas coisas, pensava Gaspar. Não tinham por que ser

incompatíveis. Não era uma lesão cerebral o que perseguia o pai. O

desaparecimento de Adela não era um delírio. Podia ser reconfortante

pensar na doença como resposta e no transtorno como explicação. Mas a

verdade tinha maneiras de chegar à superfície, de arranhar a pele, de dar

pontapés na nuca.
No livro de Gowers, havia muitas histórias sobre despersonalizações.

Isso também lhe acontecia a ele. Sabia que estava no quarto com o tio,

com os amigos, mas sentia que estava noutro lado, era tudo familiar e

desconhecido ao mesmo tempo. Durava uns segundos. Durante esses

segundos, se algum dos conhecidos-desconhecidos lhe tocasse, ele podia

reagir na defensiva. Numa festa de casamento que fora filmar, sentiu-se

alheado depois de beber uma taça de champanhe: às vezes, o álcool

fazia disparar certos sintomas. Para ele, o álcool afrouxava o que estava

amarrado, uma corrente bem ajustada por um cadeado de cuja chave

andava à procura há anos. O padrinho da noiva aproximou-se dele para

lhe pedir que filmasse as palavras que ia dedicar ao noivo, e Gaspar

ouviu-o, percebeu-o, mas não lhe conseguiu responder. Na sua realidade

privada, estava num quarto de hotel, alguém dormia na cama do lado, a

figura deitada era enorme, mas não parecia ameaçadora. Mas tinha

medo de uma mulher grávida, nua e careca que estava a um canto do

quarto. E o padrinho, que Gaspar reconhecia, mas, ao mesmo tempo, lhe

parecia um estranho, pedia-lhe claramente vamos lá para fora, quero que

seja uma surpresa. O homem estava um pouco bêbedo e pegou-lhe no

braço. Gaspar afastou-o com um empurrão desproporcionado que o fez

cair em cima de uma mesa e arrastar a toalha: embora tenha conseguido

manter o equilíbrio para não cair, os pratos estatelaram-se no chão, tal

como os copos e os arranjos florais. O barulho fez com que se

desvanecessem o quarto, a figura na cama e a mulher nua antes que o

padrinho recuperasse a compostura, e Gaspar tartamudeou um pedido de

desculpa: um grupo de homens formara um círculo à volta deles e

parecia preparar-se para lhe bater. Insolitamente, o homem atacado

acreditou na mentira dele: foi sem querer, ia deixar cair a câmara e tentei

afastá-lo para a segurar com as duas mãos, mas não medi a força. Eu

também não a consigo medir, disse o padrinho, tenho a mão pesada.


Sorria. Se calhar, não queria arruinar a festa. Está tudo bem, disse aos

outros homens, e Gaspar seguiu-o até ao pátio do salão de festas e

filmou as suas palavras em honra do noivo. Felizmente, não houve

consequências. Um empurrão. O homem recordaria o episódio como um

acidente e um mal-entendido, se é que se lembraria. Fora um claríssimo

déjà-vu, mas era verdadeiro. A recordação de qualquer coisa verdadeira.

Sabia que a figura da cama era o pai.

Pablo deitou-se na cama de Andrés com os braços atrás das costas e

deixou que o homem usasse uns oleozinhos (chamava-lhes assim,

«oleozinhos») que trouxera da Tailândia. Fechou os olhos e tentou

pensar em alguém que não fosse Gaspar, mas não conseguiu, e a

frustração atingiu a ereção, que se desvaneceu, apesar do cheiro a coco.

Não fazia mal. Tinham passado a noite anterior com um empregado da

estação de gás natural do pai. O tipo falara-lhes de um taxista de

Quilmes, casado e com duas filhas, que era doido por trios. Fica para a

próxima vez, disseram-lhe. Andrés era muito mais entusiasta do que ele;

Pablo era mais cuidadoso. Sabia que os héteros se podiam tornar

violentos. Era por isso que nunca se devia pagar. Andrés ficava excitado

quando pagava. Tinha quarenta e três anos e era praticamente o único

sobrevivente do seu grupo de amigos. E era rico. Rico desde sempre,

uma família judia dona de concessionárias de automóveis. O namorado

morrera há dois anos e havia fotografias dele espalhadas por todo o

apartamento. Às vezes, quando estava muito drogado, chorava por o

namorado ter partido pouco tempo antes da chegada dos comprimidos,

só mais um ano e tinha o cocktail, percebes, percebes. Pablo dizia que

sim, mas não percebia: dois anos era imenso tempo. Nesse lapso de

tempo, Pablo lembrava-se de terem morrido pelos menos cinco amigos e

conhecidos seus. Não conseguia acreditar que não estivesse infetado.


Vicky vaticinara-o numa das suas intuições monstruosas: jamais serás

infetado. Há pessoas assim. Acho que devem ser estudadas, se calhar já

o estão a fazer. Imunes. Por via das dúvidas, tem sempre muito cuidado.

Tanto lho repetiram, que Pablo, obediente por natureza, tivera cuidado. E

agora estava saudável e só. Ele e Andrés estavam sós: um tinha saudades

do namorado morto, o outro estava apaixonado pelo amigo

heterossexual. Juntos, eram um manual de insatisfação e era por isso,

talvez, que se davam tão bem.

Pablo estava a preparar uma exposição na galeria de Andrés. Ficava

em La Plata, é verdade, mas tinha tanto prestígio como uma de Buenos

Aires, um pouco por ser de Andrés, mas também porque os arrabaldes

lhe acrescentavam uma espécie de glamour suburbano, qualquer coisa de

descoberta. Andrés sabia-o e era por isso que, embora tivesse muito

dinheiro, não abria uma sucursal em Buenos Aires. Isso teria sido óbvio

e perderia todo o encanto snob, que no mundo da arte valia mais do que

qualquer outra coisa. Andrés tinha muitas ideias sobre o título da

exposição, mas Pablo não gostava de nenhuma. É um bocado piroso,

Andrés, não posso chamar O Sobrevivente à exposição, é tão anos

setenta, disse a Gaspar. Tens alguma ideia? E Gaspar sugeriu Os Anos

da Praga. Ai, não. És um trágico. Para já, Pablo tinha um título

provisório: Este morreu, este já apanhou os comprimidos, este foi-se

embora. Ou qualquer coisa do género. Não falou desta sua ideia para o

título a Andrés, mas tinha a certeza de que estaria de acordo. Não era

uma pessoa caprichosa. Eram amantes há poucas semanas. Tinham uma

diferença de idades de vinte anos e jamais diriam que eram namorados.

Andrés também não sabia que Pablo estava apaixonado por Gaspar.

Costumava dizer-lhe traz-me esse teu amigo espetacular. Parece coisa do

demo, não se pode ser tão giro. Tens a certeza de que não o conseguimos

converter? Está muito à vontade entre bichas. Dá para desconfiar.


Tenho a certeza, dizia sempre Pablo. E pensava: e jamais to

entregaria, nem que me torturasses.

A única coisa desagradável do seu tempo com Andrés era que a mão

fantasma que lhe agarrava no braço voltara. Sentiu-a claramente e com

cada um dos seus dedos uma noite quando ia à casa de banho em casa

de Andrés. A mesma situação da infância. A casa de banho, a noite, o

corredor. Mas agora ele era diferente. Fechou os olhos e não se desfez

dela, não correu, não se trancou, assustado, na casa de banho. Deixou

que a mão lhe tocasse. Sentiu o seu apertão, o seu calor, a sua violência

contida. E então a mão largou-o. Mais tarde, a tremer, olhou para o

braço: não tinha marcas da mão fantasma. Já não acreditava que fosse

sugestão. Compreendera que a mão também estava perdida na escuridão,

como o resto esquecido de uma recordação incompleta cuja missão era

tocar, rodear com os dedos, apertar, empurrar debilmente, e que depois

ignorava o que fazer a seguir. A mão era um resto da casa e parte dos

seus efeitos secundários, como as meias que usava Vicky para dormir ou

o seu medo da escuridão; ainda agora, por exemplo, estava prestes a

comprar um gerador usado. Continuava a sentir repulsa, e às vezes

terror, pelos lugares escuros onde os corpos se roçavam — evitava fazer

sexo com a luz totalmente apagada — e não gostava de mãos demasiado

quentes, porque lhe faziam lembrar o apertão febril. Se calhar a mão

fora um aviso. Se calhar Vicky não tinha razão quando dizia que ele era

imune, ou não tinha razão de um ponto de vista científico. Nos anos

anteriores ao cocktail, vira adoecer e morrer tanta gente, amigos seus,

amantes, que muitas vezes pensou que a sua sobrevivência tinha

qualquer coisa de contranatura, como se a mão estivesse à espera dele,

como se quisesse conservá-lo vivo, mantê-lo vivo para que, no futuro, o

pudesse incumbir de alguma missão. Ou porque, no futuro, alguém

precisaria dele.
Gaspar deu os seus restos de carne a Pocho, o cão de Luis e Julieta. Não

conseguira comer muito: estava demasiado calor, perto do churrasco

todos assavam, menos os gémeos, que estavam na minipiscina

autossustentável acabada de comprar. Julieta estava zangada com

Gaspar, mas ele não mudaria de ideias por nada no mundo. Ia viver

sozinho. E a Julieta parecia-lhe egoísta que, num contexto como aquele,

não usasse o dinheiro que ia gastar na renda para ajudar a família. Temos

de sair desta juntos, dizia. É pouco solidário, repetia calmamente, mas

com firmeza. Seria bom que ficasses até a situação económica melhorar.

E Gaspar recusou-se rotundamente. A situação económica nunca

melhora neste país. Se precisarem, empresto-vos dinheiro, todos os

meses, não há problema. Quero ir-me embora.

Aquela sugestão de um empréstimo ofendeu-a, Gaspar não percebia

porquê. Porque, afinal de contas, ia dar ao mesmo. Ele nunca ajudava

com os meninos. Estava quase sempre fora. Porque é que o queriam

reter? Havia qualquer coisa estranha no pedido, algo que não tinha a ver

com a personalidade de Julieta, sempre tão desprendida. Depois de fazer

dezoito anos, Gaspar tivera acesso às contas bancárias e aos montantes

da herança e das propriedades. Era uma quantia esmagadora que

mudaria a sua vida e que potencialmente poderia mudar a de Luis, de

Julieta e dos meninos. Luis não queria saber do dinheiro para nada, é

todo teu, filho, dizia-lhe, é o dinheiro que a tua mãe te deixou; Julieta

não pensava da mesma maneira. Numa discussão muito desagradável,

Gaspar disse-lhe é como se quisesses que eu te pagasse pelo incómodo

de teres tomado conta de mim. E, se quiseres, eu pago! Podemos

combinar uma pensão mensal. Ela chorou, tu não me estás a perceber,

gritou, e Gaspar respondeu que não, que sinceramente não estava. Agora

já não estavam zangados, mas a situação continuava tensa. Julieta não

permitia que ele se esquecesse de quem era a família da mãe. Os


Bradford, os Reyes, latifundiários. Donos de plantações de erva-mate.

Rentistas. Exploradores. E procurava sinais dessa origem nele, como se a

classe fosse uma questão genética. Agora acreditava que essa

manifestação de «individualismo» — era assim que lhe chamava — era

um capricho.

Essa era uma das razões que o levavam a querer viver sozinho.

Porque, no caso de Julieta, o preconceito misturava-se com os abraços, a

confiança com a supervisão, a preocupação com a saturação. Estava

muito mudada desde que tivera filhos. Gaspar era capaz de perceber

isso. O facto de ele não ocultar o pouco entusiasmo que sentia pelas

crianças não ajudava; mas, fosse como fosse, não compreendia aquela

necessidade tão imperiosa de que ele não saísse de casa. Disse-lho assim

uma vez: não podes sair desta casa. Porquê, perguntou ele, e ela

emudeceu, como se não soubesse a resposta por não lha terem

comunicado.

Luis, o Negro e Gaspar foram no mesmo carro até ao centro de La

Plata, depois do almoço. Os três iam participar numa marcha

multitudinária e potencialmente perigosa, pelo que Julieta decidira ficar

em casa com as crianças. Os rumores de repressão já eram um grito.

Estava quase a ser aprovada a nova lei da educação, cujo objetivo óbvio

era emagrecer o orçamento para pagar a dívida, o eterno carrossel

argentino, como dizia o seu tio. Os cortes em todos os setores eram

asfixiantes. Ninguém tinha dinheiro e não havia aumentos salariais e as

pessoas eram despedidas todos os dias e fechavam fábricas e a sensação

de desastre era tão iminente que o calor de um verão que nunca mais

acabava em pleno março se tornara insuportável.

O Negro e o tio tinham-se visto obrigados a dar aulas em troca de

ordenados miseráveis por não arranjarem outro emprego. O Negro, para

surpresa de Gaspar, fora assistente de imagem em vários filmes míticos,


proibidos pela ditadura. Daí o exílio. O Negro viu algumas coisas

filmadas por Gaspar: recitais de poesia, marchas, uma ou outra pequena

vinheta de Pablo no estúdio dele. Disse-lhe que tinha um olhar especial.

Depois, arranjou-lhe um biscate a filmar festas dos quinze anos e

algumas cerimónias na faculdade. Olha o que o puto faz, dizia o Negro

quando via as valsas das festas dos quinze anos, os vestidos cor-de-rosa

como flores, os pais transpirados com uma expressão entre orgulhosa e

assustada, a maquilhagem exagerada e demasiado madura para as

feições das raparigas. Olha o que ele faz: consegue tornar belas esta festa

de merda e a esta pirralha feiosa, dá-lhes dignidade.

Estava tanto calor, que até o bombo só se ouvia de vez em quando,

tal era o cansaço dos que o tocavam. Gaspar uniu-se aos cânticos.

«Força, minha gente, há que ser valente…», «Vamos lutar, vamos lutar,

por uma educação nacional e popular» e a mais gritada «A universidade

é para quem trabalha, quem não gosta que se lixe, que se lixe». Gaspar

viu, na coluna da Faculdade de Jornalismo, Marita. Havia algum tempo

voltara a cumprimentá-lo e mesmo a conversar com ele. Passara-lhe a

zanga. Talvez pudessem voltar a ser amigos. Ele perdoara-lhe a história

de Guille e ela nunca se apercebeu da dimensão do seu sofrimento.

Agora, Marita trabalhava na editora da faculdade e levava a militância a

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sério; o novo namorado dela, a quem chamava Hueso , era um dos

dirigentes estudantis mais conhecidos. Não podia estar mais afastada de

Gaspar e dos seus filmes de celebrações dos quinze anos, que ele fazia,

de resto, para não se aborrecer e para ter um dinheiro extra que, na

verdade, não lhe fazia falta. Assim, distante e com outra vida, ainda

gostava mais de Marita. Vira-a a pintar cartazes sentada no chão com a

cara manchada de branco, a rir; usava sempre umas botas muito gastas,

que certamente já teria comprado usadas; tinha os dedos sujos de tinta e

as unhas pintadas de preto. Ia muitas vezes ao Princesa, embora tivesse


delegado em Pablo a responsabilidade de o gerir, e ele fazia-o com uma

inteligência e um prazer em dar ordens que divertia terrivelmente

Gaspar.

A assembleia na Plaza San Martín estava no momento aborrecido da

leitura das listas de filiados, mas Gaspar apercebeu-se rapidamente da

quantidade de polícias que havia nas imediações e, ainda mais estranho:

era a polícia montada. Cavalos. Adentrou-se na multidão para procurar o

tio e encontrou-o. Também estava muito inquieto. Vamos esperar, disse,

mas se derem a ordem, corro. E tu não hesites, corre também. Depois,

Luis olhou-o nos olhos e disse-lhe: ou vai-te embora agora, filho.

Talvez não aconteça nada, disse Gaspar. Precisamente quando um de

jornalismo ia falar, o microfone fez feedback e depois deu-se uma

explosão. E, ao longe, debandadas. As debandadas, numa praça, notam-

se nas copas das árvores, que balançam sacudidas pelos que tentam fugir

trepando os troncos. Nos dias quentes, também se notam nas ondas de ar

pesado deixadas nos espaços vazios. E depois chegam os gritos e o

barulho dos pés. Com sorte, não há tiros.

Nessa tarde, houve. A polícia, a cavalo e a pé, forçava a

desconcentração e perseguia as pessoas pelas ruas, pelas avenidas.

Como mais tarde viria a saber Gaspar, as detenções seriam mais de

duzentas. Seguidas de um dia inteiro de vigília, e de pais e familiares

aterrorizados, polícias mudos, o governador a dizer imbecilidades na

televisão. Agora tinha de correr.

Não era boa ideia fugir pela Rua 7, era demasiado larga e aberta,

mas não lhe restava outra alternativa. A ideia de Gaspar era simples: ir

até à Faculdade de Economia. Ficava perto dali e, mais importante

ainda, a polícia não podia entrar nas faculdades, que eram autónomas.

Quando estava a correr, viu-se ao lado de uns arquejantes Marita e

Hueso. Para ele, apesar do calor, estavam todos a correr demasiado


devagar. Ouviu os tiros. Balas de borracha. Já as sabia distinguir. Não

era a primeira vez que debandava de uma manifestação. Ao longe, o

cheiro inconfundível do gás lacrimogéneo. A melhor maneira de evitar

os seus efeitos era mergulhar o nariz num pano mergulhado em urina.

Esperava não ter de chegar a isso. Havia gente que levava limão para as

marchas, mas o tio dizia que não servia para merda nenhuma. Era

melhor mijar a roupa.

Sentiu os cascos dos cavalos, ouviu Marita a queixar-se e viu o

cassetete do polícia. Gritou a Hueso que corresse mais depressa e guiou-

os pelo passeio, entre as pessoas, à velocidade dele. Ela gritava não

posso mais, mas ele não lhe respondia. Não passaria a noite na prisão,

nem deixaria que isso acontecesse com eles, se pudesse.

A Faculdade de Economia foi projetada como uma prisão, assim lhe

explicou o tio. É um pan-ótico, percebes? Um anel à volta e, no meio,

uma torre de vigia. A torre em questão era para um elevador, não para

um guarda, mas a ideia é a mesma. São uns génios do Mal, estes tipos.

Gaspar conhecia pouco aquela faculdade, só lá tinha ido a uma festa ou

buscar uma rapariga. Mais nada. Mas não era necessário um mapa do

lugar: bastava porem um pé lá dentro para estarem a salvo. A polícia não

podia entrar.

Só que, nessa tarde, entrou.

Gaspar viu o cavalo a debater-se nos degraus da entrada, para sua

incredulidade. Das janelas superiores, as pessoas cantavam «filhos da

puta, filhos da puta» e a polícia, de capacete, obrigava-os a irem para

dentro das salas de aula atirando gás para o ar. Gaspar decidiu entrar,

mesmo assim: Maria e Hueso seguiram-no. A faculdade estava cheia de

pessoas, e tinham lá entrado muitos polícias. Levavam estudantes de

rastos. A barriga de uma rapariga quase nua, a t-shirt subida ao ser

arrastada pelo chão, uma das sandálias abandonada ao pé da porta de


uma sala de aula. Rapazes algemados por terem resistido, um deles a

sangrar das fontes. Hueso gritou que não podiam entrar na faculdade,

que era a lei que o dizia, que aquilo parecia uma caçada, e Marita pediu-

lhe que se calasse. Estavam a um canto e os polícias subiram as escadas

à pressa e entraram nas salas. Faziam detenções arbitrárias. Gaspar

decidiu virar para um corredor estreito que conhecia, o das casas de

banho do pessoal das limpezas, menos usadas. Quando se virou, viu que

estavam a ser seguidos, atrás deles vinham, a trote e a arfar, dois polícias

gordos. Não saímos daqui, disse Hueso, mas Gaspar abriu a porta que

dizia PRIVADO, uma arrecadação onde o pessoal da manutenção guardava

o material de trabalho, e fechou a porta. Sentiram a maçaneta a ser

forçada e ouviram os insultos. Tinhas uma chave?, perguntou Marita. E

Gaspar, em voz baixa, disse que não. Forçaram outra vez a maçaneta

com tanta força, que parecia que se ia partir, um pontapé na porta e

depois um grito e passos a afastarem-se a correr. Ainda não, disse

Hueso, embora nenhuma deles tivesse tentado sair.

Permaneceram à escuta. Os barulhos não eram claros. Alguns gritos,

sirenes na rua. Nenhum disparo, mais nenhum disparo, pelo menos por

perto. Marita sentou-se no chão e, para poder ver, acendeu um isqueiro.

Quando Gaspar ouviu os estalos — não se acendeu à primeira tentativa

—, pediu-lhe que não o fizesse, em voz alta e imobilizando-lhe

suavemente o braço. Era o gesto mais contido que podia fazer naquele

lugar estreito e tentando manter a calma. A arrecadação não tinha nada

de mal. Se se virasse, não veria prateleiras com dentes ou um piano ou a

Adela loura a acenar na escuridão. Mas se Marita acendesse o isqueiro,

gritaria, e depois dos gritos o mais provável seria acabar abraçado aos

joelhos no chão, com os olhos secos. Marita obedeceu-lhe: talvez

pensando que se tratava de uma estratégia para a polícia não os ver.

Enquanto esperavam, os barulhos do edifício amainaram. As razias, por


definição, não duravam muito tempo. Gaspar sentia o braço de Marita a

roçar o seu e isso fê-lo esquecer o medo. Queria chamar a atenção dela,

defendê-la; queria que ela saísse daquela arrecadação a pensar que

Hueso era um cobarde e um inútil e ele era um herói que, além disso, era

melhor na cama.

— Vamos embora — disse Hueso.

Gaspar abriu a porta. Por um segundo, pensou que o pai estava ao pé

dele a dizer-lhe muito bem, consegues fechar, consegues abrir, muito

bem. Foi só um instante e a sensação desvaneceu-se. Marita referiu a

sorte incrível que tinham tido, a coincidência de a maçaneta ter

encravado precisamente naquela altura, e com a força que fizeram,

alucinante. Parece mentira que agora a consigas abrir com essa

facilidade. É que só encravou do lado de fora, disse Gaspar dando uma

explicação disparatada, mas que, entre o pânico e a adrenalina, foi

suficiente. Quando saíram e avançaram com cuidado ao longo do

corredor, Marita ficou para trás, largou a mão do namorado e perguntou-

lhe: tiveste medo de estar ali fechado, no meio daquela escuridão toda?

Estás bem?

Estava bem. Só um pouco angustiado: doía-lhe o peito quando

respirava fundo. Mas mais nada. Marita roçou-lhe a face com as mãos

de unhas pintadas de preto e disse obrigada.

Depois, ela e o namorado perderam-se, misturaram-se com os

colegas que conheciam, já se estavam a organizar para descobrirem para

onde tinham levado os prisioneiros, já estavam a telefonar aos advogados

dos telefones dos corredores. Gaspar foi a correr até à Plaza Italia,

atravessou-a e dirigiu-se para o café onde tinha combinado encontrar-se

com o tio no caso de haver repressão. Estava aberto, contrariamente a

todos os da Rua 7. E reconheceu logo as costas do tio, a camisa aos


quadrados de manga curta, o suor nas axilas e o cabelo louro alaranjado

que estava a ficar cada vez mais claro por causa dos cabelos brancos.

Gaspar pôs os óculos escuros para que o sol não lhe provocasse dores de

cabeça. Chegariam um pouco tarde porque pedira a Pablo que o fosse

buscar. Tinha-se esquecido da inauguração da exposição de Andrés Sigal

e prometera ir. Divertira-se imenso na noite anterior com uma estagiária

que era colega de Vicky: não era normal que uma médica bebesse e

fumasse tanto. Acabara bastante bêbedo. E, por isso, quando Pablo

apareceu de mota, disse-lhe para montar sem capacete.

— Não te vou deixar cair.

— Não tenho medo — disse Gaspar.

Pocho, o cão, ficou tão excitado com a mota que os seguiu durante

duzentos metros, até eles entrarem na estrada.

— Como foi com a amiga da Vicky? — quis saber Pablo.

— Tudo bem.

— E mais nada.

— É linda, é doida, sei lá.

— Ah, pois, eu sei. Tu gostas da Marita.

— Presta mas é atenção ao trânsito, ou o teu namorado ainda nos

tem de pagar o enterro.

— Não é meu namorado.

— Olha, amigo, não me lixes.

A inauguração da exposição de Andrés Sigal era um verdadeiro

acontecimento: fotografias da Argentina durante a sua viagem de

juventude pelo interior nos últimos anos da ditadura. Pablo tinha de ir

porque era amante de Andrés e porque ele nunca mais lhe confirmava a

data da sua própria inauguração, mas além disso estavam lá jornalistas e

colecionadores e era uma exposição importante. Não lhe podia falhar.


Andrés pediu-lhe que levasse Gaspar. Não te custa nada. Peço-te por

favor. Pablo já lhe tinha contado: está doido por ti, deste-lhe a volta à

cabeça. Se te levar a modo de presentinho, daqui a uma semana aprova a

minha exposição. É um favor que fazes à tua amiga bicha talentosa e

depois podes pedir-me o que quiseres. Gaspar riu-se um pouco, mas

aceitou. Também queria ver as fotografias, afinal de contas, e gostava de

Andrés.

A galeria de Andrés era uma antiga garagem remodelada que agora

tinha três salas. A fachada era completamente branca, de tal maneira

que, quando estava fechada, era difícil distinguir os contornos da pesada

porta de ferro, também ela branca. Agora estava aberta e havia pessoas a

fumar no passeio. Encostada à parede, perto da entrada, uma mesa

coberta por um pano preto com vinho tinto e champanhe, e copos de

água e Coca-Cola. Alguns empregados, vestidos informalmente de

calças de ganga e t-shirt, ofereciam empadas, um apontamento popular

que Gaspar agradeceu porque não gostava muito dos acepipes que

costumavam servir naquele tipo de eventos, que já filmara várias vezes

em trabalho, especialmente na galeria de fotografia de Belas-Artes,

porque quase todas as encomendas dele eram da faculdade. Nos rostos

das pessoas, que tinham bebido mas ainda não estavam bêbedas, havia

troça e uma espécie trivial de crueldade, os rostos das pessoas que estão

a pensar na próxima frase engenhosa, na próxima crítica lapidar, na

maneira mais eficaz de ofender o outro com impunidade, porque

ninguém se podia dar ao luxo de um desplante naquele lugar, com uma

taça de champanhe na mão e um pedido na ponta da língua. Pablo

misturou-se rapidamente entre os artistas que conhecia: apresentava-se,

apresentavam-no, ouviam-se as gargalhadas dele na estranha acústica do

lugar. Ainda ninguém vira as novas obras de Pablo, as do último ano:

bonecos feitos com tubos de soro sobre colchões de esponja, miniaturas


construídas com os comprimidos que os amigos e conhecidos mortos

não tinham conseguido tomar, lençóis que pareciam sudários com as

figuras em estêncil de corpos em diferentes posições, muitas vezes

lençóis reais manchados de suor e de merda verdadeiros. Era isso que

tencionava expor. Andrés estava na outra ponta da sala rodeado de

amigos e de alguns jornalistas.

Pablo desprendeu-se dos seus conhecidos com alguns beijos, bebeu

um pouco de vinho e voltou para junto de Gaspar, que ficara perto da

mesa das bebidas. Toda a gente te quer conhecer. Acham que és meu

namorado.

— Contaste-lhes a verdade?

— Deixa que tenham um pouco de inveja de mim, são todas umas

serpentes e, ainda por cima, nada talentosas. Vamos ver as fotografias,

anda.

— A que horas me vais entregar de bandeja ao senhor fotógrafo?

— Quando o senhor fotógrafo te vir, deixa tudo, mas agora tem de

dar atenção à sua corte.

— Ainda bem que são amantes, se não, tinha as orelhas a arder.

Pablo encolheu os ombros.

— É bom tipo, mas pela-se todo por que lhe digam que é genial.

As fotografias, pensou Gaspar, no entanto, eram bastante geniais.

Nenhuma gritava ditadura, repressão ou morte, mas a seleção era

inquietante. Um soldado com a namorada diante de uma casa precária e

sob um sol cruel. Os dois a sorrirem. A fotografia era de 1979. Aquele

soldado de pele morena e dentes brancos teria participado nalgum tipo

de operação? Ao lado dele, a estrada enlameada pela chuva. Um templo

de estrada de San Güesito. Gaspar esteve quase para contar a história do

santo menino assassinado a Pablo, que estava ao lado dele, mas conteve-

se porque não se lembrava exatamente de como ou porque é que a sabia


(ter-lha-ia contado o pai quando era pequeno?) e pareceu-lhe reconhecer

o lugar da fotografia. A fotografia seguinte era de uma criança a fingir

que disparava com os dedos em forma de arma. Era uma fotografia

linda. Também o era a do jovem com um fato num pardieiro de madeira,

que posava ao lado de um rádio-gravador, seguramente recém-

comprado.

— São muito boas.

Pablo teve de reconhecer que era verdade. Passou um empregado

com empadas e serviram-se ambos. Deixaram os copos noutra bandeja e

Pablo viu Andrés a acenar ao longe, ainda rodeado de gente. Gaspar já

se aproximara de novo das fotografias.

Viram-na ao mesmo tempo. Era um pouco maior do que as outras.

Pablo demorou mais a perceber do que Gaspar, sobretudo por causa da

surpresa, da extraordinária coincidência. Gaspar levou a mão à boca e

não disse nada. Lá estava ele, na fotografia, quando era pequeno, com

cinco ou seis anos. Tinha os mesmos olhos redondos e o cabelo escuro e

era magro, já perdera os traços arredondados de bebé. E estava sério,

tinha olheiras, parecia cansado. A sua expressão era pouco infantil.

Estava distraída e calmamente apoiado na perna do pai. Ambos

encostados a uma parede branca. Pablo reconheceu Juan Peterson. Na

fotografia, parecia saudável e majestoso, com uma camisa preta

entreaberta, as mãos nos bolsos, o cabelo louro muito fino e bastante

comprido e aquela cara, aquela cara inesquecível que na fotografia estava

repleta de ternura e exaustão, mas com os olhos carregados de violência,

um potente cansaço transmitido desde a morte e dos anos, tal como o

seu atrativo demoníaco. Juan Peterson não era lindo como uma estrela

de cinema, nem belo como um modelo. Havia qualquer coisa desumana

no ar dele, e muitos dos que viam a sua fotografia franziam o sobrolho

porque o par formado pelo pai e o filho não era enternecedor, mas
ligeiramente perigoso. Pablo teve uma leve ereção, a lembrança daquela

vez: Juan Peterson e aquele que talvez fosse o seu namorado secreto, o

homem da madeixa branca, a foderem como animais numa sala vazia. A

minha primeira vez, pensou Pablo.

Gaspar dirigiu-se para Andrés e Pablo tentou impedi-lo, porque

intuiu, na maneira de andar de Gaspar, uma certa fúria, e sabia que,

quando ele tinha aqueles ataques de raiva as coisas podiam acabar mal.

Não foi necessário: Gaspar também mudou de ideias e desviou-se para a

casa de banho. Pablo seguiu-o. Gaspar bloqueou a porta com uma

cadeira que estava ao pé do lavatório. Estava zangado, mas também

chocado. Foi por isso que se enfiou na casa de banho: tinha de acalmar-

se.

— Já a tinhas visto? Porque é que não me disseste? — perguntou

Gaspar. A voz tremia-lhe.

— Achas que se a visse não te dizia? Não a tinha visto.

Gaspar apoiou os braços no mármore do lavatório com tanta força,

que ficou com os dedos brancos.

— Desculpa — murmurou entredentes. E esfregou os olhos como se

lhe estivessem a arder, debatendo-se com as lágrimas. Pablo abraçou-o

e, quando ouviu alguém bater à porta, gritou «está ocupada». Podia ficar

naquela casa de banho para sempre, segurando Gaspar pela cintura, que

tinha a barriga rígida. Gosto tanto dele, pensou. Não quero saber de mais

nada, do Andrés, dos outros, desta galeria. Se ficasses comigo. Monto-te

uma casa. Faço-te de comer, não tenho medo de nada. Que me fales ao

ouvido na mota. O sol e o vento de frente, e depois fodemos a noite

toda. Para sempre ou enquanto durar.

Pablo beijou Gaspar na testa, que se endireitou um pouco e se

desprendeu suavemente do abraço dele. Pegou numas toalhas de papel

para enxugar a cara. Viu um fantasma, pensou Pablo, e teve medo de


que sofresse uma daquelas crises que nunca vira, mas que já lhe tinham

descrito tantas vezes.

— Desculpa — repetiu Gaspar. — Abre, ainda nos matam.

Saíram e foram para debaixo da escada, ao pé da casa de banho, uma

área que estava às escuras. Lá em cima, no primeiro andar, ficavam os

escritórios da galeria. Gaspar disse: não me lembro de ter tirado aquela

fotografia. Deve ter sido quando fomos às cataratas, já te falei muitas

vezes dessa viagem. Só reagi mal por ser apanhado de surpresa, e

também porque, embora não me lembre de quase nada, me chegou

qualquer coisa muito específica, não sei de onde nem de quando, mas

lembro-me de ter dores de cabeça e de o meu pai me ter deitado numa

cama. Estava calor. Deixou-me sozinho, mas eu estava calmo.

— Queres falar com o Andrés?

Gaspar voltou a enxugar a cara e disse que sim. Andrés viu-os chegar

e abriu os braços para os receber. Estava ao pé da fotografia mais

importante da exposição, a de uns militares ajoelhados numa igreja a

rezarem em primeiro plano; em segundo, um pouco desfocadas, umas

crianças a fazerem a comunhão. Dominando o salão, desfez-se de uma

mulher magra que tinha um cigarro comprido entre os dedos e da sua

elegante amiga, com um cabelo grisalho perfeito, suave, de cabeleireiro.

Abraçou Pablo o tempo suficiente para que, quem ainda não soubesse,

ficasse a saber que aquele jovem atraente era seu amante. E depois

beijou Gaspar na face, mas havia qualquer coisa na expressão e na

palidez do rapaz que o fez desistir do flirt e ficar sério.

— O que foi?

Gaspar apontou com o dedo para a parede que estava atrás dele, para

a fotografia, para as pessoas que estavam a olhar para ela.

— Aquele é o meu pai. Chama-se Juan. E eu sou aquele miúdo.

Queria saber onde é que tiraste a fotografia. Não me lembro dela, quero
dizer, não me lembro de a teres tirado. Não acredito que tenha sido uma

coincidência encontrá-la aqui, não acredito que já nos conhecíamos e

não nos apercebemos, não acredito que tenhas escolhido essa fotografia

hoje.

— Santa mãe de Deus — disse Andrés. — Deixemo-nos de

parvoíces. Vamos lá para cima, para o meu escritório.

Gaspar abriu os planos das duas casas: o da casa original da Rua

Villarreal e o da que levara Adela, um em cima do outro. Começara

outro baseado na Capela do Diabo e na mercearia Karlen, os lugares

indicados por Andrés Sigal. A capela existia; tinha telefonado para os

serviços de turismo de Corrientes para verificar a sua existência. Era

uma raridade arquitetónica. As fotografias que Andrés lhe tirara não

eram boas e, por isso, não as sobrepôs. De acordo com o relato dele,

tinha conseguido entrar por uma janela, esperando qualquer coisa

sinistra, mas no interior só havia um excêntrico altar de madeira talhada,

um baixo-relevo que tentava imitar Jheronymus Bosch sem subtileza,

com traços grotescos e desajeitados. Depois, Andrés fez um desvio, em

vão, para Posadas. Pensava que Juan e Gaspar talvez estivessem a tentar

passar para o outro lado da fronteira. Em 1980, os piores anos da

ditadura tinham ficado para trás e intuiu que fossem para o exílio.

Pensou, inclusivamente, que as cicatrizes que Juan lhe dissera que eram

de uma operação podiam dever-se a algum tipo de confronto. Gaspar

confirmou-lhe que não. E Andrés abriu-lhe uma porta inesperada

quando Gaspar lhe disse que era verdade o que o pai lhe dissera: que

iam para casa dos seus avós. Ele mal se lembrava dela. Um passadiço

sobre árvores. O rio. Um parque com um jardim de orquídeas. E pouco

mais. Um jardim zoológico perto de lá, lembrava-se de alguns pássaros

coloridos e de um estranho jogo de cabra-cega com o avô e outros


adultos. Andrés ficou calado durante um tempo e perguntou-lhe qual era

o apelido da mãe. Santa mãe de Deus, essa casa é Puerto Reyes,

entusiasmou-se. É lendária. Têm polícia privada para que ninguém lá

entre para tirar fotografias. A família, a tua família, não deixa que

ninguém se aproxime dela há décadas. É possível espiá-la do jardim

zoológico, que também pertence à família, mas está aberto ao público.

Só que não se consegue ver grande coisa. Como está no alto, para fugir

às cheias do rio, desde certa parte do caminho é possível ver os telhados.

Há fotografias dela dos anos quarenta no museu de História local, de

Puerto Iguazú. É uma maravilha. Vai ser tua? Porque é que nunca lá

voltaste? Convidas-me para lá ir quando for tua? Adorava fotografá-la.

Gaspar resumiu-lhe, mais ou menos, os desejos do pai, tentando não

coçar a cicatriz do braço, que lhe ardia como se alguém estivesse a deitar

gotas de cera quente para cima dela. Não te preocupes, papá, pensou,

não vou entrar em pormenores inconvenientes. Quer dizer que não te dás

com eles. É uma família estranha, sim. Não se sabe nada sobre eles, são

ricos discretos. Não como a minha família, nem há comparação possível

entre a fortuna de ambas. Eles são os donos do país, a sério. És! Eu não

sou nada, disse Gaspar. Tentei fotografá-la há anos, a casa, continuou

Andrés. Há uma aldeia perto de lá e as pessoas veem pouco movimento.

Não consegui chegar nem a cem metros do caminho privado, que é

comprido. O mistério, para mim, é porque é que continuam a usar uma

casa tão isolada, que não pode ser muito confortável. Os ricos assim tão

ricos preferem outro tipo de lugares para passar o verão. Vão para Punta

del Este, sei lá. As pessoas perguntam-se o que é que eles fazem lá. Têm

outras casas, disse Gaspar, suponho que passarão temporadas em cada

uma delas. Devem ter imensas, imagino, respondeu Andrés. Puerto

Reyes fica perto de Puerto Iguazú. O teu pai mandou-me para Posadas.

Não queria que o seguisse, pelos vistos.


Gaspar perguntou-se o que teria acontecido entre Andrés e o pai,

porque no relato do fotógrafo havia uma certa nostalgia e, além disso,

recordava-se dos pormenores demasiado bem. Mas não lhe perguntou.

Preferia que Pablo o fizesse por ele.

Com um mapa, situou noutro plano a Capela do Diabo e, mais a

norte, Puerto Reyes. Desde que vira a fotografia na galeria, e depois de

fechar a porta na faculdade, as alucinações da epilepsia tinham-se

tornado tão vívidas, que decidiu começar a registar tudo o que via. Perto

de Plaza Rocha, o portão de ferro pintado de branco de uma casa

abandonada abria-se para um pântano noturno. Pensou que fosse um

jardim com os seus juncos altos, mas atrás da porta era de noite, embora

se visse bem graças a uma luz que não vinha da Lua, não havia Lua.

Conseguiu aproximar-se do extremo do sapal, ou melhor dizendo, do

pantanal, era uma paisagem reconhecível, antes de voltar a ser um

portão e de a dor de cabeça lhe minar os olhos. No extremo do pântano

viu o corpo de um homem pendurado num ramo, rígido e antigo e seco,

castanho de tão mumificado que estava, nu. Nunca pensou que fosse um

boneco. Não balançava.

Nessa noite sonhou com corpos e árvores; com corpos pendurados

em árvores. Durante o almoço familiar sentiu-se sujo ao partilhar a mesa

com os gémeos, ao sorrir-lhes, ao lavar as chuchas deles quando as

atiravam para o chão. Sentia o corpo mumificado na pele, tão quieto,

naquela noite do outro mundo. Julieta pareceu reparar no desconforto

dele: fez outra piada pesada sobre a sua família. Voltou a pedir-lhe que

ficasse a viver com eles. Era, pensava agora Gaspar, uma dança. Uma

maneira de o afastar insinuando o desejo de o conservar, uma forma

muito inteligente de rodopiar à sua volta. Julieta gostava dele. Julieta

salvara-o tanto quanto o tio. Mas agora queria afastar-se dele.


Quando relatou a Vicky a sua avalanche de sintomas, ela marcou

uma consulta e falou com especialistas em epilepsia do hospital. Não

iam lá muitas vezes, eram muito peculiares. Cientistas loucos, dizia. E

contaram-lhe coisas que pareciam impossíveis. Pacientes que viam,

durante as crises, campos arrasados, bombardeados. Chamam-lhes

paisagens oníricas. Se falasses com eles e lhes contasses o que tens, não

terias dúvida de que é epilepsia.

— É o que diz o meu neurologista, Vicky. Também é um daqueles

cientistas meio loucos.

— Toma a medicação. Isto não é brincadeira nenhuma.

— Precisamente agora ando a tomá-la. E ainda é pior. Há muito

tempo que não via a Adela. No outro dia, andei com ela de elevador.

Insultou-me, estava desdentada. Além disso, como é que se explica o

que vocês têm? Vocês dizem que ouvem vozes quando não há luz. O

Pablo é agarrado por uma mão, ele sente-a. A epilepsia não é

contagiosa.

— O que temos pode ser fruto da sugestão. Do trauma. Além disso,

não nos impede de funcionar. Isto pode ser incapacitante.

Pablo, que estava meio reclinado no sofá do apartamento de Vicky,

disse: eu não me sinto sugestionado. Já conheço a mão. E não a procuro.

Nem tenho medo dela. Se a deixo agarrar-me durante muito tempo,

larga-me. Como se não soubesse o que fazer, coitada.

— Pode ser sugestão — insistiu Vicky, e Pablo bufou.

— Essa atitude vai matar-nos, amiga. Eu sei que queres ter uma vida.

Todos queremos. Eu, ultimamente, até quero ter um namorado, vê lá tu,

que ridículo.

— A culpa é minha — disse Gaspar. — Digam-me a verdade:

pioraram? Isso que sentem está pior?


— É mais frequente — disse Pablo. — Mas não é pior porque já não

tenho medo.

— Está pior — disse Vicky. — Mas a parte boa também. Tenho feito

os melhores diagnósticos de sempre nos últimos dias.

Pablo ergueu-se no sofá e disse:

— Amiga, porque não tentas fazer-lhe um diagnóstico tu?

Vicky cruzou as pernas, incomodada.

— Não funciona assim. Não sou eu que decido, acontece.

— Que estranho que nunca te tenha acontecido com ele, não é?

Tenta. Tenho a certeza de que, se te esforçasses, conseguias.

Vicky abriu a boca para voltar a explicar, mas Gaspar interveio:

— Não — disse. — Não tentes entrar na minha cabeça, nem nada do

género. O meu pai fazia isso. É repugnante.

Ela olhou para as mãos com os olhos cheios de lágrimas.

— Já tentaste.

— Nem te apercebeste.

— E o que é que viste?

— Um poço — disse Vicky, levantando a cabeça. — Um poço

negro. Nunca mais voltarei a fazê-lo.

— Porque é que não me disseste? Não podes mentir-me!

— Não discutam — disse Pablo. — É pior se discutirmos, porque

ninguém quer saber. Já falámos sobre isto mil vezes. Vicky, nunca

reparaste, por exemplo, em que quase não saíram notícias no jornal

depois do desaparecimento da Adela? O Gaspar guardou-as todas. São

seis. Mais nada. Qualquer parvoíce tem direito a quatro vezes mais. Uma

miúda perde-se numa casa e nunca mais é encontrada. Uma miúda sem

braço. E depois também desaparece a mãe. Estavam sozinhas como dois

cravos-do-mato. Eu vou para a cama com este tipo só para passar o

tempo porque, como é velho, fode bem ou melhor. Não há tantos assim,
digo-te já. Ou por conveniência, porque é poderoso, porque tem uma

galeria e é alguém no mundo das artes que a mim me interessa. Seja o

que for. O velho apadrinha-me e, quando faz uma exposição, há uma do

Gaspar e do pai. Uma fotografia enorme, impressionante, impossível de

ignorar. Vicky, já passaram dez anos, mas continuamos no mesmo lugar

de merda. Não discutam sobre se conseguiste diagnosticá-lo ou não. Isso

não interessa nada.

— Não me podes esconder uma coisa dessas, Vicky. Eles estão a

aproximar-se — disse Gaspar. — Querem que eu veja qualquer coisa.

— Quem? — perguntou Vicky, resignada. — Estás a falar como um

paranoico. O que é que tu queres fazer, Pablo, diz lá, o que é que queres

fazer? O que é que podemos fazer?

— Eu não decido o que fazer. O comandante é ele. Foi sempre ele a

mandar.

Gaspar, que estava sentado de braços cruzados, disse que não com a

cabeça. E depois: eu não sei o que fazer, nem o que é que isso significa.

Ainda não. Mas, por agora, esperamos. E contamos tudo uns aos outros.

Em pormenor. Acho que podemos aguentar um pouco mais.

Marita aceitou o convite de Gaspar para irem beber uma cerveja depois

de um encontro no Princesa. Viu-o como tantas outras vezes, sentado

num sofá a fumar, as pernas magras, os ténis pretos, a delicadeza dos

pómulos altos e as mãos de dedos compridos sempre com pequenas

feridas. Estava mais magro. Pela primeira vez desde que conhecia

Gaspar, sentiu-se intimidada, e não por ele agir de maneira diferente. A

rapariga que estava a recitar fazia-o num estilo dramático, declamatório,

era um poema sobre a falta de trabalho, os estaleiros, as estradas

cortadas do país. Era poesia política, melhor do que a dos émulos do

Morrison, mas terrivelmente má, e ela ficara com vontade de rir. Como
era de péssimo gosto rir-se de alguém que estivesse a recitar sobre

aqueles assuntos, foi para a rua. Gaspar seguiu-a; quando chegaram lá

fora, ele agachou-se com as mãos nos joelhos e a gargalhada contida e

partilhada foi um alívio para Marita. Gaspar imitou um pouco o estilo

afetado da rapariga e, depois, já sentado a seu lado, disse-lhe que, apesar

da triste figura que estava a fazer a rapariga, às vezes aconteciam coisas

incríveis no Princesa durante os recitais de poesia, nos últimos meses.

— Tens de vir mais vezes.

— Ando com muito trabalho na faculdade, comecei a dar aulas

práticas, sou monitora.

— Ou seja, não te pagam nada.

— Mas, se calhar, depois compensa.

— No outro dia veio cá um homem que ninguém conhecia. Antes

dele, um poeta de meia-tigela armado em suicida muito patético leu

qualquer coisa tipo Pizarnik, um horror. Depois, leu uma rapariga mais

convencional, aborrecida, um Orozco sem graça. E depois aquele

homem, um desconhecido. Recitou de cor, sem ler, «Explico algumas

coisas», do Neruda. Quase todos olhavam para ele como se fosse um

velho maluco, já sabes como eles são, condescendentes. A mim, fez-me

chorar.

— Fez nada.

Marita sabia que Gaspar raras vezes chorava em público.

Então, Gaspar recitou partes do poema, aquelas de que se lembrava,

e acabou com «e pelas ruas o sangue das crianças / corria,

simplesmente, como sangue de crianças», e abanou a cabeça.

— Foi incrível, Mari. E quando vi que estes daqui não perceberam

nada, nem sabes o ódio que senti.

E olharam um para o outro enquanto, lá dentro, a música começava.

Qualquer coisa dos anos oitenta. Bronski Beat. Marita pensou que se
iam beijar, mas ele bebeu um gole de cerveja diretamente da garrafa.

— Tenho saudades de quando lias para mim na cama — disse ela.

— Eu também — respondeu Gaspar, pondo-se de pé. Estendeu a

mão para a ajudar a levantar-se do chão. Entraram e ela passou a noite a

falar com outras pessoas, mas sem o perder de vista. Gostava dele, mas

isso não era um problema. No dia em que o viu pela primeira vez perto

do Princesa, tímido, recém-saído da escola, belo, com o cabelo escuro

penteado para trás, pensou que tinha uma cara trágica que lhe fez

lembrar todos os rapazes perigosos e delicados por quem se apaixonava,

o James Dean a olhar para as estrelas, o rapaz do Juventude Inquieta a

jogar bilhar. Essa primeira sensação que se diluíra com o tempo e da

qual, após os meses que passaram juntos, apenas restavam a melancolia

e a fúria: quando se enfurecia, podia destruir coisas valiosas (uma vez,

lembrava-se, atirou contra a parede uma câmara fotográfica porque era o

que estava mais à mão) ou mesmo magoar-se, quando a fúria era muita.

Essa tensão continuava a dizer-lhe que era melhor não voltar para ele,

mas, ao mesmo tempo, Gaspar era impossível de ignorar, como um

incêndio doméstico.

Uns dias depois do encontro no Princesa, foi a casa de Gaspar, que

ainda vivia em Villa Elisa, embora, como lhe dissera, andasse à procura

de um apartamento em La Plata. Marita tinha de fazer uma entrevista a

Luis: a editora da faculdade onde trabalhava estava a preparar um livro

sobre a resistência do sindicalismo peronista. Fizeram uma reunião

simples de amigos, pizza caseira e charros. A casa pareceu-lhe quente

em comparação com a sua, com a do namorado, com as dos colegas, que

passavam a vida a aquecer-se nos fogões, deixavam sempre as janelas

abertas para que os quartos não se enchessem de fumo, tinham

cobertores finos e esburacados, coçados pelas viagens pela Patagónia ou

por Jujuy, casas que cheiravam a cão sempre esfomeado e onde todos
bebiam mate acompanhado de bolos. Percebia que, em parte, estava

entediada. A militância era surpreendentemente homogénea, as

discussões eram circulares, as ofensas idênticas, o inevitável preço a

pagar. Havia um ano, a maneira como Hueso monopolizava as

assembleias na faculdade enchia-a de uma espécie de orgulho. Agora

tinha vontade de lhe gritar que deixasse de falar, via a frustração nas

caras dos colegas quando perdiam votações e a retórica parecia-lhe cada

vez mais inútil, precisamente agora que, em todo o país, as greves

significavam despedimentos e os despedimentos, piquetes. O setor

estudantil do partido limitava-se a responder com artigos no seu jornal,

nos quais exprimia a sua solidariedade, denunciava a entidade patronal,

o neoliberalismo, e exortava os operários e os estudantes à mobilização.

Mas os operários continuavam fora da fábrica, a cortar uma estrada ou a

tentar recuperar os postos de trabalho com uma cooperativa, e Marita

pensava que eles deviam participar plenamente nessas ações ou

acompanhar as mobilizações no terreno, e que deviam parar de falar e

falar e teorizar e beber mate. Disse-o a Luis durante a entrevista.

— Não há solução — disse o Negro, que tinha por lá passado para

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beber vinho. — São troskos , não sabem fazer política e a felicidade do

povo repugna-os.

Julieta gritou da cozinha que ela também merecia um pouco de

felicidade e que algum deles se dignasse a ajudá-la a limpar a cozinha.

Comiam como porcos, chafurdavam como porcos, disse. O Negro bufou

um pouco, mas levantou-se para ajudar. Regressou da cozinha com

Gaspar, que estava a fazer uma sobremesa, e deitou-se na

espreguiçadeira. Após tanto tempo sem nada à vista, Luis arranjara

trabalho num edifício do centro. Fazia de tudo: de responsável técnico,

um pouco de engenheiro. Mas não podiam pagar bem a tanta gente.

Gaspar perguntou como estava a correr a obra.


— Está a correr bem, os rapazes trabalham como bestas de carga e,

tecnicamente, são muito melhores do que eu.

— Não é preciso muito — disse o Negro.

— Bardamerda. O que é que tu queres, não contratam um

engenheiro. Mas não faz mal, o Sixto, o chefe dos rapazes, é um

engenheiro intuitivo impressionante. O que me mata é não poder dar

trabalho.

Gaspar sentou-se ao lado de Marita e ofereceu-lhes morangos com

chantilly. Ela apercebeu-se, com aquele gesto, de que tinha saudades do

seu cheiro e da sua pele elástica, do cloro no cabelo quando voltava da

piscina, do sexo naquele pátio onde agora comiam uma sobremesa, na

relva húmida, à noite.

— Dás trabalho, sim — disse Gaspar, servindo a todos um spritz que

aprendera a fazer há pouco tempo. — Não sei se é melhor com Cynar ou

com Campari. Digam vocês.

— Este saiu-te à James Bond — disse o Negro. — É a gota de

sangue inglês.

— Não sejas boçal — disse Gaspar. — Esta bebida é italiana.

— Não há nada melhor do que dar trabalho e complica-me o sistema

nervoso ter de rejeitar pessoas todos os dias. Todos os dias aparece um

miúdo a pedir, vêm com um capacete de alguma obra onde trabalharam.

Faz-nos falta mão de obra, mas não posso contratar ninguém. Alguns

vão-se embora a praguejar, o que é normal, mas muitos saem de lá

resignados. Há dois anos, fazíamos churrascos. Agora, só temos direito a

sanduíches de fiambre.

Nessa tarde, Marita ficou com vontade de voltar a pertencer àquela

família. Deixou-se por lá ficar mesmo quando Gaspar se foi embora sem

dizer para onde. Pensou que se ia encontrar com uma rapariga e

desfrutou da pontinha de ciúmes que sentiu. Poucos dias depois, soube


que Gaspar passara pela obra onde o tio trabalhava com carne assada e

alguns chouriços; foi Luis que lhe contou quando a viu na cantina da

faculdade. Estava emocionado e ela sorriu, porque Gaspar continuava a

ter a mesma maneira de ouvir, pensar e agir sem fazer alarde. Mas estou

preocupado com ele. Não anda bem, está deprimido, não sei se tem

tomado os medicamentos. A mim não me liga patavina, já é um homem.

Se falasses com ele, Marita, fazias-me um grande favor.

Ainda não conseguira falar com ele. Tentá-lo-ia da próxima vez.

De quatro horas tinha de passar para uma. Era sempre fácil cortar, mas,

neste caso, o desta festa em particular, um vídeo de dez minutos teria

sido o ideal. Uma hora era demais. A sala de edição da Faculdade de

Jornalismo era um quarto sem janelas e Gaspar detestava estar fechado

porque, quando editava, gostava de fumar, e lá dentro até o fumador

mais inveterado se sentia asfixiado. Não tinha muito tempo: alugava a

sala aos sábados quando não havia aulas. Naquela tarde estava com

Marita, que lhe pedira, por favor, antes de irem tomar uma cerveja, que

lhe mostrasse os vídeos. Estava curiosa. Gaspar esperava que não lhe

dessem vontade de rir. Detestava quando as pessoas se riam das festas

em que as pessoas tentavam ser felizes.

Agora estava sentada a seu lado, ela e as suas calças de ganga

coçadas, uma t-shirt branca sem mangas, a pele morena e o cabelo um

pouco mais comprido, mas sempre curto. Não o posso deixar crescer,

dizia, porque é muito encaracolado. São os genes do meu avô uruguaio e

preto. Deixou-me uma pele maravilhosa e um cabelo complicado.

Gaspar não queria pensar que Marita não usava sutiã, nem queria

reparar na maneira como as calças lhe vincavam as ancas e, por isso,

deu-lhe um caderno e pediu-lhe que apontasse os tempos. Ela já tivera a

cadeira de produção audiovisual e sabia como se fazia.


A rapariga que fazia quinze anos. Valentina. Filmou-a com lágrimas

nos olhos demasiadas vezes. Despenteada. Total e desmedidamente

consciente de que a sua festa estava a cair aos pedaços. Os adultos

bêbedos. O próprio pai a tentar apalpar o rabo das colegas. A mãe a

discutir aos gritos com os empregados por estarem a servir as coisas

frias e sempre tarde. Um DJ tão mau que não conseguia fazer ninguém

dançar.

— Nunca vi nada tão deprimente — disse Marita enquanto Gaspar

decidia cortar uma hora inteira de pequenas catástrofes, incluindo um

plano do bolo destruído pela mão desajeitada de uma avó bem-

intencionada que, ao tentar endireitar a boneca vestida de cor-de-rosa

que coroava os andares de bolo e creme, a empurrara até quase cair. Só

lhe restava uma cena filmada por precaução: filmara o bolo na cozinha

do salão de festas antes de o levarem para a zona onde estavam os

convidados. O carnaval carioca era um desastre de homens suados,

mulheres a fugir com ataques de ciúmes e o êxodo das adolescentes:

algumas tinham gozado com a rapariga. Valentina. Um nome lindo.

— Uma tristeza incurável, não é? — disse Gaspar antes de pôr o

vídeo em pausa. — A noite foi toda assim. Gravei umas raparigas a falar

e a beber champanhe, tinham-no levado para fora, para o jardim. É um

salão muito bonito, já lá foste? La Casona, em City Bell. Bom, então

elas convidaram-me para beber champanhe, e eu tento não beber quando

estou a trabalhar, não para não me embebedar, porque não me

embebedo, mas porque dá mau aspeto. Não sei, se os pais me virem a

beber com as raparigas não é bom, têm quinze anos. A questão é que as

miúdas, quando metem conversa comigo, ou me dizem parvoíces ou

tentam galar-me, essas coisas que acontecem aos tipos mais velhos.

Estas contaram-me que andavam a fazer terapia no Melchor Romero, na

unidade dos distúrbios alimentares. Olhei para elas e estavam


magérrimas, cheias de olheiras escondidas pela maquilhagem, muito

mau. Foi tudo assim, nessa noite. Uma disse-me hunger hurts but

starving works. Eram raparigas de uma escola bilingue muito boa, muito

chique.

— Eram giras?

— Não gosto de raparigas magras. Não sei.

— As pessoas contam-te sempre coisas. É esse teu ar. O ar de eu

tenho o poder de uma experiência sombria, venham a mim.

Gaspar carregou no play: o vídeo estava a tremer. Olhou para Marita.

— Não sejas cruel comigo.

— Não estava a ser má. Tu tens isso, e a Vicky e o Pablo também. E

o teu tio, por causa do exílio. E o Negro. Eu não tenho nada. Às vezes,

sinto que sou tão aborrecida. Não fazes ideia.

Como Marita não disse mais nada, Gaspar voltou a trabalhar.

Acabaram de ver o vídeo até o reduzirem a uma hora e três minutos.

Gaspar voltaria sozinho, durante a semana, para fazer a edição real.

Tinham bebido várias cervejas. Gaspar não estava bêbedo, Marita sim,

um pouco, embora tivesse comido dois pacotes de batatas fritas. Falaram

sobre outras coisas, especialmente sobre as raparigas anoréticas, sobre

as colegas de Marita que vestiam roupas largas e depois se olhavam no

espelho da casa de banho, encolhiam a barriga, deixavam as costelas à

mostra e se cortavam, e o sangue escorria-lhes pela púbis. Eu nunca fui

assim, disse-lhe, quando atravessavam a Plaza Moreno.

— Porque é que continuas a dizer isso?

Marita passou a mão pelo cabelo curto e puxou-o um pouco.

— Porque quero dizer outra coisa e não me sai.

— Não consigo acompanhar-te se me deres tantas voltas. Isto de me

fazeres sofrer é novo, na verdade, e não gosto.


Marita disse desculpa, desculpa, e abraçou Gaspar antes de procurar

a cara dele com as mãos.

— Estiveste comigo por causa disso? Por eu ser uma pessoa sem

complicações, comum, sem dramas?

— Qual é o mal?

— Nenhum, mas é uma seca.

— Eu sou chato — disse Gaspar. — Tu, não. Tu importas-te com as

pessoas, queres mudar as coisas, não te vais abaixo por causa de

parvoíces. Toda a gente gosta de ti. Como do meu tio. Não me ocorre

nada melhor do que isso, na verdade. Nada.

Marita beijou-o. Gaspar desprendeu-se da mochila e respirou fundo.

— Deixei o Hueso — disse ela. — Quero estar contigo. Queres

voltar para mim?

Montar uma casa podia ser um alívio. Tinha funcionado da primeira

vez: atravessar a dor de cabeça constante tentando fazer entrar uma mesa

na cozinha. Ignorar os sonhos e as alucinações pintando uma parede

com o rolo, de cima para baixo, da direita para a esquerda, fita nas

terminações das portas para não as sujar, o cheiro penetrante no cabelo e

na pele que saía com o duche ao entardecer. Escolher os candeeiros e

recear apanhar um choque de pé no último degrau de um escadote frágil.

Agora que voltara com uma frequência diária ao que o neurologista

chamava déjà-vu e ele preferia chamar recordações, estava a montar uma

casa com Marita. Arrendada, por enquanto, por recomendação do tio.

Tens muita massa e muitas casas: não te precipites, antes de comprar há

que escolher bem. E lá estava ele a pintar paredes de cor púrpura, uma

casa púrpura como Paisley Park, era esse o sonho dela e, depois de

pintar, dois copos de vinho sentados no chão como num anúncio da

televisão, e a seguir instalar programas no computador. Quando Marita


dormia profundamente e sem sonhar, ele desprendia-se das pernas dela e

olhava para o teto e sentia o esgotamento do sexo e a infelicidade como

um peso à volta do pescoço. O facto de ela lá estar só lhe proporcionava

alguns momentos de alívio, chutos agradáveis. Não lhe queria descrever

as cenas que lhe davam medo. Não lhe ia contar, e não lhe contava, que

não podia voltar à casa real onde desaparecera Adela porque tinha sido

demolida, mas que voltava lá quase todas as noites em sonhos para a

procurar desesperadamente atrás de centenas de portas. Os sonhos eram

compridíssimos, autênticos filmes. Gaspar não sabia se os sonhos das

pessoas normais eram assim tão compridos. O neurologista dissera-lhe

que experienciava cenas retrospetivas visuais e emocionais de um sonho

ou de uma série de sonhos. Era essa a sua última conclusão. Tinha um

déjà-vu de sonhos. Gaspar pôs em causa esta teoria, como é que isso

podia ser, e o médico disse que era pouco comum, mas completamente

sintomatológico da epilepsia, que era raro, mas não inédito e por aí fora.

Vicky estava de acordo. Marita dizia que parecia um enredo de ficção

científica, de Philip K. Dick. Como é que podes ter déjà-vus de sonhos

esquecidos? Acho que tens de consultar outro médico.

Passeavam pela cidade depois de trabalharem na casa. Às vezes

falavam deitados na relva que rodeava a catedral, Marita a fumar

marijuana quando anoitecia e se acendiam os candeeiros da Plaza

Moreno. Às vezes bebiam uma cerveja com amendoins nos bares da

Diagonal 74 enquanto se queixavam da música. Outras vezes passavam a

tarde nas margens do lago artificial do parque a que chamavam o

Bosque, e Marita apontava sempre para os ratos que nadavam na água

estagnada e perguntava-se como era possível que não cheirasse mal,

como é que as pessoas continuavam a andar de barco como se se tratasse

de um passeio romântico e não do que realmente era, um autêntico nojo,


e como é que podiam comer nas bancas de rua que sem dúvida eram

visitadas pelos animais.

Ela queria saber o que acontecera durante os anos que passaram

separados. E ele falou-lhe de como, pouco a pouco, lhe tinham deixado

de interessar as coisas. Em pequeno, contava, era um adepto obcecado

de futebol. Mas nunca mais recuperara isso. É melhor assim, dizia ela,

são uns energúmenos. Mas eu percebo-te. Há uma alegria nisso. Quando

o Estudiantes é campeão, o meu pai fica mesmo feliz, nada o põe tão

contente. Nem ganhar dinheiro, nem que as coisas nos estejam a correr

bem a mim ou ao meu irmão. É uma felicidade diferente, deve ser um

desgosto tê-la perdido.

— E não me consigo interessar por nada. Tu vais começar a escrever

no jornal, tens uma ideia para um livro, a rádio. O Pablo é um autêntico

animal a trabalhar, a pensar, tem sete cadernos de esboços. Vai ser

famoso. A Vicky é um génio. E eu filmo parvoíces. Comecei a fazer

filmes porque, quando era pequeno, adorava cinema. Agora gosto,

distrai-me, mas não me interessa muito. Dantes chorava a ver filmes,

imitava as cenas. Mas também fui perdendo isso.

— Estás deprimido, meu amor.

— Sim, claro que estou deprimido. Às vezes acho que filmo as festas

dos quinze anos porque têm qualquer coisa, não sei como dizer, uma

espécie de confiança na vida muito elementar que me alivia. Achas

estúpido?

— Não. Estou a pensar. Ainda gostas de ler, entusiasma-te.

— Só isso, sim. Ler. E as raparigas. As raparigas nunca deixaram de

me entusiasmar.

— Vai à merda.

— Espera. É que havia qualquer coisa muito amarga nas raparigas,

uma aversão brutal a comprometer-me, arranjava mil desculpas,


recusava-me a sentir. Não era bem recusar-me: não sentia nada. Tu és a

única e isso preocupa-me.

— Porque é que te preocupa?

— Porque tu não devias estar comigo.

— Gaspar, detesto e irrita-me essa tua autocompaixão, é muito rasca,

é a desculpa número um dos gajos, é o «não sou bom para ti», «não és

tu, sou eu», a mesma merda de sempre.

— Não é isso que eu quero dizer.

— É só por isso que não me levanto e me vou embora, porque sei

que estás deprimido. O que é que a Isabel diz?

— A Isabel está velha e conhece-me demasiado bem. Tenho de

mudar de terapeuta, não posso continuar com a mesma médica de

infância, acho que é de uma falta de maturidade alarmante. Alguns

medicamentos para a epilepsia são antidepressivos. Por isso, já estou

medicado.

— Devias estudar. Podes ir para Letras. Consigo imaginar-te como

professor.

— Não percebo porque é que tenho de estudar.

— É o que nós, os jovens de pé-rapado, temos de fazer, não é? É

verdade, tu és rico.

— Não comeces com isso tu também.

Antes de adormecerem, Gaspar lia para ela, mostrava-lhe as suas

descobertas. Este morreu com vinte e dois anos, uma loucura. Descobri-

o quando o Pablo fez aquela exposição de fotografia sobre os poetas, não

sei se te lembras. Era esloveno. Não sei pronunciar o nome dele, mas o

apelido é Kosovel. Escreveu uns mil poemas, dizem que são todos bons,

pelo menos bons para um miúdo. Gosto deste: «Nas fontes bate, bate. A

sombra. O frio canhão da pistola. Dez toneladas. No meu coração, um

meio-tom em tonalidade menor.» E o meu pai apontava nomes,


dispersos, no caderno dele, dá para ver que eram autores que ele queria

ler. Aqui escreveu Sara Teasdale. Traduzi-a. É mesmo genial.

— Podias dar aulas de inglês, por exemplo. Não gosto que leias

sobre suicidas.

— Não me vou matar. E não preciso de dinheiro. É a única coisa boa

que tenho.

— Para de te armares em coitadinho. Essa conta onde te depositam o

dinheiro é de cá? Porque devia estar em Colonia. Um dia vamos a

Colonia e depositamos dinheiro lá.

— Já está em Colonia, há anos.

— Vamos na mesma. Estive lá quando era pequena. Lê-me o que

traduziste.

— «Haverá sempre estrelas sobre este lugar. Embora a casa que

amamos e a rua que amamos estejam perdidas.»

— Eu queria estudar astronomia, mas não sei fazer divisões com

dois algarismos. Foi por isso que fui para jornalismo.

— Nunca me contaste isso.

— Também não é uma frustração. Quando quiseres, ensino-te os

nomes das constelações, de certeza que não sabes. Ninguém sabe, é raro

as pessoas interessarem-se pelo espaço. Devem ver-se melhor de

Colonia, não é?

Era isso que ela queria: viajar. Queria ir à Patagónia e escrever sobre

os colonos galeses. Queria ir a Valparaíso, embora tivesse medo de

terremotos. E a Minneapolis, para ver a casa do Prince. Merecia um

companheiro melhor. Não importava que quisesse estar com ele e fosse

sincera. Ele tinha de ir-se embora, de a deixar, e era tão difícil. Quero

viajar contigo, pedia ela, e Gaspar respondia-lhe claro que sim, beijava-a

no pescoço e deixava os lábios apoiados lá, a sentir as palpitações, e

pensava que jamais a levaria a lado nenhum porque ele só devia ir ter
com os que o procuravam, havia um coração negro que precisava dele e

algum dia cumpriria os seus desejos porque, quando não se consegue

lutar, a única maneira de ficar em paz é render-se.

Embora a tensão com Julieta permanecesse surda mas evidente, Gaspar

foi à festa de aniversário do Negro em Villa Elisa: celebrava-o em casa

de Luis. Foram convidados os operários do edifício onde o tio

trabalhava, alguns vizinhos e alunos do Negro e a filha dele. Desta vez,

Gaspar não tinha vontade de ajudar a fazer as saladas ou a pôr a mesa.

Sentia-se cansado. Julieta estava com os lábios finos de desaprovação e

ele sabia porquê: numa discussão recente com Luis, Gaspar batera na

porta com tanta força, que ainda lá estava o buraco feito pelo punho

dele. Uma semana depois, ainda tinha farpas nos nós dos dedos. O tio

reagiu como sempre perante os ataques de fúria: sem medo, com as

mãos estendidas, tentando agarrá-lo pelo pescoço como se fosse um

animal dominante, vergando-o num abraço carinhoso até Gaspar se ver

obrigado a abrir as mãos e a respirar lentamente. Quando era pequeno, o

pai costumava abrir-lhe a palma da mão para lhe corrigir aquele gesto de

tensão. Luis fez a mesma coisa durante muito tempo. De vez em quando,

ainda lhe acariciava o braço por baixo da mesa para que Gaspar

percebesse que tinha de esticar os dedos.

Julieta assustou-se com o murro na porta. Está tudo controlado, disse

Luis, e ela, sem se conseguir conter, quase gritou com a voz repleta de

ira:

— Está tudo controlado até um dia embirrar com os teus filhos e

lhes dar uma tareia. Que merda de prioridades são as tuas?

E quando Luis a seguiu para a tentar acalmar, Gaspar passou uma

mão pelo nariz, limpou o ranho nas calças de ganga e saiu de casa com a

intenção de não voltar lá durante algum tempo. No dia seguinte,


apareceu no trabalho do tio para lhe pedir desculpa e ouvir a mesma

coisa de sempre: tens de controlar-te, filho, tens de aprender a lidar com

essa raiva ou trabalhar isso na terapia, e a Julieta mudou muito desde

que os rapazes nasceram, não sei se são as hormonas ou se ser mãe é

isto ou sei lá eu, mas está mais medrosa. Gaspar pensou em não ir ao

aniversário do Negro, em limitar-se a telefonar-lhe, mas não o queria

ofender. Preferiu sentar-se à mesa, esperar, aplaudir o churrasqueiro. Os

rapazes não estavam lá, e ainda bem: tinham-nos deixado em casa dos

avós para poderem fazer uma festa de adultos com vinho, discussões e,

provavelmente, choradeira de madrugada.

— Sabes quem é que eu vi? O Josecito Viola. Estava em Buenos

Aires, de férias. Vive em França. Lembras-te de quando nos zangámos?

— Foi na Plaza Francia, precisamente.

— Eu estava a dizer-lhe parvoíces, como que o rock era a cultura das

grandes empresas, por amor da santa. Que idiota. Bem, vive lá e parece

que dá aulas de sociologia. Pareceu-me bem.

Marita quis saber mais e os dois homens passaram meia hora

entusiasmadíssimos a falar sobre os anos setenta. Gaspar já tinha ouvido

quase todas aquelas histórias, mas divertia-o vagamente vê-los

emocionados por estarem a ser alvo de atenção de uma rapariga nova e

«nada parva» (diziam-no sempre assim: «não é nada parva, a tua

companheira»: eram machistas a esse ponto, embora jurassem o

contrário) que, além disso, tinha um interesse notório e consistente por

política, o que era pouco comum («não assumem nenhum

compromisso», era a queixa mais habitual quando falavam dos

estudantes). Ela participava nas discussões deles e não era

condescendente, e também não estava deslumbrada: usava-os como

fontes de informação, pensava Gaspar. E eles adoravam.


O serão alargou-se e o Negro até cantou um pouco, embora sem

conseguir levar os outros até «à situação de coro». Quando estava muito

bêbedo e começava a discutir — a bebedeira tornava-o birrento —, os

outros afastavam-se e deixavam-no a resmungar sozinho até ficar com

sono. Então, sugeriam-lhe que fosse dormir e ele dizia sempre que sim.

Gaspar acompanhou-o até ao quarto com a desculpa de que precisava de

ajuda, mas na verdade o que queria era estar sozinho durante algum

tempo, ter um pouco de silêncio antes de voltar. Julieta estava a ser

amável com ele, por enquanto. A filha do Negro fora-se embora cedo

porque não gostava de discutir com o pai bêbedo. As coisas não estavam

assim tão mal. Quando Gaspar voltou da casa de banho, as pessoas

tinham começado a despedir-se. Os alunos do Negro, os trabalhadores

da obra de Luis. Gaspar foi até ao grelhador e fez uma sanduíche tardia

com um pouco de entranha fina. Julieta também anunciou que ia dormir.

E de madrugada já só lá estavam Luis, Gaspar e Marita com todos os

pratos sujos em cima da mesa e três cinzeiros cheios.

Gaspar estava à espera de um sinal de Marita para se ir embora e, um

pouco aborrecido, pôs-se a brincar com o cão, que estava excitado com a

carne, os cheiros e as pessoas. Entre as cabriolas e as falsas mordidelas,

Gaspar perdeu o início da conversa. Quando o cão lhe saltou para cima

para continuar a brincar, distraiu-o com um osso do churrasco. Ouvira

algo que lhe interessava.

— Então saíste pelo Paraguai?

— Pelo Brasil. Dois meses depois do golpe, mais ou menos. Foram

os pais do Gaspar que me tiraram do país. A mãe, melhor dizendo,

levou-me de carro.

Gaspar sentou-se direito e acendeu um cigarro.

— Foi a minha mãe que te levou? Foi ela que te tirou do país? Nunca

me contaste isso, porquê?


Luis parecia um pouco envergonhado. Tinha falado demais. Estava

bêbedo e entusiasmado, como sempre que falava do seu passado com

alguém interessado em ouvi-lo.

— Não sei, filho. São coisas duras.

— Porque é que isso é duro? Ela ajudou-te, não vejo onde está o

trauma. Detesto segredos. Sabes perfeitamente que me dão cabo da

cabeça.

— Estás a exagerar, estás a empolar a situação. Controla-te, não

vamos discutir por causa disto.

— Logo vemos se discutimos ou não. Diz lá porque é que não me

contaste.

O silêncio no pátio era pesado e ruminante, carregado de embriaguez

e de sono. Marita apoiou a mão no ombro de Gaspar, que se aproximara

da mesa com os braços cruzados.

— A minha mãe tirou-te do país e nunca te lembraste de me contar

isso. Em quinze anos. Nada, nem uma palavra.

— Estou a contar-te agora. Há coisas que não são fáceis.

— Não me estás a contar nada a mim, estás a armar-te aos cucos

com a Marita. Estou farto de vocês e das vossas vidas difíceis. A sério.

— Parem com isso — disse Marita. — Gaspar, não te contou e

pronto, está bem? Tu também ocultas coisas. Todos ocultamos coisas.

Luis decidiu acabar com a tensão dizendo a verdade.

— Os teus pais viviam em Misiones, na casa de família da tua mãe.

Eu encontrei-me com o teu pai aqui. Bom, aqui não, em Buenos Aires.

Não foi por acaso, ele telefonou-me e combinámos encontrar-nos. Tinha

ido lá fazer qualquer coisa, acho que ia a uma consulta, mas às tantas era

mentira. Não me contava quase nada. Sabes como é que ele era. Bom,

sem mais nem menos disse-me para fazer a mala porque ele me ia levar

para fora do país. Não sei como, mas sabia que eu me tinha de ir
embora. Não eram coisas que se dissessem por telefone e eu não lhe

tinha contado nada. Guiámos à vez até Misiones, foi uma viagem de

loucos, ele estava mal de saúde.

— Fiz essa viagem com o meu pai.

— Eu sei. Se calhar, foi por isso que não te contei.

— O que é que isso tem a ver? Então, conheces a casa.

— Estive lá poucas horas. Tomei banho, comi qualquer coisa.

Levaram-me de dia. A tua mãe conhecia os militares da fronteira porque

estava a trabalhar em Asunción e porque a tua família materna, enfim,

tinha muitos conhecimentos.

— A minha mãe levou-te para fora do país de carro. A minha mãe.

Nunca me falaste dela, nem da casa. Sabes que sonho com a casa, que

tenho alucinações com a casa, sei lá que porra de problema tenho com a

casa, e nunca me disseste que lá estiveste. Sabes que quero saber mais

coisas sobre a minha mãe, que não me lembro bem dela e que sinto

muito a sua falta. E tu conheceste-a. És um traidor. Devias contar à

Julieta que foi a minha mãe que te tirou do país para acabares com a

merda dos fanicos dela e para ver se deixa de nos julgar, a mim e à

minha família.

— Não te consinto que fales assim, Gaspar.

— Então não consintas. Porque é que não me contaste? Diz a

verdade.

Luis baixou a cabeça e suspirou.

— O Juan pediu-me que nunca te contasse isto e eu respeitei o

desejo dele. Ele não queria que soubesses nada, absolutamente nada,

sobre a família da tua mãe.

Gaspar agarrou num copo vazio e Marita segurou-lhe o cotovelo com

força para evitar que o atirasse, para evitar que a noite acabasse com
uma descarga violenta. O copo caiu em cima da mesa, mas não se

partiu.

— Vou-me embora — disse Gaspar.

Marita levantou-se para ir atrás dele, mas Gaspar continuou a andar

depressa e sozinho, sem esperar por ela, obrigando-a a correr pela rua,

de noite. Era tarde para voltarem para La Plata, mas Gaspar dirigiu-se

para a estrada, para a paragem dos autocarros. Marita seguiu-o tão

depressa quanto pôde: não era fácil acompanhar o ritmo dele. Também o

seguiram os gritos do tio na escuridão, que lhe dizia para com isso,

dorme cá, que já vos preparámos a cama, amanhã falamos com mais

calma. Gaspar não podia avançar mais pela estrada, àquela hora não

havia táxis nem motoristas particulares em Villa Elisa, e o comboio não

passava por lá. Só lhes restava esperar por um autocarro, havia um de

hora em hora, ou pedir boleia ou ficar em casa dos pais de Marita.

Quando ela se juntou a ele, esteve quase para lhe arrear uma bofetada.

Obrigá-la a correr assim como uma imbecil durante a noite, a suplicar-

lhe como uma protagonista de telenovela. Mas conteve-se.

— Não fales comigo agora — disse ele. — Por favor.

— Foi o teu pai que lhe pediu. A culpa não é dele.

— Não fales comigo.

Marita parou no meio da estrada e nem quis acreditar quando viu, a

uns cem metros, o branco e o vermelho do autocarro que os levaria de

volta para La Plata.

— Temos de comprar um carro — disse.

No autocarro, deixou que Gaspar se sentasse sozinho na última fila.

Quando chegaram a La Plata, ela foi para o apartamento, mas ele ficou

na rua sozinho, às voltas.


Marita entrou a correr no gabinete do professor Herrera, o responsável

pela editora da faculdade. Atrasara-se porque Gaspar estava tão zangado,

que não a tinha deixado dormir bem. E ela precisava de trabalhar. Às

vezes, Gaspar era egoísta: o drama dele sobrepunha-se a tudo. Mas sabia

que, quando voltasse a casa, à tarde, ele lhe pediria desculpa e estaria

mais calmo. Apercebeu-se de que esse ciclo devia ser quebrado de

alguma maneira e confiava em que isso acabaria por acontecer, com a

terapia adequada. Gaspar tinha razão quando dizia que já não era viável

continuar a fazer terapia com a sua psiquiatra de infância.

O corredor da faculdade estava totalmente coberto por papéis;

também havia bandeiras de papel com palavras de ordem penduradas no

teto e nas portas. Aproximavam-se as eleições e era a primeira vez,

desde que lá entrara, que Marita estava envolvida no processo. Nesse

ano, o trabalho na editora tinha-a absorvido por inteiro. Naquele

momento, estava a colaborar na coleção de resgate de grandes crónicas

publicadas desde os anos sessenta. Textos que tinham aparecido sem

pena nem glória em revistas ou meios alternativos, e eram de autores

que, com o tempo, se tornaram famosos. E também artigos de jornalistas

desaparecidos, um ou outro tesouro ignorado. O critério era eclético

porque o selecionador era Herrera, o catedrático responsável pela

cadeira de que ela era monitora, o professor mais admirado e temido da

faculdade pelo seu caráter, embora ela soubesse que se tratava apenas de

uma fachada de professor: fora das aulas era muito amável. A Marita só

lhe faltava ler as crónicas do último livro, que nessa tarde viria da

gráfica, porque tirara uma semana de licença. E no regresso, em vez de

chegar a horas e entusiasmada, aparecia com olheiras e meio

adormecida. Herrera apreciava a abnegação e Marita queria aquele

trabalho; queria mantê-lo nos anos seguintes. Ainda não lhe pagavam,

mas era possível que a contratassem em breve. Além disso, queria


mostrar a Herrera os testemunhos que tinha recolhido sobre a crise da

sida na cidade e o registo das primeiras marchas do orgulho gay. Era

uma investigação modesta, mas com trabalho e mais material poderia vir

a ser publicada. Mas isso não aconteceria se chegasse tarde e não se

comportasse com seriedade.

— Finalmente — disse Herrera sem a cumprimentar. — Temos de

falar.

Marita pousou a mochila no chão e passou a língua pelos lábios, não

fosse ter restos de pão ou manchas de café do pequeno-almoço. Queria

parecer profissional.

— Temos de mandar o volume 12 para a gráfica. A menina não fez a

revisão, foi substituída esta semana e é por isso que não a

responsabilizo, mas a revisão foi desastrosa. Não posso enviá-lo como

está. Preciso de que se sente e a faça agora mesmo.

— Professor, não tenho tempo de rever o livro todo e não sou

revisora.

— Não, querida, não me refiro ao livro todo, não sou doido. É o

último texto, o da Olga Gallardo. Não sei o que é que aconteceu: até

parece que a pessoa responsável nem sequer olhou para ele. Veja. Faltam

acentos, há saltos impossíveis, um desastre. Claro que não o fará tão

bem quanto a revisora, mas ela hoje não pode vir. Temos de nos

desenvencilhar entre a menina e eu.

— Não há problema.

— Já leu esse texto?

— Ainda não.

— Hesitei em incluí-lo até à última hora porque a Olga, nos seus

últimos anos, se tornou uma pessoa muito peculiar. A doença mental é

uma coisa terrível, Marita, destrói as pessoas. Eu conhecia-a quando era

nova e era uma profissional excelente, ousada, talvez um pouco boémia


demais, como todos. Mas no fim era uma sombra. Ficou obcecada com

o caso que vai ler, mas não foi só isso. Nunca é só isso.

Marita já ouvira falar de Olga Gallardo, a grande cronista mulher

num mundo de homens, alcoólica e suicida. Julgava que a maneira como

a tinham mitificado era exagerada e injusta porque, embora todos

insistissem que era muito boa, nunca a davam a ler nas aulas. O próprio

Herrera, uma vez, tinha-lhe dito que, com ela, era difícil saber onde

acabavam os factos e começava a ficção. E que isso era o pecado mortal

de um jornalista, pois, embora tivesse de saber usar as ferramentas

narrativas da literatura, nunca podia apelar à imaginação, a

responsabilidade pública e o compromisso de veracidade para com os

leitores eram irrenunciáveis. Marita fez um café instantâneo e depois

imprimiu o texto a partir do computador. Chamava-se «O poço de

Zañartú» e tinha poucos anos: ela suicidou-se pouco depois da sua

publicação, era um bilhete de suicídio. Sentiu-se um pouco apreensiva

quando se sentou a ler o texto com o lápis na mão. Estava prestes a ler as

palavras de uma mulher provavelmente louca, as palavras deixadas em

jeito de testamento antes de se matar, e tinha sido uma morte horrível

com veneno para ratos, isso também fazia parte do mito, a dolorosa

agonia num hotel, porque saíra de casa para morrer. Herrera estava de

costas para ela, ao telefone, a retorcer o fio. Marita acomodou-se na

cadeira e entrou na selva, num poço de ossos, no calor.

O telefone estava a tocar, e também a campainha, o telemóvel,

novíssimo, não tinha bateria e não tencionava carregá-la. Não estava

disposto a falar com ninguém. Tinha expulsado Marita, fizera-o porque

estava em perigo, mas ela, claro, não percebia. Estava assustada. Queria

saber se era mesmo verdade o que dizia o artigo sobre a casa onde Adela

tinha desaparecido, os restos mortais, se era verdade que havia uma


diferença de tamanho e de espaço entre o lado de fora e o de dentro. Ele

não lhe quis responder: não podia fazê-lo, mas também não negou nada.

Enquanto Marita gritava, via num canto do apartamento, iluminada pela

luz do entardecer proveniente da varanda, Adela nua, o corpo coberto

por fios de sangue ou, talvez, fios de lã vermelha, a dançar de maneira

infantil e elástica, o cabelo louro sobre os olhos pretos, tão pretos como

os de Omaira e como os do pai antes de morrer. Tentava olhar para

Marita, mas não conseguia deixar de ver aquele corpo de menina,

branco e obsceno, a saltitar ao pé do cortinado. Marita insistia. A

Gallardo é uma fabuladora, disse-lhe, toda a gente sabia isso. Toda a

gente, toda a gente, quem é toda a gente. Aquela mulher matara-se por

causa dele. Era a sua segunda morta. Haveria mais, tinha a certeza. O

facto de aquele bilhete ter ido parar às mãos de Marita era a mensagem

final. Como não lhe podia explicar, porque seriam anos de explicações e

de silêncios, expulsou-a. Faz a mala, não posso proteger-te. Marita, não

posso proteger-te, a sério, não fazes ideia do que isto é, eu também não,

mas sinto, sei, sempre soube, que é o fim e eles vão procurar-te. Mas tu,

não: se te acontecer alguma coisa, não me perdoo. E vai acontecer-te.

Sai.

Estás doido, chorava Marita, temos de telefonar à tua psiquiatra, e

Gaspar, enquanto ela chorava, começou a esvaziar as gavetas dela e a

tirar a roupa que estava pendurada no roupeiro e a encher as malas,

desfeitas há tão pouco tempo, pois mal se tinham mudado para lá e

ainda cheirava a tinta. No fundo do armário vazio viu uma cabeça.

Melhor dizendo, uma nuca. Alguém a mastigara, tinha marcas de dentes.

Fechou as portas com força antes que a cabeça se virasse e lhe mostrasse

a cara. Receava que fosse uma cara conhecida.

Não podia deixar de reconhecer que Marita fora a correr contar-lhe

tudo sobre o bilhete. Não como o tio. Ela não lhe ocultava coisas. Era
valente. Estava assustada e chorava e, embora tivesse guinchado quando

o viu enfiar a roupa na mala, de certa maneira já estava à espera disso.

Não podia haver outro desfecho. Gaspar conseguia perceber o medo e a

raiva, mas não o secretismo. O preço de revelar o segredo, claro, era

este. Quando Marita se foi embora, Adela parou de dançar: agora estava

vestida, tinha o blusão cor-de-rosa velho que costumava usar quando

ainda era sua amiga e não aquele fantasma dançante. Gaspar só

conseguiu sentir alívio quando Marita se foi embora dizendo que nunca

mais voltaria. Era o que ele queria.

O telefone voltou a tocar. Se calhar era o tio. Podia ser Vicky ou

Pablo. E se o tio tivesse conhecido Betty em Puerto Reyes? Se ele

conhecia a mãe, não, pior ainda, se tinha sido a mãe a levá-lo para o

outro lado da fronteira, podia ter acontecido qualquer coisa. Isso não era

importante. O bilhete mencionava a casa dos avós. Estavam a aproximar-

se demasiado. Estão a rodear-me. Leu o bilhete até o aprender de cor.

Tinha de ser prático. Tinha de perceber que, em todos aqueles anos

desde o desaparecimento de Adela, nunca estivera tão perto de encontrar

algum tipo de caminho que levasse até ela e de perceber o que é que

tinha acontecido, qual era a sua história, a dos seus pais, a da sua

família. Adela, segundo Gallardo, era prima dele. Betty nunca lho tinha

dito nem sequer insinuado. Quanta frieza. Esperava essa frieza por parte

do pai, mas de Betty? Ocultavam algo monstruoso. Imaginou Betty

naquele hotel de província, bêbeda, a falar sobre um monstro que vivia

na selva.

O que contava era verdade. Aquela casa, Puerto Reyes. Tinha de lá ir.

À Garganta do Diabo, pensou. Perguntara ao pai se o ia atirar para lá e

ele jurou-lhe que não. Se calhar estava a mentir.

Gaspar saiu pouco do apartamento naqueles dias: só para comprar

comida e cigarros, um mapa de Misiones no Automóvel Clube. Não


encontrou nenhum muito grande, mas era suficiente. Zañartú estava no

mapa. E também San Cosme e Puerto Libertad. Era fácil ir de Libertad

até Puerto Reyes, disse-lhe Andrés Sigal. Puerto Reyes, a Moby Dick das

mansões da aristocracia. A avó era coxa, lembrava-se agora vagamente.

De a ver subir as escadas de bengala. A avó Ahab. Tinha de traçar o

itinerário da viagem. Talvez Betty ainda vivesse em Cosme. As

escavações no poço tinham acabado. Lembrava-se de alguém ter dito

isso num churrasco em casa do tio. Tinha de ver a lista dos corpos

identificados. Teriam encontrado o pai de Adela? Que teria feito Betty

com ele? A morgue de Corrientes. Também teria de lá ir. Era muita

coisa. Estaria Betty em Puerto Reyes? Se estivesse mais alguém lá em

casa, abrir-lhe-iam a porta. Olga Gallardo não era a única que andava

atrás dele. Não andavam à procura dele para ser recebido como o filho

pródigo, com afeto. Sabia isso, mesmo que não soubesse mais nada.

Tinha de lá ir, ou o círculo que se estava a fechar começaria a apertar. Se

não o encontrassem a ele, encontrariam outra pessoa. Se fosse Marita,

não imaginava como poderia continuar a viver a sua vida, a vida.

Desligou o telefone.

O serviço de urgências estava insuportável desde muito cedo. Assim que

entrou, deparou-se logo com o pior cenário possível: uma gravidez

complicada. Vicky detestava os partos complicados porque a família não

os percebia. Zangavam-se, convenciam-se de que a culpa da hemorragia

da mulher, de o bebé estar atravessado, da cesariana de emergência, no

melhor dos casos, era inteiramente dos médicos, e não compreendiam a

explicação simples de que essas coisas aconteciam, que era a natureza,

que as mulheres sempre morreram de parto ao longo dos séculos. Não

conseguiam perceber que um parto não era algo sagrado e essas


parvoíces. E que não eram os médicos a querer destruir as suas estúpidas

felicidades. Detestava os parentes.

E depois da grávida, um rapaz com convulsões febris com o tipo de

mãe histérica que não deixava trabalhar e julgava saber mais do que os

médicos. Era bastante verdade o que a mãe dizia: não tinha empatia. A

única coisa que queria era que a deixassem solucionar os problemas.

Porque é que, além disso, teria de ser amável?

Agora estava prestes a chegar um doente numa ambulância e a

informação de que dispunham era que se tratava de um acidente. Nunca

lhe diziam claramente o que ia aparecer nas urgências. A comunicação

entre o hospital, as ambulâncias e a polícia era desastrosa. Por isso,

podia ser qualquer coisa, uma contusão, um atropelamento, um

massacre.

Vicky esperou com os colegas no lado de fora da entrada, a fumar o

cigarro da praxe antes de entrar para mais quinze minutos de stresse. Os

maqueiros tiraram o acidentado da ambulância e, quando os

interrogaram, disseram a mesma coisa de sempre, não sabemos o que

aconteceu, apareceu assim, na Rambla 32. Vicky aproximou-se. A

Rambla 32 ficava perto da favela, onde costumava haver rixas por causa

de drogas, facadas, tiros. Ficou boquiaberta quando viu o homem que

estava na maca. Era tão inconcebível que, num primeiro olhar, julgou ver

o impossível: Juan, o pai de Gaspar, com a cicatriz da cirurgia no peito,

a palidez, as olheiras. Pestanejou, afastou-se e percebeu o que estava a

acontecer quando foi sacudida pelo seu próprio corpo: o homem da

maca era Luis Peterson. Estava nu e ferido no peito, mesmo em cima do

esterno, tinha uma ferida vertical e brutalmente cosida. Não conseguia

perceber, à luz da entrada, se era superficial ou não. Trinta e nove e meio

de temperatura, nove seis de tensão, informou o médico da ambulância,

e Vicky deu uma bofetada em si própria mentalmente. Tocou na ferida.


Não parecia superficial. Parecia, à primeira vista, que tinha o esterno

partido como numa cirurgia torácica. Luis estava inconsciente. Tinha

feridas pequenas em todo o corpo, já um pouco secas. Cortes finos, mas

contínuos. À exceção da cara, todo o corpo fora retalhado.

Tentou forçar a sua facilidade para fazer diagnósticos, fez um esforço

para ter uma intuição rápida e o instinto disse-lhe que o que era mais

urgente era tirar-lhe uma radiografia. Saber, já, que ferida era aquela.

Análise ao sangue, oxigénio, soro, controlo de sinais vitais. A

taquicardia era óbvia e outro mau sinal, como a inconsciência. Estava

em choque. E a ferida não era recente: tinha o vermelho doentio da

infeção.

A radiografia deixou toda a gente de queixo caído. Um dos alunos

teve de sair da sala de raios X e Vicky ouviu-o vomitar ao longe, como

em sonhos. Ela e o chefe de serviço olhavam para a radiografia, e

olhavam um para o outro, e voltavam à radiografia. O esterno estava

partido e não pela serra de um cirurgião. Os cortes pareciam ter sido

feitos por uma grande tesoura, eram lascados, irregulares. Talvez o

objeto cortante fosse mesmo desse tipo. Uma tesoura de poda, por

exemplo. E o osso estava aberto, não o tinham tentado fechar de maneira

nenhuma: tinham-se limitado a coser a pele. No espaço que ficava entre

os ossos do esterno partido, pressionando os pulmões, havia um braço.

Um braço muito pequeno, não de adulto. Um braço de criança. Que não

seja o braço de um dos filhos dele, pensou Vicky, por favor, por favor. O

braço via-se distintamente. Fora cortado abaixo do cotovelo. Tinha os

cinco dedos e os respetivos ossos.

Deus queira que seja de um manequim, disse o médico das

urgências, saindo de lá disparado. Não é um manequim, pensou Vicky, e

ele sabe, mas não quer reconhecer, não consegue dizê-lo em voz alta. O

diretor pediu que preparassem o bloco, pediu análises, pediu


antibióticos. Está em choque séptico, pensou Vicky. Enquanto esperava

pelo resultado da cirurgia nas urgências e atendia, entretanto, um

homem que tinha cortado um dedo com uma faca de churrasco ao tentar

descolar carne congelada do frigorífico, conseguiu pensar racionalmente

e percebeu, com toda a clareza, que Luis ia morrer. Era um braço

humano. Tinha ossos. Estava no espaço entre o coração e os pulmões.

Era possível que tivesse comprometido todos os órgãos com uma

infeção. O braço estaria, sem dúvida, em decomposição. Era essa a

razão da septicemia.

E esse era apenas o início do problema. Vicky pediu desculpa ao

chefe de serviço e contou-lhe a verdade: conhecia o homem que tinha ali

entrado em estado de choque. Era pai de um amigo seu. Precisava de

sair. O diretor disse-lhe claro que sim e Vicky sentou-se no corredor do

bloco operatório: deixaram-lhe um braço como o que faltava à Adela,

pensou. Enfiaram-lho no peito. Como um invunche. De onde lhe viria

aquela recordação. As ilhas Chiloé, a Bruxaria. Adela na floresta. O rio,

Betty furiosa e bêbeda, aquele verão no Sul. Está idêntico ao irmão e

não é por acaso. Isto é um ataque. Um ataque e uma mensagem. Em

primeiro lugar, para Gaspar, mas também para todos nós. Vicky sentiu

que lhe estavam a soprar na nuca, que lhe falavam ao ouvido e que a voz

dizia sempre a mesma coisa. A seguir és tu. Ou Pablo. Gaspar tem de

mover as peças dele.

O cirurgião saiu do bloco e Vicky aproximou-se dele. Disse-lhe a

verdade, tal como a dissera ao chefe de serviço. O cirurgião olhou para

ela com a frustração do médico que fracassou ou que se deparou com

alguma coisa impossível. A seguir, com pena, e depois com um pouco de

desconfiança. Ele também tinha consciência de como a situação era

macabra. Isto é magia negra, é macumba, é demoníaco, pensou Vicky.


— É um braço humano, doutora, e a septicemia está muito avançada.

Se conhece a família, é melhor telefonar-lhes. As feridas do corpo são

superficiais. Vamos denunciar o caso à polícia: este homem foi

torturado.

Vicky saiu a correr. Não conseguia localizar Gaspar há dois dias.

Tinha discutido com Marita a ponto de a expulsar de casa. Ela contara-

lhe isso a chorar, mas mais nada. Às vezes, Marita também era

complicada, embora tivesse fama de ser uma rapariga de trato fácil. Não

queria telefonar a Julieta: o que lhe diria e como? A única coisa que

conseguiu fazer foi telefonar a Pablo, mas, quando ele atendeu, o

telefone tremia-lhe tanto que teve de o agarrar com as duas mãos, e

disse-lhe:

— Traz o Gaspar para o hospital. Deita a porta abaixo, porque ele

não me atende. O Luis está cá, a morrer.

Depois desligou e, devagar, dirigiu-se para a sala de descanso porque

precisava de se deitar, de apoiar a cabeça por causa das tonturas e de

chorar em paz, entre as mulheres, sem lhes explicar o que nem sequer

podia pensar, dizendo apenas nem imaginam, que merda, que azar, que

pesadelo.

O ódio saía-lhe pelos olhos com as lágrimas e Gaspar ouviu-a gritar a

culpa é tua, mesmo que não tenhas sido tu a fazê-lo, mas foste. Ela não

pensava que tivesse sido ele a abrir o peito do tio como um caçador

louco para enfiar lá dentro o braço de um menino, de uma menina, na

verdade, porque tinha as unhinhas pintadas, pelo menos foi o que disse

uma das enfermeiras, que cuscas, as enfermeiras, as unhinhas pintadas

de cor de coral, e específicas, além de cuscas, as enfermeiras. Ela não

queria dizer que tinha sido ele a cometer o crime, em poucas palavras

dizia que a culpa era dele, e nisso tinha razão, não podia dizer que não e,
por isso, deixou que lhe batesse, deixou que lhe arranhasse a cara e

gostou do sabor salgado do seu próprio sangue na boca. Só conseguia

pensar que não era o braço de nenhum dos gémeos e isso parecia-lhe um

triunfo, um insolente laivo de falsa piedade. Não quero vê-lo, Vicky, não

consigo vê-lo. Não vou entrar e ponto final. E não iria vê-lo, seria o

encontro com um fantasma, seria como ver o pai, não eram assim tão

parecidos, nunca tinham sido, mas o ar de família, e assim, no hospital,

entubado, com o cheiro da morte, o peito partido, era como o pai e ele

não queria ficar com essa imagem e não ficaria. Tens de entrar, dizia

Vicky, porque tem o corpo todo cortado e eu vi-o, são inscrições, são

letras. Decifra-as. Copia-as, aponta o significado. Tira-lhe fotografias.

Julieta gritava depois de o médico lhe anunciar o inevitável, e dali a

pouco tempo viria a polícia fazer as primeiras perguntas, e em poucas

horas começariam a unir as pontas soltas, um dois três nós. O bracinho

da menina. Vicky e Pablo e ele, sobretudo, claro, os que tinham entrado

na casa com Adela. Adela sem braço. Um braço de menina. Adela, a

minha prima, Adela do meu sangue, quem teria envenenado esse sangue.

O pai morto, o tio morto, ambos com a marca no meio do peito. E ele

que tinha passado dias fechado em casa enquanto isto acontecia. Isto

acontecia. Julieta dizia a um polícia saiu de casa há três dias. Pensava

que tinha ficado em La Plata por causa do trabalho ou com o filho mais

velho. Sim, o filho mais velho é ele. Adotivo. É o sobrinho. Às vezes

ficava a dormir em casa dele, mas avisava-me sempre, avisava-me

sempre, temos filhos, muito pequeninos, ele avisava-me sempre. Foi por

isso que telefonei ao Gaspar, mas não consegui falar com ele, o Gaspar é

o filho, o sobrinho, aquele ali. Não consegui falar com ele, dava sinal de

ocupado e pensei que o problema era esse, que o telefone não

funcionava, e que me avisariam no dia seguinte. Fui trabalhar e tive um

dia complicado, quando acabei telefonei para casa e nada, fui até à obra
e nada, mas lá disseram-me que tinham tirado uns dias de folga por estar

a chover e não se pode trabalhar com chuva, então pensei que tinha ido

para algum lado passar os dias livres, pensei que estava com outra, nem

sei o que digo, desculpe, sei lá no que é que eu pensei, até fiquei

zangada. Porque é que não fui à casa do filho? Porque fiz um filme com

outra mulher, não sei, por negação? Porque não percebia porque é que

ele não voltava? Foi isto que aconteceu, pensou Gaspar. Alguém levara o

tio quando se dirigia para La Plata, porque o carro já tinha aparecido,

intacto, em Gonnet. Perto da cidade. Um lugar lindo, Gonnet, mais

bonito do que Villa Elisa, com casas modernas, embora fossem horríveis

as discotecas de estrada, horríveis, algumas eram mesmo perigosas.

Gaspar já lá tinha ido e as raparigas que dançavam em cima das colunas

estavam sempre drogadas, e eram belas e ferozes. As unhas pintadas, de

que cor? Salmão? Coral? Agora havia muitas cores com nomes

aquáticos além do velho azul-marinho, que não era marinho por causa

do mar, mas da Marinha, era Navy, perceber isso levara-lhe uma

quantidade de tempo ridícula. Como a quantidade de tempo ridícula que

perdera em casa a fazer mapas e planos, e a reservar passagens de avião,

enquanto tudo isto acontecia. Então, tinha sido em Gonnet. Uma casa

em Gonnet, uma daquelas casas lindas. Uma casa para onde tinham

arrastado o tio depois de o tirarem do carro. De certeza que ele pensou

que afinal ia ser mesmo sequestrado, e tinha razão, porque foi

sequestrado. Tê-lo-iam feito desmaiar antes de lhe cortarem o esterno?

De certeza que sim, porque, se não, teria resistido e era forte, tinha

muita força, a quantidade de vezes que o içou, que o empurrou contra a

parede para o acalmar, como usava o serrote mais depressa do que os

outros e sem transpirar tanto. Então, puseram-no a dormir, e depois

usaram a tesoura de poda e talvez um serrote, a autópsia determinaria

isso, porque teria de haver uma autópsia, era um assassíno. Então tinha
sido em Gonnet. Quantos? Dois ou três? Quem? Dir-lho-iam mais tarde.

Em Misiones. Porque já não estavam na cidade. Tinham-lhe atirado um

morto para cima como se atiram mortos na Argentina. Na Argentina

atiram mortos para cima das pessoas. Só agora percebia o sentido dessas

palavras. O braço era de uma menina qualquer, uma menina

provavelmente já morta, deviam procurar nas campas violadas ou

mesmo nos hospitais. Talvez surgisse uma denúncia de uma menina

desaparecida. Eles trabalhavam de noite, trabalham na escuridão. Porquê

tanto interesse nele? Queriam-no e faziam-lhe mal. Queriam-no mal. Se

estivesse mal, seria mais fácil de manipular. Era por isso que se recusava

a ver o corpo. Em breve seria interrogado pela polícia. Não tinha álibi.

Expulsara Marita. Pedira que lhe entregassem comida? Não se lembrava.

Tinha ido às compras, sim. Comida e um mapa. De certeza que o tipo do

Automóvel Clube se lembrava dele porque lhe tinha pedido um maior,

maior, como se fosse meio cego. Não tinha álibi, mas não importava. Era

verdade o que Julieta dizia. A culpa era dele. Era uma mensagem para

ele, tinham-lhe atirado com um morto para cima. Não queria vê-lo. Uma

vez, Luis meteu umas bananas no congelador e depois regou-as com

chocolate quente. Era a ideia dele de uma sobremesa barata e deliciosa.

Passava-lhe sempre o comando da televisão. Nunca se zangava no campo

de futebol. Dizia que, um dia, gostava de ir viver para a montanha, mas

também gostava muito de praia, aquilo de que mais tinha saudades do

Rio era poder fazer caminhadas à beira-mar, o vento, o cheiro a sal no

cabelo. Assistiu ao parto dos dois filhos e embebedou-se depois, e

detestava que lhe dessem os parabéns, eu não fiz nada, é só uma alegria.

Uma alegria, ele era uma alegria e esperava-o um futuro tranquilo e

doce. A casa de Gonnet, então foi lá que lhe enfiaram o braço e o

deixaram inconsciente ou talvez não, se calhar acordaram-no e

deixaram-no gritar até morrer, havia algo de alimento em tudo aquilo,


ele sentiu-o, o sofrimento que se comia. E depois, com a febre e a

infeção do bracinho, abandonaram-no de qualquer maneira na Rambla

32, onde começava ou acabava a cidade, dependendo do ponto de vista.

Havia baladas para acalmar o sofrimento, canções de embalar, mas ele

não podia entrar para lhe cantar uma porque a culpa era sua, porque

consentira que o matassem e mutilassem. Julieta sabia, também chorava

por causa disso com tanta raiva porque sabia. Vicky saiu dos cuidados

intensivos e levou-o para um canto. Segurou-lhe na cara para que olhasse

para ela. Os olhos escuros de Vicky. Era tão bonita. Mais do que Marita.

Mais do que todas. A única coisa que ele tem escrita no corpo é ele que

venha. É isso que dizem os cortes. Como ele que venha? É isso, Gaspar:

«ele que venha». Está bem, disse ele. Vou para lá esta noite. Tens de

falar com a polícia. Depois de falar com eles, vou-me embora. Não me

vão prender esta noite. Ouve-me bem, Vicky, e explica ao Pablo. O

Pablo está lá em baixo. Não tenho tempo para falar com ele.

Ultrapassaram o limite. Não posso continuar a viver entre vocês. Se

continuar entre vocês, serão os próximos. Não pode haver próximos.

Eles querem-me, sou o sangue deles. Esta é a chave da minha casa.

Vicky ouvia, agora. Em minha casa, em cima da cama, deixei uma coisa,

quero que a leias. É um texto que foi publicado pela Olga Gallardo com

o título «O poço de Zañartú». Agora não te posso explicar nada. Quero

que lá vás e que o leias. E o Pablo também. Vai lá estar porque eles não

conseguem lá entrar e a Marita não vai voltar. Sabes que o Luis dizia

que às vezes tinha medo do meu pai? Uma vez contou-me uma coisa

muito estranha. Que, estava ele a tomar conta do meu pai, que ainda era

pequeno, talvez tivesse uns seis anos, tinha acabado de ser operado e era

o meu tio que tomava conta dele. Não sei onde estariam os meus avós,

talvez a trabalhar. Mas isso não importa, pois não? Não importa. Estava

a tomar conta dele e dizia que o meu pai tinha os lábios cheios de
sangue, como se tivesse comido carne crua. Ele costumava pôr-lhe água

nos lábios porque secavam imenso, uma enfermeira trouxera batom para

o cieiro e, quando o usava, deixavam de sangrar. Mas daquela vez os

lábios sangravam e o meu pai gritava de dor, os analgésicos deviam ser

péssimos naquela época, como se pode deixar uma criança gritar de dor.

Se calhar não os podia tomar, é possível que lhe baixassem demasiado a

pressão, disse Vicky. Que pressão. A pressão sanguínea, Gaspar. Se o

analgésico lhe baixasse a pressão, morria. Ah, pode ser. Enfim, dizia que

aquelas noites no hospital foram horríveis, ele também era uma criança.

Bom, o meu pai gritou, de repente gritou: ninguém ouve cantar os ossos.

Essa frase, como uma recriminação. Luis teve muito medo. Os meus

avós tinham medo do meu pai. O meu pai via fantasmas. O Luis, não,

porque o Luis não foi marcado. Não o quero ver. Vai gritar a mesma

coisa. Agora também o marcaram a ele, mas não o podem fazer durar.

Na verdade, eu devia ter ficado na casa com a Adela. Assim, acabava

tudo. Tudo isto, este tempo, não importa, Vicky. Não é tempo. A Marita

já sabe que devia ter sido noutra vida, não lhe digas que não é vida e que

não é tempo.

Quantas vezes tinha pensado «quero ser como ele»? A maneira como

lhe dizia, enquanto conduzia, tens de respeitar sempre as mulheres,

mesmo que não gostes delas. Como, depois de se zangar com alguma

coisa e erguer a voz e gritar, se rendia sempre perante uma anedota e se

ria sacudindo a cabeça. Os rapazes esquecer-se-iam dele, ficariam a

perder: as autorizações para fazerem os trabalhos de casa no pátio, as

corridas na estrada de terra, o peixe assado na brasa na praia, o teu texto

é tão bom, essa professora é um bocado parva, não tem de saber tudo

sobre tudo, mas é uma pena que não tenha percebido isso, porque a

redação está ótima, e é comprida!, e as palavras que tu usas!, iam perder


que ele os aceitasse sempre, mesmo que fizessem asneiras, mesmo que

tivessem ridículos problemas mentais psiquiátricos emocionais, saber

que alguém nunca nos abandona, nunca retrocede, poder bater com a

cabeça na parede até dar cabo dela e da parede e ele atrás, de braços

cruzados a dizer bom, vamos lá ver se reparamos primeiro os ossos, a

tua raiva ou os tijolos. O que te parecer melhor.

Gaspar pagou uma quantia infame ao taxista que o levou até ao

aeroporto de Ezeiza e esperou pelo seu voo em silêncio, com a mochila

entre as pernas. Não levava muitas coisas com ele e, se precisasse de

algo, poderia adquiri-lo no lugar para onde ia. Era a primeira vez que

andava de avião sozinho. Não queria pensar nas vezes anteriores, tinham

sido todas com Luis e não foram assim tantas. O voo era curto, mas

talvez servissem comida, embora não lhe tenha tocado porque não

conseguia comer, não sabia se voltaria a comer. Recordou a cara de

Pablo quando o viu sair do hospital: quase lhe pediu que o

acompanhasse. Pablo tê-lo-ia feito. Vicky tinha de ficar com o tio.

Estava convencido de que seria seguido. Por ambos. Sabiam para onde

ia.

Em Posadas, passou uma hora a procurar um lugar onde alugassem

automóveis. O calor provocar-lhe-ia dores de cabeça, apesar dos óculos

escuros e de ter humedecido o cabelo várias vezes. Começou a engolir

comprimidos: de estômago vazio o efeito seria melhor. Encontrou um

Clio relativamente barato, alugou-o por uma semana e, depois de

verificar durante um quilómetro que o conseguia guiar facilmente, abriu

o mapa do Automóvel Clube. Puerto Libertad, a aldeia vizinha da casa,

ficava perto de Puerto Iguazú, a metros do Paraná: do outro lado do rio

ficava o Paraguai. Trezentos quilómetros. Como faria para não pensar

durante trezentos quilómetros. Virou o mapa e acendeu um cigarro

tentando não o queimar nem se queimar. O carro tinha ar-condicionado,


mas tresandava a gasolina sempre que o ligava e, por isso, desligou-o.

Não percebia muito de automóveis. Teoricamente, não devia conduzir,

por causa da epilepsia, mas Luis tinha-lhe ensinado porque estava

convencido de que uma pessoa que não soubesse conduzir não era

completamente livre. Luis também não percebia muito de carros. Todos

os carros que comprou eram uma porcaria. Lembrava-se dele a dizer que

azar perante todos os carros avariados, de mãos na cintura e diante de

um capô levantado a deitar fumo. O carro não é uma porcaria, gritou-lhe

o Negro uma vez, tu é que te esqueceste de encher o depósito da água,

que anormal é que se esquece de pôr água no carro, diz-me tu. Ia para

Punta Lara. Iam fazer um piquenique ou pescar? Foi antes dos meninos,

da gravidez. Porque é que nunca dizia o nome deles? Salvador e Juan.

Gaspar pensava que Juan era por causa do pai, mas Luis, um pouco

envergonhado, confessou que era por causa do Perón. Não tinha

conseguido negociar o nome completo de Juan Domingo. Ligou a rádio.

Apanhava canais brasileiros muito bem, mas não queira ouvir essa

língua, era óbvio, quem contaria à Mónica e às raparigas? Há muito

tempo que não iam lá, mas os postais de Ano Novo continuavam a

chegar e os telefonemas nos aniversários e às vezes presentes. Luis foi

visitá-las duas vezes com Julieta. Tinha regressado com chocolates

Garoto e discos e alguns livros, dizia que no Brasil as encadernações

eram muito melhores do que na Argentina. Prometera-lhe que o levaria a

ver o Rio, uma promessa adiada por causa dos meninos. Gaspar não

gostava muito de praia, mas o Rio não era só Copacabana, era as ruas

escuras e as escadarias e os entardeceres em bares dos bairros interiores.

Também perderiam isso, ele, os meninos, toda a gente.

— Não o vão deixar entrar.

O café da estação de serviço tinha nome, Los Lapachos.


— Até têm uma polícia deles, imagine! Muitas pessoas vêm cá por

causa das fotografias. Muitas! Estão obcecados com as fotografias. Eu

indico-lhe o caminho, não vai conseguir entrar, mas se deixarem, diga-

me, que tenho pessoas interessadas.

— Vou tentar, veremos — disse Gaspar, sorvendo a Coca-Cola

gelada com dois comprimidos para a dor de cabeça. Não era tão intensa

como imaginara, com o sol a bater de frente durante todo o caminho

estava à espera das flores negras no céu azul em crescendo, invadindo

tudo. Pelo contrário, era uma dor leve, desconfortável. Podia reduzi-la

com uma refeição.

— O senhor vê-os de vez em quando?

— Não, e também não se abastecem aqui, têm empregados que

compram mais lá para cima. O meu pai conta que há muitos anos davam

festas e aí víamos carros, mas não ficavam cá. Dantes, o patrão também

cá vinha. Bebia uns copos, comprava artigos para a pesca. Mas já cá não

vem há muito tempo. O patrão gosta de beber.

O patrão, pensou Gaspar. O meu avô.

Tinha de ir até ao fim da avenida principal e, depois, seguir por um

caminho sem asfalto. Decidiu caminhar um pouco antes disso. Passeios

vermelhos, lancis pintados de um vermelho ainda mais profundo, lojas

que vendiam gelo, raparigas com guarda-chuvas usados a modo de

sombrinhas, o céu em perpétua ameaça de tempestade, as casas brancas.

Teria a mãe caminhado por aquela aldeia? Teria comprado alguma coisa

nos supermercados? Será que alguém a reconheceria, se perguntasse por

ela? Uma vez, Marita disse-lhe, depois do sexo — ela dizia coisas

fortíssimas depois do sexo —, que, se quisesse viver, teria de renunciar

aos seus mortos, deixá-los ir. Muitas motas, terra vermelha. Já tinha as

solas dos ténis completamente avermelhadas. A feira municipal de

produtores e artesãos estava fechada, como quase todas as lojas. A sesta


sagrada. Não havia muito para ver. Voltou para o carro e abriu uma

garrafa de água fresca antes de percorrer a avenida e entrar no caminho.

De ambos os lados, a selva densa com muitas tonalidades profundas de

verde. Nenhum animal. Tinha de ir à casa porque o tinham chamado.

Não cessava de repeti-lo a si próprio desde o início da viagem e

continuava a fazê-lo para combater o sono, a fome, o vazio.

Andavam à minha procura, cá estou. Não sei deixar ir os mortos.

Esperava o abandono, loucos confinados na selva, gobelins bolorentos,

plantas invasoras, ter de atravessar um matagal até chegar à casa.

Quando parou o carro, depois de passar um posto de segurança vazio —

mas não abandonado: havia um mate em cima da mesinha da receção e

o rádio estava ligado —, viu a casa ao longe. Saiu do carro e entrou: as

portas de ferro, portões, na verdade, estavam abertas.

Uma vasta extensão de relva recém-cortada antepunha-se à casa de

paredes cor de mostarda pelas quais trepavam plantas, não como sinal de

abandono, mas de adorno deliberado. Os telhados vermelhos como a

terra de Misiones, palmeiras e árvores rodeando a sua forma hexagonal

que mais atrás e mais à frente se decompunha em dependências; era

possível ver, por um caminho lateral, pelo menos mais duas casas, uma

pequena e, a outra, mais afastada, também enorme. A relva não era

interrompida: se houvesse fontes, estariam nas traseiras. E ouvia-se o

rio. Lá estavam os passadiços, pensou Gaspar, perto do rio, e olhou para

o céu porque a paisagem, de repente, escureceu. Uma nuvem

ameaçadora, baixa e barriguda, de tempestade carregada de granizo,

pendia sobre a tarde. Quando olhou para ela, a dor de cabeça disparou

juntamente com as flores negras que se abriam com uma intensidade

carnívora. Teve a certeza horrível — um déjà-vu, outro, mas muito

poderoso — de que os seus pais iam sair da casa. A casa-fantasma das


palmeiras e dos pais-fantasma; esperou mesmo ver sair o tio, de cor

cinzenta, de cabelo cinzento, o braço podre na mão, o braço podre com

que o atacaria e lhe bateria na cabeça e no corpo. Apoiou-se no carro e

viu alguém a sair da casa, um homem. Aproximou-se dele e endireitou-o

segurando-lhe nos ombros para que olhasse para a sua cara. A madeixa

branca elegante, os olhos azuis encovados e escuros, uma testa que

Pablo teria descrito como «teutónica» na sua taxonomia de homens.

Teutões, mulheraças, machões, bestas, taxistas, nada abichanados.

Pensar em Pablo quase o fez sorrir. Conhecia aquele homem. Esteban.

Não esperava encontrá-lo ali.

Na escadaria da casa reunira-se um grupo de pessoas que Gaspar

conseguia ver bem à luz rosada do entardecer, com uma aura de ouro, de

brilho diminuído. Duas mulheres velhas, uma delas elegante com um

vestido vaporoso, indiano. A outra com uma máscara que lhe ocultava a

boca e a mandíbula, o cabelo branco muito curto, calças e uma camisa

que lhe ocultava o pescoço. Atrás delas, mais cinco ou seis pessoas que,

do lugar onde estava, não conseguia distinguir com tanta facilidade.

Gaspar, com um esforço, empurrou Esteban. Lamentou não ter

pensado em levar armas consigo, mas para quê, se não sabia usá-las?

Nunca disparara. Nunca usara uma navalha. Só sabia lutar: sentia-se

fraco, mas ainda era capaz de lidar com Esteban. E, por isso, quando

Esteban tentava equilibrar-se, Gaspar aproximou-se dele rapidamente,

bloqueou-lhe os braços atrás das costas e atirou-o para a relva. Esteban

também sabia lutar e conseguiu levantar-se e tirar os braços de Gaspar

do pescoço com um movimento curto e quase profissional. Respirando-

se, medindo-se um ao outro, permaneceram a um metro de distância.

Da porta, a mulher elegante desceu a escadaria e abriu os braços em

sinal de boas-vindas. Tinha o cabelo branco com madeixas alaranjadas.

Sardas em toda a cara. Em nova, fora ruiva. Atrás, vinha a mulher da


máscara. Era coxa. É a minha avó, pensou Gaspar. Tirou a máscara antes

de falar com ele. Para alguém com uma mutilação tão horrível, o que

dizia percebia-se com bastante clareza.

— Fui eu que ordenei a morte do teu tio. Quieto, és tão selvagem

como o teu pai.

Gaspar reconheceu a voz da avó, apesar da dicção salivante. Também

não hesitou e atirou-se para cima dela, não queria saber que fosse uma

velha ou que fosse mulher ou que fosse da família dele. Acabara de

confessar sem sequer lho ter perguntado. Conseguiu atirá-la ao chão,

conseguiu sentar-se em cima das suas ancas de pássaro, não podia ser

assim tão difícil matá-la. Antes de muitas mãos, não sabia quantas, o

arrastarem para longe dela, conseguiu bater-lhe na cara, sentir o nariz

ceder sob os nós dos dedos, ouvir os insultos. Depois, um único golpe

de especialista, de guarda-costas, de homem que sabia, realmente, como

e onde bater, fê-lo desmaiar, e a última coisa que viu foi o sol atrás das

árvores e uma intuição do rio.

Subir até ao miradouro era uma saída. Podia estar em boas condições, e

se as escadas cedessem também seria bom. Embora cair por entre os

degraus destruídos não fosse uma morte segura, podia ser resgatado e

não queria ser resgatado. Era seguido a toda a hora, mas podia fazê-lo se

fosse rápido, não conseguiriam vigiá-lo permanentemente. Também

podia deixar de comer. Essa era outra maneira de morrer que não

podiam controlar. Fugir era impossível. Tentara o óbvio, o rio, a noite, a

selva, mas foi sempre apanhado. As tareias eram não tanto brutais, mas

sim eficientes. Eles sabiam torturar, infligir dor, magoar sem risco. Não

chegaria longe. Não conseguiria fugir. O que pretendiam dele era

demencial, mas o que era demencial, naquela casa e com aquelas

pessoas, era possível, e ele não lhes podia dar isso.


As mulheres, sobretudo, acreditavam que sim. Tinha de deixar de

lhes chamar mulheres. Florence e Mercedes. A avó Mercedes. A que não

tinha lábios. Os dentes chocavam uns nos outros constantemente, como

se estivesse a tiritar. Nem sempre usava a máscara, e diante dele, nunca.

Queria que a visse.

Foi o teu pai que fez aquilo, dizia Florence, apontando para a

mutilação de Mercedes, para a sua cara horrível. Também foi o teu pai

que matou o meu filho e nunca me disse onde escondeu o corpo dele.

Estava convencido de que tinha conseguido planear a tua salvação e a

sua vingança. Também nos tirou a menina, que era do sangue. Sempre

nos desprezou, ah, era possível ver isso nos olhos dele, those yellow

eyes, a reptile. Confio que possa ver, de algum lugar, que conseguimos.

Temos o médium que ele nos quis tirar, apesar do signo tão eficiente

com que te marcou. Sempre foi mais talentoso do que inteligente. Sinto

compaixão por ele. Um médium tem demasiada responsabilidade. São

todos perigosos, todos enlouquecem.

— Não sei do que é que estão a falar — repetia Gaspar.

A avó aproximava-se dele e as palavras saíam-lhe por entre os

dentes:

— Ele não queria que soubesses nada e ocultou-te a tua herança.

Melhor assim, melhor assim, acho que os médiuns devem ser apenas

instrumentos. Mas vou contar-te uma coisa, para que saibas, não suporto

esses teus olhos de cachorro.

Gaspar observou-lhe o crânio. Estava quase careca. As madeixas

curtíssimas de cabelo branco espreitavam, eriçadas, num deserto calvo.

E a ausência de lábios. Não tinha um aspeto completamente humano, e

talvez fosse por isso que era não tanto horrível mas interessante, como

um animal fantástico.
— Ele nunca te contou, claro, mas aquilo de que a Ordem anda à

procura, e que tu nos podes dar, e vais dar-nos porque te vamos obrigar,

é a imortalidade. Bem te vejo, Florence, a dizer que não com a cabeça,

tudo tem de ser preciso para esta mulher. Na verdade, chamamos-lhe

reter a consciência neste plano. Manter viva a consciência. Isso

consegue-se, como ditou a Escuridão, transferindo-a de um corpo para

outro.

Esteban entrou no quarto e Gaspar conteve o riso.

— O que é a Escuridão?

— É o que levou a Adela — respondeu-lhe Esteban, e Gaspar parou

de rir, tapou os olhos com as mãos e murmurou são doidos.

— É isso mesmo, dito pelo amigo do teu pai, que também te mentiu

durante toda a vida. Sabemos que podes abrir a Escuridão tal como o

Juan, e vais fazê-lo para nós. A Escuridão vai dizer-nos como fazer essa

transferência para nos mantermos vivos para sempre. O teu pai tentou

fazer isso contigo, não te lembras? Este rapaz é meio atrasado, não

achas, Flo? Que pena, o meu único neto é um idiota e, ainda por cima,

fez desaparecer a Adelita, que, essa sim, prometia, a miúda tinha caráter.

Enfim.

Mercedes sentou-se no sofá de pele que estava ao pé da janela e

refrescou o quarto com o comando do ar-condicionado.

— Que tarde tão estúpida foi essa, para nós, pelo menos. O teu pai

enganou-nos. Apagaram-te a memória para que não te lembrasses de

nada? Ou essa marca que tens no braço também serve para te deixar sem

recordações? É uma marca muito boa, estou admirada. Sabes que foi por

isso que te cortou, imagino. Para te afastar de nós. Bom: a transferência

do teu pai para o teu corpo fizemo-la na casa de campo de Chascomús,

tenho-lhe muito apego porque é da minha família, não como este

mamarracho no meio da selva de que o meu pai gostava, e também o


meu marido quando ainda lhe restava algo do cérebro, e toda a gente.

Não há nada como o vazio das pampas. Divago, estou velha, preciso de

um corpo novo já, estou no meu direito e vais dar-mo. Levámo-los aos

dois para lá. Há uma coisa que tens de saber do Ritual. Já fomos capazes

de transferir a consciência muitas vezes, o que não conseguimos é que

permaneça. Foi por isso que acreditámos no teu pai.

Gaspar ouviu-a com atenção. Referia-se ao acidente em Chascomús,

a quando acordou ferido numa cama desconhecida e com a horrível

certeza de que fora o pai a fazer-lhe mal. Lembrava-se da entorse no

tornozelo, da pancada na cabeça que, teoricamente, causara a sua

epilepsia, do verão indolente à beira da piscina com Tali e Esteban.

— O Ritual requer preparativos que agora não vêm a propósito e

que, de resto, o teu pai não precisava de levar a cabo porque era um

médium extraordinário. Levámos-vos para cima dos altares. E ele

conseguiu transferir a sua consciência para o teu corpo. Ah, foi

maravilhoso! Lembras-te, Flo? E todos nós à vossa volta, foi sagrado. O

teu corpo abriu os olhos e tinhas o olhar do Juan. Mas depois veio a

resistência. O corpo recipiente resiste sempre. No entanto, nunca vi uma

resistência assim. Não sei se vocês viram.

Florence disse que assistira a todos os Rituais e que, com efeito, não

se lembrava de uma resistência tão violenta. Descreveram-na. Quando

abriu os olhos e todos viram o olhar de Juan, tentou fugir. Não se pode

amarrar o Recipiente durante o Ritual. Pensamos que é uma estupidez,

mas seguimos as regras da Escuridão tal como ela as dita porque,

sempre que não o fizemos, foi um desastre, não foi, Esteban? Tu

presenciaste uns quantos. São como abortos. A Florence diz sempre

isso.

— Like losing a child.


— E ambas perdemos filhos, a sensação é exatamente a mesma.

Embora tivesse sido melhor perder a tua mãe do que encontrá-la. Pois é!

Resististe tanto para te livrares do teu pai, que tivemos de impedir-te

entre todos. Mordeste o coitado do Esteban no pescoço. O filho da

Florence, o mais novo, também mordia. A dada altura, quando

estávamos a tentar que parasses, que deixasses de te magoar a ti próprio,

porque esse é um dos infelizes efeitos colaterais do Ritual, os

Recipientes desesperam e magoam-se para se livrarem do Hóspede,

atirámos-te ao chão e bateste com a cabeça.

— Oh, that was dreadful.

— Pensámos que tínhamos dado cabo do teu corpo. Mas não. Dizem

que és epilético? Que estupidez.

Gaspar fechou os olhos tentando processar a informação. O acidente

não tinha sido tal coisa. As suas feridas era uma consequência daquela

demência, daquela transmigração forçada que lhe parecia absolutamente

incrível e estúpida, mas na qual eles acreditavam, sem dúvida alguma.

Talvez não tanto Esteban, que permanecia em silêncio.

— Vocês querem que eu vos dê o meu corpo? Fiquem com ele, não

me importo.

— Não — interveio Florence. — Precisamos de um médium and

you are one. Vais dizer-nos como continuar. We can’t complete the Rite

e somos velhas. Não podemos morrer e não devíamos morrer. The

messages stopped por culpa do teu pai, que decidiu interromper o

contacto de maneira unilateral. Vamos continuá-lo contigo.

— Não sei como fazer isso.

— Vais aprender. És novo.

Gaspar tentou levantar-se, mas uma tontura impediu-o. Não andava a

comer praticamente nada, não tomava a medicação, tremiam-lhe os

joelhos por causa da fraqueza. Mas não, percebeu, não se tratava apenas
disso. A tontura fê-lo perder o equilíbrio e caiu da cadeira. Ouviu a avó

dizer: «está a ficar com convulsões, parece, se calhar é só epilético»,

mas ninguém lhe tocou. Tentou dizer-lhe que nunca tivera convulsões, e

então sentiu-se esmagado pela recordação, a recuperação com

pormenores do Ritual a que se referiam. Sentar-se e abrir os olhos e ver

todas as pessoas à volta dele, quase todas nuas, alguns com lençóis ou

túnicas, estava escuro, e tiraram alguma coisa de dentro dele, um

parasita, então, levantou-se e correu, porque tinha visto a porta, e

agarraram-no pelas pernas e pelos braços, porque é que me querem

prender quem são o que é que querem, vou fugir já, ajuda-me! Agora

não posso ajudar-te, mas luta, dizia a voz do pai, cansada e grossa, essa

voz de que tinha tantas saudades. Desatou a chorar no chão e a

recordação continuava lá, implacável. São muitos, onde estamos? Luta.

Há uma velha horrível, o que são. Levanta-te. Foge. Os outros queriam

mantê-lo no lugar, não conseguiam e, no meio da luta, na tentativa de o

devolverem ao sítio onde estava antes e de o deitarem, espetavam-lhe as

unhas, apertavam-lhe as costelas e, quando gritava, o corpo partilhado

tinha a voz de ambos, a sua e a do pai. Conseguiram devolvê-lo à tábua,

ao altar, como lhe chamou a avó, e, ao fazê-lo, bateram-lhe

violentamente na cabeça, um barulho surdo e, pouco depois, o silêncio.

Gaspar pensou que, assim, a recordação se iria embora, que o seu corpo,

agora, na sala gelada de Misiones, deixaria de tremer, mas continuou. É

um monstro que me está a prender os pés, dá-lhe um pontapé na cara,

faz mais um esforço e dá-lhe um pontapé na cara, eu ajudo-te, e

Mercedes recebeu um pontapé certeiro no pescoço que a obrigou a

retroceder, asfixiada, mas voltou logo a seguir e torceu-lhe o tornozelo

até quase lhe romper os ligamentos, sorria, ganhava, trouxeste-me para

cá porquê. O sangue no pescoço de Stephen quando tentou fugir outra

vez, tu consegues, e o final súbito, quando o pai se retirou. O meu pai


podia ter ficado dentro de mim, retirou-se porque quis, pediu-me que

lutasse, papá, devias ter-me contado tudo, as coisas teriam sido

diferentes, talvez eu nunca tivesse vindo para cá, talvez o teu irmão

ainda estivesse vivo. Gaspar sentiu as mãos de Esteban a levantarem-no

suavemente e a oferecerem-lhe um copo de água, mas a recordação

ofereceu-lhe outra imagem: outras mãos que o embalavam, as do pai,

mas eram enormes, com unhas douradas e deformadas como garras.

Olhou para Esteban, que não insistiu no copo de água.

— Ele quis proteger-me?

— Jamais teria ocupado o teu corpo. Jamais.

Não conseguiu responder-lhe.

— Este não vai morrer, pois não? Tratem de o obrigar a comer, está

raquítico. É um fiasco atrás do outro.

Todas as tardes iam visitá-lo ao quarto que lhe tinham reservado. De lá

conseguia ver o jardim e pouco mais. Ficava no rés do chão, para evitar

que se atirasse da janela. De qualquer maneira, a janela tinha grades.

Estavam lá duas mulheres e um homem da mesma idade do que elas que

lhe falava em inglês. As mulheres saíam e deixavam-no com o homem.

Ele explicava técnicas. Death posture. Inhale the sigil. Deitava-o e, na

cama, ensinava-o a respirar. Quando resistia, lá estavam os guardas para

o persuadirem com alguma forma de dor. Às vezes, o homem franzia o

sobrolho ou a boca: talvez não concordasse com os métodos, mas as

mulheres dominavam-no e algo mais, algo que, como dizia Betty no

bilhete, vivia na selva. A minha família venera-o há séculos. A família

dela. O homem acreditava que Gaspar conseguiria estabelecer contacto

com o que vivia na selva, tal como o pai. Gaspar não queria falar com

eles e não sabia se estava autorizado a fazê-lo nem se isso implicaria

mais tareias, mais picadas, mais unhas arrancadas, mergulharem-lhe


outra vez a cabeça na água. Mas disse-lhe em inglês: I can’t give you

what you want. I am not my father.

O homem insistia como se a sua vida dependesse disso. Talvez

dependesse mesmo. Shut the lid of your unconscious. You know how to

do this, I’m sure your father taught you.

Era assim todas as tardes. Gaspar começara a gostar das visitas do

velho. Estava a ensinar-lhe uma espécie de meditação que o ajudava a

pensar menos. E quando o velho se ia embora, regressava ao seu método

habitual, o mesmo que usava para tentar dormir. A letra A. Um apelido

de um poeta com A. A primeira linha, ou aquela de que se lembrasse, de

um poema de um poeta com A. Se fosse em inglês, traduzi-la. Exemplo:

A. Ashbery. Alone with our madness and favorite flower. Que

apropriado. A sós com a nossa loucura e a nossa flor favorita. B. Blake.

O favorito do pai. Um deles, pelo menos. O outro: Keats. He whose face

gives no light shall never become a star. Aquele cujo rosto não emita luz

jamais se converterá numa estrela. C. Cendrars. É a minha estrela, tem

forma de mão. D. Uma letra difícil. Havia poucos com D ou ele não

conhecia assim tantos. D’Annunzio. Enfim. Não se lembrava de nenhum.

Darío. O óbvio. A princesa está triste… O que terá a princesa? E. Eliot.

Mais de uma linha. Fiddle with pentagrams or barbituric acids, or

dissect the recurrent image into pre-conscious terrors. To explore the

womb, or tomb, or dreams. Os túmulos e os sonhos. As cartas, os

pentagramas. O livro de Eliot do pai estava tão sublinhado, que era

quase ilegível.

Às vezes, recebia uma visita do avô, que andava de cadeira de rodas,

embora Gaspar tivesse percebido que conseguia mexer as pernas. Tinha

um copo com uma palhinha. O que bebia parecia chá frio, mas era

whisky. Tinha a pele amarela como os alcoólicos terminais. A avó ia vê-

lo muitas vezes, e tinha dificuldade em perceber o que ela dizia. Tinha a


língua branca de sarro. A rapariga foi tocada. O teu pai também no-la

tirou, através de ti. O teu pai tem de pagar. Sacrificámos os nossos filhos

por culpa dele. Salvámos-lhe a vida. Um ingrato.

Todas as noites o levavam para uma clareira que havia nas traseiras

da casa, suficientemente longe para que as árvores a ocultassem. Depois

de um jardim de que ele se lembrava, longe dos passadiços que ainda

não o tinham deixado percorrer — os guarda-corpos não eram altos —,

já em plena selva. Uma clareira, era isso, como nos livros: «na clareira

da floresta». Despiam-no num lugar específico e o homem que falava

inglês instava-o a repetir. Gaspar obedecia. Era ridículo. Via-os

expectantes e, a seguir, frustrados. Havia outra mulher ruiva, mais

pequena e muito velha. Esteban ocultava a cara dela nas sombras das

árvores. Havia um número variável de homens e mulheres mais novos

que não viviam na casa principal e que se retiravam de noite para a de

trás, a de hóspedes: eram os responsáveis pela manutenção dos jardins,

pela limpeza e pelo bom estado da casa. Não tinha vergonha de que o

vissem nu. Estava a perder muito peso: obrigavam-no a comer, mas ele

resistia e matar-se à fome estava a dar resultado. À noite sentia-se febril

e não conseguia dormir. Seja como for, sabia que podia resistir muitos

dias em greve de fome, embora a sede o vencesse mais do que o medo,

as pancadas e a ausência de esperança. Se não bebesse líquidos, por outo

lado, tinham-lhe garantido que seria posto a soro.

Os guardas revezavam-se de oito em oito horas. Não o deixavam ler

nem ver televisão nem ouvir rádio. Podia andar pela casa se quisesse. E

fazia-o todos os dias. Procurava Esteban. Nunca mais o voltara a ver, a

não ser nas cerimónias da noite, e não em todas.

O miradouro era uma boa ideia. Acompanhá-lo-iam se quisesse ir até

lá. Não tinha restrições na propriedade, mas a companhia era

permanente. Passava-se por um caminho rodeado de hortênsias e


miosótis. Podia vê-lo da janela do seu quarto no rés do chão. As do

primeiro andar também tinham grades. Esta era a sua casa, no entanto.

Sua. O miradouro: à luz da tempestade noturna, parecia um farol sem

luz. Não tinha grades até onde a vista alcançava. Provavelmente, os

guardas seriam suficientemente rápidos para o deterem, mas ele tinha de

tentar ser ainda mais rápido. Um movimento, um salto e o fim.

Não teve de falar com eles, limitou-se a guiá-los até ao miradouro. Os

homens seguiram-no e, quando chegou às escadas, um pôs-se à frente

dele, de maneira que Gaspar o seguiu pelo interior da estrutura,

iluminada com muitas janelas pequenas. Rápido, rápido. Chegar e correr

diretamente até ao guarda-corpos e atirar-se sem pensar, não tinha

ninguém, não tinha nada, não importava a vida antes do quarto de

Puerto Reyes. Além disso, as noites na clareira da floresta eram de fúria,

agora, com a avó sem lábios a gritar como um animal, Florence a dar

ordens e chapadas, os jovens a cuspir. Nada antes, ninguém viera buscá-

lo, ou, se tivessem vindo, já estavam mortos de certeza, podiam matar,

fui eu que ordenei a morte do teu tio, fui eu que ordenei a morte da tua

mãe, essa galdéria traidora, assim o disse Mercedes, ele perguntou-lhe

porquê o meu tio, dantes acreditávamos que devíamos tratar bem os que

são como tu, mas agora sabemos que são instrumentos, meros

instrumentos.

Florence ouvia-a e sorria, desta vez não vamos falhar. Eu sei quem

és. Todos sabemos quem és. Temos maneiras de conseguirmos o que

queremos.

Mas a verdade é que não tinham maneiras de conseguir o que

queriam, pensava Gaspar enquanto subia as escadas. Não tinham. Caso

contrário, já teriam conseguido alguma coisa dele porque ele apenas

queria morrer. Já nem sequer tinha o consolo das imagens da epilepsia.


Tinham-se ido embora. A casa curara-o. Não sentia nada naquela casa,

em nenhum dos seus recantos. Estava morta, era uma ruína, era o lugar

onde iria morrer: o seu túmulo.

Chegaram ao ponto mais alto do miradouro, ao terraço. O homem

que estava à frente dele distraiu-se por um segundo e Gaspar correu,

apoiou um pé no corrimão e, de repente, o outro pé estava no ar, em

cima das árvores, cheirava a rio, um pássaro grasnava e o sol estava

implacável, e fechou os olhos.

Imbecis, ouviu Gaspar no chão, enquanto tentava perceber o que estava a

acontecer. Dois braços impediram o seu salto, mas não os braços dos

guardas, de quem escapara com precisão e elegância. Havia mais alguém

no miradouro, alguém de cuja presença, por estar tão concentrado em

fugir, não se apercebera.

Era Esteban. De costas para os guardas, viu-o dizer, mexendo os

lábios, «por favor, Gaspar». E, a seguir:

— Vão já buscar o médico, ele está magoado. Depois terão de

prestar contas à minha mãe.

Um dos guardas desceu as escadas a correr e Gaspar apoiou-se no

muro e pensou na liberdade do instante no ar, no céu tempestuoso, na

beleza da queda. Naquele momento, não se atrevia a tentar outra vez.

O teu pai tinha um truque, disse Esteban, e Gaspar apercebeu-se de

uma mudança na voz dele que o obrigou a prestar atenção. Estou a

tentar agora. Tu e eu falamos e este imbecil aqui ouve uma conversa

diferente. Olha, não sei se funciona, ele prometeu deixar-mo antes de

morrer, olha, fez-me esta marca na cabeça, mas não se pode tentar com

uma pessoa qualquer e há algum tempo que não tenho ninguém com

quem treinar, a Tali não me deixa.

O que é que estás a dizer.


Tu não queres morrer. Ou talvez queiras, mas também podes fugir

daqui.

Gaspar olhou para o guarda e depois para Esteban, que transpirava

como se estivesse a levantar algo pesado. O pai fazia o mesmo, o que

Esteban estava a tentar agora. Metia-se na cabeça dele. Gaspar sempre

pensou que era uma maneira de comunicar exclusiva deles, e só

percebeu como era estranha muitos anos depois.

Ele não nos ouve, sabe-se lá o que está a ouvir. Vá, tenho pouco

tempo. Para mim, este truque é doloroso. Faz as perguntas.

Porque é que estás com eles?

Não estou do lado deles, se é isso que queres saber. São a minha

família. São a tua. Há planos para eles e tens de levá-los a cabo.

Não acredito em ti.

Pois não te restam muitas opções, Gaspar, devias confiar em mim.

Porque é que mataram o meu tio? Porque é que levaram a Adela?

Isso do teu tio escapou ao meu controlo. Nem sequer sabia. A Adela

ir-se-ia embora de qualquer maneira e, além do mais, foste tu que a

levaste, por mais que o lamentes. Não posso resumir décadas de história

nos dez minutos de que dispomos pela minha fraca resistência e até que

o médico apareça. Foi o teu pai que decidiu o desaparecimento de

Adela: entregou-a para te salvar deles e usou-te como instrumento. Acho

que, ao fazê-lo, desencadeou forças desconhecidas.

Gaspar sorriu, quase contra a sua própria vontade.

Pelos vistos, a salvação não está a funcionar.

Estás a troçar. Pelo menos, é uma reação diferente da resignação

destes dias. Eu recordava-te como um menino brilhante, com caráter. A

nossa família é brutal, Gaspar. Não podes dar-te ao luxo de seres fraco.

Nunca foste fraco.

Isso foi há muitos anos. Eu recordava-te como um amigo.


Já chega de sentimentalismos. Acorda, Gaspar. Tu não poderás fazer

nada lá, para onde te levam, na selva, mas podes fazer outras coisas.

Não sentiste nenhuma porta?

Gaspar olhou para o homem transpirado, para o seu cabelo cinzento,

e observou o guarda, que parecia nervoso, mas não lhes prestava

atenção. O guarda olhava para o caminho. Era evidente que Esteban

tinha razão: ou não ouvia a conversa, ou não a percebia.

Não sinto nada nesta casa.

Não a percorreste toda. Há mais dois edifícios. Podes pedir que te

levem lá.

Gaspar sentiu um safanão nas pernas, depois nas mãos e, de repente,

estava a tremer, no chão. Quatro pés subiam as escadas do miradouro.

É normal tremeres, é a adrenalina, não te preocupes. Olha, vou

deixar de falar em segredo, está bem? O que fizer a partir de agora não

tem importância. Regresso ao papel de filho da minha mãe.

A tua mãe?

A ruiva. Essa é a minha mãe.

Quando Esteban desligou, Gaspar sentiu. Foi como se um vento

quente deixasse de lhe soprar na cara, como se, depois de estar fechado

ao lado de um radiador, saísse para o ar livre. Dois guardas deitaram-no

com um aparato desnecessário: não lhe doía a cabeça. Esteban usara o

próprio braço para amortecer a pancada. Deixou-se levar. Ouviu pessoas

a correr e frases em inglês. You were friends and lovers. You cannot be

trusted. I just saved him but of course it’s not enough, e olhou para o

céu, onde cresciam as flores com a enxaqueca, que não fora provocada

pela pancada, mas pela dupla adrenalina do salto fracassado e do que

Esteban fizera, aquela conversa secreta em voz alta que lhe parecia tão

impossível quanto familiar. Observaram-no, obedeceu a todas as ordens:

tudo lhe recordava, passo a passo, o falso acidente pouco antes da morte
do pai, aquela farsa que, sabia agora, tinham montado para lhe

ocultarem o repugnante Ritual através do qual pretendiam roubar-lhe o

corpo. A sensação era tão vívida, tão óbvia, que não lhe restaram

dúvidas. Era só uma questão de recordar. Para isso, teria de se

concentrar. E lembrar-se mesmo do que não tinha presenciado. Talvez

devesse voltar a comer. Não queres morrer, disse-lhe Esteban, e podes

fugir.

Tinha de encontrar a porta.

Era difícil passar algum tempo com Gaspar. Toleravam que se

aproximasse dele porque era o sangue e já tinham perdido demasiados

membros do sangue, mas Stephen não queria cometer nenhuma ação

suspeita. O encontro no miradouro fora uma intuição. Stephen vivia na

casa de hóspedes. Da sua janela via o parque e tinha visto Gaspar e os

guardas irem para o lugar mais óbvio da casa para se atirar. O facto de o

jovem se querer suicidar era tão óbvio, que só umas pessoas

enlouquecidas pela falta de contacto com outros seres humanos podiam

não se aperceber disso. Era tão diferente da criança de que se lembrava.

Foi um verdadeiro golpe para ele ver Gaspar em ruínas, vinte e cinco

anos simplesmente extraordinários na aparência, saudáveis, mas

carregados de morte. Ouvir a voz grossa dele no miradouro, tão parecida

com a de Juan, fora uma lufada de virilidade inesperada naquela cara de

fauno, com os pómulos salientes devido à greve de fome, tal como as

mãos ásperas de dedos largos e compridos.

Quando o viu entrar na casa de hóspedes, Stephen preparava-se para

se encontrar com Tali no dia seguinte. Na Ordem estavam convencidos

de que a filha de Adolfo se suicidara no rio após a morte de Juan. O seu

próprio pai reconhecera o cadáver, que era de outra mulher, mas, na sua

bebedeira, seria incapaz de distinguir uma mulher de um veado. Tali


conseguira ludibriá-los, em parte, graças à Mão da Glória herdada de

Rosario. A mão do Eddie, o meu irmão, pensou Stephen. Pois bem, se

serve para que Tali viva «na clandestinidade», como ela diz, é uma coisa

boa. Custou-lhe abandonar a casa e o templo, mas tinha pessoas de

confiança que tomavam conta dele e levou consigo todas as relíquias

valiosas. Vivia perto dali, mas num lugar mais convencional. Mercedes,

que duvidava da sua morte porque a sua natureza era a desconfiança,

jamais a procuraria. Finalmente foi à merda, essa índia, dizia.

Stephen prosseguiu com o seu plano. Atravessou o jardim e entrou

no gabinete de Mercedes, onde esta tinha as contas preparadas e os

trâmites de que devia tratar. Às vezes, acompanhava-o outro membro da

Ordem, inclusivamente o próprio Adolfo Reyes, que morria de tédio e

gostava de passar algum tempo em Buenos Aires de vez em quando.

Mercedes estava de máscara e óculos: parecia um inseto assassino.

Também era bastante fácil de enganar, porque era preguiçosa. Há anos

que Stephen dera início à passagem dos bens para Gaspar. Ela não tinha

de assinar nada porque bastava a assinatura de Adolfo. E Adolfo, que

estava sempre bêbedo, assinava o que quer que fosse. A casa já não era

apenas sua. Todo o seu dinheiro estava protegido, para escapar ao

desastre financeiro da Argentina, em contas do Uruguai e da Inglaterra,

embora disso já não se ocupasse ele. Contratara contabilistas e

advogados em todo o lado. Seria muito mais fácil, depois, as empresas, a

plantação de mate e as imobiliárias mudarem de mão. Não era preciso

que morressem. Tinham deixado tudo em vida, eram velhos, era lógico

que passassem os bens para o jovem neto. Ninguém os via há muito

tempo e ele, nas reuniões, fazia questão de deixar claros o alcoolismo de

Adolfo Reyes e a insanidade de Mercedes. A ausência de Gaspar era um

alívio para os advogados e os contabilistas e administradores, que

imaginavam um jovem playboy capaz de estourar tudo. O facto de terem


confiado nele para ser o gestor de uma parte da fortuna era fruto de uma

decisão tomada graças à enorme desconfiança que Mercedes sentia em

relação aos membros vivos da sua família, que não eram muitos. Preferia

que o responsável fosse alguém da Ordem. Florence não tinha esse tipo

de paranoias, mas não se imiscuía em assuntos alheios. Não queria saber

do império de Mercedes. Florence julgava que era indestrutível, que o

poder e a influência das famílias eram impossíveis de derrubar

independentemente de ele passar horas de fato e gravata em bancos e

escritórios. Em poucas palavras, estava convencida de que o trabalho de

Stephen era inútil e não interferia.

— O meu neto é um fiasco, um fracassado — disse Mercedes. — Já

nem fugir quer.

Na linguagem de Mercedes, isso significava que estavam a perder

uma magnífica perseguição com cães pela selva com a qual podia dar

asas a um pouco de sadismo. Esteban ainda não dissera nada a Gaspar

sobre aqueles que Mercedes guardava no túnel.

— Enfim. Há de conseguir fazer a Invocação. Não gosto de esperar.

Sempre fui impaciente!

— Vou sair esta noite. Se precisares de mais alguma coisa, diz.

Estarei por cá.

Mercedes despediu-se dele com um gesto e acariciou o cabelo ralo.

Stephen lembrava-se dela há quarenta anos, naquela mesma casa. Na

altura, a ele, que era praticamente uma criança, parecera-lhe repugnante.

Juan dizia-o sempre: a Mercedes é sacerdotisa de deuses repugnantes, e

nós somos sempre parecidos com os deuses que adoramos.

Queria ver Gaspar antes de se ir embora. A visita à casa de hóspedes

era o resultado da conversa de ambos no miradouro e tinha a certeza de

que ele encontraria a porta. Se até ele a sentia, ele, que nunca se atrevera

a pisar a terra do Outro Lugar.


Encontrou-o na praia, para desespero dos guardas: a proximidade do

rio deixava-os nervosos. Eram guardas novos: depois da tentativa de

suicídio, Florence decidira trocá-los. Até brincara com a ideia de que,

sempre que Gaspar saísse do quarto, o fizesse algemado a um dos

guardas. A ideia foi descartada quando Gaspar voltou a aceitar comer a

comida deles e explorar o terreno com uma curiosidade renovada. Ela

não era estúpida. Sabia que o tinha de deixar encontrar o lugar. O facto

de ele ser capaz de fazer invocações no mesmo lugar que o pai era

possível, mas improvável. E se não resultasse, Florence seria capaz de

fazer o rapaz viajar pelo mundo, mesmo correndo o risco de o perder.

Precisava de um médium para manter um poder que estava a esmorecer,

como sempre acontecia após uma deceção assim tão grande. E com Juan

a deceção fora dupla: tinha morrido e, ao não conseguir ocupar o corpo

do filho, pôs em evidência que o médium desobedecera, ou que nem

sequer o mais poderoso membro da Ordem era capaz de executar a

técnica ordenada pelos deuses. Ela insistia: a técnica ainda não nos foi

revelada completamente. Precisamos de um médium para a

completarmos. Pareciam-lhe preciosos os breves instantes de

sobrevivência da consciência noutro corpo. Presenciara alguns de

distinta duração. De minutos, na esmagadora maioria das vezes. De

horas, numa vez que a tinha feito chorar. O poder escapava-lhe das

mãos, pouco a pouco, e também lhe escapava a vida.

Stephen aproximou-se de Gaspar e ficou parado ao pé dele. Os

guardas ficaram incomodados e disseram-lhe: a senhora Florence prefere

que não tenham contacto um com o outro. Eu sei, disse-lhes.

Já podemos falar, disse depois a Gaspar.

Podias aperfeiçoar a técnica de maneira a que nem sequer te

ouvissem.

Queres discutir. Ainda bem, fazes-me lembrar o menino que conheci.


Nunca me conheceste e não confio em ti. É a segunda porta do

corredor de cima. Onde guardam uns quadros.

Tens de os levar lá.

Achas que vai ser fácil convencê-los?

Eles sabem que foste tu que encontraste a porta que se abriu para a

Adela. Não sabem nada da extensão do que está para além dela.

Eu também não.

Vão explorá-lo juntos. Explorá-lo-emos. E depois poderás fazer o

que tiveres de fazer.

Tu tens de te certificar de que virão todos atrás de mim. Alguma vez

estiveste atrás da porta no Outro Lugar?

Estás a falar como o teu pai.

A nostalgia apoderou-se de ti. Eu não me esqueço, não os impediste

quando decidiram abrir o meu tio como se fosse um frango. Pensas que

o meu pai te teria perdoado?

O teu pai matou o meu irmão e eu perdoei-lhe.

Não acredito em ti. No fundo, és um filho da puta, mas és tudo o que

tenho. Não quero saber do teu irmão, e menos ainda se está morto.

Alguma vez passaste para o outro lado da porta? Eu sei voltar. Não sei

se te vou deixar voltar, vais ter de arriscar.

Gaspar levantou o braço.

Podes manter isto durante mais tempo?

Não. E não é seguro.

É possível chamar todos os membros da Ordem que existem?

Não. São muitos e não sei quantos são.

Vou fazer aos que cá estão uma pequena demonstração, primeiro.

Agora, desliga.

Esteban saiu da praia caminhando vagarosamente. Estava condenado

a ser um servo, pensou. Da sua família e de Juan, e agora de Gaspar. Um


servo e um traidor. Mas estava prestes a atear o fogo, a dias de ver as

labaredas no horizonte.

Era uma procissão e ele liderava-a.

Ouvia-os arfar e arrastar-se. Ele fingia estar exausto e exultou com o

desespero deles quando atravessaram o pântano, que podia ser

atravessado por um trilho no meio do mato. Foi difícil para eles porque

do matagal saíam mãos. Mãos como as que tocavam em Pablo, pensou

na primeira vez que as viu. A mão que marcara o pai no braço. Nele, não

lhe tocavam.

As mãos arrastaram até à planície e para dentro da água estagnada

alguns Iniciados. Era assim que se chamavam uns aos outros. Gaspar

aprendia a gíria à medida que a ia ouvindo. Ele era um servo. Stephen

disse-lhe que também era um servo. Não. É diferente ser uma ovelha

negra. Tu és a ovelha negra, o filho pródigo, a vergonha da família. Tu

podes conformar-te. A mim só me resta revoltar-me. Ao meu pai só lhe

restava revoltar-se. O inconformismo é possível para os que não são

escravos. Os outros têm de lutar.

Os que eram apanhados e afogados pelas mãos no pântano eram

arrastados, desde o matagal, com um sorriso de êxtase. Não gritavam.

Desapareciam em poucos instantes. O teu pai dizia que são só comida,

mas eles não sabem. E se sabem, não se importam, querem alimentar o

deus deles. Gaspar não prestava muita atenção àquilo. As mãos não

conseguiam alcançá-lo. Com ele eram estúpidas e lentas. Stephen

aprendeu a situar-se ao pé de Gaspar para as evitar.

Quando deixavam o pântano para trás, Gaspar virava-se para admirar

a paisagem. Era bela, embora descorada, provavelmente devido à falta de

luz. Ia dar a um campo aberto, não muito grande e vazio, a solidão de

um ermo num mundo oco. Lá, no ermo, deixavam coisas aos visitantes.
Pequenas coisas situadas precisamente no meio do campo, muito

visíveis. Presentes. Tinham de ir buscá-los. Os Iniciados que se

ofereciam para ir buscá-los pareciam pequenos e assustados. Os

presentes eram todos diferentes. Pareciam joias, brincos, nalguns casos,

ou braceletes. Na primeira excursão aperceberam-se de que eram feitos

de osso. Gaspar não sabia o que acontecia a seguir porque, depois das

excursões, retiravam-se todos para descansar, incluindo ele próprio.

Fingia estar esgotado. Não se cansava. Os guardas não passavam para

além da porta.

A minha mãe diz que os ossos formam letras. Acha que estão a falar

com ela outra vez, explicou-lhe Stephen. E o que é que dizem? Não

tenho acesso a essas reuniões, respondeu Stephen. Agora era mais fácil

para eles verem-se: os membros da Ordem ficavam tão cansados depois

das excursões, que ninguém os controlava, a não ser os guardas, mas

esses estavam incomodados com o facto de não serem convidados a

passar para o outro lado da porta e não lhes importava muito permitir o

contacto que Florence preferia evitar.

Ainda não tinham reparado, e Gaspar não fez questão de lhes

mostrar, que, do outro lado do pequeno vale, onde começava a floresta,

havia um homem pendurado numa árvore. Não balançava. Atrás da

porta não havia vento. Gaspar começou a sonhar com o homem. Nos

seus sonhos, tirava a corda do pescoço e arrancava da árvore os frutos de

osso.

Uma noite, Gaspar acordou e viu que o avô estava no seu quarto:

tinha lá entrado de cadeira de rodas, muito bêbedo. O velho não disse

nada: só atirou para cima do lençol um dos objetos, pequenos ossos

atados com uma espécie de fio vegetal. Gaspar observou-o ao luar. Era

idêntico, na forma, à cicatriz do seu braço. Os guardas não fizeram nada.


Não sabiam o que fazer quando quem entrava era Adolfo Reyes. E não

sabiam o que é que ele tinha atirado para cima da cama.

— Não deviam tirá-los de lá — disse o velho. — Não se trazem

coisas de lugares como aquele.

Os guardas, que perceberam o alcance da sua bebedeira, levaram-no.

E Adolfo Reyes saiu a gritar que era o neto dele e que ele podia falar

com o neto quando lhe desse na real gana. Gaspar ouviu-o gritar até o

silêncio pesado se abater de novo sobre Puerto Reyes e pegou na joia. Já

tinham trazido muitos presentes. Quantas excursões tinham feito? Seis.

Sete. Já tinham infestado a terra. Aproximou os ossos ensartados da

boca e sussurrou papá, és tu, estiveste aqui, conheces estes lugares.

Temos de entrar na floresta, disse-lhes durante a excursão seguinte.

Quando chegavam ao Outro Lado, falava-lhes, punha-se à frente deles,

guiava-os. Florence e Mercedes seguiam-no. Não se deixava intimidar

por elas, nem fingia obediência. No Outro Lado era ele que dominava

porque, além do mais, tinha o segredo: todos se cansavam menos ele. Os

velhos ficavam arrasados. O trajeto do pântano até à planície não tinha

mais de quinhentos metros, mas no fim eles ficavam à beira de perder os

sentidos. Tinha um especial prazer em ver a avó desfalecer. Vê-la

respirar de boca aberta era extraordinário, um espetáculo oriundo do

inferno. Como a teria magoado daquela maneira o pai? E porquê? As

respostas haveriam de chegar. Faltava pouco.

Temos de entrar na floresta, disse, e fez com que o seguissem. Os

guardas ficavam do lado de fora, nunca os deixavam entrar. Isso

significava que tinha de ir com Esteban. Ele sabia lutar. Precisava dele.

Não queria precisar dele, não queria voltar a ter um pai, nunca mais. Se

não fosse por causa dos guardas, deixá-lo-ia no Outro Lado, mas ele era

a única testemunha viva do pai. Ele e Tali. Precisava dele vivo. Tinha

muito que contar-lhe.


A floresta não era densa. As árvores estavam muito separadas. Os

membros da Ordem viram o homem pendurado. Uma múmia. A pele

seca. Não se mexia. Gaspar retrocedeu e deixou que avançassem

sozinhos. Todos encontravam alguma coisa fascinante. Mercedes: uma

árvore de mãos, ou seja, um tronco com mãos hirtas encastradas,

algumas mumificadas, outras a apodrecer. O avô Reyes: um busto

enxertado num tronco fino. Havia vários. Tinham substituído a cabeça

humana de alguns pela de animais. Alguém se divertia atrás da porta.

Gaspar soube-o na Casa de Adela. Havia um toque de colecionista

naquelas prateleiras com as suas unhas, os seus dentes. Lembrou-se da

caixa de pálpebras do pai. Não se podia distrair. Tinha de acabar e o

braço indicava-lhe para onde ir, o seu próprio braço. Tinha a cicatriz a

arder. Seguir o braço. Um pouco mais. Atravessar a floresta. Não sabia o

que procurava, mas sabia para onde ir.

O grito de Florence revelou-lhe o objetivo da marcha pela floresta.

Esteban, atrás dele, agarrou-lhe no braço.

Havia muitas árvores com homens pendurados. O primeiro homem,

o mumificado, estava pendurado pelo pescoço. E muito alto. Faltava-lhe

uma mão. Mas a posição de todos aqueles homens e mulheres era a

mesma. Gaspar reconheceu-a: tinham sido pendurados na posição do

Enforcado do Tarot, de cabeça para baixo.

— Aquele é o corpo do meu irmão — disse Esteban.

Florence deixara de gritar. Agora, estava no chão com o rosto

apoiado no do cadáver de um jovem de pele muito branca, constatando

que, de facto, era o seu filho. Falava com aquela cabeça morta. Não

parecia alterada, mas tinha os olhos fixos e o pescoço dobrado, partido.

Tinha sangue seco na cara e o cabelo, comprido, era vermelho e estava

seco como se fosse de palha. Gaspar sentiu uma certa compaixão por

ela, apesar de tudo. Florence já não ofegava, parecia rejuvenescida


enquanto beijava o filho na boca. Porque não teria apodrecido? Que

idade teria? Era um adolescente, apercebeu-se Gaspar. Tinha os braços

muito magros e o pescoço preto, como se o tempo não tivesse sido capaz

de esconder as nódoas negras provocadas pelo enforcamento. Fora o seu

pai que fizera aquilo. Esteban contar-lhe-ia como.

Florence falava na sua língua com o adolescente morto, falava-lhe

em inglês, arrulhava. O meu menino mágico, repetia, quanto terás

aprendido neste lugar, no país dos deuses.

Pediu aos outros que a ajudassem a pô-lo no chão, mas não obteve

resposta, ninguém se mexeu. Mercedes apontou para os outros

enforcados: havia-os até ao horizonte, como num cemitério de soldados,

um vale dos caídos.

Florence insistiu, com toda a firmeza de que foi capaz no meio do

seu esgotamento e do seu desespero. Ninguém prestava atenção ao que

sucedia à sua volta e também não prestavam atenção a Gaspar, que

retrocedia lentamente, acompanhado por Esteban.

A única que estava em estado de alerta era Mercedes. Com a sua

cara animalesca farejava o ar. Apercebera-se da diferença que os outros,

atordoados diante daquele campo de enforcados e, sobretudo, da

aparição do herdeiro desaparecido, de Eddie, não eram capazes de

sentir. O lugar do outro lado da porta nunca cheirara a nada nas

excursões anteriores lideradas por Gaspar. Porém, agora havia um bafo

no ar, um fedor a carne velha e a cripta sob o sol, a leite estragado, a

sangue menstrual e a hálito de fome, a dentes sujos. A respiração de uma

boca imunda.

Temos de sair daqui, mas não a ouviram. Não lhe prestaram atenção.

Ela apercebera-se. Aquele lugar era uma boca.

Gaspar encontrou o olhar da avó e disse-lhe que sim com a cabeça.

Tinha razão. Tinham de sair dali. Assim, empurrou vários membros da


Ordem que, sem compreenderem o que estava a acontecer, não tentaram

apanhá-lo e correu. Esteban ia atrás dele, mais atrasado. Alguns

tentavam segui-los, mas uma vantagem de poucos metros naquele lugar

sem oxigénio suficiente era insuperável. Não conseguiam correr, só

havia ar para Gaspar, que tinha tempo de virar-se e de ver os esforços

inúteis, de levantar a cabeça para a noite sem Lua e de perguntar-se

porquê, se não havia Lua nem estrelas, de onde vinha aquela luz rasante,

de amanhecer nublado. Quando chegou ao matagal, o cheiro do pântano

era agora nauseabundo e sentiu-se agoniado. Ouviu, atrás de si, a tosse

esgotada e enojada de Esteban. Não o queria ajudar, mas, se conseguisse

sair, precisaria dele para lutar com os guardas. Retrocedeu para ir ter

com ele e arrastá-lo pelo braço, para o empurrar. O tempo estava a favor

deles e contra os membros da Ordem, que caíam de joelhos em cima da

vegetação com falta de ar, mas não sabia quanto tempo lhes restava em

relação ao renascimento do mundo que os rodeava. Estava tudo a

acordar e a reptar, a fluir, a deitar a língua de fora, a babar-se. O

enforcado começara a balançar embora o vento fosse impercetível. Havia

barulhos na água. Não havia mãos no caminho que atravessava o

pântano, no entanto. Deixavam-nos passar. Gaspar tocou na parede de

pedra, como de montanha, e encontrou a passagem, um túnel curto e

alto. No fim, estava a maçaneta que abria a porta. E depois, o corredor

da casa de hóspedes de Puerto Reyes.

Os guardas estavam do outro lado, como sempre. Gaspar puxou

Esteban com força; caiu ao chão, a cara de um vermelho tão escuro, que

parecia roxo. Fechou a porta atrás de si. Os guardas interrogaram-no

com o olhar. Não lhes disse nada. Eles, desconcertados, recorreram a

Esteban, que não conseguiu falar com eles, não conseguia respirar.

Gaspar compreendeu o que tinha de fazer. Era muito simples.


— Viemos buscar-vos — disse. — A senhora Florence diz que vocês

também têm de ver o que encontrámos.

E abriu a porta para que eles saíssem. Por uns instantes, pensou em

acompanhá-los. Só até ao pântano. Atirá-los à água estagnada. Espetá-

los nos troncos que estavam à espera dos bustos deles. Mas aquela

matança não era dele. E segui-los seria perigoso. Fechou a porta assim

que saíram.

Esteban levantara-se e estava meio debruçado na janela, tentando

respirar. Tirando o barulho do fôlego dele, a casa estava completamente

em silêncio.

— E agora, o que fazemos? — perguntou Gaspar.

— Amanhã fechamos essa porta com tijolos.

Gaspar sentiu primeiro um leve tremor nas mãos e, depois, as

convulsões. As náuseas foram tão violentas, que ensopou de vómito as

calças, o chão de madeira. Ficou com o cabelo comprido colado à cara.

Fechou os olhos e, quando os abriu, estava sozinho. Saiu inseguro da

casa de hóspedes: lá fora, o sol brilhava ignorante e idiota, e não via

Esteban em lado nenhum.

Estavam à espera dele, queriam vê-lo. Disse que não. Ao telefone, Vicky

ameaçou aparecer na casa sem avisar, já nos tentaste afastar uma vez e

as coisas correram como correram e acabaram como acabaram. Podes

voltar. Ninguém anda à tua procura. Sabem que não tiveste nada a ver

com o que aconteceu ao Luis. Nunca mais me fales do Luis, gritou

Gaspar. Nunca mais. Quem é que vos deu este número? Foi a Tali,

respondeu Vicky, e Gaspar não pensou nela. Pensou: tenho de telefonar

já para mudar de número ou mesmo para mandar cortar o telefone.

Pablo argumentava com menos convicção. Não se atreveriam a ir ter

com ele se não os quisesse ver, se não fosse ele a pedir que o fizessem.
As conversas eram tensas. Gaspar desligara da última vez e não atendera

mais nenhuma chamada. Stephen — agora chamava-o assim: ele tinha-

lhe pedido — percorria a casa sem falar muito com ele, mas ouviu o que

Gaspar precisava de lhe dizer. O Outro Lugar — chamava-lhe assim, tal

como o pai o batizara, embora não soubesse disso — compensou Pablo

e Vicky. Tinham ambos boas vidas. Não queria dar cabo delas.

— Já não precisas deles — disse-lhe Stephen. — Tudo isto é teu.

Hás de tomar uma decisão.

Vimos a tua tia, disse-lhe Vicky. O homem que vive contigo disse-

nos onde estava e fomos visitá-la. Ela não deixou que nos

aproximássemos da casa e não o fizemos. Gaspar sentiu outra onda de

raiva. Tali. Lembrava-se bem dela. O pai nunca lhe contara que era irmã

da mãe e ela jamais o mencionara. Outra mentirosa. E porque é que

Stephen andava a dar instruções? Por enquanto, não podia enfrentá-la.

Não podia ver a cara de Tali nem ouvir as suas explicações. Podia vir a

ser sua aliada, mas ainda não.

Stephen não o abandonava. Gaspar matara a família dele, mas ele

continuava lá em casa, cambaleante, a deambular, sem qualquer intenção

de se ir embora. Se uma noite me der um tiro, pensava Gaspar, será

justo. No entanto, sentia-se a salvo. Não tinha a certeza em relação ao

que fazer com Stephen, e julgava que ele também não sabia se o devia

deixar para trás. Por enquanto, só tinham sido capazes de resolver

questões práticas. Ir comer à aldeia. Comprar comida. Conversar no bar

de Puerto Libertad meio bêbedos. Stephen falava-lhe do pai com rodeios

e pormenores ao mesmo tempo. Precisavam de contratar trabalhadores

para a casa. O desemprego no país e naquela zona era tão grande, que

não seria difícil, mas Gaspar lembrava-se de uma mulher que o tinha

adormecido com canções, do avental dela feito de pedaços de tecido.

Não se lembrava do seu nome, mas Stephen sim: Marcelina. Podemos


encontrá-la. Podes fazer o que quiseres. Já não tens de prestar contas a

ninguém.

— Tens a certeza de que eles não estão vivos, no Outro Lugar. De

que não podem voltar.

— Tu também tens a certeza de que não resta nada deles. O Lugar

estava morto de fome.

À noite, quando saía para ir fumar na praia, Gaspar pensava na

procissão que tinha liderado. Fora outro sacrifício, como o de Adela,

mas desta vez ele sabia o que fazia. Não estava arrependido. Não tinha

medo de represálias. Dormia com um sossego desconhecido. Stephen,

pelo contrário, embora o tivesse guiado na matança, tantas vezes

planeada com o seu pai, sentia-se tão desamparado como o último

falante de uma língua à beira da extinção. Uma noite, viu-o perder-se no

caminho onde estava o Lugar de Poder do pai. Horas depois, ouviu uma

explosão. Correu. Tinha sido uma explosão subterrânea. Era o túnel que

tinha uma porta de ferro. Perguntou a Stephen porque é que tinha feito

explodir o túnel e ele disse que lhe trazia más recordações. Estava vazio,

acrescentou. Gaspar não acreditou nele e, quando lhe parecesse seguro,

inspecionaria as ruínas. Depois da explosão, Stephen passou vários dias

fora. Foi ter com a Tali, pensou. Talvez também tenha um amante. Uma

semana de ausência. Nada mais. Em casa, comia pouco e bebia muito.

Provavelmente, um dia encontraria o seu corpo na praia, devolvido pelo

rio. Ou talvez se convertessem em dois homens sozinhos com um

segredo na casa quieta, ano após ano, que se encontravam de

madrugada, insones, incapazes de esconder que o enforcado que

balançava ao vento não tinha sombra.

Depois de fumar, todas as noites, Gaspar regressava ao passadiço,

passava pelo jardim das orquídeas e percorria o caminho que ia do

miradouro à casa de hóspedes. Subia ao primeiro andar. A porta não fora


tapada com tijolos, apesar da insistência de Stephen. Lá continuavam a

madeira trabalhada, a maçaneta de bronze, o corredor no silêncio.

Nunca mais a voltou a abrir. Bateu, timidamente, como fazia todos

os dias.

— Adela — disse.

Nenhuma resposta. Fechou os olhos. Viu uma rapariga loura, nua, a

caminhar sob um céu sem estrelas. Perdida, mas não assustada. Viu-a

dançar num caminho de terra vermelha, com fios de lã pendurados no

braço e nas pernas, desprendida, desatada. Viu um planeta negro sobre o

rio. Viu a avó sem lábios e sem nariz. Viu velas na floresta e uma jovem

de gatas a caminhar sobre ossos. Viu homens e mulheres a correr, todos

mutilados, alguns sem pernas, a arrastarem-se ou a rodopiarem sobre si

próprios. Viu um cão branco faminto, a espinha como bolas de metal

incrustadas no lombo. Viu uma rapariga de vestido vermelho sentada à

beira do pântano; algo que saía da água estava a comer-lhe as pernas,

mas ela não se queixava. Viu um busto pálido num campo de flores

amarelas.

Naquela terra, ele podia entrar e sair e procurar. Naquela terra, ele

era bem-vindo. Se ela estivesse lá, haveria de encontrá-la. Ainda seria

uma menina? O que lhe teriam dado de comer? O Lugar teria sido uma

boca para ela? Tinha de ter a certeza. No Outro Lado, o tempo era outra

coisa. Podia procurá-la.

Afastou-se da porta.

— Adela.

Não ouviu pancadas. Nem a voz de Adela, embora ele já não se

lembrasse da sua voz. A primeira coisa que perdemos dos ausentes é a

voz.

— Vou voltar — disse-lhe. — Preciso de tempo. Nunca fui corajoso.

Estou a aprender.
E deixava a porta, o corredor, a casa de hóspedes. Ignorava o

telefone, que tocava todos os dias. Seriam Vicky ou Pablo. Ainda não o

tinha mandado desligar. Queria assistir à sua rendição, esperava que as

chamadas fossem diminuindo, que deixassem de ser sirenes na selva,

que se desvanecessem. Quando chovia, não atravessava o jardim a

correr. Gostava das chuvadas violentas e curtas de Misiones, dos rios de

terra vermelha, do prelúdio da noite negra e quente com as estrelas a

latejar no céu. Um brilho, o silêncio, outro brilho, como um coração

exausto.

26 Férreo opositor do regime peronista. (N. da T.)

27 As unidades básicas são centros locais onde se reúnem os simpatizantes e militantes

peronistas para levarem a cabo diversas atividades políticas, sociais, comunitárias, etc. (N. da T.)

28 Peixinhos fritos. (N. da T.)

29 Na década de 1980, o bilardismo (de Carlos Salvador Bilardo) e o menottismo (de César Luis

Menotti) representavam duas formas antagónicas de jogar futebol preconizadas por esses dois

treinadores, a primeira considerada «suja» e a segunda, «limpa». (N. da T.)

30 Grito alegre que acompanha o chamamé. (N. da T.)

31 Osso. (N. da T.)

32 Depreciativamente, «trotskista» ou, simplesmente, «comuna». (N. da T.)


Agradecimentos

Obrigada, Paul Harper e Emily.

Obrigada pela ajuda, pelo entusiasmo, pelas leituras, sugestões e

discussões, e pelo trabalho (conforme o caso!) Ariel Álvarez, Mauricio

Bach, Salvador Biedma, Ariadna Castellarnau, Rodrigo Fresán, María

Lynch, Sandra Pareja, Carolina Marcucci, Vanina Osci e Silvia Sesé.


Sobre a Autora

MARIANA ENRIQUEZ

A escola de ficção de Mariana Enriquez começou pela adolescência,

quando era leitora de Stephen King, das irmãs Brontë, de Ray Bradbury

ou de escritores de terror avulsos e surripiados entre livros usados –

além das histórias de fantasmas contadas pela avó, cheias de

religiosidade à mistura com superstições e criaturas assustadoras.

Formada em Comunicação Social em Buenos Aires, foi jornalista –

tanto em jornais e revistas como na rádio –, além de organizar cursos de

escrita criativa na Fundação Tomás Eloy Martínez. A sua estreia literária

ocorreu com Bajar es lo peor (1994), a que se seguiu, dez anos depois,

Cómo desaparecer completamente; a coleção de contos Los peligros de

fumar en la Cama ou Los chicos que vuelven, e uma biografia de Silvina

Ocampo, La hermana menor, além de escrever para revistas como

Granta, McSweeney’s ou The New Yorker. Na verdade, Mariana

Enriquez transporta a promessa de uma nova modernidade na literatura

das Américas.

Sobre a Tradutora

MARGARIDA AMADO ACOSTA


Margarida Amado Acosta vive em Linda-a-Velha, tem uma filha

violinista e violetista, e dá aulas na Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa há mais de vinte anos. Já traduziu para português livros,

filmes e ensaios de quase todos os países de língua castelhana, do

México ao Chile, de Cuba a Espanha. Traduziu, entre muitas outras,

obras de Juan José Millás, Héctor Abad Faciolince, Severo Sarduy,

Evelio Rosero e Gonzalo Celorio.

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