Você está na página 1de 81

REVISTA PROTEÇÃO INTEGRAL

JULHO/2023
REVISTA PROTEÇÃO INTEGRAL

JULHO/2023

Diretoria 2021/2023
Presidente: Raul Augusto Souza Araujo
Diretor de Relações Institucionais: Afonso Armando Konzen Diretora de
Comunicação: Dora Aparecida Martins
Diretor Financeiro: Marcelo Lucena Diniz
Diretora Administrativa: Maria Cristina Vicentin.

Conselho Consultivo:
Ana Maria Villa Real Ferreira Ramos, Ana Paula Motta Costa, Débora Maria de Souza
Paulino, Eduardo Rezende Melo, Flávia Martins de Carvalho, Isadora Brandão Araujo
da Silva, Juliana Rocha Dalecio Feliciano, Márcio Rogério de Oliveira.

Conselho Fiscal:
Antônia Lima Sousa, Osmar de Souza Araujo Filho, Glicia Thais Salmeron de Miranda.

Coordenação da Revista Proteção Integral


Editora-chefe: Débora Maria de Souza Paulino
Editor@s Assistentes: Dora Aparecida Martins, Maria Cristina Vicentin, Raul Augusto
Souza Araújo.

Conselho Editorial:
Afonso Armando Konzen, Ana Paula Motta Costa, Ana Maria Villa Real, Andrea
Guerra, Assis Oliveira, Cláudia Catafesta, Dora Aparecida Martins, Eduardo Rezende
Melo, Flávia Carvalho, João Batista Costa Saraiva, João Bosco dos Santos Baring,
Maia Aguilera, Márcio Rogério de Oliveira, Maria Cristina G. Vicentin, Mirela Monteiro,
Raul Augusto Souza Araújo.

Projeto Gráfico e diagramação


Léo Duarte
REVISTA PROTEÇÃO INTEGRAL

ÍNDICE
JULHO/2023

Editorial

Garimpo na Amazônia: A Ganância que Devora o Mundo 01


Por Débora Paulino e Dora Martins

Artigos

Os Povos Indígenas e o Estatuto da Criança e do Adolescente: dos 03


usos assimilacionista à proteção plural
Por Assis Costa Oliveira

Direitos das indígenas crianças em disputa[12] 13


Por Maia Aguilera Franklin de Matos

Entrevistas
CASÉ – “A história do nosso povo é de muita resistência e de muita 41
re-existência espiritual da nossa Cultura”
Por Raul Araújo com transcrição de Ériko Carvalho

ÁNGEL – “Há que se respeitar os direitos que são fundamentais, 47


especialmente o direito de participação da infância nas tomadas
de decisões que lhes dizem respeito”
Por Débora Paulino

LURDELICE – “A luta pelo espaço de liderança feminina e para que 54


meninas indígenas possam realizar seus sonhos”
Por Débora Paulino

ROSALBA – “Os desafios do mundo globalizado e a manutenção 56


da identidade indígena”
Por Raul Araújo

Jurisprudência

STF - “Criança indígena” E “Direito” 61


MEDIDA CAUTELAR NA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
709 DISTRITO FEDERAL - RELATOR : MIN. ROBERTO BARROSO, decisão em 31/03/2022.
STJ - “Criança indígena” E “Direito” 62
STJ. AgInt no AREsp n. 1.688.809/SP, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda
Turma, julgado em 26/4/2021, DJe de 28/4/2021

STJ - “Estatuto da Criança e do Adolescente” E “índígena” 63


STJ. REsp n. 1.698.635/MS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
1/9/2020, DJe de 9/9/2020.

TRF1 - “Criança Indígena” E “Direito” 66


TRF1. AC 1000067-94.2017.4.01.4200, JUIZ FEDERAL EMMANUEL MASCENA DE MEDEIROS,
TRF1 - QUINTA TURMA, PJe 25/04/2022 PAG.

TJAM - Crianças Indígenas 67


TJ-AM Agravo N. XXXXX20178040906 AM XXXXX-46.2017.8.04.0906, Relator: João Mauro
Bessa, Data de Julgamento: 29/01/2018, Conselho da Magistratura

TJDF - “Estatuto da Criança e do Adolescente” E “Indígena” 68


TJDF. Apelação. Acórdão 1206293, Processo nº 00082626920168070013, Relator: FÁBIO
EDUARDO MARQUES, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 02/10/2019, publicado no PJe:
15/10/2019

TJPR - "Criança indígena" E "Direito" 68


TJPR - 11ª Câmara Cível - 0001444-97.2015.8.16.0171 - Tomazina - Rel.: JUÍZA DE DIREITO
SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU LUCIANE DO ROCIO CUSTÓDIO LUDOVICO - J.
29.11.2020

TJPR - “Estatuto da Criança e do Adolescente” E “Indígena” 69


TJPR - 11ª Câmara Cível - 0003749-91.2021.8.16.0123 - Palmas - Rel.: DESEMBARGADOR
SIGURD ROBERTO BENGTSSON - J. 01.08.2022

TJSC - “Adolescente Indígena” E “Direito” 69


TJSC, Agravo de Instrumento n. 0000383-22.2019.8.24.0081, de Xaxim, rel. Maria do Rocio
Luz Santa Ritta, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 04-06-2019

A Voz e a Vez da Criançada

Fazendo Arte: Infância Indígena 70


Revista publica desenhos de crianças mostrando violações à natureza e pessoas armadas
em São Gregório, México. E poema de Flávia Martins de Carvalho

Espaço d@s Associad@s

Direitos da criança e do adolescente: promovendo a interface entre as 74


tecnologias e o Direito Infantoadolescente
Livro "Direitos da criança e do adolescente: promovendo a interface entre as tecnologias e
o Direito Infantoadolescente" foi lançado por Marcelo de Mello Vieira. Aborda a relação
entre as novas tecnologias e o campo jurídico, com reflexões interdisciplinares. Disponível
no site da Editora D´Plácido.
EDITORIAL
Garimpo na Amazônia: A Ganância que Devora o Mundo

Por Débora Paulino e Dora Martins

“O pensamento dos brancos é outro. Sua memória é engenhosa, mas está enredada de palavras
esfumaçadas e obscuras. O caminho de sua mente costuma ser tortuoso e espinhoso. Eles não conhecem de
fato as coisas da floresta. Só contemplam sem descanso as peles de papel em que desenham suas próprias
palavras. Se não seguirem seu traçado, seu pensamento perde o rumo. Enche-se de esquecimento e eles
ficam muito ignorantes.”

Extraiu-se a epígrafe do volumoso e belo livro “A Queda do Céu, Palavras de um xamã Yanomami”. Davi
Kopenawa, xamã e voz do povo Yanomami, pediu ao antropólogo francês, Bruce Albert, seu amigo, que
desenhassem em nossas peles de papel suas palavras, pois, como disse: ”gosto de explicar essas coisas para
os brancos, para eles poderem saber”.

Por Débora Paulino e Dora Martins


Pois bem, nos últimos anos, Davi Kopenawa escreveu esse livro e vem oficiando, gritando, explicando,
pedindo, solicitando ao governo brasileiro, e a todos nós, que é preciso estancar o horror, acabar com a
vergonha e parar a matança de seu povo. Em especial, após a pandemia da Covid e até agora, nas terras
yanomami, só há desolação e morte.

Os yanomami estão por aqui há mais de mil anos, portanto, séculos antes da chegada dos brancos. E,
atravessaram os 500 anos, desde a chegada dos ditos civilizados, resistindo a toda ordem de mazelas, vírus,
maldade, atrocidades, desrespeito e violência. Em 1992, pós constituição, com o novo Brasil do estado de
direito, no dia 25 de maio, os yanomami obtiveram uma lei a seu favor: o decreto que homologou a
demarcação da Terra Indígena Yanomami, nos Estado de Roraima e Amazonas.

Portanto, além de donos originários das terras brasilis, os yanomami, desde 1992, tem o direito legal a um
determinado e demarcado território. E, ainda, assim, tudo continua no mesmo compasso de horror. Vale
lembrar que, já naqueles idos de 1992, um pouco relevante deputado federal tentou veementemente barrar a
demarcação desse território. O tal deputado, Jair Bolsonaro, argumentava que a demarcação causaria
prejuízo à segurança do país, dizendo, ainda, não haver garantias de serem brasileiros os yanomami.

De 1992 para cá, os yanomami viram seu território ser objeto de disputa escusas e ilegais entre os que
exploram as riquezas da terra, os homens do garimpo.

Houve tempo em que o garimpo agia, às escondidas, umas poucas balsas roncavam e expeliam venenos nos
rios amazônicos e fuçavam a terra em busca de ouro e outras tantas riquezas. “Os brancos não entendem
que, ao arrancar minérios da terra, eles espalham um veneno que invade o mundo e que, desse modo, ele
acabará morrendo”

Nos últimos anos, a ousadia e a falta de vergonha ou a ausência do medo de repreensão dominaram. São
mais de 20 mil homens do garimpo fuçando a terra, espalhando mercúrio, matando homens, mulheres,
meninos, estuprando meninas, e dizimando um povo que sempre teve a missão de segurar o céu e impedir
sua queda. Os yanomami denominam a floresta de hutukara, formada pela queda de um antigo céu que a
tudo tragou e destruiu. O novo céu pode estar em queda, e tudo desaparecerá se não cuidarmos do planeta;
se não pararmos de ferir a terra, os bichos, meninos e meninas.

Notícias terríveis não param de chegar de lá.

01
No último ano, no território yanomami, morreram mais de 500 meninas e meninos, antes dos cinco anos de
idade por causas evitáveis: gripe, desidratação, verminose. O governo que se encerrou a pouco, esvaziou
completamente as estruturas de saúde que atendiam os indígenas em seu território. tudo chocante e dá
tristeza. Mas é preciso indignação e não deixar que tudo seja apenas notícia. Que tudo não fique nessas
Épalavras/desenhos aqui postos, para nosso boletim. Meninas e meninos morreram sufocados pelos vermes
que dominaram seus corpos e subiram em suas gargantas. Sufocaremos juntos se não cuidarmos deste céu,
em queda.

Para conhecer Davi Kopenawa, seu grito de atenção e pedido de socorro, vale ouvir o podcast “Casa Floresta,
diz muito quem escuta”, episódio 1. A entrevistadora trouxe Davi para visitar a cidade de São Paulo, sua
arquitetura, suas águas do rio Pinheiros e até a rua Oscar Freire, na qual ele identifica tanto ouro, nas vitrines,
ouro sujo de sangue.

Com essas reflexões e com essa pauta tão importante, inauguramos a Revista Prioridade Absoluta, uma nova
etapa do IBDCRIA, que pretende ampliar os conteúdos e disseminação de informações sobre a proteção de
crianças e adolescentes.

E nada melhor do que tratar de nossas crianças originárias, que desde antes da chegada dos europeus na
América, já povoavam, brincavam e pretendiam exercer seus direitos. Porém, fato é que tais crianças até hoje,
passados mais de 500 anos, continuam sofrendo intensas violações de seus direitos, especialmente à vida, à
saúde, à educação, ao lazer. E pelo que compilamos nessa edição, muitas dessas violações são comuns não
só no Brasil, mas nos diversos pontos da América.

É por isso que precisamos voltar nossos olhos para elas. Precisamos reconhecer as imensas divergências
Por Débora Paulino e Dora Martins

existentes entre nossas crianças originárias e aquelas que são descendentes dos povos que vieram.
Desejamos enorme sucesso à Revista Prioridade Absoluta e que todas as crianças possam alcançar o
patamar de serem verdadeiramente protegidas.

Boa leitura!

02
ARTIGOS
Os Povos Indígenas e o Estatuto da Criança e do
Adolescente: dos usos assimilacionista à proteção plural
Por Assis Costa Oliveira

Introdução

Em 2023, celebramos os 20 anos da elaboração, no Brasil, da primeira proposição normativa de articulação


dos direitos de crianças e adolescentes com os direitos dos povos indígenas: a Resolução no. 91/2003 do
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Esta Resolução, elaborada no ano de entrada em vigência no Brasil da Convenção no. 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), com base no Decreto-Legislativo no. 143/2002, foi o primeiro movimento no
campo dos direitos de crianças e adolescentes de problematizar as formas de sua aplicação e interpretação

Por Assis Costa Oliveira


levando em consideração as “peculiaridades socioculturais das comunidades indígenas” (Conanda, 2003),
como indica o único artigo com conteúdo propositivo do documento.

O fato é que a relação histórica entre o campo jurídico-institucional dos direitos das crianças e o das
“peculiaridades socioculturais” dos povos indígenas e de seus direitos coletivos, foi alimentada por
polarizações de direitos (direitos das crianças vs. direitos indígenas) e incompreensões mútuas que
fomentaram a reprodução de lógicas assimilacionistas de conceber o atendimento das indígenas crianças.

Desde 2009, quando passei a pesquisar, dialogar e aprender sobre os direitos das indígenas crianças, venho
acompanhando os dilemas, conflitos e inovações que o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), isto é, a rede
de serviços de promoção, proteção e controle social dos direitos de crianças e adolescentes, tem tido que
lidar, sobretudo no âmbito nacional, junto ao Conanda, e municipal, em diferentes regiões do país.

Acompanho e, ao mesmo tempo, busco me distanciar criticamente destes cenários, procurando avaliar as
formas discursivo-interventivas propostas e os impactos gerados[1]. Isso me possibilitou o entendimento de
que existem modelos ou padrões de usos discriminatórios dos direitos das crianças com as indígenas
crianças, assim como formas mais adequadas de lidar com tais sujeitos e seus grupos étnicos, reunido em
um campo conceitual do que venho denominando de Doutrina da Proteção Plural (DPP). Trata-se,
materialmente, de um movimento coletivo de denúncia dos usos discriminatórios e de anúncio de outras
possibilidades de conceber e efetivar os direitos das indígenas crianças.

Em suma, nesse artigo pretendo, em um primeiro momento, sistematizar as três formas de uso
discriminatórios dos direitos de crianças e adolescentes, historicamente fundadas e ainda hoje reproduzidas
no atendimento das indígenas crianças, e, em um segundo momento, analisar o caminho entreaberto da DPP
e das iniciativas em curso.

Três usos assimilacionistas dos direitos das crianças com os povos indígenas

Na dinâmica de atuação do SGD, cada vez mais se tem percebido o déficit de formação e qualificação
profissional dos/das agentes para saberem lidar com as situações e os sujeitos existentes no cenário da

[1] Sobre isso, conferir os seguintes trabalhos: Oliveira, 2014, 2016, 2018, 2019, 2020, 2022a e 2022b.

03
diversidade cultural indígena, seja porque acabam reproduzindo estereótipos discriminatórios em suas
condutas; ou porque desconhecem a gama de direitos coletivos destinados aos povos indígenas, os quais
também repercutem diretamente em suas crianças e na forma de conceber e concretizar os seus direitos;
assim como, excluem ou restringem a possibilidade de representantes dos povos indígenas participarem dos
espaços de tomada de decisão sobre as situações atendidas.

Com isso, tem-se um cenário de atendimento institucional às indígenas crianças com, pelo menos, três
espectros de justificação e manifestação dos usos discriminatórios dos direitos das crianças:

Uso legalista: materializa-se na interpretação dos direitos das crianças apenas com apoio na pretensa
literalidade normativa existente (e, por vezes, no apelo à intenção do legislador), atribuindo o caráter
diferenciado dos direitos das indígenas crianças apenas àquelas normativas que expressamente os
definem, sobretudo nos campos de adoção, educação e saúde[2]. Com isso, tratando todas as outras
situações sociais pela interpretação literal dos direitos das crianças, desconsiderando as condições
socioculturais de socialização das indígenas crianças ante a primazia do cenário universal e/ou padrão de
“ser criança”, e tratando-as num plano unicamente individual.
Uso vitimizador: há o reconhecimento das especificidades culturais das indígenas crianças, mas apenas
naquilo que justifique a valoração do grau de vulnerabilidade ou de risco às suas vidas, como nos casos
de epidemias de doenças, trabalho infantil, maus-tratos e infanticídio, de maneira a legitimar formas de
intervenção impositiva sobre os modos de vida dos povos indígenas e, em muitos casos, chegando à
criminalização de práticas classificadas de “culturais” que estariam atentando contra a vida das crianças
valoradas em apartado às condições históricas de vida coletiva. Desse modo, produz-se um discurso de
imputação da causa para as situações de vulnerabilidade das indígenas crianças aos modos coletivos de
Por Assis Costa Oliveira

vida dos povos indígenas e, em última instância, ao “perigo” de manutenção de direitos indígenas que
atentariam contra os direitos das crianças.
Uso segregador: entendimento de que cabe à Fundação Nacional do Índio (Funai) a tutela[3] das indígenas
crianças e da resolução de seus problemas, seja porque se constrói o entendimento de que seria o único
órgão capaz de lidar com tal diversidade cultural, ou porque se interpreta que tais sujeitos não estariam
acobertados pelos direitos das crianças, mas sim pelas normativas específicas dos povos indígenas,
normalmente identificada pelo Estatuto do Índio (Lei nº. 6.001/1973), com desconhecimento de outras
normativas, como os direitos constitucionais e internacionais dos povos indígenas. Reforça-se a atuação
tutelar às indígenas crianças no órgão indigenista, de modo a isentar a rede de proteção de qualquer
responsabilidade ou atribuição de atendimento.

[2] O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8.069/1990) na atualidade apresenta uma explicita definição de medidas
voltadas às indígenas crianças no campo da convivência familiar e comunitária, mais especificamente no procedimento de
colocação em família substituta (art. 28, par. 6º). Ainda assim, normativas específicas no campo da educação (art. 210, par. 2º da
Constituição Federal, dispositivos específicos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e em resoluções específicas
sobre educação escolar indígena do Conselho Nacional de Educação) e da saúde (a partir do Decreto no. 3.156/1999, que
estabelece o subsistema de saúde indígena dentro do Sistema Único de Saúde), são, por vezes, acionados para reconhecer
direitos às indígenas crianças. Porém, veja que não menciono o direito internacional dos povos indígenas, pelo fato de, ainda
hoje, ser predominantemente desconhecido ou de pouca compreensão de seu uso na prática diária de atender as demandas
das indígenas crianças em relação à educação e saúde.

[3] A tutela ou a definição de um agente estatal para controle das decisões sobre indivíduos e povos indígenas está
juridicamente superada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, sob a égide dos artigos 231 e 232, sendo o
primeiro artigo (231) estruturador de uma nova forma de tutela, tal como observa Villares, “[n]ão [mais] aquela tutela do Direito
Civil, que substitui a vontade do representado, mas uma proteção ao índio, que tem regime público, na proteção dos interesses
e direitos coletivos” (Villares, 2013, p. 76), e que cabe ao Estado brasileiro como um todo, e à União especificamente quanto às
terras indígenas. O artigo 232 da Constituição Federal é ainda mais radical na disposição da capacidade processual dos povos
indígenas, que só subsiste se articulada à capacidade civil, ou seja, no reconhecimento do direito de domínio pleno de seus atos
civis, devido à condição de “ser indígena”. Sobre o assunto, também consultar: Araújo (2006); Baniwa (2006); e, Marés (2012).

04
Em todos os casos descritos acima, o não-dito dos usos discriminatórios dos direitos das crianças para
tratamento das indígenas crianças é a reprodução do fundamento colonial da assimilação[4] da diversidade
cultural aos valores sociais, morais e jurídicos da sociedade nacional, com consequente acionamento a
diferentes mecanismos de ação tutelar para fazer valer o imperativo hierárquico de tais valores.

Os horizontes tipológicos de intervenção institucional reproduzem, operacionalmente, os diferentes


elementos do gradualismo[5] de tratamento aos povos indígenas normativamente estabelecidos no Estatuto
do Índio[6] e ideologicamente presente desde a instituição do regime tutelar[7] no início do século XX.

No uso legalista, sobressai a perspectiva assimilacionista do indígena “integrado” que considera as indígenas
crianças iguais em direitos às demais crianças, porém com o uso de um valor-conceito de igualdade que
homogeneíza as diferenças culturais e enrijece (ou padroniza/universaliza) as formas de tratamento
institucional.

Nessa modalidade, as ausências de normativas específicas no campo dos direitos das crianças são vistas
como expressões positivas da “intenção do legislador” – a eterna vontade da norma ou do legislador[8] – de
reconhecer a plena integração das indígenas crianças no exercício dos direitos das crianças, desde que suas
diferenças culturais não se convertam em direitos diferenciados, ou quando adotadas assim apenas no
mínimo normativo já estabelecido, como uma condição transitória de diferenciação jurídica ainda necessária,
mas com prazo de validade da legitimidade para aplicação.

Por Assis Costa Oliveira


[4] Segundo Macagno (2014), o assimilacionismo do sistema colonial português dividiu-se entre um viés uniformizador, que
pretendia outorgar direitos políticos de forma imediata aos indígenas e aos negros residentes nas colônias portuguesas no Brasil
e na África; e, num assimilacionismo descentralizador, este que vigora ideologicamente ainda hoje, que adiou o exercício pleno
dos direitos políticos em nome de uma tutela dita “justa, humanitária e civilizadora”. Assim, “[a] aquisição de ‘valores culturais
portugueses’ era condição sine qua non para a incorporação de direitos de cidadania plenos. Mas a aquisição desses direitos
será, sempre, um objetivo virtual nunca totalmente realizado” (2014, p. 35). No imaginário atual do assimilacionismo, basta trocar
portugueses por nacionais, para compreender o senso comum discriminatório contra os indivíduos e os povos indígenas.

[5] O ideário da aquisição gradual dos valores culturais dominantes para reconhecimento dos indígenas como cidadãos iguais
aos não-indígenas, ao passo em que se desvencilham de seus valores étnicos. Para Macagno, “[o] gradualismo [...] foi o traço
mais saliente do assimilacionismo português. Na medida em que homens ainda não eram ‘iguais’, na medida em que a
assimilação total não estava consumada, cada um devia ocupar seu lugar num sistema hierárquico do qual todos faziam parte”
(2014, p. 41).

[6] Diretamente relacionado à gradação de consideração dos indígenas com base no grau de inserção na sociedade nacional,
presente no artigo 4º do Estatuto do Índio, com o seguinte texto: “Art. 4º Os índios são considerados: I - Isolados - Quando vivem
em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da
comunhão nacional; II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos,
conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência
comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; III -
Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que
conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura” (Brasil, 1973).

[7] O regime tutelar iniciou formalmente no Brasil com a instituição do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos
Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910, primeiro aparelho de governo estabelecido para gerenciar a relação dos povos
indígenas com distintos grupos sociais e o próprio Estado. Nesse caso, o discurso de proteção dos indígenas frente aos riscos de
contato com a sociedade nacional “manteria ao longo de toda a existência do Serviço a intenção de transformar os índios em
pequenos produtores rurais capazes de se auto-sustentarem” (Souza Lima, 1992, p. 159). Portanto, assentado num esquema de
transitoriedade da condição indígena que continuaria com o surgimento da FUNAI, sendo sintetizado no preceito de que “o
respeito à cultura indígena está subordinado à necessidade de integração e o estímulo à mudança (aculturação)” (Pacheco de
Oliveira e Freire, 2006, p. 131). Nesse paradigma, a tutela foi estabelecida com base na atribuição jurídica da capacidade civil
relativa dos indivíduos indígenas, condicionada ao grau de civilização, ou seja, de aquisição de valores e conhecimentos da
sociedade nacional, gerando o controle jurídico sobre os povos indígenas. De mais importante, é compreender que no regime
tutelar “[o] pensamento do tutelado, suas ações, crenças, alternativas e capacidade de julgamento são permanentemente
desautorizados, nas concepções do tutor, em sua diferença, já que se considera que eles sejam construídos com base em um
conhecimento imperfeito da realidade social em que devem se inserir” (Souza Lima, 2013, p. 785).

[8] Há tempos superadas no campo da hermenêutica jurídica, como bem aponta Streck (2007).

05
O uso vitimizador é, sem dúvida, o que mais se alastra na atualidade. Em tempos de disseminação dos usos
da categoria vulnerabilidade para justificar as condições desiguais de vida dos povos indígenas, sobretudo
com o avanço da inserção das políticas socioassistenciais nos territórios étnicos, as indígenas crianças não
estariam alheias aos riscos desta categorização e intervenção com intenções assimilacionistas.

Tal modalidade de aplicação dos direitos das crianças às indígenas crianças recupera o legado jurídico da
condição do indígena “em vias de integração”, estruturada na orientação ideológica da necessidade de um
crescente suporte institucional – externo e alheio aos povos indígenas – para a superação de vulnerabilidades
sociais vinculadas aos seus modos de vida. Um dos resultados práticos disso é o acirramento da dependência
do Estado para a produção de intervenções visando a melhoria das condições de vida, reduzindo a autonomia
dos povos indígenas na proposição/gestão de suas políticas.

Com isso, atribui-se às culturas indígenas, valoradas desde uma lógica estanque e atrasada, a culpa pelos
males que padecem as indígenas crianças, com a “melhor solução institucional” sendo, por vezes, a
separação das crianças de seu grupo étnico – por meio de adoções (i)legais ou acolhimentos institucionais –
e, em outros momentos, impositivas intervenções institucionais nas famílias e comunidades indígenas para
extirpá-las o “mau cultural” de que padeceriam, e que automaticamente ameaça a vida das indígenas
crianças. Em ambos os casos, tais condutas institucionais são atribuídas como medidas salvacionistas da vida
e da condição ideal de infância a ser ofertada às indígenas crianças, as quais necessitariam para a
sobrevivência física e o “aperfeiçoamento” cultural.

Por certo, esta perspectiva de tratamento dos direitos das crianças é notória pelo modo como manipula as
causas de afetação às condições de vida das indígenas crianças, restringindo a abrangência ao escopo dos
aspectos culturais dos povos indígenas e desconsiderando as injustiças sociais que lhe foram impostas no
Por Assis Costa Oliveira

passado e no presente – quiçá, para não atrever-se a questionar os/as agentes destas injustiças, entre os
quais estão incluídos as autoridades políticas e os empresários do agronegócio, dada, muitas vezes, as
relações de compadrio ou de proximidade afetiva e/ou ideológica que estes possuem com membros da rede
de proteção.

Por último, o viés segregador, ideologicamente conectado à condição assimilacionista do indígena “em
isolamento”. Aqui, a lógica colonial atua para justificar o encapsulamento das indígenas crianças à condição
étnica, encerrando-as numa atmosfera de reconhecimento identitário que as afasta dos direitos das crianças
e do atendimento pelos serviços da rede de proteção.

A força retórica e a forma institucional de isolamento são intencionalmente moldadas para relegar a outrem a
obrigação de atendimento às demandas das indígenas crianças: à Funai, de forma mais recorrente, e a outros
órgãos indigenistas, como o Distrito Sanitário de Saúde Indígena (Dsei), vinculado à Secretaria Especial de
Saúde Indígena (Sesai), com menor ocorrência. Assim, atribui-se a estes órgãos, e, sobretudo, a Funai, a
capacidade institucional de realizar um atendimento adequado, na exata proporção em que se alega as
incapacidades dos demais órgãos de atuar nos casos, quase sempre associado à argumentação de que,
sendo indígenas, estas crianças seriam alvos de uma tutela indigenista (onde aparece a condição étnica) que
lhes aparta da necessidade de atendimento por outros órgãos do SGD ou, quando feito por estes, somente se
houver uma intermediação “tutelar” pelo órgão indigenista.

Esta é a maneira mais simples de direcionar o dever de interculturalidade dos serviços da rede de proteção a
um ou alguns órgãos específicos, assumindo a diversidade étnica do “ser criança” desde que isolada dos
direitos das crianças e excluída da interculturalização da totalidade dos serviços. Ao final, não há
reconhecimento da diversidade como mandamento jurídico, mas como problema inconveniente que não
caberia no escopo ideal dos atendimentos e dos sujeitos a serem atendidos pelos serviços.

O que é importante considerar, depois da análise destas três vertentes, é que elas estão a ocorrer na
atualidade dos direitos das crianças, renovando as estruturas ideológicas do paradigma assimilacionista dos
povos indígenas sob uma capa discursiva de “aplicação” do paradigma da proteção integral. É por isso,
também, que suas identificações e críticas são tão difíceis, pois se reproduzem na boa intenção dos/das
profissionais ou no apego fiel à letra da lei, quando intenção e normativa não permitem a percepção dos

06
fundamentos histórico-culturais da colonialidade que forjam as estruturas e as formas de atuação, tornando o
uso dos direitos das crianças uma arma de subjugação, descaracterização e extermínio dos povos indígenas.

Historicamente, a ideologia colonial produziu classificações sociais hierarquizadas e discriminatórias dos


grupos humanos com base no marcado racial ou etnicorracial (Quijano, 2010), justificando ações de
extermínio, domínio e/ou exploração pelas sociedades coloniais/modernas/nacionais para com os povos
indígenas e outros grupos racializados. Forjada, inicialmente, com a invasão do território hoje chamado de
América Latina, a colonialidade se configura na estruturação da ideia de raça como um requisito naturalizado
de fundamentação das dicotomias hierarquizantes entre humanos e não-humanos, cabendo aos povos
alocados no último aspecto a valoração como “primitivos”/“objetos” e “naturalmente” inferiores aos sujeitos e
às sociedades europeias e, atualmente, estadunidense. Portanto, passíveis de transformação em “recursos”
para a exploração capitalista, a dominação científica e a intervenção normativo-estatal.

A colonialidade do poder inscrita na administração dos direitos das indígenas crianças se estrutura num
conjunto de discursos e práticas socioestatais assentadas na revitalização das classificações sociais coloniais
com base numa hermenêutica jurídica dos direitos das crianças que se alimenta e, ao mesmo tempo, fomenta
o caráter assimilacionista do tratamento dos povos indígenas. Isto ocorre seja isolando a etnicidade como
único requisito “especial” para tratamento das indígenas crianças ou manipulando-a para reconhecer as
especificidades culturais somente naquilo em que interesse ao agente não-indígena na produção de novas
formas de intervenção colonial nos modos de vida dos povos indígenas e nas maneiras como concebem as
infâncias indígenas.

Por Assis Costa Oliveira


As relações de poder daí resultantes consolidam uma aplicação dos direitos que desconhece ou desarticula
as possibilidades de leitura entrecruzada dos direitos das crianças com os direitos indígenas, por um lado, e
da ação socioestatal de maneira complementar ao protagonismo indígena e de suas instâncias
organizacionais nativas.

Além disso, as indígenas crianças possuem seus corpos, identidades, conhecimentos e interação social
inscritos numa variante de imaginário de menoridade que mescla os aspectos étnicos com os geracionais, de
pobreza (classe), gênero e, fundamentalmente, de raça, para lhes imputar uma negação e/ou repressão ainda
mais intensa de suas falas, participação e modos de vida. Portanto, são (ainda) vistas como menores por
serem crianças e por serem indígenas, dupla condição de reprodução histórica da ideologia da menoridade
[9].

Com isso, tornam-se alvos prioritários de políticas assimilacionistas travestidas de proteção de direitos, em
que a “correção” dos hábitos culturais ou a retirada das condições de “risco” caminha lado a lado com o
silenciamento de suas vozes, interesses e direitos coletivos, sobretudo ao direito de ser parte de um povo.

Caminhos entreabertos: a Doutrina da Proteção Plural e as iniciativas em curso

As iniciativas de resistência aos usos assimilacionistas dos direitos das crianças com as indígenas crianças
têm se avolumado nos últimos anos. Isso, em parte, se deve ao aumento da demanda dos povos indígenas
em acionar os diferentes serviços do SGD, em especial os de caráter judicial e socioassistencial, levando ao
estreitamento das relações e dos conflitos entre tais sujeitos/coletivos indígenas e os/as agentes dos
serviços. Por outro, é reflexo da ampliação da quantidade de egressos e egressas indígenas com formação
universitária, e que passam a disputar a inclusão laboral e a condução dos serviços. Por último, torna-se parte

[9] Neste ponto, similar ao proposto por Szulc (2018) na análise de como as políticas e serviços para as crianças lidavam com as
crianças Mapuche, na Argentina, em que a autora reflete como a categoria “situação de perigo” era utilizada para dissociar as
crianças Mapuche do ideal de infância, daí reinserindo-as na condição de menores, tornando-as objetos de controle social e
penal do Estado.

07
das reações dos próprios serviços à pressão social decorrente dos aspectos anteriores, gerando
possibilidades outras de conceber as normativas, o planejamento organizacional e a atuação com as
indígenas crianças.

O que tenho categorizado como proteção plural é uma proposta de alinhamento da teoria dos direitos das
crianças com a autodeterminação dos povos indígenas. Nisso, sobressai o entendimento da “proteção dos
direitos/sujeitos” como algo construído desde uma pluralidade de concepções culturais do que seria a
proteção, os direitos e os sujeitos, os quais estão imersos em relações de poder instituídos na colonial
modernidade, e que fundamentam a (in)capacidade de compreender e lidar com as diferenças culturais.

Ao propor uma mudança político-teórico da base principiológica dos direitos das crianças para o
princípio/direito da autodeterminação dos povos indígenas, o que se reivindica é pensar os direitos coletivos
dos povos indígenas como algo inerente à condição de sujeitos de direitos das indígenas crianças. Aspectos
como organização social, território, tradição e língua tornam-se condicionantes da produção sociocultural das
infâncias, dos seus direitos e, por certo, dos conflitos/violações que estão envolvidas.

Ao mesmo tempo, reconhece-se a capacidade própria dos povos indígenas de cuidar, socializar, educar e
proteger as suas crianças, com maior ou menor afetação pelas intrusões coloniais/modernas. E, nisso, de
pensar, também, a capacidade de apropriação dos signos, agentes e instrumentais não-indígenas que
produzem discursos e práticas sobre a “proteção das indígenas crianças”, tornando-os, assim, repertórios do
fazer política indígena, ainda que em processos internos complexos e, por vezes, contraditórios. Para além
disso, afirmar a autodeterminação dos povos indígenas no campo dos direitos das crianças exige o
reconhecimento dos “outros” serviços e agentes envolvidos na proteção de tais sujeitos, e que são parte da
organização social de cada povo, assim como dos sistemas jurídicos indígenas que estruturam outras formas
Por Assis Costa Oliveira

de regulação da vida e de resolução dos conflitos sociais, inclusive os que envolvem as crianças.

Assim, proponho um cenário de transversalização entre os mundos jurídicos que recepcionam as indígenas
crianças para possibilitar o intercambio hermenêutico de dispositivos normativos que consiga promover uma
nova interpretação dos direitos das crianças para melhor tratamento da diversidade cultural e,
consequentemente, dispor de ferramentas hermenêutico-normativas para a disputa pelo poder de
classificação e de gestão dos direitos.

Todo um campo de ressignificação das práticas institucionais da rede de proteção é entreaberto com a
emergência da transversalização dos direitos indígenas nos direitos das crianças, fundando o que denomino
de Doutrina da Proteção Plural. Mais do que um suporte teórico, esta outra perspectiva de compreensão dos
direitos das indígenas crianças objetiva escutar e aprender com as lições trazidas pelos povos indígenas
sobre os significados e os modos de cuidado com suas crianças, tanto quanto a possibilidade de tê-los
participando dos espaços não-indígenas de atendimento às crianças, para que seus modos específicos de
perceber e lidar com as situações – aparentemente identificadas como problemas sociais ou violações de
direitos – possa descortinar ferramentas de tradução intercultural dos direitos e das próprias instituições.

A DPP é um chamado à incorporação crítica da interculturalidade jurídica nos direitos das crianças, com a
centralidade atribuída à autodeterminação dos povos.

No cenário dos Direitos Humanos dos indígenas crianças, o princípio da autodeterminação dos povos é
instrumentalizado pela construção sociocosmológica da pessoa – do corpo e da infância – e pelo caráter
intercultural dos Direitos Humanos para garantir a afirmação diferenciada dos indígenas crianças no conjunto
de textos normativos nacionais e internacionais relativos aos direitos das crianças, de modo a sedimentar o
ideal de construção ou interpretação jurídica que antecipe o olhar sobre o contexto cultural e os direitos
indígenas antes de efetivar os modos de significação dos direitos das crianças, para que estes possam se
transversalizar naqueles. (Oliveira, 2014, p. 129).

É preciso renovar o questionamento sobre as concepções culturais de infância que são elaboradas ou
idealizadas nos serviços da rede de proteção, e os modos padronizados de atendimento universalista, para
trilhar o caminho da desconstrução dos paradigmas assimilacionistas atrelados aos direitos das crianças e a

08
reconstrução deste campo jurídico com suporte na inovação institucional e na valorização da autonomia e da
capacidade dos sujeitos, saberes e instituições indígenas. O que, de resto, não serve apenas para a mudança
do tratamento das indígenas crianças, mas para problematizar e disputar o lugar das diversidades do “ser
criança” nos direitos das crianças.

Esse lugar das diversidades do “ser criança” tem obtido, nos últimos anos, uma mudança substancial em
termos normativos e institucionais. O mais importante deles, em minha opinião, é a elaboração da Resolução
no. 181/2016 do Conanda, a qual estabelece um conjunto de diretrizes para a estruturação do atendimento
culturalmente adequado às indígenas crianças e às crianças de outros povos e comunidades tradicionais.

No artigo 3º desta Resolução, estão definidos os sete aspectos básicos que cada serviço do SGD precisa
conhecer e instrumentalizar, de modo a possibilitar com que se torna, efetivamente, culturalmente adequado
para o atendimento. São diretrizes cuja implementação depende muito mais de vontade (ou pressão) política,
do que de alocação orçamentária, pois se constituem, em sua maior parte, em mudanças no planejamento
organizacional dos serviços e na prática de seus/suas profissionais, mais do que de investimentos em
equipamentos e recursos humanos. A interculturalidade jurídica, neste ponto, cobra do Estado a tarefa de
alargar as possibilidades de interação com e participação dos sujeitos e coletivos indígenas para além do
momento em si do atendimento de cada caso individual, indicando a necessidade de construção de relações
entre indígenas e não-indígenas pautadas na confiança, no diálogo intercultural e no respeito aos direitos
coletivos dos povos indígenas.

O movimento da adequação institucional pela ótica da interculturalidade e da incorporação dos direitos

Por Assis Costa Oliveira


coletivos – como a autoidentificação e a participação – deve ser lido como um primeiro movimento
necessário para o enfrentamento dos usos assimilacionistas dos direitos das crianças. Tal movimento possui
um conjunto de outras medidas que vão da incorporação de profissionais da Antropologia nos processos
judiciais de colocação de indígenas crianças em família substituta, conforme estabelece o artigo 28, par. 6º,
do ECA, até, mais recentemente, a elaboração, pelo Conselho Nacional de Justiça, do Manual de Depoimento
Especial de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais, lançado em 2022, e que busca
discutir outras formas de escuta culturalmente adequada de crianças vítimas ou testemunhas de violência.

Um segundo momento que parte do primeiro, mas manifesta-se de forma independente, é o da inserção
laboral de profissionais étnicos nos serviços do SGD. No caso das políticas de educação escolar indígenas e
saúde indígena, isso já ocorre há mais tempo, com uma presença consistente de docentes indígenas e
profissionais indígenas de saúde – além de cargos próprios como o Agente Indígena de Saúde (AIS) e o
Agente Indígena de Saneamento (AISAN) – que passam a operar e a disputar a filosofia dos serviços por
dentro, ainda que em condições desiguais, na maior parte das vezes.

As políticas indigenistas de educação escolar e saúde, até por serem as mais antigas a atender as indígenas
crianças, podem, também, indicar possibilidades de arranjos normativos e institucionais culturalmente
adequados para serem utilizados por outras políticas públicas, como as do campo da assistência social,
justiça e policial. Digo isso especialmente por causa do arranjo destas políticas – em especial dos territórios
etnoeducacionais e dos Dsei – a partir da conformação territorial dos povos indígenas, o que faz com que seja
o Estado que tenha que se moldar às dinâmicas territoriais dos povos indígenas[10], e não o contrário. E, nisso,
a presença (crescente) de profissionais indígenas é fundamental para uma mudança da correlação de forças
internas em cada serviço, com maiores condições de produzir mudanças para fazer com que se tornem
culturalmente adequados de atender as indígenas crianças.

Para tanto, é necessário o avanço das ações afirmativas com recorte étnicorracial no campo laboral do SGD,
de modo a fazer com que todos os serviços definam uma reserva de vagas para representantes de povos

[10] A crítica a estas políticas indigenistas é de que estão concentradas nas regiões Norte e Centro-Oeste, tendo pouca
capilaridade de aplicação com os povos indígenas do Nordeste, Sudeste e Sul.

09
indígenas (e de outros povos e comunidades tradicionais) nos concursos públicos ou nos processos
simplificados de contratação, de modo a conceber a importância da qualificação dos serviços a partir da
inserção de tais profissionais, não apenas para o atendimento das “questões étnicas”.

Um terceiro movimento, também ligados aos dois anteriores, é o da transferência da administração dos
serviços para assegurar a autonomia dos povos indígenas. Assim como o movimento anterior, este está
concentrado nas áreas da educação escolar e da saúde, de forma preponderante, e com algumas iniciativas
do campo da assistência social a partir da estruturação dos chamados “CRAS Indígenas”, isto é, os Centro de
Referência a Assistência Social implantados em territórios indígenas ou que, mesmo fora deles, atendem uma
grande quantidade de pessoas e famílias indígenas.

Este último movimento tem fundamentação na Convenção no. 169 da OIT, a qual em diversos momentos[11]
estabelece a obrigação dos Estados nacionais de assegurar a transferência progressiva da responsabilidade
de execução de determinadas políticas públicas, com as de educação, saúde e indústria rural. O preceito
central é o do exercício da autonomia dos povos indígenas no gerenciamento dos serviços – isto em, em
todas as suas etapas, do planejamento ao monitoramento – sem que isto signifique desobrigação ao Estado,
o qual ainda mantém o dever do custeio.

Porém, esse é o movimento com menor avanço dentre os três indicados, devido as barreiras de ordem
burocrática, de cunho político e econômico, que dificultam ou impedem o avanço de iniciativas nesse sentido.
Ainda assim, as demandas dos povos indígenas continuam a ser a de garantir a totalidade das políticas
públicas de atendimento às indígenas crianças em seus territórios étnicos – independente de estarem ou não
demarcados e titulados – e fazer com que a interculturalidade nas políticas públicas seja também exercitada
no espaço urbano, onde residem milhares de indígenas crianças.
Por Assis Costa Oliveira

Considerações finais

Após 20 anos de publicação da Resolução no. 91/2003 do Conanda, a relação dos povos indígenas com o
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8.069/1990) e o campo mais amplo de gestão dos direitos das
crianças denominado de SGD, é ainda de uma transição turbulenta rumo à garantia dos direitos das indígenas
crianças.

A caracterização das três formas de usos discriminatórios dos direitos das crianças (legalista, vitimizador e
segregador) e os três movimentos de resistência embasados na proposição teórica da DPP, são, antes de
tudo, aspectos que operam menos de forma dicotômica, e mais relacional ou em circularidade no cotidiano
do atendimento do SGD. O mais importante, portanto, é termos consciência da necessidade de melhorar
nosso entendimento sobre a diversidade do “ser criança” entre os povos indígenas e dos seus direitos
coletivos, ao mesmo tempo em que precisamos estar dispostos a propor formas variadas de arranjos
institucionais e lógicas de atendimento pautadas nas dinâmicas locais de interação com os povos indígenas e
nos instrumentais criados (fluxos, planos, formação, comunicação etc.) para guiar a interculturalização do
atendimento.

Em tudo isso, é imperativo assegurar um monitoramento continuado nas práticas desenvolvidas pelo SGD
com as indígenas crianças, pois a transmutação dos serviços para a condição de culturalmente adequados
não é uma mudança de momento, mas de processo, sempre passível de condutas ambivalentes e que
reproduzam os usos discriminatórios dos direitos das crianças mesmo afirmando a proteção plural.

Por fim, o ano de 2023 inaugura uma esperança renovada na construção de novos horizontes de aplicação e
efetivação dos direitos das indígenas crianças. Nossa tarefa é contribuir com os povos indígenas na
construção de um futuro melhor para suas infâncias.

[11] Especificamente no artigo 22, inciso 3, no artigo 25, incisos 2 e 3, e no artigo 27, inciso 2, da Convenção.

10
Referências

ARAÚJO, Ana Valéria. Direitos indígenas no Brasil – estado da arte. Em: ARAÚJO, Ana Valéria (org.). Povos
indígenas e a lei dos “brancos”: o direito a diferença. Brasília: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional, p. 45-83,
2006. Disponível em:
<<http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/ColET14_Vias03WEB.pdf>>. Acesso em: 14 dez.
2009.

BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas
no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível em: <<http://www.laced.mn.ufrj.br/trilhas/>>. Acesso
em: 25 mai. 2014.

BRASIL. Lei No 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio). Brasília: Casa Civil, 1973. Disponível em:
<< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm >>. Acesso em: 26 dez. 2022.

CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (Conanda). Resolução No 91, de 23


de junho de 2003. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004. Disponível em: <<
https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-
da-crianca-e-do-adolescente-conanda/resolucoes/resolucoes-1-a-99.pdf>>. Acesso em: 26 dez. 2022.

Por Assis Costa Oliveira


MACAGNO, Lorenzo. Assimilacionismo. Em: SANSONE, Lívio; FURTADO, Cláudio Alves (orgs.). Dicionário
crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa. Salvador: EDUFBA, p. 31-44, 2014.

MARÉS, Carlos. O renascer dos povos indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá, 2012.

OLIVEIRA, Assis da Costa. Indígenas crianças, crianças indígenas: perspectivas para a construção da Doutrina
da Proteção Plural. Curitiba: Juruá, 2014.

OLIVEIRA, Assis da Costa. Violência sexual, infância e povos indígenas: Ressignificação intercultural das
políticas de proteção no contexto das indígenas crianças. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales,
Niñez y Juventud, v. 14, n. 2, p. 1177-1190, 2016. DOI:
https://doi.org/https://dx.doi.org/10.11600/1692715x.14220041115

OLIVEIRA, Assis da Costa. Reflexões sobre as consequências étnicas dos discursos protetivos. Justificando, 7
nov. 2018. Disponível em: <<http://www.justificando.com/2018/11/07/reflexoes-sobre-as-consequencias-
etnicas-dos-discursos-protetivos/ >>. Acesso em: 26 dez. 2022.

OLIVEIRA, Assis da Costa; VIEIRA, Driéli. Crianças Kaingang e as lógicas institucionais e étnicas de
atendimento na cidade de Maringá, Brasil. RUNA, archivo para las ciencias del hombre, v. 40, n. 2, p. 203-220,
2019. DOI: http://dx.doi.org/10.34096/runa.v40i2.6259

OLIVEIRA, Assis da Costa. Referências institucionais para a produção descolonial dos direitos das indígenas
crianças: os casos do trabalho infantil e da violência sexual. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v.
12, n. 24, p. 255-283, 2020. DOI: https://doi.org/10.14295/rbhcs.v12i24.11916

OLIVEIRA, Assis da Costa. As indígenas crianças e a Doutrina da Proteção Plural. Revista Direito e Práxis,
Ahead of Print, 2022a. DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2022/61154

OLIVEIRA, Assis da Costa. Crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais: direitos e


atendimento em perspectiva intercultural. São Paulo: Dialética, 2022b.

11
PACHECO DE OLIVEIRA, João; FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A Presença Indígena na formação do Brasil.
Brasília: MEC/SECAD; LACED/MUSEU Nacional, 2006. Disponível, também, em:
<<http://www.trilhasdeconhecimentos. etc.br/ livros/arquivos/ColET13_Vias02WEB.pdf>>. Acesso em: 22
jun. 2010.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa;
MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, p. 84-130, 2010.
SOUZA LIMA, Antônio Carlos. O governo dos índios sob a gestão do SPI. Em: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela
(org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, p. 155-
172, 1992.

SOUZA LIMA, Antônio Carlos. O exercício da tutela sobre os povos indígenas: considerações para o
entendimento das políticas indigenistas no Brasil contemporâneo. Revista de Antropologia, vol. 55, n. 2, p. 781-
832, 2013. DOI: https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2012.59301

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.

 ZULC, Andrea. Infancias y derechos indígenas en la Argentina: reflexiones desde la antropología. Revista de
S
Direitos e Garantias Fundamentais, v. 18, n. 1, 2016. DOI: https://doi.org/10.18759/rdgf.v17i2.792

VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2013.

Referências bibliográficas
Por Assis Costa Oliveira

Assis Costa Oliveira

Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre e graduado em Direito pela Universidade
Federal do Pará (UFPA). Professor da Faculdade de Etnodiversidade e do Programa de Pós-Graduação em
Direito e Desenvolvimento na Amazônia, ambos da UFPA. Membro do Núcleo de Estudos da Infância e da
Juventude do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da UnB.
E-mail: assisdco@gmail.com.

12
Direitos das indígenas crianças em disputa[12]
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

Ao som do maracá

Imagem 1

Por Maia Aguilera Franklin de Matos

[12] Esse texto foi feito a partir da dissertação de mestrado Etnocídios e Indígenas Crianças, defendida em data tal. Agradeço aos
comentários e observações da professora e parenta Márcia Mura, ao professor Assis de Oliveira e ao professor Samuel Barbosa
pelas observações feitas na banca de defesa. Ao professor Orlando Villas-Bôas Filho pelas observações na banca de
qualificação. Ao meu orientador, professor José Eduardo Faria. À minha mãe, professora Yanet Aguilera, pela revisão do
mestrado e do presente artigo, e pela minha irmã, Maria Aguilera Franklin de Matos, pela revisão do primeiro. Agradeço também
a Raul Araújo, presidente do Instituto Brasileiro dos Direitos da Criança e do Adolescente (IBDCRIA) pelas indicações e
contribuições ao longo desse processo.

13
Imagem 2

Ao som do maracá, no ritmo do Toré, acompanhamos Binho Tupinambá, no mini-documentário O Sal


Tupinambá , de Sebastian Gerlic. O curumim diz muito, com suas palavras e com seu corpo em movimento,
em interação com seus parentes. Vemos a criança de costas, de frente para um buraco no chão, deita e
abraça a terra do mangue, enfiando a mão e o braço todo na lama. Na sequência, ela está agachada de
cócoras, com as duas mãos no buraco, puxando a sua presa. No lado esquerdo da tela, lemos: "Mais de 6 mil
indígenas Tupinambá moram no Sul da Bahia. Até julho de 2008, não conseguiram a demarcação de
nenhuma parte de seu território". No fundo, a mão toda enlameada do menino. As palavras vão
desaparecendo e a mão enlameada e a terra fundem-se, formando uma composição monocromática.

Imagem 3
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

No próximo plano, vemos Binho em pé à beira do rio, ao lado da mata ciliar do manguezal. Seus movimentos
entre as plantas são uma dança, e a câmera capta imagens em que elas formam coroas e máscaras em torno
de seu rosto e peito. Enquanto ele fala, aparecem na tela o seu nome escrito e um outro curumim, que por
trás dele, mergulha no rio. Olha para câmera por um breve instante, antes de desviar o olhar, disfarçando. Os
movimentos seguintes do curumim são rápidos e precisos. Ele sai do canto direito da tela, dá a volta por trás
de Binho, se agarra às plantas, vai do rio para a terra e sai de cena. As crianças não se encostam, em perfeita
sincronia. Apesar de Binho ter continuado falando e gesticulando e não ter trocado olhares com o outro
curumim, logo que este deixa o quadro, ele encerra a sua fala, em perfeita sintonia. Na cena final, que
antecede os créditos, Binho aparece abraçado novamente à terra, sorrindo com uma "janelinha" nos dentes
de leite - ele deve ter cerca de sete anos -, e puxando o aratu de dentro da terra.

Imagem 4

14
Imagem 5

Imagem 6

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


[Toré]: Tupinambá parente de Pataxó
Parente dos Kiriri e também dos Guaiapó
Tupinambá parente de Pataxó
Tupinambá parente de Pataxó
Parente dos Kiriri e também dos Guaiapó
Parente dos Kiriri e também dos Guaiapó
(BRASIL TUPINAMBÁ, 2021, 3’00-3’26).

Os curumins são parentes, as plantas, o mangue e a terra são seus parentes. O povo Tupinambá pertence a
essa terra, eles vivem milenarmente na costa brasileira. "Saímos da floresta e descobrimos a imensidão clara
e cintilante do mar. Potiguar, Caeté, Tupiniquim, Temiminós, Tamoio, Tabajara, Tupinaé, traduzidos em único
nome: Tupinambá" (BRASIL TUPINAMBÁ, 2021, 1’00-1’30). Os Tupinambá literalmente descobriram este
continente há milhares de anos[13], como conta Núbia Tupinambá, da Aldeia Tucum:

.
Viemos lá do Oriente descendo pelo Estreito de Bering (...) E chegamos aqui.
Atravessamos e chegamos aqui no Brasil. (...) Nesse conhecimento fica muito mais
nítida a nossa consciência ancestral de que nós pertencemos ao planeta. O planeta
é nosso, a terra é nossa, porque a gente tava um pólo e veio pro outro, né

[Toré] Da Serra do Padeiro eu avistei o mar


Da Serra do Padeiro eu avistei o mar
Eu estou na aldeia
Aldeia Tupinambá
(BRASIL TUPINAMBÁ, 2021, 4'42-5'28).

[13] Para um resumo da história das origens do povoamento do continente ver CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 9-13.

15
O rio Doce, que está em coma por conta da lama da mineração, também é parente dos Krenak. Watu é avô
dos Krenak. O rio é um organismo vivo, fazendo parte de um sistema de vidas. Nessa região, tem uma
montanha rochosa - a aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio e de lá dá pra ver, na margem direita,
uma serra, que se chama Takukrak. Ela tem personalidade e é consultada diariamente pelas pessoas da
aldeia, para saber como vai ser o dia. Em caso de "não estou pra conversa hoje", é melhor ficar quieto. Mas se
ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando sua cabeça, o pessoal sabe que pode
fazer festa, dançar, pescar, o que quiser (KRENAK, 2019, p. 18).

Krenak conta a história da anciã Hopi que falava com uma pedra, que considerava sua irmã. Um pesquisador
gringo tinha vindo falar com ela, e o parente que o estava acompanhando o advertiu que não poderiam
interromper esta conversa entre a anciã e a pedra. Nos Andes, existem famílias de montanhas, com mãe, pai e
filhos, com as quais as pessoas se relacionam por meio de presentes, músicas e dança (2019).

Quando os povos originários se referem a um povo como 'uma nação que fica de
pé', estão fazendo uma analogia com árvores e florestas. Pensando as florestas
como entidades, vastos organismos inteligentes. Nesses momentos, os genes que
compartilhamos com as árvores falam conosco e podemos sentir a grandeza das
florestas e do planeta. Esse sentimento torna a mobilizar as pessoas para a ideia,
que já ficou banalizada, de proteger as florestas (KRENAK, 2021, p. 52).

Somos todos parte de um organismo, a Terra. Como lembra Ailton Krenak, a ciência provou que a Terra é um
organismo vivo, coisa que os povos indígenas já sabem há muito tempo. "Eu não percebo onde tem alguma
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é
natureza" (2019, p. 16-17). O Xamã Yanomami Davi Kopenawa reafirmou diversas vezes que a floresta está viva,
morada dos xapiri, dos rios, das plantas, dos animais, dos Yanomami.

"Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é morta e que ela
foi posta lá à toa. Quero fazê-los escutar a voz dos xapiri, que ali brincam sem parar,
dançando sobre seus espelhos resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram
defendê-la conosco?" (KOPENAWA; ALBERT, 2010, p. 65).

As culturas dos povos indígenas, milenares, estão conectadas à terra e são diversas entre si. Daí se entende a
importância da diversidade, já que a própria natureza é diferente em cada lugar do Abya Ayala. São povos
agarrados à terra como fala Ailton Krenak. No manifesto final da primeira Marcha das Mulheres Indígenas, que
reuniu em Brasília 2500 mulheres de 130 povos, no dia Internacional dos povos Indígenas em 9 de agosto de
2019, as vozes espalharam:

Território: nosso corpo, nosso espírito

(...)

Lutar pelos direitos de nossos territórios é lutar pelo nosso direito à vida. A vida e o
território são a mesma coisa, pois a terra nos dá nosso alimento, nossa medicina
tradicional, nossa saúde e nossa dignidade. Perder o território é perder nossa mãe.
Quem tem território, tem mãe, tem colo. E quem tem colo tem cura.
Quando cuidamos de nossos territórios, o que naturalmente já é parte de nossa
cultura, estamos garantindo o bem de todo o planeta, pois cuidamos das florestas,
do ar, das águas, dos solos. A maior parte da biodiversidade do mundo está sob os
cuidados dos povos indígenas e, assim, contribuímos para sustentar a vida na Terra
(CIMI, 2019).

16
Nossos parentes são o nosso povo e os outros povos, mas como filhos da Terra consideramos os outros
animais, as plantas, os rios, a chuva, os mares, as montanhas, nossos parentes, cada um com uma história e
uma cultura diferentes. É por isso que os lugares onde ainda há biodiversidade, coincide com os territórios
indígenas, de modo que são esses povos que de fato estão cuidando da saúde da Terra. A perfeita sintonia
de Binho Tupinambá com as plantas, a água e o outro curumim, em todas as suas movimentações, mostram
sua familiaridade com todos os seres, pois eles fazem parte da mata atlântica, daquele povo e daquela terra.

Isso também está expresso no lema da primeira Marcha das Mulheres Indígenas, - Território: nosso corpo,
nosso espírito, que estão conectados aos nossos territórios e toda a biodiversidade. Corpos coletivos, corpos-
territórios-espíritos (CIMI, 2019).

Nos dias 7 e 8 de agosto de 2020, as mulheres indígenas mobilizaram uma grande assembleia online com o
tema, “O sagrado da existência e a cura da terra”. No encontro foi escrito o "Manifesto das primeiras
brasileiras. As originárias da terra: a mãe do Brasil é indígena", em que consta:

Nós, Mulheres Indígenas, também somos a Terra, pois a Terra se faz em nós. Pela
força do canto, nos conectamos por todos os cantos, onde se fazem presente os
encantos, que são nossas ancestrais. A Terra é irmã, é filha, é tia, é mãe, é avó, é
útero, é alimento, é a cura do mundo.
(...)
Mulheres terra, mulheres água, mulheres biomas, mulheres espiritualidade,

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


mulheres árvores, mulheres raízes, mulheres sementes e não somente mulheres,
guerreiras da ancestralidade (ANMIGA, 2021).

Na visão dos povos indígenas do Abya Ayala, existem diferentes tipos de seres que têm o que se entende por
"espírito", no sentido de percepção, apetite e cognição. Além dos humanos, também são agentes subjetivos
os animais, as plantas, os rios, as chuvas, os raios, as estrelas, a Lua, o Sol, os deuses, os mortos. Às vezes
também os objetos e artefatos. Esses espíritos passam por "se ver como" pessoas, e, portanto, "serem"
pessoas, em certos contextos (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 43-44).

Os Yanomami utilizam a palavra utupë para se referir a essa força. Em A Queda do Céu, Davi Kopenawa e
Bruce Albert traduzem utupë por "Imagem" (Image, em francês):

Todo ente possui uma 'imagem' (utupë a, pl. utupa pë) do tempo das origens, que
os xamãs podem 'chamar, 'fazer descer e 'fazer dançar' enquanto 'espírito auxiliar'
(xapiri a). Esses seres-imagens ('espíritos') primordiais são descritos como
humanoides minúsculos paramentados com ornamentos e pinturas corporais
extremamente luminosos e coloridos. Entre os Yanomami orientais, o nome desses
espíritos (pl. xapiri pë) designa também os xamãs (xapiri thë pë). Praticar o
xamanismo é xapirimuu, 'agir em espírito', tornar-se xamã é xapiripuru, 'tornar-se
espírito'. O transe xamânico, consequentemente, põe em cena uma identificação
xamã com os 'espíritos auxiliares' por ele evocados (KOPENAWA; ALBERT, 2010, p.
610).

O fato da tradução de utupë, em yanomami, ser "imagem", em português, e não "espírito" ou então "alma"
indica que são conceitos diferentes, que não se equivalem. Os xapiri, junto com a floresta, são a verdadeira
natureza. Por isso a natureza é tão bonita, como sabem os Yanomami, diferente dos brancos que a acham
bonita sem saber por quê. "Os xapiri têm amizade pela floresta porque ela lhes pertence e os faz felizes"
(KOPENAWA; ALBERT, 2010, p. 476). E a destruição da natureza, por parte dos brancos, fará com o que os
xapiri percam suas casas. "Aí, furiosos, irão fugir para longe de nossa terra e os humanos ficarão à mercê de
todos os males. Os brancos não poderão fazer nada, mesmo com seus médicos e suas máquinas"\

17
(KOPENAWA; ALBERT, 2010, p. 476). Os xamãs fazem dançar os xapiri e eles fazem do seu peito sua morada.
Eles protegem a todos os Yanomami dos males que existem no mundo, mantendo o equilíbrio que possibilita
a floresta e a vida.

Para nós não existe nenhuma palavra a não ser a dos xapiri que nos defenda contra
os males que nos afligem. Tememos as fumaças de epidemia, os seres maléficos da
floresta e os feiticeiros inimigos. Ficamos apreensivos com a fragilidade do céu e a
proximidade do ser do caos Xiwãpiro. Receamos que a floresta seja rasgada pelas
grandes cheias ou que seja queimada pelas chamas do tempo seco. Temos medo
das onças, das cobras e dos escorpiões. Se todas essas coisas não existissem, não
estaríamos tão preocupados. No entanto, elas nos ameaçam o tempo todo e só os
xapiri são capazes de contê-las com valentia. É por isso que os xamãs trabalham
tanto pela gente de sua casa. (KOPENAWA; ALBERT, 2010, p. 508-509)

Estas culturas, milenares, consideram a terra fonte de vida - para se alimentar bem, ter água fresca,
compartilhar em comunidade, se conectar com o mundo e com a sabedoria dos ancestrais. Marshall Sahlins
pensa as culturas indígenas como economia da abundância (ref.). Esse também é o assunto da fala de Binho
Tupinambá, enquanto se move na sua dança conectada com todos os seus parentes, pois trata da questão da
alimentação fornecida pela natureza, pela comunidade e pelos conhecimentos ancestrais dos Tupinambá.
Binho nos diz que:
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

“No mangue, se a gente não tiver nada, não tem um anzol, a gente mata um aratu,
faz de isca, e aí pega uns aratu e aí, vai, na embarcação que aquele vizinho tiver. A
gente pega aquela embarcação, vai, desce rio abaixo ou então sobe rio arriba, pega
alguma coisinha e já dá pra gente se alimentar. Tendo um sal e a farinha, pronto! Já
tá tudo feito, não é, não? E rua, mesmo. Rua, rua, assim… Porque rua, aí, a gente só
come uma coisa se tiver dindin. Se não tiver isso, a gente morre de fome, passa
fome. E na roça não, a gente planta uma melancia, planta uma abóbora, planta o
feijão, planta uma cana, planta o abacate, planta uma manga, planta a banana. Como
lá na barraca, a gente já resolveu plantar lá tudo de novo, porque lá é um lugar
ótimo. Não tem abusação, não tem nada lá. E também é beira de mangue, assim ó,
igual é aqui. E aí, assim é mais melhor, porque lá, inté hoje, lá tem umas bananinhas
e é tudo uns carregos grandes, não é uns carregos pequenos assim, não. E na rua, a
gente não vai poder fazer um negócio desses, vai? E na roça a gente faz, planta, faz
o que pode. E assim, não pode fazer nada na rua. Porque roubar a gente não vai.
Fazer esses negócios, assassinar gente pra tomar dinheiro, a gente não vai. Então a
gente tem que se virar, né não? Roubar, tocar fogo em trem pra pegar aquela
pessoa e tomar aquele dinheiro a gente não vai. A gente tem que, ó, trabalhar, pra
ganhar aquele dinheiro, que aquela pessoa que a gente trabalhando pra ele e não
pagou. A gente tem que trabalhar em outro lugar que dá reggae né, não? E aí é isso.
Vai pegar mais um?” (O SAL TUPINAMBÁ, 2010).

A roça, para ele, é o lugar da potência. No mangue, o Tupinambá consegue se virar para comer, porque sabe
que pode usar o aratu como isca, sabe como encontrá-lo e pegá-lo. Com o vizinho arranja a embarcação,
pega o peixe e já tem como se alimentar. E também porque na roça se planta uma diversidade grande de
plantas e frutas. Na rua, a comida é mediada pelo dinheiro, pelo trabalho e pela abusação. Fica subentendido
que não tem como plantar a própria comida e que se depende desse esquema estapafúrdio. A explicação de
Binho de por que a roça é melhor que a rua é pautada principalmente no critério de como se come.

Quem come, será comido e quem é comido, comerá. Em 1992, Aparecida Vilaça publicou Comendo como
gente: formas de canibalismo Wari' (Pakaa Nova), a partir de sua leitura do conhecimento dos Wari' do Rio

18
Mamoré, de Rondônia, fronteira Brasil e Bolívia (WRIGHT,
http://www.anpocs.com/images/stories/RBCS/23/rbcs23_resenhas.pdf). No texto de apresentação deste
livro, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro escreve:

Dizer canibalismo, no mundo ameríndio, é dizer a relação entre sujeitos socialmente


determinados. Predação não é aqui produção, mas comunicação, troca, luta. E é por
isso que as relações de predação se constituem como essencialmente reversíveis e
recíprocas: aquilo que se come, comerá, quem come será comido. Instala-se um
jogo essencial de perspectivas, onde as posições de sujeito-predador (wari) e de
objeto-presa (karawa) circulam entre humanos e animais, Wari'e inimigos, vivos e
mortos. O ponto de vista cria, literalmente, o objeto, ao devorá-lo (VIVEIROS DE
CASTRO, 1992, p. XIV, grifo nosso).

Depois de se embrenhar na floresta, como de costume, Joaci fica com sede e resolve beber água numa
parte do rio que ele não conhecia. Escuta várias vezes uma voz alertando-o para que não bebesse água dali,
porque ali era onde a Onça bebe água. Ele olha em volta, pergunta quem disse isso, até culpa um sapo, que
só tinha coaxado. Resolve ignorar e beber. Sente-se cansado e acaba dormindo embaixo de uma árvore.

Imagem 7

Sonha com sua aldeia: está vazia, chama pela mãe, pelo pai e por seu irmão Ubirajara. Ninguém. Entra na
Por Maia Aguilera Franklin de Matos
maloca, que também parecia deserta. Mas, na rede de seu irmão, vê o rabo de uma onça. Cutuca a Onça com
a vara curta. Quando ela fala com ele, não lhe responde, pois o rio tinha lhe dado como segundo conselho
que não falasse com ela. Mas, acaba aceitando seu convite para jantar. Sentado em uma toalha com a Onça,
Joaci acaba por responder ao animal e se dá um curioso episódio. Ela lhe oferece suco de caium, bebida de
mandioca fermentada Assim que ele coloca a bebida na boca, a cospe porque o que sente em sua boca é
sangue. A Onça lhe oferece frutinhas e ele aceita, dando uma segunda chance a ela, mas logo as afasta com
nojo, porque o que vê e cheira ali são bolinhas de cocô. O que para ela era milho cozido, para ele era uma
cobra. Se eles veem tudo diferente, Joaci começa a se perguntar como a Onça o vê; resolve perguntar e ela
lhe responde: como um porco do mato, claro! O prato principal! Ela persegue-o, mas quando vai pegá-lo,
percebe um zíper nas costas dela. Abre o zíper e da pele da Onça sai seu irmão Ubirajara. Joaci acorda e
sente alívio, com sede, resolve beber água e, para sua surpresa, o que vê no reflexo do rio é uma onça com
um sapo na cabeça (STIGGER, 2015).

Onde a Onça Bebe Água é uma história de Verônica Stigger inspirada na obra de Eduardo Viveiros de Castro.
A forma como a história é contada e o formato do livro, com belas e grandes ilustrações de Fernando Vilela,
são acessíveis e convidativas para as crianças. Acrescente-se a isso a presença do cocô no lugar das

19
frutinhas, além de ser algo que é familiar a todas, torna-se uma questão central[14], já que envolve o processo
de controlar um impulso natural de prazer e alívio, dentro de um determinado contexto social. Para a criança
pequena, o cocô é uma obra e algumas até têm que dizer "tchau" a ela.

Imagem 8
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

O livro é também recomendável para todas as idades. Até porque os adultos também fazem cocô e já foram
crianças, embora eles não possam mais ir para a Terra do Nunca. Como Peter Pan explica a Wendy, João e
Miguel, "é porque os adultos não se lembram". Mas as crianças sim, e os povos indígenas também.

A história do menino e da onça, contada por Stigger e Vilela, trata de conhecimentos dos povos indígenas que
foram traduzidos pelos antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima[15] e retrabalhados em
dois conceitos principais: o perspetivismo ameríndio e o multinaturalismo (VIVEIROS DE CASTRO, 2015).

Os humanos, em condições normais, vêem a si mesmos como humanos e aos animais como animais. Ver
espíritos geralmente aponta uma alteração dessas "condições" - como é o caso do transe ou de outros
estados alterados de consciência ou doença. Os animais predadores e os espíritos, por sua vez, vêem os
humanos como animais de presa; já outros animais vêem os humanos como espíritos ou como animais
predadores. A Onça, por exemplo, vê o sangue como cauim e Joaci como um porco do mato, pronto para o
jantar.

[14] Essa ideia já aparece nas primeiras formulações da psicanálise. Conforme Sigmund FREUD, em "Três ensaios sobre a teoria
da
sexualidade", escrito em 1905 (2016).

[15] Segundo Viveiros de Castro, a antropologia deve conceitualmente aos povos que estuda. Ele propõe que, efetivando uma
rotação de perspectiva, se demonstre que os mais interessantes conceitos, problemas, entidades e agentes propostos pelas
teorias antropológicas enraízam-se no esforço imaginativo das próprias sociedades que elas pretendem explicar (VIVEIROS DE
CASTRO, 2015, p. 20). Desta forma, é importante ter em mente que tais conceitos foram trazidos ao debate acadêmico pelos
antropólogos, mas que eles pertencem aos povos indígenas, como a própria antropologia reafirma.

20
Caça e caçadora
Dor e curadora
Dores são professoras
E o que aprendi não foi à toa
(Caça e caçadora, Souto MC)

A capacidade de ocupar a "perspectividade", e de ser pessoa, a "personitude", é uma questão de grau, de


contexto e de posição, e não o que distinguiria a espécie "humana" das demais. Dessa forma, todos os seres
podem ser pessoas, e nada impede que qualquer espécie ou modo de ser o seja - nem todos são pessoas de
facto mas todos são de jure. Segundo Viveiros de Castro:

Pois se nem todos os seres existentes são pessoas de facto, o ponto fundamental
está em que nada impede (de jure) que qualquer espécie ou modo de ser o seja.
Não se trata, em sua, de um problema de taxonomia, de classificação, de
"etnociência". Todos os animais e demais componentes do cosmos são
intensivamente pessoas, virtualmente pessoas, porque qualquer um deles pode se
revelar (se transformar em) uma pessoa (2015, p. 45-46).

Trata-se não apenas de uma possibilidade lógica, mas ontológica. Nesse sentido, o conceito de "pessoa",

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


enquanto "centro de intencionalidade constituído por uma diferença de potencial interna", é anterior e
superior logicamente ao conceito de "humano" (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 44-47). Portanto, para os povos
indígenas importam as pessoas, e a ideia de humano ou mesmo humanidade tem outra raiz que não a
originária desta terra. Da mesma forma, utupë não equivale à alma, inclusive ela se traduz por "imagem". O
que é natureza, do ponto de vista de uns, pode ser a cultura do ponto de vista de outros.

Essas alterações das condições implicam que há pontes com o mundo dos espíritos, dos deuses, dos mortos
e dos animais. Os próprios espíritos são a prova disso. Com os humanos, muitas vezes as pontes acontecem
no momento do sonho ou do transe espiritual, que pode envolver usos ancestrais e religiosos de plantas,
cascas de árvore, veneno de sapo, raízes e flores, que mudam a frequência da consciência[16]. Foi o caso de
Joaci, que encontrou com a Onça em sonho, constatando que a onça e ele próprio veem as coisas diferente,
e que, então, era possível que ela o visse diferente, como realmente acontece – ela o vê como um porco do
mato. Para a Onça, ela própria é "humana"[17]. Momentos antes de Joaci acordar, quando a Onça está prestes
a pegá-lo, sai de dentro da pele da onça Ubirajara, seu irmão. O que Joaci não esperava era que ele próprio
tivesse virado onça, surpreendendo-se com seu reflexo no final da história. Lembremos que o Rio tinha
avisado que não se podia beber água ali, porque ali é Onde a Onça Bebe Água.

Outras vezes, as transposições de fronteiras podem indicar doença ou feitiçaria, que são tratadas pelos xamãs
ou pajés, que são as pessoas que têm a capacidade de caminhar entre essas fronteiras. Os grandes xamãs

[16] Se o uso de ayahuasca ou kampô são indígenas, isso não quer dizer que todos os povos indígenas, ou mesmo sua maioria,
façam uso da ayahuasca ou kampô. A aplicação da secreção do kampô entre os Katukina da Terra Indígena do Rio Campinas,
localizada entre as cidades de Cruzeiro do sul e Tarauacá, no Acre, é minimalista (LIMA, 2014, p. 91-2). No Brasil, existem mais de
305 etnias que falam ao menos 274 línguas diferentes, segundo o IBGE, censo de 2010, os povos indígenas são diversos e seus
sistemas de vida alimentam essa diversidade.

[17] "O motivo do perspectivismo é quase sempre associado à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um mero
envelope (uma "roupa") a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de
certos comutadores perspectivos trans-específicos, como os xamãs" (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.57).

21
são capazes de fazer dançar os espíritos, conseguindo proteger seus filhos e as pessoas contra seres
maléficos, assim como curá-los quando adoecem (KOPENAWA; ALBERT, 2010, p. 94). O encontro ou o
intercâmbio de perspectivas, processo perigoso, é uma arte política ou diplomacia. "Se o multiculturalismo
ocidental é o relativismo como política pública (a prática complacente da tolerância), o perspectivismo
xamânico ameríndio é o multinaturalismo como política cósmica (o exercício exigente da precaução)"
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 49-50).

A habilidade de cura dos xamãs foi o que fez com que Davi Kopenawa, quando era menino, parasse de
adoecer. Como os seres maléficos da floresta e os da epidemia não paravam de implicar com a criança, os
xamãs começaram a se cansar de trabalhar tanto para curá-la. Então, tomaram uma medida mais definitiva:
estenderam a imagem da criança numa tipoia yaremaxi, que é uma faixa de casca batida desta árvore, na
qual as mulheres yanomami levam seus filhos a tiracolo. Depois, esconderam sua imagem na casa do espírito
morcego. Na escuridão, os predadores, por mais que procurassem, não conseguiram encontrá-la. Foi assim
que o pajé Yanomami parou de ficar doente com tanta frequência (KOPENAWA; ALBERT, 2010, p. 96 e 617).
Ele conta que:

Assim faziam os antigos xamãs. Para protegerem as criancinhas das doenças, eles
às vezes também as escondiam na canoa do espírito anta. Sua própria filha cuidava
dos pequenos: lavava-os, ninava-os, brincava com eles enquanto navegava pelas
águas, longe dos seres famintos de carne humana (KOPENAWA; ALBERT, 2010, p.
96).
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

Para os Kayapó-Xikrin, do sudoeste do Pará, essa possibilidade de viagem do karon das pessoas deve ser
observada com cuidado com relação às crianças muito pequenas, pois nelas o karon está menos firme no
corpo, e pode se perder mais facilmente e não retornar. Por isso os Xikrin se preocupam em não deixar
crianças muito pequenas irritadas, porque quando irritadas, suas almas podem deixar o corpo, se perder e
não retornar (COHN, 2000; 2002). As crianças Kayapó-Xikrin têm livre acesso a todos os espaços da
sociedade, tudo observam e tudo ouvem, o que será restringido em sua vida adulta, como observou a
antropóloga Clarice Cohn. O trânsito irrestrito faz com que as crianças adquiram um saber que é só delas, que
as capacita para cumprir o papel de mensageiras entre as casas (2000; 2013). Este papel desempenhado
pelas crianças, dentro da economia política dos Kayapós, não deve ser pequeno.

Estas crianças tudo sabem, mas nada sabem. Tudo sabem porque elas tudo veem e tudo ouvem, elas têm
acesso a tudo; e nada sabem porque estão formando sua maneira de interpretar o mundo, conforme vão
experimentando. O conhecimento e as próprias crianças são muito valorizados pelos povos indígenas. As
crianças participam ativamente das questões das comunidades e de todas as atividades desenvolvidas pelo
seu povo. A participação ativa faz com que elas convivam com várias outras gerações. Há uma percepção e
reconhecimento da autonomia das crianças, da sua capacidade para escolher o seu destino. Aliás, as crianças
xikrin passam a aprender quando elas mesmas tomam a iniciativa, sentando-se para ouvir e olhar o que as
pessoas mais experientes estão fazendo (COHN, 2000; 2013). O conhecimento sobre a ponte espiritual do
karon do bebê e da primeira infância reverbera nas crianças maiores, porque estão experimentando e
aprendendo sobre o mundo.

O respeito pelo tempo da criança para aprender e pela sua autonomia também são partes das sociedades do
A’uwẽ Xavante, grupo Jê do centro oeste brasileiro, com quem conviveu a antropóloga Ângela Nunes, na
década de 1970. Ela descreve a cena das crianças e das mulheres em suas atividades no rio - lavando roupa,
louça, tomando banho e convivendo com a água. No verão, com as cheias do rio, as crianças pulam de uma
pedra e as menores decidem se vão e quando vão pular no rio, nunca sofrendo pressão das maiores. A mãe
que lava a louça no rio deixa a criança menor levar do jeito que pode, ainda que isso signifique que depois a
tarefa tenha que ser refeita (NUNES, 2002).

22
A valorização da autonomia e da voz ativa da criança nas sociedades indígenas têm a dimensão de sua
relação com a natureza, mesmo que cada povo tenha sua forma de entender e vivenciar o mundo. No caso
dos A’uwẽ Xavante, nas escola indígena, durante o horário de intervalo, as crianças mergulham no rio, e
voltam para a aula com os cabelos molhados (SILVA, 2002, p. 38). No mangue, fica nítido que a autonomia de
Binho Tupinambá tem relação com a autonomia do seu povo em poder se alimentar.
As formas de ver e viver o mundo em que ser pessoa antecede o ser humano, incluindo a criança, são das
sociedades que vivem em uma lógica voltada para a vida, como integrantes da natureza. São conhecimentos
ancestrais, milenares, altamente tecnológicos, de povos que hoje são os guardiões das florestas. Como diz o
Cacique Babau Tupinambá, da Serra do Padeiro:

Quando os português chegou aqui, nós já navegávamos, nós já fazíamos clonagem


de plantas, já fazíamos modificação de planta, domesticação de vários tipos de
plantas, para transformar planta venenosa em planta alimentícia. Então, isso é uma
alta tecnologia, feita com o conhecimento do dia a dia, que demorou milhares de
anos para alcançar essa tecnologia (BRASIL TUPINAMBÁ, 2021, 5’27-5’50).

Há milhares de anos que essa forma de conhecer começou com nossos ancestrais e, desde então, está
sendo construída de geração em geração, implicando inclusive no que significa ser criança para os povos
indígenas.

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


Essa é a história de Curumim, de O Sinal do Pajé, de Daniel Munduruku. Curumim está na idade de fazer o
ritual de iniciação de seu povo e se tornar um guerreiro, ritual que o torna um homem adulto. Ele e sua
geração, sobretudo os homens, estão vivenciando a questão do jovem ir para a cidade ou continuar com o
seu povo. Quando sua avó está fazendo panelas de barro, ele é capaz de perceber que essa atividade está
ligada com a origem do mundo, à qual o barro remete, e com a alimentação do seu povo, fazendo aflorar a
questão da tradição, que Curumim compreende, nesse momento, estimulado por sua avó (MUNDURUKU,
2017). Ele pergunta à avó sobre a cidade e a vontade dos jovens de irem para lá. Ela lhe responde que a
cidade tem luzes que nunca se apagam, como se fossem estrelas do céu. De longe, elas são belas, como a
cidade. Quando estamos diante do céu estrelado, podemos até desejar que a noite nunca se acabe. A avó de
Curumim acredita que os jovens conseguirão manter a tradição em qualquer lugar, mesmo na cidade
(ibidem). Curumim ainda elabora a problemática do sonho, em diversos momentos da história. É ouvido pela
comunidade. Quando ele se sente preparado e consegue dar resposta às suas angústias, em um local
sagrado, ele sente a tradição. No ritual de sua passagem de criança para a adulto, as lideranças se
posicionam como a avó de Curumim - compreendendo o papel da juventude de fazer uma ponte com o
mundo não indígena. E, "chegará o tempo em que os jovens indígenas irão para o mundo dos brancos. Com o
objetivo de pacificá-los" (MUNDURUKU, 2017)

É importante repetir que são conhecimentos milenares diferentes entre si, todos conectados com a natureza
em que estão inseridos, e isso, por si só, já explica a importância da diversidade, tendo em vista que no
próprio país sobrevivem biomas diferentes. Existem mais de 305 etnias no Brasil e mais de 175 línguas
originárias, o que nos faz um dos países mais multilíngues do planeta. Como diz Daiara Tukano,

Nossas línguas são território. Somos parte da caminhada de nossos avós: ocupando,
demarcando e declarando que esta Terra tem muitos nomes. Esta mata de tantas
matas tem muitas frutas, e as famílias de línguas indígenas são árvores de tronco
forte, com raízes profundas, que mesmo quando cortadas são capazes de rebrotar
(TUKANO, 2023).

Isso dá a dimensão da profundidade do enraizamento das culturas indígenas com a terra, da importância do
conhecimento da tradição, já que somos parte da caminhada dos nossos avós. Eles demarcam que essa terra
tem muitos nomes, que é habitada por muitos povos e que a diversidade cultural, que não está separada da
diversidade natural (essa divisão é uma concepção colonial) é a nossa verdadeira riqueza.

23
Imagem 9, Pata Ewan, o Coração do Mundo, Jaider Esbell
A Terra está viva e o mundo tem um
coração. O Pata Ewan , de Jaider Esbell,
tem um núcleo vermelho em espiral,
muitos bicos, muitos olhos, muitas
barbatanas, e muitas asas. Tem antenas,
tem folhas, tem penas, tem o mar e o céu
dentro dele. A intensidade do brilho dos
tons de azul, de laranja, de vermelho, de
rosa e de amarelo, que contrastam com o
amarelado do fundo, são o primeiro
indicador da vida e da magnitude da
beleza do coração do mundo. Ele está em
um movimento composto por muitas
curvas, como se estivesse boiando em
uma atmosfera que parece ao mesmo
tempo gelatinosa e livre. Pata Ewa é
formada pela diversidade de seres, que
compõem um espaço delicado e
acolhedor.

O Clube da humanidade
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

A ideia de que somos seres apartados da terra é absurda, como diz Ailton Krenak. Na verdade, "enquanto seu
lobo não vem, [nós] fomos alienados desse organismo que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele
é uma coisa e nós outra: a Terra e a humanidade" (2019, p. 16). Os lobos são as grandes corporações
espertalhonas que vão se apropriando da Terra enquanto as pessoas estão cada vez mais com a cara nas
telas, frequentando shoppings e produzindo lixo como forma de existência. Essa humanidade, apartada da
Terra, constitui um clube que exclui as outras espécies e é também seletiva entre os ditos seres humanos.

Os poucos povos que se mantêm conectados à terra, agarrados a ela, abraçados, deitados, que não a largam
de jeito nenhum, ou seja, os povos originários e os povos tradicionais de todo o planeta, estão à margem
dessa humanidade, são considerados uma sub-humanidade, nas palavras de Krenak (2019).

Para serem aceitos no clube da humanidade, os povos indígenas deveriam se desgarrar da terra - deixar de
ser indígenas - e aderir a essa forma de vida que entende que a Terra é uma coisa e nós, outra. A concepção
de quem somos “nós” e a percepção das nossas raízes têm implicações na forma de se relacionar com os
“outros”. A relação com a terra é de pertencimento e vivência coletiva, e não de propriedade.

Muito embora o clube da humanidade se apresente como universal e inexorável, a forma de viver que o
acompanha é localizada geográfica e culturalmente, é histórica. Ele tem um marco de transformação nas
origens do capitalismo colonial na Europa, nos séculos XV e XVI, no chamado Renascimento - em que se
formam os Estados nacionais, as noções de público e privado, ocorre a Reforma Protestante e a chegada dos
europeus em Abya Ayala. Ele vai se consolidando e desenvolvendo, com o Iluminismo na Europa e seus
reflexos nas colônias, com o despotismo esclarecido de Marquês de Pombal no Brasil, simultâneo ao avanço
nos territórios de Pindorama.Na própria Europa, camponeses, mulheres, crianças, pessoas idosas, LGBTQIA+,
com deficiência, a maioria do povo, não tinham o mesmo lugar que os homens brancos nobres e
posteriormente burgueses.

De acordo com Philippe Ariès, a infância europeia foi construída a partir de dois sentimentos. O primeiro, nos
séculos XV e XVI, foi o de paparicação , quando houve uma queda da mortalidade da primeira infância, e o
bebê e a criancinha passaram a contar e despertar sentimentos de ternura e cuidados por parte das

24
cuidadoras das crianças. Logo esse assunto foi debatido nos salões das classes dominantes, incomodando os
chamados Moralistas, que defendiam que as crianças não deveriam ter tanta atenção, porque eram seres
imperfeitos que deveriam ser disciplinadas para que o valor potencial se realizasse quando se tornassem
adultas.. Assim surge o segundo sentimento de infância, que se consolida no século XVIII[18] , pelo qual fica
relativizada a posição da criança dentro da ideia de humanidade. Portanto, a ideia de infância e sua proteção
tem a dupla dimensão do cuidado e do controle.

Isso significou uma gradativa mudança no cotidiano das crianças, que passaram a ficar separadas dos
adultos, ao se criar mais as escolas, que durante a Idade Média eram apenas dos Escolásticos, que
pertenciam a setores de uma burguesia nascente que depois iria tomar o poder. Na Idade Média, as crianças
saíam de casa com nove anos para serem aprendizes de ofício, pajens ou fazer trabalhos domésticos em
casas de outras famílias. Os meninos da nobreza passaram a ser vestidos de forma diferenciada e a receber
tratamento diferente quando crianças, o que não aconteceu com as meninas. O reconhecimento da infância
para as meninas, no sentido de sua proteção, veio duzentos anos depois. Isso causa uma adultização das
meninas e infantilização das mulheres. Assim como as crianças, as mulheres também eram civilmente
incapazes, sendo tuteladas; por outro lado, as meninas de doze, treze anos de idade já se casavam e não
eram encaradas como infantes da mesma forma que os meninos. A própria forma de lidar com a sexualidade
das crianças mudou com os sentimentos de infância, assim como a própria noção de intimidade e
privacidade. Anteriormente, as crianças dormiam em camas coletivas, já que um mesmo cômodo dentro de
uma casa tinha várias funções.

A ética protestante e o espírito do capitalismo, que transformou o cotidiano das crianças e da população de

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


maneira geral, iniciou-se com a burguesia ascendente. Nos primeiros séculos, o conceito de infância não
alcançava os camponeses porque entre eles continuavam acontecendo atividades que passaram a ser
legítimas apenas para as crianças. Os camponeses faziam festas coletivas de celebrações dos ciclos da
natureza (como a colheita, o solstício etc) em que se dançava, cantava, tocava, comia, bebia, e se passava
muitas horas convivendo. Na Idade Média, todas as pessoas participavam dessas festas e também de
atividades que poderiam ser consideradas brincadeiras, como dança de roda, jogos coletivos, ainda que com
estamentos desiguais e em diferentes categorias[19].

É por isso que Davi Kopenawa diz que os napë, os brancos, "esqueceram que Omama os criou. Perderam as
palavras de seus maiores. Esqueceram o que eram no primeiro tempo, quando eles também tinham cultura"
(KOPENAWA; ALBERT, 2010, p. 251-2). A cultura como "as coisas que Omama nos ensinou e que continuamos
a fazer", a "cultura como continuar endo como eram nossos ancestrais" (ibidem, p. 640). Essa cultura está
ligada à terra e à natureza, que mesmo os brancos tiveram, no primeiro tempo [20] [21].

[18] Sobre a educação Iluminista, ver Elizabeth

[19] Havia alguns jogos em que só participavam os nobres, em que não podiam participar nem camponeses, nem crianças
(ARIÈS, 2014).

[20] O antropólogo Eduardo Carrara, em um artigo sobre a aprendizagem das crianças Xavante sobre os animais, lembra que
antes da invenção das ciências naturais não havia separação ou delimitação de fronteiras no pensamento e na prática concreta
do povos que compunham o que vai ser chamado de Europa entre o chamado "mundo natural" e o Homem (sic) (2002, p. 114).
"Antes da Revolução Industrial, por exemplo, na Inglaterra, segundo Keith Thomas (1988) havia uma vida rural inglesa intensa,
em que se observava e escutava os passarinhos, se conhecer as plantas e classificá-las de acordo com seus usos, viver com os
animais, como cavalos, porcos, galinhas e caçar nas florestas" (raposas, veados etc.) (CARRARA, 2002, p. 114).

[21] Antes de se consolidar esse entendimento, na época dos moralistas, a necessidade de controle dos corpos das crianças
chegou ao ponto da proibição de atividades físicas. A questão, entretanto, foi enfrentada com a instituição de educação física
nas escolas, legitimada pela própria questão militar.

25
O capitalismo impôs a ética de que a maior parte do tempo dos adultos deveria estar em torno do trabalho.
Porém, às crianças, que tinham direito à infância, estava permitido o acesso à música, à dança, ao teatro, às
brincadeiras de roda, aos contos de fadas, aos mitos, às lendas e às fábulas, a conhecer as plantas, os animais
e a natureza[22]. Atividades que depois na vida adulta viriam a ser realizadas apenas por profissionais da área
e restritas aos adultos[23]. A única das festas coletivas que sobreviveu foi o Natal[24]. Assim, o direito à
infância, aliado ao direito de não trabalhar desde criança nos moldes coloniais e capitalistas, nasceu na
Europa. Sobrevive também, como parte da educação, o direito à ancestralidade ou acesso à tradição
(MUNDURUKU, 2017) por meio da arte. Evidente que deve se lutar para que o direito à infância, se universalize
para todas as crianças.

Nos mesmos salões e espaços de debates da Europa, estavam em foco também os povos indígenas, recém
conhecidos pelos europeus. Como diz Helène Clastres, em um primeiro momento, prevaleceu a visão de que
os povos indígenas seriam selvagens, ou seja, diferentes ou desconhecidos na Europa. No século XVIII,
consolida-se a ideia de unidade da espécie humana e se começa a enxergar a diferença como um desvio
(CLASTRES, 1980). Se existem diferenças entre os povos seria por conta de distorções produzidas pela
diversidade de climas e que poderiam ser corrigidas por meio da evolução/etnocídios. Todos os povos viriam
a ser como os evoluídos ou desenvolvidos. Portanto, os povos indígenas passaram a ser encarados como
primitivos, visto que pararam a serem considerados a infância da humanidade (CLASTRES, 1980). Nesse
sentido, assim como as crianças europeias, os índios teriam um valor potencial quando evoluíssem e se
integrassem ou entregassem à sociedade colonizada/colonizadora.

Ou seja, para participar do clube da humanidade, os povos indígenas teriam que deixar de ser indígena,
abandonar sua memória ancestral, para supostamente se dissolver na sociedade. Isso é exatamente o que
Pierre Clastres chama de etnocídios : matar os povos em seus espíritos, em suas culturas, enquanto
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

concepção coletiva de vida (2004), que abarca a ideia de compartilhamento com outros seres vivos e outras
presenças, todas filhas da terra. Segundo Clastres, o conceito de etnocídio veio dos etnólogos europeus,
especialmente o francês Robert Jaulin, porque as morte causadas pela colonização era tão profunda e
devastadora que o conceito de genocídios não era suficiente [25] .

É importante entender que o debate dos europeus acerca da natureza dos povos indígenas e a sua possível
pertença ao clube da humanidade sempre esteve nos discursos para justificar os genocídios e etnocídios.
Uma das estratégias era apresentá-los como se fossem dois fenômenos alternativos ou opostos, genocídios
ou etnocídios, para ocultar que elas fazem parte de um mesmo sistema, e são praticados simultaneamente.

Vemos essa dualidade nos argumentos de colonização das Américas pela Coroa Espanhola, pouco tempo

[22] Antes de se consolidar esse entendimento, na época dos moralistas, a necessidade de controle dos corpos das crianças
chegou ao ponto da proibição de atividades físicas. A questão, entretanto, foi enfrentada com a instituição de educação física
nas escolas, legitimada pela própria questão militar.

[23] Aqui se fala no projeto do capitalismo colonial, mas é importante ressaltar que ele nunca se completa.

[24] Philippe Ariès diz que o Natal não era tão importante anteriormente, tendo em vista que era muito próximo da Festa de Reis
(25 de dezembro e 6 de janeiro). Para a verdadeira história do Natal, pré-cristã, ver Eike Maravilha (ORIGEM…, 2012)

[25] O conceito jurídico de genocídio foi criado em 1946 no processo de Nuremberg, indicando uma criminalidade até então
desconhecida: o extermínio sistemático de um povo, resultado nefasto de um processo racista. Assim, o primeiro genocídio
registrado pela lei foi o dos judeus europeus, perpetrado pelos nazistas. Entretanto, como nota Pierre Clastres, as guerras
coloniais a partir de 1945 deram ensejo a acusações de genocídio contra as potências coloniais, mas "o jogo das relações
internacionais e a indiferença relativa da opinião pública impediram a instituição de um consenso análogo ao de Nuremberg:
nunca houve processos judiciais" (2004, p. 77-78).

26
depois da chegada de Colombo (1492), que não foi muito tempo depois da própria unificação do Estado
espanhol (1469). Nos século XVI, ocorreu durante dez anos uma discussão entre o "filósofo" Juan Guinés de
Sepúlveda e o frade Bartolomé de Las Casas, tendo seu ápice nos anos de 1550 e 1551 na cidade de
Valladolid, e por isso ficou conhecida como Controvérsia de Valladolid. Nessa ocasião, o lado dos genocídios
(Sepúlveda) criou o conceito de Guerras Justas (GUTIERREZ, 2014), que depois foi utilizado continuamente na
legislação do estado brasileiro, desde o período da Colônia até pelo menos o século XIX [26].

Sepúlvida defendia que a violência e o uso da força deveriam, inclusive, vir antes da evangelização como
método de submissão, "pois, uma vez dominados, era mais fácil e cômodo ensinar-lhes a doutrina evangélica,
mostrar-lhes seus erros e trazê-los à verdade cristã" (GUTIÉRREZ, 2014, p. 228). Já Las Casas argumentava
que as guerras contra os "índios" não só não eram convenientes como eram iníquas e contrárias à religião
cristã, e os indígenas deveriam ser convencidos a aderir à verdade europeia (GUTIÉRREZ, 2014, p. 228).
Debatia-se sobre a barbárie e humanidade dos índios [27].

Na dualidade colonial, Las Casas representa o lado dos etnocídios. De acordo com Pierre Clastres, os
primeiros sujeitos que praticam os etnocídios são justamente os missionários por meio da evangelização. O
ataque à espiritualidade coletiva é o método utilizado para a desagregação dos povos e tentativa de morte
das nossas culturas (2004). Os etnocidas têm uma visão adulto-indulgente de si, eles dizem e acreditam que
estão fazendo o bem. No Brasil, dos séculos XVI ao XVIII, só seríamos aceitos quando nossas almas fossem
ganhas para a Igreja Católica. Importante compreender que, desde então, esse processo de evangelização
nunca cessou como prática.

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


O segundo sujeito praticante dos etnocídios, mas não menos importante, para Clastres, é o Estado. Ele afirma
que a própria ideia de Estado Ocidental - unificação da moeda, pesos, medidas e, sobretudo, da língua - é
etnocida[28]. Investigando se o espírito dos etnocídios seria próprio de todas as organizações que ele

[26] No exame da legislação posterior à independência do Brasil, o ato mais importante, na visão de João Mendes Jr., é a Lei de
27 de outubro de 1831, que revoga as Cartas Régias de 1808, abolindo a servidão dos índios e considerando-os como órfãos,
para que se lhes apliquem as cautelas protetoras a que se refere a Ord. L. I, tit. 88. As Cartas Régias de 1808, ano em que a
família real portuguesa se instalou no Brasil, declaravam guerra aos índios bugres das províncias de São Paulo (Carta Régia de 5
de novembro de 1808), de Minas Gerais (Cartas Régias de 13 de maio e de 2 de novembro de 1808), determinando que os
prisioneiros fossem obrigados a servir por 15 anos os milicianos ou moradores que os capturassem. Trata-se de uma versão
daquilo que no século XIX foi chamado de Guerras Justas, que foram instrumentos de genocídios, sem mediações, dos povos
indígenas (MATOS, 2022, p. 132).

[27] Isso porque Sepúlveda criou dois silogismos com base em premissas aristotélicas de A Política. O primeiro: os bárbaros são
naturalmente escravos, os índios são bárbaros, logo, os índios são naturalmente escravos. O segundo: é lícito fazer a guerra
contra os naturalmente escravos para subjugá-los; os índios são naturalmente escravos; logo, é lícito fazer a guerra contra os
índios para subjugálos. As primeiras premissas de ambos os silogismos estavam consolidadas, tendo em vista a autoridade de
Aristóteles, então Las Casas foi pelo caminho de discutir a natureza da barbaridade ou humanidade indígenas: de que não se
poderia generalizar a palavra "bárbaro" nem usá-la indistintamente, pois haveria pelo menos três classes de bárbaros, ainda de
acordo com Aristóteles, e "nem todos os bárbaros carecem de razão, nem são servos por natureza ou indignos de se governar a
si próprios". Como os indígenas estariam entre aqueles que eram "acidentalmente bárbaros" (sic) ou seja, embora não tivessem
escritura podiam ser sábios, cordatos, prudentes e civilizados, não poderiam ser considerados naturalmente escravos e,
consequentemente, as guerras contra eles eram injustas, ilegais e iníquas (MATOS, 2022; GUTIERREZ 2014).

[28] O exemplo histórico utilizado é a formação do Estado francês. Como observa Bento Prado Jr. na introdução à obra
Arqueologia da Violência, o próprio Clastres era gascão, um dos povos que foi submetido pelos gauleses na unificação da
França,

27
identifica como Estado, conclui que apenas no capitalismo, sistema econômico sem fronteiras, o método de
morte das culturas é sem limites e que podem levar aos genocídios (CLASTRES, 2004). Etnocídio e genocídio
são duas faces da mesma moeda.

Esse sistema dual viola os corpos-territórios-espíritos dos povos indígenas, tem uma dimensão de
exploração e outra de morte. Mas, como o mundo não é binário, existe um meio do caminho entre esses dois
pólos, que é composto por várias formas de morte em vida - como o estupro[29], a escravidão, a tortura, o
cativeiro, o castigo, o sequestro, a vergonha, a negação, a contaminação, a epidemia xawara, os crimes e os
desastres ambientais.

Do ponto de vista jurídico, os etnocídios significaram que os membros dos povos indígenas, os "índios", só
seriam considerados cidadãos plenos quando se integrassem, individualmente, à "sociedade nacional" - ou
seja, à medida que deixassem de ser Tupinambá, Xucuru, Guarani, e se tornassem brancos. Enquanto
estivessem na infância da humanidade, os povos indígenas deveriam estar submetidos à tutela. Ela durou até
a Constituição de 1988.

Mas seus contornos ficam mais nítidos a partir do século XVIII por meio de três leis pombalinas, criadas a
partir das ideias iluministas e que foram transportadas da metrópole para a colônia, no Brasil. A Lei de 6 de
junho de 1755 determinava o fim da escravidão dos povos indígenas, mas que, entretanto, não permitia o
trânsito livre, condicionando a liberdade dos indígenas a sua submissão aos brancos. O Alvará de 4 de julho
de 1755 estimulava os casamentos entre indígenas e brancos. E, por fim, o Diretório dos Índios, no qual
constam noventa e cinco artigos escritos no mesmo ano de 1755, mas que só foram publicados em 1757.
Além de repetir ambas leis, as complementa com orientações minuciosas de como proceder no projeto de
ocidentalização dos povos originários.
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

A equiparação jurídica do casamento entre "índios" e brancos a casamentos entre pessoas brancas serve,
deste modo, para justificar que os filhos e filhas destes casamentos já não seriam considerados indígenas. Se
não são mais indígenas, ficava justificada a perda de seu direito originário à terra. O indigenato ou o direito à
posse originária da terra é reconhecido pelo Estado desde o Alvará Régio de 1o de abril de 1680, como diz
João Mendes Jr. em 1912[30]. Apesar do reconhecimento, este direito à posse permitiu que houvesse
pilhagem das terras indígenas (MATTEI; NADER, 2008), mesmo porque os instrumentos jurídicos que
legitimaram esse processo estão amparados nos etnocídios ou na ideia de que os povos indígenas vão
desaparecer, vão aprender a ser civilizados. Sem povos indígenas não haverá mais pessoas que tenham
direito à terra.

São estas as condições do clube da humanidade.

[29] A história dos estupros das mulheres indígenas na chegada dos portugueses é contada por João Mendes Jr. (2018, p .324). A
exploração sexual das mulheres indígenas no século XX, com a borracha na Amazônia, é descrita por Darcy Ribeiro (2013, p. 40;
MATOS, 2022, p. 105).

[30] Jamais o indigenato poderá ser confundido com uma posse sujeita à legitimação e a registro: o indigenato é um título
congênito, e na colonização é um título adquirido; o indigenato não é fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação,
como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem. Na frase do Alvará de 1º de abril de 1680, trata-se da "primária,
naturalmente e virtualmente reservada"; o indígena, além do jus possessionis, tem o jus possidendi, que é reconhecido como
direito congênito pelo referido Alvará (MENDES JÚNIOR, 2018, p. 349).

28
Indígenas crianças

Imagem 10, Crianças guarani e jesuítas. Parede da Escola Estadual Prof. Marina Cintra, São
Paulo, SP. Foto: Inaê Lima (2018).

A centralidade das indígenas crianças para o colonialismo tem


essa dimensão geracional como fruto da violação dos corpos
das mulheres indígenas e a formação do povo brasileiro, mas
vai além. A foto é da parede azulejada da Escola Estadual Prof.
Marina Cintra, de ensino fundamental, localizada na Rua da
Consolação, no centro da cidade de São Paulo. Nela vemos
duas meninas indígenas, guaranis, de cabeças baixas, com
livros nas mãos. Estão acompanhadas de um jesuíta, que
mantém a cabeça baixa e aponta para o livro de uma das
meninas, sugerindo que as está ensinando a ler. As cabeças
baixas das meninas indicam uma suposta submissão, a do
padre está associada à piedade cristã. Ao fundo, pequena, uma
igreja católica (MATOS, 2022, p. 103-104).

Uma obra que ainda passa essa mensagem ainda nos dias de

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


hoje nas paredes da cidade não estaria livre de intervenções
novas. Ao lado de uma das guarani, o desenho de um cachorro
e de uma cabeça feminina. Ela tem a pele laranja, cabelo preto
e liso, preso para o lado, seu olhar, duro, com a sobrancelha
esquerda levantada e o sorriso dá a noção de que ela sabe das
coisas.

Na parte debaixo do muro, uma cabeça masculina, laranja, de cartola, óculos, bigode e sorriso, próximo a uma
exclamação laranja, que também poderia ser uma bengala. Há duas figuras humanas, maiores, de braços,
pernas e pescoços finos, sem cabelo, de cara enrugada e expressão fora de órbita, sem roupas, esqualidas.
Um poderia ser um indígena e o outro um branco. Também vemos uma diversidade de pixos, tags, em preto
e branco. Entre elas, em letra cursiva e sem espaço entre as palavras, lemos: "índio enganado". Em branco
num fundo preto, rente ao chão, o desenho de um punho em riste. Em cima dos azulejos coloniais, uma
jorrada de tinta vermelha como sangue que tornou-se rosa, e uma pincelada de cor branca como se quisesse
apagar o resto. A arte nos muros disputa a história que estamos contando sobre nós mesmas.

No projeto colonial, as indígenas crianças são alvos prioritários dos missionários desde a época dos jesuítas,
como está no muro da escola, em plena Avenida da Consolação. Hoje, evangélicos, como o New Tribes
Mission, que Davi Kopenawa encontrou criança invadem o território yanomami para evangelizar[32]. Existe a
ideia de que as crianças sabem menos de sua própria cultura e, portanto, seriam alvos mais vulneráveis e
promissores. O método consiste em separar as crianças de seus pais para ensiná-las sobre a forma de viver
dos brancos, porque seus pais e elas próprias vivem em pecado, devido às crenças a cultura e toda a sua
cultura de seu povo.

A retirada das crian ç as do seio de sua comunidade pode ter diferentes dura çõ es de tempo. Pode ser pelos
per í odos de ir à escola, como ocorria com os jesu í tas, mas pode ser tamb é m por per í odos mais

[32] A presença dos missionários do New Tribes Mission foi registrada por relatório da CBDL, de 1959, juntamente com a
reativação do posto Ajuricaba (KOPENAWA; ALBERT, 2010, p. 256 e 641).

29
longos ou de maneira definitiva. Os sequestros de ind í genas crian ç as ocorreram durante toda a hist ó ria do
Brasil, diversos registros nos d ã o uma pequena amostra do que de fato ocorreu. Darcy Ribeiro conta que um
dos motivos de disputa entre colonizadores e origin á rios da terra era o tratamento dado à s crian ç as. Tanto
quando os brancos estavam amea ç ando ou tinham retirado uma crian ç a de seu conv í vio familiar e
comunit á rio, quanto quando escandalizava os ind í genas ao utilizarem viol ê ncia f í sica como m é todo de
ensino (RIBEIRO, 2013, p. 126; DEL PRIORE, 2015a e 2015b; HEMMING, 2019).

Segundo Ribeiro, "nenhum grupo indígena jamais foi assimilado (...) Onde quer que um grupo indígena pôde
manter a convivência familiar – os pais educando seus filhos – permaneceu a identificação étnica tribal" (2013,
p. 15). As únicas formas que destroem a cultura e sua memória ancestral é a escravização e a retirada das
crianças (2013, p. 16).

Ainda recentemente, em 1966, os Xavante Marãiwatsédé, alvos da Operação Amazônia, foram expulsos de
suas terras, porque o governo federal doou terras próximas ao Araguaia, no estado do Mato Grosso, para a
família Ometto, oriunda do agronegócio do interior de São Paulo. A transferência forçada dos Os
Marãiwatsédé foram forçados a se transferirem para a fazenda Suiá-Missú e em seguida para a Missão
Salesiana de São Marcos, a mais de 400 km ao sul, longe dos outros grupos xavante. Dos 263 que chegaram,
83 morreram por causa de uma epidemia de sarampo. Nesse processo, quatro ou cinco crianças
desapareceram, foram levadas, não se sabe por quem, compondo o mosaico de violações de direitos que
recortou seus territórios no país (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 16; REINA, 2019 p. 175). Este e
outros dezoito casos de sequestros de crianças durante a Ditadura-Civil Militar estão na obra Cativeiro sem
fim, do jornalista Eduardo Reina (2014).

A Constituição de 1988 revolucionou os paradigmas jurídicos dos direitos dos povos indígenas e os direitos
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

das crianças e adolescentes. Superou-se o paradigma assimilacionista e os povos indígenas foram


reconhecidos como sujeitos coletivos de direitos, reafirmando os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, e ampliando a compreensão do território, compreendendo aquele necessário à
sua reprodução física e cultural e à preservação do meio ambiente (BARBOSA, 2018a, p. 126; VERDUM, 2013,
p. 30, BRASIL, 1988, art. 231 e 232). Isso inclui o direito de ingressar em juízo como sujeito coletivo de direitos,
independente de FUNAI (BRASIL, 1988, art. 232).

Instituiu-se a doutrina da proteção integral, em que a criança e o adolescente são reconhecidos como
sujeitos de direitos como prioridade absoluta (BRASIL, 1988, art. 227). A opinião da criança e do adolescente
passa a ser levada em consideração, inclusive em processos judiciais. Seu reconhecimento como sujeito de
direitos é seu direito a ter direitos[33] . Efetivar esses direitos é dever do Estado, da família e da sociedade. O
Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069 é de 13 de julho de 1990, foi promulgado menos de dois anos
depois da Constituição Federal. Estruturou-se o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), que envolve diversos
atores e fluxos, buscando a efetivação do ECA. A luta pelos direitos da criança e do adolescente é fortemente
ligada à luta pela democracia e à participação social (MENDEZ, 1994a; 1994b; 2013)[34]. A universalização do
direito à infância, como direito de toda e qualquer criança, é fundamental na medida em que, historicamente,
ele foi exclusivo de algumas crianças - no Brasil, as crianças brancas; na Europa, as burguesas. Mas, além
disso, porque esse direito envolve a memória ancestral, os contos e as lendas, a brincadeira, a roda, a dança,
a música, à conhecer os animais, as plantas e aprender sobre a natureza, a sociedade e o mundo. Isso foi

[33] Rompe-se com o binômio compaixão-repressão, presente na doutrina anterior, do menor infrator, positivada no Código de
Menores, Lei 6697 de 1979. Os dois pólos do binômio se complementam, porque o que é caridade não é direito, e quem não tem
direito, pode ser reprimido. Historicamente, o direito à infância, a não ser explorado pelo capitalismo nos primeiros momentos de
vida, sempre foi das elites, tanto na Europa (ARIÈS, 2015), como no Brasil (DEL PRIORE, 2015a; 2015b; MATOS, 2022).

[34] O Brasil abriu alas na doutrina da proteção integral com a Constituição de 1988. A própria Convenção dos Direitos da Criança
é de 1989, poucos meses depois da Carta Magna do Brasil. O movimento foi latino-americano e internacional (MENDEZ, 2013).

30
possível porque também o direito à educação na Constituição de 1988 trouxe muitas conquistas para o
movimento social [35].

A consolidação dessas concepções jurídicas, com a Constituição de 1988, são importantes e possibilitaram
mudanças e outras vitórias da luta social, tanto para os direitos dos povos indígenas como das crianças e
adolescentes. Entretanto, o Estado continuou tendo práticas etnocidas[36]. Essa situação jurídica dos povos
indígenas foi formulada como de dualismo bipolar pela socióloga Cecília MacDowell. Ela se refere ao período
pós constituição até os governos FHC (1994- e os dois primeiros governos Lula). Ressaltamos, os processos
de participação social nas Conferências dos Povos Indígenas, a partir de 2006,[37] precedidas por diversas
Conferências Regionais, além das Conferências de Saúde e de Educação. Destacamos ainda a dificuldade e a
morosidade na demarcação das terras indígenas, que, como reconhece a Constituição, são necessárias para
que os povos indígenas possam continuar vivendo de acordo com suas culturas, art. 231,§ 1º[38].

A recente assinatura de portaria declaratória de seis Terras Indígenas[39] pelo presidente Lula é
especialmente importante, pois sinaliza uma mudança política. O governo de Jair Bolsonaro não demarcou
"nenhum centímetro de terra indígena", como declarou em sua campanha, e o anterior, de Michel Temer, só
demarcou duas terras indígenas.

Depois da Constituição de 1988 e, sobretudo desde as Conferências, se intensificaram as retomadas, que são
processos de reapropriação coletiva do território, da espiritualidade, da língua, da cultura, da memória de um
modo de ser indígena, do acesso às raízes para provocar o reconhecimento por parte do Estado de quem
sempre esteve aqui. Como diz Jacy Tupinambá, da Aldeia Tucum, "tem o silêncio do medo e o silêncio

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


estratégico" (BRASIL TUPINAMBÁ, 2021, 9’20-9’25). O silêncio sagrado dos Tupinambá (Núbia Tupinambá,
2021) foi fundamental para sua sobrevivência e para sua posterior retomada territorial. No discurso oficial do
Estado, o povo Tupinambá era dito como extinto. Seu reconhecimento enquanto povo originário se deu na
Conferência dos Povos Indígenas de …?, seguindo os critérios e decisão dos próprios povos indígenas, acatada
pela FUNAI.

Binho Tupinambá é uma criança que pertence ao povo Tupinambá. A compreensão do sistema de garantia

[35] Para uma análise da educação na Constituinte ver ROCHA, 2012.

[36] Como disse o sociólogo do direito José Eduardo Faria em obra publicada em 1989, a Constituição de 1988 têm muitos
princípios que necessitam regulamentação; isso, em conjunto com o fato de que as elites não se dariam por vencidas, já
sinalizava uma batalha regulamentar (FARIA, 1989).

[37]
https://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Povos_Indigenas/deliberacoes_1_conferencia_povos_indig
enas.pd f

[38] Além disso, a Carta estabeleceu, ainda, o prazo de cinco anos para as terras serem demarcadas pela União (art. 67 do ADCT,
1988).

[39] São elas: Terra Indígena (TI) Arara do Rio Amônia, no Acre, com população de 434 pessoas e portaria declaratória do ano de
2009; TI Kariri-Xocó, em Alagoas, com população de 2,3 mil pessoas e portaria declaratória do ano de 2006; TI Rio dos Índios, no
Rio Grande do Sul, com população de 143 pessoas e portaria declaratória de 2004; TI Tremembé da Barra do Mundaú, no Ceará,
com população de 580 pessoas e portaria declaratória do ano de 2015; TI Uneiuxi, no Amazonas, com população de 249 pessoas
e portaria declaratória do ano de 2006; TI Avá-Canoeiro, em Goiás, com população de nove pessoas e portaria declaratória do
ano de 1996 (VERDELIO, 2023). https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2023-04/lula-assina-demarcacao-de-seis-
terras-indigenas.

31
de direitos da criança e do adolescente sobre a necessidade de considerar que aquela pessoa faz parte de
uma comunidade, de um povo - sujeito coletivo de direitos -, também foi um passo importante no caminho
do multiculturalismo dos direitos humanos. Por isso, Assis de Oliveira fala de indígenas crianças , para
visibilizar que, em primeiro lugar, Binho é Tupinambá, e isso deve se refletir nas interpretação jurídica dos
seus direitos enquanto criança, protegida pelo ECA.

O trabalho do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), de 2016 a 2018, trata
sobre a indígena criança. A Resolução 181 do CONANDA, de 2016, "dispõe sobre os parâmetros de
interpretação de direitos e adequação dos serviços relacionados ao atendimento de Crianças e Adolescentes
pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais" (BRASIL, 2016). Em 23 de outubro de 2018, o Grupo
Temático dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituído pela Resolução 197 de 3 de agosto de 2017,
entrega seu Relatório. Em 22 de novembro do mesmo ano, o Conselho aprovou a Resolução 214, cujo objetivo
é "estabelecer recomendações para os Conselhos Estaduais, Distrital e Municipais dos Direito da Criança e do
adolescente, visando a melhoria da participação de crianças, adolescentes e demais representações de
povos e comunidades tradicionais ao controle social dos direitos de crianças e adolescentes" (MATOS, 2022;
BRASIL, 2018).

Foram passos importantes para proteger as crianças dos etnocídios e, portanto, também dos genocídios,
porém, os sequestros de indígenas crianças, enquanto instrumento da colonização, não acabaram. Etnocidas,
eles criminalizam os povos indígenas ao veicular um discurso auto-indulgente de "salvação": estas violências
seriam para o próprio bem das crianças, que supostamente estariam sendo salvas do infanticídio.

No governo Bolsonaro (2019-2022), os genocidas e etnocidas ficaram no Poder Executivo Federal por quatro
anos. Já estavam instalados no Congresso Nacional, articulados na Bancada do BBB - Boi, Bala e Bíblia;
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

agronegócio milícias e evangélicos fundamentalistas. De lá ainda não saíram. O PL 1057, de 2007, que "dispõe
sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas,
bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais", está aguardando aprovação do Senado
Federal.

Trata-se de uma acusação racista contra os povos indígenas, sem fundamentação na realidade, A FUNAI e o
Ministério da Saúde confirmaram a não existência de estatísticas sobre o infanticídio indígena no Brasil. Uma
nota divulgada pelo Ministério coloca que:

No período neonatal, predominam as causas de óbitos relacionadas a problemas na


gestação e no parto (causas perinatais e anomalias congênitas). Posteriormente,
prevalecem as causas de morte relacionadas ao meio ambiente, às condições de
vida e ao não acesso aos serviços de saúde (doenças infecciosas, pneumonias,
diarreias) (MEDEIROS, 2015).

O PL foi denunciado e combatido por lideranças e organizações indígenas, pela FUNAI e pela Associação
Brasileira de Antropologia (ABA) (OLIVEIRA, 2014)[40]. Segundo Rita Segato, "O PL é resultado de uma aliança
estreita entre os ruralistas e a bancada evangélica – que de forma alguma representa os evangélicos do
Brasil. Quem está lá são aliados do agronegócio, que querem destruir projetos e reivindicações históricas dos
povos indígenas”. A apreciação do PL 1.057 ocorreu poucos dias antes da tentativa de votação da Proposta de
Emenda à Constituição 215, de 2000, que transfere os processos demarcatórios do Poder Executivo para o
Legislativo e que já foi alvo de manifestações contrárias dos indígenas, que chegaram a ocupar o plenário da
Câmara, em abril de 2013 (MEDEIROS, 2015).

[40] Entretanto, foi aprovado por unanimidade na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, em 1º de junho de 2011, e na
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, em 26 de agosto de 2015. Em 02 de setembro de 2015 o PL foi remetido ao
Senado.

32
Na tramitação da Nova Lei de Adoção, Lei 12.010/09, a bancada evangélica propôs uma inserção de norma
que possibilitaria a adoção – ou o sequestro – de crianças indígenas por família substituta em casos de
ameaça à vida por prática cultural. A FUNAI e organizações indígenas pressionaram pela sua supressão. A
proposta viria legitimar algo que já ocorre na prática, a retirada ilegal de crianças indígenas de suas
comunidades por missionários religiosos ou por profissionais da saúde, sob a alegação de essas crianças
estariam sendo salvas do infanticídio (GOBBI E BIASE, 2009 apud OLIVEIRA, 2014).

No discurso de posse do CONANDA, no dia 18 de março de 2019,[41] a Ministra da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos, Damares Alves, deixou evidente que a questão da criança e o adolescente seriam
prioridade de seu Ministério, e que nenhuma das outras pastas poderia fazer nada sem levar em conta esta
questão. Quanto ao CONANDA, ela enfatizou que estaria bem perto do Conselho, o que significa que ela
trataria a questão da criança e do adolescente junto com o Conselho, como determina a lei e a doutrina da
proteção integral. Entre as violações de direitos que a nova Ministra escolheu citar foi a suposta prática dos
povos indígenas de enterrar crianças indígenas. A frase, "O choro da criança e o lamento da mãe que o Estado
não ouve", dita por Damares Alves na posse do CONANDA e que foi repetida na ocasião de divulgação de
ações prioritárias do governo no seu "plano para combater o infanticídio", em entrevista para a Gazeta do
Povo. Segundo a reportagem, vários dos integrantes do Ministério são sobreviventes salvos de situações em
que sofreriam infanticídio. Segundo as declarações de Damares Alves reproduzidas para a Gazeta:

“Posso garantir que é uma preocupação muito grande desse governo. Temos uma
preocupação grande quanto à valorização da vida, e as crianças indígenas não

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


podem ser ignoradas pelo fato de nascerem indígenas e estarem na aldeia. Não é
porque a criança está na aldeia que o choro dela tem que ser abafado pela terra. A
gente não pode se omitir”, diz ela (DESIDERI, 2019).

Entretanto, a ONG Atini, fundada por Damares Alves, é alvo de denúncias feitas por indigenistas e pelo
Ministério Público que mencionam tráfico e sequestro de crianças, e incitação ao ódio contra indígenas. Antes
de Damares ser Ministra, a Atini foi acusada de explorar o infanticídio, assunto de grande comoção pública,
para legimitar sua agenda. Em 2016, a Polícia Federal pediu informações à FUNAI sobre o suposto tráfico e
exploração sexual de pessoas. Segundo a Folha de S. Paulo, há pelo menos três ações judiciais contra a Atini.
Uma delas corre em segredo de justiça, numa vara federal em Volta Redonda (RJ). A Gazeta teve acesso ao
documento, no qual consta que a indígena Sateré-Mawé foi levada, em 2010, pelo tio materno (que a
registrou como filha) e por sua esposa para uma chácara da Atini. Ali, ela engravidou de um rapaz de outra
etnia. Posteriormente, seu bebê foi adotado por um casal, que alegou que ela teria "problemas de transtorno
mental e histórico de maus tratos com os pais, o que teria motivado a ONG a retirá-la do convívio com os
índios" (BALLOUSSIER; LINHARES, 2018).

Entretanto, o Ministério Público pede o retorno da criança para a sua mãe, que já está no Amazonas. A criança
estava sob a tutela provisória do irmão de uma das donas da Atini, Márcia Suzuki. Para os Procuradores, a
história seria "mais um exemplo da atuação sistemática desses grupos missionários contra os povos indígenas
e seus modos de vida, com fins de fazer valer unilateralmente a concepção daqueles sobre as destes"
(BALLOUSSIER; LINHARES, 2018).

Em 4 de fevereiro de 2019, em reportagem de capa da Revista Época, matéria de Natália Portinari e Vinicius
Sassine, indígenas Kamayurá denunciaram atitude criminosa da Ministra, cometida há 15 anos. Da aldeia
Kamayurá, no centro da reserva indígena no norte do Mato Grosso, Kajutiti Lulu Kamayurá, hoje com 20 anos,
foi levada irregularmente de sua tribo por Damares Alves e Márcia Suzuki, amiga e braço direito da pastora.

[41] A autora esteve presente no discurso de posse na condição de estar sendo empossada como Conselheira Titular,
representando a sociedade civil, pela entidade ArtJovem LGBT, conforme Portaria n.14 de 29 de janeiro de 2019, Art. 1º, § 2º, b
(BRASIL, 2019).

33
Levaram a menina dizendo que ela iria fazer um tratamento dentário na cidade, nunca regressaram com a
criança, e Damares, hoje, a apresenta como sua filha adotiva. Segundo relatos na reportagem, a criança foi
levada na marra, chorando por se separar de sua avó, sua mãe afetiva, Tanumakaru. Em um canal evangélico
do YouTube, a pastora afirma que "no povo dela, quando Lulu nasceu, mãe solteira não podia criar filhos e
tinha que matar o bebê", e que, supostamente, ela teria sido abandonada. O pajé Mapulu rebate

Chegou aqui a notícia de que estavam dizendo que tentaram enterrar Lulu, que ela
não podia mais voltar para a aldeia porque estava ameaçada. Tudo mentira.
Damares cometeu um grande erro. É mentira dizer que Lulu foi resgatada. Se
Damares tivesse visto Lulu em um buraco no chão e pegado ela de lá, podia dizer
isso (PORTINARI; SASSINE, 2019, p. 21).

Embora a pastora diga que Lulu manteve contato com a família, os kamayurás relatam que, como ela nunca
retornou, tentaram contato com Damares para visitá-la em Brasília. "Damares mandou a menina para São
Paulo, para não ter como ver a mãe", conta Kuéku, prima de Lulu. A primeira visita desta criança à aldeia só
aconteceu há dois anos. Sua prima, Tainá, conta que não conseguiram conversar, porque a menina disse ter
esquecido o tupi (PORTINARI; SASSINE, 2019, p. 21), evidenciando o processo de etnocídio decorrente de ter
sido arrancada de seu povo pela pastora.

Segundo a Folha de S. Paulo, é comum que pessoas ligadas à Atini adotem menores em alegada situação de
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

risco. A filha de Márcia Suzuki se chama Hakani, nome de um filme que enfureceu indigenistas e motivou
duas ações do Ministério Público, em Rondônia e em Brasília. O filme é descrito como um "docudrama" –
mistura de ficção e documentário. O processo de Rondônia é referente ao fato da produção ter escalado
como atores crianças do povo Karitiana, que nem sequer tem o infanticídio como hábito cultural. Para a
cultura deste povo, o fato da criança ter sido enterrada na encenação, teria violado sua alma, porque para
este povo o corpo não pode entrar em contato direto com a terra. Desde então, os Karitiana estão em
desgraça (BALLOUSSIER; LINHARES, 2018). O dano causado a este povo e a esta criança é inestimável.
Quanto à Brasília de Bolsonaro, uma liminar proibiu a veiculação de Hakani, após pedido do Ministério Público.
O filme é classificado como "mais um elemento da campanha difamatória dos índios brasileiros, bem como
uma justificativa para a atuação religiosa e missionária das organizações nas aldeias" (BALLOUSSIER;
LINHARES, 2018).

Essa forma de atuação missionária não é novidade da parte do Estado, mas teve uma reedição trágica no
Governo Bolsonaro. A ONG Atini tem uma sede no território Yanomami. Conforme denunciou a BBC News
Brasil, em reportagem de João Fellet de 11 de fevereiro, o governo incluiu ONG missionária próxima a
Damares em viagem até os territórios dos Suruwaha, indígenas recém-contatados na Amazônia (FELLET,
2020).

Mas o caminho já estava sendo pavimentado antes, não apenas no Congresso Nacional, mas também no
Sistema de Garantia de Direitos. É o que indica o relatório divulgado pela FUNAI de Dourados de 2018,
oficializando frequentes denúncias feitas pela Aty Guasi, Grande Assembléia Guarani e Kaiowá, de que
crianças de seu povo, bem como outras crianças indígenas, estão sendo retiradas de suas aldeias pelo
Conselho Tutelar, quase semanalmente, para serem levadas para abrigos da região Cone Sul do Mato Grosso
do Sul. Os fatos foram denunciados pela organização indígena ao Conselho Nacional dos Direitos Humanos
(CNDH) ao comissário da Organização dos Estados Americanos (OEA) em reunião realizada, em novembro, na
capital federal (NASSIF, 2018).

Em 2012, 26,25% das crianças abrigadas no município eram indígenas, em sua maioria encaminhadas pelo
Conselho Tutelar (NASCIMENTO, 2014). Em Dourados, vivem aproximadamente 215 mil pessoas, das quais 21
mil são indígenas. Contudo, 60% das crianças acolhidas nas instituições e abrigos pertencem a algum povo da
região. Dos 79 acolhidos em Dourados, 50 são indígenas. O levantamento do órgão indigenista aponta que
88% das instituições de acolhimento são particulares – não governamentais. Elas acolhem um total de 65
crianças e jovens indígenas, 50 só em Dourados (MS). Caarapó, Ivinhema, Maracajú e Rio Brilhante abrigam os

34
outros 15 indígenas. O Mato Grosso do Sul é o estado mais violento com os povos indígenas da federação.
Hoje, 92% das terras são de propriedade privada, dos quais 83% são latifúndios (SANTOS, 2018).

Silvana de Jesus Nascimento identifica que as crianças Kaiowá, em Dourados, são vistas como duplamente
vítimas pelos agentes do sistema de garantia de direitos. Primeiro, por serem crianças e terem sofrido a
violência que as levou ao abrigamento; mas também consideram-na vítima por fazer parte da cultura do seu
próprio povo, da qual os juruá tem a imagem de que seria composto por pessoas "sem educação, bêbados,
preguiçosos" (NASCIMENTO, 2014, p. 289).

A imagem do "indiozinho/coitadinho" é relacionada à imagem do adulto indígena enquanto criminoso,


violador dos direitos dessas crianças. Nascimento nota que essa mesma criança, considerada objeto de pena,
irá crescer e se tornar esse adulto criminoso. A imagem estereotipada e preconceituosa dos povos indígenas
é construída pela mídia e reproduzida pela sociedade, inclusive pelos próprios agentes do sistema de
garantia de direitos. Isso afeta a autoimagem e percepção que as indígenas crianças têm sobre si mesmas e
sobre seu povo. Muitas vezes, por estarem muito tempo institucionalizadas, as crianças resistem a serem
reinseridas em suas comunidades[42] (NASCIMENTO, 2014). Fica evidente o violento processo de etnocídios
vivenciados pelas indígenas crianças.

Não menos importante é o fato de que, por trás da construção da imagem negativa dos povos indígenas,
existe uma disputa de terras em questão: a partir de 1900, os povos indígenas do Mato Grosso do Sul[43], que
habitam milenarmente este território, foram confinados em reservas para favorecer a pilhagem de suas terras
pelos latifundiários. As denúncias de maus tratos ou abusos vindas dos próprios povos indígenas traduzem

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


uma apropriação da cultura branca nas disputas internas entre eles, o que, conforme Nascimento, nunca foi
notado por parte dos agentes do sistema de garantia de direitos ou outras autoridades, mesmo a FUNAI
(NASCIMENTO, 2014).

O Ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, Ricardo Salles - vergonhosamente exonerado depois de ser alvo
de investigações acerca de seu envolvimento com crimes ambientais, em junho de 2021 -, em reunião
ministerial de 22 de abril de 2020, declarou que a pandemia era a oportunidade de "passar a boiada" sobre as
terras indígenas (SOARES; MEDEIROS, 2020). O governo Bolsonaro propôs o Projeto de Lei 191, que
regulamenta a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas. Como disse
Clastres, quando a capacidade do etnocida é desenfreada, ela chega nos genocídios, o que aconteceu no
período em que Bolsonaro esteve no poder.

A exploração dos rios, das montanhas e da floresta - com o garimpo, hidrelétricas, mineração, madeireiras,
agronegócio - é uma tragédia para o território que é vitimado por essas "atividades econômicas". Além da
morte dos povos indígenas e demais povos agarrados à terra, dos rios, das árvores, das montanhas, animais, a
situação de violência e violação de direitos é degradante: envenenamento dos rios, contaminação dos peixes
e das pessoas por mercúrio, epidemia xawara, destruição das florestas, exploração sexual de meninas e
mulheres, sequestro de crianças, trabalho análogo à escravidão, criação de rotas para o tráfico (drogas, armas,
pessoas, órgãos), desestruturação dos modos de vida tradicionais e pilhagem de terras e da natureza.

[42] A lei no 12.010, de 3 de agosto de 2009 (Brasil, 2009), fez alterações no artigo referente àadoção, modificando o Estatuto da
Criança e do Adolescente a lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, o ECA (Brasil, 1990). Pela primeira vez, fez referência e impôs
quesitos a serem respeitados em caso de adoção das crianças indigenas ou das remanescentes de quilombolas (NASCIMENTO,
2014), o que coloca a adoção por não indígenas como uma das últimas opções, depois da reinserção na família original e a
adoção da criança por alguém da própria comunidade, preservando a identidade dos povos.

[43] No Mato Grosso do Sul encontramos a segunda maior população indigena do pa ́ is, cerca ́ de 70.000 indios (Souza, 2012)
dividas entre ́ os Guarani (Kaiowáe Ñandeva), Terena, Atikum, Guató, Kadiwéu, Kamba, Kinikinawa, Ofaié, Terena, Xiquitano
(NASCIMENTO, 2014, p. 270).

35
Isso é perceptível no caso dos Yanomami em Roraima, dos Munduruku no Amazonas, dos Pataxó na Bahia,
dos Guarani-Kayowáa no Mato Grosso do Sul, dos Mura e dos Uru-Eu-Wau-Wau (isolados) em Rondônia, dos
Guajajara no Maranhão, dos Ribeirinhos e Quilombolas no Arquipélago do Marajó.

Essa forma absurda de se relacionar com os outros seres vivos se tornou uma praga, em todo o país, durante
os últimos quatro anos. Os direitos das indígenas crianças são violados em especial, dada a vulnerabildiade
delas. Em 2021, os Guarani-Kayowáa de Dourados (MS) perderam uma menina de 11 anos, e os Kaingang de
Redentora (RS), uma de 14 anos, assassinadas, com requintes de crueldade, depois de terem sido estupradas
(CÂMARA, 2021; ADOLESCENTE…, 2021; ASSASSINATO…, 2021). No mesmo ano, os Yanomami perderam duas
crianças, de 5 e 7 anos, "tragadas" pelas dragas do garimpo ilegal (CRIANÇAS…, 2021), e diversas outras por
malária e desnutrição - fenômenos também causados pelas atividades criminosas nos territórios indígenas.
Com a vitória de Lula nas eleições presidenciais, o Estado voltou a reconhecer essas violências como
violações de direitos e a combatê-las. Várias medidas foram tomadas para o processo de desintrusão dos
garimpeiros dos territórios Yanomami, por exemplo. Os comedores de terra têm respondido com violência -
saques de garimpeiros às cestas básicas enviadas aos parentes, tiros em três jovens Yanomami no último 29
de abril, deixando dois em estado grave e levando um a óbito.

Não é simples nem fácil erradicar e mesmo combater práticas que são estruturais da colonização e que se
acirraram com novas roupagens no neoliberalismo. Elas têm consequências imediatas sobre os povos
indígenas, povos da terra e os seres que fazem parte da natureza e vivem em conformidade com ela; mas
que também atinge o clube da humanidade. No caso das crianças, é importante voltar à fala de Binho
Tupinambá, que prefere a roça à rua, porque a forma de viver com a terra proporciona autonomia,
coletividade e, principalmente, alimentação saudável. Uma das pautas de Damares Alves, quando ocupou o
cargo de Ministra da Mulher da Família e dos Direitos Humanos, direcionadas ao CONANDA[44], era de
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

liberação da publicidade direcionada ao público infanto-juvenil. Os beneficiados: a indústria de alimentos


ultraprocessados - refrigerantes, bolcachas etc. -, que compõe o agronegócio (HARTUNG; KARAGEORGIADIS,
2016). Substitui-se a alimentação tradicional e in natura por alimentos reconhecidamente menos nutritivos ou
mesmo que fazem mal à saúde às crianças e adolescentes.

A alimentação tradicional é praticada pelos povos agarrados à terra. Em países de maioria indígena, como
Bolívia e Peru, onde a venda de alimentos ultraprocessados são pequenas e prevalece a alimentação
tradicional, a população apresenta os menores índices de massa corporal, de acordo com estudo da OPAS de
2014, referente aos anos de 2000 a 2009. Inversamente, países onde as vendas de alimentos
ultraprocessados são elevadas, como Chile e México, apresentam os maiores índices (MONTEIRO; LOUZADA,
2018).

Que o projeto de morte imposto aos povos indígenas atinge o clube da humanidade é sabido pelo mundo
branco há décadas. A necessidade de parar de destruir a natureza é amplamente comprovada pela ciência,
muito embora as medidas tomadas para tanto fiquem muito longe de serem efetivas, já que não se abandona
os alicerces desse sistema de morte. Uma parte até prefere embarcar na terra plana e abandonar a própria
ciência, vez que ela chegou à conclusão de questões que são conhecidas pelos povos indígenas há milhares
de anos.

Para que os direitos humanos das ind í genas crian ç as sejam realmente efetivos, é necess á rio aprofundar
o multiculturalismo para realmente abarcar as cosmovis õ es origin á rias - e isso nos leva ao
multinaturalismo . Na Bol í via e no Equador, em que os povos ind í genas s ã o maioria populacional e se
organizaram politicamente para disputar por dentro da sociedade colonizada, o Direito deu passos rumo ao

[44] A recusa do CONANDA em ceder à pauta, conjuntamente com o posicionamento do Conselho contrário ao ensino domiciliar
(homeschooling) e a criação de um Grupo de Trabalho sobre crianças e adolescentes LGBTQIA+ fez com que o governo
Bolsonaro tentasse dar um golpe no CONANDA, com o Drecreto 1003 de 4 de setembro de 2019. A questão passou a ser
discutida judicialmente, no STF, até a recomposição da participação social no governo Lula, em 2023.

36
multinaturalismo . As Constitui çõ es da Bol í via de 2009 e do Equador de 2008, al é m de serem
plurinacionais, reconhecendo os povos ind í genas como na çõ es, tamb é m reconhecem a natureza como
sujeito de direitos. As pessoas de jure do pensamento amer í ndio tamb é m s ã o pessoas - sujeitos de
direitos. N ã o apenas pessoas f í sicas humanas e pessoas jur í dicas, criadas pelos humanos, s ã o
consideradas sujeitos de direitos. Nesse sentido, seria bom substituir a frase n ú cleo dos direitos humanos, a
"dignidade da pessoa humana", pela "dignidade da pessoa", vez que ela é reconhecida a outras pessoas n ã o
humanas.

BIBLIOGRAFIA

ANMIGA, Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. Manifesto das primeiras
brasileiras. As originárias da terra: a mãe do Brasil é indígena Disponível em <https://anmiga.org/manifesto/>,
acesso em 06 de junho de 2023.

ASSASSINATO de jovem indígenas kaingang encontrada nua gera revola e medo em território indígena do RS.
Brasil de Fato, Direitos Humanos. Porto Alegre, 10 ago 2021 Disponível em
<https://www.brasildefato.com.br/2021/08/10/assassinato-de-jovem-kaingang-encontrada-nua-gera-
revolta-e-medo-em-territorio-indigena-no-rs>, acesso em 31 de outubro de 2021.

BALLOUSSIER, Ana Virgínia; LINHARES, Carolina. Ong de Ministra é acusada de incitar ódio a indígenas e tirar
criança de mãe. Folha de São Paulo, Poder. 15 de dez 2018. Dispoível em

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/ong-de-ministra-e-acusada-de-incitar-odio-a-indigenas-e-
tirar-crianca-de-mae.shtml>, acesso em 17 de novembro de 2021.

BARBOSA, Samuel. Introdução in CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; BARBOSA, Samuel. Direitos dos Povos
Indígenas em Disputa. Unesp, São Paulo: 2018a.

CÂMARA, José. Criança indígena sofre estupro coletivo e morre ao ser jogada de penhasco em MS, Entenda o
caso. G1, Globo, Mato Grosso do Sul. 11 ago 2021. Disponível em
<https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2021/08/11/crianca-indigena-sofre-estupro-
coletivo-e-morre-ao-ser-jogada-de-penhasco-em-ms-entenda-o-caso.ghtml>, acesso em 31 de outubro de
2021.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução a uma história indígena. Índios no Brasil: história, direitos e
cidadania. 1 a ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 9-13.

CIMI, Conselho Indigenista Missionário. Marcha das Mulheres Indígenas divulga documento final: “lutar pelos
nossos territórios é lutar pelo nosso direito à vida”. 15 de agosto de 2019. Disponível em:
<https://cimi.org.br/2019/08/marcha-mulheres-indigenas-documento-final-lutar-pelos-nossos-territorios-
lutar-pelo-nosso-direito-vida/>, acessi em 06 de junho de 2023.

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

CLASTRES, Helène. Primitivismo e ciência do homem no século XVIII. São Paulo: Discurso. 1980, p. 187-208.

COHN, Clarice. Crescendo como um Xikrín: uma análise da infância e do desenvolvimento infantil entre os
Kayapó-Xikrin do Bacajá. Revista de Antropologia. São Paulo, USP, v. 43, n. 2, p. 145-222, 2000.

. A criança, o aprendizado e a socialização na antropologia. In SILVA, Aracy Lopes da; MACEDO, Ana Vera
Lopes da Silva; NUNES, Angela (Org.) Crianças indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo: Global, 2002, p.
213-235. (Coleção antropologia e educação).

_____________ Antropologia da criança. 3. reimp. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

37
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório das violações dos Direitos dos Povos Indígenas entre 1946-
1988. Volume II, Texto 5. 10 dez 2014, p. 203-262.

CRIANÇAS Yanomami são mortas por draga do garimpo ilegal em Roraima. Rede Brasil Atual. Por Redação
RBA. São Paulo, 15 out 2021a. Disponível em
<https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2021/10/criancas-yanomami-mortas-draga-garimpo-
roraima/>, acesso em 18 de novembro de 2021.

DEL PRIORE, Mary. Apresentação. In DEL PRIORE, Mary (Org.) História das crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo:
Editora Contexto, 2015a, p. 7-19.

_____________ O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império. In DEL PRIORE, Mary (Org.)
História das crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo: Editora Contexto, 2015b, p. 84-106.

DESIDERI, Leonardo. O plano do ministério de Damares para combater o infanticídio indígena. Gazeta do Povo.
Brasília. 19 de nov de 2019.
Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/republica/plano-damares-contra-infanticidio/>

FEDERICI, Silvia. Mulheres e Caça às Bruxas. Tradução Hegi Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. 2019.

FELLET, João. Governo inclui ONG missionária próxima a Damares em viagem até indígenas recém
contatados na Amazônia. BBC News Brasil em São Paulo. 11 de fevereiro de 2020. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51422570>, acesso em 06 de junho de 2023.
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

"FLASHBACK: A ORIGEM do Papai Noel por Elke Maravilha. Blog do Amaury Jr. 24 dez 2017. Disponível em:
<https://amauryjr.blog.bol.uol.com.br/2017/12/24/flashback-a-origem-do-papai-noel-por-elke-maravilha/>,
acesso em 03 de maio de 2021.

GUTIÉRREZ, Jorge Luis. A controvérsia de Valladolid (1550): Aristóteles, os índios e a guerra justa. Revista USP,
n. 101 São Paulo: março/abril/maio 2014, p. 223-235.

HARTUNG, Pedro AFfonso Duarte; KARAGEORGIADIS, Ekaterine Valente. A Regulação da publicidade de


alimentos e bebidas não alcóolicas no Brasil. R. Dir. sanit., v. 17, n. 3. São Paulo, nov. 2016, p. 160-184.

HEMMING, John. People of the Rainforest. The Villas Boas Brothers, Explorers and Humanitarians of the
Amazon. London: C. Hurst & Company, 2019.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

_____________. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2021b.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Prefácio de
Eduardo Viveiros de Castro. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

MATTEI, Ugo; NADER, Laura. Plunder: when the rule of law is illegal. Oxfor: Blackwell, Publishing, 2008.

MEDEIROS, Étore. PL do infanticídio indígena traz falsa contradição entre cultura e vida. Apública. [S.l] 16 set.
2015. Disponível em: <https://apublica.org/2015/09/pl-do-infanticidio-indigena-traz-falsa-contradicao-entre-
cultura-e-vida/> , acesso em 10 de maio de 2018.

MÉNDEZ, Emílio Garcia. História da Criança como história de seu controle. In MENDEZ, Emílio Garcia Costa;
GOMES DA COSTA, Antônio Carlos. Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros, 1994a.

38
_____________. O Novo Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil: da situação irregular à proteção
integral (uma visão latino-americana). In MENDEZ, Emílio Garcia Costa; GOMES DA COSTA, Antônio Carlos. Das
necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros, 1994 b.

_____________. Legislação de “menores” na América Latina: uma dotrina em situação irregular. In MENDEZ,
Emílio Garcia Costa; GOMES DA COSTA, Antônio Carlos. Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros,
1994 c.
_____________. Infância, lei e democracia: uma questão de justiça. Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade.
São Paulo, v. 8, p. 1-22, 2013.

MONTEIRO, Carlos Augusto; LOUZADA, Maria Laura da Costa. Ultraprocessamento de alimentos e doenças
crônicas não transmissíveis: implicações para políticas públicas. São Paulo, 2018.

MUNDURUKU, Daniel. O Sinal do Pajé. Ilustrações de Taísa Borges. 2a Ed. São Paulo: Peirópolis, 2011.

NASCIMENTO, Silvana Jesus. Múltiplas vitimizações: crianças indígenas Kaiowá nos abrigos urbanos do Mato
Grosso do Sul. In Horizontes Antropológicos, ano 20, n 42, Porto Alegre, jul/dez 2014, p. 265-292.

NASSIF, Luis. Estado retira crianças de suas famílias Guarani E Kaiowá. Jornal GGN. 2 mar 2018. Disponível em
<https://jornalggn.com.br/editoria/cidadania/estado-retira-criancas-de-suas-familias-guarani-e-kaiowa/>,
acesso em 14 de dezembro de 2021.

Por Maia Aguilera Franklin de Matos


NUNES, Angela M.. No tempo e no espaço: brincadeiras das crianças A’uwẽ-Xavante. In SILVA, Aracy Lopes
da; MACEDO, Ana Vera Lopes da Silva; NUNES, Angela (Org.) Crianças indígenas: ensaios
antropológicos.Coleção antropologia e educação. São Paulo: Global, 2002a, p. 64-99.

OLIVEIRA, Assis da Costa. Indígenas Crianças, Crianças Indígenas: Perspectivas para Construção da Doutrina
da Proteção Plural. Curitiba: Juruá, 2014.

PORTINARI, Natália; SASSINE, Vinicius. "A branca levou Lulu": como uma criança indígena de uma aldeia no
Xingu foi parar na casa da Ministra Damares Alves. In Revista Época, 04 fev. 2020, p. 18-26.

REINA, Eduardo. Cativeiro sem fim: as histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela
ditadura militar no Brasil. Alameda. São Paulo, 2019.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. A integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo:
Global Editora. 2013.

SANTOS, Aline. “Nem parece índio”: FUNAI alerta para drama de crianças em abrigos. Campo Grande News.
Cidades. Campo grande: 9 abr 2018.

SILVA, Aracy Lopes da. Pequenos “xamãs”: crianças indígenas, corporalidade e escolarização. In SILVA, Aracy
Lopes da; MACEDO, Ana Vera Lopes da Silva; NUNES, Angela (Org.) Crianças indígenas: ensaios
antropológicos. São Paulo: Global, 2002, p. 37-63. (Coleção antropologia e educação).

STIGGER, Veronica. Onde a Onça bebe água. A partir da obra de Eduardo Viveiros de Castro. Ilustrada por
Fernando Vilela. São Paulo: Cosacnaify, 2015.

TUKANO, Daiara. Língua, memória e transformação. Exposição Nhe’ẽ Porã: Memória e transformação. Museu
da Língua Portuguesa, 12 de outubro de 2022 a 23 de abril de 2023.

VERDUM, Ricardo. A Justiça e os direitos dos povos indíngeas. In VENTURINI, Gustavo; BOKANY, Vilma.
Indígenas no Brasil: demandas dos povos e percepções da opinião público. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2013, p. 29-48.

39
VERDUM, Ricardo. A Justiça e os direitos dos povos indíngeas. In VENTURINI, Gustavo; BOKANY, Vilma.
Indígenas no Brasil: demandas dos povos e percepções da opinião público. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2013, p. 29-48.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Prefácio. Comendo como gente: formas do canibalismo Wari', de Aparecida
Vilaça. Rio de Janeiro: Editora UFRJ e Anpocs, 1992.

_____________. Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

Filmes e vídeos

O SAL TUPINAMBÁ, in INDIGENAS DIGITAIS. Direção: Sebástian Gerlic. Produção Executiva: Márcia Cardim.
Salvador: PRODUTORA. 2010. Disponível em: <

BRASIL TUPINAMBÁ. Direção: Cele Fonseca. Produção Executiva: Iglu Filmes. Documentário. Salvador, 2021.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=IbQctosjaC4>, acesso em 06 de junho de 2023.

Legislação

BRASIL, Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, Relatório do grupo temático
povos e comunidades tradicionais. Instituído pela Resolução nº197, de 3 de agosto de 2017, do CONANDA,
com a finalidade de formular e propor estratégias de articulação de políticas públicas e serviços para o
atendimento e para a promoção, proteção e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes
pertencentes a povos e comunidades tradicionais. 23 de outubro de 2018.
Por Maia Aguilera Franklin de Matos

______. Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, Resolução 181 10 de de novembro
de 2016. Dispõe sobre os parâmetros para interpretação dos direitos e adequação dos serviços relacionados
ao atendimento de Crianças e Adolescentes pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil.

______. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível


em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>, acesso em 30 de dezembro de
2019.

______, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Gabinete da Ministra. Portaria nº 14, de 29 de
janeiro de 2019. Designa os membros da sociedade civil do CONANDA do biênio 2019-2020. Disponível em:
<https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/61150355/do2-2019-01-30-
portaria-n-14-de-29-de-janeiro-de-2019-61150257>, acesso em 9 de dezembro de 2021.

40
ENTREVISTAS
Nesta edição, entrevistamos quatro importantes lideranças indígenas, todas com importantes
histórias de vida e de seus povos, valorizando a ancestralidade e suas culturas.

Em todas elas, é possível verificar como os diversos problemas estruturais, como a


degradação do meio ambiente, a ocupação violenta de seus territórios e as más condições de
saúde e saneamento, além da insegurança alimentar, os torna ainda mais vulneráveis, o que
impacta diretamente na vida e desenvolvimento das crianças e adolescentes.

CASÉ – “A história do nosso povo é de muita resistência e de


muita re-existência espiritual da nossa Cultura”

Por Raul Araújo com transcrição de Ériko Carvalho

Por Raul Araújo com transcrição de Ériko Carvalho

Katuara, katupytuna, katukaruene. Katuara é bom dia, katupytuna boa noite, e katukaruene é
boa tarde.

Meu nome é Casé Angatu, moro na indígena Tupinambá de Olivença na aldeia Gwarini Taba Atã, que fica no
sul da Bahia, no município de Ilhéus, mas nosso território pega também uma parte de Buerarema, no

41
município de Buerarema, e o município de Una. A história do povo, do povo Tupi, e no caso Tupinambá, onde
eu moro, lá de Olivença, é desde antes da chegada dos invasores portugueses no século XVI. Em 22 de abril
de 1500, que alguns chamam de descobrimento, nós chamamos de invasões. Então nossa história era
anterior a essa e tem como marco, não podemos negar, a invasão promovida a partir do século XVI com a
chegada dos portugueses e outros europeus invasores, da nossa história.

A partir de então, passa a ter esse desenvolvimento, é uma história, infelizmente, de mortes, de perseguições,
de estupros, de violência, de escravidão contra o corpo feminino, contra o corpo masculino, contra os corpos
diferenciados, porque nós nunca fomos binários, não existia uma binaridade, e contra as crianças curumins; a
gente chama menino de curumim, e a menina é cunhatã. A mulher chamamos de cunhã, e o homem
chamamos de auá. Então essa nossa história parte do século XVI: os Tupinambás, por praticarem, praticarem
não, por viverem a partir daquilo que se chamou de antropofagia – para nós não era antropofagia, era
angakaru, nós comíamos a alma dos guerreiros quando entrávamos em conflito com outros povos, com
outras comunidades, e nas guerras nós fazíamos o processo do angakaru, que era respeitosamente devorar a
carne e a alma dos guerreiros de outros povos.

E por sermos poligâmicos, não temos poligamia no sentido de entender o amor livre, não temos as regras
matrimoniais da coroa portuguesa, da ordem jesuítica, por sermos também, isso é fundamental, não binários;
não temos as divisões de gênero masculino e feminino que existem. É bom lembrar que uma das primeiras
vítimas de crime desta conotação, no século XVII, foi Tibira, um guerreiro Tupinambá: o gênero dele não
correspondia aos gêneros típicos masculino e feminino, e por conta disso, da nossa relação com a natureza, a
partir da encantaria e de sermos a própria natureza, não termos o sentimento de propriedade, de exploração
da terra, começamos a ser perseguidos a partir do século XVI. Então essa nossa história, a partir do século
XVI, a nossa forma de viver, de ser, a nossa cosmologia, aquilo que se chama de espiritualidade, nossa
Por Raul Araújo com transcrição de Ériko Carvalho

relação com a natureza como pertencimento, nosso angakaru – em vez de achar que somos nós os únicos
seres, não somos, nunca fomos antropocêntricos – isso nos fez sermos perseguidos. Foram decretadas ao
povo Tupinambá as “Guerras Justas”, era um termo usado no século XVI.

Foram decretados contra o povo Tupinambá, portanto, nas “Guerras Justas” a morte, o genocídio, o etnocídio,
a escravidão, a violência contra os corpos de crianças, curumins e cunhatãs, de homens e mulheres, auás e
cunhãs e idosos, nossos anciões. Então, é essa história. Mas também de resistência, de muita re-existência. A
história do nosso povo é de muita resistência e de muita re-existência espiritual da nossa Cultura. Vale
lembrar que os Tupinambás foram dados como extintos no século XVII, e estamos aqui vivos. Então, essa é a
primeira pergunta que nos aparece: conte um pouco sobre a história de seu povo.

Esse é o início dessa história, a história que vem antes da chegada dos portugueses, e de resistência. Aí, na
década de 1990 e após a Constituição de 1988, nós passamos por um processo interno de fortalecimento de
nossa luta, de procura da nossa etnicidade e de nossos direitos, a partir do artigo 231, 232 da Constituição. E
fomos lutar pela demarcação do nosso território, nosso território não está oficialmente demarcado, nenhum
dos governos anteriores, e especialmente esse último, que foi contra os povos originários, o governo do
fascista, miliciano Bolsonaro não demarcou nosso território. Esperamos que o novo governo demarque
imediatamente. O que nós fizemos foi a autodemarcação, fizemos retomadas das terras onde nós estamos,
hoje nós falamos que oitenta por cento do território está sobre a retomada. Essa nossa história, história de
resistência, re-existência, perseguições e de luta.

Revista Proteção Integral: Na terceira questão que aqui aparece: Qual é a palavra que define criança ou
infância em sua língua?

A palavra que define criança ou infância é curumim, cunhatã. De vez em quando se usa também piau, mas é
mais curumim, cunhatã, às vezes aparece essa palavra “mirim”, mas no geral é curumim e cunhatã, que quer
dizer o quê? Nós acreditamos que essas palavras, a criança, ela é, assim como ancião, mais próxima das
encantarias da natureza e daqueles que fazem nossos ancestrais, assim como nossos anciões. Isso é
importante sempre frisar. Nós não perguntamos para uma criança o que ela vai ser quando crescer, porque

42
ela já é criança e, no processo dela de criança, ela já é extremamente importante para nossa espiritualidade,
para nossa cultura. É de máximo respeito a criança.

Revista Proteção Integral: Existe uma palavra que define adolescência?

Não. Que interessante, entre nós não existe a palavra que define adolescência, e “essa” não tem
necessariamente uma data marcada. A menina é mais quando há a questão da menstruação. E os meninos
por tabela, correspondem a mais ou menos a essa temporalidade, mas não tem muito essa definição de
adolescente, pré-adolescente. É criança, e depois já são pessoas. Cunhãs e auás, que se tornam guerreiras e
guerreiros no nosso processo.

Revista Proteção Integral: Explique um pouco o significado dessa palavra.

É isso, a palavra criança, e nós não temos, portanto, uma diretamente ligada a adolescência, a palavra
criança... curumins e cunhatãs são seres encantados. Por isso é que, numa comunidade, as chamadas
crianças, as cunhatãs e os curumins, são cuidados por toda a coletividade, são seres de encantaria de que
toda a comunidade cuida com muito carinho, com muito respeito dentro da nossa cultura.

Revista Proteção Integral: Qual é a importância da criança e da adolescente em sua cultura?

Acabei de falar: é de máxima importância, é de importância espiritual, de espiritualidade. Elas, assim como os

Por Raul Araújo com transcrição de Ériko Carvalho


anciões, estão mais próximas dos nossos ancestrais, das sensibilidades da natureza, das encantarias. Quando
a gente fala em encantaria, não são seres humanos, são visíveis e não visíveis, e os anciãos, os pajés, os
morubixabas e as crianças têm essa sensibilidade mais aguçada de ver, sentir e conversar com seres da
encantaria visíveis e invisíveis: pode ser uma folha, um pedaço de mata, pedaço de água, uma chuva. A gente
tem até uma música assim, que a gente canta para as crianças: “Passarinho tá cantando, ôi! Passarinho tá
cantando, o seu canto bonito, ô lê-lê! Quebra rá-rá, ô lá-lá!”. A gente canta essa música porque ela é parecida
com passarinho, com uma entidade, a gente Guyrá, os pássaros, o Tupi, os Tupinambás.

Revista Proteção Integral: Como se transmitem a cultura, os valores e a educação dos adultos para as
crianças e adolescentes?

Conforme eu disse, é interessante essa coisa da adolescência: nós não temos muita distinção, não. A tradição
é pela vivência, pelo convívio, é no dia a dia, com o coletivo da comunidade. Além daquilo que se chama de
unidade familiar, é um termo de que eu não gosto muito. Por que não gosto muito? Porque nós somos
sujeitos, somos pessoas coletivas. Então, a cultura, ela é em valores, educação, é transmitida coletivamente. E
não é só a educação dos adultos, a educação das crianças para nós adultos. É interessante, é um processo de
troca. Então, a pesca, como subir no pé de coqueiro para tirar o coco, como subir no pé de piaçava para tirar a
piaçava, como fazer o dendê, como fazer o óleo de coco, colocar a roça, fazer a oca, fazer essas nossas
lendas, alguns chamam de lendas, nós chamamos de imaginários, de espiritualidades, da y-Îara, da Caipora,
da Mani, de todas essas tradições. E elas são transmitidas de lá para cá, porque a criança é um ser exportador
de sabedorias, muitas sabedorias, então é uma troca. Elas nos ensinam, assim como nós ensinamos aquilo
que nós sabemos. Então, essa é a relação, é de máximo respeito, entendendo a criança como portadora de
sabedorias, e, portanto, é sempre coletivo. Agora existem as escolas indígenas. Nós temos na comunidade
quatro escolas indígenas e duas creches, daqui a pouco explico por que tem creche, parece estranho, né?
Mas vamos para as escolas indígenas: são quatro escolas indígenas estaduais em que, geralmente, os alunos
são crianças indígenas; as crianças não indígenas que estudam lá sabem que vão ter uma educação ligada à
educação escolar indígena. Então, a gente fala assim: existe a educação indígena e a educação escolar
indígena. A educação indígena é no dia a dia, do cotidiano, aquela que eu acabei de explicar. E a educação
escolar indígena tem como princípio, prioridade, a educação indígena, os saberes ancestrais, os saberes das
encantarias, os saberes da natureza, os saberes dos anciões. Portanto, a educação escolar indígena respeita
acima de tudo a educação antes da escola, a que não está na escola, e as crianças. Aí os saberes não
indígenas: biologia, química, história e geografia, eles que se adequam às crianças. Existem os RCNEIs, que

43
são os referenciais curriculares nacionais das escolas indígenas, um dos documentos educacionais mais
avançados. Eu sou educador, minha companheira também é educadora, nós então trabalhamos nas escolas,
mas é isso, esses RCNEIs são as escolas diferenciadas, bilíngues, que têm como portadores de saberes as
crianças e os anciões e as nossas tradições e cultura.

Revista Proteção Integral: Quais os principais desafios para manter as tradições?

É, essa é importante. É difícil impedir o acesso, e acho que nem cabe impedir, mas fazer com que essas
informações que não venham... Ah, sim, eu me esqueci de falar das creches. Por que existem duas creches na
nossa comunidade? Porque muitos dos nossos parentes... Nós moramos em Ilhéus, uma área turística, e
muitos nossos parentes, os pais e as mães, trabalham na construção civil, trabalham nas cabanas de beira de
praia, trabalham em roça, e essas creches na verdade são comunitárias, são coletivas. Só que aí tem algumas
educadoras especificamente para lidar com o dia a dia, com as questões da higiene, dos cuidados, tá certo?
Porque tem certas comunidades em que boa parte das pessoas adultas saem da aldeia para poder trabalhar,
e algumas pessoas ficam nessas creches, mas todas elas com nome indígena. Motara, creche Katuana, e
sempre são educadoras e educadores indígenas que atuam nas escolas indígenas. A administração
pedagógica, o corpo administrativo, todos eles são indígenas, tá certo? Nosso principal desafio é a
demarcação imediata do nosso território. É, a nossa relação com a Terra é o nosso princípio base, espiritual,
de encantaria, de educação pode-se chamar; é esse o principal desafio, que é difícil barrar, porque... barrar
não, difícil, é a principal porta de luta, nós lutamos por melhorias na saúde indígena, que é a SESAI. Agora o
novo governo vai voltar o “Mais Médicos”, nós tínhamos um cubano, que era muito cuidadoso conosco, nos
cuidava bem. Então a gente luta pela qualificação, ou melhor qualidade da saúde indígena, a gente luta pela
melhor qualidade da educação indígena, que o salário do professor indígena, da educadora, do educador
Por Raul Araújo com transcrição de Ériko Carvalho

indígena equivalha ao salário dos educadores e educadoras não indígenas. Na Bahia existe um magistério
indígena. Mas a principal das pautas é sem dúvida nenhuma a demarcação imediata do nosso território. Nós
temos mortes no nosso território. Mais de trinta indígenas morreram na luta pela demarcação. Porque, como
eu disse uma vez, a gente faz a ação direta, aquilo que se chama ação direta, nós fazemos a retomada e
demarcamos, e isso gera por vezes situações de violência e morte, perseguições. A demarcação seria uma
espécie de garantia ao nosso principal direito, esses seriam os principais desafios. O principal de todos é a
demarcação imediata do território, melhor qualificação da saúde indígena, melhor qualificação das escolas
indígenas, as cotas, até você vê que elas são importantes, mas não é o fundamento nesse nosso caso, as
cotas nas universidades e assim por diante.

Revista Proteção Integral: Quais são os conflitos existentes hoje no território em que vivem?

Como o território não está demarcado, nós ficamos sob ameaças dos juízes locais que dão reintegração de
posse. E para eles não importa se tem criança, se tem ancião, se tem mulheres, quando há uma reintegração
de posse geralmente ela é violenta, então isso gera um conflito, gera perseguições. Por vezes temos a
presença de pistoleiros na nossa região, temos ações de violência contra os nossos corpos, contra nossas
almas, nossas espiritualidades. Então, esses são os conflitos, eles são gerados pela não demarcação do nosso
território. Esse seria o fundamental, o fundamento.

Revista Proteção Integral: Como são garantidos os direitos, a educação, saúde, assistência social,
combate à fome, trabalho digno?

É na luta. Nós temos o artigo 231, 232 da Constituição de 1988, nós temos o RCNEI, referenciais curriculares, a
Bahia tem um avanço na questão do magistério indígena. Mas como nós garantimos nossos direitos? É na
luta, parando as pistas, indo para Brasília fazer manifestação, é fazendo a autodemarcação do território e
exigindo das autoridades. É claro que temos aliados não indígenas, que por vezes são parceiros nessa luta.
Porém, sabemos que, se não formos para a luta, se não fizermos a nossa resistência, não conseguiremos
nossos direitos. Então, essa resistência advém daquilo que eu chamo, nós chamamos de re-existência, é a
nossa re-existência, que é do âmbito espiritual, da espiritualidade, da cultura, de pintar corpo, usar o cocar,

44
fazer nossos Toré, o que nós chamamos de Poranci, as nossas rezas, nossos rezos. Nós temos as nossas
anciãs e anciãos que tratam da cura, da cura espiritual. Sem essa re-existência e espiritualidade, nós não
temos a resistência, que é parar uma pista e ir para Brasília exigir das autoridades os nossos direitos.

Como são resolvidos os problemas de crimes, violência que envolve crianças e adolescentes com seus
autores dentro da comunidade, e quando ocorre fora da comunidade? É, quando ocorre dentro da
comunidade, e eu não vou negar que às vezes acontece, são os anciões, os caciques e as lideranças... então,
os mais velhos e as mais velhas, as anciãs e os anciãos vão conversar, questionar e intervir nesse processo,
assim como os caciques que são os morubixabas, assim como as lideranças e as educadoras e educadores
nas escolas indígenas. Então, quando é internamente, é assim que se resolve.

Revista Proteção Integral: Como são resolvidos os problemas, crimes e violências que envolvem crianças
e adolescentes com seus autores dentro da comunidade?

Esse é o primeiro processo. Se isso não der conta, em último caso, nós acionamos as autoridades não
indígenas, mas primeiro é comunitário, é na comunidade. E se continua o cara… Vou contar um caso
rapidamente aqui. Tinha um indígena que batia sempre na sua esposa, que é a sua companheira, e nas
crianças. Aí o cacique interveio três vezes, na outra vez, na última vez, ele foi expulso da aldeia, da
comunidade. A esposa dele, a companheira dele, e as crianças ficaram conosco, com a comunidade, tá certo?
Nós temos lá o direito à cesta básica, nós temos alguns direitos, que são direitos poucos ainda, precários
indígenas. Ele foi mandado embora da comunidade e, se ele voltar, ele não tem volta, só se ele quiser

Por Raul Araújo com transcrição de Ériko Carvalho


conversar, dialogar com as lideranças que vão reavaliar, inclusive com a companheira dele; então, são
resolvidos coletivamente. E quando ocorre fora da comunidade? Pois é. Eu mesmo, pessoalmente, já fui
espancado. A gente é perseguido, a gente sofre ameaças, isso fora das aldeias, nós moramos num lugar, que
é o sul da Bahia, tem os Pataxós do extremo Sul, os Pataxós Hã Hã Hãe, e temos nós os Tupinambás, que, por
estarmos num processo de autodemarcação do território, somos atacados. No geral a gente não acessa as
autoridades não indígenas, no geral a gente não acessa, porque nos olham com suspeita. Tem lá a
procuradoria, a defensoria, mas por vezes elas não são tão atuantes, elas já foram mais atuantes, vale
destacar isso. A gente recorria muito à defensoria, a gente recorre muito aos aliados, a gente faz a denúncia
junto aos aliados, para que essa violência, fora da nossa comunidade, seja contida. Nós vivemos, insisto, num
lugar em que alguns se dizem donos da terra, nós não somos, nem nós éramos donos, nós somos a terra. E,
por vezes, quando ocorrem essas agressões, a gente evita ao máximo inclusive recorrer às autoridades, a
gente recorre aos aliados e, quando isso não é possível, vêm as autoridades. Na verdade, eu vou confessar
aqui: há uma desconfiança nossa em relação aos poderes judiciários constituídos, nós já tivemos pessoas
mais aliadas, nós precisamos de mais aliados nessa área, tá certo?

Revista Proteção Integral: Quais são os conflitos com o sistema de justiça e polícia?

Então, acho que acabei de falar, prisões arbitrárias, perseguições, retirada ilegal de crianças, adoções ilegais.
Vamos por partes. Quais são os conflitos com o sistema de justiça e polícia? Nós somos considerados, por
vezes, como invasores. Nós falamos que não somos invasores, estamos retomando, por isso que é retomada,
o que é nosso e que ainda não foi oficializado. Assim, o principal conflito é com o estado brasileiro e com a
justiça brasileira. O STF, que não anula o chamado marco temporal que é danoso para nós. O que que está
fazendo o STF até agora que não anula de vez esse chamado, julga o processo advindo lá do governo de
Santa Catarina contra os Xoclengs, no morro do cavalo, por que não julga isso? Isso seria importante para nós.
Derrubaria essa... essa coisa que é o marco temporal, acho que vocês já sabem disso. Então, é uma situação
de conflito ainda, nós temos sempre que reivindicar nossos direitos, quando os direitos são muito claros.
Então, por isso que o sistema de justiça, por vezes, atende os interesses dos que se dizem donos, os que se
dizem proprietários da terra, como se a terra tivesse dono, nós somos a terra, é essa a ideia. Então às vezes
gera conflito. Nós já tivemos reintegração de posse no nosso território em 2014. Nós tivemos, acho que é GLO,
Garantia da Lei e da Ordem, tivemos a presença do exército em nosso território, da Polícia Federal, da Força
de Segurança Nacional, isso em 2014, agora deu uma amenizada. Com o governo Bolsonaro, as ameaças
cresceram muito. Por vezes, algumas pessoas, agentes, tanto da justiça e da polícia, são aliados, mas nem

45
sempre são. E prisões arbitrárias nós tivemos em 2011, um cacique, dois caciques, três caciques, vou evitar
falar os nomes. Tivemos três caciques presos, alguns parentes presos. Teve até um parente que perdeu uma
perna com tiro da polícia federal em 2011. Esses parentes foram presos, inclusive esse que perdeu uma perna,
acusados de formação de quadrilha, de… tem um termo jurídico que eu não vou lembrar. Então, é isso que
acontece. A retirada ilegal de crianças do nosso território e adoções ilegais nós não temos, pelo menos que
eu saiba não tem existido esse tipo de ações. Mas, por vezes, a maior ameaça é porque nós estamos num
território em que a demarcação não foi oficializada ainda. Então, essa coisa de retirada ilegal de crianças e das
adoções ilegais não tem ocorrido com frequência, eu não tenho notícias disso.

Revista Proteção Integral: Como você acha que os direitos das crianças poderiam ser garantidos de uma
forma que respeite seu povo e suas tradições?

Pronto. A pergunta já responde. O princípio é respeitar o nosso coletivo, as nossas tradições. Modéstia à parte,
nós cuidamos muito bem das nossas crianças, dos nossos curumins, das nossas cunhatãs, então é respeitar
as nossas tradições, nossas formas de ser, nossa cosmologia, que por vezes serve de retórica para muitos, e
que por vezes nós somos desrespeitados. No caso do povo Tupinambá de Olivença no Sul da Bahia, Ilhéus, é
necessário respeitar nossas tradições, as nossas formas de nos relacionarmos. A justiça tem que pensar nisso,
tem que atuar junto a isso. Só um parêntese: precisaríamos, isto sim, maiores garantias de que não ocorram
invasões no nosso território; então, isso sim seria uma garantia dos direitos, incluindo das crianças, porque
quando nós... quando tem uma reintegração de posse, são crianças, são curumins e cunhatãs, são anciãos,
mulheres e homens que são retirados da sua aldeia.

Então, o princípio básico é conversar com a coletividade, com o Moramonhangá


Por Raul Araújo com transcrição de Ériko Carvalho

coletivo, e perceber a nossa dinâmica cultural de respeito ao Çupé aipo


curumim e à cunhatã. Aquilo que nós falamos, né? Perguntar para Oupaba marape
uma criança o que ela vai ser quando crescer nos parece meio Îandê
estranho, porque ela já é uma criança que tem que ser respeitada Ecó iró
na sua temporalidade e no seu processo de crescimento. Então, Ique jepi
não sei se eu consegui dar todas as respostas, e se for preciso Ecombé
escrever algumas palavras em Tupi que nós falamos, a gente está Mémé
disposto a colocar aí. E como é nossa tradição, eu encerro com îandê
uma música que a gente canta assim: Awêrê Kwekatureté

Carlos José F. Santos ou Casé Angatu Xukuru Tupinambá

indígena e morador da Aldeia Gwarini Taba Atã - Território Tupinambá de Olivença. Historiador e Doutor pela
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo- FAU/USP. Docente na Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC/Ilhéus-BA) e na Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico Raciais da
Universidade Federal do Sul da Bahia (PPGER/UFSB). Autor dos livros: Nem tudo era italiano e pobreza, 1890-
1915 (AnnaBlume, 2006); Identidade Urbana e Globalização - A formação dos múltiplos territórios em
Guarulhos/SP (AnnaBlume/SIMPRO, 2006. Co-autor do artigo “ Protagonistas Indígenas: (re(existências
indígenas e indignidades”, com Ayara Tupinambá (Vanessa Rodrigues dos Santos), publicada no livro LEER-
Índios no Brasil: Vida Cultura e Morte, coordenado por Tucci Carneiro e Miriam Rossi (Intermeios 2018).
Atualmente participa da Cátedra Indígena-LEER e do projetos índios no Brasil, coordenado pelos Professores
Dr. Guilherme Assis de Almeida e Maria Luiza Tucci Carneiro.

46
ÁNGEL – “Há que se respeitar os direitos que são
fundamentais, especialmente o direito de participação da
infância nas tomadas de decisões que lhes dizem respeito”

Revista Proteção Integral: Ángel, conte-


nos um pouco sobre você e seu povo.

ÁNGEL SULUB: Sou maia, vivo na


península de Yucatán, faço parte do
Congresso Nacional Indígena, que é um
movimento dos povos indígenas do
México, que se formou desde 1.996 e que
busca a reconstituição dos povos
indígenas, a recuperação das autonomias,
a luta pelos direitos dos povos indígenas e
sobretudo encontra os melhores projetos
que se impõem sobre os territórios dos
nossos povos. Sou educador comunitário e
junto com outros companheiros e

Por Débora Paulino


companheiras, coordenamos uma escola
autônoma para crianças aqui na selva maia
da península de Yucatán.

Por Débora Paulino

Revista Proteção Integral: Temos uma série de questões para nos guiarmos nesta conversa,
então, conte-nos um pouco sobre seu povo e sobre o Congresso.

Eu pertenço ao povo maia peninsular, ou “maia-yucatéco”, porque há outros povos maienses, em torno de 29
povos maienses, em México, Belise, Guatemala, parte de El Salvador. Faço parte do povo maia yucatéco que
possui maior presença na península. Somos aproximadamente, 700 mil maia-falantes e estamos localizados
na região sul/sudeste do país. Nosso povo nesse momento vive uma situação cada vez mais grave de
despojo territorial, cada vez estamos presentes em menor espaço territorial da península, que é um lugar que
se “turistificou” nos últimos 50 anos. Têm sido anos em que se desenvolveu o turismo massivo a partir da
criação de Cancún, como centro turístico e de desenvolvimento e isso modificou tremendamente a vida dos
povos maias, provocou migrações, provocou o abandono do campo, da semeadura, do plantio de milho,
provocou a ruptura dos tecidos sociais, ruptura das formas de relações entre as famílias e entre as
comunidades e tem desencadeado uma série de conflitos no território, sobretudo, a chegada do narcotráfico,
do crime organizado, a chegada de muitos grupos criminosos de tráfico de pessoas e muitas outras questões
que ainda há muito na sociedade. Então, nosso povo maia está vivendo uma transição que chamamos de
transição violenta pela autosuficiência, que é o trabalho diretamente com a terra, para uma vida dependente
totalmente do turismo, que é a política econômica que se segue impulsionando em todo o território. E isso,
pois, traz muitas mudanças sobretudo nas atividades tradicionais, como a apicultura, a plantação e muitas
outras atividades que são ancestrais e tradicionais dos povos, e que estão se modificando totalmente. Algo
que também é muito importante é que as comunidades sobretudo as rurais mais pequenas conservam
muito, de maneira muito arraigada, são as tradições ancestrais, o trabalho na terra, a ritualidade, a língua,
principalmente nos lugares mais pequenos, mas a tendência é a urbanização, então, tudo está se
urbanizando e nos espaços urbanos o primeiro que se perde é a língua. As crianças já não estão mais falando
a língua maia, seus avós todos falavam a língua maia, mas as gerações novas que vivem nas zonas urbanas,

47
não entendem nem falam a língua maia e com isso, ocorrem muitas outras transformações sobretudo na
maneira de nos relacionarmos com a terra. Dizemos que o sistema educativo, sobretudo o sistema público do
governo do México, tem sido como meta principal do despojo que estamos vivendo como povo, de despojo
de identidade dos povos indígenas, despojo de memória, ou de território simbólico de nossos povos, então, é
uma realidade que estamos vivendo não somente dos povos maias, mas de todos os povos, pois há muitos
esforços também para construir ou criar espaços autônomos e distintos dos espaços educativos públicos do
governo, onde se promova o fortalecimento da identidade das crianças, como voltar a conectá-los com os
avôs e avós, voltar a conectá-los com a terra e o valor do território que habitamos. É um pouco o contexto e
agora se soma aos megaprojetos que se impulsiona nesse governo que é o que mais se pôde avançar na
construção de projetos de infraestrutura, como nós dizemos o chamado “trem maia”, que é um projeto muito
grande que abarca todo o sul e sudeste do México, mas que traz consigo projetos energéticos, projetos
turísticos, projetos de agroindústria, imobiliários e tudo isso que está acontecendo agora, vem acompanhado
de uma onda de militarização que não havíamos vivido, digamos que na história recente da península de
Yucatan. Há uma militarização nos povos sob pretexto de segurança nacional e também porque os militares
são os que estão construindo essas obras: um novo aeroporto, várias linhas de trem, estão construindo
também hotéis e infraestruturas turísticas e são eles que vão administrar todos esses megaprojetos nos
territórios. Então, somado ao crime organizado, agora temos presença militar e nas comunidades tem um
impacto muito grave, sobretudo nas comunidades mais pequenas, de 300, 400 habitantes porque os militares
chegam e se assentam na praça do povo, no centro, em parques e as crianças e toda gente que vive nessas
comunidades já não podem sair para brincar nos espaços públicos porque lá estão os militares. Há alguns
dias, visitávamos comunidades e nos contavam que há muito medo no interior das comunidades porque os
militares chegam com atitude de muita intimidação, de ameaça à comunidade, sobretudo porque há
comunidade que está resistindo e defendendo seus direitos ou que estão reclamando justiça pelo tema de
desalojamento. Então, a presença de militares nas comunidades está mudando aceleradamente a vida que se
Por Débora Paulino

tinha nos últimos anos.

Revista Proteção Integral: Aqui no Brasil, em 8 de janeiro houve uma tentativa de golpe provocada pelos
bolsonaristas, alguns militares e acredito que pelos Estados Unidos. Gostaria de saber se há relação ou se
nota relação entre os Estados Unidos e tudo o que está se passando agora?

Angel: Nós vemos uma relação direta entre os interesses dos Estados Unidos, não somente dos interesses
econômicos, mas também dos políticos e dos militares. Houve na costa de Quintanajo, que é na península de
Yucatán, na costa do Caribe, práticas militares onde participaram militares dos Estados Unidos, do México e
de alguns países do Caribe. Essas práticas militares, segundo informou o governo, são para garantir a
segurança, para treinamento dos militares, mas todo esse discurso, o que nós interpretamos é o grande
interesse que tem os EUA por exercer o controle em toda esta região, não somente pelas práticas militares,
como também nesse momento, um dos principais territórios em que se tem interesse é o sul/sudeste do
México, onde se está construindo o corredor interoceânico, que irá se conectar com o chamado “trem maia” e
que vai se conectar, por sua vez, com a rede ferroviária na região da América Central (Belise, Guatemala). É
todo um reordenamento territorial que está se programando e já está se implementando na América Central
e que está muito claro o interesse dos EUA. Esse vínculo, esse claro interesse inclusive foi mencionado por
autoridades do Exército dos EUA e isso para nós, é algo mais preocupante, porque nós vemos do governo do
México que está atendendo, sobretudo, aos interesses econômicos internacionais, como aos interesses
políticos dos EUA e toda essa situação, pois, vai contra em muitas ocasiões pelos direitos dos povos, inclusive
violando leis e regulamentos nacionais, todos com o fim de continuar e de terminar essas megaobras de
nossos territórios. Está aí, pois, uma grave violação de direitos humanos, sem esquecer que há uma férrea
vontade do governo atual de terminar essas obras antes do término de seu mandato que deverá se findar em
2024.

Revista Proteção Integral: Pode falar um pouco sobre o que é o Congresso Indígena?

Ángel: O Congresso Nacional Indígena, que chamamos CNI, é um movimento dos povos indígenas do
México. Nasceu em 1996, dois anos depois do levantamento Zapatista em Chiapas, a grande insurreição dos

48
povos maias em Chiapas, buscando a dignificação da vida dos povos. Foi um levantamento histórico que foi
representado o início de uma série de visibilizações das problemáticas dos povos indígenas do México. Dois
anos depois, os povos antes chamados de zapatistas, nos organizamos neste movimento que se chama CNI,
e que forma parte a maioria dos 68 povos indígenas que vivemos no Mexico. Desde então, e desta esta data,
em diferentes espaços, em lugares com mais força e outros com menos força, mas lutamos pela defesa
territorial, pela recuperação das autonomia dos povos, pelos espaços de decisões dos povos e contra os
megaprojetos que estão causando a destruição das comunidades, sobretudo a mineração, a agroindústria
que também está devastando os bosques e muitos outros projetos que não se pediu a participação dos
povos indígenas, ao contrário, continua o grande despojo de nossos povos. Assim, foi como nasceu o CNI.
Visibilizando, denunciando e lutando contra esse sistema que estamos vivendo. Isso trouxe muitas
consequências: houve muitos assassinatos e também a presença de grupos paramilitares, que se sabe que
possuem também relação direta com o governo. Então, há grupos paramilitares que são os que enfrentam os
grupos de comunidades autónomas. E isso vemos cada vez maior nos territórios. Aqui na península de
Yucatán, ainda se vê a presença dos paramilitares, isso se dá pelos vínculos que existem entre os grupos
paramilitares e os governos municipais, estatais e com os governos federais. Então, o CNI é esse espaço
organizativo. Dizemos que quando estamos juntos é uma grande assembléia. Teremos uma assembléia
nacional no próximo 4 e 5 de março onde tomaremos decisões importantes para os povos. As decisões
podem ser um pouco lentas, porque um princípio desse Congresso Nacional é consultar todos os povos; se
levam propostas nessas assembléias e depois, cada delegado (e eu sou um delegado) regressamos a nossas
comunidades e fazemos uma consulta com a comunidade para tomarmos as decisões. As decisões do
congresso são decisões consensuais. Não tomamos decisão por votação, e somente por consenso e
sobretudo, o elemento mais importante é a asembléia comunitária, onde tratamos de recuperar e valorar

Por Débora Paulino


realmente o poder da assembléia comunitária. Essa é uma grande luta que estamos fazendo, sobretudo pela
construção das autonomias, independente se há ou não um reconhecimento do Estado, sobre essas
autonomias. Houve diferentes exemplos de povos que nesse momento estão exercendo suas autonomias,
em alguns casos, com o reconhecimento do Estado e em outros casos, sem, mas das decisões dos próprios
povos.

Revista Proteção Integral: Você falou sobre um trabalho com crianças. Poderia falar um pouco mais sobre
esse trabalho?

Eu faço parte do Centro Comunitário U Kúuchil K Ch’i’ibalo’on, que significa espaço de nossos ancestrais. E o
que nós vimos nesses 13/14 anos de trabalho nesse centro comunitário, é que cada vez mais se dá um
rompimento entre a infância e as pré-juventudes, um rompimento entre eles e a terra; pelos avôs e avós,
como um vínculo que se perde, começando pela língua, começando pela valoração da terra, das práticas
agrícolas ancestrais, o trabalho que se faz no campo. Há uma ruptura inclusive da memória, porque as
crianças e jovens não conhecem o passado de autonomia de nossos povos, não conhecem o que nossos
bisavós lutaram nesse território para defender suas antonomias, então, há uma grande ruptura que
consideramos que é muito grave. E o que detectamos em um primeiro momento é que essa ruptura se dá na
escola, desde o início, onde se começa o sistema educativo, por volta dos 3 ou 4 anos de idade, inicia-se um
processo para transformar a forma de vida das meninas e meninos. Por exemplo, o que se passa todos os
dias é que se impede ou se evita que as crianças toquem a terra, que permite que as crianças cresçam
totalmente distantes da terra. E nesse espaço que temos (Centro comunitário), buscamos o contrário, que
possamos tocar as plantas, sentir a terra, vivê-la. E isso é algo muito transcendental quando as crianças e
jovens crescem porque se distanciam da terra e do valor da terra. É o “sentir” como algo sagrado. As
gerações mais jovens não têm um vínculo mais forte com o território porque é um ensinamento que não
receberam. A escola não ensina e tampouco se ensina que somos povos maias vivos, contemporâneos, com
sabedoria, mas se segue ensinando os povos maias do passado, clássico, que construíram as cidades e que
inventaram os calendários. Isso se valoriza muito, mas não se valoriza, ao contrário se discrimina, se despreza
o saber popular que habita nos povos nos dias atuais. Por um lado, se enaltece muito o passado e se
discrimina o presente. Através da escola, se conhecem os museus, se conhecem os maias que nos
apresenta, incluso como parte de espetáculos dirigidos ao turismo, como um produto, mas não se ensina o
valor de um avô e de uma avó, que guardam conhecimentos sobre plantas, sobre raízes, então, esta escola
autônoma que construímos ao longo dos anos, que valoriza os saberes comunitários, a língua etc.

49
Também o governo tem programas educativos para os adultos para ensinar a língua maia, poucos, mas o
método é acadêmico, então, se ensina uma língua que não é a língua maia que se fala nas comunidades. Vale
mais para nós, a tradição, aquela que se aprende em casa, ao escutar nossos familiares. Temos também um
programa dividido em quatro módulos que são: Terra, Água, Fogo e Ar, que são os elementos sagrados do
povo e também temos muitas práticas de rituais do povo e são práticas que as crianças não conhecem
porque já estão nos entornos urbanos e porque já estão muito distanciados dos avós, ainda que não
fisicamente, mas entre uma geração e outra, as mudanças que existem são muitas. As aspirações das
crianças e jovens são muito diferentes das que os avós tinham. Agora a aspiração, que nós entendemos
imposta, é viver na cidade, trabalhar em algum escritório, fazer parte da indústria turística, então, desde
criança em Quintana Roo, se nos projeta com esse futuro. Mas isso é estratégia do governo para seguir
expulsando nosso povo, separar as crianças nas escolas, se ensinando que tudo que se necessita para o bem
estar das famílias está atrelado ao turismo. Está se construindo uma identidade nova, construída sobre o
turismo. Há o despojo da identidade e o que buscamos com esses espaços autónomos, tentamos ao menos,
onde as decisões do que se ensinar e como, seja do povo e não do sistema educativo.

Revista Proteção Integral: Em seu idioma há palavras que diferenciem crianças, adolescentes, jovens?

ÁNGEL: Sim, em maia yucateca, meninos e meninas se diz “paal” e definimos indistintamente (meninos e
meninas). Quando queremos dizer menino, dizemos “chi paal” e meninas, “chu paal”, mas na língua maia, a
maioria das palavras não tem gênero. Entendemos adolescentes quando já atingem mais idade, como 16, 17
anos, nós chamamos como “tanquelemil”, quando atingem 18 anos, já entendemos como adultos.
Por Débora Paulino

Revista Proteção Integral: Existe algum significado especial para meninas e meninos, em sua vivência?

Ángel: Quando nos referimos aos filhos, dizemos a palavra “djal”, que significa retornar, que é como se repõe
as folhas do outono de uma árvore. Então, quando uma mulher tem seu filho, dizemos que a criança está
retornando.

Revista Proteção Integral: Existe algum significado especial para meninas e meninos, em sua vivência?

Ángel: Como se diz, uma maneira de se entender a infância é vinculá-la aos mais velhos. Então, o que os avós
nos dizem é que há uma prática que é como “escutar as avós e os avôs”, então, os avós falam das crianças
como sementinhas, e o que eles dizem é que a infância é como o momento em que as sementinhas estão por
germinar e essa germinação se dá quando já estão maiores. Então, quando estão pequenos são as
sementinhas. Por isso, há um especial cuidado com a infância e por isso, as atividades como o plantio, a
colheita devem ter a presença de crianças para que elas incorporem as práticas que sempre estão presentes
nesses momentos em que se faz algo pelas comunidades, principalmente as comunidades rurais, pois como
eu disse, nos entornos urbanos as crianças já não estão convivendo muito com os avós. Aqui onde vivo, há
mais de 100 comunidades rurais pequenas e é muito marcado pela diferença, pois já há muito envolvimento
da comunidade com o turismo.

Revista Proteção Integral: Quais os principais desafios para se manter as tradições?

Ángel: Tradicionalmente, toda a cultura, os saberes, as práticas e a língua se transmite nos espaços
comunitários, um deles é o Solar, que é como o pátio da casa. Em nosso povo está configurado como um
espaço onde não há divisões, há muitas casas familiares e no meio delas há o solar, ou pátio, onde o mais
cotidiano é que todos saímos e ali convivemos, preparamos os alimentos, é um espaço comunitário de toda a
família, grande, com árvores frutíferas, onde criamos os animais domésticos. Então é um dos principais
espaços de saberes e valores. Outro espaço é a “Milpa”, que é onde se semeia, se colhe, muitas vezes,
distante da comunidade, então, temos que levar os avós até lá e estão presentes as crianças e demais
membros da família. Então, esses valores estão correndo perigo, porque estão desparecendo cada vez mais.
Conforme se vai urbanizando, o primeiro que se modifica é a casa, cada vez temos menos espaço para

50
construir nossas casas, os terrenos vão ficando mais pequenos e se pensamos nas crianças e famílias maias
que migraram para as cidades, principalmente, turísticas, agora vivem em casas que nem sequer tem o pátio
e são fechadas por muros. Então, falando de desafios penso que um dos principais é restabelecer o vínculo
entre as crianças e os avós, para que dialoguem, se encontrem, porque a escola pública os afasta. A maneira
que os afasta é que não se valoriza o saber dos mais antigos. Há uma idéia de que os avós que não
estudaram, muitos não sabem o espanhol, não sabem escrever, há essa idéia de que “eles não sabem de
nada”, então se discrimina a sabedoria e não se realiza a transmissão de valores. Há então a ruptura simbólica
dos saberes. Então, até mesmo os avós dizem “para que vou praticar a milpa, se não vão valorizar?” Então, há
uma desvalorização dos saberes, dos costumes que está com os avós e são essenciais para dar continuidade
à transmissão dos valores e saberes que vem desde nossos ancestrais.

Revista Proteção Integral: Como são garantidos os direitos a educação, saúde, assistência social, combate
a fome, trabalho digno?

Nós denunciamos muito precisamente essa falta de atenção a esses direitos à população maia,
especificamente à infância, porque estamos em uma região de mais de 100 povos, com dificuldade de
comunicação que ocorre via estrada, não temos centro de saúde, ou se há, muitas vezes, não há médico, ou
se há médico, muitas vezes não há medicamentos, insumos, então, denunciamos por muitos anos, a falta de
vontade local do governo por atender essas necessidades básicas das comunidades porque Quintana Roo é
um local de maior quantidade de ingresso de turismo, como a Riviera Maia, onde há muito dinheiro. Então
questionamos como é possível não termos médico ou medicamentos em nossa comunidade, ou adequadas

Por Débora Paulino


vias de comunicação. Então, temos comprovado através dos diversos governos locais, que não há priorização
de atenção dessas necessidades, entre outras, porque são comunidades maias. Se prioriza a atenção às
cidades ou a novos povos que vão sendo criados quando a população não é maia. Então, vemos essa
discriminação e a necessidade cresce na área de saúde, sobretudo se há um acidente, é necessário se
transportar a pessoa da comunidade, às vezes, leva quatro horas, para se chegar até um local com
atendimento em saúde. Na questão de educação, também há dificuldades, faltam escolas. Não há esforços
do governo para garantir essas questões. Há dificuldades também sobre atenção social, como eu disse, há
lugares onde as crianças não podem sair de casa porque há ocupação de militares ou de pessoas vindas de
fora para trabalhar na construção do trem e em muitos momentos, essas pessoas ficam alcoolizadas e
representam riscos para nossas crianças. Então, o governo não se atenta para essas situações, embora haja a
mobilização da comunidade.

Revista Proteção Integral: Como são resolvidos os problemas de crimes, violência, que envolvem crianças
e adolescentes como seus autores dentro da comunidade? E quando ocorre fora da comunidade?

Há uma característica muito geral das comunidades. As comunidades não possuem cárcere para adultos,
então, a frequencia de delitos em comunidades pequenas é muito reduzida. Onde se pode observar de
maneira cotidiana, como a ocorrência de delitos de diferentes tipos é nos entornos urbanos e o que temos
visto é uma participação maior de adolescentes. Eles estão sendo atraídos para a delinquencia organizada,
para, entre outras coisas, a distribuição de drogas e diferentes questões onde são utilizados. Aqui onde estou,
há duas noites, atropelaram dois adolescentes, um de 13 e outro de 14, que estavam em uma motocicleta e
um faleceu tristemente e outro está em estado grave, mas o que se passou foi que dois adolescentes são
distribuidores de drogas, então, isso está acontecendo muito nos entornos urbanos. Temos visto
adolescentes que disparam acidentalmente armas. E nas comunidades, a maneira de se resolver os conflitos
entre as famílias é com a autoridade comunitária e normalmente, não há sanções severas porque não se
tratam de delitos graves, mas outra coisa que está acontecendo e que é preocupante, é que muitas pessoas
que saíram das comunidades para as cidades, para turismo etc, quando regressam, trazem uma série de
mudanças em suas condutas sociais, que provocam violência e delitos na comunidade. Mas não é algo que
podemos ver como graves, porém, nos entornos urbanos, pelo contrário, há sim, condutas graves e até
violentas, e quando se trata de adolescentes apreendidos, o trato do sistema de justiça e da polícia é
bastante severo, embora haja leis de proteção para adolescentes, mas o que sabemos é que o sistema
judicial trata os adolescentes de forma muito severa. Há cerca de uns 2 anos, um adolescente de 17 anos foi

51
preso por supostamente portar maconha. Na Delegacia ele foi agredido e foi liberado, mas dias depois
faleceu em virtude das agressões sofridas. É uma situação muito dura, que acontece sobretudo nas cidades e
principalmente se o adolescente é mais velho, como 16, 17 anos. E também não há muitas denúncias, pois as
organizações de direitos humanos de crianças e adolescentes nem sempre podem alcançar ou atender esse
tipo de situações. Vivemos no contexto urbano, próximo à praia de Carmen, em Cancún, onde todos os dias
temos notícia de desaparecimentos, assassinatos, pessoas encontradas mortas, realmente é algo cotidiano,
então é muito complexo o que acontece. Então, para terminar essa resposta, é muito marcada a diferença
entre o entorno rural, que é onde lutamos pela proteção dos valores rurais e a violenta mudança quando se
avança alguns quilômetros, como a cidade de Tulun, onde a vida é totalmente diferente.

Revista Proteção Integral: Quais são os conflitos de seu povo com o sistema de justiça e polícia? Prisão
arbitrárias, perseguições? Retirada ilegal de crianças? Adoções ilegais?

Há uma criminalização da defesa, então, quando há manifestações, protestos, como aconteceu no ano
passado no caso do trem, com a ocorrência dos despejos de forma muito violenta, que envolvem toda uma
comunidade, incluindo-se crianças, jovens. Não houve situação grave envolvendo crianças, mas foi um ato
envolvendo a Guarda Nacional e a Polícia Ministerial, tudo na presença de crianças. Então, a partir desse dia,
os militares tomaram a área desse povoado de 300 habitantes. Assim, no passado recente, aqui na península
de Yucatán, esses enfrentamentos entre policiais e comunidades ou prisões quase não se vivia. Estamos em
uma transição muito forte. A diferença entre outros estados do México, que já enfrentam esses conflitos há
muito tempo, com a Polícia e o Exército, aqui estamos começando a ver, mas as análises que fizemos junto
com organizações de defesa, defensoras e defensores, é a tendência de que cada vez haja mais
enfrentamentos com os corpos policiais, pois há mais presença desses. Em Quintana Roo foi criado o batalhão
Por Débora Paulino

turístico, que nada mais é que a presença de militares nas praias e nos espaços públicos de turismo, é algo
recente, e é algo que nunca havíamos vivido. Já estão em várias praias, militares armados. Então, essa
presença cada vez mais cotidiana está fortalecendo e a tendência é que no futuro, tenhamos mais
enfrentamentos das sociedades, dos povos e a polícia, porque sabemos que um dos objetivos da presença
militar é garantir a implementação dos projetos que sobretudo atingem os povos indígenas.

Em relação às adoções ilegais, pelo menos aqui na região de Quintana Roo ocorre muito pouco. Aqui, as
comunidades estão bem atentas e se organizam para proteger qualquer ameaça contra nossas crianças. O
mesmo ocorre com os recém-nascidos. Há uma preocupação muito arraigada e muito clara do nosso povo.

Revista Proteção Integral: Como você acha que os direitos das crianças poderiam ser garantidos de uma
forma que respeite seu povo e suas tradições?

Ángel: Nós pensamos no centro comunitário, que o mais importante é uma construção coletiva e um cuidado
coletivo dos valores e direitos que temos com a infância, os povos mesmos através de suas autoridades, suas
assembléias, nos espaços autônomos, possam gerar as condições de cuidado e proteção, algo que estamos
muito acostumados. As instituições de fora que chegam com programas ou normas ou regras até os povos,
muitas vezes não entendem os costumes, as tradições, as formas de organização de vida comunitária. Então,
nesse sentido, penso que o mais importante é que tudo nasça das comunidades, que as instituições públicas
deixem de nos atender com um olhar assistencialista, e sim, com um olhar de acompanhamento com os
povos. Geralmente os programas do governo chegam com um olhar colonial, como se tivéssemos que ser
ensinados e eu penso que dessa maneira não funciona. É necessário que haja condições para que os próprios
povos possam, a partir de nosso sentir, gerar as condições que garantam o respeito aos direitos da infância.
Então, ao menos nessas comunidades em que convivo, há um profundo sentimento de cuidado, de amor, de
proteção sobre a Infância. São valores familiares de proteção e de cuidado que estão presentes. É importante
permitir que cada comunidade possa construir seus espaços de tomadas de decisões.

Revista Proteção Integral: Gostaria de saber se as crianças e os adolescentes acabam por cumprir um
papel de ponte entre o mundo maia-indígena e o mundo não indígena.

52
Ángel: Aqui na região onde estou, que é uma região hiper-turistificada, pensamos que já não existe essa
ponte. Os jovens e as novas gerações representam uma ruptura e o que nós queremos é que sim haja essa
ponte. Queremos que os jovens estudem, que vão até as cidades, mas que mantenham suas raízes fortes,
seus vínculos com seu povo, com seus avós, com sua ancestralidade. Na escola autônoma é o que nós
buscamos para que essa ponte exista, porque sabemos que se as raízes são fortes entre a comunidade, os
jovens podem ir fisicamente, mas sempre estarão ligados e muitos regressam às comunidades, aos
territórios, precisamente porque existe esse vínculo. Mas na atualidade, o que a transição violenta provocou é
que não estão sendo construídas essas pontes. Os jovens deixam de se reconhecer maias e isso vemos
como algo muito perigoso, porque se destrói e quando dizemos que o sistema ganha é porque isso termina
com o despejo de nossa identidade. Então, nos últimos 50 anos ocorreu uma transição violenta entre a forma
de vida do povo maia e agora a vida com o turismo. Então, é justamente o que queremos, que não se rompa
esse vínculo, que exista essa ponte.

Revista Proteção Integral: Você falou sobre autonomia. Fale um pouco sobre essa autonomia e como se
atinge essa autonomia das crianças?

Ángel: Nós quando falamos de autonomia, falamos de respeitar os direitos que são fundamentais, como o
direito de ser, de existir e de decidir. Esses dois últimos aplicamos em todos os processos, inclusive nos
processos da infância, por ex., na “escuelita”, a maneira em que aplicamos os princípios da autonomia é
através dos conteúdos, das formas da maneira que estruturamos a “escuelita”; a decisão e tudo o que está
envolvido, tem participação da infância. Então, a maneira de trabalho que temos em nossas assembléias

Por Débora Paulino


organizativas estão presentes os avós, mas também sempre estão presentes as crianças, as juventudes e
sempre garantimos o direito de expressão e as decisões que são tomadas, levam em conta o exercício do
direito de existir e seu direito de participação nas decisões nos assuntos que lhes dizem respeito.

Revista Proteção Integral: Quando você falou sobre saúde, disse que há dificuldade de se garantir o
básico, como médicos etc. Aqui no Brasil, estamos passando por um problema muito complexo que
envolve a alimentação, a saúde e muitas outras coisas das crianças dos povos yanomamis e gostaria de
saber se aí há algo semelhante; se o processo de turismo e construções impactou a saúde das crianças
em razão do desenvolvimento?

Ángel: Aqui temos uma situação muito grave que tem impactado a saúde das crianças que é a presença do
glifosato, que é um agrotóxico da indústria de alimentos, que está presente em diferentes territórios da
península de Yucatán e em estudos recentes, que estamos fazendo sobre a soja transgênica e a
contaminação da água, então, há presença de glifosato na urina das crianças e certas comunidades e até
mesmo, no leite materno. Há presença de glifosato nas frutas dos quintais das pessoas, na laranja, no mamão,
frutas que se comem nas casas. Então, há uma situação de saúde grave, pela agroindústria e também pelas
granjas de porcos, que são destinados a exportação para a China.

O que acontece é que as fontes de água do subsolo e que também formam a água que se bebe nas
comunidades, então, os povos mais pequenos acostumados a beber água da fonte, mas está havendo
grande quantidade de doenças gastrointestinais entre crianças pela presença de cloriformios fecais dos
porcos na água. Isso são algumas das questões de saúde. Aqui acontece o mesmo. A questão da água está
impactando de forma muito forte. O turismo está contaminando muito as fontes de água. Aqui mesmo, os
povos que vão crescendo e que tinham poços naturais de água, vão sendo fechados, tapados e convertidos
em fossas secas. As fontes subterrâneas estão sendo contaminadas e atingem uma área grande e agora, as
comunidades precisam contratar serviços de entrega de água potável e a situação de empobrecimento é
muito forte, de modo que não há condições de realizar a compra dessas águas. Então, ou se toma água
comprada ou se toma água contaminada. É uma situação gravíssima!

53
LURDELICE – “A luta pelo espaço de liderança feminina e
para que meninas indígenas possam realizar seus sonhos”

Revista Proteção Integral: Professora


Lurdelice, pode se apresentar?

Sou Formada em Pedagogia, aprovada em


concurso público no município de
Amambai, Estado de Mato Grosso do Sul,
Diretora-adjunta na Escola Municipal Pólo
Indígena Mbo-Eroy- Guarani-Kaiowá,
tenho pós-graduação em várias
especialidades: Gestão Escolar; Educação
Especial; Neuropedagogia,
Psicomotricidade; e Psiconeuropedagogia;
trabalho há mais de 10 anos efetiva e há 17
anos na escola; tenho 40 anos, sou da
etnia Kaiowá, atualmente sou vice-
liderança da Aldeia Amambai, liderança
feminina. Os kaiowá tem aceitado bastante
Por Débora Paulino

a participação feminina e me sinto


privilegiada por estar à frente da
comunidade.

Por Débora Paulino

Revista Proteção Integral: Conte um pouco sobre a história do seu povo.

Os Kaiowá são povos originários assim nomeados pelos portugueses. Se localizam em todo Estado de Mato
Grosso do Sul especialmente na região sul do estado, percorrendo a região de fronteira do Brasil, Paraguai e
Argentina. Para os povos kaiowá não há a divisão entre os países, é um único território. Em Amambai,
convivem além da etnia kaiowá, também a etnia Guarani, misturados, formando a comunidade guarani-
kaiowá, que convivem harmonicamente. Embora estejamos próximos à cidade, preservamos nossa cultura e
língua kaiowá, através das rezas, dos cantos e das tradições. Meus avós falam a língua própria kaiowá, mas eu
e os meus da minha geração, já falamos a língua misturada dos guarani e kaiowá.

Revista Proteção Integral: Qual é a palavra que define criança ou infância em sua língua?
Existe uma palavra que defina adolescência? Explique um pouco o significado dessa palavra?

Criança é mitã. Adolescência para nós é diferente. A partir do momento em que a menina menstrua, já é
considerada pronta para o casamento. Porém, isso vem mudando ultimamente. Meninas e meninos de nossa
comunidade vêm sendo incentivados a estudar e não se casarem tão cedo. Mas quando é o desejo deles,
cabe à família e à comunidade acolherem e auxiliarem nesse início de vida adulta. Como liderança, tenho
conversado muito com os pais, com as famílias, para que conversem com seus filhos, principalmente com os
adolescentes pois sabemos o quanto é difícil essa fase e precisamos orientá-los para que não façam coisas
erradas. Crianças e adolescentes são vulneráveis. Orientação e acolhimento são muito importantes.

Eu tive oportunidade de estudar, me casei aos 23 anos, mas muitas meninas se casam aos 12, 13 anos de
idade. Eu tive a sorte de ser orientada pelos meus pais, tive todo apoio para estudar, trabalhar, ao contrário

54
de minha mãe que se casou aos 13 anos. Acredito que justamente por isso, pelas dificuldades enfrentadas
por ela, a mim foi possibilitado um caminho diferente.

Revista Proteção Integral: Qual é a importância da criança e do adolescente em sua cultura?

Crianças são muito importantes para nós, desde a gestação. Desde a barriga, a mãe deve cuidar, amar. A mãe
deve ser respeitada, não deve ser agredida de nenhuma forma, porque nós acreditamos que a criança já
escuta tudo que se fala sobre ela e já percebe muitas coisas. Acreditamos que se a criança passa por algum
tipo de agressão no ventre da mãe, futuramente ela pode manifestar agressividade, rebeldia etc. Por isso,
temos muito cuidado com as mulheres gestantes. Orientamos quanto aos serviços, aos cuidados. Somos
todos responsáveis por essa mãe e essa criança que está sendo gerada.

Revista Proteção Integral: Como se transmite a cultura, os valores e a educação dos adultos
para as crianças e adolescentes?

Nossa cultura e nossos valores são transmitidos pela família e também pela escola. Nossos anciãos são
considerados nosso centro. Mas ultimamente, de 2006 para cá, o que eu tenho percebido é que nossos
idosos tem deixado de falar mais com os jovens. E quando questionados eles afirmam que “os jovens são
estudiosos, já sabem tudo, pra que vão querer ouvir um idoso?” e eu digo que o papel dele é muito
importante para nós, que precisamos ouvir suas histórias de vida, o que já passaram, o que já viram. Meu pai

Por Débora Paulino


mesmo é encantador e contava muitas histórias para nós, suas piadas. Através das histórias, se ensina os
valores. Isso fez muita diferença na minha formação. Temos nossos rituais, nossas casas de reza ainda
permanecem em atividade e são muito importantes. Também tenho conversado muito com as crianças e
adolescentes para que ouçam principalmente seus idosos, que escutem suas histórias, seus ensinamentos,
mas essa geração mais jovem tem dificuldade de conversar com os mais velhos. À medida que se aproximam
da cidade, querem se desligar de seus costumes e de conversar com os mais velhos.

Revista Proteção Integral: Quais são os conflitos existentes hoje no território em que vivem?

Depois do conflito que vitimou vários indígenas, ocorrido em 2022[45] - confronto entre os guarani-kaiowá e
policiais do Batalhão de Choque da Polícia Militar - tivemos uma melhora nas situações de conflito, mas ainda
vivemos ameaças de grupos que querem nossas terras. Precisamos ficar atentos, nos cuidarmos porque
sempre existe a ameaça contra nosso povo. Para nós, as terras fazem parte do território Guapoy, que
pertencia aos nossos ancestrais e são parte da nossa reserva, mas foram sendo entregues a fazendeiros, pela
União, com título de propriedade. Então, nosso território (reservas) já perderam muitos hectares e hoje temos
uma área muito menor e sempre querem tomar ainda mais de nossa área.

Revista Proteção Integral: Como são garantidos os direitos a educação, saúde, assistência
social, combate a fome, trabalho digno?

Nos últimos tempos, vivemos muita dificuldade, mas posso falar pelo lugar onde vivo. Tivemos muito apoio
do governo municipal, Secretaria de Assistência Social, que nos ajudou com essas questões de combate a
fome e Secretaria de Saúde, com os problemas de saúde. Sempre que recorremos a eles, somos bem
atendidos. O mesmo não posso dizer dos demais governos, especialmente federal.

[45] Para entender um pouco sobre o conflito ocorrido: https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-


sul/noticia/2022/09/15/entendapor-que-amambai-e-cenario-de-conflitos-de-terras-envolvendo-indigenas-e-produtores-
rurais.ghtml

55
Revista Proteção Integral: Como são resolvidos os problemas de crimes, violência, que envolvem crianças
e adolescentes como seus autores dentro da comunidade? E quando ocorre fora da comunidade?

Crimes envolvendo crianças e adolescentes são encaminhados para a Polícia. Não impedimos que as leis
sejam cumpridas, mas também fazemos nosso trabalho interno. Conversamos com os envolvidos, para que
outras medidas sejam tomadas além do trabalho de investigação e punição. Apuramos o envolvimento das
famílias, inclusive para prestar suporte às vítimas em suas necessidades.

Quais são os conflitos com o sistema de justiça e polícia? Prisão arbitrárias, perseguições? Retirada ilegal
de crianças? Adoções ilegais?

Já tivemos mais problemas nesse sentido. Nos últimos tempos, temos um bom relacionamento com os
órgãos públicos, como Polícia, Ministério Público. Assim, muitas vezes, quando há suspeita de envolvimento
de nosso povo com algum crime, a polícia local entra em contato conosco (liderança) para trabalharmos
juntos e não ocorram as prisões arbitrárias. Quanto à retirada ilegal de crianças também não tem acontecido
ultimamente. Mesmo quando há notícia de violação de direitos de crianças, busca-se a manutenção da
criança na comunidade, seja na família extensa ou em outros membros, para que as crianças não sejam
retiradas de seu ambiente, da comunidade. Caso não seja possível a manutenção da criança na família,
geralmente as crianças são adotadas por pessoas da comunidade ou de outras comunidades também
indígenas.

Como você acha que os direitos das crianças poderiam ser garantidos de uma forma que respeite seu
Por Débora Paulino

povo e suas tradições?

Ainda precisamos de melhor investimento, maior atenção com nosso povo. Precisamos de mais recursos
para Educação, mais incentivo para manutenção de nossas terras, de nosso povo. Mais segurança para que
não ocorram conflitos por terra, invasores. Precisamos de mais respeito às nossas tradições, para que nosso
povo continue tendo orgulho de quem somos.

ROSALBA – “Os desafios do mundo globalizado e a


manutenção da identidade indígena”

Revista Proteção Integral: Rosalba, por


favor, se apresente.

Sou Rosalba Velasco, sou indígena do Povo


Nasa do Norte, do Departamento de Cauca, de
uma reserva chamada Muncique Los Tigres, do
município de Santander de Quilichao,
Colômbia, faço parte da Associação de
Conselhos Indígenas do Norte Cauca, da qual
faço parte há muitos anos, acompanhando-os
no processo de organização e também nos
últimos anos tenho feito parte do grupo de
organização e promoção da cultura política ,
uma organização feminista, onde trabalhamos
vários temas como pesquisa, formação,
Por Raul Araújo incidência política e acompanhamos e
articulamos

56
alguns processos com todos os processos que têm a ver com a prevenção da violência sexual em territórios
indígenas e estamos fazendo um trabalho coordenado com a rede feminista, a rede de educação, da saúde e
da assistencia social, isso é um pouco do que nos estamos a dedicar nos últimos tempos.

Revista Proteção Integral: Conte-nos um pouco da história do seu povo?

O Povo Nasa é um povo que se caracterizou, como povo que lutou, e através da resistência conseguiu resistir
a invasão espanhola e ao longo dos anos reivindicou neste país a luta organizada, eles reivindicaram os
direitos, eles reivindicaram não apenas os direitos dos povos indígenas, mas também os direitos que
permitem a eles, bem, como ele, a comunhão da sociedade, melhores condições, o movimento indígena na
Colômbia é um movimento que nasceu de muitos anos, porque completamos 52 anos de luta organizada. No
dia 24 de fevereiro de 1971 foi organizado o conselho do regional, é uma organização regional, a luta
organizada, pela recuperação dos territórios, recuperação das terras e das vidas que foram tiradas dos
antepassados, dos mal-feitos que ocorreram através dos anos. É um processo que hoje está a ser feito e
estamos conquistando muitas coisas a partir dos princípios de luta que são unidade, terra, cultura e
autonomia, conseguiram abrir um caminho que percorremos há 52 anos, importantíssimo, diria eu, é uma
plataforma de luta, convidam-nos a continuar lutando por cada um desses direitos que temos proposto:
educação, saúde, território, fortalecimento da família, juventude, mulher, guarda indígena, defesa de direitos,
enfim, e tantas outras questões que foram levantadas na nossa plataforma de luta e bem viver, muitos de nós
fomos organizando de um jeito ou de outro ao longo dos anos, acompanhando esses últimos anos aqui.

Por Raul Araújo


Revista Proteção Integral: Qual é a palavra que define criança e infância na sua língua, tem
uma palavra específica?

É uma palavra que define como uma das fases da vida Nasa, é a fase da infância.

Revista Proteção Integral: E qual é o significado dessa palavra?

E dizer menina, que diferença, na nossa linguagem a gente consegue diferenciar que quando a gente chama
menino, menina, homem, mulher isso é uma coisa que fica muito marcado na gente então olha, menina é
“aham” e também pelo menos quando as mulheres são nomeadas, as mulheres são extremamente
diferentes, assim como os homens são chamados aqui na nossa língua, na nossa língua estava escrito mulher
(Uy), então aqui na nossa língua conseguimos que a separação da nomenclatura do homem e da mulher é
muito bem marcada e separada da forma como nos nomeamos e o homem é, aqui vou escrever para vocês,
?

Revista Proteção Integral: Existe alguma palavra para adolescente?

Para os jovens, olha a questão da juventude aqui na cidade de Nasa, tem sido, como você pode dizer que é
uma palavra nova, digamos assim, porque antes não existia juventude, o termo juventude é um termo que
realmente tem sido reivindicado recentemente, nos anos 80, porque antes se passava de criança a adulto,
não existia a fase da juventude que é algo novo no povo Nasa. Isso foi dado como acompanhamento, foi
identificado o primeiro padre indígena, Alvaro Cuellar, assassinado no ano "1984". Naquela época, ele
conseguiu ver um pouco, não algumas das práticas que o colono exercia para ter seus ajudantes na
comunhão indígena era através do álcool, infelizmente os jovens, os mais jovens, mas sobretudo os homes
em geral, bebiam muito, bebiam muito licor, porque era também uma forma de o colono pagar o seu
trabalho, ele pagava pelo churrincho, não pela bebida, porque era conveniente para eles terem uma cidade
sonolenta, uma cidade bêbada para eles poderem aproveitar as situações, então nessas horas que eles
começam a falar mais dos jovens, não da necessidade e do esforço de despertar a consciência dos jovens,
através da mesa ele começou a motivar os jovens a se organizarem, para os jovens estudarem, para os
jovens aprender sobre processos de organização que a juventude não se deixava comprar com uma bebida,

57
então é nessa época que você começa a reivindicar o termo juventude e essa fase da vida que não era tão
diferenciada no povo Nasa, que é assim, a consciência que a gente tem do que é juventude, do nosso não e
que é o processo que tem abrandado um pouco, tem vindo a ganhar força. Aqui no norte de Cauca há um
movimento juvenil chamado Alvaro Alburqueque porque leva o nome do Padre Alvaro. Nos últimos anos e o
que o movimento juvenil tem feito é como reivindicar toda a questão e o aprendizado dos jovens do
município de Nasa, afirmar o processo de formação, escola de formação de organização política, muitos
líderes e lideranças já haviam saído para acompanhar o processo de organização, eu treinei lá por cinco anos
acompanhando o movimento jovem por muito tempo eu venho desse processo de formação, então também
como o papel do jovem na cultura Nasa na cidade foi reivindicado porque não era, como eu te disse. Eles são
marcados como o ocidente que houve fases e não sabemos depois de tantos anos. Você é uma criança; de
14 a 26 você é jovem, de 26 a tantos você é um adulto, isso não é tratado assim na nossa cultura nós aqui
somos maiores de idade digamos assim porque temos o direito de decidir, de decidir com 14 anos de idade
para chegar à idade adulta, porque no Ocidente a pessoa é considerada maior de idade aos 18 anos. No caso
do povo Nasa é, aos 14 anos que você pode escolher, sendo eleito, você pode abrir caminho para se tornar
uma autoridade, a comunidade reconhece seu trabalho porque você pode ser uma autoridade que até agora
não foi dado o caso de uma pessoa tão jovem, mas depois de 18, as autoridades nasceram com esta idade.

Revista Proteção Integral: Como se transmite a cultura, os valores, a educação dos adultos para as
crianças, como se dá esse processo?

Olha, esse processo tem estado muito ligado sob a responsabilidade, sobretudo das mulheres, é algo pelo
qual agora também estamos lutando um pouco, não para que desapareça, não sei qual é a melhor palavra,
eu estou falando para você tornar mais objetivo porque em geral, se diz que as mulheres indígenas são as
Por Raul Araújo

que transmitem a cultura, os costumes, as práticas e então isso fica sob nossa responsabilidade e nos
perguntamos então o que acontece com o papel do homem, não, o papel do homem da casa não é para
ajudar a transmitir essas lições, essa identidade, esses saberes culturais que ficaram sob a responsabilidade
das mulheres, então também dentro do processo que a gente vem fazendo aqui como indígenas mulheres,
também partimos da intenção de que a transmissão da cultura dos valores das práticas culturais seja uma
responsabilidade do humano no lugar de uma responsabilidade de etapas de mãe, das mãos dos avôs e das
avós. Na gente Nasa tem um papel muito importante, muito, muito importante, porque os avós é que
também dizem ser assim, aqui na família Nasa, família não se entende, você escolhe os filhos, a família Nasa
é mesmo a união dessas duas famílias, tanto a família do homem quanto a família da mulher, a união dessas
famílias é o que forma a família Nasa como tal, e todo o papel dos avós porque eles desempenham um
papel muito importante porque eles são os que também ajudam a transmitir esses valores culturais no caso
dos homens são os avôs e os pais que lhes ensinam o trabalho do campo, a agricultura, a tecelagem, até
porque há algumas peças de vestuário que são feitas pelos homens. No caso das mulheres, porque elas nos
ensinam toda a questão do preparo dos alimentos, a elaboração do artesanato, das fibras dos kanakos, das
mantas e isso foi se espalhando ao longo do tempo porque antes tudo era escolhido com a lã, hoje usam lã
sintética mas em consequência disso, bem, as meninas aqui também são ensinadas a não fazer mochila e
todos esses ofícios que a cultura tem. Está marcado tanto para mulher quanto para homem, mas bem, nesse
novo modo de vida que nós mulheres também assumimos, também estamos um pouco motivando isso, que
é necessário discutir as responsabilidades na casa que nem tudo pode ser deixado a cargo de mulheres ou
meninas, neste caso como meninas e meninos são ensinados a distribuir essas tarefas e essas
responsabilidades assim que é hoje, não continua acontecendo como antes, havia uma sobrecarga sobre as
mulheres em relação a suas responsabilidades, toda a questão do trabalho doméstico, do cuidado, da
transmissão da cultura, da alimentação, dos ofícios que isso em muitos lugares porque não é a mesma
responsabilidade para os homens, então também nessa busca de alcançar equilíbrio e harmonia que tanto
nos falam porque também vivemos promovendo este tipo de práticas diferentes que também fazem você se
relacionar de forma diferente entre homens e mulheres porque geralmente as mulheres como eles nos
veem, como um objeto, não um objeto que está aí que eu posso pegar que eu posso escolher quando eu
quiser que eu posso maltratar porque sempre existe uma relação de poder entre homens e mulheres e esse
poder-relação que tem sido tão marcada pelo sistema patriarcal porque é um pouco o que tem aumentado
os casos de violência nas populações. Temos casos de violência muito alta de homicídio nos últimos meses
e isso, bem, tem a ver com tudo agora estamos trabalhando duro para descobrir como, em nossa própria

58
cultura, realmente qual é o papel das mulheres assim, porque sabemos que não começamos, que antes o
papel não era o papel da mulher que tem agora, era outro papel da conselheira, era outro papel de
autoridade, era outro papel de respeito, que são valores que queremos resgatar apenas para dar um lugar
diferente para a mulher e viver sempre solto para transformar realidades que estamos vivendo e que
começa desde a infância desde o ventre, elas vão quando são bem pequenas mas acreditamos que são
assim, as fases da vida em que você tem que trabalhar para poder ajudar um pouco minimamente a superar
essa situação de desigualdades que existe nesse mundo inteiro no Povo Nasa e no mundo em geral é o
Povo que passa por isso, não.

Revista Proteção Integral: Sim, pode-se dizer que o povo Nasa não era patriarcal no passado?

Bom, não sei se digo que não foi patriarcal, mas o que a gente acredita é também uma indicação de outros
povos indígenas que a gente sabe que tem um papel muito marcante quanto ao papel da mulher, o que
realmente não foi, o papel do que existe agora, e de muitos povos. As mulheres passaram a ser as
conselheiras, as conscientes espiritualmente, aquelas que têm um lugar diferente de muito respeito, não
temos que cuidar, temos que proteger, acredito que buscar novamente aquela essência nos permitirá
reencontrar e dar um valor diferente ao que hoje temos porque, justamente porque nos matam, não porque
não nos vejam como um ser, nos veem como um objeto e então eles nos machucam, então eu acho que eles
também podem descobrir como essa essência é o lugar da mulher nisso tudo, porque eles vão poder nos
reivindicar, não. Eu saberia se o povo Nasa foi, ou como eles foram formados no passado, não. Mas com
certeza acreditamos que o papel da mulher era bem diferente, porque tínhamos um lugar diferente dentro da
nossa cidade, isso porque as mulheres guerreiras eram uma referência para as mulheres que lutaram contra o
conquistador espanhol reivindicando o território e eram mulheres com fogo muito forte que levantou a

Por Raul Araújo


bandeira da luta de resistência, então também acreditamos que o lugar da mulher será de fato outro, não que
tenham recebido o poder da colônia e também se submetam a uma mudança de vida, não do fato de que o
público passou a querer assumir dos povos, a crença de que existem deuses mas que também existiram
deusas que ao nos dar um único Deus-homem, é verdade que tudo isso muda também a lógica dos
indígenas, com certeza isso não acontece só com o povo Nasa ,com certeza tem muitos povos que são
permeados pela religião católica, a religião evangélica que pouco a pouco o que ela faz é cobrir realmente
aquela origem em outro sentido da relação entre pessoas e entre os seres, os idosos, os avós, nos ensinam
que Nasa não possui nada que cada pessoa mas também que cada ser que está na natureza, tem um dono
tem um (chaun) dizemos que a pedra diva e essa pedra também tem um bem, que se você quiser tirar algo
da natureza, você tem que pedir permissão a esse dono porque você não é o dono dela, você faz parte dela,
então todas essas lógicas obviamente nos dizem que de fato os povos que tínhamos no olhar eram
totalmente diferentes do que tínhamos para viver, não.

Revista Proteção Integral: A próxima pergunta é, quais são os principais desafios para manter as
tradições?

Bem, acho que há vários desafios no sentido de que estamos em um mundo globalizado, também em um
mundo onde eu vou do fato do poder da Internet e poder também através da Internet saber outras coisas,
conhecer outros povos, outras culturas também, nos fazem repensar que temos que cuidar do que é nosso,
que temos que fortalecer o que é nosso, e o que é nosso temos que manter vivo porque a língua não pode
desaparecer. Eu não falo a língua Nasa, mas a organização tem feito e está fazendo um grande esforço para
motivar as famílias que falam a língua para que continuem ensinando seus filhos na escola de formação de
adultos. Então a linguagem é um desses desafios importantíssimos que a gente precisa continuar
trabalhando, que a gente precisa continuar buscando metodologias mais consistentes e adequadas para
motivar e comentar o discurso do Nasasuyo, todas as questões que têm a ver com a história, a história de
nossos povos, sim, é como algo que não podemos desistir. Aqui também nos esforçamos para que os
processos formativos, os jovens, os rapazes, as moças, os adultos, conheçam e valorizem essa história, uma
história que está carregada da luta de resistência pela recuperação do território. Bom, eu acho que essa
parte também é extremamente importante que a gente não pode perder isso porque ao perder essa história
a gente também está perdendo a nossa identidade, a gente não consegue se identificar com ninguém, não
somos capazes de saber de quem somos, de onde viemos e para onde vamos, e reconhecer que fazemos
parte de uma história porque já passamos e nos permitiram continuar caminhando, uma história onde há não

59
só o povo Nasa, no caso do Cauca, tem outros povos com quem a gente foi construindo um processo
intercultural, porque não só o povo Nasa está lá, tem outros povos indígenas mas também que a gente
convive com os Afres, a gente vive com os Fanquesinos, convivemos com gente urbana, então, também é
sempre com aquela raiz não muito para a cultura, para a língua, e também para justificar um pouco do uso
das nossas roupas, o uso das cores da organização, para os mais novos, as crianças conseguem para saber
um pouco porque se fazem as cores porque a organização se identifica de tal e tal forma, porque também
está a dar sentido a pertencer à nossa evidência, penso que há muitos desafios nesta altura porque a nova
organização como vos digo, tem conseguido atingir muitos de nós, é verdade, de muitas formas e às vezes
também quando o jovem tem aquela clareza do que é como tal, muitas vezes você vai ter vergonha de ser
indígena e isso é uma tarefa que as famílias entram nos processos como nós quando combinamos que o
casal e depois os filhos cheguem porque é tarefa do papai e da mamãe também poder motivar esses filhos
tudo que tem a ver com a parte da cultura, a parte da organização, sair com eles para as marchas, meninas
vão com eles para as assembléias das autoridades, para os congressos organizacionais porque também é
assim que nossas crianças, meninos e meninas vão aprender sobre o processo organizacional, encaminhar a
organização e aqui as crianças sempre levam nossos filhos para todas essas atividades porque a forma como
eles se apropriam do que eu sei, a gente fala muito de ser indígena e o orgulho que a gente tem de ser
indígena, é uma coisa que no caso vemos como um casal e vamos supor nossos filhos, porque também
fomos motivados ao longo de todos esses anos de vida não a importância de ele ter certeza do que é, que se
sinta valioso por ser indígena Quando isso chegar a outro mundo ocidental, principalmente quando estão
prestes a sair do território, irão para uma universidade que não existe mais.

Bem, agora veja os conflitos aqui, você sabe que a Colômbia é um país que está em guerra há muitos anos e
que alguma paz foi estabelecida, então essa parte não teve sucesso de certa forma porque o governo
anterior não cumpriu com todo o combinado e o que fez foi a guerra entre os territórios. Hoje há mais grupos
Por Raul Araújo

armados, esses jovens ou essas pessoas que estão nisso, há muitos que o governo não cumpriu com o que
fizeram para se armarem e cada grupo já como uma demanda diferente. Ninguém sabe quem manda, quem
é, o que a gente sabe é que tem vários grupos que se autodenominam de um jeito ou de outro, mas o que na
verdade eles estão causando, porque é uma guerra em nosso território. Neste momento, encontramos tudo
que tem a ver com não recrutamento armado de meninos e meninas em nosso território, há um aumento
deste problema e o aumento de políticos envolvidos com o narcotráfico, como coca e maconha, a área de
nosso território também faz com que essa convocação pareça muito significativa e também nos fazem
pensar bem o que seria importante para que a juventude, acima de tudo, que é a que está semeando.

60
JURISPRUDÊNCIA
Criança, Adolescente e Prioridade

Parâmetro de busca: a) “Criança Indígena” + “Direito”; B) “Estatuto da Criança e Adolescente” + “Indígena”; C)


“Adolescente Indígena” + ”Direito”

Análise: STF, STJ e Tribunais de Justiça estaduais e Federais


Campo amostral de Janeiro de 2.018 até Novembro/2022

Segundo dados do último censo (2.010), o Brasil possui uma população de 897 mil indígenas, dos quais um
terço é criança.46 Essa população está dividida em 305 etnias, falantes de 274 línguas (IBGE, 2010).

Apesar desses dados e em se tratando dos povos originários do Brasil, crianças e adolescentes indígenas
ainda são invisíveis quando se fala em políticas públicas e garantia de direitos.

Direitos básicos como saúde, alimentação, educação são os principais direitos violados de crianças e
adolescentes dos povos originários de nosso país. A desnutrição crônica e as taxas de mortalidade infantil
voltaram a elevar seus números nos últimos anos; queda na cobertura vacinal, evasão escolar e ainda,
homicídios de adolescentes e jovens estão entre as graves violações que necessitam de intervenção urgente
para garantia de sobrevivência de nosso povo.

Sendo assim, o tema da pesquisa dessa edição especial foi a aplicação do Direito nas decisões judiciais
envolvendo crianças e adolescentes indígenas pelos tribunais, realizando-se a busca com os parâmetros A)
Criança indígena + Direito; B) Estatuto da Criança e Adolescente + Indígena; C) Adolescente indígena + Direito,
no período de 2018 a novembro de 2022.

STF - “Criança indígena” E “Direito”

MEDIDA CAUTELAR NA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 709 DISTRITO


FEDERAL - RELATOR : MIN. ROBERTO BARROSO, decisão em 31/03/2022.

DIREITO CONSTITUCIONAL E SANITÁRIO. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL.


PRECARIEDADE E INCONSISTÊNCIA DOS DADOS SOBRE SAÚDE INDÍGENA. 1. A União e/ou suas autarquias
informam que: (i) não têm informações atualizadas sobre o quantitativo total da população indígena brasileira;
(ii) não dispõem de “dados essenciais para levantamento dos indicadores concernentes à localização das
terras indígenas não homologadas e ao quantitativo populacional das respectivas terras”. 2. Segundo
informam os experts que apoiam o Juízo, há indício de subdimensionamento da população indígena
informada pela União (semelhante à de 2017) e, em consequência, de superdimensionamento do alcance da
vacinação. As coberturas vacinais indígenas com esquema completo (2ª dose), mesmo com dados
desatualizados, são muito baixas, correspondendo a cerca de 46,4% da população superior a 12 (doze) anos,
ao passo que se recomenda cobertura de 90% para efetiva diminuição da circulação viral. Tal cobertura é,
ainda, extremamente heterogênea, sendo muito superior em algumas áreas e muito inferior em outras. 3.
Ainda que se reconheça que a precariedade dos dados de saúde indígena é, ao menos em parte, anterior até
mesmo à pandemia, a falta de transparência na hipótese, após reiteradas decisões, viola o direito à
informação e à participação dos cidadãos, o direito à vida e à saúde dos povos indígenas e o dever de
cumprimento das decisões judiciais (CF, art. 1º, 5º XIV, e 6º). Está claro que a situação só será superada com o

61
controle social e o escrutínio público de tais dados. 4. Em tais circunstâncias e inviabilizadas demais
providências alternativas, determino: (i) a disponibilização para acesso público de todos os dados
epidemiológicos pertinentes aos povos indígenas de que dispõe a União, em site público, tal como feito, pelo
Ministério da Saúde, quanto a todos os demais brasileiros, com discriminação de indígenas em terras
homologadas e não homologadas e demais elementos já determinados pelo Juízo; (ii) a apresentação, pela
União, de planilha de dados para monitoramento das barreiras sanitárias e de ações de saúde, em favor de
povos indígenas isolados e de recente contato, com inclusão das colunas E, M, R, S, AD, AF, AJ e AK. Prazo e
multa diária fixados. Os dados disponibilizados para acesso público deverão ser desidentificados, de modo a
preservar a privacidade dos indivíduos.

STJ - “Criança indígena” E “Direito”

STJ. AgInt no AREsp n. 1.688.809/SP, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em
26/4/2021, DJe de 28/4/2021

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AGRAVO


DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS E POR DANOS
MORAIS AOS PAIS DE CRIANÇA INDÍGENA, FALECIDA EM DECORRÊNCIA DE ALEGADA DEFICIÊNCIA DE
SERVIÇO DE PRESTAÇÃO DE SAÚDE. LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA DO PARQUET. ARTS. 129, V E IX, DA
CF/88 E 37, II, DA LEI COMPLEMENTAR 75/93. RELEVÂNCIA DO BEM JURÍDICO TUTELADO.
VULNERABILIDADE DOS ÍNDIOS E DA COMUNIDADE INDÍGENA. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO INTERNO
IMPROVIDO.

I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara recurso interposto contra decisum publicado na vigência
do CPC/2015.

II. Na origem, trata-se de Agravo de Instrumento interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão do
Juízo de 1º Grau, que, em Ação Civil Pública ajuizada pelo Parquet em face da Fundação Serviços de Saúde
de Mato Grosso do Sul (Hospital Regional do Mato Grosso do Sul, com atuação pelo SUS) e da União Federal -
com o objetivo de obter a condenação das rés ao pagamento de indenização por danos morais coletivos e
individuais, em decorrência do óbito de menor indígena, pertencente à tribo Ofayé-Xavante, em face de má
prestação de serviço médico -, reconheceu a ilegitimidade ativa do autor da ação "para pedir eventual dano
moral sofrido pelos pais da menor falecida", por se tratar de direito individual disponível e divisível de
indígena, extinguindo parcialmente o processo, quanto às duas rés, relativamente ao aludido pedido.
Reconheceu, ainda, a ilegitimidade passiva ad causam da União para responder pelo aludido dano moral
individual aos pais da criança indígena, porquanto, a inicial não lhe imputa "qualquer ato/conduta específica
(...) que gerasse sua responsabilidade pelo atendimento dado à criança pelo Hospital Regional". Determinou-
se o prosseguimento do feito contra a União, quanto ao pedido de indenização pelo dano moral coletivo. O
acórdão recorrido negou provimento ao Agravo de Instrumento.

III. A jurisprudência do STJ "vem sedimentando-se em favor da legitimidade do MP para promover Ação Civil
Pública visando à defesa de direitos individuais homogêneos, ainda que disponíveis e divisíveis, quando há
relevância social objetiva do bem jurídico tutelado (a dignidade da pessoa humana, a qualidade ambiental, a
saúde, a educação, para citar alguns exemplos) ou diante da massificação do conflito em si considerado" (STJ,
AgInt no REsp 1.701.853/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 19/03/2021).

IV. A Constituição Federal reconhece a peculiar vulnerabilidade dos índios e das populações indígenas,
motivo pelo qual o art. 37, II, da Lei Complementar 75/93 confere legitimidade ao Ministério Público Federal
"para defesa de direitos e interesses dos índios e das populações indígenas", o que se mostra consentâneo
com o art. 129, V e IX, da CF/88, que outorga legitimidade ao Ministério Público não só para "defender
judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas", como também para "exercer outras funções
que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade".

62
V. Trata-se, no caso, de atuação do Ministério Público Federal para a defesa de direitos e interesses de
relevância social, vale dizer, o direito à saúde e à boa prestação de serviços de saúde aos índios e à
comunidade indígena - de cuja alegada deficiência teria decorrido a morte da criança indígena -, bem como
o direito de acesso à justiça pelos índios e pela sua comunidade, em região na qual o acórdão recorrido
reconhece "há notória precariedade do acesso à Justiça". Como destacou o voto vencido, na origem, "Três
Lagoas/MS e toda aquela região ainda não conta com a Defensoria Pública da União, a quem caberia atuar
na representação processual para o pleito de danos morais individuais, segundo o entendimento do
magistrado, e a Defensoria Pública estadual existente na localidade atua somente perante a Justiça Estadual"

VI. A propósito do tema, a Segunda Turma do STJ pronunciou-se no sentido de que, "no campo da proteção
da saúde e dos índios, a legitimidade do Ministério Público para propor Ação Civil Pública é - e deve ser - a
mais ampla possível, não derivando de fórmula matemática, em que, por critério quantitativo, se contam nos
dedos as cabeças dos sujeitos especialmente tutelados. Nesse domínio, a justificativa para a vasta e
generosa legitimação do Parquet é qualitativa, pois leva em consideração a natureza indisponível dos bens
jurídicos salvaguardados e o status de hipervulnerabilidade dos sujeitos tutelados, consoante o disposto no
art. 129, V, da Constituição, e no art. 6º da Lei Complementar 75/1993" (STJ, REsp 1.064.009/SC, Rel. Ministro
HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 27/04/2011).

VII. Dessarte, a relevância social do bem jurídico tutelado e a vulnerabilidade dos povos indígenas autoriza,
em face da peculiar situação do caso, a defesa dos interesses individuais dos índios pelo Ministério Público,
em decorrência de sua atribuição institucional.

VIII. Assim, estando o acórdão recorrido em dissonância com a jurisprudência sedimentada nesta Corte,
merece ser mantida a decisão ora agravada.

IX. Agravo interno improvido. Devolução dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguimento.

STJ - “Estatuto da Criança e do Adolescente” E “índígena”

STJ. REsp n. 1.698.635/MS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 1/9/2020, DJe
de 9/9/2020.

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR. CRIANÇA CUJA GENITORA POSSUI
ORIGEM INDÍGENA. OBRIGATORIEDADE DA INTERVENÇÃO DA FUNAI. MODIFICAÇÃO LEGAL. REVOGAÇÃO
DO ART. 161, §2º, DO ECA, PELA LEI 13.509/2017. IRRELEVÂNCIA. MATÉRIA MELHOR TRATADA NO ART. 157,
§2º, DO ECA. INTERVENÇÃO NECESSÁRIA E QUE DEVE OCORRER APÓS O RECEBIMENTO DA PETIÇÃO
INICIAL. NORMA COGENTE E DE ORDEM PÚBLICA. CONSIDERAÇÃO E RESPEITO À IDENTIDADE SOCIAL E
CULTURAL DO POVO INDIGENA. COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTA PRIORITARIAMENTE INDÍGENA.
RAZÃO DE EXISTIR DA REGRA. TRATAMENTO DIFERENCIADO AO POVO INDÍGENA. ETNIA MINORITÁRIA,
VULNERÁVEL E HISTORICAMENTE DISCRIMINADA E MARGINALIZADA. NECESSIDADE DE TUTELA
ESTATAL ADEQUADA. FUNÇÃO DA FUNAI. ÓRGÃO ESPECIALIZADO, INTERDISCIPLINAR E CONHECER DAS
DIFERENTES CULTURAS INDÍGENAS, APTO A INDICAR, COM MAIOR PROPRIEDADE, OS MELHORES
INTERESSES DO POVO INDÍGENA. INTERVENÇÃO OBRIGATÓRIA DA FUNAI. INEXISTÊNCIA DE
FORMALISMO PROCESSUAL EXACERBADO. NULIDADE QUE SOMENTE PODE SER AFASTADA EM
HIPÓTESES EXCEPCIONALÍSSIMAS, COMO NA HIPÓTESE EM EXAME.

1- Ação ajuizada em 22/05/2015. Recurso especial interposto em 02/05/2017 e atribuído à Relatora em


21/10/2017.

2- O propósito recursal é definir se, na ação de destituição de poder familiar que envolva criança cujos pais
possuem origem indígena, é obrigatória a intervenção da Fundação Nacional do Índio - FUNAI.

3- A revogação do art. 161, §2º, do ECA, pela Lei nº 13.509/2017, com tratamento da matéria no art. 157, §2º,

63
do mesmo Estatuto, apenas esclarece que a realização de estudo social ou perícia por equipe
interprofissional ou multidisciplinar, bem como a intervenção da FUNAI, deverá ocorrer sempre e logo após o
recebimento da petição inicial, não significando a referida modificação legal que a intervenção da FUNAI, em
se tratando de destituição de poder familiar de criança que é filha de pais oriundos de comunidades
indígenas, somente seria obrigatória nas hipóteses de suspensão liminar ou incidental do poder familiar.

4- A intervenção da FUNAI nos litígios relacionados à destituição do poder familiar e à adoção de menores
indígenas ou menores cujos pais são indígenas é obrigatória e apresenta caráter de ordem pública, visando-
se, em ambas as hipóteses, que sejam consideradas e respeitadas a identidade social e cultural do povo
indígena, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, bem como que a colocação familiar
ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia.

5- As regras do art. 28, §6º, I e II, do ECA, visam conferir às crianças de origem indígena um tratamento
verdadeiramente diferenciado, pois, além de crianças, pertencem elas a uma etnia minoritária, historicamente
discriminada e marginalizada no Brasil, bem como pretendem, reconhecendo a existência de uma série de
vulnerabilidades dessa etnia, adequadamente tutelar a comunidade e a cultura indígena, de modo a
minimizar a sua assimilação ou absorção pela cultura dominante.

6- Nesse contexto, a obrigatoriedade e a relevância da intervenção obrigatória da FUNAI decorre do fato de


se tratar do órgão especializado, interdisciplinar e com conhecimentos aprofundados sobre as diferentes
culturas indígenas, o que possibilita uma melhor verificação das condições e idiossincrasias da família
biológica, com vistas a propiciar o adequado acolhimento do menor e, consequentemente, a proteção de
seus melhores interesses, não se tratando, pois, de formalismo processual exacerbado apenar de nulidade a
sua ausência.

7- Na específica hipótese em exame, as crianças, cuja genitora biológica é de origem indígena, mas que há
muito convive na sociedade urbana, estão acolhidas cautelarmente em virtude da comprovada e absoluta
inaptidão da genitora para exercer o poder familiar em razão de fatos gravíssimos, razão pela qual, rompidos
os vínculos socioafetivos com a genitora, não seria adequada a nulificação integral do processo em que se
pretende apenas a destituição do poder familiar, observando-se, contudo, a obrigatoriedade de intervenção
da FUNAI, daqui em diante, em quaisquer procedimentos ou ações que envolvam as menores, assegurando-
lhes a possibilidade de resgate ou de manutenção da cultura indígena.

8- Recurso conhecido e desprovido.

STJ, AgInt no REsp 1.701.853/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 19/03/2021

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AGRAVO


DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS E POR DANOS
MORAIS AOS PAIS DE CRIANÇA INDÍGENA, FALECIDA EM DECORRÊNCIA DE ALEGADA DEFICIÊNCIA DE
SERVIÇO DE PRESTAÇÃO DE SAÚDE. LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA DO PARQUET. ARTS. 129, V E IX, DA
CF/88 E 37, II, DA LEI COMPLEMENTAR 75/93. RELEVÂNCIA DO BEM JURÍDICO TUTELADO.
VULNERABILIDADE DOS ÍNDIOS E DA COMUNIDADE INDÍGENA. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO INTERNO
IMPROVIDO.

I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara recurso interposto contra decisum publicado na vigência
do CPC/2015.

II. Na origem, trata-se de Agravo de Instrumento interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão do
Juízo de 1º Grau, que, em Ação Civil Pública ajuizada pelo Parquet em face da Fundação Serviços de Saúde
de Mato Grosso do Sul (Hospital Regional do Mato Grosso do Sul, com atuação pelo SUS) e da União Federal
– com o objetivo de obter a condenação das rés ao pagamento de indenização por danos morais coletivos e
individuais, em decorrência do óbito de menor indígena, pertencente à tribo Ofayé-Xavante, em face de má
prestação de serviço médico –, reconheceu a ilegitimidade ativa do autor da ação "para pedir eventual dano

64
moral sofrido pelos pais da menor falecida", por se tratar de direito individual disponível e divisível de
indígena, extinguindo parcialmente o processo, quanto às duas rés, relativamente ao aludido pedido.
Reconheceu, ainda, a ilegitimidade passiva ad causam da União para responder pelo aludido dano moral
individual aos pais da criança indígena, porquanto, a inicial não lhe imputa "qualquer ato/conduta específica
(...) que gerasse sua responsabilidade pelo atendimento dado à criança pelo Hospital Regional". Determinou-
se o prosseguimento do feito contra a União, quanto ao pedido de indenização pelo dano moral coletivo. O
acórdão recorrido negou provimento ao Agravo de Instrumento.

III. A jurisprudência do STJ "vem sedimentando-se em favor da legitimidade do MP para promover Ação Civil
Pública visando à defesa de direitos individuais homogêneos, ainda que disponíveis e divisíveis, quando há
relevância social objetiva do bem jurídico tutelado (a dignidade da pessoa humana, a qualidade ambiental, a
saúde, a educação, para citar alguns exemplos) ou diante da massificação do conflito em si considerado".

IV. A Constituição Federal reconhece a peculiar vulnerabilidade dos índios e das populações indígenas,
motivo pelo qual o art. 37, II, da Lei Complementar 75/93 confere legitimidade ao Ministério Público Federal
"para defesa de direitos e interesses dos índios e das populações indígenas", o que se mostra consentâneo
com o art. 129, V e IX, da CF/88, que outorga legitimidade ao Ministério Público não só para "defender
judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas", como também para "exercer outras funções
que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade".

V. Trata-se, no caso, de atuação do Ministério Público Federal para a defesa de direitos e interesses de
relevância social, vale dizer, o direito à saúde e à boa prestação de serviços de saúde aos índios e à
comunidade indígena – de cuja alegada deficiência teria decorrido a morte da criança indígena –, bem como
o direito de acesso à justiça pelos índios e pela sua comunidade, em região na qual o acórdão recorrido
reconhece "há notória precariedade do acesso à Justiça". Como destacou o voto vencido, na origem, "Três
Lagoas/MS e toda aquela região ainda não conta com a Defensoria Pública da União, a quem caberia atuar
na representação processual para o pleito de danos morais individuais, segundo o entendimento do
magistrado, e a Defensoria Pública estadual existente na localidade atua somente perante a Justiça Estadual"

VI. A propósito do tema, a Segunda Turma do STJ pronunciou-se no sentido de que, "no campo da proteção
da saúde e dos índios, a legitimidade do Ministério Público para propor Ação Civil Pública é – e deve ser – a
mais ampla possível, não derivando de fórmula matemática, em que, por critério quantitativo, se contam nos
dedos as cabeças dos sujeitos especialmente tutelados. Nesse domínio, a justificativa para a vasta e
generosa legitimação do Parquet é qualitativa, pois leva em consideração a natureza indisponível dos bens
jurídicos salvaguardados e o status de hipervulnerabilidade dos sujeitos tutelados, consoante o disposto no
art. 129, V, da Constituição, e no art. 6º da Lei Complementar 75/1993" (STJ, REsp 1.064.009/SC, Rel. Ministro
HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 27/04/2011).

VII. Dessarte, a relevância social do bem jurídico tutelado e a vulnerabilidade dos povos indígenas autoriza,
em face da peculiar situação do caso, a defesa dos interesses individuais dos índios pelo Ministério Público,
em decorrência de sua atribuição institucional.

VIII. Assim, estando o acórdão recorrido em dissonância com a jurisprudência sedimentada nesta Corte,
merece ser mantida a decisão ora agravada.

IX. Agravo interno improvido. Devolução dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguimento.

(STJ. AgInt no AREsp n. 1.688.809/SP, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em
26/4/2021, DJe de 28/4/2021.)

STJ. REsp n. 1.709.883/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 6/11/2018, DJe
de 19/11/2018.

PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INDÍGENAS MENORES DE 16 (DEZESSEIS) ANOS. CONDIÇÃO DE

65
SEGURADAS ESPECIAIS. CONCESSÃO DE SALÁRIO-MATERNIDADE. CABIMENTO. PRECEDENTES.

1. Cuida-se, na origem, de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal contra o Instituto
Nacional do Seguro Social - INSS, em que objetiva que o réu se abstenha de indeferir, exclusivamente por
motivo de idade, os requerimentos de benefícios de salário-maternidade formulados pelas seguradas
indígenas da cultura Mbyá-Guarani provenientes de qualquer cidade de competência. A sentença de
procedência foi mantida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

2. O acórdão impugnado está em consonância com o entendimento do STJ em casos idêntico aos dos autos.
Por emblemático, transcreve-se trecho do REsp 1.650.697/RS: "

3. O sistema previdenciário protege os indígenas, caso desempenhem trabalho remunerado. A Constituição


da República de 1988, a Convenção 129 da Organização Internacional do Trabalho e o Estatuto do Índio são
uníssonos ao proteger os direitos indígenas e garantir à esta população, no tocante ao sistema previdenciário,
o mesmo tratamento conferido aos demais trabalhadores.

4. A limitação etária não tem o condão de afastar a condição de segurada especial das indígenas menores de
16 (dezesseis) anos, vedando-lhes o acesso ao sistema de proteção previdenciária estruturado pelo Poder
Público. Princípio da primazia da verdade. as regras de proteção das crianças e adolescentes não podem ser
utilizadas com o escopo de restringir direitos.

5. Nos casos em que ocorreu, ainda que de forma indevida, a prestação do trabalho pela menor de 16
(dezesseis) anos, é preciso assegurar a essa criança ou adolescente, ainda que indígena, a proteção do
sistema previdenciário, desde que preenchidos os requisitos exigidos na lei, devendo ser afastado o óbice
etário" (REsp 1.650.697/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 4/5/2017). No
mesmo sentido: AgRg no REsp 1559760/MG, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe
14/12/2015; REsp 1440024/RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 28/08/2015.

3. Recurso Especial não provido.

TRF1 - “Criança Indígena” E “Direito”

TRF1. AC 1000067-94.2017.4.01.4200, JUIZ FEDERAL EMMANUEL MASCENA DE MEDEIROS, TRF1 - QUINTA


TURMA, PJe 25/04/2022 PAG.

CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. INDEFERIMENTO DA INICIAL. CITAÇÃO E INTIMAÇÃO DO RÉU.


CONTRARRAZÕES. PRECLUSÃO. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. FORNECIMENTO DE SUPLEMENTO
ALIMENTAR. CRIANÇA INDÍGENA. INTERESSE INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. LEGITIMIDADE ATIVA
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. MPF. SENTENÇA ANULADA. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM. TUTELA
PROVISÓRIA RECURSAL. PRESSUPOSTOS PRESENTES. CONCESSÃO. APELAÇÃO PROVIDA.

1. Trata-se de recurso de apelação interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL contra sentença que
declarou sua ilegitimidade passiva, indeferiu a inicial e julgou extinto o processo sem resolução mérito. Em
suma, alega o apelante que possui legitimidade ativa para pleitear suplemento a alimentar a criança indígena
por se tratar de direito individual indisponível, decorrente do direito à saúde, enquadrando-se dentre as suas
atribuições constitucionais, nos termos do art. 127 da CF/88. Afirmando a presença dos pressupostos legais,
requer a antecipação da tutela recursal para determinar à União, estado de Roraima e município de Boa
Vista, solidariamente, o fornecimento de uma lata do suplemento MSUD MED B à criança assistida, na pessoa
de seu guardião legal.

2. Preliminarmente, incabível a devolução do prazo para contrarrazões ao estado de Roraima, uma vez que,
por se tratar de sentença que indeferiu a petição inicial antes da triangulação da relação processual, o réu foi
citado e intimado para, querendo, apresentar contrarrazões, nos termos do art. 331, §1º, do CPC/15.

66
3. Em demandas análogas, esta Corte já entendeu pela legitimidade ativa do MPF para o ajuizamento de ação
objetivando o fornecimento de medicamento ou tratamento médico a pessoa carente de recursos financeiros,
por se tratar de direito individual indisponível a justificar a atuação ministerial, nos termos do art. 127 da CF/88.
Precedentes: AC 1012078-17.2019.4.01.3803, DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS AUGUSTO PIRES
BRANDÃO, TRF1 - QUINTA TURMA, PJe 01/12/2020; REO 0008089-68.2014.4.01.3100, DESEMBARGADOR
FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES, TRF1 - SEXTA TURMA, e-DJF1 21/06/2017.

4. Logo, assiste razão ao apelante, eis que sua pretensão encontra fundamento nas atribuições constitucionais
do Ministério Público, o que justifica a sua legitimidade ativa, e a competência federal se firma em razão do
interesse da União no provimento do direito à saúde, em solidariedade com os demais entes federativos.

5. No que pertine ao pedido de tutela de urgência veiculado na inicial e reiterado em sede recursal, a medida
postulada, no sentido de possibilitar-se ao autor da demanda o exercício do seu direito à vida e à assistência
médica, encontra abrigo na garantia fundamental assegurada em nossa Carta Magna, a sobrepor-se a
qualquer outro interesse de cunho político e/ou material, na linha do entendimento jurisprudencial já adotado
por esta Corte, conforme o seguinte precedente: AC 1016495-13.2019.4.01.3900, DESEMBARGADOR FEDERAL
SOUZA PRUDENTE, TRF1 - QUINTA TURMA, PJe 02/12/2020.

6. Em sendo assim, caracterizada, na espécie, a impossibilidade de a criança assistida arcar com os custos do
tratamento de sua doença, o fornecimento do suplemento, na dosagem e quantidade indicadas pelo médico
responsável pelo seu acompanhamento, é medida que se impõe.

7. Apelação provida.

TRF1 - RSE 0002332-08.2019.4.01.0000, DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA DO CARMO CARDOSO, TRF1 -


TERCEIRA TURMA, e-DJF1 12/02/2021 PAG

PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. EXPLORAÇÃO SEXUAL E ESTUPRO
DE VULNERÁVEL INDÍGENA. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL - CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 109,
XI. RECONHECIMENTO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA PROCESSAMENTO E
JULGAMENTO DO FEITO. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO 140 DA SÚMULA STJ. RECURSO EM SENTIDO
ESTRITO NÃO PROVIDO.

1. Apesar da gravidade do caso, que trata de possível alienação parental e exploração sexual de criança
indígena, não se vislumbra presença de crime contra a coletividade indígena - sobre questões ligadas à
cultura dos índios e aos direitos sobre suas terras - que reclame a atuação da Justiça Federal. Incidência do
enunciado 140 da Súmula STJ. Precedentes do STJ. 2. Recurso em sentido estrito a que se nega provimento.

TJAM - Crianças Indígenas

TJ-AM Agravo N. XXXXX20178040906 AM XXXXX-46.2017.8.04.0906, Relator: João Mauro Bessa, Data de


Julgamento: 29/01/2018, Conselho da Magistratura

AGRAVO DE INSTRUMENTO – CONCESSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA EM AÇÃO DE GUARDA –


CRIANÇA INDÍGENA – INEXISTÊNCIA DE SITUAÇÃO DE RISCO – ACOMPANHAMENTO PELOS ÓRGÃOS
COMPETENTES – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - RESPEITO A IDENTIDADE CULTURAL E
FAMILIAR DO MENOR INDÍGENA– RECURSO NÃO PROVIDO.

A decisão agravada, ao deferir a tutela de urgência requerida, observou os requisitos previstos no art. 300 do
CPC/2015, pois diversamente do que apontam os agravantes, a menor não se encontra em local
desconhecido, estando, pois, na comarca de Atalaia do Norte/AM, junto aos familiares dos seus genitores,
tendo sido levada para referido local por suposto receio dos agravados em ver a menor retirada novamente

67
do seu convívio, mediante a imposição de força por parte dos agravantes, bem como pelo desejo de
apresentar a criança ao grupo étnico e familiar ao qual pertence. Ademais, é possível observar que os
agravados compareceram junto à Coordenação Regional Vale do Javari (FUNAI), localizada na referida
comarca, no dia seguinte à sua chegada, demonstrando o intuito de não se furtar do Poder Público, podendo
ser constatado que o respectivo órgão, com auxílio da Procuradoria Federal Especializada, vem tomando
todas as medidas necessárias ao adequado acompanhamento da menor, tendo sido realizada, inclusive, visita
ao seu domicílio, onde foi constatado que inexiste qualquer risco a sua segurança, estando a criança bem
adaptada ao seu núcleo familiar.

Com o advento da Nova Lei Nacional de Adoção (Lei n.º 12.010/09), tornou-se obrigatório dar preferência à
colocação de criança ou adolescente indígena na sua comunidade de origem, ou junto a membros da mesma
etnia, a fim de melhor respeitar suas identidades culturais. Agravo de Instrumento conhecido e não provido.

TJDF - “Estatuto da Criança e do Adolescente” E “Indígena”

TJDF. Apelação. Acórdão 1206293, Processo nº 00082626920168070013, Relator: FÁBIO EDUARDO


MARQUES, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 02/10/2019, publicado no PJe: 15/10/2019

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE GUARDA. MENOR INDÍGENA. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO
MÉRITO POR ABANDONO DA CAUSA. INTERVENÇÃO DA FUNAI. PREJUÍZO DEMONSTRADO. NULIDADE
RECONHECIDA.

1. De acordo com art. 28, § 6º, inc. III, do Estatuto da Criança e do Adolescente, é obrigatória a participação da
FUNAI nos procedimentos que versem sobre a colocação de menor indígena em família substituta, seja por
meio de guarda, tutela ou adoção.

2. Conforme proclama a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, à luz do princípio pas de nullité sans
grief, não há falar em nulidade dos atos processuais sem a demonstração do prejuízo. No caso, o processo
foi extinto sem resolução do mérito, por abandono da causa, embora não intimada a FUNAI acerca do
despacho que determinou a intimação pessoal dos autores para dar prosseguimento ao feito. Daí o prejuízo à
menor indígena, uma vez que não foi priorizado o julgamento do mérito da demanda, a fim de possibilitar a
regularização da situação da criança indígena, que continua sob a guarda provisória.

3. Apelação conhecida e provida.

TJPR - "Criança indígena" E "Direito"

TJPR - 11ª Câmara Cível - 0001444-97.2015.8.16.0171 - Tomazina - Rel.: JUÍZA DE DIREITO SUBSTITUTO EM
SEGUNDO GRAU LUCIANE DO ROCIO CUSTÓDIO LUDOVICO - J. 29.11.2020

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO de Destituição/Suspensão do Poder Familiar. CONDENAÇÃO DO ESTADO DO


PARANÁ AO PAGAMENTO DOS HONORÁRIOS PERICIAIS E DAS DESPESAS COM TRANSPORTE E
HOSPEDAGEM COMPROVADAS PELA PERITA. INSURGÊNCIA DO ESTADO DO PARANÁ. ALEGAÇÃO DE QUE
NÃO HÁ QUALQUER PREVISÃO NORMATIVA QUE APONTE QUE O ESTADO É RESPONSÁVEL POR
RESSARCIR AS DESPESAS DA PERITA. REJEIÇÃO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL QUE ENVOLVE DIREITO DE
CRIANÇA INDÍGENA COM DEFICIÊNCIA. INFANTE QUE PASSOU MAIS DE QUATRO ANOS ACOLHIDO.
DIFICULDADE PARA ENCONTRAR UM ANTROPÓLOGO PARA A REALIZAÇÃO DA PERÍCIA PREVISTA EM LEI.
TRABALHO ESSENCIAL PARA O DESLINDE DO FEITO. EXPECTATIVA DA PERITA EM TER AS DESPESAS
RESSARCIDAS. INFANTE QUE CONTINUARIA ACOLHIDO CASO NÃO FOSSE REALIZADA A PERÍCIA.
ACOLHIMENTO QUE IMPLICARIA EM CUSTOS MUITO MAIORES PARA O ESTADO. RECURSO CONHECIDO E
DESPROVIDO.

68
TJPR - “Estatuto da Criança e do Adolescente” E “Indígena”

TJPR - 11ª Câmara Cível - 0003749-91.2021.8.16.0123 - Palmas - Rel.: DESEMBARGADOR SIGURD ROBERTO
BENGTSSON - J. 01.08.2022

APELAÇÃO CÍVEL. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. SENTENÇA QUE DESTITUIU OS REQUERIDOS DO


EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR. PAIS E CRIANÇA DE ORIGEM INDÍGENA. QUESTÃO DE ORDEM PÚBLICA.
NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI - DESDE O RECEBIMENTO
DA PETIÇÃO INICIAL. DISPOSIÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E PRECEDENTES DO
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SENTENÇA ANULADA. RECURSO PREJUDICADO.

TJPR - 12ª Câmara Cível - 0001796-43.2020.8.16.0086 - Guaíra - Rel.: DESEMBARGADOR LUIS CESAR DE
PAULA ESPINDOLA - J. 01.12.2021

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. APELAÇÃO CÍVEL. REPRESENTAÇÃO ADMINISTRATIVA.


EVASÃO ESCOLAR. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DOS GENITORES. REFORMA DA DECISÃO.
FAMÍLIA INDÍGENA. COMPROVAÇÃO DE DIVERSAS VULNERABILIDADES ECONÔMICAS, SOCIAIS E
CULTURAIS. FILHOS ADOLESCENTES QUE SE NEGAM A IREM PARA A ESCOLA EM RAZÃO DE NÃO
POSSUÍREM ROUPAS E CALÇADOS ADEQUADOS, ALÉM DE NÃO COMPREENDEREM FLUENTEMENTE O
PORTUGUÊS E RESIDIREM EM ALDEIA INDÍGENA LOCALIZADA EM REGIÃO DISTANTE DA ESCOLA NA QUAL
ESTÃO MATRICULADOS. EDUCAÇÃO ESPECIAL DESTINADA AOS POVOS INDÍGENAS QUE NÃO LHES ESTÁ
SENDO ASSEGURADA. ART. 78, LEI 9.394/1996. ART. 210 E 215, §1º, CF. ARTIGOS 47, 48 E 49 DO ESTATUTO
DO ÍNDIO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DOS GENITORES PELA INEXISTÊNCIA DE ASSIDUIDADE
ESCOLAR DOS FILHOS, TENDO EM VISTA NÃO LHES SER GARANTIDO O ACESSO À EDUCAÇÃO INDÍGENA,
BEM COMO EM RAZÃO DAS DIVERSAS VULNERABILIDADES QUE LHES ACOMETE. MULTA AFASTADA,
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

TJSC - “Adolescente Indígena” E “Direito”

TJSC, Agravo de Instrumento n. 0000383-22.2019.8.24.0081, de Xaxim, rel. Maria do Rocio Luz Santa Ritta,
Terceira Câmara de Direito Civil, j. 04-06-2019

MEDIDA DE PROTEÇÃO À ADOLESCENTE INDÍGENA. PROCEDIMENTO DE AVERIGUAÇÃO DE SITUAÇÃO DE


RISCO. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. INTERLOCUTÓRIO AGRAVADO QUE DETERMINOU O
DESACOLHIMENTO DA MENOR DE IDADE E A SUA ENTREGA À TIA MATERNA. INSURGÊNCIA DA
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO-FUNAI. PREOCUPAÇÃO QUANTO À PROXIMIDADE DA RESIDÊNCIA DA
NOVA GUARDIÃ E DA GENITORA. DECISÃO, NO ENTANTO, QUE SE MOSTRA ACERTADA. AUSÊNCIA DE
INDÍCIOS DE QUE A MÃE TERIA CONTRIBUÍDO PARA A SITUAÇÃO EM QUE FOI ENCONTRADA A
ADOLESCENTE. DETERMINAÇÃO AMPARADA EM ESTUDO SOCIAL QUE CONCLUIU PELOS MELHORES
INTERESSES DA ADOLESCENTE AO REAPROXIMÁ-LA DA FAMÍLIA EXTENSA E REINSERI-LA NO CONTEXTO
CULTURAL DE SUA ETNIA. EXEGESE DO § 6.º DO ART. 28 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
SITUAÇÃO DA MENOR DE IDADE QUE CONTINUARÁ A SER ACOMPANHADA PELA EQUIPE LOCAL. DECISÃO
MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

69
A VOZ E A VEZ DA
CRIANÇADA
Fazendo Arte: Infância Indígena
Nesta edição especial, publicamos os desenhos de crianças do Novo povoado São Gregório, de
Municipalidade Autônoma Rebelde Zapatista - MAREZ Lúcio Cabaña, Caracol 10, sul do México. Os trabalhos
foram enviados pelo associado Raul Araújo. As fotos foram tiradas por ele, por ocasião de visita à localidade.

As imagens dizem mais que palavras. Nos mostra nitidamente como o “desenvolvimento” que está
acontecendo na região vem sendo entendido pelas crianças e adolescentes.

Em todas elas pode se ver imagens de violação à natureza e pessoas de posse de armas. Certamente não são
imagens alegres, como de costume em trabalhos de crianças.

Agradecemos ao professor Ángel Sulub pela colaboração com nosso espaço.

70
Desenho de crianças do Novo povoado São Gregório de Municipalidade Autônoma Rebelde Zapatista -
MAREZ Lúcio Cabaña, Caracol 10 - Fotografias de Raul Araújo

72
Fazendo Arte
Infância Indígena
Por todo o nosso Brasil
Entre matas e florestas
Nossas crianças indígenas
Também têm direito à festa
A cultura e tradição
Dos povos originários
São base da nossa nação
Nem se diga o contrário
Conhecer e respeitar
O lugar dessas crianças
É uma forma de cuidar
E manter a esperança
Que elas possam viver
Cantando com alegria
Pois contam com a proteção
Do ECA e do IBDCRIA

Poema escrito pela associada Flávia Martins de Carvalho, juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo e
conselheira do IBDCRIA, autora do livro “Meninas sonhadoras, mulheres cientistas”.

73
Espaço d@s Associad@s

Em fevereiro, foi lançado o livro “Direitos da criança e do adolescente: promovendo a interface entre as
tecnologias e o Direito Infantoadolescente”, organizado pelo nosso associado Marcelo de Mello Vieira.

Tema de grande relevância na atualidade, o livro traz uma abordagem interdisciplinar com os impactos
trazidos ao mundo jurídico pelas novas tecnologias, levando o leitor à reflexão, diante de uma gama de
enredamentos jurídicos, sociológicos, tecnológicos etc, que se apresentam em abordagens profundas e
corajosas.

O livro pode ser adquirido no site da Editora D´Plácido:

Marcelo é Pós-doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Direito
Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Mestre em Direito pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). Servidor do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Pesquisador no Núcleo de Estudos
Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente (NEJUSCA-UFSC) no Grupo Interdisciplinar de Pesquisas
"Infantojuventudes" - GIPI da Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro do Instituto Brasileiro do Direito
da Criança e do Adolescente (IBDCRIA), do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e
da Associação Mineira dos Professores de Direito Civil (AMPDIC)

74
REVISTA PROTEÇÃO INTEGRAL

Institucional
O IBDCRIA-ABMP é uma organização não-governamental comprometida com a
defesa de direitos fundamentais de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos
em processo contínuo de construção de sua autonomia, destinatários da proteção
integral por parte do Estado, sociedade, comunidade e família e detentores de direito
à participação ativa em todas as esferas da vida.

Pautado pela defesa intransigente dos princípios e direitos consagrados na


Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas e na Constituição Federal
do Brasil, o IBDCRIA-ABMP tem, dentre outros, como compromissos fundamentais: o
aperfeiçoamento e ampliação do acesso à justiça por crianças e adolescentes,
garantida a observância do devido processo legal em todos os procedimentos e a
adaptação das instituições às necessidades daqueles; a observância de uma
perspectiva interdisciplinar para compreensão e construção de estratégicas
interprofissionais e intersetoriais de intervenção nas questões relacionadas a crianças
e adolescentes; a defesa da cultura de paz, da democracia, dos direitos humanos e de
estratégias não violentas de prevenção e enfrentamento de conflitos no que se refere
a crianças e adolescentes.

Composto por membros de diversas áreas do conhecimento e da militância em prol


dos direitos de crianças e adolescentes, inclusive das próprias crianças e
adolescentes como parceiros infanto-juvenis, o IBDCRIA-ABMP desenvolve, dentre
outras, atividades de formação, de elaboração de metodologias e tecnologias sociais,
difusão de conhecimento, advocacy.

Sua história entrelaça-se com sua antecessora, a Associação Brasileira de


Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da
Juventude-ABMP, da qual herdou uma densa trajetória de lutas e conquistas no
campo de direitos de crianças e adolescentes.

Faça parte do IBDCRIA-ABMP! Faça parte desta história e desta luta! Associe-se!

Como se associar?
A contribuição anual do associado pessoa natural é de R$250,00, e de pessoa jurídica
R$360,00, devendo o interessado depositar tal valor na conta bancária do Instituto
(Banco do Brasil, agência 4223-4, conta corrente 6083-6, CNPJ 00.246.533/0001-58,
em nome da ABMP) e, em seguida, encaminhar e-mail para o Instituto () informando
seu nome completo, nacionalidade, profissão, RG, CPF, endereço, telefone e o
comprovante do depósito.

Os estudantes de qualquer curso superior e os graduados há menos de dois anos


poderão solicitar sua associação na modalidade "associado acadêmico" em que, nos
termos do art. 13 Estatuto do Instituto, terá o benefício de pagar apenas 50% da
anuidade do efetivo, oportunidade em que gozará de todos os direitos do associado,
exceto o de votar e ser votado para as Diretorias Executiva e Estaduais e para os
Conselhos Consultivo e Fiscal.
Comunicação
Siga nossas redes sociais e fique sabendo em tempo real das novidades e eventos
que envolvem nossos/as associados/as.

WEBSITE
EM BREVE

INSTAGRAM FACEBOOK WHATSAPP YOUTUBE E-MAIL

Nosso Instituto está sediado na Alameda Dino Bueno,


N.º. 353, Campos Elíseos, São Paulo/SP, CEP 01217-000 -
Liceu Coração de Jesus.

Pesquisa
Coordenador do núcleo de jurisprudência:
Larissa Caroline Teixeira da Silva

Pesquisadores de jurisprudência:
Ana Paula Pagani, Beatriz Gonçalves Boarati, Giovanna Borsetti Cruz, Giulia Esposito Barthem, Isabela Almeida
Reis Santos, Larissa Caroline Teixeira da Silva, Letícia Gusmão Oliveira, Marina Caldeira Ladeira.

Apoio
Agradecemos o apoio do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL) em diversas atividades
institucionais do IBDCRIA-ABMP, especialmente na realização dos webinários e também ao Instituto ALANA,
pela parceria na realização do presente Boletim.

Você também pode gostar