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Experimento n. T

por Lu Ain-
Ain - Zaila
Escritora Afrofuturista / Pedagoga
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— É isso, agradeço imensamente por estar aqui... – fala Anaya enquanto sorri e flutua,
brincando de engolir gotas de água pairando na falta de gravidade. — Obrigada! – fala enquanto
acena. É a deixa para um tour virtual antes da fala do capitão.
Anaya1 é brasileira e está ali, ou melhor, lá comemorando seu centésimo dia de missão
no espaço, a bordo do Edward Makuka Nkoloso2 ou simplesmente Makula. o primeiro módulo
espacial africano em uma nova conjuntura espacial.
— É isso comando Gombe3. Aqui é o cap-Ngozi4 que junto com a astronauta brasileira
Anaya e minha compatriota Nala5, comemoramos também um marco nacional e internacional, o
dia número 365 de nosso módulo Makula no espaço! – fala, tendo como pano de fundo as largas
janelas do módulo observacional da Estação Espacial ALLSpace de onde é possível ver a Terra:
redonda, azul, reluzente e unida por fora.
A alegria da equipe em terra é grande. Os astronautas veem e ouvem as palmas,
felicitações e até um bolo comemorativo foi providenciado pelo comando em terra. E assim dão
início a um dia comemorativo e atribulado. Anaya apresenta online a estação a um grupo seleto
de sorteados enquanto cap-Ngozi e Nala acoplam um mobe-carga de pesquisa internacional, o
ALLSpace-b que deve ser esvaziado em 18 horas, antes do retorno automático ao planeta. Essa
movimentação é parte de um “esquenta foguetes” para a próxima missão: acoplar o primeiro
módulo permanente brasileiro na estação, o BRASpace-a.
Anaya explica um pouco de tudo, que um dos itens mais importantes numa estação
espacial são os painéis solares. Também comenta da média de 90 minutos para uma volta na terra,
a quantidade de astronautas, a possibilidade de irem dali para a próxima estação espacial em
planejamento. Tudo o que pode motivá-los a sonhar em um dia estar no seu lugar.

1
- Olhar para Deus (Ibo, Nigéria)
2
- Edward Festus Mukuka Nkoloso (1919-1989). Foi membro do movimento de resistência da Zâmbia,
professor de ciências e fundador da Academia Nacional de Ciências, Pesquisa Espacial e Filosofia da
Zâmbia.
3
- Complexo de Gombe, em Kinshasa, na República Livre do Congo.
4
- Bênção (Ibo, Nigéria)
5
- Rainha (Suaíli, Tanzânia).
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— E então? Como foi com a nova geração de curiosos? – pergunta Nala.


— Foi desafiador, bem mais interessados e entendidos que nós quando começamos a
sonhar – responde em seu fone enquanto dá impulso para flutuar, atravessando o nó central e o
módulo habitacional. Seu destino é o mobe-carga ALLSpace-b recém entregue, pois como
pesquisadora deve verificar a documentação e protocolos de segurança para o aceite dos
experimentos.
— Cap-Ngozi, parece tudo certo.
— Perfeito. Nala vai repassar com você a listagem. Depois vamos fazer o rodízio de
descanso antes de devolver essa belezinha lá para baixo.
— Afirmativo – respondem ambas.
O sonho espacial é incrível, mas a realidade é bem diferente. Um módulo é como um
quarto bagunçado sem gravidade milimetricamente projetado para te manter vivo e seguro no
espaço. E na verdade está arrumado para fazer sentido apenas a um grupo seleto que vai viver
nesse lugar por alguns dias ou meses. Assim é o interior da estação, cheio de caixas, fiações,
gavetas, cilindros, painéis de funcionamento disso e aquilo, mesas embutidas na parede e redes
segurando volumes de todo o tipo. A cozinha é um varal de alimentos em saco, o banheiro tem
dois tubos (sem explicações) e dormir não tem acima ou abaixo. É você, o saco de dormir, um
tampão de olho e bons sonhos.
— Mas que negócio é esse? – comenta Anaya em voz alta, ao ler a estranha etiqueta da
última caixa de pesquisa que retira do mobe.
— Experimento n. T? Que classificação é essa? Não tenho registro disso aqui – responde
Nala curiosa para Anaya.
— Vou abrir, não mostra perigo na verificação do sensor – comenta Anaya ao
desembrulhar o pacote sob a prateleira e dar de cara com uma caixa de madeira preta, reluzente e
com um fitilho dourado.
— É brincadeira do pessoal lá debaixo – fala Anaya rindo.
— Como assim? O que é?
— Um bonequinho feioso, peludo, de olhos vermelhos. Ai. Droga!
— Algo errado, Anaya?
— A pelagem desse troço é dura, furei o dedo – comenta enquanto procura um curativo.
— Vamos aguardar, o cap-Ngozi daqui a pouco vai acordar e mostramos a ele essa
coisinha. Ele deve saber de quem é o mal feito.
— De qualquer forma, vai ficar aqui. E não vai virar mascote da viagem por nada.
— Concordo – fala Nala assim que terminam as verificações.
Na sequência, Anaya vai para a cozinha e escolhe seu almoço de saquinho, pois em breve
será a vez de Nala descansar e ela ficar à disposição das conferências e junto ao cap-Ngozi já
desperto e na área do mobe-carga, querendo entender a companhia inusitada.
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— Anaya, que raios de boneco é esse? Veio um brinquedo no lugar de um experimento?


— Não, senhor. O bonequinho sequer está registrado.
— Só veio escrito “Experimento n. T” – responde Nala indo dormir.
— Só pode ser coisa do pessoal lá embaixo. T nem é registro de experimento – comenta
cap-Ngozi. — Ai, droga!
— O que foi? – pergunta Anaya.
— Furei o dedo nesse negócio – responde o capitão, antes de fechar a caixa, buscar um
curativo e flutuar de volta para o módulo principal de comando.
— Quer saber... vamos esperar os engraçadinhos morrerem de curiosidade. E já sei para
quem vou jogar a responsabilidade de algo não registrado, passando pela segurança.
— O feitiço vai se virar contra o feiticeiro.
— É isso aí – responde cap-Ngozi rindo.
Algum tempo depois dos procedimentos rotineiros é hora de falar com o subchefe Mbogo.
— O que há cap-Ngozi?
— Tivemos uma quebra de segurança. Recebemos aqui um experimento não-autorizado,
intitulado n. T, uma caixa preta média com um objeto que não está no registro de envios –
responde Ngozi absolutamente sério só esperando o pessoal em terra se desesperar com a
gracinha.
— Mas como assim? Um experimento sem registro? Alguém quer me enfartar!
— Calma. Está mais para uma brincadeira. Anaya está lá e vai te mostrar no monitor.
— Ah, eu quero ver isso! E quero saber de quem é a graça também? – comenta Mbogo
olhando para a equipe e arrumando os óculos para ver atentamente a caixa nas mãos de Anaya
que abre e expõe o seu conteúdo no monitor.
— Ngozi? Você está brincando comigo também? A caixa está vazia!
A constatação de Mbogo faz Anaya olhar e se assustar.
— Mas cadê o boneco? Ele estava aqui sub-Mbogo – afirma Anaya.
— Não entendi, vimos ele dez minutos antes de te chamar. Tem a forma não humana,
carrancudo, baixinho, peludo, olhos vermelhos, um buraco na testa, dois dentinhos... – argumenta
cap-Ngozi.
— Ah! Por favor. Não brinquem assim. Você está me dizendo que alguém mandou aí
para cima um Tokoloshe? Vou descobrir quem é o irresponsável? Mas achem e joguem fora com
a caixa junto! É um mau presságio. Vocês não sabem que... isso... joga... droga... falha...
— Mbogo? Na escuta? Mbogo? Perdemos o contato com o comando – confirma Ngozi.
— Ai, droga! Gente, isso não é engraçado! O que essa coisa está fazendo flutuando aqui
no dormitório, que susto! – reclama Nala ao perceber o seu dedo indicador furado.
— Ele foi parar aí? Mas como? Juro que não fui eu! Eu fechei a caixa com ele dentro.
Não levaria aí de modo algum – insiste Anaya enquanto flutua para lá intrigada.
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— Mas está... olha só... ué? Estava flutuando aqui agora mesmo – afirma Nala que começa
a olhar para todos os lados sem entender nada. A coisinha sumiu de novo.
— Cap-Ngozi. É impressão minha ou o sub-Mbogo ficou apreensivo com o bonequinho?
— Ficou sim, ele não gostou. E estou recebendo uma mensagem que diz... – informa o
capitão antes de para a leitura em voz alta e ficar sem entender nada.
— Cap-Ngozi, o que o sub está dizendo? – pergunta Nala e Anaya aguardando a leitura.
— Eu realmente não sei como lidar com isso – afirma, antes de repassar a mensagem.
— Ele está nos dizendo o que eu acho que está? – indaga-se Nala em voz alta.
— Mas isso não faz o menor sentido. Simplesmente não faz – comenta Anaya.
A nota diz: Os tokoloshes são criaturas maliciosas, convocadas por pessoas de igual
índole. Minha vó dizia, aliás, ainda dizemos que é invocada para causar problemas. É despertada
com gotas de sangue e quanto mais longe está o objeto da raiva, necessário se faz criar uma
representação que o mantenha infernizando e causando problemas até o que deseja destruir estar
destruído. Joguem fora agora! Aconteça o que acontecer nada de sangue nessa coisa. Eu levo
muito a sério as forças deste mundo, mesmo no espaço.
— Eu não gosto disso – comenta Nala arrepiada e voltando a olhar seu dedo com curativo.
— Tenho dois furinhos no meu dedo. Aquela coisa me mordeu? É sério?
Anaya olha e constata, dois furos. Isso a faz lembrar que seu dedo ainda arde e a surpresa,
ela também vê dois furos onde juraria ter visto um, inclusive tendo o monitor como prova.
— Não, espera aí... só tinha um aqui. Cap-Ngozi, você viu, certo?
— Sim, eu vi e eu também mostrei a vocês um... dois? Mas o que está acontecendo?
— Olha só! Temos as filmagens, vamos olhar e confirmar, certo? – pergunta Nala.
— Certo. Façam isso no próximo mobe, o acesso ao registro de segurança está
operacional. Enquanto isso verifico o problema de comunicação. Não vejo falha, mas estamos
sem contato. Vou na engenharia.
— Afirmativo cap-Nogozi – respondem ambas.
E as filmagens comprovam, dois furos no dedo indicador de cada um.
— Isso não pode estar acontecendo – insiste Nala consigo mesma.
— Vamos nos concentrar e respirar devagar. Não podemos ter equipamento danificado
por causa de uma brincadeira. Nala, volte ao controle e nos oriente de lá – essa era a voz sensata
de um capitão, mas não o seu instinto. Algo muito errado estava acontecendo ali e começar a
duvidar de si mesmo não era uma opção a dar espaço.
Nala confirma e volta ao comando enquanto Anaya desliza pelos módulos em busca do
objeto, refazendo o percurso até o mobe-carga, olhando acima, abaixo e atrás de absolutamente
tudo, mas a luz indo e vindo incomoda a visão até dar mais um impulso e tudo escurecer. Ela bate
com a testa num dos laptops e entra em loop. — Mas que... – muitos são os xingamentos em sua
cabeça enquanto aperta com força a testa como se aliviasse a dor e resmunga. — Assim não dá...
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— Nala, confirme o problema das luzes? Isolado ou contínuo? – solicita cap-Ngozi.


— Senhor, o problema é geral. E Anaya, você está bem?
— Sim, sim... não foi uma trombada tão forte – responde, agora precisando tatear as
paredes em busca de barra-lanternas, nada fácil.
— Eu não consigo ver vocês. E nenhuma palavra escrita ou falada do controle terrestre –
retorna Nala após sucessivas e frustrantes tentativas de contato.
Era angustiante o silêncio, numa hora todos querendo saber de suas pesquisas,
monitoramento e então apenas os rangidos da nave como companhia. Era como estar à deriva sem
estar. A Terra estava ali, mas cadê todo mundo? Nenhuma resposta até o silêncio ser quebrado
por cap-Ngozi com más notícias.
— Equipe. Estou aqui na elétrica vendo o problema da iluminação também e encontrei
algo. É insano, mas...– comenta com tensão na voz e duvidando das palavras, as que pretende
proferir.
— O que foi? O que achou? – pergunta Nala ansiosa. — Diga de uma vez?
— Também quero saber. Diga logo – complementa Anaya atenta à voz em seu fone.
— Vários cabos do painel parecem... roídos, puxados e roídos – disse com cuidado, mas
não surtiu muito efeito, pois tanto Nala quanto Anaya só pensaram uma coisa com seus silêncios:
aquilo era inconcebível.
— Desculpa, é.... do que você está falando? Pode repetir, por favor? – solicita Nala
receosa em ouvir novamente as palavras mordida e roído.
— Vocês ouviram e muito bem... são mordidas, não tenho dúvidas e... tem duas marcas
centrais que lembram muito as que temos nos dedos, mas de uma boca maior – afirma Ngozi sem
que fosse de sua vontade dizer tais coisas.
Ouvir aquilo no fone e estar no escuro dentro de uma caixa pressurizada fez Anaya olhar
para tudo ao seu redor com desconfiança, cada luzinha lembrando olhinhos lhe causava angústia.
Não queria, mas um arrepio sem o consolo da gravidade correu todo o seu corpo. Isso nunca tinha
acontecido antes. Era a primeira vez que sentia medo da estação espacial, do sonho realizado
sendo palco de um pesadelo.
— Eu não acredito nisso! Vou ignorar o que acabou de dizer. Não dá... – reluta Nala,
nervosa, sem saber o que fazer com as mãos, ora no painel ora no fone querendo arrancá-lo das
orelhas.
— Nala, calma. Eu preciso de você alerta, focada e me orientando. Entendeu? Vamos nos
manter de olhos abertos. De olho um nos outros. Certo?
— Sim, senhor. Estou aqui e vou me acalmar. Já estou me acalmando – mente.
— Eu vou te ajudar Ngozi – fala Anaya pegando a direção contrária, guiando-se pelos
adesivos reluzentes no teto.
— Certo. Enquanto isso vou acender as barras de luz, todas as que estiverem aqui.
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Nala está de olho nos monitores, seguindo a barra de luz com Anaya uma câmera após a
outra e atenta a todas as acesas por Ngozi enquanto troca os fios e cogita recorrer às baterias.
Aquilo era incômodo, ficar no escuro, massageou os olhos e ficou feliz quando viu a silhueta de
Anaya no nó, um pouco antes da entrada do módulo.
— Finalmente! Olha aí cap-Ngozi. A Anaya... não é possível – fala ao se levantar, dar
dois passos atrás e perceber Anaya em outra câmera, iluminando seu rosto bem perto do monitor
e avisando ainda não ter chegado em Ngozi.
— Que história é essa? Nala? Nala! Ei!
Sem resposta. Nala está rígida e trêmula. Sua voz soa embargada ao perceber a silhueta
que seria de Anaya encolhendo e os olhos vermelhos se fixando nas costas de Ngozi. Ela se recusa
a acreditar ao mesmo tempo que deseja tirá-lo dali, em vão.
— Senhor... tem algo aí...
— Como assim tem... – a pergunta se perde quando Ngozi sente ser puxado para baixo e
some das câmeras.
— Não! Não! Solta ele desgraçado! Solta!!! – Nala grita desesperada enquanto esmurra
o monitor e ouve a luta entre vultos dentro do módulo. Tudo é escuridão, a não ser pelas barras
de luz indo embora na falta de gravidade, denunciando um frenético embate de rugidos abafados
e barulhos de alguém, Ngozi, batendo nas paredes, uma e outra vez.
— Estou indo! Estou indo! – insiste Anaya no fone ouvindo a luta e Nala gritando para
que a coisa o deixe em paz. E então silêncio. Ela chama por Ngozi, em vão.
— Cadê você? Cap? Anaya! – grita Nala no fone, em busca de seu amigo. O silêncio é
total até um baque na câmera assustá-la. É o rosto ferido de Ngozi pintando a tela. Seu corpo
flutua sem destino no módulo, liberando pequeninas bolhas de sangue enquanto pede ajuda quase
sem forças.
Anaya faz um esforço gigante para chegar o mais rápido possível. Seus braços e pernas
queimam do esforço de impulsão, mas rejeita a dor, pois chegar a Ngozi é mais importante que
tudo. E enfim chega.
— O que foi isso? Eu... mas que droga! – fala nervosa ao alcança-lo flutuando e ver os
arranhões, em quatro em seu rosto e braços, o uniforme está rasgado. Anaya o puxa com cuidado
para outro módulo, prende luzes em si e em Ngozi que gesticula desorientado.
— Calma. Você vai ficar bem. Ouviu? – fala Anaya não muito convicta, puxando-o e
chutando a gaveta onde está um kit médico.
— Eu vou aí! Eu vou ajudar!
— Não! Fica aí Nala, eu vou levar o Ngozi até você. E não abre a porta até ouvir a minha
voz. Entendeu?
— Sim, sim. Eu estou atenta – responde Nala entendendo o medo de Anaya.
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E finalmente um susto reconfortante. As batidas na porta são dela, a verdadeira junto com
Ngozi. Ela abre a porta e ajuda a puxá-lo para dentro.
— Minha nossa, o que foi isso? – pergunta Nala ao ver os ferimentos no amigo.
— Não podemos fazer um exame detalhado agora, mas ele... não têm fraturas, mostra
sensibilidade leve e... não cuspiu sangue. Isso é bom – fala Anaya ofegante e aliviada.
— Sim, sim. Isso é ótimo – responde Nala enquanto abre a caixa de primeiros socorros e
começa a cuidar do amigo. Agora que a adrenalina está baixando, Anaya sente dor no corpo todo
e se deixa flutuar, exausta, pensando no que podem fazer para que isso tenha fim. E adormece.
— Anaya, acorda...
— O que foi? Tudo bem, o Ngozi...
— Tudo bem. Ele acordou e dormiu novamente, cochilei também e nada. Ainda estamos
isoladas. Precisamos fazer alguma coisa para dar fim nisso, voltar para casa. Sei lá!
— Sim. Eu sei, precisamos... – nesse momento Anaya pensa em algo que pode dar certo.
— O que foi? Alguma ideia para retomarmos o contato?
— Não sei ainda. Cadê o traje de emergência?
— O traje? Ali na caixa de etiqueta azul. O que você está pensando? – pergunta Nala,
mas Anaya não comenta, apenas veste o traje apressadamente, olha algo no painel principal e diz
para Nala trancar a porta. Sai apressada.
— É a nossa chance, tem que dar certo, tem que... – repete para si mesma enquanto flutua
pelos módulos tentando não se enroscar em nada. Nala a vigia pelo monitor para avisá-la da
criatura em seu encalço.
— Você está indo para o mobe-carga? Você enlouqueceu? – pergunta Nala pelo fone.
— Ei! Estou indo atrás da sua caixinha sua droga viscosa! Vem me pegar! – grita Anaya
descendo o corredor o mais rápido que pode flutuar e então se detém, o eco de sua voz no vazio
da nave devolvem risadas a sua frente. São duas meninas, elas estão de frente uma para a outra,
batendo as mãos, brincando como ela costumava fazer quando era criança.
— Adoleta, le peti petecolá, les café com chocolá. Adoleta!
Anaya quase não respira, no escuro as meninas riem e apontam para ela, girando o corpo
de forma dura e inclinam suas cabeças de um lado para o outro em sincronia. Neste momento, a
astronauta percebe, os olhos... cada uma delas tem um olho vermelho, um direito e um esquerdo.
— Péssima ideia Anaya. Sai daí, sai daí... – insiste Nala.
— Não posso. Eu preciso chegar lá – responde baixinho, um pouco antes da luz da
escotilha lhe dar um vislumbre dos dedos alongados das meninas emitindo estalos, antes delas
flutuarem em sua direção, repetindo continuamente numa voz infantil ficando rouca.
— Você vai ser a nossa diversão!
— Não! Me larga! – grita Anaya ao tentar se desvencilhar das garotas. Ela chuta,
esperneia e percebe que elas não têm um rosto, só o olho e um furo na testa, que vê por causa da
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luminária e não pensa duas vezes, enfia a lanterna do seu braço nele com toda a raiva e força que
possui.
— Eu odeio! Odeio! Sai!!!
E funciona, a coisa grita, solta um rugido e solta a sua perna. Fica girando sem direção,
tentando tirar a lanterna da testa.
Essa deixa é o suficiente para Anaya flutuar num impulso forte e alcançar o minimódulo,
antes do mobe-carga.
— Eu consegui! – comenta ofegante antes de travar o capacete do traje e tatear a
mangueira de oxigênio. E então para bem na porta, a espera...
— O que você está fazendo? Fecha a porta! Anaya!
— Não posso fechar! Ele tem que vir atrás de mim.
— Você tá louca! Mas que droga você está fazendo aí?!
Anaya não responde, pega sangue do corte na mão e passa na caixa onde estava o boneco
do Tokoloshe. Ela quer atraí-lo e funciona. Ela vê as meninas vindo em sua direção e fundindo-
se a partir dos olhos num só corpo atarracado que flutua raivoso até Anaya.
— Droga Anaya! O que você está fazendo?
— Improvisando! – responde um pouco antes de olhar no relógio. A contagem regressiva
começa. O mobe-carga está se desacoplando para voltar à Terra.
— Fecha a porta! Fecha a porta! – grita Anaya antes do fone voar de sua cabeça ao se
atracar com a criatura novamente. Nala não pergunta e age imediatamente.
Anaya e a criatura brigam. O Tokoloshe tenta puxar seu capacete, mas ela resiste e segura
seu braço magro e forte, agora focado em sua mangueira de ar.
— Vai se ferrar no espaço! Desgraçado!
O momento certo chega e Anaya solta a caixa preta que flutua em direção ao círculo da
porta do minimódulo se fechando e vai parar no frio do espaço. Nesse momento, a criatura grunhi
alto e a sacode como uma boneca. A astronauta sente os solavancos antes de bater contra uma das
paredes e se segurar na rede de materiais do módulo. Mbogo estava certo, pensa, o objeto que
mantinha a criatura na nave se esvai e Tokoloshe resiste o quanto possível, parece que vai congelar
e desaparece como fumaça.
A válvula de acoplamento enfim se fecha e Anaya cai no chão do minimódulo. Ela e Nala
enfim podem respirar aliviadas. O pesadelo tem fim sem deixar vestígios, mas este detalhe agora
se torna o problema da equipe.
— Comunicação restabelecida – avisa a inteligência artificial da estação. As luzes
acendem e os computadores restabelecem sua normalidade como por encanto.
— Ei! Ngozi? Nala? Anaya? O que está acontecendo aí? Aqui é Mbogo. O que está
acontecendo? Perdemos contato!
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A voz do sub acorda o capitão Ngozi no susto e a luminosidade é um choque e alívio aos
seus olhos, assim como a visão do amigo no monitor que ele responde de imediato.
— Mbogo. É você? Que bom ouvir a sua voz. Vivemos um pesadelo aqui... – o relato é
interrompido pelo capitão ao perceber que não possui um único corte em seu corpo inteiro. Como?
— Sumiu tudo? – indaga Nala perplexa, antes de chegar flutuando no último mobe. Não
faz sentido, mas se lembra de Anaya ao vê-la flutuando pela janela do último mobe.
— Anaya? Anaya! Acorda! – fala Nala ao sacudir a amiga astronauta que leva um susto
ao vê-la. Deu certo?
— A nave voltou! Estamos bem? – pergunta, antes de ouvir o absurdo.
— Ô, calma aí! Isso não pode ser! Aconteceu, bem aqui – insiste Anaya.
— Eu sei, eu sei, mas assim que sai do mobe principal, o Ngozi acordou com o Mbogo
gritando do outro lado e o que disseram foi isso, simples assim. E olha ao redor, cadê a prova do
que aconteceu aqui?
Anaya fica sem chão, mais do que poderia no espaço. Ela toca o traje e não há uma única
marca, amassado, arranhão, nada de nada. O comando em terra informa que apenas os viu indo
para lá e cá, não receberam nenhuma informação de problemas no sistema e sem resposta, a equipe
cogitou solicitar apoio médico da estação internacional.
— Mas e o que Mbogo nos disse? Ele não quer confirmar? É isso?
— Anaya, ele disse... que não escreveu mensagem alguma, até a mensagem sumiu do
sistema. Mas ele acredita firmemente que levaremos tudo o que somos, nosso bem e mal, todos
os mundos que nos atravessam para além das estrelas. Não duvida nem um pouco disso.
E em algum lugar...

| Experimento n. T: concluído |
| Status: comprovado |
| Avaliação: 100% provável|

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