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Sobre a obra:
Sobre nós:
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Converted by convertEPub
© Nora Lezano
colaboradora das revistas The New Yorker, Granta, McSweeney’s e Electric Literature. É
docente e subeditora do suplemento Radar do diário Página/12. O seu livro anterior, As Coisas
Que Perdemos no Fogo (Quetzal, 2017), foi publicado em vinte e cinco países.
Três quartos do universo são
[Todos os direitos para a publicação desta obra em Língua Portuguesa, exceto Brasil, reservados
Direitos de tradução para Língua Portuguesa, exceto Brasil, por acordo com Casanovas & Lynch,
Quetzal Editores
https://www.quetzaleditores.pt
quetzal@quetzaleditores.pt
Tel. 21 7626000
ISBN: 978-989-722-727-1
«Who is the third who walks always beside you?»
janeiro de 1981
que com uma nuvem. Já era tarde e tinha de sair, e esse dia de calor seria
que ainda não sentia e entrou em casa para acordar o filho, que dormia
leve. O rapaz acordou logo. Os outros rapazes também teriam esse sono
tão superficial, tão alerta? Lava a cara, filho, e limpou-lhe com cuidado
feitas, e hesitou um instante entre vários livros, até decidir levar mais
socorros básicos para a viagem. Também a sua faca mais bem afiada e o
teria de viajar no banco de trás, embora preferisse tê-lo a seu lado; mas
ela fazia essas coisas sem pensar: cortar-lhe as unhas, coser os botões,
lavar-lhe a parte de trás das orelhas e as reentrâncias dos dedos dos pés,
perfeito com os atacadores. Ele também tinha saudades dela, mas não
queria chorar com o filho nessa manhã. Levas tudo o que queres?,
perguntou-lhe. Olha que depois não podemos vir cá buscar mais nada.
Rosario insistia sempre para ele conduzir, pelo menos, uma vez por
arrancou.
— Tenho fome — disse Gaspar.
contasse a história que lera na noite anterior. Com seis anos, já sabia ler
muito bem.
— Não me lembro.
noite presa e fugiu, e para fugir teve de matar o guarda que a vigiava.
Como ninguém acreditou que ela tivesse forças para o matar porque era
— Gostaste da história?
quando vir alguma, mostro-ta. Perto da casa dos teus avós há imensas.
Pelo espelho retrovisor, viu Gaspar franzir o sobrolho.
— Imensas, como?
Era fácil sair da cidade num domingo de janeiro pela manhã. Mais
pai comum num fim de semana de piscina e passeios. Mas não era um
olhos, quando falavam com ele por uns instantes, de alguma maneira
reconheciam nele o perigo: não conseguia esconder o que era, não era
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Estacionou à frente de um café que anunciava submarinos e
conseguia senti-la, tinha partido de uma maneira que, para ele, era
shirt seca. Depois, levou-o para a casa de banho do café para lhe molhar
a gasolina.
no rio.
chamas?
Juan teve vontade de dizer filho, não lhe respondas, comamos
enquanto a deixo muda para sempre, mas Gaspar disse como se chamava
infantil:
— E a tua mamã?
esforço para se desprender do filho e daquela dor. Gaspar não era capaz
ninguém.
ofendida.
— Ah, que bom. A senhora ofende-se por não ter a sua conversa
parva e nós sofremos por causa da sua indiscrição idiota, de velha cusca.
— Sinto muito.
— Não. A senhora não sente nada porque não a conhecia, nem nos
conhece a nós.
choramingar. Gaspar ainda estava a olhar para ele, mas tinha os olhos
podiam abrir e que o tio Luis lhe enviara do Brasil. Juan obrigou Gaspar
mulher em paz.
e pegou-lhe ao colo: Gaspar era leve e comprido, mas não seria tão alto
por curiosidade, talvez, mas como não perguntou pela mulher, Juan
casal para ele e outra de solteiro para o filho e que não lhe importava o
cabeceira que o hotel oferecia aos hóspedes e, com a caneta (que dizia
este número.
Juan olhou para ele sem se mexer: o rapaz tirara o livro da mala e
relativamente normal. Juan não estava agitado, não tinha tonturas. Estou
bem, sim, disse-lhe, e sentou Gaspar em cima das suas pernas, abraçou-
— É meia-noite e meia.
Na aldeia, não haveria nada aberto para jantar àquela hora. Podia,
fechado e abastecer-se do que quisesse, para ele, abrir uma porta era
ensinado: era melhor tentar viver com a maior normalidade possível. Ele
pena pagá-lo. Agora, devia convencer quem quer que fosse que estivesse
suspeitas.
— Está calor, vá lá. Não? Então, depois limpo-te com uma toalha.
sanita, a contar o que lera e vira da janela do hotel, mas ele não lhe
— Não.
Lembrava-se dos grandes brincos dela, que nunca tirava, nem para
como cruzava os braços quando ouvia algo que lhe parecia estúpido.
lhe batia com os punhos fechados durante alguma briga. Quantas coisas
não sabia fazer sozinho, quantas coisas esquecera, quantas apenas sabia
ela? Usou o pente para alisar o cabelo e cortou-o o melhor que pôde.
muito pálido. Deitou fora o cabelo cortado, que deixara cair sobre um
lenço, na sanita.
era perigoso, mas era antigo e, como tudo o que é muito velho, era voraz
e infeliz e invejoso.
Era a primeira vez, pelo menos na sua presença, que o filho tinha
que estava para breve e ela costumava ter razão, mas a constatação
pelo mesmo.
sem cabelo e com um vestido azul. Gaspar não conseguia ouvi-la, mas
boca aberta. Juan não prestou atenção porque o filho não lho contou
com medo, e isso era bom. O rapaz tinha razão intuitivamente: não
havia nada a temer, a mulher era apenas um eco. Havia muitos ecos,
agora. Era sempre assim quando se perpetrava uma matança; o efeito era
seu fim. Faltava muito para esse fim e os mortos inquietos deslocavam-
pensou.
desalinhado.
Bom, vamos para a cama sem comer. Juan sorriu e notou que a mulher
— que era nova, com pouco menos de quarenta anos, embora parecesse
mas, como não se ouvia nada e não telefonou para cá, não quisemos
incomodá-lo.
uma criança.
bem, tinha de descansar. Fiz uma cirurgia há seis meses, mas às vezes
escura aberta até meio do peito para tornar evidente e visível a enorme
cicatriz.
— Venham — disse ela. — Eu faço-vos qualquer coisa, nem que
aquário.
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— Esparguete, mitaí — disse-lhe a mulher, ajoelhando-se. —
lavar os pratos, para que ela pudesse voltar para a receção, e a mulher
aceitou; antes de ir, disse oxalá fique bom depressa. Gaspar ajudou-o a
para a ver e sentir: era a mesma do corredor, que deambulava pelo hotel.
mãos; eram tão grandes, que quase lhe rodeavam totalmente a cabeça.
não ouvia o que a mulher dizia. Era sempre melhor só ver. Juan ouviu-a
solitária da morte, o eco da morte. Depois, tornou-se surdo para ela, mas
— Quem é, papá?
— Sinto.
— Na barriga.
— E agora?
estômago.
— Nas costas.
— Na coluna.
quando te dói a cabeça e me dizes que parece que tens qualquer coisa lá
— Já está.
— Bom, agora diz à senhora para se ir embora. Não lho digas a falar.
Podes dizer-lho em voz baixa, se quiseres, mas diz-lho como se esta tua
parte que está entre as minhas mãos pudesse falar. Percebes? É
importante.
— Já está.
olhos vazios.
— Outra vez. Como se lhe falasses daí, como se tivesses uma boca aí
dentro.
— Em voz alta?
tipo de contacto de que ele era capaz. Rosario tinha a certeza de que o
conduzir.
Mas Gaspar não quis ler. Deitou-se de barriga para cima e esperou
pela chegada do sono com uma disciplina imprópria da sua idade. Não
Juan esperou até a respiração de Gaspar lhe indicar que estava a dormir
lugar tão bom como qualquer outro. Não precisava de muito: apenas de
cinzas.
Rosario com que andava sempre, guardada numa caixinha, e que tinha
sentimentais.
nem um engano, nem uma sombra enganadora. Ela não vinha, nem
estava ao seu alcance e, desde a sua morte, não recebera um único sinal
da sua presença.
não se faz entregando o sangue dos outros, disseram-lhe uma vez. Faz-se
silêncio era vertiginoso. Juan sabia que era um sintoma da sua própria
perda de poder. Se era por estar muito doente ou por se ter desgastado
demasiado, não sabia, mas a sensação de fraqueza era muito óbvia. Para
mundo dos mortos estava muito perto dele e era uma porta leve, batente.
capacidade para fazê-lo. Com este, não. Este era como esticar as pernas.
guardar a madeixa de cabelo na caixa. For the dead travel fast, pensou
outra vez. Era certo, em geral. Mas a ele era-lhe negada essa rapidez
habitual.
qual só lhe devolvia esse silêncio tão suspeito que o fazia pensar na sua
definitivamente.
era uma espécie de capital da pesca. Juan nunca pescara na vida. E não
— O que foi?
sim, ou por qualquer parvoíce, ou porque dizia que lhe doía a cabeça ou
tinha sono ou calor. Sonhava com ela, Juan sabia-o; em geral, sonhava
que a sua morte era um sonho. Às vezes, Juan deixava-o chorar sozinho;
outras vezes, sentava-se ao lado dele ou lavava-lhe a cara com água fria,
mas nunca sabia exatamente o que fazer. Nessa manhã, depois de Gaspar
lhe que não, que era um rio, e que os rios eram diferentes, mais
parecidos com uma piscina. Era mentira, mas servia. Quem precisava de
nadar era Juan, e estava na hora de o filho melhorar a pouca técnica que
como entretê-lo e um dia decidiu levá-lo a uma piscina. Juan sabia que
lho tinham proibido; o seu médico, Jorge Bradford, disse-lhe que não
amiúde imprevisíveis.
uma crise cardíaca: muitas das coisas mais importantes da sua vida
doutor Bradford, que o operou quando estava entre a vida e a morte, que
compra: pagou dinheiro por ele. É um milagre, disse Bradford aos seus
pais, um milagre que ainda esteja vivo, precisa de tratamentos e de
por fora —, via pessoas à volta da cama mesmo que fechasse os olhos. E
mais ou menos a mesma coisa que ele dissera a Gaspar. Usa a voz entre
continuava lá. Voltou a dizer-lhe o que fazer e Juan teve êxito à primeira
tentativa. Depois, Bradford pediu-lhe que lhe contasse o que via. E Juan
na cama; as bocas que se riam dele; a mão que lhe tapava a cara e que
as duas caras pequeninas que olhavam para ele de debaixo da pedra que
Contou aos pais, mas eles não davam sinais de compreender. Bradford,
sim.
rio. Ela era bonita, tinha um fato de banho inteiro azul e cumprimentou-
cintura da mulher com força. Nenhum dos dois conseguiu evitar estudar
durante quinze minutos, o suficiente para não ficar muito agitado. Era
capaz de nadar durante muito mais tempo, mas podia ter de conduzir
depois e preferia não estar cansado. O rio parecia de prata sob o sol, mas
água estava um pouco turva. Boiou durante uns instantes antes de sair:
pelos joelhos, fez sinal a Gaspar e gritou-lhe vem, que tens de aprender,
suas mãos fê-lo sentir Rosario a seu lado, e recordou-a a cantar-lhe uma
canção que dizia tonight will be fine, dançando uma canção de Bowie e
conseguia dar com ela. Tinha-lhe pedido, quando ainda estava viva, uma
deixes sozinho, haunt me, não havia palavras em castelhano para esse
verbo, haunt, não era assombrar, era aparecer, era haunt, mas ela nunca
o levou a sério. Ele devia ter morrido primeiro, pela lógica, era ridículo
algo que não a deixava aproximar-se. Ou que tinha ido para demasiado
longe.
— E agora?
— Vou afogar-me.
Demasiado tempo ao sol. Mas não se iria embora até o rapaz aprender a
suster a respiração.
— Vais acordar?
Tali.
vez junto da ponte, surgia a velha Capela do Diabo, e a partir daí era só
de Corrientes, uma mulher de classe média que foi viver para o campo,
sabiam que, embora tivesse adoecido, a morte fora tudo menos natural
templo. Agora, Tali continuava a tradição da mãe, que, para ela, era uma
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«guardiã» ou «promesera» . Com Rosario, montou uma sala dedicada a
mas estranhamente isolada das estâncias balneares e das marinas: lá, era
homem rico e bem relacionado. Não lhe tocariam, mas não fazia mal ter
cuidado.
dos seus muros, embora nenhuma fosse certa. Juan alertou Tali e o pai
mais do que uma vez: a igreja era estranha, mas não era um lugar
provavelmente, a razão pela qual a igreja não conseguiu ser aceite pela
elevação de terreno onde estavam a sua casa e o seu templo, não lhe
Deus Dourado, com os seus braços com veias que pareciam cabos sob a
compridas.
Ela nunca vira um homem assim na vida, e agora, que voltava a vê-
reconheceu-a logo.
triste como o vira há uns meses. Mas agora estava ali, à porta de sua
O rapaz, mais leve, saiu da lama primeiro, e Tali abriu a cancela para o
deixar entrar. Ele olhou para ela com os olhos curiosos, alerta. Olá, Tali,
— Estás a mentir.
— Então, levo o carro depois. Espero que não tenha ficado atolado.
— Nós empurramo-lo.
Juan pulou até uma zona de erva seca e, de lá, com dois passos das
suas pernas compridas, atingiu a cancela com facilidade. Tali pôde vê-lo
Ele fingiu que não ouviu e abraçou-a com tanta força, que a ergueu
ligadura suja que lhe cobria uma ferida na palma da mão. Tens de trocar
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asfalto e serviu um tereré bem frio na mesa do alpendre. — Só tenho
água fresca.
arranjava a casa.
cedo, optei por vir visitar-te antes de seguir para Puerto Reyes.
— Estás bem?
árvores.
cruzou os braços.
com medo quando ele adoece. — E, com uma expressão zangada, quase
já fosse demasiado crescido para andar ao colo. Como não sabia o que
fazer porque nunca ouvira um rapaz de seis anos falar com tamanha
embora aqui possa andar descalço. Não, descalço, não, disse Tali, há
demasiados bichos.
a t-shirt e ouviu-o falar sobre os animais que tinha visto na estrada, até
tão longe do pantanal, mas nada era estranho quando Juan estava por
perto.
assim tão má, que até podiam divertir-se, mas ela respondeu que não era
a escola que odiava: era a cidade. Por isso, Adolfo Reyes desistiu de
educar a filha mais nova no melhor liceu de Buenos Aires, como fizera
com Rosario, e deixou-a voltar para o Norte, com o seu templo e as suas
chorou quando Rosario, aos dezoito anos, foi para Inglaterra estudar. Ia,
tinha quinze anos e tinha passado todo o verão em Puerto Reyes. Ele
também se sentia muito triste. Tali, que estava de visita, ficou pasmada
quando voltou a ver Juan na frescura do terraço que dava para o rio.
Crescera a ver filhos de imigrantes altos e louros como aquele rapaz, os
del Valle. Durante os passeios que dava com o pai, às vezes almoçava
cadeira de vime e lhe beijou a face, todos esses homens e mulheres lhe
mão que treinara até, finalmente, desenhar Juan e lhe dar vida e dizer é
isto, era disto que eu andava à procura, este é o resultado perfeito. Juan
arder quando ele se deixou ficar a olhar para ela em silêncio. Queres ir
de lá. Juan disse que sim, mas que se tinham mudado para Buenos Aires
quando ele nasceu porque estava muito doente. Se calhar, ainda tens
café (ele não bebeu) e deu-lha: era o desenho de dois cães a ladrarem a
uma Lua com raios que mais pareciam de um Sol, mas era uma Lua
dois edifícios, duas torres baixas, uma para cada cão, e, à frente deles,
um lago ou uma lagoa de onde saía um bicho que podia ser uma lagosta
espanholas.
lhe Juan.
— Depende da interpretação.
tinha vestida. Não parecia doente, mas ela sabia que o que ele tinha era
Cerimónia enquanto não decidirem o que fazer com a menina. Para ela,
eles.
— Que triste.
— É triste, sim. Mas sabem-se algumas coisas sobre Nix. Era casada
com Érebo, que é a escuridão, que não é a mesma coisa que a noite,
Juan olhou para Tali e disse ele está a ler um livro de lendas.
para o menino, disse-lhe Tali. Pede à Karina, que tem imensos. Uma
descuidadas.
— Laurita, porque não levas o Gaspar para brincar um pouco
comer.
Não faz mal, a menina é de cá, está acostumada, vai tomar conta
— Com a Rosario? Juan, tens uma Cerimónia daqui a uns dias. Tens
de concentrar-te nisso.
Juan olhou para ela com os seus olhos furta-cores sob a luz
Tali olhou para ela com atenção: não estava inchada, não estava infetada.
não conseguir comunicar com ela com este ritual, é porque alguém me
banho, Tali pôs-se em bicos dos pés e beijou-o e empurrou-o até ao seu
brutal estar com Juan, mesmo quando ele tentava ser delicado, mas
agora nem sequer tentava; a Tali doeu-lhe abrir as pernas para receber o
profunda que não se parecia com o prazer. Ele ouvia-a sempre e parava:
olhos.
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esperar. Angá , é a primeira vez que chora por causa dela, pensou, mas
não lho disse porque Juan não tolerava bem a compaixão. Acariciou-lhe
o cabelo, tão fino e claro, não tinha ficado mais escuro com a idade
cuidado. Vais arranjar alguém alguma vez, quis saber ele, e Tali deitou-
Tali afastou-se para dar espaço a Juan quando este se meteu na sua
pôr o colchão lá e não num quarto e não fazia sentido nenhum discutir,
podia dormir onde quisesse. Juan tomou banho e tinha o ar distante que
ela conhecia bem e, por isso, ela não lhe tocou. Não tardaria a
uma das cirurgias da sua infância. A primeira vez que o viu nu ficou tão
impressionada, que quase o rejeitou; além do mais, ela era mais velha,
lembrava-se do cuidado que teve dessa vez; ele era virgem, mas, embora
Nesse verão, Tali foi iniciada na Ordem por Adolfo Reyes, seu pai, e
O medo não durou muito. Há anos que o pai lhe falava da Ordem e
própria Rosario, tão amiga sua, não lhe contou nada durante anos, e Tali
percebia porquê.
Pouco mais de um ano depois, Juan foi para Londres para ser
algum tempo, mas o desastre trouxe-o de novo. Tali não ficou zangada
quando soube que Rosario e ele estavam juntos, porque sabia que tinha
que a irritava.
Gaspar deu-lhe uma torrada. Tinha muita compota, mas Tali comeu-
Tali disse-lhe claro que sim e levou o leite e as bolachinhas dele para
fumar.
— Levantaste-te cedo?
Olhou-a nos olhos e ela viu uma fúria tão profunda, que sentiu
disse temos de arranjar esse templo. Vamos dar uma volta lá fora, disse
algum tempo no jardim de Tali, que era pequeno, mas tinha flores-da-
altos que iam dar à casa e trepavam pela parede até ao teto, dedaleiras de
cor púrpura que pareciam capuchos e algumas orquídeas penduradas no
tronco de um pessegueiro.
Tali seguiu Juan até ao templo, que ela mantinha fechado com um
ritual.
— Queres entrar?
— Agora não.
uma navalha do bolso de trás das calças de ganga. Cortou o dedo médio
deixar a porta aberta — calou-se por um instante e olhou Tali nos olhos.
sempre. Sabes bem que ainda não me deram o que realmente quero.
entrar na água.
uma infeção era muito perigosa. Ele deixou-se tratar e só lhe pediu que
Tali levou as mãos à cintura e teve de respirar fundo para não gritar.
da banheira.
ouço passos, mas outras vezes durmo muito sossegada, é só isso que eu
estúpida, percebes, a pensar que vão ficar e que vamos ficar juntos e
todas essas parvoíces. Até penso, vê bem como são as coisas, que a
velha para aquela cabeleira toda. Gaspar nem olhou para ela.
— Cortei-me lá fora.
— Com o quê?
— Dói?
— Mas isto não tem nada a ver — respondeu Juan, e Tali percebeu
coseram-no outra vez. Foi para lhe curarem o coração, mas acho que não
colo.
— É que o teu pai não tem cura! És muito bruto, estás a assustar a
Tali.
— Eu quero explicar-lhe.
Juan beijou Gaspar na testa e deu a mão a Tali para a tirar da casa de
banho, mas ela disse vão vocês, são os dois malucos. Eu quero mudar de
tremer.
Vamos com o meu carro, disse Tali, eu conduzo. A lagoa ficava perto
dali e era melhor para ir a banhos do que o rio, traiçoeiro naquela zona,
céu estava limpo, nem uma nuvem de chuva; talvez mais tarde, mas
atingi-los na cara. A mãe dele tinha morrido. Nada seria suficiente para
o consolar.
lado de fora.
prestes a ruir, havia uma corticeira em flor. Gaspar saiu do carro de mau
vermelhas.
— Deixa ver.
agachou-se para ficar à altura dele e olhá-lo nos olhos. A tua mãe
continua a gostar de ti, disse-lhe. Já não pode estar contigo, mas adora-te
Tali deixou, não olhou para o carro, não quis saber se Juan os estava a
ela ter feito chorar o filho. Nunca mais vai voltar, pois não?, perguntou-
lhe Gaspar, e Tali não tinha vontade de responder a essa pergunta, mas
disse-lhe o que devia dizer-lhe: que não, que não voltaria. Sabias que foi
coisas.
mão que Gaspar lhe estendeu. Uma vez no carro, continuou em silêncio,
mas, pelo menos, já olhava para a janela: antes disso, tinha a cabeça para
baixo. Juan não disse nada, mas acendeu um cigarro e fumou-o devagar,
finalmente. Já estava pronta para ouvir o que Juan lhe queria dizer.
Porque, apercebia-se agora, ele queria dizer-lhe qualquer coisa. Juan não
era um amante ocasional. Ela não era uma promesera do rio. Os dois
muito tempo.
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rádio de um carro estava ligada e ouvia-se um melancólico chamamé ,
uma mulher gorda passeava na margem com um cão preto que saltava
para cima dela fazendo-a rir, dois homens novos guardavam as canas e
algures. Tali reconheceu um homem que, havia dois meses, lhe pedira
senhora que lhe pedira que lhe lesse as cartas para saber da filha: Tali
ventre cheio de chumbo. Tali não mentia, não dava falsas esperanças. Os
pais e as mães de jovens desaparecidos durante a ditadura procuravam-
A mulher, agora, não estava a olhar para ela: brincava com uma menina.
céu estava negro, mas a mulher quis lá ir na mesma, sem recear os raios;
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rio. Ka’ aru , pensou, tinha de falar mais guarani, estava a perder a
Juan voltou e ela não o viu chegar pela praia; aproximou-se por trás,
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seres atendido. Nde tavy , caramba.
gargalo da garrafa.
amigo ou o seu amante, nem sequer o homem que a irritava e pelo qual
e tinha os suaves pelos dos braços eriçados como se, em vez de sol, um
por perto.
Eles querem que seja o meu herdeiro. Por ter herdado a minha
encurralado.
positivo.
resultado seja nulo, como sempre, basta esperar que tenha idade
suficiente para eu ocupar o corpo dele, e durante esses anos tenho a
Não a culpas.
seus deuses. O deus dela fala comigo. Para ela, foi sempre uma espécie
minha parte, mas não é suficiente, já não é, estou sozinho. Viu uma
presença ontem, e não foi uma qualquer. Suponho que agora vai
ajudar a abandonar-nos, para que ela não possa facilitar a tua saída e
débil palpitação.
cima dela. As pessoas que os rodeavam olharam para eles e ela sorriu,
fingindo que estavam a brincar. Juan estava pálido. Era verdade, então.
Anos antes, ela lembrava-se bem, não lhe custava quase nada gerar
energia para falar em segredo. Agora usava a última que lhe restava para
que ela não se sentisse mal, mas ela não podia permitir que o fizesse.
Tali culpou-se por nunca ter aprendido a fazê-lo também, o esforço era
todo dele. Abraçou-o para ele não perder o equilíbrio. Tali não queria
como se tivesse acabado de fazer uma corrida. Tali olhou para Gaspar,
que estava entretido a construir qualquer coisa com a areia suja, uma
penas. Usou uma toalha para enxugar o suor de Juan, pelo menos o da
cara e o do peito.
Juan olhou para ela e acomodou a cabeça na mala. Ainda não era
— Chama o Gaspar.
— Chama-o.
fores dormir, disse-lhe Juan. Agora vou ter com os rapazes. Não têm
improvisada por Tali até Gaspar pedir para ir à água mais uma vez, antes
cabeça fora e dentro de água. Ainda era um crawl elementar, mas fazia-o
bem; ainda não era capaz de se soltar durante muito tempo, mas fazia-o
bem.
Juan disse-lhe que sim, que estava contente. A mulher, que era nova,
ficara a tomar mate com Tali enquanto ele nadava com Gaspar; agora,
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oferecia-lhes chipá e bolos. Tu adoras isto, disse Juan, dando um chipá
defeito na garganta.
Juan sorriu-lhe.
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fazer uma chamameceada perto da estação balnear do rio. Vão lá estar
— E tu, queres?
— Quero.
a fazer.
que, sinceramente, não conhecia outros rapazes, mas que o filho sempre
tinha sido assim, alimentá-lo era a coisa mais fácil do mundo, até se
estava pesada, do outro lado do rio e atrás das árvores via-se o céu claro,
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encontrou-os e convidou-os a comer sopa paraguaya , cuidadosamente
olhavam para ela com olhos vermelhos; noutra altura, teria ido buscar
Juan, mas agora queria evitar todo o tipo de conflitos. Bebiam vinho,
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cantar uma zamba linda, receio que a noite também me deixe sem
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alma, a añera é a minha boa mágoa e a minha única companhia.
Quando voltou para junto de Juan, que estava sentado num tronco, a
fumar, ele disse-lhe: se cantasse isto noutro lado, era presa, tal como
todos nós, têm sorte, aqui. A rapariga é muito bonita, conhece-la? Tali
disse que ia cantar uma canção muito triste de um cantor que estava
doente; e não proferiu o nome do cantor, e Juan disse que devia estar
proibido. Não sei para que voltaste, se já começava a esquecer, não sei
se sabes, chorei quando partiste, dizia a canção, e que pena sentir que,
no fim, já nada resta deste amor. Juan disse-lhe que não sabia muito de
música, quem ouvia era a Rosario, mas aquela canção era do Daniel
Toro, está proibido, sim, e olha que são canções de amor. A Rosario
dizia que era uma estupidez proibi-lo porque todas as canções dele eram
— Sabes, não sei se as coisas estão mais calmas ou não. Sempre que
lhes leio as cartas, vejo morte, e mais morte, uma morte imensa. Sabes o
que vejo? Uma guerra. Não aqui, no mar, no frio. Não tenho coragem de
sopa que não se faz com água é deliciosa. Estava muito bem feita,
Rosario estava sempre a ouvir isto com a Betty e não quero que o Gaspar
se lembre.
tantos anos, já lhe eram indiferentes, a não ser quando o rio enchia. A
inundação não atingia a sua casa, construída no alto de uma colina, mas
Eu durmo no colchão esta noite. O teu filho precisa de ti, dorme com
ele.
fresca. Tali esperava-o no sofá da sala. Nenhum dos dois tinha sono.
no que puder.
tenho sorte.
vezes. Não quero morrer, Tali. Tenho medo. As pessoas como eu não
Juan levantou-se.
barba por fazer. Depois, levou-o pela mão para fora de casa.
pequeno para lho oferecer. Depois, acendeu três velas vermelhas. Havia
muitas mais no templo e tinha de ser ela a acendê-las todas, porque era a
guardiã.
— Não te mexas — disse. — Fica aí.
iluminado pelas velas fazia tremer o santo prateado, com a sua capa
— Ajoelha-te, Juan.
não gostava de cerimónias. Mas ela, sim, tal como a irmã, e confiava no
Que te invocam,
Ámen.
A luz fazia sorrir o santo e Tali devolveu-lhe o sorriso, mostrando-
onde teria de ir buscá-lo. Não queria aquele para Juan, estivera sob a
pretendia ficar para sempre, mas que agora iria dar. Era de um estilo
representação inexplicável.
centímetros e Tali foi precisa, para que não fosse demasiado profundo. A
santo, Juan não se mexeu nem respirou fundo nem fez barulho nenhum,
não fosse necessário, porque a incisão era muito pequena e, com sorte,
que tenho e o que mais aprecio. Vês a luz? Nunca arde assim, apaga-se
algumas gotas de sangue num prato com água que estava diante da
santuário.
porta, ninguém poderá aqui entrar para a vir buscar. Quero deixá-la
aqui.
caixa, disse claro que a guardo, e pô-la atrás do santo, sob a sua túnica
negra.
era ela a guardiã daquela relíquia, de que estava a guardá-la para algo ou
— O ombro? Não.
bem delas e apanham infeções, e não quero que ninguém me atire com
as culpas.
dificuldade.
um lençol leve e fora buscar uma ventoinha para ela. Tali olhou para o
relógio de parede. Seis da manhã. Muito cedo, mas não era capaz de
dormir mais. Foi até ao seu quarto e observou Juan e Gaspar a dormir.
pai com o braço por baixo da cintura dele. Tali, em bicos dos pés, foi
buscar a Polaroid que comprara em Asunción. A câmara era muito
pálidos, mais dourados. Juan não gostava de fotografias e, por isso, não
casa de banho para lhe lavar a cara e deixou-o sozinho a lavar os dentes.
bebê-lo frio. O rapaz estava sentado num banco alto, sem encosto, para
equilíbrio. Juan não lhe disse nada, não lhe pediu que se sentasse numa
cadeira, não conseguia falar com ele naquela manhã; tinha a cabeça a
— Onde vamos?
— Vamo-nos embora.
de vez em quando. Ou não: dali a uns anos, ele seria uma recordação
rapazes que tiravam aos sequestrados. Alguém poderia ficar com ele. As
braços abertos: era belo e não estava danificado, não muito, pelo menos.
seguro com ela. Não havia escapatória possível. Podia fantasiar com
pela Ordem, o poder continuava a ser seu e ele não possuía muitas
coisas. Renunciar é fácil quando se tem muito, pensou. Ele nunca teve
nada.
— Vai vestir-te.
bofetada na cara com a mão aberta, uma pancada que lhe revirou a cara
sem lhe tocar. Juan aproximou-se dele ignorando os seus gritos, sentou-o
com um empurrão e olhou para a marca vermelha na face e para o lábio
transpirar. Não sejas fraco, não aconteceu nada. Gaspar tentou dizer
mão aberta até o obrigar a deixar de chorar. Vai trocar de roupa, repetiu,
é a última vez que te digo isto. Gaspar obedeceu, foi a correr até ao
O que não podia suportar era o sol daquela manhã, o cansaço, a dor
— Eu faço isso — disse Juan, e Gaspar olhou para ele com os olhos
secos. Esticou o pé para o pai o ajudar. Tinha o lábio inchado, mas não
Juan não lhe respondeu. Com uma tesoura que trouxera da cozinha,
Tocou nas costas e lembrou-se de que tinha de lavar a ferida onde Tali
Tantos ossos. Como os ossos do Outro Lugar em que Juan não queria
casa de banho pôr álcool na ferida; não ardeu. Tentou não se olhar ao
para que Tali a usasse. Esperou por Gaspar ao sol, no pátio da casa.
Juan olhou em seu redor. O verde era atroz, belo, tantos tons que era
à sombra de um salgueiro.
— Um pouco, mas como não levou com o sol de chapa, não está a
arder.
— Se olhar para o sol, fico com dores de cabeça. Aparecem aquelas
aguardava pela sua vez. Passou junto deles olhando apenas, fingindo
não pensar que estava a fugir, apenas o suficiente para dar a entender
Estão enterrados aqui? Não, só as põem aqui para nos lembrarmos deles,
km havia uma cruz enorme, branca, decorada com papel crepe cor-de-
com a decoração intacta, ainda não desbotada pelo calor ou pela chuva.
parecia de onde ele a olhava, ajoelhado no chão por não conseguir estar
lhe perguntar a quem teria de ligar. Não sabia o que fazer dali para a
não queria saber do que faziam as pessoas normais. Nem Gaspar nem
— Porque não?
pescoço.
— E aquilo, o que é?
Juan olhou para onde apontava Gaspar, que voltara para o assento da
— É um santuário.
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Gauchito , porque faltavam os típicos panos vermelhos.
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Era São Güesito .
Quem é, quem é, insistia Gaspar. É um rapaz da tua idade, mais ou
menos. Foi morto por uns bêbedos. Porquê, era mau? Os bêbedos, sim;
ele, não. Vivia na rua, era um rapaz pobre. Na rua, não; na verdade,
pensou Juan, não posso explicar-lhe que o Güesito foi violado antes de o
uma hora e teria tempo para falar com o filho no caminho. Era mais fácil
depois.
— Senhoras, não.
exatamente o que lhe estava a perguntar. Olhou para ele e viu que, no
ombro do rapaz — tirara a t-shirt por causa do calor —, crescia uma
escura.
— E então?
— Sim.
— Tiveste medo?
vezes, Juan tinha de obrigá-lo a esticar os dedos e não era pouca a força
continuar assim tão nervoso, disse uma vez a Rosario, e ela, furiosa,
podia ser tão bruto, o nosso filho não vai morrer. Tudo isso parecia tão
nos lençóis.
— Dá-me a tua mão para eu jurar e veres que não te estou a mentir.
teu grito? Mas essa voz já não é a tua voz, a da segunda vez. Isto é a
hotel e o senhor do rio, mas agora já não. Não te podem fazer nada. Não
— Sim.
— E eu também?
— Quando me apetecer?
— Claro.
— Aqui, no olho.
amplificado. E as náuseas.
O pior não era isso, para ele. O pior era não poder tirar a dor a
Gaspar. As únicas dores que podia tirar eram as que ele próprio
provocava.
depois, e Juan parou o caro na berma da estrada e abriu a porta para que
lugar fresco para que o rapaz pudesse dormir; se não, sob aquela luz do
que não reparou no carro que parou ao pé deles. Ouviu a voz antes de se
alarmada perante uma situação estranha. Porém, pensou Juan, não era o
grande negócio.
Tratou-o por tu, outro bom sinal. Juan viu o caminho de terra: até
«Mercearia Karlen».
O desconhecido assentiu.
O carro parecia bastante sujo: estava a viajar. A camisa bege que tinha
loja tinha um alpendre com uma mesa comprida que, naquele momento,
cama do filho, ela lha ofereceria com todo o gosto. Não será mau-
conheço muita gente capaz de curar bem isso. Pois, tem razão, disse a
Venham comigo. A minha mãe tinha dores assim, mas nunca as vira
num rapaz. Terá apanhado uma insolação? Pode ser, disse Juan. O tom
da mulher era vagamente crítico, um homem que não sabe cuidar bem
como se Juan percebesse o que ela estava a dizer. O chão da casa das
barulho.
portadas de madeira.
um segundo, disse a mulher. Não sei como lhe agradecer, disse Juan, e a
deitasse de lado. Por experiência própria, sabia que era melhor e, além
várias rodelas de batatas cortadas muito finas e deu-as a Juan, que as pôs
com a boca aberta e os olhos tapados pelo lenço gelado, Juan pensou em
meu pai estarem na ilha, assim, temos lugar para ele, se não, eu
dormir uma sesta de umas duas horas, mas tenho um sono levezinho.
sentiu outra mais recente, mas nenhuma dirigida a ele ou ao filho. O que
mate cozido» e Juan sorriu: o homem que falava era realmente feio,
tinha a cara marcada por alguma doença infantil e era gorducho, baixote,
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fazia-lhe lembrar as imagens estereotipadas dos duendes da sesta .
apetecia beber, como se fosse um empregado. O que não batia certo com
os seus modos, a pronúncia do Barrio Norte de Buenos Aires, a
— Trabalhas aqui?
— Passei uns dias com eles e, como não aceitaram dinheiro, decidi
lagoa.
fora parar àquela mercearia. Disse que era fotógrafo, que estava a fazer
um bailarico que fotografara apenas duas noites antes: foi para lá com os
Andrés sobressaltou-se.
Juan sabia que lhe devia uma explicação e, de resto, era a única
semelhante, espelhada.
— São ricos. Podia ter vindo de avião, mas preferi fazer a viagem de
falador — e, por isso, disse-lhe que era viúvo e que era a primeira vez
que tinha de comer qualquer coisa. Depois, anunciou que também iria
quiser.
Andrés perguntou porque é que os sogros dele eram ricos e Juan
Andrés disse que sim, trazendo outra de dentro da loja. Também trouxe
conduzir, disse. Pensava que iam ficar mais tempo. Não, amanhã tenho
de estar em Posadas.
mais depois de conhecer a história dele, e era isso que ia fazer quando os
vai.
coisa.
seguinte.
— Olha que não. Nem imaginas o que se fode por cá. No bailarico,
na outra noite, fodi mais do que durante o tempo todo que passei na
Juan riu-se.
sangue seria mais adequada, não é?, mas não, preferem usar água suja.
— Para que serve sempre esse tipo de coisas: para fazer mal a
são todos meio bruxos. Vou ver como está o meu filho.
Conseguiu fazê-lo sem acordar o filho. Saiu tentando não fazer barulho.
apreciar os lugares onde as pessoas viviam. Juan esteve quase para lhe
ouviu o que o fotógrafo tinha para lhe dizer sobre os canais e o Palácio
muito calor. Esperou pela reação do fotógrafo: nem toda a gente ficava
lhe tudo: que nascera com um defeito cardíaco muito grave. E que o
tinham operado várias vezes quando era pequeno. E outra vez durante a
— Não pareces doente. Estás muito pálido, mas és tão louro! E tens
um corpo incrível, não pareces, sei lá, fraco. A sério que estás mal? Não
— Serviu de alguma coisa, sim. Mas nunca me vou curar. É por isso
que não posso beber a tua Coca-Cola, pelo menos não agora, porque
com uma criança, sozinho. A cicatriz das costelas também foi por causa
do coração?
— Tudo te vem.
daqui a um bocado.
agarrou pelas ancas como se quisesse evitar que caísse em cima dele.
dói-me sempre antes de chover. Jura que não te vai acontecer nada, disse
fotógrafo disse sim com a cabeça e, quando mudou de ritmo, Juan sentiu
Não precisou de lhe pedir que engolisse tudo até à última gota, Andrés
podia usar para lhe fazer mal, nada era mais conveniente do que o sémen
e Juan não queria deixar restos em lado nenhum. Foi até à porta da
ver com um encontro como o que acabara de ter com o fotógrafo, mas
se lavar. Era uma casa de banho externa, mas aparentemente tinha uma
secou-as nas calças. Juan sentiu nas próprias mãos a potência da energia
só voltam amanhã.
Juan não lhe respondeu. Olhou para as horas: ainda só eram duas da
de toranja. Podes beber isto, não me digas que não. Juan disse-lhe que
olhava para ele com os olhos húmidos. Juan pensou que fora egoísta, que
devia tê-lo fodido no balcão da mercearia até o fazer gritar, mas estava
do que assustado.
— Como te sentes?
— Tenho fome.
— Pior ainda.
— Com esse corpo e essa cara, não podes detestar fotografias. O que
que enfiava as mãos sob a camisa escura e olhava para a câmara com
pedir-lhe que fizessem outra coisa, outra pose, Juan disse-lhe nem
— Vamos passar duas semanas lá. A casa do meu sogro é muito fácil
do meu sogro.
— Vou a Posadas ter contigo. Estou louco por ti. A sério que vou.
e gritou não sei qual é o teu apelido. Juan, que ia devagar, pisou o travão.
sob o sol: Juan apercebeu-se de que ele era mesmo jovem. Vinte e um,
vinte e dois anos. Não lhe perguntara a idade. Não lhe interessava.
carro.
desatada: nunca sentira nada assim. Até o tinha afastado do filho, que
te», e não acreditava nele quando lhe dizia que os métodos habituais não
eram suficientes, que era preciso uma reinvenção da proteção e que ele
Juan, foi como um ataque direto. Rosario continuava: o que é que ladra e
tem o focinho frio, o que é que tem bigodes e arranha, o que é que tem
pequeno. Pediu ao motorista para parar e saiu do carro sem dizer nada a
instintivo, eram como traças atraídas pela luz, mas Juan não conseguia
a melhorar a proteção, não posso acreditar que isto te afete assim tanto,
percetível que estava a falhar. Se quisesse saber de que mais era capaz
da tarde.
Faltava uma hora, pelo menos: era janeiro. Juan comprou dois
ramo peganhento. Juan viu-o a olhar para uma flor cortada, caída no
passeio, uma flor que não era de ipê; o rapaz pousou o ramo
coroa e as feridas de Cristo, como rezava uma das lendas que lhe deu o
— Há mais?
— Claro que há, o que é que pensavas, que era a única do mundo?
— É estranha.
— São maus, sim, mas aqui o problema era que ela era espanhola.
— É verdade, mas no início, não. Esse capitão não queria que a filha
— O namorado? A sério?
Juan olhou para o sol, que estava prestes a tocar no rio. Não via
— Sim.
Juan. Não era a primeira vez que o fazia. Quando dormiam juntos, por
batidas. Ou dava com ele de cabeça apoiada nas costelas, a ouvir. O meu
sol, olha para as cores do céu. Gaspar prestou atenção com os olhos
também.
— O que é medíocre?
fazer.
Gaspar foi a correr para o carro com a flor na mão, que já tinha a
mas Juan percorreu-os com inquietação. Não era fácil caminhar com
Gaspar, que estava de mau humor por ter sido acordado de um sono
colo, mas o rapaz já era pesado e ele não podia fazer esforços. Não tinha
em quando, e mesmo a correr. Não devia ser fácil, pensou Juan, tentar
espera aqui por mim; se te mexeres, eu percebo e não vai ser bom para
podia dormir mais tarde. Ainda dispunham de várias horas. Eram duas
da madrugada.
aparentemente, Juan era poderoso, mas tinha pouca força física real.
amarrar-lhe as mãos, mesmo assim? Juan pensou que sim. Não podia
agir depressa, não lhe restava mais nenhum par de pilhas. Empurrou a
mão e procurou a artéria carótida, que latejava com força, dilatada pela
Juan percebeu que já não estava a dormir apenas por causa da bebedeira:
tapar a boca, usou uma meia, que também trazia consigo, e depois
amarrou-lhe os pés e as mãos com uma corda de nylon, tão fácil de
uma faca.
de uma pequena cómoda e levou duas facas e uma tesoura. Também lhe
podia funcionar noutros espaços, mas nunca com tanta eficácia como
também o candelabro.
entanto, essa não seria a sua vida: já estava decidido que o seu filho não
faria parte da Ordem, pelo menos enquanto ele o pudesse evitar. Não
tempo, forças ou ânimo para lhe aquecer o leite. Além disso, Juan, num
Betty, a prima de Rosario, que vivia perto deles com a filha, outra
criança sagrada da Ordem, tocou à sua porta uma manhã e ele berrou-
lugares ditados por algum jogo, mas, pelo contrário, viu que obedecia à
número cinco, que vira de olhos fechados quando estava com Andrés.
selo: era simples, os quatro círculos unidos por linhas num desenho
pela luz amarela. Bem, pensou Juan. Faltava o triângulo, o lugar onde se
mesmo que não estivesse a usar roupa branca, nem capa, nem incenso, e
ocupasse o seu corpo. Era muito mais eficaz do que qualquer espada ou
conjuro.
— Gaspar — disse em voz baixa —, vem para aqui, para o meu lado.
Gaspar disse que sim e Juan sentiu que percebia. O portal chamava-o
Os passos do Quinto não tinham som, mas Juan sentiu-os. Desta vez,
usava uma forma humana. Agora, teria de ser rápido e concreto. Quanto
mais tempo ali passasse o demónio, mais difícil seria fechar a porta.
Juan.
assustado era Juan. Gaspar via o demónio, era capaz de vê-lo com total
elongação. Eram cinzentos, como todo o corpo nu, que parecia coberto
por barro seco. Juan não conseguia ver-lhe a cara: a luz das velas não
chegava tão alto. Mas não era preciso vê-la para sentir o seu enfado:
relação ao que é secreto e está escondido, era sua obrigação: não sabia
mentir.
deixou cair algo sobre o triângulo. Gotas de sangue. Devia trazer com
ele qualquer coisa que Juan não conseguia ver. Pediu-lhe respostas
seu corpo. Perguntava, numa língua que não conseguia traduzir, que
Juan não conhecia, mas compreendia, «porquê». Porque é que o tinha
sempre, mas nunca conseguiam. Queria que o sangue do que quer que
fosse que trazia com ele tocasse em Juan. Por não ser capaz de o fazer,
rápida e clara.
músculos do seu corpo estivessem tensos até à dor. Ouviu o crepitar das
Juan quis agradecer-lhe por não ter descarregado a sua ira nele, mas era
O tremor que lhe percorreu o corpo foi tão violento, que receou
porque ainda era demasiado cedo; nem sequer conseguia ver o círculo
naquele momento, sem as velas e com uma nuvem a tapar a luz da Lua.
Seja como for, Gaspar não saiu de junto dele, não lhe largou o braço, não
do demónio.
Percebia. Ela prometera que o seguiria, que faria qualquer coisa por
ele. Não lho dissera Tali há dias? Eu não faria qualquer coisa por ti.
Sempre juntos, jurou Rosario. Ela sabia que Juan pertencia à Escuridão.
mesmo destino que ele. Mas, meu amor, sua tonta, lá já não seremos eu
de lhe ter falado dela tantas vezes, apesar de a ter visto comer tantas
giz? Nas suas cartas? A sua morte nada teria a ver com a Ordem, então?
sem se mexer. Jamais lhe largou o braço. Devia estar com uma
e pegou-lhe na mão.
cobertas de cera. Passou a noite tão quieto, pensou Juan, que nem se
pele não estava queimada por baixo, nem sequer muito irritada. Gaspar
morrer, mas vê-lo só era possível para quem tivesse a vista educada. Se a
esconder algo assim? Se Gaspar fosse médium, a sua vida seria curta e
si sós, mas não demasiado. Os médiuns que resistiam, como ele, eram
excecionais.
de sono. Mas o seu cansaço era abismal. Foi até à casa de banho. Tomou
o mesmo que os outros. Para ele, a sua cara era de cansaço e derrota, e
cansado, apesar das horas dormidas, que era capaz de ouvir as cores.
maluco.
O pestanejar e a dúvida.
sonhos.
comigo.
o ouvia, também pensava. Está com os que te falam. Não era uma
mentira: mas ele podia ter interpretado mal. Eram muitos os que lhe
Escuridão? Quem seriam os outros que lhe falavam? Pertence aos que te
falam, essa era a tradução mais exata das palavras do demónio. Era um
magoado, cansado, de luto. Por andar louco. E por ter pensado, com
arrogância, que Rosario seria capaz de fazer tal sacrifício por ele.
Tapou a cara com as mãos. Gaspar falava agora do demónio que vira.
Um coiso que flutuava. E ele estava sem forças para lhe eliminar a
momento.
humedecer-lhe as mãos.
— Não me lembro.
silêncio. Talvez as palavras que julgou ouvir fossem apenas fruto da sua
imaginação.
com a t-shirt. Algumas pessoas olharam para ele com curiosidade, mas
nos olhos quando ele fez o pedido: sentia pudor de o ver chorar. Juan
pediu chipá e um submarino para Gaspar. Não pediu nada para si
pão.
dos dedos azuis. De certeza que os seus lábios também estavam azuis.
oxigénio, e depressa.
segundo e disse-lhe:
vazio dos lençóis, para que ambos o pudessem ver. E, então, fez algo
estranho; pelo menos, algo que nunca fizera antes: observou atentamente
voz de Gaspar: o rapaz percebia, fazia o que devia ser feito, sustinha-o.
rapaz o incomodaria, mas não foi assim: o contacto aliviou-o. Não quero
vivas; Rosario passava muito tempo na casa de banho, podia passar uma
Juan não estranhou a intuição do filho, mas teve pena: não desejava que
reconhecesse que não sabia lidar com o dinheiro, nem compreendia bem
pessoas comuns. Como, sem ir mais longe, o seu irmão mais velho, que
trabalhara numa fábrica. Nos últimos meses, agora que Rosario já não
estava presente, ele, que jamais pusera os pés num banco, tomou
que podia usá-lo quando quisesse e para que servia. Pediu que lhe
trouxessem dinheiro uma vez por semana e que quem o fizesse fossem
sua última cirurgia. Era o ar, quente, mas insolitamente leve, tão
dos fundos. Gaspar sentou-se a seu lado: a ver arder, com os olhos secos
Nova especialmente elegantes com quase cem anos que Rosario nunca
ele. Isso era estranho: na Escuridão, podia alcançá-la. Devia poder. Mas
apanhar, seria muito fácil obter alguma coisa de Rosario. Muitas das
vingança?
— É um parque?
para o comboio.
— Um comboio?
Era a sua maneira de lhe dizer que era muito difícil para ele
parque das cataratas à uma da tarde. Era uma boa hora porque, enquanto
passadiço era uma comprida ponte de madeira sobre o rio, sem escadas.
selva escura, a água imensa e veloz. Juan pensou que, a dada altura,
vermelha, como lava fria, como jatos de sangue liquefeito. Havia muita
água, no entanto: apenas dois anos antes, uma seca deixara a descoberto
os leitos secos, encarnados; uma ou outra catarata ainda caía, fina como
leito do rio, mas ele, embora tivesse a certeza de que os militares eram
muito bem capazes de usar as cataratas para se desfazerem de corpos —
tendo em conta, para mais, que o Parque Nacional era guardado por
cruzado com poucos turistas, Juan pegou em Gaspar ao colo, pois o filho
cavalitas, mas não ao colo. Porém, Gaspar ficava perigosamente alto nos
seus braços e estava agitado. Olhava para a água que passava sob o
— Tens medo?
— Põe-me no chão!
O passadiço oscilava um pouco, mas era óbvio que Gaspar não tinha
— O que foi?
um diabo.
grande.
lábios.
cara, que Juan viu quatro olhos azuis carregados de medo, mas também
de determinação.
Então, era isso que pensava. Podia ser, claro, um medo alimentado
por aqueles dias confusos, pelo luto insano que atravessava, porque, para
apenas porque o rapaz estava a tremer, mas para evitar que desatasse a
correr, que fugisse dele. Gaspar debateu-se nos seus braços. Juan
enorme e a água cai e faz barulho. É lindo. Foi por isso que te trouxe,
atiraria a um monstro para ele te fazer mal. Jamais. Olha para aquelas
pessoas que vão para lá, parecem-te assustadas? Não, porque não há
monstro nenhum.
O rapaz relaxou um pouco os punhos, que estavam cerrados, e
— Há um arco-íris?
Voltou a abraçar Gaspar, que desta vez não resistiu. Não lhe falou de
Acariciou-lhe a nuca.
Não há problema.
Juan viu o filho a limpar a cara molhada com a t-shirt, num gesto que
copiara dele.
aquele barulho que obrigava toda a gente a gritar em vez de falar. Não o
voltou a rir-se por terem ficado todos ensopados e quis saber porque é
que os avós não tinham construído uma casa lá. Não se pode, respondeu
Estado? É de todos, não pode ser comprado por uma família particular, é
isso que quer dizer. Mas fizeram uma casa perto de lá. Não te lembras
dela? Sim, disse Gaspar, mas só mais ou menos. Juan ficava admirado
diferente em relação aos pais? É uma casa muito bonita, continuou Juan.
E é tua. Vai ser tua, depois de os avós morrerem. A tua mãe não tinha
irmãos.
tenho a ti.
decidiu qual seria o lugar onde construiria a casa dos seus sonhos, na
selva que amava, onde caçava e se perdia. Seria sobre o Paraná, a trinta
que fosse dar ao rio pairando em cima das árvores a modo de miradouro
selva não voltar, feroz, a cobrir tudo. A irmã pediu uma estufa e ele deu-
lhe uma. Lembrava-se da mulher, Amanda, que morrera tão nova, a rir
glorioso como Amanda pudesse ter dado à luz Jorge e Mercedes, os seus
Adolfo costumava dizer que Mercedes não era bonita e muito menos
charmosa, mas tinha uma espécie de loucura que raiava a maldade e que
seus com sangue e dinheiro. Por volta de 1945, Santiago quase se mudou
viscachas, passarada.
Puerto Reyes, mas tiveram sorte: aos Bradford só tiraram uma fazenda
grito para levar o mensú, o trabalhador da erva, até ao seu limite físico.
como o pai: whisky, aguardente de cana, vinho, cada vez mais e logo de
guaranis, amuletos, talismãs; era devoto de São Morte. A sua irmã Nora
veterinários do país. Ela foi viver para França, casou e nunca mais
Tali, a filha da sua amante de Corrientes, a mulher mais bela que já vira
na vida, meio indígena, meio italiana. Passava todo o tempo que podia
com ela: sonhava com ela nas suas noites de bebedeira. Embebedavam-
tentava ir à Europa uma vez por ano, tinha reuniões secretas e intensas
lhe dissesse certa noite, agitado e enlouquecido, aos gritos, que julgava
continente. Que tinha a certeza; que o seu poder iria florescer. Que
deviam ajudá-lo, tomar conta dele, criá-lo. Que não podiam deixar que
morresse. Vai morrer se ficar com a família dele, Mercedes, são uns
línguas, mitologia e arte. Não queria acreditar porque sonhava ser ela a
não parecia ter aptidão nenhuma, mas as aptidões também podiam ser
estava bêbedo, mas ainda lhe faltava muito para se tornar desagradável.
uns inúteis.
outra vez, como sucedia sempre que ele conseguia eludi-los. Mercedes
usava óculos escuros mesmo dentro de casa, mas tirava-os sempre para
— Claro.
que a coleção se estava a arruinar ali na selva, que os quadros deviam ser
gritar-lhe papá, é uma vergonha que esteja aqui, toda a obra de Cándido
respondia então que mo venham cá tirar, puta que os pariu, não o dou
sorriso: dava-se bem com o pai, apesar das discussões, apesar de ele ser
carrinhos.
tinham feito para erradicar qualquer coisa que fizesse lembrar Rosario.
lençóis brancos que ela adorava, nem nenhum dos objetos e adornos do
casada, era despojada, não pintava o cabelo. Podia enganar outros, mas
limpo, que parecia aberta; deixava ver o jardim. Das outras janelas do
maneira que lhe fazia falta, a mais simples, entretê-lo, pô-lo a brincar,
passear com ele. Adolfo era capaz de tomar conta do neto, claro, mas
Nem ela lhe contava, nem a ele lhe passara pela cabeça perguntar.
saberiam que Gaspar podia possuir dons naturais? Agora que Gaspar
tinha manifestado a sua capacidade de ver, era uma questão de tempo até
se desencadear tudo.
anos que trabalhava em Puerto Reyes e Juan confiava nela. Era discreta e
eficiente, e tinha uma enorme capacidade para fingir que não percebia o
que acontecia naquela casa, para fazer crer que nada entendia dos
Haveria um certo tremor na sua voz quando disse: sim, senhor? Devia
estar muito nervosa por ter de servi-lo depois da morte de Rosario, que
nome.
— Seguiste-me?
fruta e pão.
— Nem sequer apagaste os vestígios.
— Há alguma consequência?
— O guarda morreu.
outros sabiam de alguma coisa. Stephen disse que não, que eles nunca
segredo. Era ele que fazia todo o esforço, contrariamente ao que sucedia
com Tali.
Eu conheço os ingleses?
Brasil, que o deixes com o meu irmão. Ainda não encontrei o selo para
o proteger.
Não vais morrer amanhã. E não posso fazer isso. Irão atrás dele. Já
estabilizado, para outro de Buenos Aires. Teve de esperar seis meses até
daqui primeiro.
isso o entretinha, que sabia nadar, mas que o levasse apenas à piscina.
roupa dele está toda naquela mala ali, a que está em cima do cadeirão.
Come de tudo. Se lhe doer a cabeça, dá-lhe uma aspirina e tenta obrigá-
as borboletas, se calhar tem medo delas, mas acho que não. Vai adorar o
jardim zoológico.
encontro as garrafas.
— E pega no barco?
Tenham cuidado para ele não ser picado por nada. Não te preocupes. O
crianças.
Gaspar olhou para ele com ar desconfiado, mas disse que sim com a
cabeça. E enquanto esperas por mim, ela vai tomar conta de ti. Lembras-
te dela? Gaspar disse que sim com a cabeça outra vez. Não tenhas medo:
volto daqui a dois dias. Não é muito tempo?, perguntou Gaspar. Não,
admirado por Gaspar não perguntar onde é que ele ia, que trabalho tinha
cavalo muito pesado, escuro. Estendeu a mão a Gaspar, que não lha deu
filho mais velho de Florence, a líder da Ordem. Fora criado a meias pelo
Vão testar o rapaz como fizeram nas últimas vezes, mas agora não
a duvidar do amor que professas pelo teu filho e começo a acreditar que
rapaz. Não é verdade que só querias saber se ele conseguia vê-lo. Tens
outras maneiras de saber isso. Talvez estejas a ficar louco. Porque jogas
a este jogo?
fazer mais testes do que nunca para verem se encontram outro médium,
não se ter manifestado, acham que a tua morte está iminente e não
querem perder a comunicação. O Gaspar é demasiado pequeno para se
acontecerá porque lhes vamos ocultar as aptidões dele, darão início aos
Não quero que continues a falar disto. Jamais lhes entregarei o meu
de êxito, no teu caso, são muito altas. E ele não seria entregue: usarias
Rosario.
quando ainda era mais pequeno do que o Gaspar. Usaríamos ambos até
o teu corpo não dar mais de si. Isto podia ter sido evitado se o rapaz
não existisse. Mas o rapaz existe e é teu filho. E se não quiseres usar o
los. E fazer com que o Ritual falhe quando chegar o momento, também.
do Ritual.
Prometes?
para que o Ritual não funcione é que tu não o queiras fazer. Que ajas
Não suporto estar tão desprotegido, não suporto sentir esta falta de
poder tão evidente, não suporto saber que estão errados e que insistem
nesta veneração.
sabes isso.
A minha mãe disse-me, uma vez, que o teu poder era tão grande
uma coisa mais forte. Bradford não discutiu e deu-lhe a dose mais alta
podia andar, caminhar na Escuridão era muito difícil, era como escalar e
tivesse cor e também era clara uma presença entre as árvores, à espera,
Acordou agitado, mas não confuso: Puerto Reyes era a sua casa mais
do que qualquer outro lugar, mesmo que agora só a visitasse uma vez
por ano. Tomou um duche rápido e, sob a água, entre o vapor, pensou
em Gaspar. Estava bem, sentiu. Perto e bem. Vestiu-se para ir ter com
Stephen e Tali e, quando saiu para o corredor, sentiu-se zonzo por causa
do calor. Era quase sólido. Não estava ninguém na casa, pelo que
mesma escada de madeira por onde descia agora tinha-o levado, quando
era pequeno, até ao Lugar de Poder. O jardim onde Tali o beijou pela
primeira vez e ele tentou conter o seu assombro e a sua alegria não
passadiço e ao rio.
túnel fora desativado após uma inundação, estava demasiado perto do rio
e ruiu, exceto o primeiro troço, o que ficava mais perto de Puerto Reyes:
corpos, justificava-se ela. Não era verdade. A Escuridão não pedia nada,
Lá, perto do Lugar de Poder, era capaz de falar com eles em voz alta,
assim. Agora era como um convidado a quem tinham dado a chave para
unhas de ouro.
porque o que vinha com a noite era divino, embora, tinha a certeza, não
fosse sagrado. Stephen, o único de toda a Ordem por quem Tali sentia
mágica a Juan. Quer deixar de fazer invocações, mas diz que não pode
lhe que era mentira. Não quer parar, disse-lhe. Se assim o desejasse,
desculpas. Não sei, nem nunca saberei, o que é estar em contacto com
esse poder, mas sei que não é possível desprezá-lo. Ninguém poderia
fazê-lo. Ele também não. Não percebo, nem nunca perceberei, como
como Tali.
pouco, sim. Vai piorar à medida que for diminuindo o poder. Tali quis
parece, disse Stephen. Creio que há um ciclo de poder e que esse ciclo
como ele e, por isso, não sabemos o que tem, nem porquê.
caminhava com passos tão claros, que era possível sentir o roçar de cada
fibra de erva nos seus pés nus, já não era exatamente um homem.
Era um arfar, pensou Tali desta vez, como de cães sufocados por
luzes das velas e, enquanto crescia, elevava Juan, que flutuava, suspenso
numa negrura de asas. Os escribas tomavam notas, Tali via-os, mas ela
não ouvia nada, nada a não ser o arfar e aquele adejar. Que ouviriam os
que ouviam a voz da Escuridão? Uma vez, Juan disse-lhe que não
ouviam nada, que era pura sugestão, que o que escreviam era uma
coisa realmente, disse-lhe, não era nada de bom. Tali tentou encontrar
lábios. Para onde nos levam?, gritava, mas os seus gritos eram abafados
fome e nunca rejeitava o que lhe era oferecido. Os que foram entregues à
fizera. Ele, com desprezo, disse-lhe que, seja como for, iam morrer na
mesma. Que bicho vos mordeu, para defenderem tanto esta canalha?
honra para eles. Como o homem vestido com um fato preto, apesar do
das primeiras dentadas salpicou Juan, mas ele já não se mexia. Não se
como um teto de trevas ou uma garganta sem fundo, e parecia ter olhos e
poder escolher.
geral, marcava muito poucos. Desta vez, escolheu uma rapariga magra,
Iniciados uivantes, uma rapariga que lhe pedia por favor com os lábios,
de pé, uma rapariga que não era uma loba nem uma cadela submissa:
uma rapariga que parecia uma serpente, com os seus olhos pequenos e o
passos lentos e usou três unhas douradas para lhe rasgar as costas com
caminho das velas, ainda tinha as mãos negras. Era proibido segui-lo.
Tali ia com eles porque fora requerida pelo médium, e a ele eram-lhe
da Cerimónia.
Tali não participava nos rituais finais. Correu, com o cabelo solto e o
Juan. Sentia mais do que nunca falta de Rosario, falta da sua integridade
e da sua sensatez.
coração continuava a bater. Há anos que não acontecia isso, pensou Tali.
Tali apoiou-lhe uma mão nas costas, sabia que estava esgotado e
percebia que não quisesse dormir naquele quarto tão triste, com a luz
estava inconsciente.
Tali não tinha sono. Bradford tratou-a com desprezo, como sempre.
Para Bradford, ela era o produto das indiscrições de Adolfo com uma
bruxa de aldeia. Tali preparara, mentalmente, uma combinação potente
trabalho, breve mas eficaz. Juan e Stephen não podiam saber, porque
ambos sempre lhe tinham dito para não fazer magia apenas por raiva ou
desgosto. Quem eram eles para a julgar, que nervos, com as coisas que
Completara trinta anos. Quando lhe diziam que era bela, referiam-se à
se…». Sentia que estava a ficar velha, que precisava de fazer qualquer
estrias das ancas, fruto dos seus verões de bicicleta, que lhe
inteiro assim. Seja como for, não se podia comparar com as horas
sobretudo assustada, até que a própria Rosario a foi buscar e lhe pediu
rapaz, por uma não tão estranha coincidência, estava a arder em febre e
se a tivessem matado por causa disso? Juan não conseguia nem queria
perceber a política da Ordem, nem a profundidade das ambições de
para lhe beijar a testa e ele perguntou-lhe em voz baixa quanto tempo
passara. Um dia, mais ou menos, respondeu ela. Volto já, disse, e abriu a
que trazia sob a pele magra do braço, tão pequeno que parecia uma
ao Santo quem era a Escuridão, fez a pergunta de noite, havia anos, entre
vinho e velas, e o Santo respondeu através das cartas: uma e outra vez
loucura.
Bardford saiu do quarto e indicou a Tali com a cabeça que podia entrar.
elétrodos e o resto. Quando olhou para ela, já tinha menos derrames nos
e ele respondeu-lhe que Bradford dissera que não, mas que ele não
lhe. Juan apoiou os pés no chão e as mãos nos ombros de Tali. Quando
chão; caso contrário, Tali não se teria atrevido a caminhar com ele, não
podia descer escadas. Deixou que se apoiasse nela o máximo que a sua
dar ao pátio não se cruzaram com ninguém, e lá fora também não, perto
perguntou:
— Já testaram o Gaspar?
nada, mas ao Stephen sim. Diz que não passou nenhuma das sete provas.
Juan olhou para ela com um sorriso que o fazia parecer muito novo,
dos muitos que Mercedes mandara levar para o jardim para substituir os
Juan a seu lado, mas manteve o tronco direito para poder respirar
melhor. O jardim estava muito escuro. Para que o ar-condicionado
— Não sabes a força que o miúdo tem — disse Tali. Juan não
pequeno?
— Bem, também não foi um parto difícil. Mas custou. Fugia para
todo o lado!
Juan passou a mão pela testa. Não estava a transpirar, apesar do calor
húmido e ameaçador.
para sempre. Preciso de saber se consegues fazer isso. Tali disse que
podia tentar, mas também lhe explicou que era muito doloroso tentar
como se lhes faltasse força, como se uma mão os apagasse. Manter esse
estado durante muito tempo era possível, mas trabalhoso, e, julgava Tali,
seria pernicioso para Gaspar. E letal para ela e para Stephen, se fossem
descobertos.
Stephen e Tali.
seis anos. Não quero reviver essas discussões. Não vamos discutir. A
— Claro que não. Testarão o rapaz uma vez por ano ou quando
te podes negar.
a ajudar.
Stephen suspirou.
— Vais ajudá-la?
acompanhado por Stephen, estava muito sério, até ver o pai, e então
correu e subiu para cima do cadeirão e abraçou-o com tanta força, que
Tali teve de olhar para o outro lado, para a noite e a sua tempestade, para
árvores.
Gaspar não lhe falou das provas a que a avó, Florence e Anne o
para ver claramente o trabalho que Tali e Stephen tinham feito ao filho.
Mas ele ainda conseguia adivinhar o que sentia e falar com o filho sem
muitas vezes que Bradford mediu a tensão de Juan. Era tão agradável
e bocas abertas.
E, sobretudo, deixar para trás uma nova certeza. Não foi ele que
abriu a Escuridão para Rosario. Mais ninguém a podia abrir e ele não o
tinha feito. E como mais ninguém era capaz de abrir a Escuridão, ela
não podia estar lá. O demónio tinha-o baralhado. Não era imune às suas
alívio saber, fosse como fosse, que Rosario não estava nas florestas de
mãos, nos campos de bustos, nas florestas de ossos que ela considerava
Não, disse em voz alta. Não devia voltar a ruminar até enlouquecer.
passadiço que passava por cima das copas das árvores e que ia dar,
descendo por uma escada íngreme, a uma praia limpa de onde se podia
de nadar, mas não se sentia fisicamente forte para o fazer. Sempre que
Juan lamentou não ter levado nada para beber: tinha sede. Não
como era perigosa essa sensação, do que significava para Gaspar, para
plataforma. Alguma coisa tilintava: trazia uma bebida, com gelo. Viu-o
bebeu o chá em dois goles e o frio provocou-lhe uma dor aguda no olho
tempo que não apanhava sol, a pele grossa e manchada de sardas nos
acariciou-as com a ponta dos dedos: fora ele a abrir e fechar aquelas
feridas.
Florence pensou que já tinha idade suficiente para assistir. Juan, com
compreendia bem o que era aquela sensação nas mãos, aquele desejo de
das suas unhas douradas a tocar nos ossos das costelas de Stephen.
inveja, admitiu. Ah, ela ostentaria com orgulho as marcas das unhas de
ouro. Florence sabia que a marca era um compromisso para com Juan,
estar dividida entre o médium e a Ordem não lhe agradava de todo, mas
honra que a Escuridão tivesse tocado no filho mais velho e era uma
mais importante da sua vida. E era uma pena que não a tivesse escolhido
a ela.
caprichos e, se Juan quisesse, poderia ter uma relação próxima com ele.
Stephen tinha tanta liberdade e tanto acesso a ele não só por ser filho de
Florence, mas também por ser um dos marcados. Com os anos, o laço
mãos e pernas. A árvore não era alta e Juan sabia que o filho conseguia
— E isso é esquisito?
sobre o jardim zoológico, mas nada sobre o que fizeste com ela.
— Foi uma seca. Disse-me para brincar com ela, mas brincámos a
coisas esquisitas que não eram boas. Não gosto de estar com a avó. Com
o avô, sim.
números. Ou outros. Ele falou-lhe das flores que via antes das dores de
cabeça.
imbecis.
zoológico enquanto corriam à minha volta, acho eu. Não sei que
com os barulhos e, além disso, alguns não tinham a roupa posta e não
assim.
Juan pensou: dantes eram de sangue, filho, mas a tua mãe proibiu-os
imaginasse coisas, mas não as percebi bem. E têm uma mão como a que
Também a frustração.
pegar-lhe.
— Chateou-se, como?
— Bateu-te.
oito.
ficava logo húmido, era péssimo para o calor e para a humidade e aquela
homem no cavalo branco que parecia alheio a tudo, com a espada para
observada, infantil.
— Isto ajuda?
parecia flutuar à sua volta. Era alta e, nessa tarde, quase não tinha
línguas.
também foi extenso. Sabemos como é duro para o teu corpo fazer isto, e
serem a porta.
fiz, não é algo que vos tenha de explicar. Respondeu a uma das minhas
porque não o senti. Foi preciso vir para esta casa para me aperceber do
meu erro. Para compreender quem são «os que me falam». E são vocês.
com o seu cabelo branco perfeitamente penteado, era a única que parecia
chegar ao fim do meu ciclo. Porém, como viram ontem à noite, o ciclo
ainda tem descargas muito poderosas.
manipular.
os dentes.
— Onde está?
estão a dizer.
Mercedes levantou-se.
acidente.
Mercedes olhou para ele fixamente, atrás dos óculos escuros. Não
disse nada.
minha mulher?
Mandámos o espírito dela para um deles. Mas ainda não nos mostraram
— É um lugar de sofrimento?
procurar por tua conta, isso não nos diz respeito. Só tens de saber que a
a energia da divisão para ver se seria capaz de lhes fazer mal. Quando se
as três nunca tinham sido mais do que umas notáveis bruxas práticas?
faças mal.
Juan não soube o que dizer. Queria dizer que Rosario estava mesmo
convencidas de que ela teria esse poder sobre mim, de que protegeria o
filho.
Ela sorriu.
nosso deus antigo, nos está a dar não deve ser interrompido por um
capricho ou por uma loucura momentânea. Nem sequer pela tua doença.
nós. A tua mulher disse-nos que já não querias fazer isso e nós não
posso permitir que desistas nem que exerças o teu poder sobre nós.
que decidas pôr termo à tua vida. You can kill yourself, e essa seria a tua
de um médium.
temos de correr. Agora que a tua mulher foi apanhada, não creio que o
onde está.
A minha filha pode ter-nos mentido ou não, isso não é importante. Era
ambiciosa e queria herdar a Ordem, e não a culpo por isso, mas nunca
uma coisa dessas. It radiates. Sei o que sentes por ele — disse Florence.
manifestado. Se tiver, será o teu herdeiro. Se não tiver, sei que será
corpo dele e vais querer fazê-lo. Quem não haveria de querer? É um ato
de amor. Temos filhos para perdurarmos, são a nossa imortalidade.
— Nestes anos, até o Gaspar ter idade para fazer o Ritual, quero que
o deixem em paz. Não quero que saiba nada de vocês. Nada. Quero que
rapariga, do milagre negro. Ela extrairá dele todo o seu potencial, foi
tocada. Não queres trazê-lo para cá, todos os verões, para a Cerimónia?
Pois não o tragas. I agree with you. Pode ser perigoso. E se a Escuridão
a ela.
maneiras de te mantermos vivo até ele ser mais velho e poder receber-te.
helped too.
uma certeza feroz. Tinham vencido e, a ele, só lhe restava perder. Sentiu
Devia fazê-lo porque ela teria feito o mesmo por ele. Levantou-se e
rapaz de dez anos. A mãe, em vez de ter a reação habitual dos Iniciados,
tolerava esse tipo de rebelião. E a mulher foi lançada, com pedras nos
pés, ao rio Paraná. Mais uma para a lista de todos os mortos que se
que pudesse usar. Mal conseguia ver o que fazia: a dor de cabeça
do analgésico de olhos fechados. Não era imediato. Não lhe tiraria a dor,
para o túnel que ligava as casas. Havia alguns anos, usava-se para as
Juan abriu-a sem sequer pensar: não existia uma porta que lhe
baixo e, para ele, que media dois metros, era estreitíssimo. Então,
guardava numa das suas terras da região de Buenos Aires, e de como ele
Como era muito pequeno (um ano?, era tanta a imundície, que não dava
para perceber), o mais certo é ter sido fácil parti-la. Também já tinha o
pescoço torto, por causa do pé, e, quando Juan o iluminou mais de perto
Muitas olhavam fixamente para ele com os seus olhos negros: alguns
rapazes com marcas óbvias de tortura nas pernas, nas costas, nos
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invunche . Juan apagou a lanterna quando Mercedes acendeu uma
— Vai resultar. Foi o nosso deus que disse, deu instruções para que
assim seja.
Está no livro!
dos seus olhos atrás dos óculos escuros que usava constantemente,
mesmo na semipenumbra do túnel.
fazer.
ajuda.
— Sabes por onde passava este túnel? Não vai de uma casa à outra
subterrâneos por estar muito perto do rio. E, a dada altura, vários metros
perceber?
Aproximou-a da cara.
Mercedes, porque esta mão não te vai deixar nenhuma pele por cima dos
pouco desesperado.
fita branca no cabelo, e de como era capaz de falar em guarani com uma
rapidez que pasmava toda a gente. Rosario com os seus perfumes caros e
acertar nas costas, e não na cara. Rosario e as suas listas e os seus dedos
nunca eram moles como as de uma ferida recente, eram duras e velhas.
— Devia cortar-te a mão com que bateste no meu filho. Não é nada
para ti, pois não? Mas, com isto — abriu a mão para lhe mostrar os
tenho material suficiente para que jamais lhe voltes a tocar, nem sequer
maneiras.
horrível. Juan não tinha mais nada para lhe dizer. Saiu e fechou a porta
atrás de si: trancou-a com outro signo que alguns membros da Ordem,
não para já. Mercedes passaria algum tempo fechada a ouvir morrer os
cima dele e não podia fugir. Custava-lhe respirar e uma tosse constante,
medo, uh, o Gaspar tem medo de que o avião caia, troçou dele Juan, e o
pomposo hotel casino de Corrientes e que acabara por não lhe oferecer
por pensar que não gostaria muito dele. Eram de pietre dure das minas
tentando que o seu longo cabelo negro não ficasse embaraçado nas
pedras. Fica-te muito bem, disse. Espero que o uses. Marcelina acariciou
Marcelina para levar as coisas que Rosario lhe pedira para guardar.
seu conteúdo. Que inteligente ter deixado a relíquia com Marcelina. Era
— Não quero que voltes a esta casa, nem à Cerimónia — disse Juan.
vejo que nem tu, nem o Stephen, entraram na Escuridão, volto a respirar.
Juan voltou a abraçá-la, a sentir o seu corpo; deixou que ela lhe
que fizera com Mercedes, mas não era o momento certo. Também ainda
— Onde tens o carro? Tenho de dar-te umas coisas, mas não quero
— A tua irmã queria que fosse tua. Eles não sabem que temos uma
Mão da Glória, não sabem que existe. A tua irmã sempre a escondeu
— Bom, mas dou-ta eu. Sabes usá-la? Vai servir para manteres o
Gaspar bloqueado. A Mão não é suficiente, mas será uma grande ajuda.
para que a guardasse. Ela escondeu-a na sua mala de vime. Uma buzina
— Não posso, faz-me lembrar o que fiz e não suporto isso. Não
paciência.
Tali beijou-o na testa para que ele se calasse, para que confiasse.
Juan pensou dizer-lhe que, noutra vida, ela teria sido sua mulher, mas
6 Música tradicional das regiões do nordeste argentino, especialmente de Corrientes. (N. da T.)
11 Bolo de milho salgado típico do nordeste argentino, do Paraguai e de Mato Grosso. (N. da T.)
12 Pão com chouriço assado e molho de chimichurri (vinagrete picante), salsa criolla (molho
15 Gauchito Gil é uma personagem gaúcha lendária da cultura popular argentina, de origem
incerta, que se converteu num dos santos milagreiros mais importantes do país fora da liturgia
podia dar presentes às pessoas, como fazê-las desaparecer para sempre. (N. da T.)
representado com a cara esmagada e virada para as costas e a língua bífida. Apoia-se numa só
perna, por ter a outra colada à nuca ou ao pescoço. Não fala, ruge, e dedica-se a roubar crianças
Bradford pensa que tudo se parece com aquelas estúpidas histórias sobre
lhe contaram alguma vez: a vida está a passar-me diante dos olhos, estou
a ver a minha vida toda. Só que não é exatamente a minha vida, pensa
Bradford, é a minha vida com ele, porque o que aconteceu antes, embora
não careça de sentido, já não tem importância. Sabe que será esta noite,
sente-o no lugar dos dedos que lhe faltam, os dedos ausentes chamam
que emana daquele rapaz que agora é um homem e que abre os braços
apenas com o frio, e agora, embora Bradford esteja nu, não consegue ver
tudo o chama para a Escuridão, será esta noite, oxalá me mostres os teus
Europa que, se não parecessem tão vergados e servis, bem poderiam ser
coitadinho, o dinheiro não chega, ele vai morrer, senhor doutor, a minha
não. Tinha a pele azulada, os lábios roxos, já não conseguia andar. Nem
si próprio que era mentira, que aquele rapaz nunca parecera normal por
dentro, era belo por dentro, tocar no seu corpo frio — nas cirurgias da
não só por causa do seu defeito cardíaco que, uma vez aberto o tórax, se
cirúrgica da estenose pulmonar, como teria chegado com vida até àquela
mesa de operações? —, não era normal porque era belo por dentro, tocar
fingiam gostar dele, mas custava-lhes, pois claro que sim, se ele
arremetia como uma pequena besta furiosa contra o seu próprio corpo e
Bradford estava convencido, havia que agradecer a Perón, que ele devia
próprios pais, sempre com pressa, sempre com a desculpa de que tinham
parte, por saber que viviam amontoados num pardieiro da periferia, que
que queria. Durante muito tempo, Bradford pensou que não passava
chamava a sua família, era estranho que lhe chamassem a inglesa como
se eles próprios não fossem ingleses, mas Bradford achava que não, que
não era um clube. Que Florence era uma sacerdotisa. Jorge Bradford viu
coisas que não conseguia explicar. Coisas que lhe roubaram o sono
durante muitas noites e que o fizeram regressar aos livros do pai, que
um alto Iniciado. Ainda longe, ainda a uns trinta metros. Nessa noite
viria buscá-lo, mas ainda lhe restava tempo. Recordou o seu primeiro
compaixão que quase lhe fez tremer as mãos, o pior que pode acontecer
deixar que mais ninguém o suturasse, nem sequer nos pontos mais
simples.
que os seus dedos roçaram no pó negro, gritou e tirou a mão e já não era
a sua mão, agora faltava-lhe metade dos três dedos mais compridos, o do
acreditar, sabia que aquela escuridão que se estava a retirar devagar era
alguém dizia que fora um acidente, que o ajudante tocara sem querer
voz dos deuses, bate, e o coração bateu entre os seus dedos como se
nunca tivesse parado. Bradford fechou o peito sozinho e em silêncio,
braços do rapaz e foi então que viu a prova. A marca. Uma mão no braço
podia ter apoiado a mão naquele ponto e o gelo teria deixado a sua
marca. Estudou-a. Era profunda. Parecia antiga. Era uma cicatriz. Uma
Estava certo de que havia lesões cerebrais — explicou-as aos pais, que
nenhuma; ah, mas o irmão mais velho percebeu, onde é que aqueles
segundo, e, como não conseguia dormir, mas tinha de falar com alguém,
que ocupava dois andares do mesmo edifício onde ele vivia, um dos
sala. Calma, disse ela. Foi por isso que recorreu a Mercedes: por ser fria.
Tem de ser teu, se foi mesmo isso que aconteceu. Tem de ser nosso. Mas
abafados e sente que lhe arde o ventre, que já não lhe resta tempo.
irmão sempre decente, o único que era decente naquela barraca patética.
adivinhei, antes da noite que nos uniu para sempre, que era medo, que
das ninfas quando surgia o grande deus Pã, pânico, e era isso que
forte, o teu pai a dizer imbecilidades sobre como não podia tomar conta
porque tudo vias, era pior num hospital, claro, deixei que sofresses, tinha
de ter a certeza, seja como for, era uma prova pela qual terias mesmo de
uma mulher e disseste-me que não sabias quem eram, mas que não se
estava a acontecer, que a mim nunca me fizera falta, mas que a inglesa
repetes esse exercício. Ah, Juan, a confiança dessa primeira vez. Oxalá
pudesse ver os teus olhos uma última vez antes de entrar na Escuridão.
Quando a Escuridão que abriste ficou com os meus dedos nunca mais
pude voltar a estar no teu interior. Só pude olhar. Mais duas vezes. E foi
não dói e tenho tempo de pensar e de tentar ver os teus olhos, mas já
uma vez me teres dito que a Escuridão não percebe, não tem linguagem,
rigorosamente velha»
ELENA ANNÍBALI,
La casa de la niebla
GASPAR ABRIU A JANELA E SENTIU NA PELE a humidade fria da chuva
quando não havia ninguém na rua. Quase não se magoara, tirando uns
ao dar com ele acordado, sério, mas calmo, a sair da cozinha com uma
chávena de chá na mão. A casa, como sempre, não estava iluminada pela
ti, vêm buscar-te. Vão separar-nos. Não posso passar a vida a andar atrás
de ti.
— Não faço ideia — disse Juan, dando uma longa passa no cigarro.
— Cá em baixo ou lá em cima?
— Cá em baixo.
estivesse a aquecer.
Da esquina, Pablo ouviu primeiro, e depois viu, Gaspar e a sua bicicleta.
Como sempre que o via, sorriu, mas depois obrigou-se a ficar sério:
tinha vergonha de demonstrar toda a alegria que sentia ao vê-lo. Não era
casarão, andava no colégio mais caro do bairro, que tinha a sua própria
Gaspar era muito diferente da dos outros: o pai, que estava doente e
viviam como ricos: não tinham quase nada. Mas nunca lhes faltava
estivessem de plantão.
logo a seguir o lábio inferior por saber que não devia pensar nisso, o pai
agarrara-o pelos cabelos havia menos de uma semana por ter demorado
concebeu um plano: fez uma lista de toda a roupa que tinha na última
página do caderno dos trabalhos de casa, em três colunas, e depois uniu-
várias cores, como lhe tinham ensinado na escola para unir orações.
antes de sair, para não perder mais tempo a tentar perceber se as calças
coisa esquisita, tinha estilo: por exemplo, usava uns cintos de cabedal
apenas o tornavam diferente dos outros. Claro que não era só por causa
pelo menos até sorrir ou ficar zangado, e então acontecia uma coisa
deixava acariciar a ronronar até que, de repente, dava uma unhada no ar,
sem intenção de magoar, apenas para deixar claro que já recebera aquilo
de que necessitava.
fazer balões na rua, protegidos por uma varanda que fazia de teto, pois
Gaspar: tinham a mesma idade, mas Pablo sentia que ele era muito mais
velho. Talvez fosse por não ter mãe, por ter um pai doente, por não viver
muito e ouvia com muita atenção. A mãe de Pablo dizia que era um
Juan é viúvo e está doente, não é fácil criar sozinho um rapaz, o Gaspar
perto dali, apenas a duzentos metros. Nessa tarde, por causa do mau
tempo, estaria vazio; em dias de sol, quase não se podia jogar à bola ou
levava pela mão, tinha um impermeável amarelo tão grande, que parecia
era uma das duas cadelas de Vicky, aquela de que mais gostava, uma
toda a vida.
— O parvo do meu pai deixou-a fugir — disse Vicky. E, entre as
estrada. Ele ainda lhe gritou, mas ela não obedeceu. Esperaram para ver
Os quatro seguiram pelo caminho das casas inglesas que levava até
donos até ao fim. Adela era fantasiosa e exagerada e cada vez mentia
mais, mas suportavam isso tudo, e não só por pena. Era divertida. Adela
vivia com a mãe numa casa situada ao fundo de um patamar, uma casa
vizinhos lhe tapavam a luz. Mas era uma casa bastante bonita; a mãe,
panos com motivos andinos. Era uma casa um pouco hippie e muito
flamingos cor-de-rosa nos quais era proibido tocar. Adela não tinha pai,
mas ninguém sabia bem porquê, se morrera ou se se fora embora.
Outro mistério era a razão por que lhe faltava um braço. O coto era
do cotovelo. A mãe de Adela dizia que nascera assim, que era um defeito
contratada por um circo, que de certeza que a sua fotografia estava nos
sempre ao escárnio com outras piadas ou com insultos. Não queria usar
roçar no braço deles o seu apêndice inútil até os deixar à beira das
lágrimas.
A sua versão sobre o braço ausente era espetacular, outra coisa não
se podia esperar dela. Contava que fora atacada por um cão, por um
pequeno para o tamanho do cérebro; era por isso que lhes doía sempre a
cabeça e enlouqueciam. Dizia que fora atacada com dois anos. Também
mastigar, do sangue a sujar a relva. Que fora na quinta dos avós e que o
Insolitamente, por ser o que mais ouvia e o que menos discutia dos
traumática.
E Gaspar insistia que sim, que de alguma coisa, sim, mas muito
que a palidez da pele fazia com que os seus dentes parecessem amarelos.
Castelli.
outra climatizada; era onde nadava Gaspar aos fins de semana, quando a
parque infantil, mas eles eram demasiado grandes para caber nele e só
ténis.
disseram que sim com a cabeça e, antes de dar início à busca, Gaspar
Gaspar rodeou o edifício do clube, com o seu café aberto e sem clientes
das mesas que davam para a zona mais arborizada do parque, quando o
pai estava de muito mau humor, o que, no último ano, era cada vez mais
e eles conheciam quase todos, davam-lhes comida, mas não lhes tinha
chamado a atenção nenhum novo. Gaspar aceitou um copo de Fanta que
fonte. O parque era mais alto no centro, fora construído em cima de uma
passar por entre as barras — e chamou Diana com um assobio que sabia
piscina só para ele e sem ninguém a vigiar. O pai não sabia dessas
escapadelas, claro.
bem porque era fácil para ele, mas aborrecia-o, como sempre. Lia por
sua conta: o pai podia ser caprichoso e assustador, mas deixava-o ler de
tudo. Agora, estava a ler Drácula: já vira uns dez filmes sobre o assunto
facto de o seu blusão ser fino: a frase parecia horrível. «Os mortos
a frase, em inglês, era «for the dead travel fast». O livro em inglês dizia,
por sua vez, que a frase era uma tradução do alemão e que era um verso
escrever, sem olhar para ele, disse que não. «É verdade?», perguntou-lhe.
encontrado a cadela.
Vicky chorava.
Pablo chegou a correr e olhou para Gaspar antes de dizer que não
com a cabeça.
— Com que dinheiro? O meu pai não me vai dar dinheiro para isso.
piada, que, com a inflação, não fazia sentido oferecer uma recompensa,
como fugira a cadela. Deixara a porta aberta, era verdade. Mas apenas
muito alta, e isso deve ter alterado o animal, que saiu a correr. Ele
muito, não: eles tinham medo de que Gaspar se afastasse muito e ele não
pagava, mas jamais o teria insinuado. O pai nunca lhe contou nada, em
de que não lhe faltava nada. Não eram os mesmos empregados, mas
quisesse ir. Quando era mais pequeno, não se apercebia, mas depois
vão sequestrar-me? Não, continuou o pai, porque eles tomam conta de ti.
sabia bem porquê, uma noite sentiu medo pelo pai e fugiu do
pai saía de casa durante uns dias, tinha amigos, mas nunca ficava fora
que não via há anos e de que mal se lembrava? Sentado nos degraus da
saíam, alguns para irem jantar aos restaurantes, outros com as compras
Dessa vez, quando lhe telefonou, o pai disse olá com uma voz
incerteza, havia apenas uns meses. E ela disse que sim com a cabeça.
colegas da escola dela com pais médicos viviam noutro tipo de casas.
tempo com aquela família. A sua casa era grande e elegante, a inveja do
bairro; mas também era escura e estava vazia, com o jardim seco,
Vicky. Voltara do hospital quase às nove da noite com umas pizzas pré-
convidar Pablo e Gaspar para comer. Pablo disse que a mãe estava à
duche.
quero ir para casa. Mas está melhor do que há uns dias, obrigado.
todos, era a que vivia mais perto dele. Gostava da sua companhia:
Não era exatamente assim; uma vez, dissera-lhe: «Não quero nada
vivo nesta casa.» Mas aquilo seria demasiado estranho até mesmo para
Adela.
Betty, a sua mãe, bebia muito quando estava triste. Não era violenta, não
eram dias difíceis. Gaspar abrandou o passo para ficar mais tempo com
lhe faltasse um remo para dar balanço. Já não chovia, Adela deixara o
incomodava. Porém, agora estava calada. E não era por causa da cadela,
que não era sua amiga, preferia manter distância dos cães, fazia questão
— O que foi?
— Conta lá.
— É um bocado nojento.
— Melhor ainda.
— Anormal.
Ela olhou para baixo enquanto falava, como se prestasse atenção aos
próprios passos.
— Coça-te.
— Não sejas anormal. Tenho comichão na parte do braço que já não
sentir coisas.
Gaspar olhou para ela com atenção sob as luzes amareladas da rua.
com a humidade.
— É mentira.
afastando-se a correr para casa, em lágrimas, sem deixar que ele lhe
visse a cara. Gaspar esteve quase para ir atrás dela, mas deixou-a ir.
forno. Não sabia se tinha pão para fazer uma sanduíche. Devia ter
aceitado o convite para comer, mas queria voltar para casa, estar um
o pai.
olhos fechados.
de dez minutos até poder voltar a tentar. Não se atrevia a fritar nada
nessa noite, por causa do barulho crepitante do óleo; não queria acordar
coisa viva e pequena que estava a morrer, isso era muito claro no sonho;
ele não conseguia perceber se era uma pessoa ou um animal, não dava
e orégãos.
Gostava de cozinhar. Seria bom poder cozinhar mais para o pai, que
ultimamente comia pouco e sem vontade. Gaspar sabia que ele estava
muito doente, sempre soube, mas agora sentia algo pior em que não
queria pensar: sentia que morreria em breve. Estava sempre tão cansado,
tão enjoado, tão fraco, tão insolitamente frágil, precisamente o seu pai,
umas secas no estendal da cozinha. Não tinha sono e, por isso, depois de
comer um panado com tomate, levou para junto do prato o mapa político
era para isso que servia Belén, a colega que queria ser engenheira e que
outras raparigas, mas nenhuma lhe parecia tão bonita como Belén, nem
estudar engenharia ainda o fazia gostar mais dela: era diferente de todas.
Ainda não reunira coragem para a convidar para sair ou para lhe
pedir que namorasse com ele. Sabia que as outras raparigas gozavam
Jesus e um dos Reis Magos. Era uma piada. O seu nome associado ao do
da rapariga de quem mais gostava era uma piada. E ela era arrogante, tão
linda com a sua boca grande e os seus olhos escuros e a pele tão fina,
que parecia transparente, dava para ver todas as veias azuis da face;
mindinho.
no dia seguinte.
Foi para o quarto descalço: dava para a rua, ou melhor dizendo, para
o pátio da frente, que era estreito e tinha vários canteiros secos. A janela
estava fechada e a persiana corrida, e Gaspar não as abriu. Viu os livros
que estavam na mesa de cabeceira, mas não tinha vontade de ler nenhum
percebesse, porque às vezes, quando lia duas palavras juntas em voz alta
cujo efeito era belo, ficava com vontade de chorar. Também não lhe
apetecia ouvir música no walkman novo que o tio lhe enviara do Brasil
pela mãe e que tinha a fotografia dela. Havia mais artigos escritos por ela
estava orgulhosa, mas também muito zangada, por ser a única mulher da
coisas, por haver poucas antropólogas, porque as poucas que havia não
página. O título era Arte indígena e arte mestiça dos grupos indígenas
aborrecido para ele. Mas as dez páginas que se seguiam tinham umas
chamado «da coluna», muito maltratado e com as mãos atadas num pau
que lhe dava pela cintura; uma Virgem estranhíssima, uma espécie de
tronco sem pernas cujo coração de latão, situado fora do peito, estava
tinha uma boca desenhada e uma gadanha tão pequena, que mais parecia
legenda dizia que fora talhado em osso (não especificava se era animal
ou humano) e que media nada mais nada menos que cinco centímetros,
família a quem via de vez em quando, como sua irmã, e Juan disse-lhe
que era uma maneira de falar, porque gostavam muito uma da outra.
Gaspar ficou dececionado: esperava que fosse sua tia, queria ter um
mar, mas, em vez de água, por baixo havia árvores. Copas de árvores.
realmente, e ele não gostava de pensar assim na sua mãe, mas era muito
Uma vez, o pai disse-lhe que ela se maquilhava muito pouco e que isso
era raríssimo nas mulheres da sua época. Pede a qualquer um dos teus
amigos que te mostre fotografias das mães deles de há dez anos e repara.
E Gaspar fê-lo e era verdade: a mãe de Vicky aparecia com tanta sombra
fazia a si própria a mesma pergunta. A tua mãe era doida por roupa e
por moda, disse-lhe, mas não imitava ninguém. Na fotografia tinha uma
pulseira larga: olhando com atenção, via-se uma víbora com a boca
funcionar. Era boa e um pouco burra, por isso fora tão estranho que se
nas últimas férias, que se mexia imenso e que falava a dormir. O que é
parque, a boiar, de certeza que se afogara, mas, quando chamava por ela,
mexendo as patas dianteiras com muito esforço. Não foi o sonho que o
janela e levantou a persiana. Não havia nada lá fora. Nada, a não ser as
cabeça do lado de fora da janela, disse Diana!, em voz baixa, mas, então,
não com muita força. Viu o pai, apenas com umas cuecas pretas, a
lhe pareceu estranha, demasiado urgente. Depois, olhou para ele. Não
admirado.
persiana!
Nesse momento, o pai descontraiu-se, abandonou a atitude
cigarros.
Gaspar não gostava de que o pai fumasse no seu quarto, ficava com
pedira que deixasse de fumar e não fazia sentido insistir. Trouxe o copo
chão.
disse-lhe:
— A cadela está morta. Não era a cadela da Vicky. Se é que era uma
cadela.
afogado.
— Tenho a certeza.
— O quê?
— O que fizeste esta noite, quando chamaste a cadela da tua amiga.
— Eu não a chamei…
O que é que lhe devia responder? Tinha medo do pai, ali, sentado
arranharem-lhe a cabeça.
tremer.
— Não, claro que não. Mas nunca mais voltes a fazer isso. É muito
perigoso.
Gaspar hesitou.
— Já percebi, pai.
chamamos.
Gaspar julgou ouvir de novo as patas do cão, agora a correr no chão, mas
Adela e ela disse-me que, às vezes, tem comichão no braço que lhe falta.
Eu disse-lhe que estava a mentir porque é óbvio que não é verdade, não
é?, mas ela foi-se embora a chorar e, sei lá, eu conheço-a e percebo
quando está a mentir, é muito mentirosa, mas desta vez pareceu-me que,
cérebro continua a ter uma área reservada para o membro que falta e,
por isso, produz sensações que lhe parecem coerentes. Nós não sentimos
— A sério?
— Vamos fazer uma experiência. Vai buscar, deixa ver: uma luva de
— Isso. Uma luva e duas escovas de dentes, e uma faca e uma colher.
— Mais pequena.
— No outro dia, caiu a tampa da persiana da sala. Está encostada à
parede.
— Nem me apercebi.
quando passava algum tempo com ele, podia ir-se embora sem lhe dar
las: se o pai queria passar uns momentos divertidos com ele, limitava-se
lado da cama e fez-lhe um gesto para que fosse para o lado oposto.
Depois, pediu-lhe que vestisse o blusão e que, por favor, enchesse a luva
Juan pôs a luva cheia no lugar onde devia estar a mão de Gaspar.
— Não olhes para a tua mão verdadeira. Olha para a luva e para a
outra mão, a que não está atrás da madeira. E põe-na na cama também,
dedo médio da mão de Gaspar que estava atrás da tábua e o mesmo dedo
da mão de borracha.
polegares.
um ou outro carro.
— Faz outra vez — pediu Gaspar, fechando os olhos. Sim, era isso
mão.
de borracha.
— Não.
Juan passou a mão pelo cabelo de Gaspar, tão fino e tão limpo, e
coçou-lhe a nuca.
— Não gosto de fazer vidência por coisas menores, nem devo.
— Mas podias.
Gaspar pensou.
se fosse a mãe dela, porque é velha, embora não seja a mãe verdadeira.
— Tem saudades dela porque já sabe que está morta. Os animais têm
— Toca a dormir.
quase todas com um pátio nas traseiras, algumas, muito poucas, com
poucas horas por dia. Uma avenida divide o bairro em duas metades
idênticas e, embora seja uma avenida estreita, os que vivem num dos
limite natural.
estendal para a roupa que gira apenas quando sopra o vento. O terraço
pouse na casa.
forja. Nas traseiras, limita com uma serração que só abre dois dias por
estarem mais acostumadas, que têm medo de encher o depósito com gás,
Ela quer ter outro filho porque se sente sozinha. Não se entende lá muito
bem com Pablo. Não quer repetir o que o marido diz do filho mais
velho. Também ela já se apercebeu. Se fosse uma boa mãe, gostaria dele
ver se o novo rapaz lhe sai melhor. As traseiras da casa limitam com o
trás o mais depressa possível. Também tentam não olhar para ela.
— Porquê?
— Por nada, por estar abandonada. Não ligues, já disse. Tenho medo
morrido havia uns quinze anos. Morreram ao mesmo tempo?, quis saber
quem é que fica com a casa. Mas é uma casa bastante rasca, disse
janela. Numa noite de Fim de Ano em que havia muita gente na rua,
olhar, de que as suas janelas cegas eram dois olhos quadrados que lhe
diziam enganei-te estes anos todos, sempre que passaste na minha rua e
me fiz de parva e me escondi, mas agora quero que saibas, quero que
digas que há alguma coisa dentro de mim. Victoria voltou a correr para
junto dos pais, que tentavam, em vão, acender um foguete, e não disse
insolitamente estava na rua com um copo de cerveja na mão. Ele não lhe
disse nada, embora estivesse muito sério. Hugo Peirano acabou por
cama, nem sequer nas manhãs mais frias de inverno. Fazia-lhe alguma
impressão ficar demasiado tempo deitado: fazia-o lembrar a doença e o
tapado, a respirar o seu próprio cheiro, podia não voltar a acordar, podia
antes de sair — não queria que o pai o apanhasse a ler as suas folhas
comprar alguma coisa para comer porque, se passasse muitas horas com
num púcaro e cortava o pão para o untar com doce de leite, aproximou-
dormir, mas que não queria que ninguém o incomodasse. Era melhor
e foi para a rua com a boca cheia de pão. Não estava a chover, mas havia
farolim noturno, e pagou com o dinheiro que guardava sempre num rolo
havia dúvida de que estava morta. Tinha a mesma quietude das pombas
alheio. Não olhou para a cara dela e partiu muito depressa, sem se
que, àquela hora, Hugo Peirano estaria a lavar o carro na rua e, quase de
tarde.
tinham voado na noite anterior, sobre o carro que teria de levar à oficina.
— Encontrei a Diana.
que Gaspar não visse que tinha percebido e que a morte da cadela o
afetava. Gaspar também baixou a cabeça, sabia que a maior parte dos
homens não gostava de que alguém os visse chorar e menos ainda outro
antes de almoçar.
— Não sei em que casa é. Também acho que não vai aparecer
nenhum enforcado.
Gaspar olhou para Betty ao aperceber-se de que o seu tom de voz era
ansioso. Tinha uma echarpe azul à volta do pescoço, que lhe dava um ar
pensava que era um pouco injusto chamar-lhe Betty, porque uma mulher
tão alta e com uns gestos tão delicados merecia um nome completo,
demolir as casas e fazer a autoestrada. Esta que passa por cima de nós.
estado pendurados.
grandes.
Betty suspirou.
19
em pan de Viena . Gaspar pediu uma tosta. Nesse dia, fora para o café
dar voltas à casa com os seus passos de gigante, e era melhor evitá-lo
— Tu sim, Betty?
Adela interrompeu-os.
da escola.
porque esse modelo de frigoríficos tem uma porta que bloqueia e é fácil
livrar deles.
café com leite. — Para que é que os metem lá, se podem simplesmente
derem uma valente tareia, nunca mais voltam, também não são parvos.
Não é preciso enfiá-los em frigoríficos. Estás a inventar.
Gaspar.
Betty deitou açúcar no seu chá e não disse nada. Sabe que não a vou
tenho a certeza de que vivem lá pessoas, porque está perto da favela, fica
paras, o Gaspar tem razão. Não vês que ele não te quer levar. Além do
mais, não podes falar assim dos desaparecidos, é uma falta de respeito,
— O Gaspar diz sempre primeiro que não e depois que sim, não é?
alguma coisa?
rapariga muito mais nova, com o traço trémulo dos dedos infantis.
Nessa tarde, Pablo ia visitar os avós com os pais, mas o passeio foi
que não queria ir ver esses velhos de merda e o pai respondeu-lhe claro,
ele também não queria que a vissem assim, suja e alterada. Era verdade:
outro filho, mas que «não podia passar» pela «experiência» de perder
outro. Não queria que a mãe ficasse grávida, não queria ter um irmão se
melhorar fosse o que fosse, tinha colegas na escola com irmãos mais
novos que contavam que os pais discutiam, não conseguiam dormir com
carro a uma velocidade furiosa, Pablo decidiu ir ter com Gaspar. Era
sempre complicado, porque não lhe podia telefonar. Podia bater à porta,
mas às vezes — Pablo não sabia bem porquê — tinha medo de o fazer.
espreitava pelo vidro da janela do andar de cima e, quando via que era
ele, algumas vezes avisava Gaspar, mas quase sempre continuava o que
e, para aquecer, foi a correr até à casa de Gaspar. Não havia ninguém na
perfeito silêncio e não fez barulho quando se abriu um pouco mais. Mas
chamara uma vez Gaspar, uma palavra estranha que certamente copiara
do pai), Pablo soube que acontecera alguma coisa estranha. Não estivera
de festas vazio. Pablo andou primeiro pelo rés do chão apenas iluminado
pelas luzes da rua; uma das janelas da sala tinha a persiana para cima,
vazio, tal como a cozinha. E a sala, que mudava de cor sempre que um
carro passava pela rua, deu-lhe medo. O melhor, pensou, seria ir-se
o que a mãe usava para lhe aliviar a tosse quando estava doente. Mas não
perfeitamente secas.
detestava ficar corado. Cada degrau era mais difícil de subir do que o
mexiam. A escada era de madeira e rangia sempre, mas desta vez Pablo
não ouvia nenhum ruído a não ser a sua respiração, demasiado agitada
os três últimos eram ocupados pelo pai de Gaspar. Havia, também, uma
escada mais curta que dava para um corredor com dois quartos que
uma varanda que dava para um pátio interior que outrora deveria ser
lindo e que agora estava tão seco como as plantas da entrada. Para
cortinas também era alto, mas não tanto; foi até um extremo da sala,
agachou-se e acendeu uma vela entre várias. Pablo, claro, não as vira,
todo, parecia ter a idade do seu pai ou ser apenas um pouco mais velho
do que ele —, contou sete. Sete velas. E, então, viu um desenho no chão
da sala vazia: um círculo branco com alguma coisa traçada lá dentro que
pai de Gaspar entrou no círculo como quem passa por uma porta e, de
tinha visto nos filmes, nem com os que davam as pessoas na rua, e, de
nas revistas pornográficas, mas com movimento. Já vira aquilo nas que
não ser o barulho dos corpos a bater um no outro. Pablo teve medo de
ser apanhado ali, no seu esconderijo, a espiar, mas, ao mesmo tempo, era
ir daquele lado da sala até à escada sem ser notado? Então, Pablo sentiu
todo o suor a secar, gelado, a casa já não estava quente, mas acontecia
olhos fechados e estava diferente, belo, pensou Pablo, belo, mas todos
diziam que estava doente, como era possível? Os doentes não eram
sempre feios? Sob a luz das velas e do luar, Pablo conseguiu ver o peito
do pai de Gaspar e a sua enorme cicatriz, mas era isso mesmo que
Pablo, uma vez mais, hesitou entre sair ou não sair. Os homens deviam
Gaspar estava de joelhos com a cabeça virada para o lado, uma posição
não falou em voz alta, mas, com os lábios, disse-lhe, muito claramente,
vai. Assim, não vai-te embora, como diria toda a gente, mas «vai», como
nas séries mexicanas. Pablo disse-lhe que sim com a cabeça e o homem
correr e tentou ignorar as vozes que agora se faziam ouvir outra vez;
havia uma mulher a falar de uma igreja em ruínas, outra a dizer faz falta
fumo e terra, um homem repetia uma frase numa língua que Pablo
Gaspar acordou mais cedo do que Vicky e Adela e ouviu, na sala, Lidia
despedir delas. Era cedo, chegaria a horas se fosse muito depressa e, por
isso, passou primeiro pela porta de sua casa. O carro de Esteban já não
estava lá. Ter-se-ia ido embora sozinho? Não tinha tempo de entrar e
assustado: pelas coisas que ouvia, parecia-lhe que devia ser ilegal ter um
pessoas têm muitos preconceitos, disse-lhe uma vez a mãe de Vicky, não
suportar isso. Às vezes pensava que, se Esteban fosse viver com eles e
parecia ser capaz de lidar com o pai, não de o dominar, mas, pelo
menos, era alguém a quem ele dava ouvidos. O pai reagia de maneiras
bomba. Havia ameaças quase todas as semanas e ele sabia que quem as
sério, porque vivemos épocas muito duras neste país. Muitos alunos
grande efeito, mas os médicos diziam, mesmo a mãe de Vicky, que era
demasiado pequeno para tomar outra coisa mais forte. No entanto, ele
tomava coisas mais fortes: o pai dava-lhas. Não tens por que sofrer,
dizia-lhe. Gaspar achava que tinha razão. Às vezes, não conseguia nadar
havia pouco tempo sonhara que lhe estavam a arrancar os olhos com
flores a abrir, sobretudo quando olhava para cima: flores no céu. A aura,
beber água e engolir os restos dos comprimidos, mas parou quando viu o
pai na sala, sentado no seu sofá amarelo, diante da televisão ligada, mas
Gaspar aproximou-se e viu que o pai tinha ao lado dele uma caixa de
Gaspar olhou primeiro para a cara dele. Sorria com uma sobrancelha
É uma daquelas vezes: o Esteban foi-se embora e deixou o meu pai meio
Gaspar fê-lo com apreensão: sabia que a caixa não podia guardar
seus dedos tocaram em algo parecido com bichos secos: tinham uma
para ver o que eram — não teve medo naquele instante, parecia
luz da televisão. Então, percebeu que aquilo que no início lhe tinha
parecido patinhas eram pelos. Não podia ser. Olhou para o que tinha na
mão mais de perto. Eram pelos, sim. Pestanas. Tinha na palma da mão
saber. E tenho de tomar outra aspirina antes de ficar com tantas dores,
O pai mergulhou uma das suas enormes mãos na caixa das pálpebras
moedas.
pode viver sem um braço, por exemplo. Eu vivo quase sem coração.
O pai levantou-se com a caixa nas mãos. Por uns instantes, Gaspar
— Limpa isto.
— Limpa tu.
Gaspar recebeu esta informação com alívio, até com alegria. Quando
o pai começou a subir a escada, foi a correr até à cozinha e tomou mais
quando os que vão trabalhar longe saem de casa nos seus carros ou a pé
conseguisse ver, mas ninguém o vê, ninguém o segue — sai uma luz
quarto.
sentia curiosidade em relação ao lugar para onde ia. Tinha uns oito anos
e a noite estava fresca. Foi até à rua, olhou para ambos os lados e ficou
admirado por não ver o pai, que acabara de sair de casa. Pensou que, se
flagrante. Gaspar não pensou duas vezes e voltou a correr para dentro de
forte que, pensou Gaspar, teria acordado os vizinhos. O pai virou-o com
raiva e Gaspar estava mudo de terror. Não percebia porque é que aquilo
era tão grave, mas, no chão, com o pai em cima dele qual animal
estava tão assustado, que não conseguia respirar. Às vezes, agora, anos
Gaspar tentou dar-lhe um pontapé, mas levou uma chapada que o fez
baixo, partidas. Vais ficar aqui, disse-lhe. Gaspar olhou para ele do
soalho. Batera com a cabeça, mas o medo era tanto, que não lhe doía.
Gaspar não sabe quantas horas lá passou. Sabe que dormiu no chão,
que teve fome, que fez chichi na escuridão, na parede, e que o cheiro, no
cativeiro, lhe deu nojo, mas acostumou-se. Sabe que sonhou com a
escuridão e que pediu para sair e que bateu na porta e que chamou pelos
vizinhos e pela mãe até se sentar com as costas coladas à parede e que
cheiro a suor e a relva não chegava àquele quarto húmido que agora
um dia ou dois ou apenas algumas horas depois, Gaspar foi a correr para
cozinhar umas quantas coisas, e de certeza que não havia nada para
por ouvir o pai a andar pela casa com os seus passos poderosos,
frigorífico, havia uma garrafa de vidro com água. Com o pano cheio de
gelo no olho, foi para a rua, não estava frio, e caminhou devagar até à
quando chegou, mentiu. Vicky ainda estava na escola, mas a mãe estava
coisa, lembrava-se Gaspar, sobre estar de folga, ele não percebia o que
queria dizer folga, entre as ondas de dor mentiu, disse que o pai não se
sentia bem, que estava de cama e que ele não tinha tido coragem de o
acordar, que lhe doía a cabeça e que, por favor, precisava de comer, que,
se comesse, melhorava um pouco, que ele sabia cozinhar, mas não com
nada, que lhe podia pagar ou que podiam ir comprar qualquer coisa
noutro sítio que estivesse aberto, mas ele não conhecia nenhum, e a mãe
sorte eu estar em casa. Disse-lhe depois vou ver como está o teu pai e
Gaspar ia dizer não, não vás, mas não disse nada, comeu e depois
estava fechada para que ele pudesse descansar, a cadela Diana dormia
aos seus pés e nunca soube se a mãe de Vicky fora, ou não, a sua casa,
se vira o pai, não lhe perguntou e não lho disseram, mas nessa noite
ficou lá a dormir, foi uma das primeiras vezes, e não se lembrava de
casa, tinha vontade de usar a bicicleta. Não vira o pai nessa manhã.
mundo secreto em que o pai vivia. Porque é que lhe mostraria aquelas
sensação de que era como nos filmes sobre possuídos, de que alguma
mostrara a caixa não era o seu pai. Não conseguia explicá-lo. A caixa
das pálpebras foi um dos souvenirs mais horríveis que o deixou ver, mas,
retirava-se para uma região de onde era difícil resgatá-la, onde perdia
Não foi um sonho, claro está, mas sentia-o como um sonho; assim, era
ressoou uma noite na sua cabeça, tão potente que subiu a escada a correr
a andar como um sonâmbulo pela casa com uma coisa escrita na parte
durante uma semana depois de lhe mostrar a caixa das pálpebras. Agora,
estava aberta, mas não havia ninguém ao balcão; Gaspar bateu as palmas
e o ruído das suas mãos fez eco no armazém. A seguir, ouviu uma porta
Gaspar olhou primeiro para o diagrama, para ver se, pelo menos,
estava parecido.
facilmente. A caixa era bastante grande, mas Don Sixto escolhera uma
torna-a mais pesada, mas o pinho é muito leve. Está como tu querias?
depois confessou a Gaspar que não queria fazer a festa naquele pátio das
traseiras, tão grande para tão poucos convidados. Vai notar-se mais se
ninguém aparecer, disse, e Gaspar percebeu. Era melhor fazer uma coisa
verdade que o pai de Adela fora levado, e Gaspar, que estava a secar os
sozinha. Não sei quem é o pai da Adela e nunca lho perguntei, essas
em San Isidro. O bolo era muito bom: tinha recheio de doce de leite e
ela, que não os queria ofender, desfilou com um sorriso falso, porque era
óbvio que não gostava dele. Eles foram-se embora pouco tempo depois.
buscar mais e ela aceitou. Depois, com os lábios sujos de doce de leite
— não era muito fácil para ela segurar no guardanapo apenas com uma
ninguém.
da colcha azul-turquesa.
— Vem cá — disse-lhe.
Ela aproximou-se, desconfiada.
— O que é isto?
— É de magia?
Esperemos que sim, seja como for. Enfia aqui o braço — disse,
Agora, olhava para ele com os olhos cheios de lágrimas. Gaspar teve
encarnado, as duas tranças, uma rapariga que não queria ser diferente.
Tirei-a de um livro. Mas juro que não é para gozar contigo. Nunca te
— Já está — disse.
espelho, estás a ver? Assim, é como se tivesses dois braços. Diz-me onde
é que te dói.
— É a mesma coisa. Onde. Mas não olhes para mim, não olhes para
cotovelo. Não, um pouco mais para baixo. Não, um pouco mais para
cima.
até ela dizer estou a sentir o braço! E ele, então, voltou a seguir as
com as suas unhas curtas, enquanto ela observava com uma expressão
estranha o braço refletido. Continuou até Adela dizer já está, e ela tirou o
Não estava a chorar. Gaspar não sabia o que é que ela tinha. Queria
não, mas sabia que tinha de permanecer calado durante uns instantes.
zangada. Então, tentou explicar-lhe que a ideia lhe tinha ocorrido depois
de uma conversa que teve com o pai sobre membros fantasma e que ele
Agora, sim, chorava, e sentia tanta raiva, que tinha o lábio a tremer.
Ela continuava zangada e Gaspar não fez mais nada. Deixou que se
rua não estava fechado à chave. Gaspar não soube o que responder.
Tinha de falar com eles para perceber o que é que fizera mal.
Gaspar não quis voltar para a casa de Adela, como lhe propuseram
andar de cima.
ignorar, para continuar a andar, para fingir que não ouvira, mas
periódicas. Não sabia e, de facto, nunca mais pensara nele até àquele
— Como estás?
— Podes continuar zangado comigo para sempre, mas não sei se isso
faz sentido.
candeeiro que usava para ler. Tinha uma camisola cinzenta de mangas
desenho que o pai ainda não acabara de fazer. Parecia uma cidade
pequena, poucas casas numa planície e, no céu, um sol preto ou talvez
escuros.
— Sim. É farmacêutico.
em homeopatia?
— Se calhar, sabe.
Gaspar resignou-se.
— Só quero saber.
— A sério?
— A sério.
Gaspar aproximou-se da estante em bicos dos pés. Havia tanto por
prateleira situada mais perto do teto, estavam a cinzas da mãe. Uma vez,
impressionou: parecia mais terra do que cinza. Chorou por a mãe ser
apenas isso, um monte de pó numa caixa, mas não teve medo. Aquela
caixa arrumada num canto não o perturbou. O pai disse-lhe que, quando
emprestados por gostar deles. Passou para outra estante, mais alta:
usado. Tirou-o e mostrou-o ao pai, que disse que sim com a cabeça.
— Lê o que quiseres.
estrela de seis pontas parecida com a estrela judaica, mas diferente dela.
dizia era muito menos aterrador do que ele próprio vira em vários
filmes. Olhou para o pai com curiosidade e ele sorriu-lhe uma vez mais
— Não. Não são assim tão diferentes. Gaspar, é isso que eu faço.
— O quê?
universidade. Senta-te.
como a mamã?
duzentos.
derrubando uma garrafa. O pai pegou nela para não entornar e depois
que ele cheirava a álcool? Agora, Gaspar percebia porque é que estava a
viste pessoas?
— Tudo falha, mas não tenho medo delas. São ecos. Manifestações.
— Está bem.
dúvida.
Selected Poems, John Keats. Depois, pegou nele, abriu-o e leu: «Season
névoas.
— Posso levá-lo?
novo, sabias? Com vinte e quatro anos. E que mais contas, filho. Quero
doente, retorquiu Gaspar. Eu sei, mas, seja como for, nós, os que temos
moribundo. Não digas isso, papá. Como queres que o diga? E que mais?
Estavas aqui fechado, julgava que não conseguias ouvir nada. Tinha, mas
uma carta a dizer que já não queria ser minha namorada. E o que é que
raparigas fazem isso. Não gostas dela? Gosto, mas não sei do que é que
Gaspar ouviu o riso suave do pai. Nisso, não te posso ajudar, não sei
lhe o cabelo, devagar, com uma delicadeza quase feminina. Não lhe
contou que, depois de ler a carta de Belén, curta e escrita com letras
causa dela, que era um pouco secante, a não ser quando o deixava beijá-
la e tocar-lhe; mas por ele, por não ter sabido retê-la. Ajeitou-se no
— Que amiga?
Estavas a dormir.
porta. Ia dizer-lhe qualquer coisa (o quê?, que gostava dele?), mas ele
Adela estava à sua espera no meio da estrada: àquela hora, aos fins de
forma como o pai lhe dizia isto é tudo o que te vou dizer e não vais saber
pequena sala de videojogos que aos domingos ficava aberta até muito
tarde.
— Porque fiquei zangada com a minha mãe. Porque é que ela não se
não sei. Mas não vou estar sempre contigo, vais ter de pedir à tua mãe.
achava graça nenhuma à ideia. Tinha fome, mas não podia convidar
Adela para comer: estava proibido de convidar quem quer que fosse sem
ideia.
— Já comeste?
Adela disse que não tinha muita fome, depois do bolo e das
também.
— Monta.
palhaço?
— Não — respondeu ela. — Não sei porquê, mas fica-te muito bem.
pé, agarrada aos ombros de Gaspar. Pediu-lhe que andasse depressa, que
pedalasse com força e, como não havia ninguém na rua, Gaspar fez-lhe a
vontade e deu uma volta enorme antes de ir para a pizzaria para que ela
merceeiro, falou aos clientes dos donos, que, segundo ela, eram uns
velhotes que viviam sozinhos sem ninguém que os ajudasse, sem
janela e abria a boca como se estivesse a gritar, mas não gritava. Depois,
ia-se embora a correr. Às vezes, andava nua. O velho era muito mais
calmo, mas recusava-se a despejar o lixo e uma vez tinha lá ido alguém
pátio que, naquela época, ainda tinha uma ou outra planta, e dizia agora
Turi, o merceeiro, dizia que não conhecia essa história, mas que
sabia que, quando a velha morreu, foi encontrada na cama com dois
abrir.
O que era estranho era que nenhum dos velhos do bairro, nenhuma
das avós nem dos avôs, se lembrava de quando os donos da casa eram
teu avô viemos para cá viver, os donos, que já eram velhos… Vicky
vacilou e disse que julgava que sim, que já eram velhos, sim, que se
pessoas louras envelhecem mal, respondeu a avó. Não são como tu,
tudo.
mês, diante da televisão. Estava no sofá da sala a ver as notícias das oito,
e o estado de sítio, que andava a dar com a mãe em doida —, quando viu
andou uns tempos obcecada com Pompeia e Herculano. Nessa noite foi
muda e a tremer, tanto que deu a mão a Gaspar, que estava deitado no
sofá, ao lado dela. A lava do vulcão arrastara o gelo e a lama; e todo esse
calar.
rapariga de treze anos, Omaira — que nome tão estranho, pensou Vicky
Gaspar, e ele disse-lhe nas Caraíbas, mas não é uma ilha, fica ao pé da
Venezuela), a rapariga disse qualquer coisa que fez com que Vicky
tivesse vontade de fugir dali a correr: apertou o braço de Gaspar até ele
dizer ei, para com isso, o que era difícil, a ele nunca lhe doía nada. A
apenas nas notícias da tarde: nas da hora do almoço também. Vicky via-
rapariga sabia que não podia ser resgatada, mas Vicky não percebia
amputassem uma perna, mas que ali, na lama, não estavam reunidas «as
minha mãe porque vai ficar sozinha. Queria ir para a escola. Tinha medo
porque não sabia nadar e, quando a água a cobrisse por inteiro, afogar-
dizia oxalá consiga ouvir-me, e também dizia que gostava do pai. A avó
de Vicky disse já não consigo ver isto, que dignidade, a desta menina,
não deviam passar isto, e foi-se embora e nunca mais se voltou a sentar
Lidia Peirano apareceu com Juan Peterson, que aceitara entrar por uns
dizia: «fascinante». Vicky sabia que discutia muito com Gaspar e ela
ficava muito zangada quando via que o amigo estava triste e fora, muitas
20
Lidia insistiu numa pastafrola que comprara na padaria, mas o pai
Mas Vicky quis ver e viu o médico a chorar, a chorar, e a dizer: não é
justo, depois de termos lutado tanto por ela e do que ela teve de suportar.
sim com a cabeça, demasiado sério, e não disse mais nada e passou uma
não tivesse íris nem branco dos olhos, as pálpebras inchadas e as mãos,
Porque é que tem os olhos tão pretos?, perguntou Vicky à mãe, mas ela
tia.
Foi Juan, que nunca falava, quem respondeu à pergunta dos olhos. É
que tinha um fio compridíssimo para poderem andar com ele de um lado
Pablo estava com ela porque não lhe tinham deixado ver aquilo em casa.
estivesse, também era capaz de não me deixar. Querem vir para cá?
— Mas ela não nos consegue ver, estamos muito longe, não a
incomodamos.
— Tu sabes lá.
— És mesmo esquisito.
E Vicky foi a correr até à casa de Adela, apesar das ameaças da mãe,
para ver a agonia com precisão e detalhe. Ela, Pablo e Adela choraram
acabar com aquilo. Depois, Adela disse que o pior tinham sido os
dos pássaros; também tivera medo dos olhos cheios de sangue preto.
Para Vicky, eram os pés, os pés a morrer e a tocar numa cabeça morta
numa coisa que estava a apodrecer. Nunca mais conseguiu dormir com
os pés de fora, nunca mais conseguiu dormir sem meias, e nas noites em
que caía na cama esgotada, despois de estudar muito ou por estar muito
com a língua de fora, tão negra como os seus olhos, enquanto morria na
lama.
preferia boiar. Quando foram deitar foguetes para a rua, Gaspar e Pablo
passavam a vida a brincar às lutas, e ainda por cima com o calor que
fazia. Percebia Gaspar, porque era forte, era bruto e ganhava quase
sempre; sabia que os rapazes queriam sempre ganhar. Mas Pablo, que
era tão alto e magro como ele, não tinha tanta força, e às vezes ela
dele no chão ou lhe torcia o braço. Enfim: não percebia como é que
Aquele verão estava a ser estranho para ela. Tinha medo e não sabia
a levou para o hospital para ela respirar para dentro de uma espécie de
nada tinha a ver com aquilo. Não conseguia explicar o que é que lhe
Omaira, mas não só. Tinha medo de a encontrar na escuridão, mas era
mais qualquer coisa do que a rapariga dos olhos pretos. Quando à noite
pairar no teto falso e que podia descer para lhe mostrar a sua cara.
pai se o metro passava por ali, mas ele disse que não, que, embora
comboio desviava-se para o outro lado, não passava perto deles e era
calor, para verificar se a vibração vinha do solo, como lhe parecia, Vicky
garagem depois de jantar; ali, a casa estava quase fresca, talvez por o
teto ser mais alto ou por não receber diretamente os raios solares durante
vinha de lá. Voltou a falar do assunto ao pai, uma vez descartada a teoria
do metro; e ele disse deve ser o autódromo. Que sensível, filha! Victoria
nada tinha a ver com as corridas. E também não havia corridas noturnas.
Não voltou a falar do assunto com a família. Quando a viam sair à rua e
curiosidade preguiçosa, uma vez ou outra a avó disse cuidado, por causa
dos carros.
Betty. Vicky não falara do zumbido aos amigos, ainda não: tinha medo
de tocar no assunto, era como admitir que existia mesmo. Acabou por
obrigou-a a ir a casa comer pizza, mas depois deixou-a voltar para junto
nas veias.
vem de lá.
E puxou-a pelo braço. Vicky pensou: não a conheço. Não sei quem é
esta miúda.
luz, não se vê bem. Além disso, a casa dá sono. Uma vez, a minha mãe
— Não me lembro bem, mas acho que não andava a dormir à noite
quando acordares, com a luz do dia, veres que não há retratos há tua
volta.
— E depois?
castigar.
aberta à janela?
— Talvez a velha lá vá, não é? E como é que sabes que não vive lá
levar lá, achas que ele me leva à casa da Villarreal? É o que mais quero
na vida.
— Não sei — respondeu Vicky, e disse a Adela que, agora, ela teria
de ir comer. Foi a correr para casa com a sensação de que a sua garganta
verão, não iria de férias com Vicky. Dali a dez dias, os Peirano iriam de
carro para um chalé nos arredores de Esquel, onde ficariam até inícios
o verão na quinta dos avós, como sempre. Alugaram uma carrinha pão
que ficasse com ele. Gaspar percebeu logo. O pai quase não dormia ou
numa das visitas, dizer-lhe que tinha de ser internado, que era uma
loucura ficar em casa, e o pai percebeu que ele estava a ouvir porque a
deu-lhe uma chapada que o fez sangrar dos lábios e disse-lhe nunca,
desenhava uns símbolos que Gaspar também não se atrevia a espiar. Deu
com ele, uma manhã, a tentar barbear-se na casa de banho com as mãos
apetecia fazer, pedir-lhe por favor que se curasse, dizer-lhe que não sabia
O pai disse que não fazia mal, mas Gaspar insistiu: tens barba em
cama.
Gaspar falava com o tio quando fazia anos e também no Ano Novo:
pouco tempo. Eram sempre dois: este ano, enviara-lhe uma caixa com
O pai sorriu.
Vem sozinho.
— Vem visitar-nos?
ainda tinha oxigénio e foi para a cozinha. Uns minutos depois, quando
acontecer-lhe, não era a primeira vez que sucedia e era uma daquelas
pôs a máscara. Gaspar foi a correr à casa de banho buscar uma toalha
minutos a chegar. Vivia perto deles, mas Gaspar nunca a vira pelo
tinha de avisar que o pai estava a ter uma crise. Depois, telefonar a
Esteban. Para Gaspar, essa chamada era a mais difícil porque, uma vez,
o pai dissera-lhe: é a única pessoa que sabe o que fazer comigo e contigo
outros.
— Não — respondeu.
tremia. Não lhe restava fazer mais nada a não ser ficar com ele e impedir
que se deitasse porque, caso contrário, seria pior, acabaria por sufocar
andasse em bicos dos pés e o seu corpo fosse mais leve e tivesse de se
Gaspar sentiu uma dor na garganta como se tentasse engolir uma noz
ligada.
rua. Não queria ouvir nem ver mais nada. Já lhe bastava acompanhá-lo
clínica.
Chegaram muito depressa porque era de noite e a clínica também
se sozinho, não sabia por que corredor tinham levado o pai, nem se o
ter com ele até que ouviu a voz tranquilizadora de Esteban, muito perto:
para Gaspar, disse que sim com a cabeça a Esteban. Gaspar falou antes
dela.
— Posso vê-lo?
explique?
disse-lhe: não precisam de ficar cá, mas vão para um sítio onde haja
telefone. Esteban respondeu-lhe que iriam para a casa de Juan. Ela, antes
depressa.
— O teu pai está muito mal, Gaspar, mas podia estar morto.
Gaspar cruzara os braços e olhava para a médica com uma fúria que
não sabia de onde vinha, uma raiva que só conseguia conter a muito
grande e o barulho das chaves fazia eco. Esteban mal lhe falou na sala
Não tinha família, não era casado. E era praticamente tudo o que Gaspar
sabia dele.
— Porque o teu pai não quer que saibas onde é que eu vivo.
— A sério?
proteger os olhos dos raios solares: havia horas que não comia nada e
Não sabe o que fazer comigo, pensou Gaspar, e está muito preocupado.
pensou. Oxalá morra de uma vez por todas e isto tudo acabe e eu possa
chão, o sítio para onde vão os que partem, de onde vêm quando voltam,
trago o seu café simples e acendeu outro cigarro. Pagou sem chamar o
para que entrasse no carro e esperasse por ele: tinha de fazer uma
rapidez a casa: havia pouco trânsito, mas, além disso, Esteban guiava
disse:
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— Nunca consegui acostumar-me ao «vos» . E escapam-me
— Porquê?
pequenos, mas eu não sou pequeno. É ele que não quer que tu fales
meu pai, não gosta, ou sei lá eu. Ele foi sempre assim?
Pô-la em cima das pernas cruzadas. É muito mais novo do que parece,
pensou Gaspar.
música. Era ela que comprava os discos e ia aos concertos. Ele sempre
preferiu o silêncio e, desde que ela não está cá, bom, a música fá-lo
pensar nela, suponho eu. Sabes quais eram as canções favoritas da tua
mãe?
amizade que se tinha naqueles anos, mas conheciam-se. Depois ele ficou
Gaspar olhou para o que ela escrevera ao pé do título. Eram uns dez
— Eu não faço isso — disse Gaspar. — Não sei se gosto assim tanto
Esteban pensou.
devias ter menos de um ano. Nem sei como conseguiu chegar aqui são e
salvo.
— É um bocado chato.
Esteban, era difícil para ele. Um jovem enforcado que ia para o cadafalso
alguns, uma noite que começava para alguém. Viu Esteban abanar a
— Como assim?
— Não fico triste quando penso nela dessa maneira, como na canção.
— E tu?
— Gostavas de ter?
Tratam-te mal? O meu pai diz que são todos uns preconceituosos e que
— Achas? Não.
— Mas há qualquer coisa. Eu gostava de que ele, não sei, não gosto
de o ver sozinho.
Esteban olhou para ele com franqueza, mas não disse nada.
— que o rapaz achou que era música para crianças, e disse-o a Esteban,
Leonard Cohen, Bob Dylan, Pink Floyd, Janis Joplin. Jimi Hendrix, Led
olhos ao som de uma mulher que cantava em português: «Para além dos
intuía, não deviam andar lado a lado. As breves visitas, o pai meio
acontecer se o meu pai não sair da clínica? Vai sair, disse Esteban.
Gaspar não discutiu. Passava o dia com Vicky e Virginia, que recebera
lupa, mas sem vidro que, acompanhado por um pequeno recipiente com
água e sabão, servia para fazer bolhas. E passava o dia a fazer bolhas no
pai. Ele queria ir sozinho, mas não o deixavam enquanto o pai não
ti e não vou deixar-te andar sozinho na rua. Não me importa que sejas o
Gaspar preparou-se para o ouvir insistir em que lhe dessem alta. O pai
vezes tinham decidido dar-lhe alta só para que o stresse não o impedisse
tarde, enquanto Gaspar fingia olhar para a janela para que o pai não
Juan, os livros e os cadernos que queria e que lhe faziam falta e, por
visita. — Fica em casa da tua amiga, brinquem. Eles têm uma piscina,
não têm?
Como sempre, o pai não partilhava o quarto dele; havia outra cama,
Ele acariciou-lhe a mão com cuidado. Desta vez, tinha agulhas de soro
almofada fria.
necessário.
o signo sozinho.
cómica.
— É que o imbecil do teu pai só está a dizer parvoíces, diz que o teu
tio vai ter de cuidar de ti quando ele for desta para melhor e que isso será
altura que está quase a morrer, por isso, o sacrifício será nosso, que
— Porra.
cinco braçadas. Era ótima para uma pessoa se refrescar, mas, para nadar,
pelo pescoço, Vicky estava em cima de uma boia com as suas sandálias
— O que é um gerador?
pronto? — perguntou.
Gaspar suspirou.
porque lhes aconteceram coisas horríveis lá. Mas não me quis dizer que
coisas.
— Vamos de férias daqui a uns dias — disse Vicky. — O teu pai está
quase a sair?
— Tens medo.
médica esperava, como lhe disse uma enfermeira. Estava morto por se ir
embora e disse a Gaspar que, nesse ano, iriam passar uns dias numa
mãe. Isto é: tecnicamente, tua. Da tua família materna. Mas vocês não se
dão pessimamente mal?, perguntou Gaspar, e o pai disse que sim, damo-
nos pessimamente mal, é por isso que nunca os vemos, mas não vão
talvez Tali, se pudesse. Há muito tempo que Gaspar não via Tali; ela
telefonava muitas vezes, mas o pai fechava-se sempre para falar com ela.
Perguntou pelo pai, que viajava noutro carro apenas com a enfermeira
cidade, adormeceu.
muito grande que, quando o tentou ver bem, virando a cabeça, começou
não era uma enxaqueca, vinha de fora, um apertão com duas tenazes de
era longe, o clima não era diferente. Destapou-se e tentou focar: não se
tratava de uma tontura comum, era semelhante ao que sentiu quando ele
mexesse a cabeça, seria melhor: aprendera isso. A dor era forte, mas de
Uma das nódoas negras em forma de mão era muito parecida com a
ficado preso nalgum lado e aquelas feridas eram fruto dos esforços para
Tenho de fugir, pensou. Estou nu porque não querem que fuja, mas
Devo ter sido sequestrado. Não reconhecia nada no quarto, a roupa dele
não estava lá. Mas também não estava amarrado. Saiu da cama e, assim
E, então, a certeza foi tão clara como saber que tinha cinco dedos em
cada mão ou que os dentes servem para mastigar ou que a sombra era
mais fresca do que o sol. Bastou-lhe olhar para o pai para saber que era
o responsável por aquilo, para saber que tinha sido ele a atacá-lo. Não
motivo, mas era verdade: fora ele a magoá-lo. Viu o olhar satisfeito do
pai. Há algum tempo que não via aquela expressão, a boca relaxada e
sorridente.
Tentou, primeiro, retroceder na cama: não ficou com vergonha de a
médica o ver nu. A janela estava fechada, mas tinha grades. Se quisesse
fugir, teria de sair pela porta e passar pelo pai e pela médica. Pensou que
devia tentar uma fuga inteligente, falar com eles, enganá-los e, uma vez
lá fora, correr, mas algo básico lhe gritava que estava em perigo e tinha o
então viu que tinha o tornozelo inchado como uma bola de ténis. Era
ela teve de recorrer a toda a sua força, que, percebeu Gaspar, não era
olhava para ela, olhava para o pai, que estava de braços cruzados com
uma calma horrível. Porque não se aproximaria dele? Porque não tentava
era melhor saber, sempre era melhor saber. Ela dizia, pacientemente, que
dois dias atrás, durante a viagem da clínica para a quinta. Estamos numa
quinta, explicou-lhe. A quinta para onde vinhas com o teu pai: o teu
tanto como tu. Eu saí ilesa por sorte. Seja como for, não tens nada
Gaspar olhou fixamente para a médica e, depois, para o pai, que não
parecia inquieto. Sentiu, então, uma humilhação que lhe encheu as faces
de sangue.
magoaste.
quartos, mas, à direita, havia luz, um pátio? Correu. Já não lhe doía
importou. Não era um pátio: era uma sala luminosa com uma janela
decoradas com azulejos partidos, e depois uma árvore com uma rede, e a
mesmo no seu estado, não lhe custou abrir e franquear. Depois o campo,
que não era muito, o pé fazia-o gritar, mas, enquanto corria, lembrava-
se, estava numa mesa e o pai noutra, e havia gente, não muita, parecia
qualquer coisa médica, uma operação, o pai estava como que a dormir,
ele tentava acordar e não conseguia, não conseguia ver bem as caras
Não, a história do carro era mentira. Ainda se sentia sujo sob a pele,
mas não encontrava uma explicação para isso, ter-lhe-iam injetado óleo?
uma massa compacta sem nuvens que parecia muito próxima, prestes a
por causa da queda, e ardia-lhe o pé, mas, quando tentou voltar a pôr-se
certeza que reconhecia e que não tencionava abandonar, sabia que fora o
então o pai, com uma força incrível — não estava a morrer?, não devia
— Gaspar, não vou discutir o que sentes. Mas eu não te fiz mal. Só
percebesse. Mas preciso que confies em mim. O que tenho de fazer para
mordido.
— Demonstra-o. Se estive no hospital e tirei radiografias, quero vê-
las.
não aceitou o ombro que ele lhe ofereceu para se apoiar. A quinta ficava
muito perto dali, tinha corrido pouquíssimo. Quis ir à frente para ter
imagem, tinha essa recordação, de onde viria? O pai com uns dedos tão
olhar para ele. Agora, o céu estava negro e a doutora Biedma disse o que
curta que deixara crescer. Como podia estar tão calmo? Gaspar pôs-se
— Então, ajuda-me.
decidiu que ela era credível e também lhe pareceu credível a história da
ser verdadeira, e então eles tinham razão; e não queria ouvir nem pensar
nada que fosse razoável, o corpo ainda lhe tresandava a perigo e sentia
que, se lhe cortassem a pele do braço, surgiria uma película preta como
veias. Puxou a t-shirt preta para ver as feridas. O sangue, seco, ainda
estava vermelho.
curto. Ouviu o que a doutora Biedma lhe disse: está confuso, assustado,
Eram suas ou era possível falsificar uma coisa daquelas assim tão
depressa?
amnésias temporais, e que isso era a coisa mais normal do mundo. Outra
Usam muito isto nas telenovelas, não é? Mas não é raro. É possível que
esquecer um acidente.
estavam contigo. Foi por isso que pensei que, como a lesão é
— disse Gaspar.
gente, não é?
— Quem é ela?
— É o meu pai.
acordei na quinta.
— Não.
que era por isso que lhe tinha dado alta. Que não era necessário fazer
ao ortopedista.
Gaspar deixou-se levar. Ouviu gelo, imóvel, gesso não. Viu o pai
— Porquê?
— És casmurro.
nervoso. Não sei onde está o carro, vamos para casa. Ou pensas que isto
— E porque é que eu sei que foi o meu pai que me fez mal?
Esteban agachou-se. Sob a chuva, Gaspar viu que tinha os pelos dos
— Acho que deve ser porque foi o teu pai que te tirou do carro e, ao
cara.
— Ainda bem.
Esteban sorriu-lhe.
não ouviu nem viu o pai; estava na quinta, pressentia-o, mas, por agora,
vestida com umas calças de ganga e uma camisola de alças e, por uns
o vazio dos dois dias de que não se conseguia lembrar; esqueceu as suas
suspeitas. A mulher, apesar de já ter bastante idade, era bela, não estava
Tali foi ao frigorífico, que tinha congelador, meteu uns cubos de gelo
parva. Era a primeira vez que sorria em todo o dia. Levantou sozinho o
os lábios. Ela tinha os dentes muito brancos e os olhos eram tão escuros
como o cabelo.
derreteu depressa —, Tali trocou de saco e depois foi-se embora. Foi ter
dormir à noite, talvez por a medicação que a doutora Biedma lhe dava
conter algum tipo de calmante. O pai era uma sombra que escrevia no
tentativa de sequestro. Tu tens muito dinheiro. O teu pai, por muito que
não queira, é viúvo de uma mulher muito rica e seu herdeiro. Não sabias
que neste país sequestram as pessoas ricas? Gaspar disse que sabia, que
o pai já lhe explicara, mas eles eram assim tão incrivelmente ricos? Os
22
sim, disse-lhe Esteban, só não vives como um pijo por causa da ética
23
do teu pai. O que é um pijo? Ah, não tem a ver com a pija , como vocês
dizem. A melhor tradução seria cheto, suponho eu. Mas é mais do que
por ter batido com a cabeça, precisava de ser vigiado, e que, por causa
sessões, uns livros que encontrara num dos quartos da quinta. Suspeitava
de que fossem do pai porque eram quase todos livros de poesia, mas
pai, mas nas imagens que recordava tinha as mãos enormes e unhas
longe. Percebeu que era possível que, se o pai realmente o tivesse tirado
à bruta do carro, e baralhado pela dor e pelo acidente, as suas mãos lhe
dormir era a mesma coisa que estar num hospital. Tal como sentir que
mexiam nele: nunca tinha estado internado, mas, graças ao pai, conhecia
lembrasse de toques na pele, mas também sob a pele, o que ainda era
mais nojento. E as pessoas ao longe podiam ser médicos com máscaras
Na primeira vez, Gaspar viu que tinha as costas marcadas por duas
resto do verão deitado de barriga para baixo. Foi mais aborrecido do que
percebeu que fazia sempre isso, que nunca deixava que o sol lhe secasse
a pele. Assim que saía da água, secava-se com a toalha e vestia uma
camisa.
— Trinta e nove.
mas ninguém atendeu. De certeza que estavam de férias. Pablo tinha ido
para Mar del Plata com os pais; a gravidez da mãe já ia muito avançada.
Vicky e Adela ainda não tinham voltado do Sul. Não saía muito e ainda
por perto: quando ia até à entrada, percebia que a quinta estava bastante
isolada ou, então, que o jardim da casa era muito grande. Do outro lado
para preparar a sua fuga, mas, a cada noite que passava, a vontade ia-se
que tinha não eram nada comparadas com o que o pai lhe faria se
fugisse.
ciúmes? Soube que Esteban não ficaria lá muito mais tempo. Tali queria
saber quem tomaria conta dele «em Buenos Aires» e Gaspar não ouviu a
resposta. Ela deslocava-se pelo quarto: aqueles passos leves não podiam
ser do pai. Gaspar fechou os olhos e viu-a, de cabelo escuro preso num
rabo de cavalo muito alto e sem sutiã. Sentiu vertigens ao perceber que
era um pouco parecida com a mãe, mas muito, muito mais bonita, pelo
menos comparada com as fotografias. Ouviu alguém, provavelmente
meses é bastante tempo», dizia Tali. «Já verificaram que o corpo não
abrir a porta, e Gaspar ia fugir, mas não fazia sentido. Fechou os olhos
— Entra, se quiseres.
— O quê?
operações, mas, por agora, os resultados não são bons e quer que o faça
nos Estados Unidos. Havia um candidato: é por isso que estávamos a
dizer que o resto do meu corpo, dos meus órgãos, digamos, estão em
dicionário. Ela acha que fazer a tentativa daqui a seis meses é o ideal e
— Não, porque não vai servir de nada e não estou para isso. Quero
ela o chamou pelo nome e lhe ofereceu o braço para ele se apoiar e não
arrastar o pé. Foram para o jardim. A noite estava fresca, e não parecia
simplesmente o teu pai quer estar contigo, quer a tua companhia e mais
nenhuma. Gaspar sentiu a raiva a endurecer-lhe o estômago, que morra
— Olha — disse Esteban. — A única coisa que o teu pai fez por ti,
desde que o conheço, foi proteger-te. Até da tua família, porque são más
questionável, mas tens de ir com ele. Não há nada a temer. O teu tio virá
em breve. Não ficarás sozinho com o teu pai. E o Luis é a tua família, a
— Ele sempre disse que os meus avós e os meus tios não são bons e
país tem, do pior, e ponto final. Não são a tua família, apesar de seres do
precises.
O rio verde de Los Alerces não era assim tão verde como diziam. Era
Adela se sentia tão contente a passear pela margem, enquanto pedia aos
gritos que lhe tirassem fotografias. A viagem com Adela e Betty fora
além disso, reparou numa coisa que até à data lhe passara despercebida
em Betty. Era elegante, tinha sempre o que dizer numa conversa, e a sua
fora da janela e disse ao guarda que com certeza que podiam pedir o
Vicky viu o pai a pedir-lhe, com um gesto, que se calasse, e ela voltou a
tremiam-lhe as mãos.
mesmo verdadeira.
tenda. Os adultos dormiam na roulotte. Adela estava contente por não ter
ido para a quinta. Gostava de ir, mas era sempre a mesma coisa. Havia
cavalos, mas eram feios, tinham as patas gordas, não eram nada
parecidos com os cavalos árabes. A piscina sim, era boa. E não havia
nada à volta, as outras casas ficavam longe. Falavam sobre tudo antes de
nada até agora. E Adela, que iluminara a própria cara com uma lanterna,
disse porque ele nunca vai reparar em mim dessa maneira, não vai
querer andar comigo, sou deformada. E ele é tão giro, Vicky. É giro, não
é?
gostava de uma muito triste que dizia «e nas multidões o homem que eu
amo». Ficou admirada por Betty saber tantas canções e até tocar
Parra. Betty tinha muito boa voz: na brisa da noite, o seu vestido de seda
perguntas sobre a sua vida, mas, por agora, Betty intimidava-a. Além
argentino.
espíritos canibais. Adela voltou a falar sobre o cão preto que lhe
clássicas. Vicky tolerou-as até uma noite em que Adela lhe disse olha o
mas ouve este. Adela abriu o livro e leu. Era uma história sobre as ilhas
numa gruta subterrânea, numa floresta parecida com esta. Os seus fiéis
esfolar-te, riu-se Adela, mas Vicky teve medo do riso dela. Calçou as
volta à cabeça como se fosse um torniquete até ficar com a cara virada
quando puder, com carne humana. Deve andar como um bicho meio
espezinhado.
Adela sussurrou está cá com uma buba, e Betty deu meia-volta e desatou
a correr: para sua surpresa, as raparigas viram-na atirar o livro dos mitos
um braço enfiado num buraco do peito, não das costas. Um rapaz com
cortada, junto à casa, protegida por um pequeno telheiro para que não
ficasse húmida. Uma manhã, foi necessário cortar mais e Betty assumiu
a tarefa: transpirava sob o blusão e o suor fazia com que o cabelo ficasse
whisky sem gelo e, às vezes, ficava a olhar para o fogão. Foram todos
juntos para uma montanha, La Hoya, que era uma estância de esqui, e,
embora não pudessem esquiar porque não tinham dinheiro para pagar
passou, que, quando era pequena, esquiava, mas que nunca gostara de o
onde vão os famosos, disse Vicky, não é caro? Os meus pais podiam
permitir-se isso, disse Betty. Os pais dela, aqueles velhos tristes que
qualquer coisa e de se despedir de Adela, foi visitar Pablo. Ele fora para
a Costa e dizia que tinham sido umas férias horríveis. Os pais sempre a
gostara do hotel. Os pais tinham reservado uma suite, o que queria dizer
que ele tinha uma espécie de apartamento próprio. Uau, disse Vicky,
agora têm dinheiro? Pablo teve de admitir que sim. O quarto dele tinha
únicas coisas boas. Que pena, disse Vicky, nós divertimo-nos imenso. O
Gaspar já voltou? Não faço ideia, admitiu Pablo. Quando por lá passei,
estava tudo fechado e não quis bater. Hoje não fui lá.
ouvia-se música. Não muito alta, mas o suficiente para se ouvir da rua.
deixá-lo ouvir música tão alto, quando naquela casa mal se podia falar
de ver Gaspar. Mas não: era Juan Peterson e ela retrocedeu um pouco;
Pablo, atrás dela, respirava fundo. Também ele tinha medo do pai de
Gaspar.
Juan Peterson não gritou nem se zangou. Olhou para eles com uma
Então, viram que estava coxo e que tinha feridas nos ombros, no braço,
no peito.
lembro.
preocupada.
em paz.
perguntou Vicky, e a mãe disse que sim, mas que lhe doíam os ovários e
— É que fomos a casa do Gaspar e ele está esquisito, não quis vir
connosco.
Lidia bebeu um gole de chá, apoiou os pés na mesa de centro que
bem.
— Porque fiz uma visita ao Juan, tomámos uma bebida juntos. Têm
cerebral ligeira, mas reagiu muito mal, andou baralhado durante uns
dias. Não se esqueçam de que a mãe morreu num acidente e ele está a
reviver coisas tristes. E o Juan está em estado muito, muito grave. Vão
— Tenho imensa pena. Sei que não gostam do Juan, ou que ele vos
faz impressão, não sei, mas é bom tipo. Um tipo especial, não é?, mas
boa pessoa.
Vicky pensou como podes dizer uma coisa dessas, se ele bate no
pouco ler sobre o River Plate e ter de suportar a sua equipa imbatível,
embora tivesse de reconhecer que queria jogar como o Francescoli, que
defesas brutais, que arreavam só por via das dúvidas; isso é bom, dizia-
River sagrar-se campeão por 3-0 contra o Vélez Sarsfield. Era como estar
num filme. Quando acabava, a realidade era o seu pai na cama, às vezes
andava sozinho por aí, Gaspar não sabia por onde, e, quando voltava,
vinha zangado ou tão cansado que nem sequer conseguia falar. Gaspar
comprimidos? O que eram aqueles desenhos? Por isso tudo, era melhor
/ We sit beside the headstone thus, / And wish that name were carved for
us». Parecia de propósito. E a tradução era péssima, ainda por cima. Não
Ainda não era capaz de nadar, por causa do pé, mas aguardava com
ficado sugestionado. Mas, com o pai, não podia baixar a guarda. Não era
— Magoaste-te?
— Isso é fácil.
podia falar com ele, algo impossível há meses — é porque é que de noite
o céu está escuro, com tantas estrelas devia haver mais luz.
lembro. Estás a fazer uma pergunta que ainda não tem resposta, creio eu.
matéria escura que empurra as estrelas, é por isso que cada vez estão
pai.
muito boa, a melhor em anos, e ela merece esta noite e que te despeças
Gaspar deixou que o pai lhe acariciasse a mão. O que dissera sobre a
A viagem foi curta. Até à Costanera Sur, bela de noite, com cheiro a
porque é que a cidade parecia estar tão longe do rio, era estranho, um rio
sem praias que chocava contra os paredões, tão grande como um mar,
Buenos Aires e caminhar na relva e tocar nas folhas das árvores com a
ponta dos dedos, pouca luz a não ser a da Lua, três quartos do universo
são escuridão, disse o pai, e Gaspar percebia, o universo era noite, mas
ouvir rádio, um tango triste, todos os tangos eram tristes e caminhar até
ao varandim, não até à margem, porque não havia margens, porque não
distante, agora terra, cinza, fria como a pedra do varandim. Aqui não,
disse o pai de repente. Vamos até à Reserva. Tens medo? E Gaspar disse
que não, nunca tinha medo quando estava com o pai, podia ter medo
dele, mas não com ele; apesar de o saber doente, parecia-lhe invencível e
julgava saber Gaspar, protegido por umas grades altas. Vejamos, disse o
entre ambos, e disse-lhe tens uma coisa que é minha, deixei-te uma
coisa minha, oxalá não seja maldita, não sei se consigo deixar-te algo
que não esteja sujo, que não seja escuro, a nossa parte da noite. Gosto
disto, disse Gaspar, e o pai respondeu-lhe claro que gostas, porque agora
nada te pode fazer mal. Nada? Neste momento, nada. Caminharam sem
falta dele, pensou, vou ficar contente quando já não estiver cá porque vai
ser mais fácil deixar de estar triste, mas vou sentir a falta dele.
o barulho dos animais, Gaspar sabia que havia víboras lá, mas não eram
nada te pode fazer mal, quanto durava o agora, quanto tempo era o
água, que na altura não estava tão contaminada. Gaspar parou e cheirou
a noite, a água, tanta que era incrível não ser salgada, e tirou os sapatos,
feito antes? Gaspar não teve medo: aproximou-se para ver a ferida e
desenhava nos papéis que estavam espalhados pela casa, e percebeu que
mortos viajam depressa, recordou a frase que lhe dera tanto medo
quando a leu, mas agora já não, oxalá chegues depressa aonde tiveres de
O pai voltou à margem e fez uma cova com as mãos, mais animal do
fumar. Ah, finalmente, disse o pai. Parecia contente. Gaspar tentou não
pensar no que o pai fizera com as cinzas, ou no que fizera ele próprio,
O regresso foi como um sonho, mais lento, mas sem tantas pausas.
perguntar, encorajado pelas cinzas e pela Lua, se ele ficara doente por
maneira. Eu? Perguntou o pai. Não, a doença até me travou. Tenho isso a
agradecer-lhe. Sou teu pai por ser doente. Se fosse saudável, não sei o
ficaram longe deles, e agora, fechado no carro com o pai seminu, com o
era muito remoto, belo como um jardim secreto atrás de uma parede de
moscas.
a futebol. Hugo Peirano dizia que, com aquela equipa, que era uma
uma noite em que não conseguia dormir, o pai a contorcer-se por causa
melhor que pôde até ao amanhecer, quando o pai adormeceu com uma
respondeu-lhe o pai. Que nem te passe pela cabeça telefonares ao teu tio,
contra o Nápoles, e ouvir uma e outra vez a equipa não se está a mostrar,
Gaspar não o visitava quando estava internado. Não podia e não queria.
que isso lhe custasse uma tareia infernal ou um castigo ainda pior, seria
tirava sangue. Sim, disse ele. Em breve. Mas antes tenho de acabar uma
coisa aqui.
Ela sabe que ele não pode estar em casa, mas deixa, porque será? O que
iluminado, tão elegante que Hugo Peirano dizia este filho da puta faz-me
chorar. Não foi uma boa notícia que a França tivesse perdido contra a
sozinho. Nesse dia, não fora ver em que zona da casa o pai estava e ficou
trazer-me a comida.
não olhava para ele com atenção —, percebeu que ainda perdera mais
vendo mais um debate de futebol. Gaspar percebia que o pai não estava
sistema, já não usava máscara em casa, mas um tubo por cima da boca,
nariz.
mandar calar também aos gritos. Estão embrutecidos, disse Lidia. Estão
te, disse-lhe Hugo Peirano, que também estava a perceber tudo, mas não
e a toda a gente, e sabia que os seis minutos que restavam seriam duros,
mas inúteis para a Alemanha; eram campeões e era como voar, como se
nada mais existisse naquele momento, um momento que era para sempre
e que era alegre e tristíssimo ao mesmo tempo porque não podia durar.
confetes vejam vejam que loucura vejam vejam que emoção cantavam as
queriam voltar para viver aquilo, mesmo nas regiões onde chovia
Gaspar lembrar-se-ia desse dia, e dessa noite, como o último dia feliz
Pablo foi logo ter com ele: viu Gaspar assim que saiu da escola. Era raro
— Mas pedes-lhes tu. Queres falar com o teu tio? Ele já não tinha
chegado?
estava nervoso. Pablo percebeu que tinha as calças a cair por ter
— Acho que já chegou. Só que não sei onde está. Mas a ex-mulher
— O meu pai não quer que fale com ele. Diz que o fará ele quando o
— Não posso telefonar da minha casa. Ele vai saber. Não quero que
fique nervoso.
— Não sei bem. Vou contar-lhe do meu pai, vou dizer-lhe que tem
de vir para cá, ele disse que nos ia acompanhar. Se não, terei de entrar
em contacto com os meus avós, e aí, sim, é que o meu pai ficava louco,
porque os odeia. Não sei o que fazer. Ele tem de pensar num plano. A
— Tenho o dinheiro.
— Eu quero pagar.
assim que se comportava a maior parte das pessoas. Não gostava daquela
Em casa do tio, no Brasil, atendeu uma mulher. Gaspar sabia que ele
sempre pensou, até àquele momento, que era brasileira. Até aprendera a
estranho, com uma pronúncia que ele não conhecia: usava o «tu» e
não tinha telefone onde estava, mas que lhe podia dar a morada dele.
com ela — tratava-o pelo nome, Luis —, e disse-lhe que lhe ia pedir que
era assim tão estranho, não tinha por que dizer que recebera uma
— Sabes onde fica Villa Elisa? — perguntou a Pablo, que disse que
números, tal como a mulher lhe dissera. Gaspar sentiu que o nó que
menos, tinha um sítio para onde ir. Até o podia visitar, se quisesse: no
O frio era bom para passear Ariadna, a nova cadela de Vicky, que ainda
trela era vermelha, tal como o elástico que Vicky usava para prender o
caixa e nenhum dos dois lhe dera uma resposta. Toda a gente mente,
insistia.
terem uma reunião com ela. Pediu-o assim. Quero uma reunião. Com o
que teve lugar no quarto de Vicky, contou: durante a viagem ao Sul, uma
ela nunca me fala dele. Disse-me que o tinham matado, que era um
desaparecido.
casa de banho.
porque não tive coragem, não sei. Mas também me disse uma coisa
importante: que ela sonha com o meu pai muitas vezes e que sonha
escondido lá e ela disse-me que sim, mas não sei se é verdade, porque já
estava meio bêbeda. Quando está bêbeda, a dada altura começa quase a
delirar e a dizer tudo e mais alguma coisa, diz que sim só para se
esquivar, por exemplo. Mas, se calhar, ele escondeu-se mesmo lá, não
acham?
— Agora nega tudo, como sempre, mas quando se referiu à casa foi
muito clara.
de Adela.
Vicky correu arrastada por Ariadna e dobrou a esquina da Villarreal,
ferro. Entrou no jardim. Gaspar e Vicky esperaram por ela no outro lado
da rua.
— O zumbido?
— Não tem onde agarrar-se. Nem sequer há uma árvore, está tudo
disse a Gaspar: — Agora acha que o pai era guerrilheiro e anda a ler
— Vimos cá na primavera.
Gaspar olhou para a casa. As duas janelas tapadas, a relva amarela,
as paredes cinzentas. Não sabia explicar porquê, mas sentiu que a casa o
louco? Pablo disse-lhe que fora obrigado a tapar a boca a Adela para que
deixasse de falar da casa, mas não só por estar farto: porque tinha medo
dela. Ariadna viu surgir outro cão com um vizinho e arrastou Vicky, que
casa, mas Adela lançou a Gaspar um dos seus olhares definitivos: seria
vontade de ver futebol e a única coisa que queria ouvir era o som do
telefone. Mas quando soube que o tio lhe telefonara, a notícia apanhou-o
se sentia melhor.
mentir-me.
zangado.
arder-lhe nos olhos. Conseguiu fazer com que não continuasse a subir e
se virasse. Parecia altíssimo ali, dois degraus acima dele, a olhar para ele
vou ter com os meus avós. Pode ser que me queiram ver. Às tantas, só
têm problemas contigo. Sei que estás doente, mas paciência, os teus
quente nas calças: urinou-se, e quando olhou para o pai para que o
impedia de rolar pela escada abaixo era o braço maltratado que o pai
mordeu-o. Mas o pai não retirou a mão, nem sequer quando os dentes
sangue e engoliu-o.
lábios vermelhos. Não parecia estar sozinho. Era como se, atrás dele,
— Vai. Corre!
no lado de fora e fechou a porta à chave sem dizer uma palavra. Por
favor, papá, disse Gaspar em voz baixa, depois olhou para as calças
fazer isso uma vez, quando cortou o dedo com um x-ato na escola —,
mas não serviu de nada e estava a deixar um rasto vermelho por todo o
vou, gritou Pablo, mas o zumbido sem fim acabou por inquietá-lo.
Quem tocaria assim e para quê? Estava sozinho em casa. A mãe tinha
ido ao hospital a uma consulta de acompanhamento da gravidez, só
como a carne sob a luz de uma vitrina no talho; via-se o branco do osso.
ao hospital de mota.
Quando o fez, Gaspar gritou. A mãe nunca usava a mota; era do pai,
pouco, mas só o deixavam dar uma volta ao quarteirão e, uma vez por
outra, aos domingos, ir até ao parque quando não havia muito trânsito.
ver uma pequena poça na zona onde Gaspar tinha esperado que ele
abrisse a porta.
tirou-lhe o cinto das calças de ganga. Sabia que andava sempre com os
dar a volta aos corpos de ambos, se era suficientemente largo para servir
tão comprido, que pensou que devia estar avariado. Sentia a respiração
por aquela rua. Perguntou a Gaspar várias vezes o que é que lhe tinha
carros sem lhe pôr o cadeado ou a tranca das rodas. Gaspar estava um
pensou que jamais teria conseguido lidar sozinho com uma ferida
Claro que Pablo ignorava o que Juan Peterson, que não trabalhava,
pudesse ter o teu irmão num lugar assim, num lugar fino.
Com luvas e uma pinça levantou um dos rebordos que estava a inchar e
repente, lembrou-se do óbvio. O facto de ainda não ter pensado nisso era
inexplicável.
sorriu, pela primeira vez. Vais ficar bom, disse-lhe. Tens um corte muito
Parecia assustado.
Estava a mentir.
Lidia Peirano surgiu despenteada e a falar muito alto. Ai, meu amor,
Estavam juntos? Não, disse Pablo, ele veio à minha procura assim.
contam-me melhor essa história, agora tens de ser cosido. Já lhe dei a
olhava para a ferida e dizia que não com a cabeça. Deita-te, disse a
Gaspar, pondo-lhe umas almofadas debaixo dos pés. Assim ficas menos
tonto. Depois disse ao médico: o pai é doente cardíaco; tanto quanto sei,
mais valia teres partido o vidro com a outra mão. Foi sem pensar, disse
O olhar que trocou com Pablo tinha qualquer coisa de feroz. Cala-te,
bloco, o miúdo está com sorte. Estás com sorte!, disse-lhe o médico a
atender, telefona para minha casa, avisa a Vicky e ela que insista.
sei que é uma pessoa esquisita e que não é muito simpático convosco,
mas é o pai dele. E aquela ferida é muito, muito feia. Faz o que te digo.
cortara com uma chapa da fábrica e que lhe fizera pior a vacina contra o
afetar os dedos, mas não. Depois a fábrica fechou, mas isso já é outra
Não é meu irmão, repetiu Pablo. Porque é que diziam aquilo? Não
acontecido, ela perguntou várias vezes mas ele está bem? até ele ficar
Adela: já devia ter chegado, ela que falasse com o pai de Gaspar, ou que
disso, mesmo que fosse incrível e tivesse como única prova a atitude de
escada virava. Passara por ela naquela noite, quando entrou na casa de
Gaspar e viu Juan com o amigo, com o namorado, a noite com que Pablo
eles ou pensava neles antes de adormecer. Não era difícil cair em cima
mentir. E ele, o que deveria fazer? Se Juan era capaz de fazer uma coisa
daquelas, tinham de tirar Gaspar daquela casa. Não lhe restavam mais
fichas, mas encontrou dinheiro e foi a correr até ao quiosque fazer outra
chamada.
fechada com a Virginia, não a posso deixar com a minha avó, que se
sente mal. A mãe da Adela foi a casa do Gaspar. Diz que ela trata de
tudo.
peito que dizia ter caído como um palerma na rua. Pablo sentiu-lhe o
tivesse tido tempo de ir a correr fechar a porta da garagem. Isso não era
sangue dele? Eu sou dador universal, disseram-me uma vez, posso dar-
outra maneira, nem sequer aos fins de semana, pois trabalhava sempre
Avisaram o Juan?
— A Betty avisa-o.
usar o edredão novo que o meu pai trouxe que é tão quente, de penas.
dizia aos gritos que tinha asma, enervando ainda mais a filha, e uma
médica mandou entrar a rapariga asfixiada e fechou a porta na cara da
Onde estaria Juan? Talvez estivesse escondido num dos quartos daquela
casa tão grande e escura, ou com o amigo da madeixa branca que gemia
como se lhe doesse, doeria muito?, desde que os vira não parava de
Lidia voltou com várias notícias: já podes ver o Gaspar, vai ter alta
daqui a nada, mas prefiro que ele fique cá mais umas horas até o Juan
Depois, levou Lidia para um canto e Pablo não conseguiu ouvir bem
fecharam a porta.
— Sobre o quê?
mato-te.
Gaspar ameaçava-o cheio de raiva, quase parecia que lhe queria
lado dele na maca, e viu que Gaspar evitava olhar para ele, explorando
baixa, e Gaspar assentiu com a cabeça; quando olhou para o amigo com
os olhos secos, disse: agora não posso, e Pablo respondeu que estava
bem.
maltratado daquela maneira pelo pai. — A sério. Se não fosses tu, não
Disse-o sem sorrir. Pablo pensou que nunca mais o voltaria a ver
sorrir.
— Um bocado.
disse, e mediu o pulso a Gaspar. Vamos para tua casa, a Betty diz que o
teu pai chegou há um bocado. O braço para cima, não o deixes
E, dizendo isto, saiu do quarto com o braço para cima, o cinto no seu
Gaspar enjoou um pouco com o balanço do carro, mas não disse nada a
mas não tinha a certeza de quando seria esse depois, não sabia bem
porquê, mas não sabia se voltaria a ver Pablo, se voltaria a sair de casa.
Agora não havia escapatória. Mas queria fugir. Queria ver o pai.
havia mais nenhum lugar onde sentar-se, a não ser no chão. Betty saiu e
Porque será que só me apercebi disso agora, sendo tão óbvio? Se calhar,
a Adela até tem razão em relação ao pai. Os pais não deviam existir,
devíamos ser todos órfãos, crescer sozinhos, bastava alguém ensinar-nos
lhe dizia. O pai fingia ouvir e dizia obrigado, Gaspar conseguiu perceber
isso pelo movimento dos lábios, dizia que sim com a cabeça enquanto
cabelo muito limpo e, como estava um pouco comprido, tentava pôr uma
fina madeixa loura atrás da orelha. Lidia apoiou-lhe uma mão no ombro
disposição, e ele, tão falso, a dizer que tinha visto a janela partida e o
eles diziam. Sentiu o braço a palpitar de dor; não era muito forte, devido
aos analgésicos que lhe tinham dado, mas ardia. Iria piorar.
aproximar de Gaspar, foi para o quarto: pelo caminho, atirou para o chão
podia matá-lo. Queria que o pai percebesse. — Diz qualquer coisa, filho
da puta!
Gaspar estava de pé na sala à espera do pai, que se virou muito
contra a parede. Mas quando olhou para ele, a raiva diluiu-se e só lhe
O silêncio foi tão completo, que Gaspar pensou que o homem que
— Estou vazio.
saudável. Não me faças mais mal, por favor, disse. O pai sentou-se no
— Então o que é que tu tens? Mata-me, papá, por favor, não tenho
medo.
Gaspar olhou o pai nos olhos e viu uma cobiça horrível, um desejo
— É o que tu queres.
não sabia nomear: uma transfusão de sangue, água quente nas veias,
imagens que não se viam com os olhos. Viu-se a dormir com o pai numa
bebé, deitado no peito do pai, que lia um livro num ângulo impossível
negra na noite, uma mulher sem lábios, a mãe com uma camisola
alaranjada a brincar com ele num jardim, o pai a falar num quarto
lado a dizer que não com a cabeça. Cheiro a gasolina e risos na água. E,
Gaspar.
salvar.
— Estás louco?
para perceberes e eu não quero que percebas, filho. Estou preparado para
proteger.
antibióticos.
durante anos.
Estava sentado no degrau da porta de casa quando viu chegar o tio.
não fosse tão grande como o pai e tivesse alguns cabelos brancos. Era
mais velho, Gaspar sabia isso, devia ter uns quarenta anos. O tio acenou-
estranho o contraste com o cabelo louro, ainda mais claro por causa dos
outro durante uns segundos até o tio lhe sorrir e dar um abraço, e o
que lhe mandaram tinha mais de três anos. A voz de Gaspar tremeu-lhe
quando disse:
O tio disse que sim, mas antes olhou durante algum tempo para a
fantástica.
interior não era fantástico. Parecia um lugar desabitado. Luis não disse
— E o teu pai?
sozinhos.
O tio sorriu.
me que só viesse quando ele me chamasse. Sabes que o teu pai não é
que tantas vezes ouvira ao telefone e que lhe ligava no seu aniversário,
Perguntou-lhe porquê.
Pareceu-lhe esquisito que o tio bebesse café sem açúcar, mas não disse
nada.
— Partiste o braço?
imobilizado. Faltava pouco para lhe tirarem os pontos. Não queria falar
operado e tudo.
a pele; Gaspar coçou-se com cuidado por cima do penso. O tio bebia o
deixavam jogar futebol, embora não percebesse porquê, pois havia quem
Não teve tempo de dizer tudo, nem de receber uma resposta, porque
cozinha; o tio indicou-lhe com um gesto que não demoraria e o pai nem
olhou para ele. Gaspar lavou as chávenas só com uma mão, porque não
da sua casa, viu Luis, o tio de Gaspar, a beber mate com a mãe, que,
ouvira falar dela. Vicky pensou que ele era uma versão mais velha e
Brasil. Num bairro chamado Gamboa, perto de Santa Teresa. Que lindo,
tinha saudades dos cheiros, da comida, que o Rio era uma cidade
triste, disse, e olharam ambos para Vicky, mas ela pegou num
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cañoncito de doce de leite e não se mexeu.
repente.
uma vez, mas dava para notar a mudança. Estava quentinha, com os
radiadores ligados. Tinham comprado uma cama nova para Juan, onde
cinema ver filmes atrás de filmes e parecia triste e magro, já nem sequer
Luis olhou para ela com a bomba do mate entre os lábios e os olhos
— Está de rastos. É o pai dele. E, além disso, teve dois acidentes nos
— Vai adotá-lo?
Vicky estava admirada com aquele homem que lhe falava com
seriedade e como se fosse uma adulta, olhava para ela com franqueza e
— O que é isso?
responder.
ainda é pequeno. Cada qual lida com a morte de um pai ou de uma mãe
à sua maneira. A minha mãe morreu quando eu era pouco mais velho do
Gaspar chegou tarde a casa. O pai já estava internado e a casa era tão
clínica e as tentativas de estar com ele. Havia pizza no forno, mas estava
fria — e faltavam várias fatias —, e comeu-a na mesa da cozinha. Era
uma sorte: o café do parque tinha fechado sem aviso prévio e ele estava
quarto do pai estava entreaberta e, por uns instantes, julgou ver a sua
copo com qualquer coisa fresca. Gaspar serviu-lhe sumo de maçã com
— Queres vir à clínica comigo? Ainda não lá foste desde que o teu
— Alguma coisa mudou, sim. O teu pai já não está consciente. Teve
— Não.
percebo grande coisa. Na prática, quer dizer que não sabem se vai
acordar.
perceber, estás a mentir — disse Gaspar, e não quis ouvir mais nada. Foi
barriga para cima, pôs os auscultadores e um disco dos The Cure — que
sonhou que o pai estava a falar com ele com uma faca enorme nas mãos,
Não conseguia perceber o que é que lhe tentava dizer, e essa era a
do lanche. Gaspar disse que preferia entrar com luz, às seis da tarde já
estava escuro, mas não lhe fizeram caso e ele não insistiu. Há dois dias
que o pai não acordava. Acabara por ir visitá-lo à clínica; o tio deixou de
insistir, mas ele resolveu ir. Estava sozinho num quarto de cuidados
corpo dele era como tocar em argila. Não conseguia acreditar que se
tivesse apagado daquela maneira. Não estava morto, mas também não
gostado de falar um pouco com ele, talvez pela última vez, de lhe dizer
que não o perdoava, mas que gostava dele, será que ia morrer sem poder
falar antes com ele? Ter-se-ia acabado assim, tão repentinamente?
se dele, aliviado, ainda não estava morto. Mas era apenas aquela maneira
de maneira agitada, para depois deixar de respirar outra vez. Não abria
os olhos, mas será que o podia ouvir? Agachou-se para lhe falar ao
lhe que sim e passou-lhe uma mão pelos ombros, mas Gaspar afastou-o.
Não queria que lhe tocassem. Onde estavam Esteban e Tali, se eram
quarto e julgou ver o pai morto na cama, tão imóvel, o sol entrava pelas
frestas, e ficou na porta até a imagem se desvanecer. Sim, iria viver com
o tio, e gostava dele, que era tão diferente e tão parecido com os pais dos
amigos, mas sentiu-se expulso da sua verdadeira casa, uma casa que não
divisões, uma casa secreta que era completamente sua. Sentiu que lhe
diferente onde seria criado por um desconhecido, como n’A Guerra das
Estrelas.
coisa dentro daquela casa, que não sei se tem, ou não, alguma coisa a ver
com o pai da Adela, mas não quero saber. Então, não entres, se não
ponto onde estava não conseguia ver a casa, nem a porta, mas conseguia
imaginá-las.
portão de ferro para irem até à praia espalhar as cinzas da mãe. O que é
que ele fez? Limitou-se a obedecer. Achava que podia fazer o mesmo
sem o pai. O pai, que também seria cremado. Ninguém era cremado.
Porque é que os pais dele sim? Fez esta pergunta ao tio que, claramente
incomodado, lhe disse que lhe parecia um costume saudável, embora ele
isso não era um problema. Perguntou se iam ficar com as cinzas e o tio
disse que podiam fazer o que quisessem. Que o pai lhe dissera: quando
que Gaspar, ele que decida. Outra vez a caixinha de cinzas numa
prateleira. Ser órfão era isso: ter caixinhas de cinzas e não saber o que
Vicky. Gaspar percebeu que estava assustada; de todos, era a que tinha
mais medo. Claro que ela fora a única a ouvir o zumbido da casa;
Gaspar também o tentara ouvir, mas, para ele, a casa estava em silêncio.
tentativas durante algum tempo, embora soubesse que, mesmo que fosse
possível abri-la, ela não seria capaz de o fazer apenas com uma mão.
Deixou que tentasse até ficar com demasiada pena dela. Pensou no pai,
de vez em quando, e disse vá, vamos entrar de uma vez por todas nesta
casa, o que é que nos pode acontecer; se a Adela acha que há alguma
entrar no que está escondido, sempre consegui, mas não sei se quero
Foi a correr para junto de Adela e, com delicadeza, cobriu com o seu
não se aperceberem de que nem sequer tentara, de que bastou pegar nele
estivesse esgotado após uma corrida: o coração batia com força e muito
mochila.
Adela deu-lha: Gaspar evitou olhá-la nos olhos. Ela olhava para ele
com ar apaixonado. Olhava para ele como quando lhe oferecera a caixa
que a ajudaria a mitigar o desconforto causado pelo braço fantasma.
Porque é que fazia coisas por Adela? Gostava dela, era sua amiga, não
era por ter pena dela. Mas era como se lhe devesse um favor. Pôs o pé de
vez mais, o esforço não fora físico, mas o corpo reagia como se tivesse
outros.
dois vinham atrás dele. Vicky deu-lhe a mão e ele apertou-a. O que
Porém, não havia candeeiros no teto: havia buracos com fios velhos a
desligado, dava para ver o fio cortado, mas Vicky disse a Gaspar, ao
ouvido: Ai, espero que não toque. Pablo, um pouco mais afastado,
Tinha razão. A sala, o hall da entrada ou o que quer que fosse aquela
cuidado, nunca lhe dissera que não tinha dores, nem a Pablo, mesmo que
vibrava de modo quase impercetível. Era como se, atrás das paredes,
iluminada pelo seu sol privado, a casa que era outra por dentro. Pablo
pedia-lhe espera, espera; mas ela não lhe dava ouvidos. A vibração
atraía-a. A luz, que não era elétrica, ou, pelo menos, não procedia de
Seguiram-na até à sala seguinte, que tinha móveis. Sofás sujos cor de
— São unhas.
que havia na terceira prateleira antes de olhar para ela, era óbvio.
pai!
Uma pancada firme, não uma rajada de vento. Uma porta a bater com
força, sem ranger. Um som seco e definitivo. De que zona da casa viria?
correr, mas não sabia para onde. Pablo agarrou-a pela cintura, mudo.
claramente:
coisas têm de ficar claras porque agora temos de nos salvar. Sentia-se
frio e decidido. Tinha o ferro na mão e sabia que era capaz de usá-lo.
foi a correr para a outra divisão da casa. Gaspar tentou impedi-la, mas
falta de oxigénio. Nenhum deles lhe gritou que parasse, mas também
bem dobrada. Lençóis. Adela ia pegar num, mas Gaspar deteve-a com
tanta firmeza, que quase lhe deu uma estalada. Não devemos tocar em
nada, pensou. Era como se tudo fosse radioativo. Era como Chernobil.
Se tocar na casa, nunca mais nos deixa sair, vai ficar colada a nós. Disse-
o em voz alta. Tinha medo de que a presença na casa ouvisse a sua voz,
impedia.
pai!
comuns para torturar pessoas. Se calhar, usaram esta sem ninguém saber.
muitas pessoas. Não fora Adela a dizer aquilo, alguém estava a usar a
Adela tremeu sob a luz artificial. Gaspar sentiu que estava num
teatro: soube que estava a ser observado. E quando ela desatou a correr e
que, por dentro, parecia não ter fim, deteve-a. Atirou-a para o chão e
ouviu o queixo dela a bater. Ela contorceu-se debaixo dele e, com uma
acreditar. Ele devia ter, pelo menos, mais quinze quilos do que Adela, e
era forte, nadava, sabia lutar. No entanto, não podia com ela.
Porque não estava a lutar com ela, pensou, estava a lutar com a casa.
largo que tinha várias portas de cada lado, um corredor tão comprido,
que parecia impossível naquela casa tão pequena, metros e metros, com
forradas com papel de parede com flores de lis. Os três viram Adela
abrir uma porta que devia dar para um quarto. Parecia um corredor de
Não podiam imaginar que, depois de acenar, ela fecharia a porta. Ou que
conseguiria abrir aquela porta. Que estava fora do seu alcance. Sentia-o
que a tentou abrir: a maçaneta mexia-se, mas apenas isso. Nenhum deles
que era inútil. Tentaram os três, sem pensar na presença, naquele alguém
atiraram-se contra a porta, como tinham visto fazer nos filmes. Não
com o seu braço, e Gaspar pegou nela e ligou-a. A luz era pouca, mas
contido e baixo. Ele não tinha vontade de chorar. Teria de ser ele a tirá-
sua voz havia uma nota de menina pequena, de terror tão paralisante que
ver. Não respondeu a Vicky. Era óbvio porque é que se podiam perder:
assustava-o, mas sabia que não deviam continuar a avançar pela casa
bairro, dos pais. Se Pablo percebeu que já não estavam num corredor,
não disse nada. Ouvia-o a fungar na escuridão. Até ouvia o seu próprio
perceber que a lanterna está ligada e, mesmo assim, não consegue ver
nada, vai pensar que ficou cega. Se fingisse que não tinha pilhas ou que
não estava a funcionar, ela ficaria chateada com Pablo. Se Pablo fosse
capaz de ver, talvez percebesse o suficiente para ficar calado. Era melhor
sentiu que confiava nele, que não tinha de tomar conta dele. Não
iluminava pouco espaço, mas muito bem. Notava-se que as pilhas eram
novas. Era o tipo de pormenor que Pablo nunca teria deixado escapar.
qualquer coisa.
Ela nunca se comportava como uma criancinha. Por isso, era tão
Era por isso que se estava a portar assim, pensou Gaspar. Vicky não
nada.
dizendo que era cera, porque a lanterna iluminou uma janela e o que
havia do outro lado era impossível. Gaspar não queria parar para ver,
mas fê-lo: do lado de fora do vidro sujo via-se a Lua sobre as árvores,
colina, num lugar mais alto do qual se visse aquela paisagem, aquele
dava para uma floresta. Era isso. Mas o quadro parecia ter qualquer coisa
Vicky não disse nada. Teria ouvido Pablo? Era impossível que não.
assim, de par em par? Não importava. Despachou-se sem dizer nada, por
via das dúvidas, e sentiu o alívio de Vicky quando também viu as luzes
Adela de lá.
Pablo, sem deixar de correr, mas olhando-o nos olhos, disse que sim e
que não. Que podia ter sido fruto da sua imaginação. Vais contar a
verdade?, perguntou Pablo, e Gaspar disse que sim. Ia contar o que vira
até Adela entrar no quarto. Não ia falar da luz da lanterna que os outros
de que abrira a porta sem esforço, como se esta lhe obedecesse, como se
Foi ele que levou Adela para lá. Tinha a certeza. Entregara-a à casa.
Não conseguiu detê-la quando desatou a correr, uma rapariga leve como
Agora a culpa torcia-lhe o peito por dentro, agora sabia que a única
pessoa que lhe podia dizer onde estava Adela e quem a levara era o pai,
Tudo o que aconteceu depois, para Gaspar, parecia coberto por uma
O tio estava zangado por terem entrado na casa. E por ter sido
obrigado a ir com ele falar com os polícias, com o juiz de menores, com
outras pessoas que Gaspar não conhecia. Betty desmaiou quando lhe
também que Betty o culpava a ele, que gritara a culpa é do filho do Juan,
foi ele que a levou lá, foi ele que a entregou. Não estranhou: Betty tinha
razão. Mas ele já não podia responder. Porém, falou, embora pouco, com
madrugada.
Viu o pai entre uma coisa e outra. Continuava imóvel. Quantos dias
era definitivo, que não ia acordar. Gaspar não soube o que dizer. Tinha
onde ela está. Porque é que não consegui abrir aquela porta, se consigo
abrir outras, quem é que a levou. Como é que a tiramos de lá. Porque é
Não quero ir à escola, disse Gaspar ao tio, e ele respondeu: está bem.
os dedos dela no seu olho, mas sabia, sabia que, se se tivesse esforçado
um pouco mais, ela não teria escapado. Foi ele que a deixou escapar.
Quando não o chamavam para falar com algum polícia ou com alguma
do quarto. O tio tinha de insistir para ele tomar banho e comer qualquer
coisa. Numa das suas saídas da clínica, soube que Betty se tinha ido
Se calhar, fora buscar Adela. Tinha de voltar para junto do pai porque,
estava Adela ou o que fazer para a encontrar. Olhara para os olhos dele
restaurante da clínica, que era tão giro e tinha um menu tão bom como o
Tentei segurá-la, na casa, mas ela soltou-se. Deixei-a ir. Ela queria entrar
tua, não faças isso a ti próprio, disse-lhe o tio. Alguém a levou. E a culpa
Voltou para junto do pai. Se ainda não morreu, é porque quer falar
porta, a primeira, mas não a segunda. Porque é que eu posso abrir umas
entrara numas vinte casas. Que também entrara na dele. Rusgas. Depois,
disse-lhe que a polícia não encontrara portas na casa, nem nada. E que
ninguém acreditava neles. Dizem que o que vimos lá dentro foi uma
dentes. Parece que encontraram roupa na casa, roupa nova, e acham que
deve pertencer ao tipo que levou a Adela. Dizem que, se calhar, o tipo
acendeu a luz da casa para nos atrair. Dizem que a Adela foi sequestrada
casa é uma armadilha. Vivemos um filme. Vou voltar para junto do meu
pai.
de lá.
com força e sem chorar. Tenho de voltar para junto do meu pai, disse-
lhe. Tenho saudades vossas. Da Vicky também, mas tenho de estar com
ele.
Nem sequer saía quando uma enfermeira vinha «higienizar» o pai, como
diziam. Chamaram-no do tribunal mais uma vez, e o tio disse que ele
Adela a fugir como um pequeno peixe, eles tinham estado num aquário,
uns olhos grandes tinham visto tudo, olhos de quem, apenas o pai sabia,
e estava tão longe, com os seus próprios olhos pretos e opacos. Gaspar
apenas um som contínuo, um alarme. E a seguir veio a dor, tão forte que
Porém, levantou-se para olhar para ele passado uns instantes. Não estava
antes. Agora já não fazia nada porque já não fazia sentido. Gaspar
Viu que o pai ainda tinha os olhos pretos e abertos. Não percebeu. Tê-
sentado em cima da cama onde dormira nas últimas noites e o tio teve
de tirá-lo ao colo do quarto porque ele não queria sair. Gaspar fechou os
olhos e foi como apagar a luz. Tinha sonhos, apenas. Sonhos em que
abria a porta e encontrava Adela. Sonhos em que ela não lhe escapava e
vermelho e deixar-se morrer de uma vez por todas. Até ficar, também
20 Tarte típica de alguns países da América Latina, normalmente recheada com marmelada ou
24 O cañón ou cañoncito é um folhado em forma de tubo ou cornucópia, com recheio. (N. da T.)
Círculos de giz,
1960-1976
cabeludo. Acima da testa está quase careca e há algum tempo que deixou
mesma coisa e o meu pai assegura que foi ele que me salvou graças ao
seu sangue crioulo; quando o diz ergue o punho aos céus, mas nunca os
olhos.
escuros, o chão de madeira tão caro que não podíamos andar calçados
para não o riscarmos, e a coleção de arte do meu pai, que não deixava
curiosidade das pampas com cruzes celtas e musgo verde-escuro que fica
impregnado na roupa.
meu avô de onde lhe vem semelhante privilégio. Segundo ele, na Europa
Além disso, a Argentina fica muito longe. Longe do quê?, perguntava eu.
jardins, as pessoas que trabalham para nós e sobre as quais não sabemos
nada. Não importa que seja Buenos Aires ou Londres. Não importa,
mundo inteiro.
aprendemos a nossa história graças aos relatos dos mais velhos. O meu
abafada e belíssima. A casa que a minha mãe odeia, porque odeia tudo o
versões diferentes, mas essa data não é importante. O nosso Ano Zero é
1752. O meu tataravô, William Bradford, era livreiro e impressor, e o
social entre ambos era importante — creio que essa origem continua a
com ele por acaso; não iam às cegas. Tinham lido referências oblíquas
favor. Claro, dizia o meu avô, que não andavam à procura da Escuridão
porque lhe mudaram o nome. Era uma aldeia isolada por dois rios:
conhecer o vidente.
Os dois amigos assustaram o jovem, que era fraco, magro, com uns
Ofereceram-se para tomar conta dele. Não foi difícil levá-lo da aldeia: os
luz que, segundo eles, na altura não feria. Era menos selvagem, ou estava
médium.
Uma vez, quando o avô nos estava a contar a história — repetia-a
jovem. Eu devia ter oito anos. O avô teve de reconhecer que não tinham
jovem escocês». Ser rico também é isso, pensei na altura: esse desprezo
Dois meses depois, sofreu aquilo a que o médico que o atendeu chamou,
cerebral. Sobreviveu, mas uns dias depois teve outro ataque do qual já
favores.
Unidos era impressor, como o pai, e morreu novo. O que veio para a
mas era capaz de ensaiar os métodos mais cruéis sem remorsos. Morreu
e cavalgámos.
medo nos olhos dos que se benzem, gosto de esperar pela noite para ver
família, mas não a idealizo ou, pelo menos, tento não o fazer. Todas as
exceção.
elegância dele, o seu corpo esbelto e a sua beleza. Ele disse-me, quando
eu era muito pequena, que, se quisesse ser uma mulher linda, teria de
beleza, mas não completamente. Não sou como a minha mãe, que exerce
fazem brilhar a minha pele; que meias ficam bem com as minhas pernas
e porque é que devo usar sempre acessórios: o colar comprido, para que
para que os outros percebam que tenho caráter. A minha prima Beatriz
nós nunca dávamos por isso: tínhamos gerador. A primeira lenda que
não tinha falta de oxigénio, o que prolongou ainda mais a sua agonia.
tudo tretas. Disse-me o meu pai, e não quer que eu ouça estas histórias
lhe, mas, em vez disso, perguntei-lhe por que razão nos mentiria ele.
por ambas as famílias. Nessa noite, Beatriz disse-me que se iam mudar
para a casa do pai, em San Isidro. Nós não queremos continuar a fazer
do pai porque ela não falava assim. E vão deixar-vos ir?, perguntei.
Ordem não tem por hábito tentar reter os membros que se querem ir
embora. A minha mãe diz que os deixam ir porque acabam sempre por
regressar, a chorar, feitos em cacos, porque a Escuridão é um deus com
avanço, tal como os gatos deixam brincar as suas durante algum tempo
casa dela. Eu, que vivia no centro de Buenos Aires, ia e vinha com um
prédio com toda a sua família, o tio Jorge levou o Juan para a casa dele.
contar uma parte da verdade. É um paciente do teu tio, foi operado por
ele. Tem uma malformação cardíaca gravíssima e os pais, que são muito
pobres, não podem tomar conta dele. Vai viver com ele. Eu era pequena,
um filho. Nunca soube de mulher alguma que tivesse sido sua, mas
creio eu, ou uma marca. O que fazer com os jovens da Ordem é uma
jovens devia ser uma prioridade, mas, como também é perigoso, porquê
arriscar o futuro?
que o iriam pôr na zona da criadagem. Entrei em bicos dos pés, lembro-
me. Pediram-me que tivesse cuidado porque um sobressalto podia matá-
lo. Porém, assim que o vi soube que aquele rapaz não seria fácil de
matar. Tinha uma dureza no olhar um pouco parecida com a dos rapazes
enfermeira tinha ordens para não deixar entrar ninguém, mas não ia
terror incomparável.
colega, mas ele, mesmo sendo tão pequeno, queria ajudar. Às vezes,
ficava a dormir com ele: a cama era muito grande e ele tinha de dormir
deitado. Adorei-o desde o início. Sempre quis tomar conta dele, mas
durante meses.
mãe dele visitava-o, mas morreu muito cedo. Lembro-me bem dela:
ofereceu para trabalhar lá em casa para ficar perto do filho. Parecia tão
tinham deixado para trás uma aldeia onde não sabiam como tratar
com o acordo que fez com o meu tio e entregou-lhe o Juan por bastante
dinheiro, mas a mãe não se rendia e, sempre que o visitava, pedia que,
tinha pena, mas não queria que levassem o Juan. Pedi ao meu tio que,
por favor, não lho devolvesse, e ele disse-me: podes ficar sossegada.
Seja como for, nunca imaginei o que faria a Mercedes, a minha mãe.
sobre o que podia e o que não podia fazer. A minha mãe costumava
porteiro para não o deixar entrar. Uma vez, o Luis lançou à minha mãe
de volta o Juan, não vou consentir que ela vos separe. Disse-o só por
dizer, nunca tive, nem terei, poder algum sobre a minha mãe. Ela só não
matou o Luis porque não quis ou por preguiça ou por não lhe parecer
perigoso.
o jovem rajá. Quando percebi que a minha família tirara de cena os pais
do Juan para ficar com ele, quis saber mais. Não se tratava, apenas, da
disse eu. E ele contou-me tudo sem muitos rodeios. Achamos que o
rapaz pode ser o médium de que a Ordem anda à procura. O teu tio teve
uma revelação quando o operou que não voltou a repetir-se. É por isso
Foi uma sorte ter-me contado isto. Caso contrário, quando o Juan se
da Escuridão.
Nesse ano, a Tali, a minha meia-irmã, veio estudar para Buenos Aires.
quando eu intercedia por ela, também levava por tabela. Tentámos fugir,
jantar.
Mas a mãe da Tali não disputava apenas a atenção erótica do meu pai.
Corrientes. E era uma beleza, não sei se alguma vez voltei a ver uma
fazendo cair sobre nós uma chuva de flores brancas. A Leandra recebia
pranto dos peregrinos. O calor era sufocante: a Tali andava sempre com
aprendi a nadar como ela. O Paraná tem remoinhos: diz-se que são os
praia. Percebi porque é que a Tali não queria ficar em Buenos Aires: eu
apartamento eram uma seca. A única coisa má era que o meu tio não
casa, a minha mãe aplaudiu e festejou com um dos seus típicos bailinhos
de quando está eufórica, uma mão na barriga e a outra no ar, como nos
pai: vocês são uns cagões, nunca têm coragem suficiente para se
Rosario ficar, ela que ouça, tem de aprender, vocês só lhe ensinam
com todas as putas do país, mas não que te importes com uma delas.
Queres saber, filha, como é que fiz com que a Leandra ficasse doente?
Queres saber como é que fiz com que a mãe do teu amiguinho
moribundo ficasse doente? Vem ter comigo ao meu quarto esta noite,
Não fui ao quarto dela para descobrir como tinha feito com que a
foi até à pastelaria do hotel de que gostava, festejar com champanhe. Não
mesmo a Betty, mas ela recusou-se e bateu-me na cara com a mão cheia
de anéis até me fazer sangrar das bochechas. Faz-te amiga dos pretinhos
que tenta invocar a Escuridão por conta própria, mas, tanto quanto sei, é
a única que usa este método. Meteu-me na choça onde estavam as jaulas
Caso contrário, a minha mãe voltaria. Essa hipótese era pior do que
debaixo das pereiras, onde me disse, por telefone, a minha mãe. Não
pareciam humanos, e o mais pequeno não tinha olhos. Uma tarde, ouvi
uns gemidos tão intensos a um canto que, apesar das instruções que
havia cartazes com o desenho tosco por todo o lado, na mercearia, nos
amava. O trapo que lhe vendava os olhos estava tão sujo, que tinha
vermes. Suportei vários dias essa imundície e a sua dor até não
que perdera os olhos antes de a Mercedes decidir que não servia para
Foi naquela choça que a minha mãe levou a cabo os rituais que lhe
daí o castigo. Agora já sei quais são, mas não as exerço. O meu avô e
alguns membros mais velhos julgam que o que vem não é a Escuridão
indomável trazida pelo médium, que fala e corta e captura. É uma cópia,
cultivava chá. Não havia lugar para ambas. A minha mãe encarregou-se
de pedir à Escuridão que se livrasse deles. A outra família tinha uma
casa linda, com colunas brancas neoclássicas, sobre uma lagoa: fomos
o meu tio e com o meu avô. Como ficava perto de Buenos Aires,
deixaram-no viajar. Eu tinha onze anos nesse verão; ele, oito. Saiu do
carro e subiu a escada devagar, fazia tudo devagar quando era pequeno.
mãos, pedi-lhe que entrasse. Apoiou a cabeça nos meus joelhos nus para
ficou connosco para tomar conta dele e o Juan ia todos os dias comigo à
choça. Com ele era mais fácil porque conseguia orientar-se na escuridão
vidros coloridos das janelas da entrada. Uma mão azul, um olho verde,
de merda não nos for útil em pouco tempo, atiro-o para a rua. Eu disse-
lhe que, nesse caso, teria de nos atirar aos dois, e ela bateu-me com a
bengala nas costas. Durante dias tive dificuldade em respirar. O mais
fazer radiografias. Nessa mesma noite desci a escada e, desde então, vivo
sob o mesmo teto que o Juan. E embora tenhamos passado alguns anos
outro.
foi o Juan, que o amava desde a infância, mas a verdade é que o meu
Olanna. Até tinha a fotografia dele e andava com ela na minha carteira
infantil: uma vez, pedi-a à Florence e ela enviou-me uma cópia por
inimaginável.
Ibadan. Aos quinze anos, era frágil e tinha a testa marcada por
O George Mathers apaixonou-se por ela, mas não podia falar-lhe, não
Apesar do escasso inglês falado pelos guias e pelos chefes amigos e dos
não era apenas uma sacerdotisa possuída por espíritos. Comunicava com
os deuses ocultos, os que dormiam sob a terra, no leito dos rios e entre
razão estava a salvo dele. Todos os seus colegas tinham sofrido algum
todos os dias, por muito cansado que estivesse. Ouvia os colegas falar
reflexo da Lua na sua pele suada, foi vencida, aos poucos, por uma
escuridão que procedia dela, que lhe escapava pelos poros. As mulheres
tocava.
longo falo ereto. O grande deus Pã, pensou, em Ibadan, nas florestas de
África? Assustou-se e decidiu regressar a Inglaterra. Mas não queria
voltar sozinho: queria levar a Olanna com ele e oferecer uma médium à
Ordem. Ela viera ter com ele, para ele: tinha a certeza.
A viagem por terra e mar foi esgotante para a jovem, que, além disso,
sem se maravilhar com o que ele lhe dizia. Era, simplesmente, diferente
honra do pai. Tinha saudades das suas joias. Falava-lhe das florestas de
ossos, das caveiras que rodopiavam no meio das árvores. Uma noite,
exigiam sangue.
admirada com a cidade, mas de modo algum intimidada por ela. Quero
cheia de frio; ele cobriu-a com o seu próprio casaco e teve o impulso de
nos olhos das mulheres e nos do irmão mais novo. Soube que não
razão. Estive a ler Ramon Llull e ele diz exatamente a mesma coisa
sobre a alquimia: para fazer ouro é preciso, primeiro, ter ouro. Não se
faz nada do nada. A riqueza, naqueles anos, já não era suficiente para
lhes daria esse dom. É a mesma coisa em que acreditamos agora, claro.
O Christopher Mathers sabia que, para construir uma fé, era necessária
raiva por ter perdido o filho favorito, o mais velho, na Grande Guerra,
na família que possuía o dom. Não era um dom notável, mas, pelo
Charles, o jovem e ambicioso Charles, que estudava oito horas por dia e
George, que preferia viajar e tomar notas, mas era sempre o enfeitiçado
St. John’s Wood. É a mesma sala que ainda se usa atualmente, onde eu
estar presente e voltou para sua casa e para a mulher, a Lily, que
estéril, mas ele sabia a verdade porque tinha estado com muitas
mulheres, não tanto por gosto, mas para se testar a si próprio, e nenhuma
delas engravidara. Os Mathers estavam em extinção e só restava o
vento abriu uma das janelas e a Lily fechou-a, mas não conseguiu evitar
estatueta parece seguir com os olhos quem olha para ela e é repulsiva de
única luz era a das velas. Aconteceu tudo muito depressa. Começaram
os cânticos e, a seguir, as mulheres, algumas com um grito, outras com
se para o chão. A Serpente estava fora de controlo. Não lhe deviam tocar
e saiu do círculo protetor. Foi buscar papel e lápis, que entregou aos que
Cada qual usava o seu sistema de escrita favorito, e cada qual escrevia
na língua que ouvia. E é assim que se faz ainda hoje, embora as atuais
Serpente Escura fala e muito do que diz está para além da nossa
explicar aos Iniciados homens que deviam conter o sémen e a bater nos
George, e, quando roçou numa das Iniciadas, uma jovem com a cara
apercebeu da dor por estar sumida no êxtase, mas quase perdeu o braço
tomou nos braços, ficou surpreendido: estava fria. Não tinha febre. Não
cruel, porventura não veria ele as costelas que pareciam querer rasgar a
Lily, nua e apenas com uma fita de charleston dourada que lhe dividia a
A Lily mandou construir uma esfinge de pedra e deu instruções para que
impôs a sua vontade. Não lhe tires toda a dignidade, pediu-lhe. Ela deu-
médiuns.
médicos ocidentais não sabiam qual era, parecia-se com a malária, mas
Uma vez mais, na selva e no calor. Ela pode ter confirmado a sua
vazio: convida-nos a visitá-lo, mas não diz como, porque a sua natureza
é o capricho.
mas ninguém soube até ser impossível continuar a ocultar o mal.) O meu
ajudar o Juan, que, quando se sentia muito mal, perdia as defesas que o
momentos da sua vida, embora, na maior parte das vezes, fosse capaz de
quando conseguiu aplicar com naturalidade o método que o meu tio lhe
ensinou, este lhe pareceu absolutamente normal, como não fazer chichi
na cama.
longe da minha mãe, a quem nunca mais voltei a chamar mãe e comecei
a tratar por Mercedes. Longe dela e perto dos homens da minha família,
Marcelina, a mulher que tomava conta de nós e da casa. Essa foi a única
razão pela qual não estava connosco nessa noite. Ocultei-lhe a revelação
até o meu pai decidir que tinha chegado o momento de a iniciar. A Tali
Nesse inverno, o meu tio consentiu que o Juan viesse ao Norte pela
acompanhei-o até ao quarto nessa noite: apesar de ter passado o dia todo
a viajar, não estava muito cansado, ou talvez estivesse tão excitado com
tanta coisa nova, que não conseguia dormir. Eu disse-lhe para de ser
nos.
Paris, linda, fresca, com uns pormenores muito imbrincados nas alças.
a ouro, outro presente do meu avô que, entretanto, perdi. O meu pai
me dava uma joia com uma pedra diferente. Nesse ano, ofereceu-me um
desgraça, mas o grito só é ouvido por quem a vai sofrer. Assinalei com
escrever livros sobre os mitos locais iguais aos que lia em inglês sobre
não vivesse com ela. Costumava pedir-me que lhe fizesse companhia ao
Descer a escada sem fazer barulho era fácil porque estava coberta
por uma passadeira, mas nos corredores o chão era de madeira e rangia.
que a escolha da madeira tinha sido uma loucura, com aquele calor, mas
não havia dúvida de que era mais bonito assim. Puxei a camisa de
dormir para baixo, apesar de não ser curta, mas não queria que, se
pernas. Não eram muito compridas, mas eram lindas, pelo menos na
ao sol, na praia do rio, ficavam com uma cor muito suave que parecia
verniz.
estava aberta. Não era estranho: o meu tio obrigava-o a mantê-la assim.
que tivesse ido à casa de banho e esperei. Dez minutos, quinze minutos,
O Juan foi-se embora, anunciei. Não tinha a certeza disso, mas saiu-
que ficasse, mas eu não liguei, estava a borrifar-me para as suas ordens
Não sei de onde nos vinha a convicção de que o Juan não estava
pisei. Iluminei-a com a lanterna e percebi que era a que ele usava para
Estaria nu na selva? Gritei o nome dele, gritei sou eu, a Rosario, onde
estás, e corri por entre as árvores, raspando as pernas nas ervas altas.
Depois, imitei o que vi num filme: dei a cheirar ao Osman a roupa do
Corri até entrar na selva e parei numa clareira, entre várias árvores.
esgotado: bateu num tronco e, embora não tivesse caído, parou, agitado
nome dele. Percebi o que estava a acontecer. Esperei pela luz negra.
medo. Meu deus, disse, e, pela primeira vez na vida, disse-o não como
reconhecimento.
pretas a zumbir, mais escuros do que a escuridão da selva. Fez uma coisa
emudeceu, nem um inseto, nem uma folha, nem o rio ao longe, nada,
linha de sombra à sua volta, e tudo me fez saber que alguma coisa estava
marítimo e voraz, um ruído de água. Não tinha cheiro. Nunca senti o seu
dirigia-se para ele de braços abertos, a gritar não sei o quê, não me
lembro ou não percebi; o meu avô tentou detê-lo e conseguiu, mas não
Gritava, mas nós não lhe prestávamos atenção. Olhávamos para o Juan,
deles de gatas, nu. Não sei porque é que não o viram ou seguiram, talvez
conseguia ir longe, não tinha forças para o fazer, estava alagado em suor
mesma maneira que se chama por um cão, porque ele não perceberia
outra coisa. Veio até mim a rastejar e eu abracei-o, tomei-o nos braços,
estava tão molhado, a escorrer, mas olhava para mim, e eu pedi-lhe que
infantil, com a boca fechada, mas longo e inadequado. Porque fiz isso?
Ainda não sei. Estava louca. Ele rodeou-me o pescoço com os braços e
eu desatei a chorar, a única coisa que sentia era o corpo dele a molhar-
claro que não podia lutar contra eles. A menstruação veio-me nesse
deu quando cheguei a casa, teria continuado histérica. O meu pai diz
ignoram tudo são desprezíveis. E ele respondeu-me uma coisa que é tão
certa, que às vezes até a repito em voz alta. É que nada acontece depois
asquerosa, podia comprar todos os frascos que quisesse, mas ela preferia
as portas na cara, mas conseguia ouvir. O meu tio falava dos dedos
perdidos. Dizia que tinha sentido frio nas mãos do Juan. Dizia-o a
peladas e os óculos escuros que usava dentro de casa, teria dito que
estava linda, que, pelo menos, conservava uma certa elegância no meio
do caos e das correrias, mas eu só conseguia ver a satisfação e a
troçava de mim. Gritava: nenhum tem caráter para lidar com isto,
castrados da fazenda.
Aguentei dois dias sem ver o Juan e depois fui ter com o meu avô.
Estava sentado num cadeirão de ferro, a fumar. Tinha a pele dos braços
prender. Não, disse-me. Não o vão levar. Ele veio até nós. Procurou-nos.
Podia ter morrido quando era pequeno, mas aguentou. Nós esperámos
coerência, dizia que honra, a porta está cá, para onde o levariam?
tinha assim tanta certeza. Se o levarem, vou com ele, pensei. Nunca nos
uma toalha. Passaram-me para outro assento para que deixasse de enojar
Inglaterra, estar sem o Juan durante alguns anos, era a coisa mais
decisiva que tinha feito na vida e, embora não tivesse qualquer tipo de
que pôde para que eu ficasse com ele. Jurou que se suicidaria se eu o
coisa: precisava de estar longe dele, queria ser alguém sem ele. Planeara
podia ser substituída por uns tempos. Não queria lançar-me numa
lo. Isto enfureceu-o: qual é o mal, ele precisava da minha companhia, ele
revelara-se a mim porque eu tinha de ser a sua companheira e estávamos
apaixonados, uma palavra que ele se limitava a repetir sem saber o que
rapariga, nem sequer gostara de outra, e eu não queria isso nem para ele,
nem para mim. Não sabia se a minha partida resolveria alguma coisa,
lhe, o que era uma crueldade, porque não o deixavam andar de avião,
discussão. Era tão alto e tinha uma envergadura tão demolidora, quanto
violento e idiota. Podes abusar do teu poder com todos os outros, gritei-
lhe, mas não comigo. Passou a noite no lado de fora da porta do meu
O Juan não foi o primeiro homem com quem fiz sexo. Antes de me ir
embora, quando soube, foi buscar uma das espingardas do meu avô e
tempo. Ele disse-me que, como era desportista, tinha uma noção
voltei a ver, mas penso muito nele porque me falou da importância dos
segundos, de que nada é mais complicado do que lutar contra eles, dois
ou três faziam toda a diferença, e, ao mesmo tempo, era tão estúpido, tão
fútil lutar todos os dias contra milésimas, contra aquilo que os relógios
quase não registavam, contra algo que quase mais ninguém tinha em
conta.
O meu avô disse apre, que o Juancito sabe disparar, por esta é que eu
também ele podia procurar alguém, e ele gritou achas que alguém vai
minha espera, as malas já no carro. A viagem até Ezeiza foi longa, mas
teria muitas saudades dele, nem até que ponto seria insuportável a sua
ausência, mas sentia-me livre e longe e sozinha. Era o que eu queria.
elegantes, como costumava dizer o Stephen agora, provavam que ele era
Carregou com as malas até ao carro que nos levaria até à casa central da
Há seis anos que vivia dedicada a ele. Queria sentir a sua falta e voltar
mas nunca interferiu e eu sempre o quis ter por perto, como um outro
esposo, o pacificador.
A casa de St. John’s Wood não era visível da rua porque estava
anos, durante uma breve viagem anterior. Tinha um jardim lindo, mas
especialistas zelava por mais de três mil livros; também havia duas
Juan. Esse contributo crucial ajudou a que lhe concedessem uma vida
pacientes.
empregados e o Eddie, o filho mais novo, que vivia com ela por não
haver nenhuma instituição capaz de lidar com ele. A primeira coisa que
fez foi perguntar-me se queria tomar banho antes de comer, porque devia
não sentia náuseas nem enjoos. Fui com a Florence até ao quarto de
hóspedes e um dos empregados deixou a minha mala em cima do
aprendera a pôr em prática. Saí da água quando comecei a ficar com frio
dizer-me que já estava tudo tratado, que dali a duas semanas poderia
segredo o que tinha feito com o filho mais novo, mas contava o essencial
porque, julgava ela, a aparição do Juan tinha sido um wake up call para a
sua arrogância, uma maneira de lhe dizer que nem ela, nem ninguém,
dizia ele, nesta maldita ilha só se pode tirar a capota três dias por ano.
médium para a sua geração, como tinha feito o irmão mais velho, o
lugares do mundo, mas não conseguiu manter nenhum com vida durante
jovem que, nos Estados Unidos, tentou enforcar vários Iniciados antes de
difícil manter com vida e lucidez aquelas crianças tenebrosas, mas não
Levou a menina para França com a ajuda dos Margarall, uma família
esgueirou-se por uma das janelas do rés do chão, voltando depois para a
casa, onde estavam quase todos a dormir, com uma espingarda roubada
enviou-me uma fotografia dela: era uma rapariga magra, com uma fita
no cabelo escuro para que este não lhe descaísse para a cara. O Stephen
diz que há que cortar o círculo, parar a roda. E insiste na ideia de que
quero que seja assim, disse-lhe eu uma vez, e ele respondeu-me que
poderia tentar uma mudança se quisesse ser líder. Mas eu sei que ele
Tinha saído de casa por um motivo estúpido: estava frio, faltava álcool
nada. Assim, fez a mala, tirou algumas fotografias para que acreditassem
Foi a Florence que fez tudo, a ajuda do Pedro foi consistente, mas
escolheu-o não apenas por ser a única testemunha viva do massacre, mas
Ordem. Pedro Margarall está vivo: devia tratá-lo como lhe é devido, por
Marquês de Margarall. Está recluso na sua casa de Cadaqués. Só recebe
O meu ano zero, 1967. Bengalis que vendiam estolas com signos
bem e acabava por enviar por correio à Tali, que namorava com o Juan e
não me ficavam bem, porque é preciso ter pernas muito magras para as
país: uma vez, demos com uma cerimónia «druídica», e a Laura, uma
colega minha, que estava a tripar e bêbeda, riu-se tanto, que nos
surrealistas com o seu bosque e o seu couto de caça. Anos mais tarde, a
do que as pessoas pensam e, além disso, eu era tão nova, que podia
Tree. Mas, sobretudo, quando digo nós, refiro-me ao trio formado por
vida, para que essa energia nos abraçasse e nos fosse útil nos trabalhos
nosso círculo viviam assim. O ácido é uma droga muito sexual e, sob os
hippie, é que era idêntico. Nunca foi mais fácil camuflar-se, dizia a
julgou ver uma luz negra, os corvos do deus Bran, em Tower Hill.
Ficámos alerta, mas não aconteceu nada. O Tara, com a sua enorme
projetada nos anos trinta por Sir Edwin Lutyens com um corrimão de
A Laura era a única que não levava aquela vida. Deitava-se comigo,
era, de todos nós, quem mais estudara a comunicação com os mortos ou,
vezes: esfregava-lhe a pele com a esponja e tratava das cicatrizes que ela
Goddess em voz alta até a água ficar fria e, depois, quando nos
prótese de vidro: preferia uma pala de cabedal. Para mim, era linda.
com a ferocidade dela: com a maneira como usou uma faca para fazer
meu primeiro amor; ela lamentava que a Ordem não tivesse recuperado
Sabes o que é que ele pensa sobre o que a Escuridão dita?, disse-lhe eu
uma vez. O Juan acreditava que o que os escribas escreviam era apenas
dizia não podia ser interpretado neste plano. A Laura virava-se na cama
que pouco conheci, uma criadora de raposas que lia vísceras como
amante da Laura.
punha um disco a tocar para que ninguém nos ouvisse do outro lado do
quando lhe apetece sê-lo. É uma grande mulher, mas não é a primeira
Escuridão pode ser igualmente falso. E ela não pode admitir isso, porque
para sempre ou, pelo menos, durante uma vida muito longa, uma
contra os meus, dizia I can be wrong, baby. Um culto que não oferece
antilhanos de Brixton.
se nu pelo meio da roupa, dos jornais e das revistas, dos almofadões, dos
criadas pelo Michael Fish. Era como uma boneca com dentes esquisitos,
tão atraente, que o sexo com ele me dava um pouco de medo, não queria
nome nas costas, com cinza, em cima da coluna vertebral; o David tinha
dourado. Quando ele vier a Londres, pensava eu, vou embrulhá-lo neste
cobertor que cheira a pêssego. Tinha muitas saudades dele, mas nunca o
inferno, não posso, sou uma das donas do inferno, mas há recantos e
podemos reinar num deles, reinar e não obedecer. O avô lia-nos Milton
no jardim das orquídeas, mas ele gostava mais de Blake, quando viesse a
Richards e dos amigos deles, que tinham sido apanhados com drogas
numa casa de campo do Sussex, voltei a falar por telefone com o Juan. E
ou alguém desligou por ele, provavelmente o meu tio. Não falava destas
Que merda pensam eles que são, disse ao Stephen. Porque é que o
Porque vão fazer tudo o que estiver ao alcance deles para evitar que
que a alquimia nunca foi uma técnica para multiplicar a riqueza. Era, e
telefone, misturava a Tali com o meu avô, que às vezes tinha de ir buscar
Londres e não fui ao funeral dele. Uma noite, falou-me de portas que
conseguia abrir e de casas que, por fora, tinham um aspeto e, por dentro,
me pareceu estranha e, quando a abri, deparei-me com algo que não era,
de todo, uma casa. Não contes a ninguém e não entres, pedi-lhe. Falei
início de 1969. O David, uma vez, tocou lá, e também vários amigos
nossos que eram músicos. Para entrar tínhamos de bater a uma pequena
Colmena não era o White’s, era apenas uma maneira de evitar a polícia.
cartas um rapaz de olhos azuis, tão magro que parecia tuberculoso, e tão
que eu dizia. Ouvia-me como quem ouve uma doida. O rapaz falava
polari com uma facilidade avassaladora e pedi ao Stephen, por favor,
para ir com ele, que por favor me deixasse vê-los juntos, mas o Stephen
metade da freguesia por ter dormido com ela, e a outra metade por
terem sido colegas de escola. Uma vez, dei a mão à Laura e levei-a para
Stephen, e também o Tara, que iam para a Regent’s com os seus amantes
para que eu soubesse que podia ter sido eu a encontrar o Juan, mas que a
chefe era ela; de como o Juan me deixava dormir ao lado dele depois das
bateu.
Ele é fiel, disse-me ela. Gosto muito dele, disse eu, e faz-me falta.
cheiro do seu cabelo oleoso, e também do brilho com que ficava quando
estava assim tão sujo. A tua mãe, disse-me. Foi em casa da Florence.
mês de julho no National Heart Hospital, onde o meu tio tinha estudado
estar longe do Juan lhe era insuportável. Claro que seria outro cirurgião
e arriscada.
louro quase até aos ombros; já tinha atingido os dois metros de altura e
timidez, mas agora era uma expressão seca, oblíqua, apenas reconhecível
Fomos para a casa de St. John’s Wood de carro. Seria lá que o Juan
— Quanto tempo?
Não o vou internar, não quero que fique stressado. Teve um voo
desprezo, mas não disse nada. Entre nós havia uma guerra surda. Lá fora
tinha começado a chover intensamente, tanto, que não parecia ser pouco
estava aquecido; agora, ele estava com uma t-shirt branca de algodão.
não havia lugar nos seus braços para mais tubos. Quando pudesse sair
Stephen tinha discutido com a mãe porque lhe parecia mal que o Juan
tivesse de recuperar sob o mesmo teto que o Eddie. Ele odeia-o, está
pode fazer. E tem o dom de fugir. Por acaso não te lembras de como,
quando era pequeno, conseguia entrar em qualquer casa e, de noite,
Juan.
dele, dizia-lhe. O Eddie pode não falar, mãe, mas não é imbecil: ouve,
mim. Está cega, explicou-me. Sabes como é que o meu irmão fugiu da
Eu não via o Eddie há meses. Na última vez, reparei que lhe faltava
Sempre precisei de me vestir bem para ter conversas sérias. Com a roupa
Lucie para irmos às compras. O Juan teria alta dali a uns dias, a não ser
que, entretanto, houvesse alguma complicação. Eu andava com dores nas
andar sozinho; não lhe tremiam as pernas e não tinha dores; lidar com a
dor tinha sido o mais difícil, porque só tolerava analgésicos leves. Far-
me-ia bem, além disso, sair do hospital, estava há dias entre aquelas
Clark, mas o meu estilo nunca foi esse e, por isso, deixei-a provar a
roupa e esperei. Tudo lhe ficava bem. Eu tinha de ter mais cuidado.
cerimónia e outro tanto de africano. Com umas botas altas Biba, verdes,
guerra e que era por isso que agora eram belas e magras. Eu fui criada
laticínios, e não era nada parecida com os jovens que deambulavam pela
Richards — agora: antes dele, namorou com o Brian Jones; era tão
bonita, que não gostava de olhar para ela — tinha uma Mão da Glória.
o assunto: só sabiam que tinha qualquer coisa a ver com magia negra.
Eu andava morta por ter uma e pedira-a à Laura várias vezes; a Ordem
converter numa vela. Como é que a Anita podia ter uma? Não tinha
como todos os jovens ricos de Londres. Uma Mão da Glória bem usada
orientava-se para que ele pudesse estar comigo, connosco, para partilhar
não acreditei na altura e agora também não, de que ela estava convencida
devia dizer para nos tirar? — o Juan. E também outros cultos secretos,
fossem belas: ao lado da nossa casa de Cheyne Walk, crescia uma planta
não aprovava. Pensa que o amor é uma impureza. Eu, pelo contrário, tive
tão pouco amor, que me parece uma joia delicada e aterroriza-me a ideia
saída do hospital nesta casa, mas depois, Flo, por favor, não o mandes de
volta para a Argentina, quero que ele conheça a cidade, e também será
falar com o teu tio, e também quero ouvir o que o Juan tem a dizer. Ou
Claro que confia, mas está muito cansado. Queremos estar juntos,
tive medo dela pela primeira vez. O seu poder diluía-se; eu estava calma
O Stephen sentou-se na cama com uma alegria que nunca lhe vira e
beijos entre homens que, no início, parece uma luta, e depois desagua
recuperada.
que se cola à pele e nunca mais nos larga, dizer que se impregna nos
a noite.
Deitou muito açúcar no chá para, como dizia sempre, se esquecer de
que era chá. Porque é que não fazem café neste país: hei de morrer com
Quando grita, o teu irmão fala sobre mãos, disse o Juan de repente.
noite em St. John’s Wood. Não dormiste? Disse que sim com a cabeça
o podem ajudar? Eu posso, senti a mesma coisa várias vezes. Sei o que
a cabeça. Não podes ajudar o meu irmão, ninguém pode, nem sequer tu.
feito ao irmão. O meu pai confessou-me certas práticas, mas não todas.
Juan, e o Stephen engoliu saliva. Não sei, mas se foi a Mercedes que
disse, é possível que seja verdade. Porque é que te contaria uma coisa
dessas durante a tua convalescença? Porque ela é uma merda, disse eu.
à loucura.
Dessa vez, o Juan não fez mais perguntas sobre o Eddie. O Stephen
Com isto, não passarás frio, garantiu-lhe. Nessa tarde, visitámos os Kew
medo.
abraço e bufou, de mau humor. Traz-me qualquer coisa dele. Seja o que
for. Cabelo, por exemplo. Ou também não te deixam lá ir? Porque é que
dois, e o Eddie erguia a cara ao sol. Quando ele descia, os guardas, que
arrumado, mas era impossível não reparar nas manchas de sangue seco
nos lençóis, nas grades das janelas e nos desenhos do Eddie nas paredes.
lápide preta pintada, sem nome. E, noutras zonas, arcanos do Tarot, mas,
unhas douradas, um lago negro do qual saía uma mão como se fosse
acariciado por uma mulher magra com a cara coberta por um lenço
escuro, um tanque rodeado de juncos, um sapal, um pântano do qual
contar-me:
Outro filho, disse ela, e o ramo ardia no deserto. O resto era frio e a
proteção não era suficiente. Ela gritava que não importava, que a
importante a não ser o filho do deserto que teria o cabelo como o fogo e
não podia usar-se uma criança nem confiar na sua escrita ou nas suas
palavras. Mas Florence julgava que o menino era especial, tinha-o visto
teve de ser e como devia ser. Pedro fechou a casa. Lá dentro, havia
seu rosto sardento olhava para a janela pela qual sairia o sol. Dar-lhe-
da casa, levado pela Escuridão, e de nada servia que a tia lhe gritasse
Florence voltou e pediu para ser lavada. Anne despiu-a e usou água
mordidas.
com água. Deixou-o gritar noite e dia. O menino não gritava de medo,
gritava de fome e de raiva, o menino não tinha medo, não teve medo
quando caminhou cego e de mãos atadas, não teve medo quando foi
oferecido aos homens e aos mortos para que fruíssem dele. Chorou
não teria medo quando fosse levado para perto da morte. Ela, sim, teria
medo. O amor é impuro, dizia a sua irmã, mas Florence acreditava que
o amor era inevitável e, também, que podia ser deixado de lado. Era
ele e que agora doía, mas que, depois de ser tocado, tudo valeria a pena
e visto.
destes anos. Contei-te algumas por telefone, mas pediste-me que não
mostrar assim. Treinei sozinho com a Tali. Ela detesta. Nas primeiras
vezes, ficava cansado, mas agora não tanto. Mas não sei se lhes faz bem.
Aos outros. Vou guardar isto, e apontou para o bolso, para quando
aula nesse dia, mas cancelei-a, porque me pareceu que o almoço era
respeito sagrado que sentia por ele, e, às vezes, voltavam tarde, o que
irritava a Florence.
uma espécie de férias. É que, dizia, a Revelação está muito perto, e isso
aflige-me, mas compreendo que uma pausa também pode ser benéfica.
entregamos pouco.
Ela ficou incomodada e disse que não era a altura certa para termos
aquela conversa. Eu sabia que ela fugiria à inquirição e que evitaria dar
explicações. Falar de tudo isto à frente do Juan, seja como for, era
depende do seu corpo doente para obter a Revelação. Ele não pode fugir.
mensageiro ou escravo, e que viva o que o corpo aguentar, que não será
muito.
isto é teu. Nada seria possível sem a tua ajuda. Às vezes discutimos,
mundo será para sempre e para nós, Juan. Os mortais são o passado,
tanto. Quero que a tua vida seja diferente. Não deixarei que um médium
dar-te.
Depois, falou mais do que o ouvi falar com a Florence em toda a minha
vida. Vou contar-te o que quero, disse. Quero viver com ela perto do
quentes, para poder nadar. Quero esperar pela Rosario depois do estudo
assim o entender, quero ter um filho. Não creio que compreendas o que é
não ser dono de nada: um filho seria meu, o meu único bem. E quero
não quero ser vigiado. Tu não podes dar-me isso e eu compreendo, mas
estou doente. Não tenho educação, não tenho família, não tenho
um escândalo.
disco a tocar. O Beggar’s Banquet. O que é que ela disse? Que somos o
Tenho uma história sobre uma mulher que viveu para sempre, disse a
viver para sempre. Durante os primeiros cem anos, tudo correu bem,
conseguir andar, nem estar de pé, nem comer ou beber. Mas também não
Pela maneira como o Stephen se riu daquela história, que era muito
mais macabra do que engraçada, percebi que tinha tomado ácido. Mexe-
descobrir que era capaz de dormir toda a noite sem acordar a tossir; a
estava cianótico, não tinha os dedos azuis, olhava para eles com ar
a pele clara, o cabelo muito comprido que não lhe dava um ar de viking
nem de cantor de rock nem de hippie mas de algo que só estava de visita
O Stephen ainda não voltara: creio que tinha ido a Atenas, um dos seus
casa de banho. Ao ver que não voltava, tive um déjà-vu da noite da sua
prolongadas, mas não o tínhamos dito aos médicos: ele pediu-me que
acordado durante toda a noite e que a casa não tinha muitas entradas,
cabeça: tinha os olhos brilhantes. Podes abrir a porta? Apontou para ela.
iluminada pela lua, um pequeno sofá e dois quadros de Forrest Bess que
Voltou para a cama mudo. Pensavas que era uma daquelas portas que
cabeça, mas nessa noite não voltou a levantar-se. De manhã, mal falou
brincar com as torradas que não foi capaz de comer. Não é uma
Laura?
mas são. Todos os pequenos feitiços deste mundo são pó, são nada, são
menos de meia hora a chegar. Pensava, pela expressão que tinha na cara
de pasmo.
parecia diminuta e só lhe dava pelos joelhos. Porque é que estás a falar
para si esse tipo de segredos cruéis. Na Ordem dizem que foi o teu pai e
que a Anne te adotou por causa disso. É essa a mentira que contam. Um
pai brutal que esvaziou o olho da filha para evitar que tivesse uma
que foi a Mercedes que te fez isso com as próprias mãos. Embora a
dor acima de tudo, mentem quando dizem que esses métodos ficaram
para trás. Se, como diz a Rosario, os deuses são parecidos com os seus
crentes, então é este deus cruel que quer e permite as mutilações. Não
A Laura fugiu e passou entre nós. Saiu de casa, mas ficou sentada na
O Juan subiu a escada. Fui atrás dele, zangada. Disse-lhe que não
havia necessidade de a tratar assim. Mas ele não estava furioso: estava
juntos a taquicardia. Não gosto de lhe falar assim, disse, mas preciso
almofada, ele é glorioso, o seu corpo, a sua frieza fingida, o seu suor
aos três nos círculos de giz, ele pode partir a Laura em duas, é tão
pequena. Da boca para fora passo a vida a dizer que gosto de homens
Disse-lhe que a casa seria sua, que tudo seria dele, porque nos iríamos
Não pode ser que não tenhas nada. A Ordem deve-te tudo. Pedi-lhe que
sua pulsação irregular na ponta dos meus dedos. Sempre gostei de ver
nos olhos dele que não tem medo da morte ou, pelo menos, que lhe será
casa, tal como ele a descreve, é uma passagem, disse ela. Quer que o
ajude a atravessar o limiar e que não diga nada à Ordem. Está a pedir-me
muito. Não sei porque é que te tratou mal, disse eu. Eu sei, respondeu.
He wants to know how broken I am. Vou fazê-lo, mas tenho medo
Disse-lhe que não tinha nada a temer do Juan, e ela riu-se, desmanchou-
hora azul, não nos incomodava. Não sei, disse, por fim, mas será algo
Quem é que não deseja manter a consciência viva? Quem se recusa a ser
mais ninguém devia saber, nem o Tara, nem a Sandy, nem nenhum dos
como fizera comigo, que abrisse a porta. Ele fê-lo e vimos o quarto
perto da janela que dava para uma casa de banho pequena. Os ingleses
são absurdos, disse o Stephen, quem é que põe alcatifa no chão da casa
outro lado já não havia um quarto. Nem cama nem quadros nem
Do outro lado da porta ficava-se logo com falta de ar. Parei o Juan
quando me senti asfixiada, tive medo por ele e pus-lhe a mão no peito: o
Laura estava agitada, sem fôlego. O que se sente é igual ao mal das
que o Juan se sente sempre, e chorei numa esquina que cheirava a urina
enquanto o meu pai me gritava que íamos chegar tarde a uma reunião
com o embaixador.
muito largo. Ouvia-se a água a correr por perto. Um rio sem grande
caudal. Era de noite atrás da porta, embora não estivesse escuro. Não foi
não dava para o vazio. Havia um trilho entre as árvores que se podia
altitude. Também não sentíamos frio nem calor. O lugar estava quieto
alguém, mais tarde, para pendurar os enfeites? O Juan tocou num deles,
aquele não era o país das fadas. As regras, no entanto, não têm de ser
regras, não.
Alguém dorme no Outro Lugar. É assim que lhe chama o Juan. Daí o
fundo. Não há absolutamente nada aqui, disse. O rio não tem peixes.
algo?
Ele olhou para as mãos e falou. Ouvimo-lo porque, pelo seu tom de
consigo ver o que acontece. Durante o transe, fico cego. Só sei que a
marcar quem tiver de ser marcado com cicatrizes. Mas, durante o transe,
estou inconsciente. Vou para um lugar ou, melhor dizendo, vejo cenas.
Cerimónias. Umas vezes está mais perto; outras, nem tanto. E é este
semelhantes.
aquáticos.
profanar este lugar, disse ao Juan, e ele apoiou as mãos na minha barriga
a saída.
os. O Stephen pediu-me que fosse buscar gelo e água. Não quis ouvir
e dos ossos dos guaranis, e de que era muito óbvio que andavam à
mais do que pensava. Não tinha olhado para o céu, por exemplo, nem
E a Laura copiou o plano do chão num papel que trazia consigo, porque
menos, quem vir este mapa não pensará que tem nada de mal. Podia ser
Nessa primeira vez, senti-me enorme, porque aquele lugar era nosso.
quarto para ver como estava o Juan e pareceu-me bem, calmo, nos
braços do Stephen.
oferenda ao Lugar para lhe pedir algo em troca. O quê? Ter os meus
segredos, respondeu. Pareceu-me tão estranho. Porque não pedes que te
sempre fome.
fora deste mundo. No espaço, a vida humana não tem significado. Neste
couro cabeludo do Juan por cima da orelha esquerda. Tentei não olhar
porque estava convencida de que levar ferro para o Outro Lugar era um
morder o lábio. Não sei como é que o conseguiu fazer sem um espelho,
nossos percursos, aquele lugar, em segredo. Para isso, era necessário que
de nós.
que estava em cima das árvores: não era fácil de perceber à primeira
vista. Havia mãos a abraçá-las. Muitas: umas em cima das outras. Mãos
garra. Naquela zona, toda a floresta era assim. Troncos e troncos com
primeiro tronco que vimos havia doze mãos. Alguns tinham mais.
Floresta das Mãos, como a batizámos, estava o que mais tarde o Juan
dormir, pode estar a comer noutro lado, mas só nos respeita porque
estamos contigo.
voltar. Doía-lhe a cabeça outra vez. Tinha os olhos irritados e parecia ter
vontade de chorar.
de considerar a mais óbvia, talvez por ser a mais próxima dela. Julgava
HUNGRY, dizia.
Não tem por que ser assim, insistiu a Laura. O dogma não diz que o
Lugar de Poder tem de ser sempre óbvio para o médium. Às vezes, tem
antiquada: a Graciela não trocara de móveis e, além disso, não era hippie
possível de Jorge Bradford. O Juan não queria fazer-lhe mal e, por isso,
ausente. Então, o Juan pediu-lhe autorização para ver a casa: é que não a
consigo explicar, não percebo como é que não a encontrou antes, como é
não me consegui conter, e o grito foi tão agudo e histérico, que um dos
Escuridão, que estávamos a meio de uma orgia e que eles tinham sido
baixas. Retrocedi o máximo que pude, mas era mais difícil escapar
daquilo.
espaço não era suficiente, mas ficou suspenso numa mancha negra em
alargou-se como um chicote para levar o que queria. Nem tiveram tempo
atraído por uma força que não teria sido capaz de explicar. A cara do
Juan não revelava nenhuma mudança. Roguei que fosse o fim porque, se
chão com segurança e delicadeza. Por alguma razão o Juan lhe dera, há
muitos anos, a sua marca e a sua confiança. Com a sua própria roupa,
quase calmo, mas ainda inconsciente. Também não estava febril. Não foi
seu abismo, se o que diz é a fome no vazio. Se tem mais qualquer coisa
mais do que uma outra cegueira, que apenas nos parece iluminada por
não a conhecermos.
para a janela. Lá fora o céu estava muito azul e havia pássaros nas
lhe a t-shirt e apoiei-me, nua, sobre ele: precisava de que sentisse o meu
corpo.
diferente para ti. Não fazes ideia da quantidade de coisas que imaginei.
pai que nos comprasse uma casa ao pé do mar. Também imaginei que
injusto. Não te deixa em paz. Eu queria outra vida para nós, um tempo.
— Vais perdoar-me?
morte e de loucura, não há nada e eu sou a porta para esse nada e não
acedeu: percebia que ela precisasse de ver para crer. Quase desmaiou
sobre o Outro Lugar. Era nosso. Para quê, ainda não sabíamos, mas
pertencia-nos.
cristã: tinha a mesma beleza ténue e sinistra, as ruas iluminadas por uma
esperaram nus. Invejei as cicatrizes que tinha nas costas. Também queria
umas, mas nessa noite não seria possível. O Juan pediu-me que não
participasse. Os escribas situaram-se num dos lados, como sempre. Não
casa das imediações. Ela, por ser a única médica do médium, não podia
Laura e pedi: oxalá esta noite seja ela a receber as suas cicatrizes, as
renda preta que lhe tapava a cara e lhe descaía sobre o peito. A minha
seco, com a pouca gordura que tinha nos lugares errados. Segurei o Juan
palma das mãos. Não morras hoje, ordenei-lhe, e olhei-o nos olhos um
cicatriz que tem no braço, essa outra mão marcada, queimada, a mão
muito tempo e que ele nunca usa nas Cerimónias, nas quais os pequenos
Florence, por exemplo, devem sentir que caminham sobre os outros, mas
eu não. Sinto que caminho por passagens coloridas que mais ninguém
conhece, sinto que os outros estão iluminados por uma lamparina ténue
disse-lhes, para vocês isto não passa de um jogo e eu estou farta disso. O
não podia ou não sabia como adquirir nenhuma aptidão para além dos
Outro Lugar e pegar numa das mãos mortas que se aferravam aos
frustrada e furiosa. Até lhe disse e se fores tu que não consegues ter
filhos?, mas não ficou nada ofendido. É possível, disse. Temos de pedir
porque ele não é como nós. Se não se aprendem certas coisas desde
acusou de ser uma incapaz e estéril, e tinha razão. A tua mãe nunca tem
comitiva, mas não seria muito diferente do que sucede com outros
os óculos de sol mais giros, umas sandálias para usar em Roma. Levaria
não muito. Ele estava preocupado com o Eddie. Dizia que era uma ponta
estaríamos a salvo.
ouviu o ataque aos guardas que o vigiavam, apesar de não haver dúvidas
de que teriam gritado, porque o Eddie lhes comeu os olhos com os seus
cegos e enlouquecidos pela dor. O Eddie levou com ele roupa e dinheiro,
um sinal muito claro de que não estava assim tão louco como os outros
uma visita. Vieram com outros amigos, todos membros da Ordem, filhos
Laura gritava que ninguém devia sair da casa, que não podíamos
Outro Lugar e pouco faltou para ter um chilique ao supor que os idiotas
O Tara estava a ler uma carta. A Sandy disse-me que alguém a tinha
enfiado por baixo da porta, mas não sabiam quando. O tempo, com o
letra do irmão.
Não te importa que me doa, mãe, e à velha também não, ela afiou-me os
Vocês acham que não, mas eu conheço-o. Parece um leão. Eu sou como
quem é real e quem não, todos são reais, não faz sentido tentar
dizias, eu ouvia-te, estava de pé. Acham sempre que não ouço porque
não falo. Vocês são inteligentes porque fazer mal com simplicidade é
mãe e ele vivia lá. Passava as noites com a Rosario, mas ela saía durante
fazia-o com uns amigos que desencantou em Mayfair, uns dementes que
agora estão na Califórnia. Acho que te viu. Seja como for, conhece-te.
O que é que ele pode fazer, exatamente?, perguntou, por fim, o Tara.
O Eddie não tem poder sobre nada nem ninguém, não controla os seus
minha pele. O leão tem cicatrizes? Todos os filhos têm cicatrizes. Nunca
quis morrer porque não há assim tanta diferença entre a morte e a vida,
algo vivo morria e pouca diferença fazia. A grávida sabe-o, é por isso
soltas: era a Laura, a única que sabia desse defeito. Não sei quanto
com a certeza de que não estava ninguém lá dentro, mas ainda com
medo. Não sei porque é que não nos fomos embora. Estávamos
fez durante toda a noite. Mas a Sandy não importava: quem tinha de
pela casa durara muito mais tempo do que pensávamos: até o Juan
intruso teria sido detetado. Tínhamos fome e, por isso, a Susie e o Tara
lentidão anormal ou, pelo menos, é assim que me lembro. Passei horas a
disso, de que o ferry não poderia zarpar. Nenhum dos nossos amigos se
amanhã de manhã. Cedo, disse ele. Muito cedo, respondi. Vou pôr o
Deixei-me abraçar pelo Juan, que cheirava a vinho e a terra nas mãos
e no hálito. Beijei-o, mas não fizemos sexo nessa noite. Dormimos sob
uma mata de pele branca que nunca esquecerei e com a qual ainda
sonho.
e eu saltei. Não era a tempestade, não era um móvel a cair, não era um
esse ruído seco, o meu avô e o meu pai tinham-me ensinado a disparar.
Era uma arma grande, de caça, que eu também reconhecia porque o meu
costas. Não estavam no posto deles. Ouvi Genesis, com a sua voz
porta abriu-se uns minutos depois. Gritei, não me consegui conter. Era o
Stephen. Estava meio despido, pálido e furioso, como sempre que tinha
móveis a cair. Mais três disparos. A sucessão era lenta. O Eddie tinha de
disparos, um uivo.
Percebi, mas já era tarde. O Juan também percebera tarde. Sou uma
com a manta branca porque estava nua. O objetivo era irmos até à escada
longe. Nós também não. Mais dois disparos e o Eddie saiu do quarto da
bem. Na sua cara muito nova, sardenta, de olhos pálidos e com o cabelo
encontrado quem procurava. E fez pontaria. Por incrível que pareça, não
acertou no Juan. Errou por pouco. Apenas por um dedo, pensei. Não
manchou a manta. Era uma ferida sem importância, mas foi o suficiente
baixo. Não sei como é que teve coragem: a manobra requeria reflexos de
animal. Não receei por ele, lembro-me. Sempre intuí que ganharia
aquela luta. Queria ajudá-lo, também me lembro disso, mas não sabia
como. Não era a minha história, penso agora. Devia ser resolvida por
predador.
uma criança, mesmo. Tentava resistir, mas estava muito magro e o Juan
que era uma boca. O Juan soltou o Eddie, que tentou levantar-se outra
vez, mas não conseguiu: desabou de barriga para cima, a arfar. O Juan
belos a lutar sob o céu sem estrelas, envoltos pela respiração pesada do
Outro Lugar.
— Disse que estavas no primeiro, mas não era verdade. Estúpida,
estúpida.
disparar.
Tem de acabar. Mas eu não posso fazê-lo, porque esta é a minha terra.
articulação.
isto devia ser meu, como me prometeram. Não podia ser de mais
fechadas.
fôlego, mas senti que não resistiu o suficiente. Do lado de fora, tinha
matado. Uma vez ali dentro, rendia-se. O Eddie começou a tossir sangue
Estar nua no Outro Lugar fez-me sentir vulnerável de uma maneira nova
e obscena. Esperava uma unhada, uma mão entre as pernas, que alguém
me levasse para o Vale dos Bustos para usar o meu corpo como
mim.
eu o levantar pelo lado dos pés. Ele fez o mesmo no extremo oposto.
muito pouco, mas eu estava com falta de ar. O Juan olhou para mim uma
porque estás viva, disse ele, e não lhe respondi. Ia pendurar o Eddie ao
fascinante vê-lo morrer. Não havia maior deceção do que acreditar ser-se
o eleito e não o ser. Estou convencida, até hoje, de que aceitou o seu fim.
lugar decorado com restos humanos não cheirava a nada, mas apercebi-
não sabia fazer nós, mas eu, sim. O meu pai tinha-me ensinado no
cansado. O preço que pagaria pelo esforço era incalculável. Para não o
resto para lhe amarrar as mãos atrás das costas. Algumas versões do
Tarot deixavam as mãos soltas, mas lá, no Outro Lugar, parecia mais
fazer, mas algo nos retinha, e o Juan percebeu. Podia levar alguma coisa,
Olhei para as mãos dele. Estavam rodeadas de luz negra. Obrigado, disse
o Juan em voz alta. Com um roçar certeiro, porque agora ele era um
gume e uma arma, cortou uma das mãos do Eddie. É para a minha
mulher, disse. A sua Mão da Glória, que tanto quer. Ofereceu-ma e eu
mundo.
um fio para fugir. Quem chega demasiado longe sabe que pagará um
culpava-se por isso. Mas eu não queria que tomasse conta de mim.
viver no abismo.
casa. Dissemos à polícia que ele tinha fugido; eu, por estar ferida, não
certos, disse o Juan, mas agora, mais do que nunca, eu queria ter um
filho. O meu filho não seria entregue nem maltratado. E seria o primeiro
comigo.
Cadaqués, não saiu do quarto. Não suportava estar em casa dos pais do
mesmo.
A depressão do Juan não estava apenas relacionada com as mortes
Claro que a relacionava com a purga levada a cabo pelo Eddie, mas
até uma aldeia, beber uma cerveja num bar, instalar-me numa quinta
alguma estrada.
cheios de fluidos e meio corpo paralisado. Não sei trabalhar. Não sei
orientar-me com um mapa. É fácil falar em abandonar, deixar, morrer,
mudar, quando deixar tudo não significa nada. Sentir o poder em todo o
E tu, respondeu.
frágil e belo à espera no alpendre, a ler poesia. Era uma vida de jovens
quando lá foi pela primeira vez, viu uma raposa. Deitei-me em cima da
voltava, pensei que era o meu momento e o do Juan e que aquela morte
e as outras deviam ficar para trás, como, a dada altura, as tinha deixado
gestações, mas não lhe dizia. Ficava a olhar para o sangue espesso e
agastamento permanente: nunca lho consegui curar. Ele tinha medo por
causa do nosso filho. Receava não poder ou não saber tomar conta dele,
hospital e nós estávamos perto dele, mas do lado de fora: estar naquele
mais fiel, muito mais ainda desde a morte do Eddie. Aos meus pés
uma sala inteira com as estatuetas de São Morte. O meu pai queixou-se,
mas já não tinha autoridade: estava quase sempre tão bêbedo, que era
incapaz de se lembrar do que queria. É claro que não era uma doação: a
que Puerto Reyes albergava um portal, mas que não estava ao seu
ideia: perto do hospital onde o Jorge operara o Juan e onde ele alcançara
pela primeira vez a Escuridão. Iam muitas vezes a Buenos Aires com um
pai do que era comum na idade dele. Dormia muito, chorava pouco e, às
demasiada concentração.
Eu e o Juan discutíamos muito por causa do Gaspar. Muito e todos
os dias.
Eu ficava aborrecida.
também tenho poder. Não vão fazer o que bem entenderem com ele.
— Confio em ti, mas não confio neles. Também posso evitar que
Não gostava de discutir, mas se não fosse com ele, não tinha
ninguém com quem falar sobre o meu filho e sobre o que o esperava.
uma miséria, mas era melhor do que nada. E foi assim quase todos os
dias, desde então: nem sequer tinha sono, apenas um apetite voraz.
Estava gorda e chorava por estar gorda, o que fazia rir o Juan. Mas nunca
porque havia provas físicas. Era impossível confiar porque tudo era
tão pálido, que fiquei assustada. O Juan está bem, acordado e alerta,
levá-lo comigo algum dia, roubá-lo, levá-lo para um museu. Ele não
quando estavam juntas. Como é que dizia o poema que o Juan me lera
uns dias antes? Uma é puta, a outra é uma menina que nunca olhou para
sempre.
— Não podia esperar, querida. O Juan devia estar aqui, eu sei, mas
Vou esperar até estar forte. Devemos-lhe tanto, devemos-lhe tudo. Minha
depois chegará a nossa vez. O que queremos dizer, I’m so excited, custa-
janela. Não conseguia ler porque estava enjoada, mas fingi fazê-lo. Claro
Londres. Havia cópias que ninguém na Ordem, nem sequer eu, sabia
tontura que me fez cambalear. Era tudo? Era assim que acontecia? Nada
Queria isso?
— Ah, estás impressionada — disse a Florence. E acendeu um
minha mãe, com os cabelos grisalhos cada vez mais escassos, falou.
pai dele, já não importa. Se não herdou o dom, não interessa. Porque, de
quando é transferida para outro corpo. Isso nós já sabíamos. Mas agora
minha voz fosse evidente, mas não a queria insultar. Detestava, isso sim,
e o nosso filho. Fazia-a duvidar. Será que espera que eu não resista?,
pensei. Que deixe ir assim tão facilmente o meu bebé e que perca,
tratasse do Juan! Mas elas não suportariam uma conversa nestes termos.
termos. Sabia que devia ter dito «o médium e o recipiente», mas não me
desprendimento.
— Não será agora, we’ll have to wait. Só quando o rapaz tiver doze
vida normal que vos prometemos até chegar a hora. O Ritual será daqui
quiserem que viva mais dez anos, terá de haver ainda menos Cerimónias.
Não é possível manter este ritmo durante tantos anos. Já falámos sobre
vou partir para a guerra quando as notícias são boas. Estamos todas
Bebi o vinho em vários goles e pedi licença para sair e pensar. Claro
grande! Ninguém é mais importante do que tu, hoje, neste mundo. Claro
Quando fechou a porta, caminhei o mais lentamente que pude até ter
a certeza de que não me podiam ouvir. Então, fui a correr até ao rio.
Desci a escada tão depressa que, quando cheguei à praia, estava agitada.
dedo grande do pé. Tinha ido até à praia pelo outro extremo da casa,
pelo da entrada. Ainda não estava pronta para voltar para junto do
Escuridão que guiou todos os passos que dei. Eu é que era a verdadeira
acabar. Rebelei-me contra esta ideia, diante do rio. Não teria de ser
sozinha, quase sem ajuda, a não ser a do Juan. Nunca quis ter nenhuma
tentar apaixonar por ele. Só me chegava uma onda de ternura que não
reconhecia como sendo amor. Até que uma madrugada, quando tratava
demorei a chegar até ele para lhe pegar ao colo, urinei-me. Encharquei
as pernas nuas, deixei uma poça no chão de madeira. Aquele era o medo
era isso. Só havia morte depois da morte de um filho. Uma negrura sem
futuro.
porque travava uma luta sem fim e eu era a minha principal inimiga.
poderoso me podia dar. Eu, que nunca tive dons, invejava a Olanna, a
o meu filho estava morto. E à felicidade que senti quando o ouvi chorar.
Poder, poderia fazê-lo com uma grande facilidade. Acabar com tudo
Gaspar.
Tentei argumentar com ele, mas foi inútil. Nunca se tratou apenas de
era essa a sua linhagem, a dos médiuns usados contra a sua própria
ele decidiu ir-se embora. Esteve fora durante vários dias, com o Stephen.
como quando eu era pequena, nada dura nas tuas mãos, é a única coisa
que tens de fazer, reter o médium, mais nada. Mandou buscar o Gaspar e
lhe a t-shirt: preciso de lhe tocar na pele. Os dias sem ele são fisicamente
sentir insegura pela primeira vez. Ele também não precisava de mim e
era capaz de deixar-me. Antes disso, nunca imaginara essa hipótese. Tal
exigência.
nunca consegui aprender. Como podia fazê-lo com a Tali, se nunca fora
— Não vou viver mais dez anos e não quero que o Gaspar faça parte
mim?
poderia ser marcado com violência: teria de ser uma ferida profunda e
Ordem longe do Gaspar. É isso que faz, e apenas isso. O Gaspar poderá
suponho eu. Espero não estar vivo se ele quiser voltar. A marca vai
também devias estar para lhe salvares a vida. Viverá com o meu irmão.
própria decisão.
O que era incrível é que não discutíamos. Até o volume das nossas
da tua consciência…
me for dado. Também posso fazer com que o Ritual fracasse ou fingir
perguntou-me.
ideias?
anos. Era raro fazer birras. Só via a angústia nos olhos dele quando eu
para dar aulas em Buenos Aires. Mas, quando voltava, ficava sempre a
discussão. Já não duvidava de que fosse a decisão certa, mas, por vezes,
Também surgiu algo inesperado com o qual a Ordem não sabia lidar
tantos anos. Porque teria eu sentido compaixão por ela? Uns dias antes,
me, porém, que teria de ter cuidado com os que tomaram o poder. Dizia
então tudo teria sido inútil. E, além disso, era dona de uma Mão da
a Adela não tinha um braço. É claro que o Gaspar não sabia que tinha
e a Escuridão viu a bebé, a Adela, tão pequena, mais nova e mais miúda
impressionante.
pertencia, e sempre intuí que o plano deles correria muito mal, mas a
refúgio. Falei com a Florence, com a minha mãe, com o meu pai. Claro
estava marcada para dali a poucos dias. Teria de permanecer fechada até
acabar, porque a Betty não era uma Iniciada. Depois decidiriam o que
desobediente, não rebelde. Podia ser corajosa, não discuto isso, mas não
um peso para o Juan, que agora também teria de arcar com a Betty e a
Cerimónia. Não fazia ideia do que tinha visto, não percebia. Passou
semanas em estado de choque, falava de uma luz negra que tinha levado
a filha, embora isso não tivesse sucedido, só lhe tinha cortado o braço, e
Tali estavam lá, porque eu perdia a paciência com a Adela, que era
filho, e nem sempre. Disse à Betty que o homem das mãos era o Juan,
que lhe chamavam: aparecera a criança mais nova jamais tocada pela
parir esse filho, dizia-me. Nessa época, o meu romance com Puerto
capital.
— Onde está o Juan? — perguntou a Betty. Olhei para o perfil dela:
que é que o Juan fazia. Talvez um dia. À sua maneira, a Betty poderia
Ordem nos últimos anos, aterrada por a filha ser uma militante
revolucionária. Isso era pior do que a Ordem? Para ela, sim. A Ordem
ver o caso da Betty, cujo regresso foi o mais espetacular de que havia
memória. Apesar dos seus esforços para se manter longe da sua família
parecido uma cena ternurenta. Duas jovens mães com os seus filhotes.
dele. Teremos proteção, como sempre, mas isso é conveniente para ti.
disse-lhe.
volte para trás, quero estar com o Eduardo, quero esquecer tudo.
a seguir. Uma leve brisa trouxe o perfume dos jasmins até à praia e vi
estava sozinho, mas não vinha com o Stephen: era outro homem louro,
mais baixo do que ele, mas igualmente imponente. Não o via desde a
para dentro? Para a sala das janelas coloridas, se não for muito
Juan.
com uma discreta boca de sino. Se o Juan tinha vinte e quatro anos, o
irmão devia ter trinta e parecia ser ainda mais velho. Era cortês, embora
parecesse assustado.
laranjas no centro da mesa e foi buscar chá frio. Em casa, o Juan despiu
irmão está esgotado, fica assim. Já deves saber que não anda bem de
saúde.
O Luis olhou para as mãos. Tinha um anel largo, dourado, mas não
um certo ar de recriminação.
Buenos Aires, suponho que tenha sido por alguma coisa importante.
ajuda.
— Ela acha que eu sou um cagão por não estar de acordo com a luta
armada. Foi-se embora sozinha. Se for ter com ela, veremos como é que
as coisas correm, não sei se me vai aceitar de volta, espero que sim.
— E és? Um cobarde?
vista dela, sou um cobarde, mas continuo a pensar que está enganada.
Ignorei-o.
mas se a água morna estiver bem para ti, podes tomar um duche ou um
Paraguai uma vez por semana, em trabalho, às vezes com a minha irmã.
me.
Juan nunca teria sido uma pessoa capaz de ser leal e de sentir afeto.
que morreu louco aos quarenta anos. Pareceu-me brutal aquela vida,
Só tinha uma muda de roupa porque não podia fugir com uma mala,
devia parecer uma viagem curta. Chamei a Marcelina para que lhe desse
carro?
estás arrasado.
— Conta.
— O portal continua aberto, obedece-me, consigo entrar e sair. É o
Outro Lugar, sem dúvida. O Stephen está a ver se arranja uma casa para
nós perto de lá. Não devíamos falar sobre o Outro Lugar, não consigo
ninguém nos ouvir porque, para ser franco, não consigo levantar-me
Era nosso. Podíamos pedir, pedir pela saúde do Juan, pedir sabedoria
destino.
militares conhecem-nos. Mas vou pedir-lhe que não fale sobre isto com
os camaradas dele. Não podemos ser um porto de saída, nem pôr este
par?
nossa morada ao Luis. Não podemos perder o contacto com ele. Os teus
pais não vão perceber porque é que queremos viver nesse bairro e eu não
porque é que querem que a Beatriz e a Adela vivam perto de nós, não
altura para irmos para Buenos Aires, mas já não espero que alguma
coisa seja fácil para nós e já não aguento viver nesta casa, preciso de
trabalhar.
— Eu sei — respondeu.
até à fronteira se não fosse com o Gaspar. Tínhamos tempo. Iríamos até
Uma vez no Brasil, estaria a salvo. Demoraria dois dias a chegar ao Rio.
cataratas e uma pele demasiado suave para alguém que está perto dos
Aponta com extrema precisão para o lugar onde está a vala comum,
— Mas o que é que nós íamos dizer, menina? A minha irmã ouvia-
os pedir de noite.
— Quem?
Ainda põe uma flor atrás da orelha quando acaba a trança, e as pétalas
Margarita Gómez já viu muita coisa. Viu morrer os filhos, viu os filhos
vegetação densa, uma humidade que faz crescer brânquias, tudo convida
exército argentino quase não teve impacto fora do âmbito local, por
quase setenta por cento vive de trabalho ilegal que, em muitos casos, se
durante quase uma semana. Acabaram por ser quase todos abatidos e,
comum que acaba de ser exposta publicamente. Nenhum dos dois quer
cadáveres da vala, isso quer dizer que o exército a usava como cemitério
OSSOS NA SELVA
payé (amuleto) mais eficaz. Têm medo dos ossos. Não de todos, claro. O
sr. Segundo, dono do bar, diz que em sua casa sempre foram devotos de
passou pela cabeça que as pessoas iam ficar do lado deles. Aqui as
aos militares, mas percebo que o sr. Segundo não os está a atacar. Está
apenas a recordar, com um certo assombro, o que aconteceu há mais de
Mónica Lynch. «Era ideal para ser comprada ou desejada.» Pérez Rossi
como todos nós. Sempre me pareceu estranho não a ter conhecido antes,
mas ela movia-se noutros círculos, tinha saído de casa. Veio com o
regras da família burguesa. Além disso, foi impossível deixá-la para trás.
que se diz que a menina nasceu num hospital de Puerto Iguazú e tinha
casas ao pontapé e ao tiro. Pérez Rossi e Lynch não acreditam que a mãe
resistência na selva.
Os sobreviventes não sabem porque é que lhes pouparam a vida.
limitaram-se a correr até não poderem mais. Pérez Rossi passou seis
disse. «Na verdade, não quero comparar. Nós não sofremos nada.»
coberto por um toldo de rede, uma espécie de tenda para proteger os que
tenha sido isso mesmo que aconteceu. Na aldeia, não sabem que veículo
quando soube que tinham armas, fiquei zangado. Queria salvar a criança
e fui a correr até à casa deles. Estavam aos tiros. Nem consegui lá
chegar.»
porque é que passados pouco mais de dez anos de enterro estão assim,
nenhum dado sobre os corpos, a não ser o lugar e a data das detenções.
Passar outra tarde junto ao poço parece-me inútil. Sonho com ossos.
Não percebo que mais posso fazer. Talvez ir até Corrientes, onde estão a
diz-me que ela está cansada e não pode falar, mas a mãe sai de casa,
no pátio. Uma rapariga, talvez sua neta, varre o chão com uma vassoura
condições de confirmar isso, mas que aparenta ser uma lesão compatível
por perto, de velar os seus corpos. Porque é que não vêm para cá?,
O ESCURO ENTARDECER
A aldeia da lagoa Totora chama-se San Cosme del Palmar e deve o seu
não parece muito bom, mas é uma delícia, não se vai arrepender» —,
explica que a chave tem um pequeno truque («mas o quarto fica bem
não pergunta aos hóspedes porque é que lá estão e que não lhe compete
dizer-mo. Que os donos dos hotéis, tal como os barmen, têm o seu quê
acabada de cortar.
cais, até onde dei um passeio, está a abarrotar de lanchas. A esta hora,
qual das famílias ricas da região terá sido sua proprietária. Na aldeia há
apenas um, que só vai de vez em quando ao seu gabinete arrumar papéis
antigos.
ribeirinho, à sombra das árvores, num dos cadeirões de vime, que são
mulher de uns sessenta anos, e uma mulher nova muito magra de vestido
perguntar-lhes o que quero saber. Eles abrem-se logo. Querem falar. Isto
logo a seguir ao golpe. Vivia com eles numa dessas grandes casas de
os pais; o de trás, depois do pátio das azáleas, para os filhos. Eles foram
— Ele achava que não o iam levar. Dizia que essas coisas só
Garanto-lhe que sim, porque ele contou-nos e dizia-nos para não termos
medo. Com isto não estou a justificar o que fizeram com os rapazes que
mulheres. Não são assim tantos, afirmam, acham que são oito, há alguns
que não falam ou que têm vergonha. Eu quero saber porque é que estão
restaurante que serve pacu com erva-mate — fui a única que o pediu —,
meses que estão cá, desde que se soube do poço. Vão a Zañartú todos os
dias para ver se têm sorte, se os deixam passar, se alguém decide falar
identificações.
camaradas. Não quer saber dos vivos: não consegue refrear a raiva.
O meu marido está lá à espera. Não pôde vir. Está mal de saúde. Estava
zangado com o Guille quando ele veio para cá. Eu nem sequer sabia que
estava no Norte. Foi o meu outro filho que me contou, o irmão dele,
flores, aqui, na lagoa, e perto do poço, nas árvores. Viu a Itatí? Não nos
o mataram (é assim que o diz, embora não tenha o corpo, sabe que o
— «Para com isso, olha que o patrão corre contigo e depois o que é
que damos de comer aos miúdos.» Gritava-lhe isto dia e noite. Ele dizia-
conheci o dono, o Adolfo Reyes. Até pensava que era boa pessoa. Mas
nem me recebeu quando o meu marido desapareceu.
isso. À noite não sonho com ossos, mas com uma enorme escuridão
A MULHER MAGRA
Zañartú levar as suas flores e tentar a sorte, e dos que se vão embora.
Uns vão para Corrientes. Outros, para Posadas. María Eugenia e a mãe
de Castelar ficam mais uns dias. Ontem vi-as juntas, à beira da lagoa, a
numa mesa do pátio. Tem uma cara extraordinária que, além do mais,
feições: uma cara angulosa que de frente é bonita, mas de perfil e sob
uma certa luz parece a de uma das Meninas de Avignon. Sei que
aos pés.
almoço. É ela que vem ter comigo. Pede-me lume no passeio ribeirinho.
rapazes não conseguiram ver bem e a menina nunca mais saiu de lá.
que o que lhes devíamos dar eram boas notícias. Nunca acreditei nele.
uma história assim. É verdade que 1987 foi um ano terrível, com a
25
insurreição dos carapintadas e a profanação do corpo do Perón:
tinha qualquer coisa de tétrico, sim, e talvez tenha sido por isso que não
Maoísta Leninista. Era este o seu nome completo, embora até os livros
dedicar um só pensamento.
junto às pessoas que aqui vêm. A minha família foi cúmplice dos crimes
casa da família estava situada a apenas dez quilómetros rio acima. Como
Caballito?
Eduardo já deu sangue. Ela não gosta lá muito de mim, mas confirmou-
me que o fez. Digo ao Eduardo todas as noites que tentei salvar a nossa
filha. Os que vêm para cá não sabem como chegar perto do poço porque
perder. Além disso, se eles não quiserem que esta conversa veja a luz,
não verá. As regras deles são outras. Já não estão nervosos. Como sabe,
a casa da minha tia, a Mercedes Bradford, fica perto daqui. É minha tia,
que fique claro, não quero aparecer como filha desse monstro. A minha
— Com todos.
— Não lhe vou falar da minha tia. Não consigo. Com os meus pais,
la. Foi breve, a conversa dessa tarde. E a da noite também, mas ambas
— Lembra-se da Operação?
planeado a fuga, a ideia era irmos até à casa de uma mulher que nos
única que nos ajudava naquela aldeia de merda. Nunca lhes teria
deles. Não encontrei a casa, estava desorientada. Por isso, fui como pude
até à casa da minha tia. Tinha de salvar a minha filha e tencionava deixá-
Devíamos ter morrido nessa noite. Às vezes, iludir a morte é o pior que
pode acontecer.
Não lhe vou contar a minha vida. Quero dizer-lhe que a sua intuição está
Beatriz Álvarez. Nunca casei com o Eduardo, mas adotei o apelido dele.
— A casa era boa. Era a que eu queria. Não vivia como eles, se é a
meus tios.
— Teve um acidente?
— Sabe o que há nesta selva? Eu também não. Nunca percebi
centenas de anos. Foi o que vive nesta selva, e que agora está a dormir,
pelo Eduardo, passei a acreditar no que ele acreditava porque era uma
— Não percebo.
tanto sofrimento e tanta morte. A que é que ela se referia quando dizia
que a sua família «venerava» algo terrível daqueles montes? Seria uma
distante. Talvez fosse por isso que os familiares escolhiam aquela aldeia,
noturnos calados pelo ruído dos motores. Vi, pouco antes, um altar a
um animita, como lhes chamam no Chile. Pensei nos ossos secos pelo
hotel. O quarto dela ficava no extremo que dava para a sala de refeições.
para o meu quarto. Fechei a porta à chave e ela atirou-se para cima da
vómito. Não a tinha visto comer nada e acho que, de qualquer maneira,
não comia muito. Estava bêbeda, mas bastante lúcida. Queria falar.
Voltei a gravá-la.
— Chame-me Olga.
— Olga. Que nome tão feio, é como Beatriz. A Rosario é que tinha
salvar-nos e salvar-se. Era uma cabra, mas tinha amor para dar, sabes,
— Quem é a Rosario?
— A minha prima, a filha da Mercedes. Foi ela que me deixou entrar
naquela noite e que me disse Betty, não saias, Betty, esta noite, não, as
pessoas vão estar cá hoje, vai haver uma Cerimónia, tu sabes que não
que fazia as cicatrizes. Ficou num desespero que era terrível de se ver.
lençóis.
— Saí apesar de ela me ter pedido: Betty, não. E isso cortou o braço
à minha filha. Não me peça que lhe explique o que é isso, não tem nome.
Fê-lo através do Juan, que já não era o Juan, e a luz negra tocou na
minha filha. Porque é que saí do quarto com a minha filha, Olga? Porque
é que não obedeci à Rosario? Ela sempre foi sensata. O Juan era
obscuro, mas ela amava-o, sem o amor da Rosario não sei o que teria
sido dele. Qual quê! Claro que sei. Foi ele que entregou a minha filha.
minha filha, era esse o pacto, mas não o cumpriu. Devia ter percebido, é
que nem sequer falava comigo! Agora não me posso aproximar do filho
dele. Gaspar, é assim que ele se chama, chama-se Gaspar. É como ele,
mas não sabe, mas alguém tem de lhe contar. Queres dizer-lho tu, Olga?
A minha tia quer que ele saiba. Há muito tempo que não vejo a minha
tia. É possível fugir deles durante algum tempo, mas eles esperam,
quero enterrar o Eduardo e dizer aos ossos dele que tomei conta da
nossa filha, mas que não a consegui afastar da minha família. Tu não és
A isso, não, mas estava condenada. Ele não sabia. Ele também tinha
odeiam por isso. Tinham planos para a Adela. Onde estará ela? E o filho
— Olga, não queiras saber. Não queiras saber! Já estás em perigo por
minha culpa. Destruo tudo aquilo em que toco. Não soube tomar conta
dela. Mas o Eduardo tem de saber que a tentei salvar e não consegui,
não consegui, mas a culpa é deles e do deus negro que os guia. O deus
filho dele em troca da minha. É por isso que não revelava os planos dele,
porque sabia como é que eu sou. Preferia fingir que estava louco.
Esperto, hã, fingiu que estava louco. Ele sabia que não era ninguém. O
tem mau vinho. Não é a única, alguns dos que cá vêm também são
— Já cá esteve hospedada?
— Duas vezes. Acho que vive aqui perto, mas não lhe pergunto.
como é que passou os controlos. Foi a polícia que a trouxe. Ela foi-se
Estive para dizer à rececionista quem era aquela mulher, o que é que
lhe tinha acontecido, mas calei a boca. Nunca me pediu discrição nem
segredo, mas não quis espalhar a história dela. Considerei que tinha
nem sequer tive pesadelos, que me lembre, embora tenha acordado toda
carro dela.
quando bebe muito e faz algum estrago, parte antes do tempo. Fica com
porque é que pensei que me podia ter deixado qualquer coisa. A morada
A MENINA ESQUECIDA
ainda não findo, na inundação de 1987. Eram apenas dois volumes, nada
que era enorme, que tinha prateleiras com restos humanos dispostos
como bibelôs: dentes, ossos e unhas. Adela entrou numa divisão, fechou
Carmen Molina ordenou uma série de rusgas nos dias seguintes nas
ainda não há suspeitos, nem qualquer pista, sobre quem levou Adela
lhe para lhe pedir mais pormenores e ele foi muito amável comigo, mas
disse que o assunto estava arrumado para ele. O que referiu, no entanto,
A casa da Rua Villarreal, n.º 525, tem 40 metros quadrados, 44, mais
distribuição da casa, além disso, era muito simples: uma assoalhada para
vários fins na entrada, uma cozinha com uma zona para as refeições
naquela casa e não noutra. Ou seja: declararam que era muito maior por
me pediu que fosse discreta. Tinha dado uma amostra de ADN para
filho. Não consegui extrair mais nada dela, exceto a promessa de uma
ameaçador. Seria possível que Beatriz vivesse com a mãe? Algumas das
disseram-me que quem tomava conta dela era a mãe. Insisti por outas
Entretanto, queria falar com alguma das crianças que tinham entrado
na casa com Adela. Já não eram crianças, de resto. Mas não foi assim
mãe, por telefone, disse-me que a filha tinha superado a muito custo o
Gaspar Peterson, o terceiro rapaz, que vivia com o tio. Deram-ma com
uma certa displicência, como se não lhes importasse. Mas não me deram
o telefone dele, que também não estava na lista telefónica. Decidi fazer-
uma história que não queria conhecer. Porque o que aconteceu naquela
número 147. A morada era rua 6, n.º 147. Não havia dúvida nenhuma
estava bêbedo e discuti com ele, mas o homem disse-me que nunca
que a casa da qual não conseguimos sair se encontra ocupada por algo
Contei-lhe a verdade, que não era capaz de dar com a casa. O homem
não tenho o dia todo.» Tentei mais algumas vezes, mas recordei as
algum deles. Não aconteceu e, além disso, não sabia que aspeto teriam:
Villa Elisa. A linha Roca tinha uma má fama justificada: janelas sem
sempre tantos mendigos, que este não me devia ter chamado a atenção,
mas não consegui deixar de reparar nele. O homem não tinha um braço.
na sociedade.
numa pequena mala que carregava ao ombro. Percebi que estava bem
— Quem? — perguntei.
Olhou fixamente para mim, mas o seu rosto não denotava nada. Era
terrível tão próximo dos carris e das rodas do comboio. O cheiro a metal
barulho das rodas a chiar. Não é verdade que, quando estamos perto da
morte, vemos passar a vida à nossa frente. A única coisa que se sente é
um medo atroz e pena, pena pelo que ficou por fazer, pelos filhos, pela
de ossos.
Não sei quem era o homem do comboio. Pensei em denunciá-lo, mas
plano cujas regras desconheço. Mal posso sair de minha casa sem olhar
leve a minha filha, que tem a idade de Adela quando desapareceu. Ponho
25 Grupo de rebeldes do exército argentino responsável por diversos golpes militares entre 1987
e 1990, durante as presidências de Raúl Alfonsín e Carlos Menem. Costumavam pintar o rosto
1987-1997
EMILY DICKINSON
LUIS PETERSON MUDOU-SE PARA UMA QUINTA descuidada que comprara
barata com o dinheiro que poupou no Brasil; uma casa em Villa Elisa,
perto de La Plata, que estava em muito mau estado, mas era bonita, e
psiquiatra e gritava ao tio que nunca mais o queria ver, que o iam
internar, que era óbvio que se queriam desfazer dele. Porque é que dizem
que não consigo distinguir o que é real?, gritou-lhe uma noite, na
cozinha, com gelo envolto num lenço apoiado nas fontes para mitigar a
que vinha de uma família estranha, era o filho do viúvo, o rapaz que se
limitaram-se a imitá-lo.
osso. Luis não o conhecia muito bem, mas percebeu que não estava a
mentir, que não pretendia usar a faca para o matar a ele ou a outra
pessoa. Nessa mesma tarde, depois de esconder a faca, decidiu falar com
Julieta, a mulher que conheceu assim que chegou ao Brasil, uma amante
que não a via, desde que teve de mudar-se para a casa de Juan. Ela
um dos seus melhores amigos antes do exílio que agora vivia perto dele;
que estava debaixo da cama e de como Gaspar lhe dissera que queria
morrer, que não queria viver estando louco. Que lhe fora diagnosticada
esquizofrenia. Ele insiste que não está louco. Disseram-me que é normal
alucinações. Mas, não sei porquê, Julieta, eu acredito nele. Sei que é um
cansaço brutal, e lá estava ele, com os seus treze anos, sem fazer nada
adequada para ele, não este filho da puta que só quer dar-lhe
ninguém mais leal do que o Negro, disse Luis. Acredito que sim, mas
não sabe tratar de um rapaz com problemas. Ninguém sabe, disse Luis.
conheceram, ele evitava falar sobre a sua situação familiar nos primeiros
Rioja nas primárias. Com o que nós vamos ter de nos conformar é com o
quando o viu chegar. Era apenas uma lufada de normalidade, ele sabia;
mas eram lufadas tão limpas, tão frescas, que ficava cheio de esperança
significar tem paciência, como cala a boca. Foi com Julieta até ao jardim
bom.
Nesta família são todos lindos, disse ela. O puto parece saído de um
conto de fadas.
Agarrou na cara de Luis e beijou-o, mas não disse mais nada. Ele
percebia porque é que fora obrigado a não a ver durante tanto tempo,
— É normal que ela não queira estar contigo, agora que tens de
como era. Fica descansado, os homens não sabem gerir duas crises ao
mesmo tempo.
— Infelizmente, sim.
eram telegráficas.
— Nada.
— Gostas de ver televisão?
— Eu não.
paz.
Gaspar olhou para ela e Julieta pensou que, passados uns anos,
fosse.
televisão. Julieta foi até à cozinha, para ajudar. Nessa noite, ficou a
dormir com Luis, que se levantava várias vezes para fumar no pátio e,
de Gaspar.
26
uma mulher de esquerda, muito gorila , muito doce. Luis quis conhecê-
marreca, uma mulher com mais de sessenta anos que o abraçou como se
de Gaspar a gritar que via Adela pelos cantos da casa ou o pai ao lado
dele, na cama, com a cabeça na mesma almofada que ele, umas vezes
morto, outras vezes vivo, mas a primeira coisa que acontecia quando o
total na cama de olhos abertos e pupilas dilatadas. Luis falava com ele e
médico esteja perto da casa dele e que não tenha de ir até Buenos Aires
duas vezes por semana. Uma má relação com o médico pode provocar
crises desnecessárias. Deixe isso comigo. Não haverá problemas legais,
sente pior.
A psiquiatra hesitou.
abordagem. Também não quero que o obrigue a vir a estas sessões. Ele
precisa de vir, mas finja que não o está a obrigar. Insista. Faça-o sentir
violência dos seus gritos. E isso não foi o pior, nem a horrível magreza
auxílio para evitar que caísse ao chão. Não desmaiou, mas transpirava,
Luis pegou nele ao colo. Pesa menos do que uma cadeira, pensou, e
levou-o para o jardim porque não lhe ocorreu outra coisa; mas não
Vais ficar bem, repetia, vais ficar bem, até que o rapaz o interrompeu,
inesperadamente.
— Deixa de mentir.
— Era ele. Prefiro quando é ele que vem. A Adela vem de noite.
alguns pássaros. Ainda havia sol. O dia estava lindo. As rosas amarelas
que ficava perto dali onde poderia voltar a praticar desporto, se quisesse.
de sombras.
olhou para ele e Luis fez-lhe um aceno tonto com a mão, que Gaspar não
alguns colegas e amigos seus. Tudo isso foi monstruoso, mas o olhar de
banheira, sonhou que ele aparecia coberto de sangue e, outras vezes, que
temos de ver-nos duas vezes por semana. Se fizer falta, até podem ser
três vezes.
E foi tudo.
o outro.
Gaspar vivia agora com o tio. Porque é que o levou assim, sem avisar? O
falar.
— O tio prometeu-me que nos vamos manter em contacto um com o
outro. Combinei com ele telefonar-lhe uma vez por semana. Não há
E a mãe abraçava-a, mas não lhe dava mais explicações. E Vicky via
Adela pelo menos uma vez por semana, mas de relance, como uma
sombra mesmo atrás das costas, mas quando se virava, não estava lá
ninguém. Falou com Pablo e ele, depois de a ouvir na fresca sala de sua
casa, que a Victoria parecia tão silenciosa, foi até à estante, tirou um
de qualquer coisa. Por mais voltas que um homem dê, está sempre atrás
dele, e é por isso que nunca ninguém o viu, embora tenha matado e
— É um conto?
que também ele estava maluco. A pensar que Gaspar a perceberia. Como
é que eu lhe posso fazer mal, perguntou depois à mãe. Sou a melhor
— Será possível falar sem dizer asneiras nesta casa? — disse o pai
Luis foi muito amável com ela e explicou-lhe que Gaspar estava doente,
— Para recuperar.
íamos buscá-lo. E o senhor, onde estava? Quem é que julga que é? Não
sei o que andava a fazer nessa altura. Nós somos amigos. Tenho
dele e a psiquiatra diz que, para já, para o bem dele, é melhor que se
mantenha afastado, não de vocês, mas de tudo o que lhe faça lembrar o
que aconteceu.
— O senhor é um imbecil.
— Dá-lhe tempo, rapariga. Ele há de melhorar.
seguinte, teria de voltar para a escola, como o faria, não sabia, era a
uma escola normal onde não conhecia ninguém, embora de certeza que
alguns soubessem que ela era a rapariga da casa da Adela, e bastava que
vem para cá, mas não me venhas com parvoíces para me assustares,
porquê?
O que tinha para lhe contar era tão simples e tão horrível, que
mas ele agora não saía do quarto antes de o sol nascer. Quando tinha
sim, pelo não. Mas sair de noite, nunca mais. Tinha ido fazer chichi,
puxão forte que quase o fez perder o equilíbrio, e a mão estava quente e
quis chamar a polícia, mas o pai não deixou. Disse que não queria fazer
figuras tristes. Disse que Pablo tinha medo do escuro. E mandou toda a
chichi até de manhã, mas a dada altura não foi possível e levantou-se.
nada. Nesta segunda vez, a mão agarrou-o pelo ombro: estava atrás dele,
fugiu para o quarto e, desde essa altura, nunca mais saiu de noite. Tinha
pai?
— Sim, tu contaste-me.
disto ao meu pai, porque sempre que lhe digo que tenho medo, chama-
me maricas. E, ainda por cima, tem razão. Mas isso não tem nada a ver
com o medo.
Victoria ficou calada. Era a primeira vez que Pablo lhe dizia aquilo.
coisa.
— Gostas dele?
Luis teve uma reunião com a psiquiatra. Disse-lhe que achava que
Gaspar fora mal diagnosticado. Luis sentiu um alívio que lhe desanuviou
sintomas óbvios. Quero que volte a ser visto por um neurologista, não vá
uma pancada na cabeça. Diz que ficou com amnésia. Fez exames e eu
pedi que mos enviassem. Tenho um bom amigo neurologista com quem
verdade que não parece haver sinais nos exames que lhe fizeram até
importância.
para já, que não há nada que tenha de saber por mim. Quando
— E isso é possível?
Não podemos arriscar, podem fazer disparar qualquer coisa. Quando ele
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Elisa, houve fogos de artifício numa unidade básica do outro
— Está mesmo bom — disse Gaspar com a boca cheia. Nessa noite,
ano, aconteciam tão poucas vezes, que até Gaspar teve coragem de o
ter um episódio, porque são mais raros, não é? Foi assim que lhe
ano, Gaspar já comia quase normalmente, tanto que até pedia pizzas
então Luis descobriu que Gaspar jogava mal futebol, mas não quis
péssimos.
mim assim.
Lorenzo.
— Correto. O teu avô também era.
Ficaram em silêncio.
— O meu pai nem sempre foi mau para mim, sabes, tio. Havia
épocas em que lia para mim todas as noites. Outras vezes, era eu que lia.
me maricas.
— Eu sei, mas não estou para ter esse problema, sei que não há mal
só queria dizer que ele não era sempre mau, às vezes era muito bom.
frente para o tio, que estava sentado com as pernas cruzadas e a bola em
— Sim. Mas não era só isso. Eu conto estas coisas à Isabel. Lembro-
Misiones, para a casa dos meus avós. A minha mãe tinha acabado de
— De carro.
— De quase nada. Mas o meu pai não queria que estivesse com eles,
queria falar.
usava para as coisas dele, vais ver os livros, e também quero trazer
pai também passava alguns dias fora de casa. Às vezes, uma semana
inteira. Não sei aonde ia, nunca me disse. Tenho muitas saudades dele.
posso.
— Diz-lhes que esperem por mim, porque acho que estou melhor.
Nesse fim de ano, Luis deixou que Gaspar bebesse uma taça de
champanhe. No verão de 1988, foram com Julieta para uma casa em Mar
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del Tuyú: Gaspar foi pescar com Luis. Comeu cornalitos , nadou com a
tia e, quando fazia corridas com outros rapazes na praia, deixava-os de
joelhos ou meio mortos. Não foi necessário telefonar a Isabel, pois não
teve nenhuma crise. Gaspar pediu a Julieta um livro de poesia. Ela ficou
livros, que ambos liam muito; que queria ir a casa dele buscar livros,
pois o tio só lhe trouxera discos, e ele gostava de música, sim, mas ainda
sesta e eles a beberem mate na praia, Gaspar disse a Julieta que queria
saber coisas, que estar doente o tinha «embrutecido». Que quando estava
com os amigos ouvia música, via filmes. Que tinha saudades deles.
Queres torradas?
Parece-me que isso vai ser mais difícil do que lidar com a minha
mais velhos do que ele, chegavam cedo e, antes de irem para as aulas,
dias, não lhe prestaram atenção, mas uma sexta-feira, quando lhes
tio havia pouco tempo, enquanto tentavam arranjar entre os dois a porta
da casa de banho, que não fechava bem. Sabes que não digo isto por ser
mas tu tomas comprimidos. E o ano passado foi terrível. Para já, dar-lhe-
acidente durante quase todo o ano anterior. A cicatriz do braço, que era
disse-lhe que, mesmo que lhe perguntassem, ele não era obrigado a
responder. Que podia dizer: não falo sobre isso. Para ele não era fácil
pessoas sabiam que ele existia, sabiam o seu nome, mas nunca o tinham
perdidos. A Casa de Adela era uma notícia velha. Não para ele, que
sempre que sonhava com ela acordava com náuseas e vomitava durante
como era costume, jogou muito mal, mas passou muito bons momentos
que podia e não chovia; muitas vezes depois das aulas, antes de jantar,
dos lados da pista, junto das chaves, da garrafa de água e da suéter que
vestia quando estava todo transpirado. O tio e Julieta não sabiam que ele
fumava. Isabel, sim: deixava-o fumar durante a sessão, mas nunca mais
de dois cigarros.
pareciam faúlhas libertadas pelo sol. Mas, de noite, Gaspar não sabia se
dias — cada vez estavam mais perto de viverem juntos —, ouvia música
eram coisa dele: não do lugar. Levá-las-ia para onde quer que fosse.
devia entrar, onde havia outros lugares como o que engoliu Adela.
Também não podia partilhar isso com ninguém. Só com Vicky e Pablo,
mas ainda não se sentia com coragem para estar com eles.
lugares podiam ser atribuídos ao que quer que fosse que discutiam entre
mas ouvia-os falar. E pensava que era provável que algum deles tivesse
razão. Adela já quase se fora embora, mas ainda aparecia no canto do
fornecer-lhe livros de poesia, podia confiar que, algum dia, voltaria a ver
casa a ser melhorada, e Luis fê-lo apenas por ser a única coisa a que
pedido, nos primeiros dias não pedia nada, apenas lhe disse que seria
que lhe enviara o irmão quando estava em Londres para ser operado e
Ele achava que eram postais muito estranhos para um rapaz que, embora
mundo. Decidiu não mostrar os postais a Gaspar, ainda não, mas pouco
precisava de alguma coisa que estava muito alta, trepava; quando lhe
inteira na rua com catorze anos e com uma doença mental. Quando Luis
mesa nem lhe passava pela cabeça ajudar, aos fins de semana, nas
sensação, peculiar mas concreta, de que Juan passara por cima deles
custódia sem motivo aparente. Passar por cima deles? O que é que
queres dizer com isso?, perguntava Luis, e ela não sabia o que dizer. Era
com os avós como se fosse um jogo perdido que não valia a pena
revestidas por aquilo que ela supunha serem troféus de caça, mas só
havia chifres de vários animais. Bois, veados, como lhe explicaram. Sem
caberiam. Sempre que saía das reuniões, Julieta tinha a sensação de que
Julieta não interferia neste ponto. Disse-lho uma vez, quando estavam
ambos a fumar na cama, a conversar em voz baixa para que Gaspar não
os ouvisse, embora o rapaz costumasse adormecer com os auscultadores
Não sei do que é que estou a falar. Esse tipo, o médico, sequestrou o
meu irmão para seu benefício profissional e sabe-se lá mais para o quê.
passas.
no outro dia fui a La Plata e descobri que deram o nome dele ao novo
perdeu a mão, piorou, era como o Narciso Ibáñez Menta, mas mais
— O Christopher Lee.
— O outro.
perder os dedos. Teve uma morte muito esquisita, que um tipo daqueles
estivesse a conduzir ele próprio, sem motorista, e ainda por cima ficou
— E eu acho estranho que os teus pais não tivessem lutado para ficar
dizia que estava melhor com os ricaços. O meu pai não era lá muito boa
Juan, discuti com ele e nunca mais lhe falei, nem sei se ainda está vivo.
— Então, pagaram-lhe.
com esse dinheiro que o meu velho financiou os meus estudos. Também
estou em dívida para com eles. Nem sabes como isso me revolta. É por
isso que não quero o dinheiro deles. Eu sei que o Gaspar o partilharia
comigo, a questão não é essa. Ele é amoroso, como a mãe, uma miúda
porque pensava que nada de bom podia sair daquela família. A mãe era
fantástica e acho que não sabia como é que o meu irmão chegou à
família dela.
— Não sei como abordar esse assunto com ele. Tenho medo de o
desestabilizar.
— E porque é que isso lhe faria mal? É a mãe dele, tem o direito de
saber. Bom, mas isso é convosco. Outra coisa: quando me derem a lista
completa dos bens e se souber o que é que o Gaspar vai herdar, vais ficar
de queixo caído. Fiz uma investigação informal. Não fazes ideia. Ainda
— O meu irmão deixou bem claro que não queria que ele tivesse
decidir.
— Mas têm armas para o fazer.
Brasil para lhes fazer uma visita com as duas filhas dela, uma mais velha
futebolísticas. O que este tipo disse foi como um golo olímpico de canto.
O inferno é estar a ganhar e que, nos últimos dois minutos, o jogo vire.
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bilardista . Lembrava-lhe um pouco Hugo Peirano; cada vez tinha mais
assim, pelo menos. Numa dessas noites, o Negro, que tocava guitarra,
dedicou uma canção à ex-mulher do tio, Mónica, uma canção que dizia
«presente, agora e sempre». Aquilo parecia-lhe lindo. Era lindo que o tio
como gente perfeita, pensava Gaspar. Havia sempre uma altura em que
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punham música para dançar. E o Negro gritava um sapucai . E de
que se amavam, assim, amo-te, preto de uma figa, e Gaspar sentia que
subíssemos juntos uma escada e a dada altura eu dissesse «eu fico aqui».
E no degrau deles, mais acima, eles são felizes e eu fico a olhar para
eles. Teria sido sempre assim? Não era timidez nem retraimento nem
estava numa festa desligava, os outros convertiam-se num filme que ele
conseguia ver, mas no qual não podia participar. E era por isso que se
tornava invisível, o que não era difícil, porque estavam todos bêbedos. E
que vivera com o pai. Queria inspecionar tudo. Alguém teria levado as
coisas de lá? O tio disse-lhe que estava tudo intacto. Porque é que o
Esteban não lhe telefonava? Preferia que já não fizesse parte da sua vida,
Nessa noite, pela primeira vez desde que estava em Villa Elisa,
telefonar a Vicky. Não queria fazê-lo a meio da noite, para não assustar
a família dela. E queria que o tio estivesse presente, não fosse sentir-se
mal.
Da sua casa não restava muito porque, em primeiro lugar, não tinha
assim tantas coisas. O tio limpara os quartos para que, quando Gaspar
medo. Entrar no quarto do pai foi mais difícil, mas, uma vez lá dentro, o
Porém, evitou passar pela Rua Villarreal e ver a casa onde Adela
desaparecera. Não estava preparado para isso e julgava que não estaria
nunca.
pátio, como vira o pai fazer com a da mãe anos atrás. Vicky e Pablo,
t-shirt branca com buracos feitos pelas traças depois de passar anos
fechada. O pai fora cremado. Não sabia onde estavam as cinzas: não quis
Rua Villarreal, mas tinha de fugir para a ver, porque não a deixavam lá
reconhecido, nunca lho tinham dito. Quero ver-te, não te vai fazer mal,
consegues? Gaspar admitiu que não. Ela foi visitá-lo à casa de Villa
Elisa, feliz e ansiosa; Gaspar pensou, além disso, que estava muito
bem tratado, e a pele tão fina, que se viam pequenas veias azuis nas
uma tarde de frio sob um cobertor no sofá, foi como chegar à margem e
conseguir atracar e esquecer o mau tempo. Eram sempre eles que iam a
Pablo que sentia que alguém os estava a juntar. Pablo ouvi-o, pensou na
mão que às vezes lhe tocava na escuridão e não disse nada. Vicky
quando lhe disse que a ela também não lhe parecia o mais conveniente.
Mas eram adolescentes: obrigá-los a separarem-se já não era uma opção.
manchadas com qualquer coisa castanha que podia ser ferrugem ou café.
parecia assim tão difícil, nem trepar pelo telhado aberto da garagem.
Mas nunca consegui; era como se a casa não me quisesse lá, não me
deixasse. Acabei por ficar com muito medo. Além disso, na noite do dia
em que lá tentei entrar pela última vez, a mão que me tocava agarrou-me
ano.
olho, o sinal de uma enxaqueca; era preciso tomar qualquer coisa antes
como lugar de castigo, olharam para a sala, que parecia estar à espera de
bem.
entanto, podia deixar-se cuidar por Pablo. Entendia-se com ele, confiava
nele, embora Pablo tivesse mudado muito. Os três tinham mudado, mas
amigas da escola que saíam com ele, que lhe telefonavam e lhe faziam
com vários colegas, dizia. Tem cuidado, dizia-lhe Vicky, tem cuidado,
hospital. Ai, não sejas parva, eu tenho cuidado, respondia ele, e isso só
caderno com desenhos, com muitos signos, que o pai revia e corrigia
com muita atenção. Não eram gatafunhos; não sabia o que significavam
faço.
encontrou. Perguntou ao tio, que lhe disse eu não toquei em nada. Não
sei se o amigo do teu velho tinha chave, não sei se levou alguma coisa.
presença, para não enlouquecer, há que ser louco. Lévi», dizia uma.
Então era isto que tu fazias. Invocar o diabo. Ou, então, o pai só se
interessava pelo assunto por puro tédio. Por passar tanto tempo na cama
sozinho, sem ninguém com quem falar. Mas não, havia mais qualquer
coisa, não era tédio. Os cortes que lhe fez e que fazia a si próprio. A
quando alguém ia morrer. O pai falou-lhe dos mortos que vinham com o
noite. Gaspar, a primeira vez que lá foi, às sete da tarde, com o néon já
molhados.
cabelo curto e escuro. Gaspar pensou que era a rapariga mais bonita que
estivesse a morrer de calor e ela fosse gelo a derreter, tinha de ser rápido,
Do interior chegava uma canção que falava de pele que fazia voar
tudo à sua volta. Que letra tão estranha, pensou Gaspar. A guitarra
chuva.
— Chumbaste.
Ela era mais velha, percebeu. Não muito mais, apenas alguns anos.
de Belén, uma colega, no parque; ela sentiu cócegas e ele teve uma
insistir. Gosto muito de ti, disse Belén, mas não quero. Ele sentiu a
cabeça a latejar, mas como ela estava quase a chorar disse-lhe não faz
paragem, queres?, ela disse que sim e começaram a falar de outra coisa,
Guerra das Estrelas. Nunca mais a viu. Tinha ido para a cama com
parar ou se se podia pedir mais uma vez, quando pedir e quando não.
podia ser assim tão óbvio, se para ele era tão difícil?
— Le Mans suaves?
— Fiquei sem dinheiro. São da mulher do meu tio. Ela não nota
— Não. Jockey.
A rapariga deixou que ele lhe acendesse o cigarro. Gaspar olhou para
— Era isso que o meu pai dizia, que era por isso que a minha mãe o
— Não tenho pais. Morreram há muito tempo. Vivo com o meu tio.
No rosto dela não havia compaixão ou pena, apenas disse que sim
quem não queria a coisa, como se fosse algo tão casual como apertar os
free shop era incrível ou dinheiro deitado ao lixo, se a pele dos homens
sabia que era melhor não discutir com ela quando as coisas lhe corriam
mal no tribunal. Gostava que Vicky lhe telefonasse e lhe dissesse: já sei
o que fazer para não se ser gozado na escola. Tem de se ser lindo ou
estranho.
Nessa noite, Gaspar não ficou no Princesa, mas decidiu que passaria
— Ficamos no carro até ele arrancar, não tenho nada para fazer.
que Vicky arranjara era escuro, não tinha varanda e a cozinha era tão
queria oferecer, que era velho mas ainda funcionava, era demasiado
faculdade.
Gaspar, que, como estava de férias, lhe fez companhia durante todo este
ele preferira ficar em Villa Elisa e passar o verão com Marita —, ergueu
Agora, no carro, a fumar, Gaspar quis saber porque é que lhe tinha
Estava calor.
— E então?
— Tem pena de mim, acho eu. Mas não faz mal. Pelo menos, não
tem medo.
— Fico contente por ti e pela Marita. Parece-me que ela gosta de ti.
— Quem é?
depressa para lhe poder telefonar a ele ou ao Pablo se ficasse sem luz.
Viam-se por baixo das pregas da saia aparentemente elegante, mas eram
parecia tapar uma ferida, imaginou um corte, mas não produzido por um
em Pablo. Não era fria, como costumavam ser as mãos fantasma. Era
uma mão febril, uma faca aquecida no fogo. Uma ferramenta para
Gaspar viu um desejo horrível, uma certa inveja: aquela mulher podia
tempo que, quando ela lhe explicava os seus sintomas, ele assentia sem
ocultava algo ou, simplesmente, ele provocara algo nela que permanecia
adormecido, latente.
Era por isso que Vicky não devia estar sozinha às escuras. Se ficasse
sozinha, podia ser apanhada. Levada, como tinham feito com Adela.
Não conseguia explicar esta intuição, tal como nenhuma outra, tal como
não conseguia explicar a aversão que sentia por certas casas, por certas
fragmento do poema copiado pela letra nervosa, mas clara, do pai, e ela
certos recantos, para certas casas húmidas / para hospitais onde os ossos
saem pela janela, / para certas sapatarias onde cheira a vinagre, / para
As casas que odeio. Não sentira ódio no feio apartamento que Vicky
tinha arrendado. Não acreditava que fosse perigoso, apesar da pele morta
O cinema Moreno tinha este nome ilustre, mas era o único que passava
sobre aquela rua e sobre a noite percebia que não era frequentada pelos
levo lá, nem quero saber se rebentam com aquilo. Não estou em
uma gaja com o cio. Não vás sozinho, leva algum namoradito contigo.
ires com ele para experimentares, és tão giro, que ainda te violam em
massa.
— É tão giro, este miúdo, com essa cara trágica, dás-me a volta à
cabeça.
de banho, que tinha caído há várias noites. Queria que o lugar estivesse
ele, no mínimo, lhes doasse algum dinheiro. A bicha ilustre podia fazer
raparigas travestis que viviam todas juntas num hotel ocupado, perto da
creme e pareciam felizes. Era a única fotografia feliz. Andrés era rico
várias vezes para retratar a vida dos gays e dos travestis desde a ditadura
até meados dos anos oitenta. Na sua última visita, disse que tencionava
Plata. Max e Marita, que eram muito amigos e tinham sido colegas de
pelos ativistas de Buenos Aires, se faziam ideia do que era a ACT UP.
caveiras, disse-lhe quase sem pensar: acho que o meu pai era maricas.
Ou bissexual, porque sei que gostava da minha mãe e que tinha amantes
interessa voltar a vê-lo. O meu problema é com ele, não por ter sido
E não era mentira: era uma companhia tão confortável para ele como
isso que a aceitação era tão fácil. Também no Princesa, quando as festas
mas ela, como sempre que ele exprimia algum desejo, calava-se e sorria.
Marita, que era responsável pela chaleira — a água do mate era a sua
— Não sejas chato, que ele não acha muita piada a ler as cartas.
— És mesmo superprotetora.
— OK, sou: tenho um namorado meio esquizoide e o meu melhor
em Florence Nightingale, agora. Por favor. Não sei como é que a aturas.
não ser uma carta, o Enforcado, que, de tanto ser manuseada, parecia
as pontas dos dedos essa carta, a mais estranha de todas, para Gaspar a
mais temível?
cartas. Recebeu o baralho das mãos de Max e olhou para ele antes de
deitar as cartas. Max estava sério. Brilhavam-lhe, talvez por ter febre, os
— Pergunta tu.
ninguém que peça para lhe lerem as cartas e pergunte parvoíces. Isso
não existe.
E pensou: o Tarot é uma linguagem velha. Lera por alto num livro do
que a mãe lhe ensinara quando era muito pequeno. Tão pequeno, que
mal se lembrava dessa lição. Pôs as cartas em cima da mesa e não fez
— Vais ficar bem, Máxima, por isso, vou passar a ter menos
boca.
Claro que se iam ver. Viam-se todos os dias. Pablo estudava Belas-
Artes e já era tão bom, no primeiro ano, que o tinham convidado para
ser monitor. Gaspar vira e lera alguns dos seus projetos e desenhos. Era
ousado e brilhante. Se Andrés Sigal lhe desse uma mão, seria uma
estrela.
Pablo achava que era cedo para irem ao cinema, eram sete da tarde, mas
Julián disse-lhe que era assim mesmo, que iam àquela hora para
maricas, gozavam com eles, eram violentos. Julián era um rapaz que
menos artísticas, mais divertidas; alguém com quem podia ser palerma e
bêbedo e beijar outros. Gostava de Julián e pouco mais do que isso, mas
fio prateado, um tubo de luz de néon: a única luz que servia de guia de
Pablo irritou-se, teve vontade de lhe dar uma bofetada e de sair dali. De
Wilde, e depois iriam para aquilo a que chamavam o Túnel; ele nunca lá
tinha estado, mas era o máximo, diziam, não sabes que pila estás a
comer, não sabes nada. Seguiu-o. A sala Wilde tinha a luz do filme que
passeavam pelos corredores do meio e dos lados, paravam para tocar uns
com a mão do tipo, muito maior do que ele, enfiada nos seus caracóis,
pensaria se não teria uma afta na boca, ou em porque é que não tinha
olhado para o pénis do homem primeiro para ver se tinha alguma ferida.
Ficava com medo sempre que era descuidado, mas assim que a
lhe ao ouvido porque é que não o convidava, mas Julián não o ouvia e só
teria sido no tempo dos mais velhos, que nunca pensavam em ter
vez teria sido bom ser maricas? Virou-se e, na porta, pareceu-lhe ver os
cigarro na mão. Ele devia ser o seu objetivo, mas Julián insistia em
Foram até ao Túnel. O nome não perturbou muito Pablo, mas pensou
degrau que descia, os barulhos iam ficando cada vez mais abafados. Os
homens não eram assim tantos. Era preciso descer mais uma pequena
baixo não havia luz. Nada. Não via ecrã, nem filme. Um ou outro
estava tão escuro que nem sequer se viam as paredes, como se a cave
fosse infinita.
era muito perigoso, que podiam morrer pessoas lá, que a música servia
para abafar os gritos, que era fácil imaginar alguém com uma faca,
Era isso que pensava: aquele lugar era uma armadilha. Mas os únicos
esperou por ele na escuridão dos corredores durante tanto tempo, a mão
febril que o queria levar, que, se lhe tocasse durante mais tempo,
detestava-o e queria sair de lá, mas ainda não tinha dinheiro. Detestava o
tinha de reconhecer que, pelo menos, a mão já não esperava por ele nos
corredores.
as pernas da morte; via uma garrafa partida nas mãos de uma mulher
sem olhos; via um homem com uma corda à volta do pescoço: faltava-
lhe um braço. Não quis ver mais nada. O túnel era uma festa de mortos,
uma extensão da casa que levara Adela. Não se lembrava de ter gritado,
escadas a correr, caiu, pensou que alguém o estava a puxar para baixo e
corredor até à saída sem reparar em se alguém olhou para ele com
preocupado. Não havia mais nada a não ser a saída e a Rua 2, com as
Pablo nunca mais voltou ao cinema. Seis meses depois, Julián estava
Pablo recordava a cave, o homem sem braço, a múmia com uma ereção.
lhe a mesma coisa que diziam as suas análises: não estava em perigo.
Era verdade que tinha cuidado, que depois do cinema decidira nunca
mais se aventurar em encontros perigosos, mas estava admirado por ser
era mais velho, tinha uns vinte e sete anos. O outro acabara de entrar na
arrendada. Uma família de dois jovens com filhos. A renda era alta. É
uma casa cara, dizia Luis, porque é uma casa nobre. O teu pai não fez o
Foram meses tão tristes e intensos, que Gaspar quase não prestou
pela discussão que teve com o tio quando recebeu a notícia. Gaspar
filho normal, não suportas o filho louco?) e algumas piadas (vais levá-lo
Julieta queria ser mãe: ainda era nova, mas não tanto assim; se
quisesse ter filhos, estava na altura certa. Não tinham colocado a questão
a Gaspar nestes termos, mas, afinal de contas, ele podia e devia sabê-lo.
gémeos era esquisito: seria caro sustentar dois filhos, dariam muito
terei filhos, pensou enquanto pegava neles ao colo ansioso por devolvê-
Percebia que estava de luto pelos amigos e que isso era difícil; deixava-a
sendo tão pequenos. Ele, apesar do pedido calado nos olhos do tio e de
passar cada vez menos tempo em casa. Tinha muitos lugares onde estar e
até mesmo onde dormir. O tio queria que fosse para a universidade, mas
Gaspar não sabia o que estudar nem para quê e passava o tempo todo no
Princesa. Pablo quase se mudara para lá. Também fui expulso por causa
de uma criança, disse-lhe uma tarde. O meu irmão é o problema e a
minha mãe não nos quer juntos, porque tem medo de que o contagie
casa tão perto do centro tinha muito valor e ela não queria que a
ainda regressava para tocar nos pés de Vicky à noite, pretos e brilhantes
ensinava a ler poesia. Quero que tenham todos menos de trinta anos
porque o projeto se vai chamar «30 com menos de 30», e serão trinta
toalhas e roupa para não lhes chegar o cheiro a gás, e deixou-lhes leite.
Custava-me lê-lo, quando era pequeno, mas agora é dos que mais gosto.
marado. Gosto muito dele. Um livro do meu pai tinha uma seleção de
Nobel. Não importa. Põe o Lionel Johnson, é mais velho, mas encaixa.
Plata, mas é uma loucura total, parece que encontraram o corpo dele
mumificado num cemitério de Tolosa. Chamava-se Matías Behety.
história dele não é fantástica. Procurei os poemas dele, mas o coitado era
péssimo. Porque é que não os citas, aos bons? O Trakl tem umas coisas
alguma citação. Sim, disse Pablo, mas também não pode ser
incríveis. E ainda menos esse da múmia, não quero ter nada a ver com
múmias.
disse Gaspar.
piroso.
Marita a dormir a seu lado e ele a sublinhar poetas que morreram novos,
quase todos suicidas. Às vezes lia na cama e ela pedia-lhe que repetisse.
Não vão incluir o Rimbaud?, perguntou-lhe ela. Era punk. Era lindo,
como tu. Gaspar bufou. Quer que sejam mais novos, têm de ter todos
apagasse a luz, e quando Gaspar lhe tentou acariciar a barriga, deu meia-
volta com um queixume ligeiro, como se tivesse sono. Ele sabia que não
era cansaço ou mau humor, mas rejeição, e como deveria lidar com
estar presente nos encontros deles, que suportara muita coisa. Gaspar só
ciúmes. Marita, como dizia o seu tio, estava a passar-lhe a fatura. Não
podia deixar que ela estivesse presente nos encontros dele com Vicky e
Pablo. Eram deles. Seria como meter a foice em seara alheia, e voltava a
citar o tio, que tinha ditados para tudo: era o tipo mais antiquado e mais
compensado, tão equilibrado que Luis até se atrevera a ter a sua própria
em Gaspar, exceto numa coisa: muito de vez em quando, mas com muita
roupa toda para a rua, e uma vez, à mesa, magoara-se à frente do tio de
não lhe recomendou nada urgente. A minha filha grita que me odeia,
bêbedo. Para já, Gaspar não fora violento com ninguém, a não ser
como fosse. No pátio amplo, Luis e alguns pedreiros seus amigos tinham
podiam, e podiam muitas vezes. Marita não era convidada para esses
epilético.
Porém, não falavam disso. Falavam sobre Adela e sobre a casa. Fora
demolida havia pouco tempo com o beneplácito dos donos, que nunca a
Vicky foi até ao terreno várias vezes, os pais ainda viviam lá perto.
mas não muito. Aquele lugar assustava toda a gente. Tinha o mesmo
acontecer.
— É como um íman — dizia Pablo, que passou diante dela uma vez
infância. Era uma pena por causa de Hugo e de Lidia Peirano, porque
tinha saudades deles. Não quero que pensem que sou um ingrato, disse a
mesma sensação que com Esteban e Tali: não percebia porque é que
Betty, a mãe de Adela. Como se o seu pai tivesse ordenado a todos que
não o incomodassem.
Gaspar pegara num dos papéis de desenho do tio, muito grande, dos
era verde, dizia Viky. Pablo dizia que era azul-claro. No desenho, não o
Eliminemos hipóteses.
certas entoações. Uma voz de comando, uma voz assustada, uma voz
monótona.
Pablo falava das mãos que lhe tinham tocado dentro da casa.
Se calhar, a mão que o puxava nos corredores não era uma mão
disse:
Vicky. Todos julgavam que era possível encontrá-la. Caso contrário, não
ouvidos.
poetas, o Rupert Brooke, que morreu com uma infeção na guerra, com
vinte e seis anos. Na Primeira Guerra Mundial. Diziam que era o rapaz
Paraíso? Bom, o título é um verso dele. Vocês leem muito pouco. Era
Não ficou surpreendido com a notícia, porque havia meses que Marita
andava à procura de uma desculpa. Gaspar, porque não sabia o que fazer,
decidiu ir correr. Havia algum tempo que fazia um circuito na zona onde
relva. Antevira aquilo. Ela não queria sair com ele ou, quando dizia que
sim, de repente ficava com dores de cabeça ou tinha frio e preferia ficar
idiota por causa de uns discos que ele se esquecera de lhe devolver.
Gaspar sabia porquê. Quando soube que lhe andava a pôr os cornos não
achava que parecia mais nazi do que punk. Conhecia-o como se conhece
dos concertos, das marchas, até do Princesa uma ou outra vez. Não o
aquecia nem arrefecia, nunca pensara no rapaz. Até agora, que imaginá-
quarto aberta. Apoiava a outra mão nas calças de ganga, umas muito
justas que Gaspar detestava porque eram difíceis de tirar. Não lhe tocava
no cabelo, o imbecil. O cabelo de Marita cheirava a chuva sobre terra
seca.
Não conseguiu dormir depois de os ver, era por isso que agora corria
não funcionava assim. Não estava fraco. Voltou para casa a pensar em se
duche e a água quente lhe bateu na nuca, sentiu uma vontade feroz de se
magoar. Não conseguira fazer com que Marita ficasse com ele. Ela sabia
que não fazia sentido ficar com um louco, com um doente, com uma
pessoa arruinada. O que é que ele lhe podia oferecer? Nem sequer se
morte e de amigos que se iam embora para sempre. Bateu com a testa
euforia e, por isso, continuou até ver a água a misturar-se com o sangue.
então arrancou o vidro para se cortar, lera que tinha de ser um corte
vertical na parte interior do braço, não podia ser nos pulsos, não se
tentou bater-lhe, mas Luis era rápido e abraçou-o por trás, apertou-lhe a
falou do corte no braço, nem do que vira. Não disse suicídio, não falou
cozinha.
aquilo por que passei e não me importa a tua opinião acerca das minhas
sabendo uma coisa desde já: eu nunca te vou bater, jamais. Podes
mesa com a mão magoada uma e outra vez, com muita força, e Luis
deteve-o quando ia bater com a cabeça outra vez. Abraçou-o por trás,
altura que ele, e Gaspar tinha uma forma física extraordinária e a força
voz saísse de uma garganta endurecida, embora a voz fosse mais grossa,
uma miúda, mereço tudo. A Marita deixou-me, está com outro, sou uma
merda.
calado.
Quantas vezes te temos de dizer a mesma coisa, Gaspar. Bom, nesta casa
não te vamos castigar por aquilo que não fizeste. Podes dar cabo de ti
durante um bocado.
Marita.
Em vez de voltar para a cama, quando saiu da casa de banho o tio foi
— Isto não foi um acidente, tio. Foi o meu pai que me fez isto.
— Não. Essa foi a mentira que eu contei. Para o encobrir. Mas não
foi ele que me pediu, hã, ele estava-se nas tintas. Bah! Não sei: se calhar,
não estava. Às vezes penso que ele precisou de me fazer isto.
— Tem forma, estás a ver? Lembro-me de como ele fez para lhe dar
Nem sequer parou quando o vidro bateu no osso. Ele era assim e, se
Não duvidava dele. Para Gaspar, falar deste assunto não fora um alívio.
sem dormir e do estado febril das insónias forçadas. Alguns colegas seus
inerte. Um dos colegas disse que podia ser uma paralisia facial. O chefe
rapariga acrescentou que era hipertensa e que lhe doía a cabeça de vez
em quando. Victoria sentiu uma certeza tão grande, que chegou mesmo
era a menos provável. É isso que ela tem, insistiu Victoria, e foi muito
à paciente se estava com visão dupla. A rapariga disse que sim. Que
diagnóstico era uma catástrofe para a paciente e que nem sequer fora ter
com ela para lhe explicar o que tinha. Mais tarde, quando contou a Pablo
os colegas a olhassem ora com admiração, ora com inveja, para que o
dormia, sonhava com a casa ou com Adela. Os sonhos com Adela não
que ela. Não podia ser coincidência. Sabia que a casa lhe tirara coisas, a
que sofrera, e sofria, Gaspar. É provável que tivesse sido a casa a dar-lhe
por lhe ter dado Adela. Sempre que fazia um diagnóstico, não só tinha
lençol, se possível: não havia dúvida de que, nessa noite, sentiria os pés
Adela não era a única que lhe aparecia em sonhos. Também sonhava
com Betty. Às vezes, também aparecia nas urgências, como a filha. Não
tinha medo dela. Uma vez acordada, Vicky até desejava que alguma vez
mas para onde. É tão fácil desaparecer, pensava Vicky. Nas urgências
por estarem bêbedos, outras vezes, ainda, por causa de alguma doença.
para onde ia, nem deu um nome para alguém a acompanhar nos seus
últimos dias. Falava com distanciamento, mas com afeto, dos filhos e do
da sua fotografia, porque agora era outra: desde que me entrou no corpo
espera de Betty. E que Hugo, o pai, uma vez julgara vê-la quando estava
descalça.
teu pai. Por ti próprio. Tive medo quando tantos rapazes gays adoeceram
e tu os ias visitar, porque pensava que ias apanhar a doença. Não sou
quando estava internado não foram, nem de longe, os piores que passei
com ele.
luz não voltou, como acontecia sempre, e Vicky sentiu que ia perder os
porque pegou na mão dela por cima da mesa e ela agarrou-se a ele como
pergunta incómoda. Gaspar nunca lhe pedira que usasse com ele a sua
habilidade para fazer diagnósticos. Era estranho que nunca lho tivesse
pouco mais, foi por isso que os tirou da casa. Tinha de respeitar os seus
lia como uma curiosidade, mas, disse-lhe, algumas descrições são tão
alucinantes, que se calhar é mais útil do que aquilo que eu ou os teus
uma mulher que dizia que lhe cheirava a miosótis, embora, claro, a flor
sempre uma voz à sua direita a pronunciar o seu nome e que não era
Será que o teu pai tinha o mesmo problema e era por isso que
epilético? Segundo Vicky, era bem possível que, numa das primeiras
cirurgias ao coração, feitas nos anos cinquenta, o pai tivesse sofrido uma
lesão cerebral devido à falta de oxigénio. Essa podia ser a causa das suas
alucinações, se é que as tinha, mas ele acreditava que era algo místico,
Se calhar era as duas coisas, pensava Gaspar. Não tinham por que ser
pontapés na nuca.
No livro de Gowers, havia muitas histórias sobre despersonalizações.
Isso também lhe acontecia a ele. Sabia que estava no quarto com o tio,
com os amigos, mas sentia que estava noutro lado, era tudo familiar e
fazia disparar certos sintomas. Para ele, o álcool afrouxava o que estava
figura deitada era enorme, mas não parecia ameaçadora. Mas tinha
acreditou na mentira dele: foi sem querer, ia deixar cair a câmara e tentei
afastá-lo para a segurar com as duas mãos, mas não medi a força. Eu
Quilmes, casado e com duas filhas, que era doido por trios. Fica para a
próxima vez, disseram-lhe. Andrés era muito mais entusiasta do que ele;
violentos. Era por isso que nunca se devia pagar. Andrés ficava excitado
sim, mas não percebia: dois anos era imenso tempo. Nesse lapso de
o estão a fazer. Imunes. Por via das dúvidas, tem sempre muito cuidado.
Tanto lho repetiram, que Pablo, obediente por natureza, tivera cuidado. E
agora estava saudável e só. Ele e Andrés estavam sós: um tinha saudades
descoberta. Andrés sabia-o e era por isso que, embora tivesse muito
dinheiro, não abria uma sucursal em Buenos Aires. Isso teria sido óbvio
e perderia todo o encanto snob, que no mundo da arte valia mais do que
embora. Ou qualquer coisa do género. Não falou desta sua ideia para o
título a Andrés, mas tinha a certeza de que estaria de acordo. Não era
Andrés também não sabia que Pablo estava apaixonado por Gaspar.
demo, não se pode ser tão giro. Tens a certeza de que não o conseguimos
A única coisa desagradável do seu tempo com Andrés era que a mão
cada um dos seus dedos uma noite quando ia à casa de banho em casa
corredor. Mas agora ele era diferente. Fechou os olhos e não se desfez
que a mão lhe tocasse. Sentiu o seu apertão, o seu calor, a sua violência
braço: não tinha marcas da mão fantasma. Já não acreditava que fosse
ignorava o que fazer a seguir. A mão era um resto da casa e parte dos
seus efeitos secundários, como as meias que usava Vicky para dormir ou
fora um aviso. Se calhar Vicky não tinha razão quando dizia que ele era
precisaria dele.
Gaspar deu os seus restos de carne a Pocho, o cão de Luis e Julieta. Não
Gaspar, mas ele não mudaria de ideias por nada no mundo. Ia viver
não usasse o dinheiro que ia gastar na renda para ajudar a família. Temos
com firmeza. Seria bom que ficasses até a situação económica melhorar.
reter? Havia qualquer coisa estranha no pedido, algo que não tinha a ver
Julieta e dos meninos. Luis não queria saber do dinheiro para nada, é
todo teu, filho, dizia-lhe, é o dinheiro que a tua mãe te deixou; Julieta
gritou, e Gaspar respondeu que não, que sinceramente não estava. Agora
um capricho.
Essa era uma das razões que o levavam a querer viver sozinho.
muito mudada desde que tivera filhos. Gaspar era capaz de perceber
isso. O facto de ele não ocultar o pouco entusiasmo que sentia pelas
crianças não ajudava; mas, fosse como fosse, não compreendia aquela
necessidade tão imperiosa de que ele não saísse de casa. Disse-lho assim
uma vez: não podes sair desta casa. Porquê, perguntou ele, e ela
comunicado.
Estava quase a ser aprovada a nova lei da educação, cujo objetivo óbvio
de desastre era tão iminente que o calor de um verão que nunca mais
quando via as valsas das festas dos quinze anos, os vestidos cor-de-rosa
feições das raparigas. Olha o que ele faz: consegue tornar belas esta festa
tal era o cansaço dos que o tocavam. Gaspar uniu-se aos cânticos.
«Força, minha gente, há que ser valente…», «Vamos lutar, vamos lutar,
é para quem trabalha, quem não gosta que se lixe, que se lixe». Gaspar
31
sério; o novo namorado dela, a quem chamava Hueso , era um dos
Gaspar e dos seus filmes de celebrações dos quinze anos, que ele fazia,
verdade, não lhe fazia falta. Assim, distante e com outra vida, ainda
cara manchada de branco, a rir; usava sempre umas botas muito gastas,
Gaspar.
se nas copas das árvores, que balançam sacudidas pelos que tentam fugir
Não era boa ideia fugir pela Rua 7, era demasiado larga e aberta,
mas não lhe restava outra alternativa. A ideia de Gaspar era simples: ir
ainda, a polícia não podia entrar nas faculdades, que eram autónomas.
Esperava não ter de chegar a isso. Havia gente que levava limão para as
marchas, mas o tio dizia que não servia para merda nenhuma. Era
posso mais, mas ele não lhe respondia. Não passaria a noite na prisão,
uma torre de vigia. A torre em questão era para um elevador, não para
um guarda, mas a ideia é a mesma. São uns génios do Mal, estes tipos.
buscar uma rapariga. Mais nada. Mas não era necessário um mapa do
podia entrar.
dentro das salas de aula atirando gás para o ar. Gaspar decidiu entrar,
sangrar das fontes. Hueso gritou que não podiam entrar na faculdade,
que era a lei que o dizia, que aquilo parecia uma caçada, e Marita pediu-
banho do pessoal das limpezas, menos usadas. Quando se virou, viu que
estavam a ser seguidos, atrás deles vinham, a trote e a arfar, dois polícias
gordos. Não saímos daqui, disse Hueso, mas Gaspar abriu a porta que
Gaspar, em voz baixa, disse que não. Forçaram outra vez a maçaneta
sirenes na rua. Nenhum disparo, mais nenhum disparo, pelo menos por
suavemente o braço. Era o gesto mais contido que podia fazer naquele
gritaria, e depois dos gritos o mais provável seria acabar abraçado aos
roçar o seu e isso fê-lo esquecer o medo. Queria chamar a atenção dela,
Hueso era um cobarde e um inútil e ele era um herói que, além disso, era
melhor na cama.
lhe: tiveste medo de estar ali fechado, no meio daquela escuridão toda?
Estás bem?
respirava fundo. Mas mais nada. Marita roçou-lhe a face com as mãos
dos telefones dos corredores. Gaspar foi a correr até à Plaza Italia,
que estava a ficar cada vez mais claro por causa dos cabelos brancos.
Gaspar pôs os óculos escuros para que o sol não lhe provocasse dores de
que era colega de Vicky: não era normal que uma médica bebesse e
Pocho, o cão, ficou tão excitado com a mota que os seguiu durante
— Tudo bem.
— E mais nada.
porque era amante de Andrés e porque ele nunca mais lhe confirmava a
favor. Pablo já lhe tinha contado: está doido por ti, deste-lhe a volta à
Andrés.
porta de ferro, também ela branca. Agora estava aberta e havia pessoas a
que Gaspar agradeceu porque não gostava muito dos acepipes que
das pessoas, que tinham bebido mas ainda não estavam bêbedas, havia
troça e uma espécie trivial de crueldade, os rostos das pessoas que estão
mesa das bebidas. Toda a gente te quer conhecer. Acham que és meu
namorado.
— Contaste-lhes a verdade?
anda.
— É bom tipo, mas pela-se todo por que lhe digam que é genial.
santo menino assassinado a Pablo, que estava ao lado dele, mas conteve-
comprado.
não disse nada. Lá estava ele, na fotografia, quando era pequeno, com
seu atrativo demoníaco. Juan Peterson não era lindo como uma estrela
porque o par formado pelo pai e o filho não era enternecedor, mas
ligeiramente perigoso. Pablo teve uma leve ereção, a lembrança daquela
vez: Juan Peterson e aquele que talvez fosse o seu namorado secreto, o
quando ele tinha aqueles ataques de raiva as coisas podiam acabar mal.
chocado. Foi por isso que se enfiou na casa de banho: tinha de acalmar-
se.
e, quando ouviu alguém bater à porta, gritou «está ocupada». Podia ficar
naquela casa de banho para sempre, segurando Gaspar pela cintura, que
tinha a barriga rígida. Gosto tanto dele, pensou. Não quero saber de mais
uma casa. Faço-te de comer, não tenho medo de nada. Que me fales ao
qualquer coisa muito específica, não sei de onde nem de quando, mas
Gaspar voltou a enxugar a cara e disse que sim. Andrés viu-os chegar
Abraçou Pablo o tempo suficiente para que, quem ainda não soubesse,
ficasse a saber que aquele jovem atraente era seu amante. E depois
— O que foi?
Gaspar apontou com o dedo para a parede que estava atrás dele, para
Queria saber onde é que tiraste a fotografia. Não me lembro dela, quero
dizer, não me lembro de a teres tirado. Não acredito que tenha sido uma
não nos apercebemos, não acredito que tenhas escolhido essa fotografia
hoje.
eram boas e, por isso, não as sobrepôs. De acordo com o relato dele,
vão, para Posadas. Pensava que Juan e Gaspar talvez estivessem a tentar
ditadura tinham ficado para trás e intuiu que fossem para o exílio.
Pensou, inclusivamente, que as cicatrizes que Juan lhe dissera que eram
quando Gaspar lhe disse que era verdade o que o pai lhe dissera: que
iam para casa dos seus avós. Ele mal se lembrava dela. Um passadiço
entre para tirar fotografias. A família, a tua família, não deixa que
Só que não se consegue ver grande coisa. Como está no alto, para fugir
Puerto Iguazú. É uma maravilha. Vai ser tua? Porque é que nunca lá
coçar a cicatriz do braço, que lhe ardia como se alguém estivesse a deitar
gotas de cera quente para cima dela. Não te preocupes, papá, pensou,
não vou entrar em pormenores inconvenientes. Quer dizer que não te dás
com eles. É uma família estranha, sim. Não se sabe nada sobre eles, são
entre a fortuna de ambas. Eles são os donos do país, a sério. És! Eu não
casa tão isolada, que não pode ser muito confortável. Os ricos assim tão
ricos preferem outro tipo de lugares para passar o verão. Vão para Punta
del Este, sei lá. As pessoas perguntam-se o que é que eles fazem lá. Têm
Reyes fica perto de Puerto Iguazú. O teu pai mandou-me para Posadas.
tornado tão vívidas, que decidiu começar a registar tudo o que via. Perto
jardim com os seus juncos altos, mas atrás da porta era de noite, embora
se visse bem graças a uma luz que não vinha da Lua, não havia Lua.
castanho de tão mumificado que estava, nu. Nunca pensou que fosse um
dele: fez outra piada pesada sobre a sua família. Voltou a pedir-lhe que
ficasse a viver com eles. Era, pensava agora Gaspar, uma dança. Uma
paisagens oníricas. Se falasses com eles e lhes contasses o que tens, não
tempo que não via a Adela. No outro dia, andei com ela de elevador.
que vocês têm? Vocês dizem que ouvem vozes quando não há luz. O
contagiosa.
— Essa atitude vai matar-nos, amiga. Eu sei que queres ter uma vida.
que ridículo.
tenho medo.
— Está pior — disse Vicky. — Mas a parte boa também. Tenho feito
— Já tentaste.
— Nem te apercebeste.
ninguém quer saber. Já falámos sobre isto mil vezes. Vicky, nunca
seis. Mais nada. Qualquer parvoíce tem direito a quatro vezes mais. Uma
miúda perde-se numa casa e nunca mais é encontrada. Uma miúda sem
tempo porque, como é velho, fode bem ou melhor. Não há tantos assim,
digo-te já. Ou por conveniência, porque é poderoso, porque tem uma
paranoico. O que é que tu queres fazer, Pablo, diz lá, o que é que queres
mandar.
Gaspar, que estava sentado de braços cruzados, disse que não com a
cabeça. E depois: eu não sei o que fazer, nem o que é que isso significa.
Ainda não. Mas, por agora, esperamos. E contamos tudo uns aos outros.
Marita aceitou o convite de Gaspar para irem beber uma cerveja depois
feridas. Estava mais magro. Pela primeira vez desde que conhecia
Morrison, mas terrivelmente má, e ela ficara com vontade de rir. Como
era de péssimo gosto rir-se de alguém que estivesse a recitar sobre
qualquer coisa tipo Pizarnik, um horror. Depois, leu uma rapariga mais
chorar.
— Fez nada.
Qualquer coisa dos anos oitenta. Bronski Beat. Marita pensou que se
iam beijar, mas ele bebeu um gole de cerveja diretamente da garrafa.
falar com outras pessoas, mas sem o perder de vista. Gostava dele, mas
isso não era um problema. No dia em que o viu pela primeira vez perto
penteado para trás, pensou que tinha uma cara trágica que lhe fez
que estava mais à mão) ou mesmo magoar-se, quando a fúria era muita.
Essa tensão continuava a dizer-lhe que era melhor não voltar para ele,
incêndio doméstico.
ainda vivia em Villa Elisa, embora, como lhe dissera, andasse à procura
por Jujuy, casas que cheiravam a cão sempre esfomeado e onde todos
bebiam mate acompanhado de bolos. Percebia que, em parte, estava
tinha vontade de lhe gritar que deixasse de falar, via a frustração nas
32
beber vinho. — São troskos , não sabem fazer política e a felicidade do
povo repugna-os.
trabalho.
sangue inglês.
Faz-nos falta mão de obra, mas não posso contratar ninguém. Alguns
sanduíches de fiambre.
família. Deixou-se por lá ficar mesmo quando Gaspar se foi embora sem
alguns chouriços; foi Luis que lhe contou quando a viu na cantina da
ter a mesma maneira de ouvir, pensar e agir sem fazer alarde. Mas estou
preocupado com ele. Não anda bem, está deprimido, não sei se tem
De quatro horas tinha de passar para uma. Era sempre fácil cortar, mas,
sala aos sábados quando não havia aulas. Naquela tarde estava com
Marita, que lhe pedira, por favor, antes de irem tomar uma cerveja, que
lhe mostrasse os vídeos. Estava curiosa. Gaspar esperava que não lhe
pouco mais comprido, mas sempre curto. Não o posso deixar crescer,
Gaspar não queria pensar que Marita não usava sutiã, nem queria
frias e sempre tarde. Um DJ tão mau que não conseguia fazer ninguém
dançar.
lhe restava uma cena filmada por precaução: filmara o bolo na cozinha
vídeo em pausa. — A noite foi toda assim. Gravei umas raparigas a falar
beber com as raparigas não é bom, têm quinze anos. A questão é que as
tentam galar-me, essas coisas que acontecem aos tipos mais velhos.
mau. Foi tudo assim, nessa noite. Uma disse-me hunger hurts but
starving works. Eram raparigas de uma escola bilingue muito boa, muito
chique.
— Eram giras?
o teu tio, por causa do exílio. E o Negro. Eu não tenho nada. Às vezes,
Tinham bebido várias cervejas. Gaspar não estava bêbedo, Marita sim,
— Estiveste comigo por causa disso? Por eu ser uma pessoa sem
— Qual é o mal?
parvoíces. Toda a gente gosta de ti. Como do meu tio. Não me ocorre
vez: atravessar a dor de cabeça constante tentando fazer entrar uma mesa
com o rolo, de cima para baixo, da direita para a esquerda, fita nas
que escolher bem. E lá estava ele a pintar paredes de cor púrpura, uma
casa púrpura como Paisley Park, era esse o sonho dela e, depois de
as cenas que lhe davam medo. Não lhe ia contar, e não lhe contava, que
não podia voltar à casa real onde desaparecera Adela porque tinha sido
déjà-vu de sonhos. Gaspar pôs em causa esta teoria, como é que isso
podia ser, e o médico disse que era pouco comum, mas completamente
sintomatológico da epilepsia, que era raro, mas não inédito e por aí fora.
de futebol. Mas nunca mais recuperara isso. É melhor assim, dizia ela,
o Estudiantes é campeão, o meu pai fica mesmo feliz, nada o põe tão
contente. Nem ganhar dinheiro, nem que as coisas nos estejam a correr
— Sim, claro que estou deprimido. Às vezes acho que filmo as festas
dos quinze anos porque têm qualquer coisa, não sei como dizer, uma
estúpido?
me entusiasmar.
— Vai à merda.
é a desculpa número um dos gajos, é o «não sou bom para ti», «não és
medicado.
professor.
verdade, tu és rico.
descobertas. Este morreu com vinte e dois anos, uma loucura. Descobri-
sei se te lembras. Era esloveno. Não sei pronunciar o nome dele, mas o
apelido é Kosovel. Escreveu uns mil poemas, dizem que são todos bons,
pelo menos bons para um miúdo. Gosto deste: «Nas fontes bate, bate. A
— Podias dar aulas de inglês, por exemplo. Não gosto que leias
sobre suicidas.
que tenho.
traduziste.
nomes das constelações, de certeza que não sabes. Ninguém sabe, é raro
Colonia, não é?
Era isso que ela queria: viajar. Queria ir à Patagónia e escrever sobre
companheiro melhor. Não importava que quisesse estar com ele e fosse
sincera. Ele tinha de ir-se embora, de a deixar, e era tão difícil. Quero
viajar contigo, pedia ela, e Gaspar respondia-lhe claro que sim, beijava-a
pensava que jamais a levaria a lado nenhum porque ele só devia ir ter
com os que o procuravam, havia um coração negro que precisava dele e
ele sabia porquê: numa discussão recente com Luis, Gaspar batera na
porta com tanta força, que ainda lá estava o buraco feito pelo punho
dele. Uma semana depois, ainda tinha farpas nos nós dos dedos. O tio
pai costumava abrir-lhe a palma da mão para lhe corrigir aquele gesto de
tensão. Luis fez a mesma coisa durante muito tempo. De vez em quando,
ainda lhe acariciava o braço por baixo da mesa para que Gaspar
Luis, e ela, sem se conseguir conter, quase gritou com a voz repleta de
ira:
mão pelo nariz, limpou o ranho nas calças de ganga e saiu de casa com a
isto ou sei lá eu, mas está mais medrosa. Gaspar pensou em não ir ao
rapazes não estavam lá, e ainda bem: tinham-nos deixado em casa dos
avós para poderem fazer uma festa de adultos com vinho, discussões e,
grandes empresas, por amor da santa. Que idiota. Bem, vive lá e parece
sono. Então, sugeriam-lhe que fosse dormir e ele dizia sempre que sim.
ajuda, mas na verdade o que queria era estar sozinho durante algum
amável com ele, por enquanto. A filha do Negro fora-se embora cedo
porque não gostava de discutir com o pai bêbedo. As coisas não estavam
da obra de Luis. Gaspar foi até ao grelhador e fez uma sanduíche tardia
pouco aborrecido, pôs-se a brincar com o cão, que estava excitado com a
Gaspar perdeu o início da conversa. Quando o cão lhe saltou para cima
levou-me de carro.
— Foi a minha mãe que te levou? Foi ela que te tirou do país? Nunca
— Porque é que isso é duro? Ela ajudou-te, não vejo onde está o
cabeça.
contaste.
com a Marita. Estou farto de vocês e das vossas vidas difíceis. A sério.
Eu encontrei-me com o teu pai aqui. Bom, aqui não, em Buenos Aires.
ido lá fazer qualquer coisa, acho que ia a uma consulta, mas às tantas era
mentira. Não me contava quase nada. Sabes como é que ele era. Bom,
sem mais nem menos disse-me para fazer a mala porque ele me ia levar
para fora do país. Não sei como, mas sabia que eu me tinha de ir
embora. Não eram coisas que se dissessem por telefone e eu não lhe
tinha contado nada. Guiámos à vez até Misiones, foi uma viagem de
Nunca me falaste dela, nem da casa. Sabes que sonho com a casa, que
tenho alucinações com a casa, sei lá que porra de problema tenho com a
casa, e nunca me disseste que lá estiveste. Sabes que quero saber mais
coisas sobre a minha mãe, que não me lembro bem dela e que sinto
Julieta que foi a minha mãe que te tirou do país para acabares com a
merda dos fanicos dela e para ver se deixa de nos julgar, a mim e à
minha família.
verdade.
desejo dele. Ele não queria que soubesses nada, absolutamente nada,
força para evitar que o atirasse, para evitar que a noite acabasse com
uma descarga violenta. O copo caiu em cima da mesa, mas não se
partiu.
depressa e sozinho, sem esperar por ela, obrigando-a a correr pela rua,
de noite. Era tarde para voltarem para La Plata, mas Gaspar dirigiu-se
depressa quanto pôde: não era fácil acompanhar o ritmo dele. Também o
seguiram os gritos do tio na escuridão, que lhe dizia para com isso,
dorme cá, que já vos preparámos a cama, amanhã falamos com mais
calma. Gaspar não podia avançar mais pela estrada, àquela hora não
Quando ela se juntou a ele, esteve quase para lhe arrear uma bofetada.
Quando chegaram a La Plata, ela foi para o apartamento, mas ele ficou
vezes, Gaspar era egoísta: o drama dele sobrepunha-se a tudo. Mas sabia
que, quando voltasse a casa, à tarde, ele lhe pediria desculpa e estaria
terapia adequada. Gaspar tinha razão quando dizia que já não era viável
faculdade pelo seu caráter, embora ela soubesse que se tratava apenas de
uma fachada de professor: fora das aulas era muito amável. A Marita só
lhe faltava ler as crónicas do último livro, que nessa tarde viria da
trabalho; queria mantê-lo nos anos seguintes. Ainda não lhe pagavam,
uma investigação modesta, mas com trabalho e mais material poderia vir
falar.
parecer profissional.
revisora.
último texto, o da Olga Gallardo. Não sei o que é que aconteceu: até
parece que a pessoa responsável nem sequer olhou para ele. Veja. Faltam
bem quanto a revisora, mas ela hoje não pode vir. Temos de nos
— Não há problema.
— Ainda não.
o caso que vai ler, mas não foi só isso. Nunca é só isso.
insistissem que era muito boa, nunca a davam a ler nas aulas. O próprio
Herrera, uma vez, tinha-lhe dito que, com ela, era difícil saber onde
quando se sentou a ler o texto com o lápis na mão. Estava prestes a ler as
com veneno para ratos, isso também fazia parte do mito, a dolorosa
agonia num hotel, porque saíra de casa para morrer. Herrera estava de
estava em perigo, mas ela, claro, não percebia. Estava assustada. Queria
saber se era mesmo verdade o que dizia o artigo sobre a casa onde Adela
não lhe quis responder: não podia fazê-lo, mas também não negou nada.
infantil e elástica, o cabelo louro sobre os olhos pretos, tão pretos como
gente, toda a gente, quem é toda a gente. Aquela mulher matara-se por
causa dele. Era a sua segunda morta. Haveria mais, tinha a certeza. O
facto de aquele bilhete ter ido parar às mãos de Marita era a mensagem
final. Como não lhe podia explicar, porque seriam anos de explicações e
posso proteger-te, a sério, não fazes ideia do que isto é, eu também não,
mas sinto, sei, sempre soube, que é o fim e eles vão procurar-te. Mas tu,
Sai.
Fechou as portas com força antes que a cabeça se virasse e lhe mostrasse
tudo sobre o bilhete. Não como o tio. Ela não lhe ocultava coisas. Era
valente. Estava assustada e chorava e, embora tivesse guinchado quando
este. Quando Marita se foi embora, Adela parou de dançar: agora estava
conseguiu sentir alívio quando Marita se foi embora dizendo que nunca
conhecia a mãe, não, pior ainda, se tinha sido a mãe a levá-lo para o
outro lado da fronteira, podia ter acontecido qualquer coisa. Isso não era
algum tipo de caminho que levasse até ela e de perceber o que é que
tinha acontecido, qual era a sua história, a dos seus pais, a da sua
família. Adela, segundo Gallardo, era prima dele. Betty nunca lho tinha
dito nem sequer insinuado. Quanta frieza. Esperava essa frieza por parte
na selva.
O que contava era verdade. Aquela casa, Puerto Reyes. Tinha de lá ir.
até Puerto Reyes, disse-lhe Andrés Sigal. Puerto Reyes, a Moby Dick das
isso num churrasco em casa do tio. Tinha de ver a lista dos corpos
casa, abrir-lhe-iam a porta. Olga Gallardo não era a única que andava
atrás dele. Não andavam à procura dele para ser recebido como o filho
pródigo, com afeto. Sabia isso, mesmo que não soubesse mais nada.
Desligou o telefone.
mãe histérica que não deixava trabalhar e julgava saber mais do que os
médicos. Era bastante verdade o que a mãe dizia: não tinha empatia. A
massacre.
Rambla 32 ficava perto da favela, onde costumava haver rixas por causa
estava na maca. Era tão inconcebível que, num primeiro olhar, julgou ver
para ter uma intuição rápida e o instinto disse-lhe que o que era mais
urgente era tirar-lhe uma radiografia. Saber, já, que ferida era aquela.
infeção.
objeto cortante fosse mesmo desse tipo. Uma tesoura de poda, por
seja o braço de um dos filhos dele, pensou Vicky, por favor, por favor. O
ele sabe, mas não quer reconhecer, não consegue dizê-lo em voz alta. O
homem que tinha cortado um dedo com uma faca de churrasco ao tentar
razão da septicemia.
primeiro lugar, para Gaspar, mas também para todos nós. Vicky sentiu
que lhe estavam a soprar na nuca, que lhe falavam ao ouvido e que a voz
torturado.
lhe isso a chorar, mas mais nada. Às vezes, Marita também era
complicada, embora tivesse fama de ser uma rapariga de trato fácil. Não
queria telefonar a Julieta: o que lhe diria e como? A única coisa que
disse-lhe:
chorar em paz, entre as mulheres, sem lhes explicar o que nem sequer
podia pensar, dizendo apenas nem imaginam, que merda, que azar, que
pesadelo.
culpa é tua, mesmo que não tenhas sido tu a fazê-lo, mas foste. Ela não
pensava que tivesse sido ele a abrir o peito do tio como um caçador
verdade, porque tinha as unhinhas pintadas, pelo menos foi o que disse
queria dizer que tinha sido ele a cometer o crime, em poucas palavras
dizia que a culpa era dele, e nisso tinha razão, não podia dizer que não e,
por isso, deixou que lhe batesse, deixou que lhe arranhasse a cara e
pensar que não era o braço de nenhum dos gémeos e isso parecia-lhe um
triunfo, um insolente laivo de falsa piedade. Não quero vê-lo, Vicky, não
consigo vê-lo. Não vou entrar e ponto final. E não iria vê-lo, seria o
encontro com um fantasma, seria como ver o pai, não eram assim tão
entubado, com o cheiro da morte, o peito partido, era como o pai e ele
não queria ficar com essa imagem e não ficaria. Tens de entrar, dizia
Vicky, porque tem o corpo todo cortado e eu vi-o, são inscrições, são
minha prima, Adela do meu sangue, quem teria envenenado esse sangue.
O pai morto, o tio morto, ambos com a marca no meio do peito. E ele
que tinha passado dias fechado em casa enquanto isto acontecia. Isto
que tinha ficado em La Plata por causa do trabalho ou com o filho mais
sempre, temos filhos, muito pequeninos, ele avisava-me sempre. Foi por
isso que telefonei ao Gaspar, mas não consegui falar com ele, o Gaspar é
o filho, o sobrinho, aquele ali. Não consegui falar com ele, dava sinal de
dia complicado, quando acabei telefonei para casa e nada, fui até à obra
e nada, mas lá disseram-me que tinham tirado uns dias de folga por estar
a chover e não se pode trabalhar com chuva, então pensei que tinha ido
para algum lado passar os dias livres, pensei que estava com outra, nem
sei o que digo, desculpe, sei lá no que é que eu pensei, até fiquei
zangada. Porque é que não fui à casa do filho? Porque fiz um filme com
outra mulher, não sei, por negação? Porque não percebia porque é que
ele não voltava? Foi isto que aconteceu, pensou Gaspar. Alguém levara o
bonito do que Villa Elisa, com casas modernas, embora fossem horríveis
que cor? Salmão? Coral? Agora havia muitas cores com nomes
aquáticos além do velho azul-marinho, que não era marinho por causa
enquanto tudo isto acontecia. Então, tinha sido em Gonnet. Uma casa
em Gonnet, uma daquelas casas lindas. Uma casa para onde tinham
De certeza que sim, porque, se não, teria resistido e era forte, tinha
isso, porque teria de haver uma autópsia, era um assassíno. Então tinha
sido em Gonnet. Quantos? Dois ou três? Quem? Dir-lho-iam mais tarde.
atiram mortos para cima das pessoas. Só agora percebia o sentido dessas
estivesse mal, seria mais fácil de manipular. Era por isso que se recusava
a ver o corpo. Em breve seria interrogado pela polícia. Não tinha álibi.
maior, como se fosse meio cego. Não tinha álibi, mas não importava. Era
verdade o que Julieta dizia. A culpa era dele. Era uma mensagem para
ele, tinham-lhe atirado com um morto para cima. Não queria vê-lo. Uma
detestava que lhe dessem os parabéns, eu não fiz nada, é só uma alegria.
não podia entrar para lhe cantar uma porque a culpa era sua, porque
por causa disso com tanta raiva porque sabia. Vicky saiu dos cuidados
para ela. Os olhos escuros de Vicky. Era tão bonita. Mais do que Marita.
Mais do que todas. A única coisa que ele tem escrita no corpo é ele que
venha. É isso que dizem os cortes. Como ele que venha? É isso, Gaspar:
«ele que venha». Está bem, disse ele. Vou para lá esta noite. Tens de
falar com a polícia. Depois de falar com eles, vou-me embora. Não me
Pablo está lá em baixo. Não tenho tempo para falar com ele.
Vicky ouvia, agora. Em minha casa, em cima da cama, deixei uma coisa,
quero que a leias. É um texto que foi publicado pela Olga Gallardo com
que lá vás e que o leias. E o Pablo também. Vai lá estar porque eles não
conseguem lá entrar e a Marita não vai voltar. Sabes que o Luis dizia
que às vezes tinha medo do meu pai? Uma vez contou-me uma coisa
muito estranha. Que, estava ele a tomar conta do meu pai, que ainda era
pequeno, talvez tivesse uns seis anos, tinha acabado de ser operado e era
o meu tio que tomava conta dele. Não sei onde estariam os meus avós,
talvez a trabalhar. Mas isso não importa, pois não? Não importa. Estava
a tomar conta dele e dizia que o meu pai tinha os lábios cheios de
sangue, como se tivesse comido carne crua. Ele costumava pôr-lhe água
nos lábios porque secavam imenso, uma enfermeira trouxera batom para
péssimos naquela época, como se pode deixar uma criança gritar de dor.
analgésico lhe baixasse a pressão, morria. Ah, pode ser. Enfim, dizia que
aquelas noites no hospital foram horríveis, ele também era uma criança.
Bom, o meu pai gritou, de repente gritou: ninguém ouve cantar os ossos.
Essa frase, como uma recriminação. Luis teve muito medo. Os meus
avós tinham medo do meu pai. O meu pai via fantasmas. O Luis, não,
porque o Luis não foi marcado. Não o quero ver. Vai gritar a mesma
coisa. Agora também o marcaram a ele, mas não o podem fazer durar.
tudo. Tudo isto, este tempo, não importa, Vicky. Não é tempo. A Marita
já sabe que devia ter sido noutra vida, não lhe digas que não é vida e que
não é tempo.
Quantas vezes tinha pensado «quero ser como ele»? A maneira como
mesmo que não gostes delas. Como, depois de se zangar com alguma
é tão bom, essa professora é um bocado parva, não tem de saber tudo
sobre tudo, mas é uma pena que não tenha percebido isso, porque a
que alguém nunca nos abandona, nunca retrocede, poder bater com a
cabeça na parede até dar cabo dela e da parede e ele atrás, de braços
algo, poderia adquiri-lo no lugar para onde ia. Era a primeira vez que
andava de avião sozinho. Não queria pensar nas vezes anteriores, tinham
sido todas com Luis e não foram assim tantas. O voo era curto, mas
talvez servissem comida, embora não lhe tenha tocado porque não
Estava convencido de que seria seguido. Por ambos. Sabiam para onde
ia.
convencido de que uma pessoa que não soubesse conduzir não era
os carros que comprou eram uma porcaria. Lembrava-se dele a dizer que
que anormal é que se esquece de pôr água no carro, diz-me tu. Ia para
Punta Lara. Iam fazer um piquenique ou pescar? Foi antes dos meninos,
Gaspar pensava que Juan era por causa do pai, mas Luis, um pouco
Apanhava canais brasileiros muito bem, mas não queira ouvir essa
tempo que não iam lá, mas os postais de Ano Novo continuavam a
ver o Rio, uma promessa adiada por causa dos meninos. Gaspar não
gostava muito de praia, mas o Rio não era só Copacabana, era as ruas
gelada com dois comprimidos para a dor de cabeça. Não era tão intensa
tudo. Pelo contrário, era uma dor leve, desconfortável. Podia reduzi-la
compram mais lá para cima. O meu pai conta que há muitos anos davam
festas e aí víamos carros, mas não ficavam cá. Dantes, o patrão também
cá vinha. Bebia uns copos, comprava artigos para a pesca. Mas já cá não
Teria a mãe caminhado por aquela aldeia? Teria comprado alguma coisa
ela? Uma vez, Marita disse-lhe, depois do sexo — ela dizia coisas
aos seus mortos, deixá-los ir. Muitas motas, terra vermelha. Já tinha as
paredes cor de mostarda pelas quais trepavam plantas, não como sinal de
possível ver, por um caminho lateral, pelo menos mais duas casas, uma
pendia sobre a tarde. Quando olhou para ela, a dor de cabeça disparou
segurando-lhe nos ombros para que olhasse para a sua cara. A madeixa
conseguia ver bem à luz rosada do entardecer, com uma aura de ouro, de
vestido vaporoso, indiano. A outra com uma máscara que lhe ocultava a
que lhe ocultava o pescoço. Atrás delas, mais cinco ou seis pessoas que,
pensado em levar armas consigo, mas para quê, se não sabia usá-las?
fraco, mas ainda era capaz de lidar com Esteban. E, por isso, quando
de falar com ele. Para alguém com uma mutilação tão horrível, o que
não hesitou e atirou-se para cima dela, não queria saber que fosse uma
conseguiu sentar-se em cima das suas ancas de pássaro, não podia ser
assim tão difícil matá-la. Antes de muitas mãos, não sabia quantas, o
ceder sob os nós dos dedos, ouvir os insultos. Depois, um único golpe
e onde bater, fê-lo desmaiar, e a última coisa que viu foi o sol atrás das
Subir até ao miradouro era uma saída. Podia estar em boas condições, e
degraus destruídos não fosse uma morte segura, podia ser resgatado e
não queria ser resgatado. Era seguido a toda a hora, mas podia fazê-lo se
podia deixar de comer. Essa era outra maneira de morrer que não
selva, mas foi sempre apanhado. As tareias eram não tanto brutais, mas
sim eficientes. Eles sabiam torturar, infligir dor, magoar sem risco. Não
Foi o teu pai que fez aquilo, dizia Florence, apontando para a
mutilação de Mercedes, para a sua cara horrível. Também foi o teu pai
que matou o meu filho e nunca me disse onde escondeu o corpo dele.
sua vingança. Também nos tirou a menina, que era do sangue. Sempre
nos desprezou, ah, era possível ver isso nos olhos dele, those yellow
eyes, a reptile. Confio que possa ver, de algum lugar, que conseguimos.
Temos o médium que ele nos quis tirar, apesar do signo tão eficiente
com que te marcou. Sempre foi mais talentoso do que inteligente. Sinto
dentes:
Melhor assim, melhor assim, acho que os médiuns devem ser apenas
instrumentos. Mas vou contar-te uma coisa, para que saibas, não suporto
talvez fosse por isso que era não tanto horrível mas interessante, como
um animal fantástico.
— Ele nunca te contou, claro, mas aquilo de que a Ordem anda à
procura, e que tu nos podes dar, e vais dar-nos porque te vamos obrigar,
outro.
— O que é a Escuridão?
— É isso mesmo, dito pelo amigo do teu pai, que também te mentiu
durante toda a vida. Sabemos que podes abrir a Escuridão tal como o
Juan, e vais fazê-lo para nós. A Escuridão vai dizer-nos como fazer essa
transferência para nos mantermos vivos para sempre. O teu pai tentou
fazer isso contigo, não te lembras? Este rapaz é meio atrasado, não
achas, Flo? Que pena, o meu único neto é um idiota e, ainda por cima,
fez desaparecer a Adelita, que, essa sim, prometia, a miúda tinha caráter.
Enfim.
— Que tarde tão estúpida foi essa, para nós, pelo menos. O teu pai
nada? Ou essa marca que tens no braço também serve para te deixar sem
recordações? É uma marca muito boa, estou admirada. Sabes que foi por
Não há nada como o vazio das pampas. Divago, estou velha, preciso de
um corpo novo já, estou no meu direito e vais dar-mo. Levámo-los aos
dois para lá. Há uma coisa que tens de saber do Ritual. Já fomos capazes
que, de resto, o teu pai não precisava de levar a cabo porque era um
teu corpo abriu os olhos e tinhas o olhar do Juan. Mas depois veio a
Florence disse que assistira a todos os Rituais e que, com efeito, não
abriu os olhos e todos viram o olhar de Juan, tentou fugir. Não se pode
isso.
Embora tivesse sido melhor perder a tua mãe do que encontrá-la. Pois é!
— Pensámos que tínhamos dado cabo do teu corpo. Mas não. Dizem
não tinha sido tal coisa. As suas feridas era uma consequência daquela
— Vocês querem que eu vos dê o meu corpo? Fiquem com ele, não
me importo.
you are one. Vais dizer-nos como continuar. We can’t complete the Rite
joelhos por causa da fraqueza. Mas não, percebeu, não se tratava apenas
disso. A tontura fê-lo perder o equilíbrio e caiu da cadeira. Ouviu a avó
mas ninguém lhe tocou. Tentou dizer-lhe que nunca tivera convulsões, e
todas as pessoas à volta dele, quase todas nuas, alguns com lençóis ou
prender quem são o que é que querem, vou fugir já, ajuda-me! Agora
não posso ajudar-te, mas luta, dizia a voz do pai, cansada e grossa, essa
Gaspar pensou que, assim, a recordação se iria embora, que o seu corpo,
diferentes, talvez eu nunca tivesse vindo para cá, talvez o teu irmão
— Este não vai morrer, pois não? Tratem de o obrigar a comer, está
conseguia ver o jardim e pouco mais. Ficava no rés do chão, para evitar
com o que vivia na selva, tal como o pai. Gaspar não queria falar com
dependesse mesmo. Shut the lid of your unconscious. You know how to
gives no light shall never become a star. Aquele cujo rosto não emita luz
forma de mão. D. Uma letra difícil. Havia poucos com D ou ele não
quase ilegível.
um copo com uma palhinha. O que bebia parecia chá frio, mas era
tirou, através de ti. O teu pai tem de pagar. Sacrificámos os nossos filhos
Todas as noites o levavam para uma clareira que havia nas traseiras
já em plena selva. Uma clareira, era isso, como nos livros: «na clareira
pequena e muito velha. Esteban ocultava a cara dela nas sombras das
pela limpeza e pelo bom estado da casa. Não tinha vergonha de que o
vissem nu. Estava a perder muito peso: obrigavam-no a comer, mas ele
e não conseguia dormir. Seja como for, sabia que podia resistir muitos
nem ver televisão nem ouvir rádio. Podia andar pela casa se quisesse. E
primeiro andar também tinham grades. Esta era a sua casa, no entanto.
agora, com a avó sem lábios a gritar como um animal, Florence a dar
fui eu que ordenei a morte do teu tio, fui eu que ordenei a morte da tua
porquê o meu tio, dantes acreditávamos que devíamos tratar bem os que
são como tu, mas agora sabemos que são instrumentos, meros
instrumentos.
Florence ouvia-a e sorria, desta vez não vamos falhar. Eu sei quem
queremos.
em nenhum dos seus recantos. Estava morta, era uma ruína, era o lugar
acontecer. Dois braços impediram o seu salto, mas não os braços dos
morrer, olha, fez-me esta marca na cabeça, mas não se pode tentar com
uma pessoa qualquer e há algum tempo que não tenho ninguém com
daqui.
Ele não nos ouve, sabe-se lá o que está a ouvir. Vá, tenho pouco
Não estou do lado deles, se é isso que queres saber. São a minha
Isso do teu tio escapou ao meu controlo. Nem sequer sabia. A Adela
levaste, por mais que o lamentes. Não posso resumir décadas de história
nos dez minutos de que dispomos pela minha fraca resistência e até que
nossa família é brutal, Gaspar. Não podes dar-te ao luxo de seres fraco.
nada lá, para onde te levam, na selva, mas podes fazer outras coisas.
levem lá.
deixar de falar em segredo, está bem? O que fizer a partir de agora não
A tua mãe?
quente deixasse de lhe soprar na cara, como se, depois de estar fechado
a correr e frases em inglês. You were friends and lovers. You cannot be
trusted. I just saved him but of course it’s not enough, e olhou para o
céu, onde cresciam as flores com a enxaqueca, que não fora provocada
Esteban fizera, aquela conversa secreta em voz alta que lhe parecia tão
tudo lhe recordava, passo a passo, o falso acidente pouco antes da morte
do pai, aquela farsa que, sabia agora, tinham montado para lhe
corpo. A sensação era tão vívida, tão óbvia, que não lhe restaram
fugir.
guardas irem para o lugar mais óbvio da casa para se atirar. O facto de o
Foi um verdadeiro golpe para ele ver Gaspar em ruínas, vinte e cinco
próprio pai reconhecera o cadáver, que era de outra mulher, mas, na sua
serve para que Tali viva «na clandestinidade», como ela diz, é uma coisa
valiosas. Vivia perto dali, mas num lugar mais convencional. Mercedes,
que Stephen dera início à passagem dos bens para Gaspar. Ela não tinha
estava sempre bêbedo, assinava o que quer que fosse. A casa já não era
que morressem. Tinham deixado tudo em vida, eram velhos, era lógico
relação aos membros vivos da sua família, que não eram muitos. Preferia
que o responsável fosse alguém da Ordem. Florence não tinha esse tipo
uma magnífica perseguição com cães pela selva com a qual podia dar
que ele encontraria a porta. Se até ele a sentia, ele, que nunca se atrevera
não era estúpida. Sabia que o tinha de deixar encontrar o lugar. O facto
de ele ser capaz de fazer invocações no mesmo lugar que o pai era
como sempre acontecia após uma deceção assim tão grande. E com Juan
técnica ordenada pelos deuses. Ela insistia: a técnica ainda não nos foi
horas, numa vez que a tinha feito chorar. O poder escapava-lhe das
ouvissem.
Eles sabem que foste tu que encontraste a porta que se abriu para a
Adela. Não sabem nada da extensão do que está para além dela.
Eu também não.
quando decidiram abrir o meu tio como se fosse um frango. Pensas que
tenho. Não quero saber do teu irmão, e menos ainda se está morto.
Alguma vez passaste para o outro lado da porta? Eu sei voltar. Não sei
Agora, desliga.
labaredas no horizonte.
atravessado por um trilho no meio do mato. Foi difícil para eles porque
na primeira vez que as viu. A mão que marcara o pai no braço. Nele, não
lhe tocavam.
alguns Iniciados. Era assim que se chamavam uns aos outros. Gaspar
disse-lhe que também era um servo. Não. É diferente ser uma ovelha
deus deles. Gaspar não prestava muita atenção àquilo. As mãos não
um ermo num mundo oco. Lá, no ermo, deixavam coisas aos visitantes.
Pequenas coisas situadas precisamente no meio do campo, muito
de osso. Gaspar não sabia o que acontecia a seguir porque, depois das
além da porta.
A minha mãe diz que os ossos formam letras. Acha que estão a falar
com ela outra vez, explicou-lhe Stephen. E o que é que dizem? Não
tenho acesso a essas reuniões, respondeu Stephen. Agora era mais fácil
passar para o outro lado da porta e não lhes importava muito permitir o
porta não havia vento. Gaspar começou a sonhar com o homem. Nos
osso.
Uma noite, Gaspar acordou e viu que o avô estava no seu quarto:
atados com uma espécie de fio vegetal. Gaspar observou-o ao luar. Era
E Adolfo Reyes saiu a gritar que era o neto dele e que ele podia falar
com o neto quando lhe desse na real gana. Gaspar ouviu-o gritar até o
por elas, nem fingia obediência. No Outro Lado era ele que dominava
significava que tinha de ir com Esteban. Ele sabia lutar. Precisava dele.
Não queria precisar dele, não queria voltar a ter um pai, nunca mais. Se
não fosse por causa dos guardas, deixá-lo-ia no Outro Lado, mas ele era
a única testemunha viva do pai. Ele e Tali. Precisava dele vivo. Tinha
braço indicava-lhe para onde ir, o seu próprio braço. Tinha a cicatriz a
que, de facto, era o seu filho. Falava com aquela cabeça morta. Não
seco como se fosse de palha. Gaspar sentiu uma certa compaixão por
muito magros e o pescoço preto, como se o tempo não tivesse sido capaz
Pediu aos outros que a ajudassem a pô-lo no chão, mas não obteve
boca imunda.
Temos de sair daqui, mas não a ouviram. Não lhe prestaram atenção.
porquê, se não havia Lua nem estrelas, de onde vinha aquela luz rasante,
sair, precisaria dele para lutar com os guardas. Retrocedeu para ir ter
com ele e arrastá-lo pelo braço, para o empurrar. O tempo estava a favor
vegetação com falta de ar, mas não sabia quanto tempo lhes restava em
Esteban com força; caiu ao chão, a cara de um vermelho tão escuro, que
Esteban, que não conseguiu falar com eles, não conseguia respirar.
E abriu a porta para que eles saíssem. Por uns instantes, pensou em
los nos troncos que estavam à espera dos bustos deles. Mas aquela
matança não era dele. E segui-los seria perigoso. Fechou a porta assim
que saíram.
em silêncio.
Estavam à espera dele, queriam vê-lo. Disse que não. Ao telefone, Vicky
ameaçou aparecer na casa sem avisar, já nos tentaste afastar uma vez e
voltar. Ninguém anda à tua procura. Sabem que não tiveste nada a ver
Gaspar. Nunca mais. Quem é que vos deu este número? Foi a Tali,
com ele se não os quisesse ver, se não fosse ele a pedir que o fizessem.
As conversas eram tensas. Gaspar desligara da última vez e não atendera
lhe pedido — percorria a casa sem falar muito com ele, mas ouviu o que
e Vicky. Tinham ambos boas vidas. Não queria dar cabo delas.
Vimos a tua tia, disse-lhe Vicky. O homem que vive contigo disse-
nos onde estava e fomos visitá-la. Ela não deixou que nos
raiva. Tali. Lembrava-se bem dela. O pai nunca lhe contara que era irmã
Não podia ver a cara de Tali nem ouvir as suas explicações. Podia vir a
que fazer com Stephen, e julgava que ele também não sabia se o devia
para a casa. O desemprego no país e naquela zona era tão grande, que
não seria difícil, mas Gaspar lembrava-se de uma mulher que o tinha
ninguém.
mas desta vez ele sabia o que fazia. Não estava arrependido. Não tinha
caminho onde estava o Lugar de Poder do pai. Horas depois, ouviu uma
explosão. Correu. Tinha sido uma explosão subterrânea. Era o túnel que
tinha uma porta de ferro. Perguntou a Stephen porque é que tinha feito
explodir o túnel e ele disse que lhe trazia más recordações. Estava vazio,
fora. Foi ter com a Tali, pensou. Talvez também tenha um amante. Uma
os dias.
— Adela — disse.
caminhar sob um céu sem estrelas. Perdida, mas não assustada. Viu-a
rio. Viu a avó sem lábios e sem nariz. Viu velas na floresta e uma jovem
mas ela não se queixava. Viu um busto pálido num campo de flores
amarelas.
Naquela terra, ele podia entrar e sair e procurar. Naquela terra, ele
uma menina? O que lhe teriam dado de comer? O Lugar teria sido uma
boca para ela? Tinha de ter a certeza. No Outro Lado, o tempo era outra
Afastou-se da porta.
— Adela.
voz.
Estou a aprender.
E deixava a porta, o corredor, a casa de hóspedes. Ignorava o
telefone, que tocava todos os dias. Seriam Vicky ou Pablo. Ainda não o
exausto.
peronistas para levarem a cabo diversas atividades políticas, sociais, comunitárias, etc. (N. da T.)
29 Na década de 1980, o bilardismo (de Carlos Salvador Bilardo) e o menottismo (de César Luis
Menotti) representavam duas formas antagónicas de jogar futebol preconizadas por esses dois
MARIANA ENRIQUEZ
quando era leitora de Stephen King, das irmãs Brontë, de Ray Bradbury
ocorreu com Bajar es lo peor (1994), a que se seguiu, dez anos depois,
das Américas.
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