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O Preço do Sal
Tradução:
Fernanda Pinto Rodrigues
Primeira edição publicada nos Estados Unidos da América, em
1952, com o título The Price of Salt
e sob o pseudónimo de Claire Morgan
Edição revista com um posfácio da Autora
Copyright 1984 by Claire Morgan
As letras citadas nas páginas 157 e 159 são da
canção Easy Liuing, de Leo Robin e Ralph Rainger, Copyright
1937 by Famous Music Corporation, Copyright renovado em 1964
por Famous Music Corporation e reimpresso com a sua
autorização
Prefácio
Capítulo I
A hora de almoço na cafetaria do pessoal do Frankenbergs
atingira o auge.
Não restava qualquer espaço nas mesas compridas e chegavam
cada vez mais pessoas, que tinham de esperar atrás das
divisórias de madeira, junto da caixa registadora. As pessoas
que já tinham os seus tabuleiros de comida passavam por entre
as mesas à procura de um espaço onde pudessem encaixar-se, ou
de algum lugar que alguém estivesse prestes a deixar, mas não
encontravam. O chinfrim dos pratos, das cadeiras, das vozes,
do arrastar de pés e do rangido das portas de borboleta, na
sala de paredes nuas, era como o troar de uma máquina enorme.
Therese comia nervosamente, com a pequena brochura do uBem-
vindo ao Frankenberg's" aberta à sua frente e encostada ao
açucareiro. Já lera a volumosa brochura toda a semana
anterior, no primeiro dia da aula de treino, mas não tinha
consigo mais nada que pudesse ler e, na cafetaria do pessoal,
sentia necessidade de se concentrar em qualquer coisa. Por
isso estava a reler o respeitante às vantagens de férias, às
três semanas de férias dadas às pessoas que trabalhavam há
quinze anos no Frankenberg's, enquanto comia o prato quente
do dia - uma fatia acinzentada de carne assada com uma bola
de puré de batata coberto de molho castanho, um montinho de
ervilhas e um pequeno copo de papel de rábano-bastardo.
Tentou imaginar o que sentiria alguém que ti13
vesse trabalhado quinze anos no Frankenberg's, e descobriu-se
incapaz de o conseguir. Os que tinham vinte e cinco anos de
casa tinham direito a quatro semanas de férias, dizia a
brochura. O Frankenberg's também proporcionava um acampamento
para férias de Verão e de Inverno aos seus funcionários.
Também deviam ter uma igreja, pensou ela, e um hospital para
o nascimento de bebés. O armazém estava organizado de modo
tão se melhante a uma prisão que, de vez em quando, se
assustava ao dar-se conta de que fazia parte dele.
Virou rapidamente a página e leu, escrito em grandes letras
pretas de ponta a ponta de duas páginas: " Você É Material
para o Frankenberg's?"
Therese olhou para o lado oposto da sala, para as janelas, e
tentou pensar noutra coisa. Na bonita camisola norueguesa que
vira no Saks e que talvez comprasse para oferecer ao Richard
como prenda de Natal, se não encontrasse uma carteira mais
bonita que as que já vira por vinte dólares. Na possibilidade
de ir de carro com os Kelly, no próximo domingo, a West
Point, para assistir a um jogo de hóquei. A grande janela
quadrada do outro lado da sala parecia um quadro de - como se
chamava ele? - Mondrian. A pequena janela, ao canto, abria-se
para um céu branco. E nenhum pássaro para entrar ou sair por
ela. Que tipo de cenário se podia fazer para uma peça que
decorreria num grande armazém geral? Tinha voltado à
realidade.
- Mas contigo é muito diferente, Terry - dissera-Ihe Richard.
- Tu tens a convicção absoluta de que sairás de lá dentro de
poucas semanas, e os outros não têm -. Richard dissera que
ela poderia estar em França no próximo Verão. Estaria. Queria
que fosse com ele, e não havia realmente nada que a impedisse
de ir. E o amigo de Richard, Phil McElroy, escrevera-lhe a
dizer que talvez conseguisse arranjar emprego para Therese
num grupo de teatro, no mês seguinte. Therese ainda não
conhecia Phil, mas tinha muito pouca esperança de que ele
conseguisse arranjar-lhe emprego. Desde Setembro que passava
Nova Iorque a pente fino não uma, mas várias
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vezes, e não encontrara nada. Quem dava trabalho, a meio do
Inverno, a uma aprendiza de desenhadora cénica, e ainda por
cima no início do aprendizado? Também não lhe parecia real
que pudesse estar em França com Richard no próximo Verão,
sentada com e1e em esplanadas de cafés, passeando com ele em
Arles, procurando os lugares que Van Gogh pintara, escolhendo
os dois, Richard e ela, lugares onde parariam algum tempo
para eles próprios pintarem. Tudo isso lhe parecia ainda
menos real nos últimos dias, desde que trabalhava no armazém.
Therese sabia o que a preocupava no armazém. Tratava-se de um
tipo de coisas que não tentaria contar a Richard. O armazém
intensificara coisas que sempre a tinham incomodado, desde
que se lembrava. Eram os gestos desperdiçados, as tarefas sem
sentido que pareciam impedi-la de fazer o que queria, o que
poderia ter feito - e ali eram as normas de procedimento com
os sacos de dinheiro, as revistas aos casacos e os relógios
de ponto que impedem as pessoas de servir até mesmo o armazém
tão eficientemente como de outro modo poderiam servi-lo -, a
sensação de que todos estavam incomunicáveis uns com os
outros e vivendo num plano completamente errado, de modo que
o significado, a mensagem, o amor, ou fosse o que fosse que a
vida continha, jamais conseguia encontrar a sua expressão.
Isso recordava-lhe conversas à mesa, em sofás, com pessoas
cujas palavras pareciam pairar sobre coisas mortas, inertes,
que nunca tangiam uma corda que tocasse. E quando alguém
tentava tocar numa corda viva, olhavam-no com rostos tão
mascarados como sempre, faziam um co mentário tão perfeito na
sua banalidade que uma pessoa não podia sequer acreditar que
se tratava de um subterfúgio. E a solidão era aumentada pelo
facto de ver no armazém os mesmos rostos, dia após dia, os
poucos com quem se poderia ter falado e nunca se falava, ou
nunca se podia falar. Não era como o rosto que passa, o que
parece falar, que se vê uma vez e pelo menos desaparece para
sempre.
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Ela perguntava-se, à espera na bicha para marcar o ponto, na
cave, todas as manhãs, com os olhos a distinguirem
inconscientemente os funcionários efectivos dos temporários,
como fora ali parar - respondera a um anúncio, evidentemente,
mas isso não explicava o destino - e o que se seguiria em vez
de um emprego a desenhar para o teatro. A sua vida era uma
série de ziguezagues. Aos dezanove anos, vivia angustiada.
- Deves aprender a confiar nas pessoas, Therese. Não te
esqueças disso - dissera-lhe com frequência a Irmã Alicia. E
frequentemente, muito frequentemente, Therese tentara aplicar
essa regra.
- Irmã Alicia - murmurou baixinho, cuidadosamente,
reconfortada com a sílaba sibilante.
Therese endireitou-se na cadeira e pegou de novo no garfo,
porque o rapaz que levantava os pratos se encaminhava na sua
direcção.
Viu o rosto da Irmã Alicia, ossudo e avermelhado como uma
pedra escura quando o sol lhe batia, e a onda azul engomada
do seu seio. A grande figura ossuda da Irmã Alicia surgindo
de um cotovelo do corredor, entre as mesas de esmalte branco
do refeitório, a Irmã Alicia em mil lugares, os seus pequenos
olhos azuis localizando-a sempre entre as outras raparigas,
vendo-a diferentemente, Therese sabia, de todas elas, apesar
de os lábios finos e rosados apresentarem sempre a mesma
linha recta. Viu a Irmã Alicia entregando- lhe as luvas
verdes tricotadas, embrulhadas em papel de seda, sem sorrir,
entregando-lhas apenas, pessoalmente, quase sem uma palavra,
no seu oitavo aniversário. A Irmã Alicia a dizer-lhe, com a
mesma boca em linha recta, que ela tinha de ficar bem em
aritmética. Quem mais se importara que ela ficasse bem ou não
em aritmética? Therese guardara as luvas verdes no fundo do
seu baú de folha, na escola, durante anos, depois já de a
Irmã Alicia ter ido para a Califórnia. O papel de seda branco
tornara-se mole e deixara de crepitar como tecido antigo, mas
mesmo assim ela continuara sem utilizar as luvas. Finalmente,
deixaram de lhe servir.
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Alguém mexeu no açucareiro e a brochura que a ele estava
encostada caiu da mesa.
Therese olhou para o par de mãos que se encontravam à sua
frente, do outro lado da mesa, mãos de mulher, papudas e
envelhecidas, mexendo o café, partindo
um pãozinho com uma avidez trémula, molhando metade,
sofregamente, no molho castanho do prato idêntico
ao de Therese. As mãos estavam gretadas, tinham sujidade nos
vincos paralelos dos nós dos dedos, mas a direita ostentava
um vistoso anel de prata filigranada com
uma pedra verde-clara e a esquerda tinha uma aliança de
casamento de ouro e havia vestígios de verniz vermelho nos
cantos das unhas. Therese observou a mão a subir para levar à
boca uma garfada de ervilhas, e não precisou de olhar para o
rosto para saber como ele era.
Devia ser como os rostos de todas as mulheres quinquagenárias
que trabalhavam no Frankenberg's, marcados por uma eterna
exaustão e terror, olhos desfigurados atrás de óculos que os
aumentavam ou tornavam mais pequenos, faces esborratadas de
rouge que não animava o cinzento que se escondia por baixo.
Therese não foi capaz de olhar.
- É nova cá, não é? - A voz soou estridente e clara e no meio
do alarido, quase uma voz terna.
- Sou - respondeu Therese, e levantou a cabeça.
Lembrou-se do rosto. Era aquele cuja exaustão lhe fizera
reviver todos os outros. Era a mulher que vira descer com
dificuldade a escada de pedra da sobreloja por volta das seis
e meia de uma tarde, quando o armazém estava vazio, deixando
escorregar as mãos pelo largo corrimão de mármore, a fim de
aliviar um pouco o peso sobre os pés martirizados pelos
joanetes. Therese pensara: ela não estará doente, ela não é
uma pedinte, trabalha, simplesmente, aqui.
- Está a dar-se bem?
A mulher sorria-lhe, com os mesmos terríveis vincos debaixo
dos olhos e à volta da boca. Os seus olhos mostravam-se agora
realmente vivos e afectuosos.
- Está a dar-se bem? - repetiu a mulher, pois o ba17
rulho de vozes e o entrechocar de pratos à volta delas era
muito grande.
Therese humedeceu os lábios.
- Estou, obrigada.
- Gosta disto aqui?
Therese acenou afirmativamente.
- Acabou? - Um homem novo, com um avental branco, agarrou o
prato da mulher com um polegar im perioso.
Ela fez um gesto trémulo, de assentimento, e puxou para si o
pires de fatias de pêssego enlatado. Os frutos, como peixes
viscosos cor de laranja, escorregavam para fora da colher
todas as vezes que esta era levantada, excepto um pedaço que
a mulher comia.
- Eu estou no segundo andar, na Secção de Malhas. Se precisar
de me perguntar alguma coisa - ofereceu a mulher, com uma
hesitação nervosa, como se estivesse a tentar transmitir uma
mensagem antes de serem interrompidas ou separadas -, vá até
lá acima e fale comigo. O meu nome é senhora Robichek, Ruby
Robichek, cinco-quatro-cinco.
- Muito obrigada - agradeceu Therese e, de súbito, a fealdade
da outra mulher desapareceu, porque os seus olhos castanho-
avermelhados se mostravam, atrás dos óculos, bondosos e
interessados nela. Therese sentiu o coração a bater, como se
ele tivesse ressuscitado. Observou a mulher a levantar-se e
seguiu a sua figura baixa e gorda a afastar-se, até a perder
de vista atrás da multidão que esperava na bicha.
Não visitou a senhora Robichek, mas os seus olhos procuravam-
na todas as manhãs, quando os empregados iam entrando no
estabelecimento por volta das nove menos um quarto, e também
nos elevadores e na cafetaria. Nunca a via, mas era agradável
ter alguém que procurar no armazém. Tornava tudo diferente.
Quase todas as manhãs, quando chegava ao trabalho no sexto
andar, parava um momento, a observar um certo comboio de
brincar. O comboio estava, sozinho, numa mesa perto dos
elevadores. Não era um grande e bonito
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comboio como o que corria no chão, no fundo da Secção de
Brinquedos, mas havia nos movimentos dos seus êmbolos uma
fúria que os comboios maiores não tinham. A raiva e a
frustração com que percorria a linha oval e fechada
fascinavam Therese.
Aurr rr rrgh!, rugia ao lançar-se às cegas para o interior do
túnel de aier-mâché. E Urr rr rr rrgh!, ao sair dele.
O pequeno comboio estava sempre em movimento quando ela saía
do elevador, de manhã, e quando acabava de trabalhar, à
tarde. Tinha a impressão de que ele amaldiçoava a mão que o
ligava todos os dias. Na guinada da frente da locomotiva, ao
fazer as curvas, e nas suas arrancadas furiosas pelas rectas
fora, adivinhava Therese uma perseguição frenética e inútil a
um senhor tirano. Puxava três carruagens Pullman nas quais
minúsculas figuras humanas mostravam perfis empedernidos nas
janelas; atrás das carruagens, um vagão aberto carregado de
touros miniaturais de madeira verdadeira, outro cheio de
carvão a fingir e uma carruagem-cozinha que chiava nas curvas
e se agarrava ao veloz comboio como uma criança às pernas da
mãe. Era como uma criatura que enlouquecera no cativeiro,
qualquer coisajá morta que nunca se consumiria, como as
raposas elegantes, de passadas elásticas, do Central Park
Zoo, cujas pegadas complexas se repetiam, se multiplicavam
infinitamente enquanto elas andavam à roda nas suas jaulas.
Naquela manhã, Therese afastou-se depressa do comboio e
dirigiu-se rapidamente para o balcão das bonecas onde
trabalhava.
Às nove horas e cinco minutos, o grande quadro que constituía
a Secção de Brinquedos começava a encher-se de vida. Panos
verdes eram retirados das mesas compridas. Brinquedos
mecânicos começavam a atirar bolas ao ar e a apanhá-las,
galerias de tiro disparavam e os seus alvos giravam. Na mesa
do pátio de quinta, animais grasnavam, cacarejavam e
zurravam. Atrás de Therese começava um rat-tat-tat-tat
fatigado: era o rufar do tambor do soldado de folha gigante
que, militantemente,
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olhava para os elevadores e tocava o dia todo. Da mesa de
artes e artesanato vinha um cheiro a barro fresco,
reminiscente da sala de arte da escola, quando ela era muito
pequena, e também de uma espécie de abóbada existente nos
terrenos da escola, que constava ser o túmulo verdadeiro de
alguém e por entre cujas grades de ferro ela costumava meter
o nariz.
A senhora Hendrickson, chefe do balcão das bonecas, tirava
bonecas das prateleiras de stock e sentava-as, de pernas
abertas, em cima dos balcões de vidro.
Therese deu os bons-dias à menina Martucci, que estava de pé,
ao balcão, a contar as notas e moedas do seu saco de dinheiro
com uma tal concentração que respondeu apenas com um inclinar
mais profundo da sua cabeça que acenava ritmicamente,
acompanhando a contagem. Therese contou vinte e oito dólares
e cinquenta, do seu próprio saco de dinheiro, registou a
importância num pedaço de papel branco para o sobrescrito das
receitas das vendas e transferiu o dinheiro, por ordem de
valores, para a sua gaveta da caixa registadora.
Entretanto, os primeiros clientes começavam a sair dos
elevadores, hesitando um momento, com as expressões confusas
e algo assustadas que as pessoas mostravam sempre que davam
consigo na Secção de Brinquedos, e avançando depois,
sinuosamente.
- Tem aquelas bonecas que fazem chichi? - perguntou uma
mulher a Therese.
- Eu gostaria dessa boneca, mas com um vestido amarelo -
disse outra, empurrando uma boneca para ela, e Therese
voltou-se e tirou a que ela queria da prateleira de stock.
Reparou que a mulher tinha a boca e as faces como a sua mãe,
faces ligeiramente bexigosas debaixo do rouge rosa-escuro,
separadas por uma boca fina e vermelha cheia de linhas
verticais.
- As bonecas que bebem e fazem chichi são todas deste
tamanho?
Não era preciso ter habilidade para vender. As pessoas
queriam uma boneca, qualquer boneca, para dar no
20
Natal. Resumia-se tudo a baixar-se, a tirar as caixas para
procurar uma boneca com olhos castanhos em vez de azuis,
chamar a senhora Hendrickson para abrir um expositor com a
sua chave, coisa que ela fazia de má vontade se estava
convencida de que não havia em stock a boneca em questão,
descer a coxia atrás do balcão para colocar uma boneca
comprada na montanha de caixas de acondicionamento - montanha
que crescia e ruía constantemente, por muitas vezes que os
rapazes do ares- mazém viessem buscar os embrulhos. Quase
não apareciam crianças na secção. A crença era de quem dava
as bonecas era o Pai Natal, um Pai Natal representado peon
las caras frenéticas e pelas mãos ávidas. No entanto,
de. beveria haver uma certa boa vontade em todas elas,
pensaita- va Therese, mesmo atrás dos rostos frios e empoados
das mulheres que usavam casaco de ui. son e zibelina, que
eram em geral as mais arrogantes e compravam apressaredamente
as bonecas maiores e mais caras, as que tinham cabelo
verdadeiro e mudas de roupa. Havia com certeza amor nas
pessoas pobres, que aguardavam a sua vez e a sair perguntavam
com voz baixa quanto custava determinaces- da boneca,
abanavam pesarosamente a cabeça e se afastra- tavam.
Treze dólares e cinquenta por uma boneca apeuenas com vinte e
cinco centímetros de altura.
"Leve-a", gostaria Therese de lhes dizer. "É na verdade muito
cara, mas dou-lha. O Frankenberg's não sentirá falta dela. "
Mas as mulheres de casacos de fazenda baratos, os homens
tímidos embrulhados com cachecóis esfiapados, ira-
afastavam-se, olhando tristemente para os outros
balcões, de regresso aos elevadores. Se as pessoas iam al
para comprar uma boneca, não queriam outra coisa.
Uma boneca era um tipo especial de presente de Natal, era uma
coisa praticamente viva, o que mais se aproximava de um bebé.
Quase nunca se viam crianças, mas de vez em quando aparecia
uma, geralmente uma menina pequena, no muito raro um
rapazinho, com a mão firmemente agarrada pelo pai ou pela
mãe. Therese mostrava-lhe as bo21
Natal. Resumia-se tudo a baixar-se, a tirar as caixas para
procurar uma boneca com olhos castanhos em vez de azuis,
chamar a senhora Hendrickson para abrir um expositor com a
sua chave, coisa que ela fazia de má von tade se estava
convencida de que não havia em stock a boneea em questão,
descer a coxia atrás do balcão para colocar uma boneca
comprada na montanha de caixas de acondicionamento - montanha
que crescia e ruía constantemente, por muitas vezes que os
rapazes do armazém viessem buscar os embrulhos.
Quase não apareciam crianças na secção. A crença era de quem
dava as bonecas era o Pai Natal, um Pai Natal representado
pelas caras frenéticas e pelas mãos ávidas. No entanto,
deveria haver uma certa boa vontade em todas elas, pensava
Therese, mesmo atrás dos rostos frios e empoados das mulheres
que usavam casaco de Vison e zibelina, que eram em geral as
mais arrogantes e compravam apressadamente as bonecas maiores
e mais caras, as que tinham cabelo verdadeiro e mudas de
roupa. Havia com certeza amor nas pessoas pobres, que
aguardavam a sua vez e perguntavam com voz baixa quanto
custava determinada boneca, abanavam pesarosamente a cabeça e
se afastavam. Treze dólares e cinquenta por uma boneca apenas
com vinte e cinco centímetros de altura.
"Leve-a", gostaria Therese de lhes dizer. "É na verdade muito
cara, mas dou-lha. O Frankenberg's não sentirá falta dela. "
Mas as mulheres de casacos de fazenda baratos, os homens
tímidos embrulhados com cachecóis esfiapados, afastavam-se,
olhando tristemente para os outros balcões, de regresso aos
elevadores. Se as pessoas iam ali para comprar uma boneca,
não queriam outra coisa. Uma boneca era um tipo especial de
presente de Natal, era uma coisa praticamente viva, o que
mais se aproximava de um bebé.
Quase nunca se viam crianças, mas de vez em quando aparecia
uma, geralmente uma menina pequena, muito raro um rapazinho,
com a mão firmemente agarrada pelo pai ou pela mãe. Therese
mostrava-lhe as bo21
necas de que pensava que a criança poderia gostar. Era
paciente e, por fim, uma certa boneca operava aquel
metamorfose no rosto da criança, aquela reacção ao faz-de-
conta que constituía, afinal, o objectivo de tudo aquilo, e
de modo geral era com essa boneca que a criança acabava por
se ir embora.
Até que uma tarde, depois do trabalho, Therese viu a senhora
Robichek na loja que vendia cafés e donuts, do outro lado da
rua. Therese passava por lá com frequência para tomar uma
chávena de café antes de regressar a casa. A senhora Robichek
estava na parte de trás da loja, ao fundo do comprido balcão
curvo, a molhar um donut na sua chávena de café.
Therese abriu caminho na direcção dela, pelo meio da confusão
de raparigas, chávenas de café e donuts. Ao chegar ao lado da
senhora Robichek disse um Olá ofegante e voltou-se para o
balcão, como se uma chávena de café tivesse sido o único
motivo que ali a levara.
- Olá - respondeu a senhora Robichek, tão indiferentemente
que Therese se sentiu desalentada. Não ousou olhar de novo
para ela, apesar de os ombros de ambas estarem, de facto,
comprimidos um contra o outro.
Ia a meio do café quando a mulher disse, desanimadamente:
- Vou apanhar o metro Independent. Mas não sei se
conseguiremos sair daqui -. A sua voz era melancólica, nada
parecida com a daquele dia, na cafetaria. Agora ela era a
velha corcovada que Therese vira arrastar-se pela escada
abaixo.
- Havemos de sair - respondeu-lhe, tranquilizadoramente.
Therese abriu caminho para ambas até à porta. Ela também ia
no metro Independent. Infiltraram-se, as duas, na multidão
lenta que entupia a entrada do metro e foram, gradual e
inevitavelmente, aspiradas pela escada abaixo, como pedaços
de detritos flutuantes sugados para um cano. Descobriram que
também se apeavam, as duas, na estação da Avenida Lexington,
embora a senhora Robichek morasse na Rua 55, a leste da 3ªa
Avenida.
22
Therese acompanhou-a à charcutaria onde ela ia comprar
qualquer coisa para ojantar. Ela também precisava de comprar
umas coisas para o seu jantar, mas, sem o saber porquê, não
foi capaz de o fazer na presença da outra.
- Tem comida em casa?
- Não, comprarei qualquer coisa depois.
- Porque não janta comigo? Estou só. Venha!
A senhora Robichek terminou o convite com um encolher de
ombros, como se isso custasse menos que um sorriso.
O impulso de Therese para protestar delicadamente durou
apenas um minuto.
- Obrigada. Tenho muito gosto -. Depois viu no balcão um
embrulho em celofane, um bolo inglês, que lembrava um grande
tijolo castanho coberto de cerejas vernelhas, e comprou-o
para o oferecer à senhora Robichek.
- A casa era como aquela onde Therese morava, com a
diferença de ser de arenito pardo e muito mais escura e
sombria. Não havia luz nos patamares, e quando a senhora
Robichek acendeu a luz do segundo andar, Therese notou que a
casa não primava pelo asseio. O quarto da senhora Robichek
também não estava muito limpo e a cama encontrava-se por
fazer. Therese pensou que ela se levantaria tão cansada como
se deitava. Foi abandonada no meio do quarto, enquanto a
mulher se dirigia, a arrastar os pés, para a kitchenette, com
o saco de compras que lhe tirara das mãos. Therese teve a
impressão de que, ao encontrar-se agora onde ninguém podia
vê-la, a senhora Robichek se permitia mostrar-se tão fatigada
como na realidade se sentia.
Therese nunca foi capaz de se lembrar como aquilo
começou. Não se lembrava da conversa imediatamente anterior,
mas a conversa não interessava, claro. O que aconteceu foi
que a senhora Robichek se afastou vagarosamente dela, de modo
estranho, como se estivesse em transe, passando de súbito a
murmurar em vez de falar e se deitou de costas, ao comprido,
na cama por fazer. Foi
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o murmurar contínuo, o ténue sorriso de desculpa e a
terrível, chocante fealdade do corpo curto e pesado, com o
abdómen proeminente e a cabeça inclinada ainda a olhá-la
cortesmente, foi por tudo isso que Therese não conseguiu
forçar-se a ouvir.
-Eu tive a minha própria loja de vestidos, em Queens. Oh, era
uma bela loja, grande! - disse a se nhora Robichek, e Therese
detectou uma nota de gabarolice e começou a escutar mau grado
seu, embora detestasse fazê-lo. - Deve lembrar-se, os
vestidos com o V na cintura e as fieiras de botõezinhos a
subir. Foi há uns três, cinco anos... - A senhora Robichek
abriu as mãos hirtas, deformadas e encurtadas na cintura, sem
conseguir, longe disso, abarcar a metade da frente do seu
corpo. Parecia muito velha à luz eléctrica fraca, que
enegrecia as sombras debaixo dos seus olhos. - Chamavam-lhes
vestidos Caterina. Lembra-se? Fui eu que os desenhei. Era a
minha loja em Queens que os fornecia. Foram famosos, oh se
foram!
A senhora Robichek levantou-se da cama e dirigiu-se a uma
pequena arca que se encontrava contra a parede. Abriu-a, sem
deixar de falar, e começou a tirar lá de dentro vestidos de
um tecido escuro e pesado, que deixava cair para o chão.
Ergueu um de veludo vermelho-granada, com gola branca e
minúsculos botões que formavam um V na parte inferior do
corpo estreito.
- Vê, tenho uma quantidade deles. Fui eu que os fiz. Outros
armazéns copiaram-nos -. Por cima do vestido de gola branca,
que ela segurava com o queixo, a cabeça feia da senhora
Robichek inclinava-se grotescamente para o lado. - Gosta
deste? Eu dou-lhe um. Chegue cá. Chegue cá, experimente um.
Therese sentia-se repelida pela ideia de experimentar um dos
vestidos. Desejava que a senhora Robichek se deitasse e
descansasse de novo, mas obedientemente levantou- se, como se
não tivesse vontade própria, e aproximou-se dela.
A senhora Robichek encostou-lhe um vestido de veludo preto ao
corpo, eom as mãos trémulas e importunas,
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e Therese soube de súbito como ela devia atender os clientes,
no armazém, mostrando-lhes camisolas atabalhoadamente, pois
seria incapaz de o fazer de qualquer outra maneira. Lembrou-
se de a ter ouvido dizer que trabalhava no Frankenberg's há
quatro anos.
-Gosta mais do verde? Experimente-o. - E, no instante em que
Therese hesitou, largou o verde e pegou noutro, no vermelho-
escuro. - Vendi cinco a raparigas do armazém, mas a si dou-
lhe um. Sobraram, mas ainda estão na moda. Gosta mais deste?
Therese gostava mais do vermelho. Gostava de vermelho, em
especial de vermelho-granada, e adorava veludo vermelho. A
senhora Robichek conduziu-a para um canto onde ela podia
despir-se e pôr a roupa numa ca deira de braços. Mas Therese
não queria o vestido, não queria que ela lho desse. Isso
recordava-lhe o tempo em que lhe davam roupa usada, no lar,
por ser considerada praticamente como uma das raparigas
órfãs, que constituíam metade das alunas e nunca recebiam
encomendas do exterior. Despiu a camisola e teve a impressão
de ficar completamente nua. Apertou os braços acima do
cotovelo e sentiu a carne fria e insensível.
- Eu costurei - dizia extasiadamente, para consigo própria, a
senhora Robichek -, oh, como costurei, de manhã à noite!
Tinha quatro raparigas a trabalhar para mim. Mas fiquei
doente dos olhos. Um cegou, este. Vista o vestido -. Falou a
Therese da operação do olho. Não estava cego, estava apenas
parcialmente cego. Mas era muito doloroso. Glaucoma. Ainda
agora lhe doía. O olho e as costas. E os pés. Joanetes.
Therese sentiu que ela estava a contar-lhe todos os seus
problemas de saúde, e a sua pouca sorte, para que ela
compreendesse por que motivo descera ao ponto de trabalhar
num armazém.
- Serve-lhe? - perguntou a senhora Robichek, confiantemente.
Therese viu-se ao espelho da porta do roupeiro, que lhe
mostrou uma figura longa e delgada, com uma cabeça estreita
cujos contornos pareciam flamejantes, fogo
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amarelo, luminoso, que corria para as alças vermelhas de cada
ombro. O vestido caía em pregas largas quase até aos
tornozelos. Um vestido de rainhas de contos de fadas, com um
vermelho mais carregado que o sangue. Recuou, apertou o
tecido folgado das costas para que o vestido se lhe ajustasse
às costas e à cintura, e fitou os seus próprios olhos cor de
avelã escura, no espelho. Ela vendo-se a si própria. Ela era
o que o espelho lhe mostrava, isso e não a rapariga de saia
de pregas e camisola bege sem graça, não a rapariga que
trabalhava na Secção de Bonecas do Frankenberg's.
- Gosta? - perguntou a senhora Robichek. Therese estudou a
boca surpreendentemente tranquila, cujo desenho via com toda
a clareza, embora não usasse mais bâton do que teria depois
de alguém a ter beijado. Desejou poder beijar a pessoa que o
espelho lhe mostrava e insuflar-lhe vida, mas permaneceu
absolutamente imóvel, como um retrato pintado.
- Se gosta, fique com ele - insistiu a senhora Robichek,
impacientemente, observando-a de certa distância, de tocaia,
encostada ao roupeiro, como é costume das empregadas de
balcão enquanto mulheres experimentam casacos e vestidos
diante de espelhos, nas lojas.
Mas aquilo não duraria, Therese sabia que não duraria. Ela
mexer-se-ia e pronto, desapareceria tudo. Mesmo que ficasse
com o vestido, desapareceria, porque era uma coisa de minuto,
daquele minuto. Não queria o vestido. Tentou imaginá-lo no
seu armário, em casa, entre a sua outra roupa, e não foi
capaz. Começou a desabotoar os botões, a soltar a gola.
- Gosta, não gosta? - perguntou-lhe a senhora Robichek, com a
mesma confiança.
- Gosto - respondeu Therese com firmeza, admitindo a verdade.
Não conseguia desabotoar o colchete da parte de trás da gola.
A senhora Robichek teve de a ajudar, porque ela se
impacientava, mal podia esperar. Tinha a sensação de estar a
ser estrangulada. Que fazia ali? O que a levara a vestir um
vestido como aquele? De súbito, a se26
nhora Robichek e a sua casa pareceram-lhe um sonho horrível,
um sonho que ela acabava de perceber que estava a sonhar. A
senhora Robichek era a carcereira corcunda da masmorra. Ela
tinha sido levada para ali para ser atormentada.
- Que foi? Picou-a algum alfinete?
Os lábios de Therese abriram-se para falar, mas a sua mente
estava muito, muito longe. A sua mente estava num ponto
distante, num vórtice longínquo que se abria para o quarto
aterrador e obscuramente iluminado onde as duas pareciam
travar um combate desesperado. E no ponto do vórtice em que a
sua mente se encontrava ela sabia que era desesperança e nada
mais que a aterrava. Era a desesperança do corpo achacado da
senhora Robichek e do seu trabalho no armazém, do seu monte
de vestidos na arca, da sua fealdade, a desesperança de que
era inteiramente feito o fim da sua vida. E a desesperança de
si própria, de Therese, era a de alguma vez vir a ser a
pessoa que queria ser e de fazer as coisas que essa pessoa
faria. Teria sido a sua vida apenas um sonho, nada mais que
um sonho, e seria a realidade de tudo aquilo? Era o terror da
desesperança que a fazia querer despir o vestido e fugir
antes que fosse tarde de mais, antes que as cadeias caíssem à
sua volta e se fechassem.
Talvez fosse já demasiado tarde. Como num pesadelo, Therese
estava parada no quarto, em combinação, a tremer e incapaz de
se mexer.
- Que tem? Está com frio? Mas está calor.
Estava calor. O irradiador sibilava. O quarto cheirava a alho
e ao mofo da velhice, a remédios e ao cheiro metálico da
própria senhora Robichek. Therese desejava
deixar-se cair na cadeira onde se encontrava a sua saia e a
sua camisola. Se se deitasse em cima da sua própria roupa,
pensou, talvez não tivesse importância. Mas não, não devia,
absolutamente, deitar-se, fosse como fosse. Se o fizesse,
estaria perdida. As cadeias fechar-se-iam e ela seria una com
a corcunda.
Therese tremia violentamente. De súbito, descontrolou-se.
Era um calafrio, o que sentia, e não apenas susto
ou fadiga.
27
- Sente-se - disse a voz da senhora Robichek, de longe e com
ehocante indiferença e enfado, como se estivesse
perfeitamente habituada a ver raparigas desfalecerem no seu
quarto e, também de longe, os seus dedos secos de pontas
ásperas comprimiram-se contra os braços de Therese.
Therese debatia-se contra a cadeira, sabendo que ia sucumbir-
lhe e consciente, até, de que era por essa razão que ela a
atraía. Deixou-se cair na cadeira, sentiu a senhora Robichek
a puxar-lhe a saia, para a tirar de debaixo do seu corpo, mas
não encontrou forças nem vontade para se mexer. Continuava,
porém, no mesmo nível de percepção, continuava a ter a mesma
liberdade de pensar, apesar de os braços escuros da cadeira
subirem à sua volta.
- Passa demasiado tempo de pé no armazém - dizia a senhora
Robichek. - São dificeis, estes Natais. Já passei por quatro,
por isso sei. Precisa de aprender a poupar-se um pouco.
Arrastando-se pela escada abaixo agarrada ao corrimão.
Almoçando na cafetaria para se poupar. Descalçando os sapatos
dos pés com joanetes, para os aliviar, como a fila de
mulheres empoleiradas no irradiador da sala das empregadas,
lutando por um espaço nele, uma nesga, sobre a qual colocavam
um jornal e se sentavam durante cinco minutos.
A mente de Therese funcionava com muita clareza. Com uma
clareza espantosa até, embora ela soubesse que estava
simplesmente de olhos fixos no espaço à sua frente e que não
poderia ter-se mexido, mesmo que quisesse.
- Está apenas cansada, minha querida - disse a senhora
Robichek, enquanto lhe aconchegava um cobertor de lã à volta
dos ombros, na cadeira. - Precisa de descansar, depois de
estar de pé todo o dia, e de ficar de pé outra vez, agora, à
noite.
Therese lembrou-se de um verso de Elliot: Isso não é o que eu
pretendia, de modo algum. Não é, de modo algum, de modo
algum. Quis dizê-lo, mas não conseguiu fazer os lábios
28
moverem-se. Tinha na boca qualquer coisa doce e que
queimava. A senhora Robichek estava defronte dela dando-lhe
colheradas de um líquido de uma garrafa, introduzindo a
colher entre os seus lábios. Therese engolia obedientemente,
indiferente, mesmo que fosse veneno. Agorajá poderia mover os
lábios, já se poderia levantar da cadeira, mas não queria
mexer-se. Por fim, recostou-se, deixou a senhora Robichek
tapá-la com o cobertor e fingiu adormecer. Mas sem deixar de
observar a figura corcovada a andar de um lado para o outro,
levantando a mesa, despindo-se para se deitar. Viu a senhora
Robichek tirar um grande espartilho arrendado e depois
qualquer coisa com correias, que lhe passava à volta dos
ombros e descia parcialmente pelas costas. Fechou os olhos,
horrorizada, fechou-os com força, até que o protesto de uma
mola e um longo suspiro entrecortado lhe disseram que a
senhora Robichek se deitara. Mas as coisas não ficaram por
aí. A mulher estendeu o braço para o despertador e deu-lhe
corda, e, sem levantar a cabeça da almofada, tacteou até
encontrar a cadeira de costas direitas que se encontrava ao
lado da cama, onde voltou a pôr o relógio. Na escuridão,
Therese viu com dificuldade o seu braço levantar-se e baixar-
se quatro vezes, antes de o relógio encontrar a cadeira.
Esperarei quinze minutos até ela adormecer e depois vou-me
embora, pensou.
E, porque estava fatigada, tornou-se tensa para poder conter
aquele espasmo, aquela espécie de ataque súbito que era como
cair e que surgia todas as noites muito antes do sono, mas
que, no entanto, anunciava o sono. Daquela vez, não o sentiu.
Por isso, quando calculou que tinham decorrido quinze
minutos, vestiu-se e saiu silenciosamente. Foi fácil, afinal,
abrir apenas a porta e fugir dali. Foi fácil, pensou, porque
ela não estava, realmente, de modo algum a fugir.
Gapítulo II
- Terry, lembras-te daquele tipo, do Phil McElroy, de que te
falei? O da companhia de reportório? Bem, ele está aqui na
cidade e diz que terás um emprego dentro de duas semanas.
- Um emprego verdadeiro? Onde?
- Um espectáculo na Village. O Phil quer ver-nos esta noite.
Depois conto-te, quando chegar. Estarei aí dentro de uns
vinte minutos. Estou a sair da escola.
Therese subiu a correr os três lanços de degraus que levavam
ao seu quarto. Estivera a meio de lavar-se e, entretanto, o
sabonete secara-lhe no rosto. Olhou para a luva de turco cor
de laranja no lavatório.
- Um emprego! - murmurou. A palavra mágica. Vestiu um
vestido, pôs ao pescoço um pequeno fio de seda com uma
medalha de São Cristóvão, presente de aniversário de Richard,
e penteou-se com um pouco de água, para o cabelo parecer mais
arranjado. Depois colocou vários esboços e modelos em cartao
logo à entrada do armário, de maneira a poder chegar- lhes
facilmente quando Phil McElroy pedisse para os ver. "Não, não
te nho o que se pode chamar muita experiência genuína", teria
de dizer - e pensar nisso causou-lhe uma deprimente sensação
de fracasso. Não tinha sequer trabalhado como aprendiza, a
não ser aqueles dois dias em Montclair, fazendo o modelo em
cartão que o grupo amador acabara por utilizar. Frequentara
dois cursos de desenho cénico em Nova Iorque e lera uma
quantidade de livros. Pareceu-lhe ouvir Phil McElroy - um
jovem e
31
muito atarefado, provavelmente um pouco aborrecido por tê-la
visitado para nada - dizer pesarosamente que, afinal, ela não
servia. Mas, com Richard consigo, pensou, não seria tão
deprimente como se estivesse só. Richard despedira-se ou fora
despedido de uns cinco empregos desde que ela o conhecia.
Nada o incomodava menos que perder e arranjar empregos.
Therese lembrou-se de ter sido despedida da Pelican Press, um
mês atrás, e estremeceu. Nem sequer lhe tinham dado aviso
prévio, e ela supunha que a única razão do seu despedimento
residia no facto de o seu processo específico de investigação
ter terminado. Quando fora falar com o senhor Nussbaum, o
direetor, protestando por não ter recebido aviso prévio, ele
não soubera, ou fingira não saber, o que a expressão
significava. "Aviso? Que aviso?", replicara indiferentemente,
com o seu sotaque sibilante, e ela virara as costas e saíra a
correr, com medo de desatar a chorar no gabinete dele. Era
fácil para Richard, que vivia em casa com uma família para o
animar. Era ainda mais fácil para ele juntar dinheiro.
Juntara cerca de dois mil dólares num período de serviço de
dois anos na Armada, e mais mil no ano que se seguira. Mas de
quanto tempo precisaria ela para juntar os mil e quinhentos
dólares necessários para uma inscrição, como aprendiza, no
Sindicato dos Desenhadores Cénicos? Ao fim de quase dois anos
em Nova Iorque, conseguira amealhar apenas quinhentos
dólares.
- Reza por mim - pediu à Madona de madeira que tinha na
estante. Era a única coisa bela do seu apartamento, a Madona
de madeira que comprara no seu primeiro mês em Nova Iorque.
Gostaria de ter um lugar melhor para a pôr, na sala, que a
feia estante, que parecia feita de diversos caixotes de fruta
empilhados e pintados de vermelho. Desejava muito ter uma
estante de madeira de cor natural, suave ao toque e sedosa de
cera.
Foi à charcutaria e comprou seis latas de cerveja e um pouco
de queijo azull [Blue cheese, em inglês. Trata-se de um
queijo similar ao Roguefo, no aspecto e no paladar. (N. da
T.)]. Depois de voltar para casa,
32
lmbrou-se do motivo original que a levara à charcutaria:
comprar carne para o jantar. Ela e Richard tinham planeado
jantar em casa, essa noite. Isso podia agora ser modificado,
mas ela não gostava de tomar a iniciativa quando se tratava
de alterar planos que o envolviam. Por isso, preparava-se
para voltar a descer quando a campainha soou, com o toque
prolongado habitual de Richard. Therese carregou no botão do
trinco.
Richard subiu os degraus a correr, sorrindo.
- O Phil telefonou?
- Não.
- Óptimo. Isso quer dizer que vem.
- Quando?
- Dentro de minutos, suponho. Provavelmente não
se demorará muito tempo.
- Parece-te que é realmente um trabalho a valer?
- O Phil diz que sim.
- Sabes de que género de peça se trata?
- A única coisa que sei é que eles precisam de alguém para os
cenários. Porque não hás-de ser tu? - Richard olhou-a de alto
abaixo, com ar crítico, e sorriu.
- Estás com um aspecto formidável esta noite. Não fiques
nervosa, hem? Trata-se apenas de uma pequena companhia da
Village, e tu provavelmente tens mais talento que todos eles
juntos.
Therese pegou no sobretudo que ele deixara cair numa cadeira
e pendurou-o no armário. Por debaixo do sobretudo estava um
rolo de papel de desenho que Richard trouxera da escola de
artes.
- Fizeste alguma coisa boa, hoje?
- Assim-assim. Isso é uma coisa em que quero trabalhar em
casa - respondeu Richard, despreocupadamente. - Hoje tivemos
aquela modelo ruiva, de que eu gosto.
Therese gostaria de ver o esboço mas sabia que,
provavelmente, ele não o achava bastante bom. Algumas das
suas primeiras pinturas eram boas, como o farol em
33
azuis e pretos que estava pendurado por cima da cama dela e
que Richard fizera quando estava na Armada e tinha começado a
pintar. Mas os seus desenhos de modelos vivos ainda não eram
bons, e Therese duvidava que alguma vez viessem a ser. Ele
tinha uma nova nódoa de carvão que cobria todo um joelho das
suas calças de algodão cor de bronze. Trazia uma camisa
debaixo da camisola aos quadrados vermelhos e pretos e
calçava mocassins de carneira que lhe davam aos pés grandes o
aspecto de informes patas de urso. Therese pensou que parecia
mais um lenhador ou um atleta profissional qualquer do que
outra coisa. Era-lhe mais fácil imaginá-lo com um machado na
mão que com um pincel! Vira-o uma vez com um machado, a
rachar lenha no quintal das traseiras da sua casa, em
Brooklyn. Se ele não conseguisse provar à família que estava
a progredir alguma coisa na pintura, o mais provável era ter
de ir trabalhar, no Verão, na empresa de botijas de gás
paterna, e abrir a sucursal em Long Island, como o pai
desejava.
- Tens de trabalhar este sábado? - perguntou Therese, ainda
receosa de falar no emprego.
- Espero que não. Estás livre?
Ela lembrou-se de que não estava.
- Estou livre na sexta- feira - respondeu, resignadamente. -
Sábado é dia de sair tarde.
Richard sorriu.
- É uma conspiração -. Pegou-lhe nas mãos e colocou os braços
de Therese à volta da sua cintura, terminando o seu passear
desassossegado pelo quarto. - Domingo, talvez? A família
manda perguntar se podes ir almoçar lá a casa no domingo, mas
não teremos de nos demorar muito. Posso pedir uma camioneta
emprestada para darmos uma volta por qualquer lado; de tarde.
- Está combinado -. Therese gostava, e Richard também, de se
sentar na cabina do grande carro-cisterna da firma e ir
passear a qualquer lado, livres como se uma borboleta os
transportasse. Tirou os braços da cintura de Richard. Sentia-
se constrangida e idiota, como se estivesse a abraçar o
tronco de uma árvore, com os braços à volta dele.
34
- Comprei um bife para esta noite, mas no armazêm roubaram-
mo.
- Roubaram-to? De onde?
- Da prateleira onde pomos as nossas malas de mão. As pessoas
que eles contratam para o Natal não têm os armários com
fechadura habituais -. Agora sorria do sucedido, mas de tarde
quase chorara. Lobos, uma alcateia de lobos, pensara,
roubaram o raio de um pacote de carne só porque era comida,
uma refeição de borla. Perguntara às caixeiras todas se o
tinham visto, e todas elas tinham respondido que não. Não era
permitido levar carne para o armazém, dissera a senhora
Hendrickson, indignadamente. Mas que remédio, se todos os
talhos fechavam às seis da tarde?
Richard estendeu-se no sofá-cama. A sua boca era estreita e
de contornos irregulares, metade dela a descair, o que dava
uma certa ambiguidade à sua expressão, um ar que era umas
vezes de humor, outras vezes de mordacidade, contradição que
os seus olhos azuis inexpressivos e francos em nada
contribuíam para clarificar. Perguntou, vagarosa e
zombeteiramente:
- Foste aos Perdidos e Achados? Perdeu-se uma libra de carne.
Resposta a Almôndega.
Therese sorriu, dando uma vista de olhos às prateleiras da
sua kitchenette.
-Julgas que disseste alguma graça? Pois fica sabendo que a
senhora Hendrickson me disse que fosse perguntar lá abaixo,
aos Perdidos e Achados!
Richard deu uma gargalhada e levantou-se.
- Tenho aqui uma lata de milho e alguma alface para uma
salada. E há pão e manteiga. Queres que vá comprar umas
costeletas de porco congeladas?
Richard estendeu o braço comprido por cima do ombro dela e
tirou da prateleira o rectângulo de pão de centeio integral.
- Chamas a isto pão? São fungos. Olha para ele, azul como o
rabo de um mandril. Porque não comes o pão quando o compras?
- Serve-me para ver no escuro. Mas já que não gos35
tas... - tirou-lhe o pão e deitou-o no saco do lixo.
- Aliás, não era a esse pão que eu me referia.
- Mostra-me o pão a que te referias.
A campainha da porta tocou mesmo ao lado do frigorífico e ela
saltou para o botão do trinco.
- São eles - disse Richard.
Eram dois homens novos. Richard apresentou-os como Phil
McElroy e o seu irmão, Dannie. Phil não era nada como Therese
esperara. Não tinha uma expressão veemente ou séria, nem
sequer particularmente inteligente. E mal a olhou quando
foram apresentados.
Dannie ficou parado, com o sobretudo no braço, até Therese
lho tirar. Ela não conseguiu arranjar mais um cabide para o
sobretudo de Phil, que lho tirou da mão e atirou para uma
cadeira - metade para a cadeira e metade para o chão. Era um
velho e sujo sobretudo de pêlo de camelo. Therese serviu a
cerveja, o queijo e crackers, sempre à espera de que a
conversa entre Phil e Richard mudasse para o trabalho. Mas só
falavam de coisas que tinham acontecido desde a última vez
que se tinham visto em Kingston, Nova Iorque. No último
Verão, Richard trabalhara lá umas duas semanas, num mural de
um restaurante à beira da estrada, onde Phil estivera como
criado de mesa.
- Também trabalha no teatro? - perguntou Therese a Dannie.
- Não, não trabalho -. Parecia tímido, ou talvez estivesse
aborrecido e impaciente por se ir embora. Era mais velho que
Phil e de constituição um pouco mais forte. Os seus olhos
castanho-escuros andavam pensativamente de objeeto em
objecto.
- Eles ainda não têm nada, além de um director e três actores
- disse Phil a Richard, recostando-se no sofá. - O director é
um tipo com quem trabalhei uma vez em Filadélfia, Raymond
Gortes. Se eu a recomendar, é garantido que você entra -
afirmou, lançando um olhar a Therese. - Ele prometeu-me o
papel do segundo irmão, na peça. Chama-se Small Rain.
- É uma comédia? - perguntou Therese.
36
- Comédia. Três actos. Já fez alguns cenários, sozinha?
- Quantos cenários serão precisos? - perguntou Richard,
quando ela ia a responder.
- Dois, no máximo, e provavelmente remediar-se-ão só com um.
O papel principal é para a Georgia Halloran. Viram, por
acaso, aquela coisa do Sartre que eles lá fizeram, no Outono?
Ela entrou nisso.
- Georgia? - Richard sorriu. - Que aconteceu entre ela e o
Rudy?
Decepcionada, Therese ouviu a conversa fixar-se em Georgia e
Rudy e outras pessoas que ela não conhecia. Supôs que Georgia
fosse uma das raparigas com quem Richard tivera um caso. Ele,
uma vez, falara de cinco, mas não se lembrava de nenhum dos
nomes, a não ser do de Gelia.
- Este é um dos seus cenários? - perguntou-lhe Dannie, a
olhar para o modelo de cartão pendurado na parede, e quando
Therese acenou afirmativamente levantou-se para o ver melhor.
Entretanto, Richard e Phil tinham mudado de assunto e estavam
a falar de um homem de um lugar qualquer, que devia dinheiro
a Richard. Phil disse que tinha visto o homem na noite
anterior, no bar San Remo. O rosto alongado e o cabelo
aparado curto de Phil lembravam um El Greco, pensou Therese,
enquanto as mesmas feições, no seu irmão, faziam lembrar um
índio americano. E a maneira como Phil falava destruía por
completo a ilusão do El Greco. Ele falava como qualquer das
pessoas que se viam nos bares da Village, gente jovem,
supostamente escritores ou actores, mas que em regra não
fazia nada.
- Muito interessante - disse Dannie, espreitando atrás de uma
das figuras suspensas.
- É um modelo para Petruska, a cena da feira - explicou
Therese, perguntando-se se ele conheceria o bailado. Ele
podia ser advogado, pensou, ou mesmo médico. Tinha manchas
amareladas nos dedos, mas não eram de cigarros.
37
Richard disse qualquer coisa a respeito de estar com fome, e
Phil declarou, por sua vez, que estava esfomeado, mas nenhum
deles tocava no queijo que tinham à frente.
- Esperam-nos daqui a meia hora, Phil - repetiu Dannie.
Um momento depois, estavam todos de pé, a vestir os
sobretudos.
- Vamos comer a qualquer lado, Terry - propôs Richard. - Que
tal aquela casa checa, na Segunda?
- Está bem - respondeu ela, tentando mostrar-se agradável.
Aquilo era o fim, supunha, e não ficara nada definido. Sentiu
um impulso para fazer a Phil uma pergunta crucial, mas não
fez.
Na rua, começaram a andar na direcção da Baixa, em vez de
para cima. Richard caminhava ao lado de Phil e só olhou para
trás, para ela, uma ou duas vezes, como se quisesse
certificar-se de que ainda ali estava. Dannie segurava-lhe o
braço quando atravessavam ruas e ao passarem por espaços
sujos e escorregadios, que não eram gelo nem neve, mas sim
restos de um nevão de três semanas atrás.
- médico? - perguntou- lhe Therese.
- Físico. Estou a fazer cursos de pós-graduação na New York
University -. Sorriu a Therese, mas a conversa ficou por aí,
durante um bocado.
Depois ele observou:
- É muito diferente de desenhar para o teatro, não é?
Therese acenou afirmativamente.
- Muito diferente - concordou. Começou a perguntar-lhe se
tencionava fazer algum trabalho relacionado com a bomba
atómica, mas desistiu. Que importância teria, se ele
tencionasse ou não? - Sabe onde vamos?
Ele mostrou os dentes brancos e quadrados num sorriso largo.
- Sei. Vamos para o metro. Mas primeiro o Phil quer petiscar
em qualquer lado.
Estavam a descer a 3. a Avenida. E Richard falava com Phil a
respeito da ida deles à Europa, no próximo
38
Verão. Therese sentiu uma ponta de embaraço, enquanto
caminhava atrás de Richard como um apêndice pendurado, porque
Phil e Dannie pensariam, naturalmente que ela era amante de
Richard. Ela não era sua amante, e Richard não esperava que o
fosse na Europa. A relação deles era estranha, supunha, e
quem a acreditaria? Sim porque, a julgar pelo que tinha visto
em Nova Iorque, toda a gente dormia com toda a gente com quem
tivesse saído mais do que uma ou duas vezes. E as duas
pessoas
com quem ela saíra antes de Richard - Angelo e Harry -
tinham-na certamente abandonado ao descobrirem
que não estava interessada em ter um caso com eles.
Tentara tê-lo com Richard três ou quatro vezes desde que o
conhecia, há um ano, embora com resultados negativos; Richard
dizia que preferia esperar - esperar que ela gostasse mais
dele. Richard queria casar com ela, Therese era a primeira
rapariga a quem pedira em casamento, dizia. Ela sabia que ele
repetiria o pedido antes de partirem para a Europa, mas não o
amava o suficiente para casar com ele. E, no entanto,
aceitaria dele a maior parte do dinheiro para a viagem,
pensou, com um sentimento de culpa quejá lhe era familiar.
Depois a imagem da senhora Semco, a mãe de Richard, veio-lhe
à memória, sorrindo aprovadoramente a ambos, ao seu
casamento, e Therese abanou involuntariamente a cabeça.
- Que foi? - perguntou Dannie.
- Nada.
- Tem frio?
- Não, nenhum.
Mas, apesar da resposta, ele apertou mais o braço dela a si.
Therese tinha frio e sentia-se, de modo geral, muito infeliz.
Era a relação meio suspensa, meio cimentada com Richard, bem
sabia. Viam-se cada vez mais, sem na realidade se tornarem
mais íntimos. Ela continuava a não estar apaixonada por ele
ao fim de dez meses, e talvez nunca viesse mesmo a estar,
embora persistisse o facto de que gostava mais dele que de
qualquer
pessoa que já conhecera, sem dúvida alguma que de
qualquer outro homem. Às vezes pensava que o amava,
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quando acordava de manhã, olhava confusamente para o tecto e
se lembrava, de súbito, que o conhecia, se lembrava de súbito
do seu rosto resplandecente de afecto por ela, devido a algum
gesto de afecto seu em relação a ele; pensava que o amava
antes de o seu vazio sonolento ter tempo de se encher com a
consciência das horas que eram, do dia, do que ela tinha de
fazer - em suma, da substância mais sólida que constitui a
vida de uma pessoa. Mas esse sentimento não tinha semelhança
alguma com o que ela lera a respeito do amor. O amor parecia
ser uma espécie de ditosa insanidade. Na verdade, Richard
também não procedia como um homem ditosamente insano.
- Oh, chama-se tudo Germain-des-Près! -
gritou Phil, com um gesto largo da mão. - Eu dou-te algumas
moradas, antes de ires. Quanto tempo pensas demorar-te lá?
Uma camioneta com correntes a chocalhar e a bater virou à
frente deles, impedindo Therese de ouvir a resposta de
Richard. Phil entrou no Riker's da esquina da Rua 53.
- Não temos de comer aqui. O Phil quer demorar-se apenas um
momento -. Richard apertou o ombro de Therese, enquanto
entravam. - É um grande dia, não é, Terry? Não o sentes? É o
teu primeiro trabalho a valer!
Richard estava convencido disso, e Therese esforçou- se muito
para se compenetrar de que aquele poderia ser um grande
momento. Mas não conseguiu recapturar, sequer, a certeza que
se lembrava de ter tido quando olhara para a luva turca cor
de laranja, no lavatório, depois do telefonema de Richard.
Encostou-se ao tamborete ao lado do de Phil, e Richard parou
ao seu lado, ainda a falar com ele. A ofuscante luz branca
reflectida nas paredes e no chão de mosaicos brancos parecia
mais brilhante que a luz do Sol, porque ali não havia
sombras. Therese conseguia ver cada cabelo preto lustroso das
sobrancelhas de Phil e os pontos irregulares e lisos do
cachimbo apagado que Dannie segurava. Conseguia ver os
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pormenores da mão de Richard, que saía molemente da manga do
seu sobretudo, e de novo se deu conta da incongruência que
existia entre as mãos dele e o seu corpo frágil, de ossos
compridos. Eram mãos grossas, papudas até, e moviam-se do
mesmo modo cego e desarticulado quer pegassem num saleiro
quer na asa de uma mala. Ou lhe afagassem o cabelo, pensou.
As palmas das mãos dele eram extremamente macias, como as de
uma rapariga, e um pouco húmidas. Mas o pior é que ele
geralmente se esquecia de limpar as unhas, mesmo quando se
dava ao trabalho de se vestir a rigor. Therese dissera-lhe
qualquer coisa a esse respeito umas duas vezes, mas achava
que não podia voltar a falar-lhe do assunto sem o irritar.
Dannie observava-a. Ela ficou um momento presa pelos olhos
atentos do rapaz, mas depois baixou os seus. De súbito, soube
por que motivo não era capaz de recapturar a sensação que
experimentara antes: não acreditava, simplesmente, que Phil
McElroy lhe conseguisse arrranjar trabalho por recomendação
sua.
- Está preocupada por causa daquele trabalho?perguntou-lhe
Dannie, que estava de pé ao seu lado.
- Não.
- Não esteja. O Phil pode dar-lhe alguns palpites -. Meteu a
haste do cachimbo entre os lábios e deu a impressão de que ia
dizer mais qualquer coisa, mas voltou-se e não disse.
Ela ouvia vagamente a conversa de Phil com Richard. Agora
falavam de reservas de lugares em barcos.
-A propósito - disse Dannie -, o Black Gat Theatre fica
apenas a dois quarteirões da Rua Morton, onde eu moro. E o
Phil está comigo. Apareça por lá qualquer dia para almoçar
connosco, sim?
- Muito obrigada, terei muito gosto -. Provavelmente não
iria, mas tinha sido simpático da parte dele convidá-la.
- Que te parece, Terry? - perguntou-lhe Richard.
- Achas Março cedo de mais para irmos à Europa? melhor ir
cedo do que esperar que esteja lá tudo cheio de gente.
41
- Março parece-me bem.
- Não há nada que nos impeça, pois não? Não me importo se não
concluir o período de Inverno, na escola.
- Não, não há nada que nos impeça -. Era fácil dizer. Era
fácil acreditar em tudo aquilo, e igualmente fácil não
acreditar em nada daquilo. Mas se fosse tudo verdade, se o
trabalho fosse mesmo a sério, a peça um êxito e ela pudesse
ir a França com pelo menos uma realização, atrás de si... De
súbito, estendeu a mão para o braço de Richard e deixou-a
escorregar até aos seus dedos. Richard ficou tão surpreendido
que parou no meio de uma frase.
Na tarde seguinte, Therese telefonou para o número de Watkins
que Phil lhe dera. Atendeu-a uma rapariga que lhe pareceu
muito eficiente. O senhor Gortes não estava, mas tinham
ouvido falar de Therese por intermédio de Phil McElroy. O
lugar era dela, podia começar a trabalhar a 28 de Dezembro,
com um salário semanal de vinte e oito dólares e cinquenta.
Antes disso, podia aparecer e mostrar ao senhor Gortes algum
trabalho seu, se quisesse, mas isso não era necessário, visto
o senhor McElroy a ter recomendado tão empenhadamente.
Therese ligou para Phil a fim de lhe agradecer, mas ninguém
atendeu o telefone. Escreveu-lhe, por isso, um bilhete, ao
cuidado do Black Gat Theatre.
Capítulo III
88
Capítulo VII
108
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
CAPÍTULO XI
- Os passatempos das pessoas ociosas - disse Carol,
estendendo as pernas à sua frente na cadeira suspensa. - É
altura de a Abby arranjar outro emprego.
Therese não fez comentários. Não contara a Carol toda a
conversa do almoço, mas não queria falar mais de Abby.
- Não se quer sentar numa cadeira mais confortável?
-Não -. Therese estava sentada num tamborete de couro, perto
da cadeira de Carol. Tinham acabado de jantar há momentos e
vindo para aquele aposento que ela não vira antes, uma
marquise envidraçada, na frente da sala verde simples.
- Que mais lhe disse a Abby que a incomoda? perguntou Carol,
ainda a olhar a direito para a sua frente, para as suas
pernas compridas ocultas por calças azul-marinho.
Parecia fatigada. Estava preocupada com outras coisas, pensou
Therese, coisas mais importantes que aquilo.
- Nada. Incomoda-a a si, Carol?
- Se me incomoda?
- Está diferente comigo, esta noite.
Carol lançou-lhe um olhar rápido.
- Imaginação sua - disse, e a vibração agradável da sua voz
dissipou-se de novo no silêncio.
A página que escrevera a noite passada, pensou Therese, não
tinha nada a ver com aquela Carol, não Lhe era
147
dirigida. "Sinto que estou apaixonada por si, escrevera, e
devia ser Primavera. Quero o sol a latejar na minha cabeça
como acordes de música. Penso num sol como Beethoven, num
vento como Debussy, em gorjeios de pássaros como Strauinsky.
Mas o ritmo é todo meu."
- Não creio que a Abby goste de mim - observou.
- Não creio que ela queira que eu a visite.
- Isso não é verdade. Está outra vez a imaginar coisas.
- Não estou a dizer que ela o tenha dito -. Therese tentou
parecer tão calma quanto Carol. - Foi muito simpática.
Convidou-me para um cocktail.
- De quem?
- Não sei. Ela disse que era na parte alta da cidade. Disse
que a Carol não estaria lá, e por isso não senti nenhum
desejo especial de ir.
- Na parte alta da cidade onde?
- Não disse. Apenas que uma das raparigas que o oferecia era
actriz.
Carol pousou o isqueiro na mesa de vidro, com um estalido, e
Therese apercebeu-se do seu desagrado.
- Ah, sim?... - murmurou Carol, meio para consigo mesma. -
Sente-se aqui.
Therese levantou-se e foi sentar-se mesmo aos pés da cadeira
dela.
- Não deve pensar que a Abby sente desse modo a seu respeito.
Eu conheço-a o suficiente para saber que seria incapaz disso.
- Está bem.
- Mas às vezes ela é incrivelmente desajeitada na maneira
como fala.
Therese queria esquecer tudo aquilo. Carol continuava tão
distante, mesmo quando falava, mesmo quando a olhava! Uma
faixa de luz vinda da sala verde pairava-lhe no alto da
cabeça, mas Therese não lhe podia ver agora o rosto.
Carol tocou-lhe com o bico do pé.
- Upa!
Mas Therese foi lenta nos movimentos e ela passou-lhe
148
os pés por cima da cabeça e levantou-se. Depois Therese ouviu
os passos da empregada na sala ao lado, e a mulher roliça com
ar de irlandesa e uniforme cinzento e branco entrou com o
tabuleiro do café, fazendo tremer o chão da marquise com as
suas pequenas passadas rápidas, que pareciam tão ansiosas por
agradar.
-As natas estão aqui, minha senhora - disse, apontando para
uma leiteira que não condizia com as xícaras. Florence olhou
para Therese com um sorriso amigável e olhos redondos e
inexpressivos. Tinha cerca de cinquenta anos e usava um
carrapito na nuca, debaixo da touca branca engomada.
Therese não conseguia situá-la, determinar a sua fidelidade.
Ouvira-a referir-se duas vezes ao senhor Aird como se lhe
fosse muito dedicada, e não era capaz de distinguir se isso
era uma atitude profissional ou genuína.
- A senhora precisa de mais alguma coisa? - perguntou
Florence. - Apago as luzes?
- Não, gosto das luzes acesas. Não é preciso mais
nada, obrigada. A senhora Jordan telefonou?
-Ainda não, minha senhora.
-Diga-lhe que eu saí, quando ela telefonar, sim?
-Sim, senhora -. Florence hesitou. - Estive a pensar se a
senhora já teria acabado aquele livro novo.
-Aquele acerca dos Alpes.
- Pode ir ao meu quarto buscá-lo, se quiser, Florence. Acho
que não me apetece acabar de lê-lo.
-Obrigada, minha senhora. Boa noite, minha sesnhora. Boa
noite, menina.
- Boa noite - respondeu Carol.
-Já decidiu quando parte? - perguntou Therese, enquanto Carol
servia o café.
- Talvez dentro de uma semana - respondeu Carol, estendendo-
lhe a xícara, com natas. - Porquê?
- Só porque vou sentir a sua falta. Evidentemente.
Carol ficou imóvel um momento, e depois estendeu a mão para
um cigarro, o último, e amarrotou o maço.
- Na verdade, estive a pensar que talvez gostasse de
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ir comigo. Que lhe parece, durante umas três semanas, mais
ou menos?
Ali estava! Tão casual como se sugerisse que dessem um
passeio a pé as duas, pensou Therese.
- Falou nisso à Abby, não falou?
- Falei. Porquê?
Porquê?
Therese não saberia exprimir por palavras por que motivo a
magoava tanto que Carol o tivesse feito.
- Acho simplesmente estranho que lho tenha dito a ela antes
de me dizer alguma coisa a mim.
- Eu não lhe disse. A única coisa que Lhe disse foi que
poderia pedir-lho -. Carol aproximou-se e pôs as mãos nos
ombros de Therese. - Escute, não existe razão alguma para ter
esses sentimentos a respeito da Abby... a não ser que ela Lhe
tenha dito muito mais, ao almoço, do que a Therese me contou.
- Não. Não, mas eram os pressentimentos, a im pressão, era
ainda pior. - Sentiu as mãos de Carol deixarem-lhe os ombros.
- A Abby é uma amiga de muito longa data. Eu discuto tudo com
ela.
- Sim.
- Bem, acha que gostaria de ir?
Carol voltou-se, e de súbito deixou tudo de ter importância,
por causa do modo como ela Lhe perguntara, como se na
realidade não se importasse que ela fosse ou não.
- Obrigada... acho que não me será possível, neste momento.
- Não precisará de muito dinheiro. Iremos de carro: Mas se
lhe oferecerem um trabalho imediatamente, enfim, isso será
diferente.
Como se ela não recusasse um trabalho, mesmo um cenário de
bailado, para ir com Carol, para ir com ela a terras que
nunca vira antes, por rios e montanhas, sem saber onde
estariam quando a noite chegasse. Carol sabia-o, e sabia que
ela teria de recusar se o convite fosse feito daquela
maneira. Therese teve de súbito a certeza de que ela a
escarnecia e ressentiu-se, com o ressentimento
150
amargo da traição. Ressentimento que se transformou na
decisão de nunca mais voltar a vê-la. Olhou-a. Carol
aguardava a sua resposta, com aquele desafio semimascarado
apenas por um ar de indiferença, uma expressão que, Therese
sabia-o, não se modificaria nada se ela desse uma resposta
negativa. Levantou-se e foi à caixa do canto da mesa buscar
um cigarro. Na caixa não havia nada, a não ser umas agulhas
de gira-discos e uma fotografia.
- Que é? - perguntou Carol, observando-a. - Therese sentiu
que ela estivera a ler-lhe todos os pensamentos.
- É uma fotografia da Rindy.
- Da Rindy? Deixe ver.
Therese observou o rosto de Carol enquanto ela olhava para a
fotografia da menina de cabelo louro-estopa e cara séria, com
o penso branco no joelho. Na fotografia, ele estava de pé num
barco a remos e Rindy passava de um cais para os braços dele.
- Não é uma fotografia muito boa - disse Carol, mas o seu
rosto modificara-se, tornara-se mais suave.
-Deve ter uns três anos. Era um cigarro que queria? Há alguns
aqui. A Rindy vai ficar com o pai durante os próximos três
meses.
Therese deduzira isso da conversa na cozinha, naquela manhã,
com Abby.
- Isso também é em Nova Jérsia?
- É. A família do Harge vive em Nova Jérsia. Têm uma casa
grande -. Carol fez uma pausa. - O divórcio estará concluído
dentro de um mês, calculo, e depois de Março eu ficarei com a
Rindy o resto do ano.
-Ah! Mas vê-a antes de Março, não vê?
- Algumas vezes. Provavelmente não muitas.
Therese olhou para a mão de Carol que segurava a fotografia a
seu lado na cadeira, descuidadamente.
- Ela não sentirá a sua falta?
- Sentirá. Mas também gosta muito do pai.
- Mais que de si?
- Não. Não, na verdade. Mas ele comprou-lhe uma
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cabra, para brincar com ela. Leva-a para a escola quando vai
para o trabalho e vai buscá-la às quatro horas. Descura os
seus negócios por causa dela, e que mais se pode exigir a um
homem?
- Não a viu no Natal, pois não?
- Não. Por causa de uma coisa que aconteceu no escritório do
advogado. Foi na tarde em que o advogado do Harge queria
falar com os dois, e o Harge tinha levado também a Rindy. Ela
disse que queria ir passar o natal a casa do Harge. Rindy não
sabia que, este ano, não estaria lá. Eles têm uma grande
árvore de Natal no relvado e decoram-na sempre, por isso ela
estava decidida a ir. Fosse como fosse, o facto causou uma
forte impressão ao advogado, compreende, a criança pedindo
para ir passar o Natal a casa do pai. E, naturalmente, nessa
altura não quis dizer à Rindy que não iria, pois ficaria
decepcionada. De resto, não o poderia ter dito na presença do
advogado. Bastam-me as maquinações de Harge.
Therese estava de pé, a amarrotar o cigarro apagado entre os
dedos. A voz de Carol era calma, como seria se estivesse a
falar com Abby, pensou Therese. Carol nunca lhe tinha dito
tantas coisas.
- Mas o advogado compreendeu?
Carol encolheu os ombros.
- É o advogado do Harge, não o meu. Por isso, agora concordei
com o esquema dos três meses, porque não quero que ela seja
atirada de um para o outro. Se eu tiver de a ter comigo nove
meses e o Harge três... enfim, é melhor começar agora.
- Nem sequer a visitará?
Carol demorou tanto para responder que Therese pensou que não
o faria.
- Não muito frequentemente. A família não é muito cordial.
Falo todos os dias com a minha filha pelo telefone. Ela
telefona-me algumas vezes, também.
- Porque é que a família não é cordial?
- Nunca gostaram de mim. Queixam-se desde que Harge me
conheceu, numa festa de debutantes. Têm
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muito jeito para criticar. Às vezes pergunto-me quem
conseguiria passar pelo seu crivo.
- Que lhe criticavam eles?
- O facto de ter uma loja de móveis, por exemplo. Mas isso
não durou um ano. Depois por não jogar bridge, ou não gostar
de jogar. Aproveitam as coisas mais singulares, mais
superficiais.
- Parecem horrorosos.
-Não são. Pretendem apenas que nos moldemos. Eu sei do que
eles gostariam: gostariam de um vazio que pudessem preencher.
Uma pessoa já preenchida perturba-os terrivelmente. Vamos
ouvir um pouco de música? Nunca gosta de ouvir rádio?
- Às vezes.
Carol encostou-se ao parapeito da janela.
- E agora a Rindy tem televisão todos os dias. Hopalong
Gassidy. Como ela adoraria ir ao Oeste! Aquela boneca foi a
última que lhe comprei, Therese. E só a comprei porque ela
disse que queria uma, pois já não está em idade de bonecas.
Atrás de Carol, um holofote do aeroporto descreveu um arco
pálido na noite e desapareceu. A voz de Carol pareceu ficar a
pairar na escuridão. No seu tom mais rico e mais feliz,
Therese detectava o recôndito, o mais fundo do seu ser, onde
amava Rindy mais profundamente, talvez, do que jamais amaria
qualquer outra pessoa.
- O Harge não lhe torna fácil vê-la, pois não?
- Sabe que não.
- Não compreendo como ele pôde estar apaixonado por si, e
amá-la tanto.
-Não se trata de amor. uma compulsão. Penso que ele me quer
controlar. Suponho que se eu fosse muito mais rebelde, mas
nunca tivesse uma opinião acerca de nada que não fosse a
opinião dele. Consegue acompanhar tudo isto?
- Consigo.
- Nunca fiz nada que o embaraçasse socialmente, e isso é tudo
quanto lhe interessa, na realidade. Há no clube uma certa
mulher com a qual desejo que ele tivesse
153
casado. A vida dela é totalmente preenchida pelos pequenos
jantares requintados que dá e por ser transportada para fora
dos melhores bares com os pés para a frente... Tornou o
negócio de publicidade do marido num grande êxito, por isso
ele sorri dos seus pequenos deslizes. O Harge não sorriria,
mas teria alguma razão concreta para se queixar. Creio que me
escolheu como esco lheria uma tapeçaria para a sua sala, e
cometeu um erro grave. Duvido que seja capaz de amar,
realmente, alguém. O que tem é uma espécie de cobiça, que não
sa diferencia muito da sua ambição. Está a tornar-se uma
doença, não está, a incapacidade de amar? - Olhou pa ra
Therese. - Talvez seja dos tempos. Se uma pessoa quisesse,
poderia reunir argumentos para provar a existência de um
suicídio rácico. O homem a tentar acertar o passo com as suas
próprias máquinas destruidoras!
Therese não disse nada. Aquilo recordava-lhe conversas com
Richard, em que ele misturava guerra, grandes negócios e caça
às bruxas congressional, e finalmente certas pessoas que ele
conhecia, num grande inimigo cujo único rótulo colectivo era
ódio. Agora Carol fazia o mesmo. Isso abalou-a no mais fundo
de si pró pria, onde não existiam palavras, palavras simples
como a morte, ou morrer, ou matar. Essas palavras eram d
algum modo futuro, e isto era presente. Uma ansiedad muda, um
desejo de saber, de saber qualquer coisa com certeza,
apertou-lhe a garganta, de modo que durante um momento quase
não pôde respirar. "Pensa, pensa, ameaçava a pergunta dentro
de si. Pensa que nós duas morremos violentamente, qualquer
dia, seremos subitamente extintas?" Mas mesmo essa pergunta
não era bastante definida. Talvez fosse, no fim de contas,
uma declaração: "não quero morrer ainda, sem a conhecer.
Sente o mesmo, Carol?" Teria sido capaz de proferir a últina
pergunta, mas não conseguiria ter dito tudo quanto a
antecedera.
- A Therese pertence à geração jovem. E que tem para dizer? -
perguntou Carol, sentando-se na cadeira.
- Suponho que a primeira coisa é não ter medo.
154
Therese voltou-se e viu-a sorrir. - Creio que está a sorrir
porque pensa que eu tenho medo.
- quase tão fraca como este fósforo -. Carol levantou o
fósforo aceso um momento, depois de acender o cigarro.
- Mas, com as condições adequadas, seria capaz de fazer arder
uma casa inteira, não seria?
- Ou uma cidade.
- Mas tem medo até de fazer uma pequena viagem. Tem medo
porque pensa que não dispõe de dinheiro suficiente.
- Não é isso.
- Tem alguns valores muito estranhos, Therese. Pedi-lhe que
fosse comigo porque me daria prazer levá-la. E parece-me que
também seria bom para si e para o seu trabalho. Mas você
tinha de estragar tudo com um orgulho pateta a respeito de
dinheiro. Como aquela mala de mão que me ofereceu.
Absolutamente despropositada. Porque não a aceita de volta,
se precisa do dinheiro? Eu não preciso da mala. Deu-lhe
prazer oferecer-ma, suponho. Trata-se da mesma coisa, está a
ver? Só que o meu
gesto tem lógica e o seu não -. - Carol passou pela sua
frente e depois voltou-se de novo para ela, com um pé
avançado e a cabeça bem erguida, o cabelo louro curto
tão
livre como o de uma estátua. - Bem, acha divertido?
Therese estava a sorrir.
- O dinheiro não me preocupa - respondeu, serenamente.
- Que quer dizer?
- Isso, apenas. Tenho dinheiro para ir. Irei.
Carol fitou-a. Therese viu a expressão mal-humorada
desaparecer-lhe do rosto, e depois Carol começou também a
sorrir, com surpresa e alguma incredulidade.
- Ora muito bem - disse. - Estou encantada.
- Eu estou encantada.
-A que se deveu esta feliz mudança?
"Ela não saberá, realmente?" perguntou-se Therese.
- Parece importar-lhe que eu vá ou não - disse
simplesmente.
155
- Mas claro que me importo. Convidei-a, não convidei? -
replicou Carol, ainda sorridente, mas, girando sobre o dedo
grande do pé, voltou as costas a Therese e caminhou na
direcção da sala verde.
Therese viu-a afastar-se, de mãos nas algibeiras com os
mocassin a fazer cliques leves e lentos no chão. Ficou a
olhar para o vão da porta vazio. Carol teria saído
exactamente da mesma maneira, pensou, se ela tivesse dito que
não, não iria. Pegou na xícara meia de café mas depois
pousou-a de novo.
Saiu, atravessou o vestíbulo e foi até à porta do quarto de
Carol.
- Que está a fazer?
Carol estava inclinada para o seu toucador, a escrever.
- Que estou a fazer? - Endireitou-se e meteu um pedaço de
papel na algibeira. Agora sorria, sorria real mente com os
olhos, como naquele momento na cozinha com a Abby. - Uma
coisa - disse. - Vamos ouvir u pouco de música.
- Óptimo -. Um sorriso alastrou pelo rosto de Therese.
- Porque não se prepara primeiro para se deitar? É tarde,
sabia?
- Consigo faz-se sempre tarde.
- Isso é um cumprimento?
- Esta noite não me apetece deitar-me. - Carol atravessou o
quarto para a sala verde.
- Mas prepare-se. Está com olheiras.
Therese despiu-se rapidamente no quarto que tinha as duas
camas. O gira-discos, na outra sala, tocava Em braceable You.
Depois o telefone tocou. Therese abriu a gaveta de cima da
cómoda. Continha apenas dois lenços de homem, uma velha
escova de fatos e uma chave. E alguns papéis, a um canto.
Therese pegou num cartão revestido de mica. Era uma antiga
carta de condução, passada em nome de Harge: Hargess Foster
Aird. Idade: 31 anos. Altura: 1, 72 m. Peso: 78 kg. Cabelo:
louro. Olhos azuis. Ela sabia tudo isso.
156
Um Oldsmobile de 1950. Cor: azul-escuro. Therese pôs o
cartão no seu lugar e fechou a gaveta. Foi até à porta e
escutou.
- Lamento, Tessie, mas afinal não foi possível - dizia Carol
pesarosamente, mas a sua voz era feliz.
-A festa está a ser boa?... Não, não estou vestida e estou
cansada.
Therese foi à mesa-de-cabeceira e tirou um cigarro da caixa
que lá se encontrava. Um Phili Morris. Soube que fora Carol
que lá os pusera, e não a empregada, pois Carol lembrara-se
de que ela gostava daquela marca. Nua, parou a escutar a
música. Era uma canção que não conhecia.
Estaria Carol a falar de novo ao telefone?
- Bem, não me agrada - ouviu-a dizer, meio irritada, meio
brincalhona -, não me agrada mesmo nada.
não é fácil viver. quando estamos apaixonados.
-Como posso saber que género de pessoas são?... Oh, oh! É
isso?
Era Abby; Therese teve a certeza. Soprou o fumo e aspirou o
cheiro ligeiramente doce dos pequenos fiapos, lembrando-se do
primeiro cigarro que fumara, um Philip Morris, no telhado de
um dormitório do lar - quatro raparigas, passando-o de uma
para a outra.
- Sim, vamos - disse Carol, com ênfase. - Bem, eu estou...
Não pareço?
"... Para ti... talnez eu seja um idiota, mas é divertido...
As pessoas dizem que me dominas com um gesto da tua mão. meu
amor, é maravilhoso. elas simplesmente não compreendem."
Era uma bonita canção. Therese fechou os olhos e encostou-se
à porta entreaberta, a ouvir. Por detrás da porta, ouvia-se
um piano lento, que sussurrava ao longo de todo o teclado. E
um trompete indolente.
- Ninguém tem nada com isso, a não ser eu, não é verdade?...
- disse Carol. - Tolice! - Therese sorriu da sua veemência.
Depois fechou a porta. O gira-discos deixara cair outro
disco.
- Porque não vem dar as boas-noites à Abby?perguntou Carol.
157
Therese correra para trás da porta da casa de banho, porque
estava nua.
- Porquê?
- Venha, ande - insistiu Carol, e ela enfiou um roupão e foi.
- Olá - disse Abby. - Constou-me que vai.
- Isso é novidade para si?
Abby parecia pateta, como se quisesse passar a noite toda a
conversar. Desejou a Therese uma viagem agradável, e falou-
lhe das estradas da "cintura do Milho", de como eram más no
Inverno. [Região do Centro-Oeste dos EUA, cuja principal
produção é o milho e o gado alimentado a milho. (N. da T.)]
- Desculpa-me, se fui grosseira esta tarde? - perguntou pela
segunda vez. - Eu gosto de si, Therese.
- Desligue, desligue! - gritou Carol para baixo.
- Ela quer falar outra vez consigo, Carol.
- Diga à Abigail que estou na banheira. Therese disse, e
desligou.
Carol levara uma garrafa e dois copos pequenos para a sala.
- Que se passa com a Abby? - perguntou Therese.
- Que quer dizer com isso? - Carol deitou um licor castanho
nos dois copos. - Suponho que ela bebeu uns copos a mais esta
noite.
- Bem sei. Mas porque quis ela almoçar comigo?
- Bem... creio que por uma quantidade de razões. Prove, para
ver se gosta.
- que me parece vago...
- O quê?
- Todo o almoço.
Carol estendeu-lhe um copo.
- Há algumas coisas que são sempre vagas, minha querida.
Era a primeira vez que Carol a tratava por "minha querida".
- Que coisas? - Therese queria uma resposta, uma resposta
clara.
158
Carol suspirou.
- Muitas coisas. As coisas mais importantes. Prove
o seu licor.
Therese tomou um sorvo. Era doce e castanho-escuro, como
café, e tinha a ardência do álcool.
- Sabe bem.
- Já esperava essa resposta de si.
- Porque bebe, se não gosta?
- Porque é diferente. Vamos beber à nossa viagem, por isso
tem de ser qualquer coisa diferente -. Carol fez
uma careta e bebeu o que restava no seu copo.
À luz do candeeiro, Therese via todas as sardas de metade do
rosto dela. A sobrancelha que parecia branca, curva como uma
asa acompanhando a linha da fronte.
Sentiu-se de súbito extasiadamente feliz.
- Que canção era aquela que tocou antes, aquela só
com a voz e o piano?
- Trauteie-a.
Therese assobiou parte da melodia e Carol sorriu.
- Easy Lining. antiga.
- Gostaria de a ouvir de novo.
-E eu gostaria que fosse para a cama. Mas está
bem, eu ponho-a a tocar outra vez.
Carol entrou na sala verde e ficou lá enquanto o disco
tocava. Therese parou à porta do seu quarto, a escutar e a
sorrir.
"... jamais lamentarei. os anos que estou a dar. São tão fá
ceis de dar, quando amamos. Sinto-me feliz por fazer. tudo
quanto faço por ti..."
Aquela era a sua canção. Era tudo quanto sentia por Carol.
Foi para a casa de banho antes de o disco terminar, abriu a
torneira, meteu-se na banheira e deixou a água esverdeada
despenhar-se sobre os seus pés.
- Eh! - chamou Carol. - Alguma vez esteve no Wyoming?
- Não.
- É tempo de ver a América.
Therese pegou no turco de banho, a pingar, e comprimiu-o
contra o joelho. A água estava já tão alta na
159
banheira que os seus seios pareciam objectos planos,
flutuando na superficie. Observou-os, tentando decidir o que
pareciam além do que eram.
- Não adormeça aí - recomendou Carol, em voz preocupada, e
Therese soube que ela estava sentada na cama, a ver um mapa.
- Não adormeço.
- Bem, há quem adormeça.
- Fale-me mais do Harge - pediu, enquanto se enxugava. - Que
faz ele?
- Uma data de coisas.
- Quero dizer, a que negócio se dedica?
- Investimento imobiliário.
- Como é ele? Gosta de ir ao teatro? Gosta das pessoas?
- Gosta de um pequeno grupo de pessoas que jogam golfe -
respondeu Carol, em tom decisivo. E acrescentou, em voz mais
alta: - E que mais? É muito, muito meticuloso a respeito de
tudo. Mas esqueceu-se da sua melhor navalha de barba. Está no
armário dos medicamentos, pode vê-la se quiser... e acho que
quer. Suponho que tenho de lha mandar pelo correio.
Therese abriu a porta do armário dos medicamentos e viu a
navalha. O armário ainda estava cheio de coisas de homem,
after-shave e pincéis de barbear.
- Este quarto era dele? - perguntou, quando saiu da casa de
banho. - Em que cama dormia?
- Não era na sua - respondeu Carol, sorrindo.
- Posso beber um pouco mais disto? - perguntou, a olhar para
a garrafa de licor.
- Claro que pode.
- E posso dar-lhe um beijo de boas noites?
Carol estava a dobrar o mapa rodoviário, de lábios franzidos
como se fosse assobiar.
- Não - respondeu.
- Porquê? - Tudo parecia possível, naquela noite, - Dou-lhe
antes isto -. Carol tirou a mão da algi beira.
Era um cheque. Therese viu a importância - duzentos dólares -
e que estava passado em seu nome.
160
- Para quê?
- Para a viagem. Não quero que gaste o dinheiro que lhe será
necessário para se filiar no sindicato -. Carol pegou num
cigarro. - Não precisará de tudo isso, eu só quero que fique
com ele.
- Mas eu não preciso - protestou Therese. - Obrigada, mas não
me importo de gastar o dinheiro para o sindicato.
- Nada de insolências - interrompeu-a Carol.
- Dá-me prazer, lembra-se?
- Mas eu não aceito -. A sua voz saiu brusca e, por isso,
Therese sorriu e colocou o cheque em cima da mesa, junto da
garrafa do licor. Mas bateu-o com força. Desejou ser capaz de
explicar a Carol. O dinheiro não tinha importância alguma,
mas como dava prazer a Carol oferecer-lho ela detestava não o
aceitar. - Não me agrada a ideia - acrescentou. - Pense em
qualquer outra coisa -. Olhou-a. Ela observava-a e Therese
percebeu com agrado que não ia discutir.
- Para me dar prazer?
O sorriso de Therese tornou-se maior.
- Sim - respondeu, e pegou no pequeno copo.
- Está bem. Vou pensar no assunto. Boa noite -. Carol parara
à porta.
Estranha maneira de dar as boas-noites, pensou Therese, numa
noite tão importante.
- Boa noite - respondeu.
Voltou-se para a mesa e viu de novo o cheque. Mas era a Carol
que competia rasgá-lo. Empurrou-o para debaixo do naperon de
linho azul- escuro da mesa, para não o ver.
161
162
CAPÍTULO XII
Era janeiro.
Era todas as coisas. E era uma coisa. O seu frio encerrava a
cidade numa cápsula cinzenta. Janeiro era momentos, e Janeiro
era um ano.
Janeiro desfez-se em momentos, como chuva, e congelou, menos
na memória dela: a mulher que viu a olhar ansiosamente, à luz
de um fósforo, para os nomes escritos num mostrador escuro; o
homem que escreveu rapidamente um recado e entregou o papel
ao seu amigo antes de se separarem, no passeio; o homem que
correu ao longo de um quarteirão atrás de um autocarro e o
apanhou. De todos os gestos e actos humanos parecia
desprender-se uma magia. Janeiro era o mês de duas caras,
tilintando como os guizos do bobo, estalando como a crosta da
neve, puro como qualquer começo, sombrio como um velho,
misteriosamente familiar e, contudo, desconhecido como ma
palavra que quase podemos definir mas não conseguimos definir
inteiramente.
Um jovem chamado Red Malone e um carpinteiro trabalharam com
ela no cenário de Small Rain, com o qual o senhor Donohue
estava muito satisfeito. Disse-lhe que pedira a um tal senhor
Baltin que viesse ver o trabalho dela. O senhor Baltin
formara-se numa academia russa e desenhara alguns cenários
para teatros de Nova Iorque. Therese nunca ouvira falar dele.
Tentou convencer o senhor Donohue a arranjar-lhe uma
entrevista com Myron Blanchard ou Ivor Harkevy, mas o senhor
163
Donohue nunca prometeu nada a esse respeito. Não po dia,
supunha Therese.
O senhor Baltin apareceu, uma tarde. Era um homem alto e
curvado, de chapéu preto e sobretudo cossado, e olhou com
atenção o trabalho que ela lhe mostrou. Therese levara apenas
três ou quatro modelos para teatro, os melhores que tinha. O
senhor Baltin falou-lhe de uma peça cuja produção se
iniciaria dentro de cerca de seis semanas. Teria prazer em a
recomendar como assistente, e ela disse que calhava muito bem
porque de qualquer modo estaria ausente da cidade até essa
altura. Aliás estava tudo a correr muito bem, nos últimos
dias. O senhor Andronich prometera-lhe um trabalho de duas
semanas em Filadélfia, em meados de Fevereiro, o que era mais
ou menos na altura em que ela regressaria de viagem com
Carol. Therese tomou nota do nome e da morada do homem que o
senhor Baltin conhecia.
- Ele anda agora a procurar alguém, por isso telefone-lhe no
princípio da semana - recomendou o senhor Baltin. - Será
apenas um trabalho de ajudante, pois quem o ajudava antes, um
aluno meu, está agora a trabalhar com o Harkevy.
- Ah! Poderá... o senhor, ou o seu ajudante, arranjar maneira
de eu falar com o senhor Harkevy?
- Nada mais fácil. A única coisa que tem de fazer é ligar
para o estúdio dele e pedir para falar com Charle Charles
Winant. Diga-Lhe que falou comigo. Vejamos: ligue-lhe na
sexta-feira. Sexta-feira à tarde, por volta das três horas.
- Pois sim, muito obrigada.
Faltava uma semana inteira para sexta-feira. Therese ouvira
dizer que Harkevy não era inacessível, mas tinha fama de
nunca marcar entrevistas e muito menos comparecer a elas, se
as marcava, em virtude de ter muito que fazer. Mas talvez o
senhor Baltin soubesse como resolver esse problema.
- E não se esqueça de telefonar ao Kettering - recomendou o
senhor Baltin, à saída.
Therese olhou de novo para o nome que ele lhe dera:
164
Adolph Kettering, Theatrical Investiments, Inc. e um
tndereço particular.
- Telefono-lhe na segunda-feira de manhã. MuitíssiImo
obrigada.
Era nesse dia - um sábado - que combinara encontrar-se com
Richard no Palermo, depois do trabalho: 1 de Janeiro, onze
dias antes da data em que Carol e ela planeavam partir. Viu
Phil parado ao balcão, com Richard.
- Olá, como vai o velho Gat? - perguntou-lhe Phil, arrastando
um banco para ela se sentar. - Também trabalha aos sábados?
- O elenco não trabalha. Só a minha secção.
- Quando é a estreia?
- No dia 21.
- Olha - disse Richard, apontando para uma mancha de tinta
verde- escura na saia de Therese.
-Já vi. Sujei a saia há dias.
-Que gostaria de beber? - perguntou-lhe Phil.
-Não sei. Talvez uma cerveja, obrigada -. Richard virara as
costas a Phil, que estava do outro lado dele, e Therese
pressentiu uma atmosfera carregada entre eles.
- Pintaste alguma coisa hoje? - perguntou a Richard, que
tinha ambos os cantos da boca descaídos.
-Tive de substituir um motorista que adoeceu. Acabou-se-me a
gasolina a meio de Long Island.
- Oh, que azar! Talvez prefiras pintar a sair, amanhã -.
Tinham combinado ir a Hoboken no dia seguinte, só para darem
uma volta e comerem no Glam House. Mas Carol viria à cidade e
prometera telefonar-lhe.
- Pinto, se posares para mim.
Therese hesitou, pouco à vontade.
- Não tenho andado com disposição para posar, ultimamente.
- Está bem, não tem importância -. Richard sorriu-lhe. - Mas
como posso eu pintar, se tu nunca posas?
- Porque não pintas ao ar livre?
Phil estendeu a mão e pegou no fundo do copo dela.
- Não beba isso. Tome qualquer coisa melhor. Eu bebo a
cerveja.
165
- Está bem. Experimento um uísque com água.
Phil estava agora de pé do outro lado dela. Parecia bem-
disposto, mas tinha umas pequenas olheiras. Mal-humorado na
última semana, andara a escrever una peça. Lera algumas cenas
em voz alta, na sua festa de Ano Novo. Phil dizia que se
tratava de um prolongamento d'A Metamorfose, de Kafka. Ela
fizera o esboço i um cenário na manhã do dia de Ano Novo e
mostrara a Phil, quando fora visitá-lo. E, de súbito, pensou
que era esse o motivo do aborrecimento de Richard.
- Terry, gostaria que fizesse um modelo que pudéssemos
fotografar daquele esboço que me mostrou. Queria ter um
cenário para acompanhar o manuscrito.
Phil empurrou para ela o uísque com água e encostou-se ao
balcão, ao seu lado.
- Talvez faça - respondeu Therese. - Vai tentar realmente a
produzam?
- Porque não? - Os olhos escuros de Phil desafiaram-na, por
cima do seu sorriso. Estalou os dedos ao empregado. - A
conta.
- Eu pago - disse Richard.
- Não pagas nada. Esta é a minha vez -. Phil tinha a velha
carteira preta na mão.
A sua peça nunca seria produzida, pensou Theresa. talvez
nunca fosse mesmo, sequer, acabada, porque os estados de
espírito de Phil eram caprichosos.
- Vou andando - disse Phil. - Apareça em bre, Terry. Até à
vista, Rich.
Therese seguiu-o com o olhar enquanto ele saía e subia a
pequena escada da frente, mais pelintra que outras vezes que
o vira, nas suas sandálias e no seu sobretudo coçado de pêlo
de camelo, mas apesar disso com uma certa indiferença
atraente na sua pelintrice. Como um homem a percorrer a sua
casa no seu velho roupão turco preferido, pensou. Retribuiu-
lhe o aceno de mão pela janela da frente.
- Ouvi dizer que levaste sanduíches e cerveja a Phil, no dia
de Ano Novo - observou Richard.
- É verdade. Ele telefonou a dizer que estava com uma
ressaca.
166
- Porque não falaste nisso?
- Esqueci-me, suponho. Não teve importância.
- Não teve importância. Se tu... - A mão rígida de
Richard fez um gesto lento, impotente. - Se passaste
o dia no apartamento de um tipo a quem levaste
sanduíches e cerveja, achas que isso não teve importância?
Não te passou pela cabeça que eu também poderia ter querido
umas sanduíches?
- Se tivesses querido, não te faltaria gente para tas
arranjar. Na véspera tínhamos comido e bebido tudo
quanto o Phil tinha em casa, lembras-te? - Richard
acenou com a cabeça comprida, ainda com o sorriso desanimado
e os cantos da boca descaídos.
- E estiveste sozinha com ele, só vocês os dois.
- Oh, Richard... - Therese lembrou-se do que se
passara, e que tivera tão pouca importância. Dannie
ainda não tinha voltado de Connecticut. Passara o Ano Novo em
casa de um dos seus professores. Ela esperara que
Dannie regressasse nessa tarde a casa de Phil, mas Richard
provavelmente nunca pensaria, nunca imaginaria, que ela
gostava muito mais de Dannie que de Phil.
- Se qualquer outra rapariga fizesse isso, eu desconfiaria de
que estava a tramar alguma, e não me enganaria - insistiu
Richard.
- Acho que estás a ser idiota.
- E eu acho que tu estás a ser ingénua -. Richard
fitava-a carrancudamente, ressentidamente, e Therese
pensou que, com certeza, o seu ressentimento não podia
ser só por causa daquilo. Estava ressentido porque ela
não era, nem nunca poderia ser, o que ele desejava que
fosse, uma rapariga que o amava apaixonadamente e
adoraria ir à Europa com ele. Uma rapariga como ela
própria, com o seu rosto, as suas ambições, mas que o
não adorasse.
- és do tipo que o Phil gosta, sabes?
- Quem disse que eu era? O Phil?
-Aquele mostrengo, aquele diletante meio tarado
- resmungou Richard. - E esta noite teve o descaramento de se
vangloriar de que não me ligas a mínima.
- O Phil não tem direito nenhum de dizer isso. Eu
não te discuto com ele.
167
- Oh, bela resposta! Queres dizer que, se discutisses, ele
saberia que não me ligas a mínima? - Richard falava
calmamente mas a sua voz tremia de cólera.
- Que tem o Phil, de repente, contra ti?
- A questão não é essa!
- Qual é, então? - perguntou Therese, impacienNte.
- Oh, Terry, acabemos com isto!
- Não descobres qual é a questão, porque não há nenhuma -
respondeu ela, mas vendo Richard voltar o rosto e mudar a
posição dos cotovelos, no balcão, quase como se as suas
palavras o fizessem estrebuchar fisicamente, sentiu uma
súbita compaixão por ele. Não era o que se passava agora, ou
se passara na semana anterior que o amargurava, mas sim toda
a inutilidade passada e futura dos seus próprios sentimentos
por ela.
Richard esmagou o cigarro no cinzeiro do balcão.
- Que queres fazer esta noite? - perguntou.
Fala-lhe da viagem com Carol, pensou Therese. duas vezes
antes tencionara dizer-lhe e depois adiara.
- Tu queres fazer alguma coisa? - perguntou por sua vez,
sublinhando as últimas palavras.
- Claro que quero - respondeu, deprimido. - Que dizes a
jantarmos e depois irmos ver o Sam e a Joan? Talvez possamos
ir até lá esta noite.
- Está bem.
Therese detestou a ideia. Eram duas das pessoas mais
maçadoras que jamais conhecera, um empregado de sapataria e
uma secretária, casados e felizes e residentes na Rua 20,
oeste. E, além disso, sabia que Richard pretendia mostrar-
lhos como exemplo de uma vida ideal e lembrar-lhe que ela e
ele poderiam um dia viver do mesmo modo, juntos. Ela detestou
a ideia e, em qualquer outra noite, talvez tivesse
protestado, mas a compaixão por Richard continuava a dominá-
la, a arrastá-la numa amorfa esteira de culpa e necessidade
de expiação. De súbito, recordou um piquenique que tinham
feito no último Verão, perto de Tarrytown, e lembrou-se com
tod a a precisão de Richard reclinado na relva, a tirar muito
devagar, com o canivete, a rolha da garrafa de vinho,
enquanto
168
conversavam... a respeito de quê? Esquecera-se, mas
recordava o momento de satisfação, a convicção de que
partilhavam qualquer coisa maravilhosamente real e rara
naquele dia, e perguntou a si mesma o que era feito disso, em
que fora baseado. Agora até mesmo a figura alta e espalmada
dele, de pé ao seu lado, parecia oprimi-la com o seu peso.
Therese sufocou o próprio ressentimento, mas conseguiu apenas
que ele se tornasse maispesado dentro dela, como uma coisa
com substância. Olhou para as figuras atarracadas dos dois
trabalhadores italianos que estavam de pé, ao balcão, e para
as duas raparigas de calças que se encontravam a seguir a
eles, ao fundo, e em quem já reparara antes, e agora que elas
iam a sair viu que vestiam calças. Uma usava o cabelo cortado
como o de um rapaz. Therese olhou para outro lado, consciente
de que as evitava, de que evitava ser surpreendida a olhar
para elas.
- Queres comer aqui? Ainda não tens fome? - perguntou
Richard.
- Não. Vamos a outro lado qualquer.
Saíram, por isso, e caminharam para norte, mais oumenos na
direcção de onde Sam e Joan moravam.
Therese ensaiou as primeiras palavras, até todo o seu sentido
desaparecer.
- Lembras-te da senhora Aird, a mulher que encontraste em
minha casa, no outro dia?
- Com certeza.
- Ela convidou-me para fazer uma viagem com ela, uma viagem
ao Oeste, de carro, durante duas semanas, mais ou menos.
Gostaria de ir.
- Ao Oeste? Califórnia? - perguntou Richard, surpreendido. -
Porquê?
- Porquê?
- Enfim... conhece-la assim tão bem?
- Estive com ela algumas vezes.
- Ah... Não me tinhas dito nada -. Richard caminhava com as
mãos a balançar aos lados do corpo e a olhar para ela. - Só
vocês duas?
- Sim.
169
- Quando partiriam?
- Por volta do dia 18.
- Deste mês? Mas assim não verias o teu espectáculo: Therese
abanou a cabeça.
- Não creio que perdesse grande coisa.
- Então. está decidido?
- Está.
Ele ficou um momento silencioso.
- Que espécie de mulher é ela? Não bebe, ou coisa do género,
pois não?
- Não -. Therese sorriu. - Tem ar de quem beba?
- Não. Na realidade, acho-a muito bonita. Parece-me apenas
tremendamente surpreendente.
- Porquê?
- É tão raro decidires-te a respeito seja do que for;
Provavelmente mudarás de opinião.
- Não creio.
- Talvez eu possa voltar a vê-la qualquer dia contigo.
Porque não combinas isso?
- Ela disse que estaria na cidade amanhã. Não sei de quanto
tempo dispõe... ou, realmente, se telefonará ou não.
Richard não continuou a conversa, e Therese também não. Nessa
noite não voltaram a falar de Carol.
Richard passou a manhã a pintar e foi ao apartamento de
Therese por volta das duas horas. Estava lá quando Carol
telefonou, pouco depois. Therese disse-lhe que Richard estava
com ela, e a resposta foi: - Traga-o consigo -. Carol disse
que estava perto do Plaza, e que podiam encontrar-se lá, na
Sala da Palmeira.
Meia hora depois, Therese viu-a olhar para eles numa mesa
perto do centro da sala, e, quase como na primeira vez, como
o eco de um choque que fora tremendo; Therese sentiu-se
abalada ao vê-la. Carol usava o mesmo conjunto preto com o
lenço de pescoço verde e dourado que usara no dia do almoço.
Mas desta vez prestou mais atenção a Richard do que a ela.
Os três não falaram de nada de especial, e Therese
170
vendo a calma dos olhos cinzentos de Carol, que só uma vez
se voltaram para ela, vendo a expressão absolutamente normal
do rosto de Richard, sentiu uma espécie de decepção. Richard
mostrara grande empenho em conhecê-la, mas Therese achava que
tinha sido menos por curiosidade do que por não ter mais nada
que fazer. Viu-o olhar para as mãos de Carol, para as unhas
tratadas e pintadas de vermelho-vivo, e reparar no anel com
límpida safira verde, e na aliança de casamento, na outra
mão. Ele não poderia dizer que eram mãos inúteis, mãos
ociosas, apesar das unhas compridas. As mãos de Carol eram
fortes e mexiam-se com economia de movimentos. A sua voz
erguia-se acima do murmúrio de outras vozes que os cercavam,
falando de coisas sem importância alguma com Richard, e a
certa altura riu-se. Depois olhou para Therese.
-Já disse ao Richard que talvez façamos uma viagem? -
perguntou.
-Já. A noite passada.
- Ao Oeste? - indagou Richard.
-Eu gostaria de subir até ao Noroeste. Depende das estradas.
E Therese sentiu-se, de súbito, impaciente. Porque estavam
ali sentados a fazer uma conferência sobre aquele assunto?
Agora falavam de temperaturas e do Estado de Washington.
- Washington é o meu estado natal - disse Carol.
Praticamente.
Depois, passados momentos, perguntou se alguém ieria dar um
passeio pelo parque. Richard pagou a conta da cerveja e do
café que tinham tomado, tirando a nota da desordem de notas e
moedas que lhe avolumavam uma algibeira das calças. Como ele
era, afinal, indiferente a respeito de Carol, pensou Therese.
Parecia-lhe que não a via, como algumas vezes não vira
figuras em formações de rocha ou nuvens, quando ela tentara
chamar-lhe a atenção para elas. Agora olhava para ela, com a
linha fina e indiferente da boca num meio riso, enquanto se
levantava e passava rapidamente a mão pelo cabelo.
171
Caminharam da entrada do parque da Rua 59 na direcção do
zoo, que depois percorreram em passo vagaroso. Continuaram a
andar, passando por baixo da primeira ponte sobre o caminho,
onde este curva e o parq propriamente dito começa. O ar
estava frio e parado, o céu um pouco encoberto, e Therese
sentia em tudo u inércia, uma imobilidade inanimada até mesmo
neles próprios, que se moviam lentamente.
- Querem que procure uns amendoins? - ofereceu Richard.
Carol estava curvada na beira do caminho, de dedos estendidos
para um esquilo.
- Eu tenho uma coisa - disse suavemente, e o esquilo
sobressaltou-se com a sua voz, mas avançou de novo, segurou-
lhe os dedos com uma força nervosa, cravando os dentes em
qualquer coisa e fugiu -. Carol endireita-se, sorrindo. -
Tinha uma coisa na algibeira, que sobrou desta manhã.
- Dá comida a esquilos, onde vive? - perguntou Richard.
- A esquilos e tâmias.
Falavam de coisas tão enfadonhas, pensou Therese. Depois
sentaram-se num banco e fumaram um cigarro, e Therese,
observando um sol diminuto chegar finalmente com o seu fogo
cor de laranja aos descarnados ramos pretos de uma árvore,
desejou que a noite já tivesse chegado e ela estivesse
sozinha com Carol. Começaram a andar, de regresso. Se Carol
tivesse de voltar já para casa, pensou Therese, faria uma
coisa violenta. Como, por exemplo, saltar da ponte da Rua 59.
Ou tomar os comprimidos de benzedrine que Richard lhe dera a
semana passada.
- Querem tomar chá em qualquer lado? - perguntou Carol,
quando se aproximavam novamente do bar.
- Que dizem àquela casa russa perto de Garnegie
- A Rumpelmayer's é mesmo aqui - observou Richard. - Gostam
da Rumpelmayer's?
Therese suspirou. E Carol pareceu hesitar. Mas foram lá.
Therese lembrou-se de que estivera ali uma vez
172
com Angelo. Não gostava da casa. As suas luzes fortes
causavam-Lhe uma sensação de nudez, e era irritante não saber
se se estava a ver uma pessoa verdadeira ou o seu reflexo num
espelho.
-Não, não quero nada, obrigada - disse Carol, abanando a
cabeça à grande bandeja de bolos que a empregada estendia.
Mas Richard escolheu dois bolos, embora Therese também
tivesse declinado.
-Para que é isso, para o caso de eu mudar de ideias? -
perguntou Therese, e Richard piscou-lhe o olho. Tinha de novo
as unhas sujas, reparou ela.
Richard perguntou a Carol de que tipo era o seu carro, e
começaram a discutir os méritos de várias marcas de
automóveis. Therese viu Carol lançar olhares às mulheres que
estavam à sua frente. Ela também não gosta desta casa,
pensou. Olhou com atenção para um homem reflectido no espelho
que estava obliquamente atrás de Carol. O homem estava de
costas e inclinado para a frente, a conversar animadamente
com uma mulher e a dar ênfase às palavras com movimentos
bruscos da mão esquerda aberta. Therese olhou para a mulher
magra, de meia-idade, com quem ele falava, e depois novamente
para ele, perguntando-se se a aura de familiaridade que
descobria nele era autêntica ou uma ilusão como o espelho,
até que uma recordação frágil como uma bola de sabão subiu no
seu consciente e rebentou à superfície. Era Harge.
Therese olhou de relance para Carol, mas se esta
reparara nele, pensou, não podia saber que ele estava
reflectido no espelho atrás de si. Momentos depois, Theresa
olhou por cima do ombro e viu Harge de perfil, muito
semelhante a uma das imagens que trazia na memória,
reflectidas lá em casa - o nariz recto e curto, a parte
inferior do rosto cheia. Carol devia tê-lo visto, apenas a
três mesas de distância, à sua esquerda. Carol olhou de
Richard para Therese.
- Sim - disse à rapariga, sorrindo um pouco, e voltou-se
173
de novo para Richard e continuou a conversa com ele. A sua
atitude mantinha-se a mesma, absolutamente nada diferente.
Therese olhou para a mulher que estava com Harge. Não era nem
nova nem muito atraente. Talvez fosse uma pessoa da sua
família.
Depois viu Carol esmagar um cigarro comprido. Richard parara
de falar. Estavam prontos para sair. Therese olhava Harge no
momento em que ele viu Carol. Após o primeiro vislumbre, os
seus olhos quase se fecharam, como se tivesse de os
semicerrar para acreditar que era ela, e depois disse
qualquer coisa à mulher que acompanhava, levantou-se e
aproximou-se da mesa.
- Carol - disse.
- Olá, Harge. - Voltou-se para Therese e Richard e pediu: -
Dão-me licença, um momento?
Observando da porta, para onde fora com Richard, Therese
tentava ver tudo, ver para além do orgulho e agressividade da
figura ansiosa e inclinada para a frente de Harge, que não
era tão alto como a copa do chapéu de Carol, para ver para
além dos acenos de cabeça aquiescentes dela enquanto ele
falava, para conjecturar, não o que eles estavam a dizer
agora, mas sim o que tinham dito um ao outro há cinco anos,
três anos, no passeio daquele retrato do barco a remos. Carol
amara-o uns tempos, e isso era doloroso de recordar.
- Agora podemos ficar livres, Terry? - perguntou-lhe Richard.
Therese viu Carol cumprimentar com uma inclinação de cabeça a
mulher sentada à mesa de Harge e i pois afastar-se dele.
Harge olhou por cima de Carol para Therese e Richard e, sem
aparentemente a reconhecer, voltou para a sua mesa.
- Desculpem - disse Carol, quando se lhes juntou No passeio.
Therese puxou Richard de parte e disse-lhe:
- Agora tenho de te dar as boas noites, Richard. A Carol quer
que eu visite uma amiga sua com ela, esta
noite.
Richard franziu a testa.
174
- Mas eu tenho aqueles bilhetes para o concerto
desta noite, bem sabes.
Therese lembrou-se subitamente.
- Do Alex. Esqueci-me. Desculpa.
- Não tem importância - respondeu ele, tristemente.
Não tinha de facto importância. O amigo de Richard,
Alex, acompanhava alguém num concerto de vio lão e dera os
bilhetes a Richard há semanas.
- Preferes ir com ela a ir comigo, não é? - perguntou
ele.
Therese viu que Carol estava a procurar um táxi.
Deixá-los-ia a ambos dentro de poucos momentos.
- Devias ter-me falado do concerto esta manhã, Richard.
ter-mo recordado, pelo menos.
- Aquele era o marido dela? - Os olhos de Richard
semicerraram-se sob o franzir da testa. - Que vem a ser
isto, Terry?
- Que vem a ser o quê? Não conheço o marido dela.
Richard aguardou um momento e depois desfranziu
a testa. Sorriu, como se admitisse que não tinha sido
razoável.
- Desculpa. Estava apenas convencido de que te
divertiria esta noite -. Aproximou-se de Carol. - Boa noite
- despediu-se.
Dava a impressão de que se ia embora sozinho, e por
isso Carol disse-lhe:
-Vai para a Baixa? Talvez eu possa deixá-lo em
qualquer lado.
- Vou a pé, obrigado.
- Julgava que vocês dois tinham um encontro - observou
Carol a Therese.
Therese viu que Richard não se afastava e aproximou-se por
sua vez de Carol, de modo que ele não ouvisse o que diziam.
- Não era importante. Preferia ficar consigo.
Um táxi parara ao lado de Carol, que pôs a mão no
puxador.
- Bem, o nosso encontro também não é muito importante.
Por isso, porque não vai com o Richard esta noite?
175
Therese olhou para Richard e percebeu que ele a o vira.
- Até depois, Therese - disse Carol.
- Boa noite - respondeu Richard.
- Boa noite - repetiu Therese, vendo Carol fechar a porta do
táxi, depois de entrar.
- Pronto - disse Richard.
Therese virou-se para ele. Não iria ao concerto, mas também
não faria nada violento, sabia-o, nada mais violento que
caminhar rapidamente para casa e trabalhar no cenário que
queria acabar até terça-feira, para kevy. Pôde antever todo o
serão, com um fatalismo mi melancólico, meio desafiador, no
segundo que Richard levou para se aproximar dela.
- Continuo a não querer ir ao concerto - disse-lhe. Para sua
surpresa, Richard recuou e replicou, furioso:
- Está bem, não vás! - e voltou-lhe as costas. Seguiu para
oeste, pela Rua 59, na sua passada assimétrica, que lhe
lançava o ombro direito para a frente do outro, mãos a
balançar, sem ritmo, aos lados do corpo, e ela percebeu, pela
simples maneira como ele caminhava, que estava zangado. Num
instante deixou de o ver. A rejeição de Kettering, na última
segunda-feira passou-lhe rapidamente pelo pensamento. Ficou
de olhos fixos na escuridão que engolira Richard. Não se
sentia culpada a respeito daquela noite. Tratava-se de outra
coisa. Invejava-o. Invejava a convicção que ele tinha que
haveria sempre um lugar, um lar, um emprego, outra pessoa
para ele. Invejava-lhe essa atitude. Quase sentia
ressentimento por ele a ter.
176
CAPíTULO XIII
Capítulo XIV
208
CAPíTULO XV
CAPíTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
De manhã, ficaram deitadas nos braços uma da outra muito
depois de o sol ter entrado no quarto. O sol aquecia-as
através da janela do hotel da pequena cidade em cujo nome não
tinham reparado. Havia neve no solo, lá fora.
- Haverá neve no Estes Park - disse Carol.
- Que é o Estes Park?
- Vai gostar. Não é como o Yellowstone. Está aberto todo o
ano.
- Carol, não está preocupada, pois não?
Carol apertou-a a si.
- Estou a proceder como se estivesse preocupada?
Therese não estava preocupada. O pânico inicial desaparecera.
Estava vigilante, mas não como estivera na tarde da véspera,
logo depois de Salt Lake City. Carol queria-a consigo, e
fosse o que fosse que acontecesse seria enfrentado por elas
sem fugirem. Como era possível ter medo e estar apaixonada?,
pensava Therese. As duas coisas não combinavam. Como era
possível ter medo quando as duas se tornavam mais fortes
juntas, cada dia? E cada noite. Cada noite era diferente, e
cada manhã. Juntas estavam na posse de um milagre.
A estrada para Estes Park era a descer. A neve amontoava-se
cada vez mais alto de ambos os lados da estrada, e depois
começaram a aparecer luzes, enfileiradas ao longo dos abetos,
arqueadas sobre a estrada. Era uma aldeia de casas de troncos
castanhos, lojas e hotéis.
243
Havia música e na rua iluminada andavam pessoas de
cabeça erguida, como que encantadas.
- Gosto - disse Therese.
- O que não significa que não precisa de estar atenta ao
nosso homenzinho.
Levaram o gira-discos portátil para o quarto e tocaram alguns
discos que tinham acabado de comprar e outros antigos, de
Nova Jérsia. Therese quis ouvir Easy Lining duas vezes, e
Carol ficou do outro lado do quarto a
observá-la, sentada no braço de uma cadeira e de braços ;
cruzados.
- Faço-a passar um tempo desgraçado, não faço?
- Oh, Carol... - Therese tentou sorrir. Era apenas
um estado de espírito de Carol, apenas um momento.
Mas fazia-a sentir-se desamparada.
Carol olhou para a janela.
- Porque não fomos à Europa, para começar? Suíça.
Ou, pelo menos, não viemos para aqui de avião?
- Eu não teria gostado nada disso -. Therese olhou
para a camisa de camurça amarela que Carol lhe comprara e que
estava nas costas de uma cadeira. Carol enviara uma verde a
Rindy. Comprara uns brincos de prata, dois livros e uma
garrafa de Trile Sec. Há meia hora, tinham-se sentido
felizes, caminhando pelas ruas juntas.
- Foi aquele último uísque que tomou lá em baixo observou. -
O uísque deprime-a.
- Sério?
- Mais que o conhaque.
- Vou levá-la ao lugar mais bonito que conheço deste lado de
Sun Valley.
- Que mal há em Sun Valley? - Therese sabia que
ela gostava de esquiar.
- Sun Valley não é simplesmente o lugar indicado
- respondeu Carol, misteriosamente. - O lugar a que
me refiro fica perto de Colorado Springs.
Em Denver, Carol parou e vendeu o anel de noivado
de diamantes, numa joalharia. Therese sentiu-se um
pouco transtornada com isso, mas Carol disse que o anel
não significava nada para ela e, de qualquer modo, detestava
244
diamantes. Além disso, vendê-lo era mais rápido que
telegrafar ao seu banco a pedir que lhe mandassem dinheiro.
Tencionava parar num hotel a poucos quilómetros de Colorado
Springs, no qual já estivera antes, mas mudou de ideias
praticamente assim que lá chegaram. Parecia- se demasiado com
uma estância de férias, explicou, por isso foram para outro
hotel que ficava de costas para a cidade e voltado para as
montanhas. O quarto delas era comprido, da porta às janelas
quadradas até ao chão, que davam para um jardim e, depois
dele, para as montanhas vermelhas e brancas. Havia manchas
brancas no jardim, umas quantas pequenas pirâmides de pedra,
um ou outro banco ou cadeira brancos. Parecia ridículo,
comparado com a magnificente paisagem que o rodeava, a
planura que subia para montanhas atrás de montanhas, enchendo
o horizonte como metade de um mundo. O quarto tinha mobília
clara, quase da cor do cabelo de Carol, e havia uma estante
tão lisa e macia quanto se poderia desejar, com alguns bons
livros entre os maus, e Therese sabia que não leriam nenhum
deles enquanto ali permanecessem. Por cima da estante estava
pendurado um quadro representando uma mulher com um grande
chapéu preto e um lenço vermelho, e na parede mais próxima da
porta estava esticada uma pele de couro castanho - não se
tratava, porém, de uma pele verdadeira, mas de uma imitação
que alguém cortara de um bocado de camurça castanha. Por cima
dela, uma lanterna de folha com uma vela. Carol alugou também
o quarto contíguo, que tinha uma porta de comunicação com o
delas, embora não o utilizassem nem para pôr as malas de
viagem. Tencionavam demorar-se uma semana, ou mais, se
gostassem.
Na manhã do segundo dia, Therese voltou de uma visita de
inspecção ao recinto do hotel e encontrou Carol inclinada
para a mesa-de-cabeceira. Carol olhou-a apenas de relance,
dirigiu-se para o toucador e observou também debaixo dele, e
depois foi investigar o comprido roupeiro metido na parede.
- Pronto - disse. - Agora esqueçamos o assunto.
245
Therese sabia o que ela procurava.
- Não tinha pensado nisso - disse. - Tenho a impressão de que
o despistámos.
- Só que, provavelmente, a esta hora ele já deve ter chegado
a Denver - respondeu Carol, calmamente. Sorriu, mas com um
sorriso que lhe torceu um pouco a boca. - E, também
provavelmente, passará por aqui.
Ela tinha razão, claro. Havia mesmo uma probabilidade, ainda
que muito remota, de o detective as ter visto quando
retrocediam por Salt Lake City, e as ter seguido: Se não as
encontrasse em Salt Lake City, investigaria: nos hotéis. Ela
sabia que fora por isso que Carol deixara a morada de Denver,
precisamente porque não tencionà vam ir para lá. Therese
atirou-se para a poltrona e olhou i para Carol. Ela dera-se
ao trabalho de procurar um microfone, mas a sua atitude era
arrogante. Desafiara mesmo o perigo indo para ali. E a
explicação, a resolução daqueles factos contraditórios, não
se encontrava em lado algum a não ser na própria Carol,
indecisa, nos seus passos lentos e inquietos, ao caminhar
agora para a porta e voltar para trás, no porte indiferente
da sua cabeça levantada e na linha nervosa das sobrancelhas,
que num segundo registavam irritação e no seguinte estavam
serenas. Therese olhou para o grande quarto, para o tecto
alto, para a grande cama quadrada e simples, para o quarto
que, não obstante toda a sua modernidade, tinha um ar amplo,
antiquado, que ela associava com o Oeste americano, como as
enormes selas da região que vira mo estábulo de cavalos de
montar, em baixo. E um aspecto de asseio, também. E, no
entanto, Carol procurava um microfone. Therese observava-a,
voltando atrás na sua direcção, ainda de pijama e roupão.
Sentiu um impulso de correr para ela, esmagá-la nos braços,
empurrá-la para a cama - e o facto de Carol não a deixar
agora tensa e alerta encheu- a de uma alegria contida, mas
afoita:
Carol soprou fumo para o ar.
- Estou-me nas tintas. Espero que os jornais descubram o que
se passa e esfreguem a cara do Harge na sua própria porcaria.
Desejo que ele desbarate cinquenta
246
mil dólares. Quer que levemos, esta tarde, aquela chata que
leva a língua inglesa à falência? Já falou à senhora
French?
Tinham conhecido a senhora French na noite anterior, na sala
de jogos do hotel. Ela não tinha carro e Carol perguntara-lhe
se queria dar um passeio de automóvel com elas.
- Falei - respondeu Therese. - Ela disse que estaria pronta
logo a seguir ao almoço.
- Leve a sua camisa de camurça -. Carol tomou nas mãos o
rosto de Therese, apertou-o e beijou-a.
- Vista-a agora.
Era uma viagem de seis ou sete horas à mina de ouro de Griple
Greek. A senhora French foi com elas, sem parar de falar. Era
uma mulher dos seus setenta anos, com sotaque de Marilândia e
aparelho auditivo sempre pronta para sair do carro e subir
fosse para onde fosse, apesar de ter de ser ajudada em cada
passo do caminho. Therese sentia-se muito preocupada com ela,
embora na realidade lhe desagradasse tocar-lhe, sequer. Tinha
a impressão de que, se caísse, a senhora French se quebraria
num milhão de bocadinhos. Carol e a senhora French falavam do
estado de Washington, que a segunda conhecia bem em virtude
de lá ter vivido nos últimos anos com um dos seus filhos.
Carol fez algumas perguntas e a senhora French contou-lhe
tudo a respeito dos seus doze anos de viagens, desde a morte
do marido, e dos seus dois filhos, o de Washington e o do
Havai que trabalhava para uma empresa que negociava em
ananases. E, obviamente, a senhora French adorava Carol e com
certeza, iam vê-la muitas mais vezes. Eram quase onze horas
quando chegaram ao hotel, de regresso. Carol convidou a
senhora French para cear com elas no bar, mas ela disse que
estava tão cansada que se contentaria com os seus flocos de
trigo com leite quente, que comeria no seu próprio quarto.
- Ainda bem - comentou Therese, quando ela as
deixou. - Prefiro ficar sozinha consigo.
247
- Deveras, menina Belivet? Que quer dizer ao certo? -
perguntou Carol, enquanto abria a porta do bar. - Acho melhor
sentar-se e dizer-me tudo a esse respeito.
Mas não estiveram sozinhas no bar mais de cinco minutos. Dois
homens, um chamado Dave e outro cujo
nome Therese, pelo menos, não sabia nem estava interessada em
saber, aproximaram-se e perguntaram se podiam fazer-lhes
companhia. Eram os dois que tinham estado na sala de jogos,
na noite anterior, e as haviam
convidado para jogar gin rumm. [Jogo de cartas. (N. do E. )]
Nessa altura Carol declinara, mas agora respondeu:
- Claro, sentem-se.
Carol e Dave iniciaram uma conversa que parecia
muito interessante, mas o lugar onde Therese estava sentada
não lhe dava grande possibilidade de participar nela. E o
homem a seu lado queria falar de outra coisa, de
uma viagem a cavalo que acabara de fazer por Steaboat
Springs. Depois de cearem, Therese aguardou u
sinal de Carol para se recolherem, mas ela continuava
muito entretida a conversar. Therese lera coisas acerca
do prazer especial que causava às pessoas o facto de
alguém que amavam ser, também, atraente aos olhos de
outros. Ela não sentia, simplesmente, esse prazer.
olhava de vez em quando para ela e piscava-lhe o olho.
Por isso, Therese ficou ali sentada hora e meia e conseguiu
ser cortês, porque sabia que Carol queria que o fizesse com
As pessoas que se lhes reuniam no bar e, algumas
vezes, na sala de jantar, não a aborreciam tanto como a
senhora French, que quase todos os dias ia com elas
a qualquer lado, de carro. Nessas ocasiões, um ressentimento
de que na realidade se envergonhava crescia nela,
porque alguém a impedia de estar a sós com Carol.
- Minha querida, alguma vez pensou que um
dia também terá setenta e um anos?
- Não - respondeu Therese.
Mas havia outros dias em que se metiam no carro e
248
iam sozinhas para as montanhas, metendo por qualquer estrada
que encontrassem. Uma vez, foram ter a uma pequena cidade de
que gostaram e passaram lá a noite, sem pijamas nem escovas
de dentes, sem passado ou futuro, e a noite tornou-se mais
uma daquelas ilhas no tempo, suspensa algures no coração ou
na memória, intacta e absoluta. Ou talvez não fosse outra
coisa senão amizade, pensava Therese, uma amizade completa,
plena, que devia ser tão rara que eram muito poucas as
pessoas que alguma vez a sentiam. Mas se era meramente
felicidade, então ultrapassara os limites comuns e tornara-se
outra coisa, uma espécie de pressão excessiva, de tal modo
que o peso de uma chávena de café na sua mão, a velocidade de
um gato a atravessar o jardim, em baixo, ou o choque
silencioso de duas nuvens pareciam quase superiores às suas
forças. E do mesmo modo que não compreendera, há um mês, o
fenómeno da felicidade súbita, assim também não compreendia
agora o seu estado, que parecia uma sequela do anterior. Era,
frequentemente, mais doloroso que agradável, e por isso ela
receava sofrer de alguma deficiência grave e única. Às vezes
tinha medo, como se andasse por ali com a espinha partida. Se
calhava sentir um impulso para o dizer a Carol, as palavras
dissolviam-se antes de ela começar, perdiam-se no medo e na
sua desconfiança habitual em relação às suas próprias
reacções, na angústia de pensar que as suas reacções não eram
como as de mais ninguém e, por conseguinte, nem mesmo Carol
seria capaz de as compreender.
De manhã, costumavam dirigir-se para qualquer lado, nas
montanhas, e deixarem o carro sempre que se oferecia a
oportunidade de subirem a um monte. Viajavam ao acaso, por
estradas em ziguezague que eram como linhas de giz branco
ligando um ponto da montanha a outro. De longe, podiam ver
nuvens pairando sobre os picos mais altos, o que lhes dava a
sensação de voarem no espaço, um pouco mais perto do céu que
da terra. O lugar preferido de Therese ficava na auto-estrada
acima de Gripple Greek, onde a estrada se agarrava
subitamente
249
à aresta de uma gigantesca depressão. Lá muito em baixo,
via-se a pequena desordem da cidade mineira abandonada. Aí os
olhos e o cérebro pregavam partidas entre si, pois era
impossível fazer uma ideia concreta da proporção das coisas
de baixo, impossível compará-las com qualquer escala humana.
A sua própria mão, colocada à sua frente, podia parecer
liliputiana ou curiosa: =mente enorme. E a cidadezinha
ocupava apenas uma fracção do grande rasgão côncavo da terra,
como una única experiência, uma única coisa comum situada em
determinado e incomensurável território da mente: O olhar,
flutuando no espaço, voltava a repousar no lu gar que parecia
uma caixa de fósforos esmagada por um automóvel, a confusão
criada pelo homem na pequena cidade.
Therese estava sempre atenta, a ver se aparecia o homem com
os sulcos de cada lado da boca, mas Carol nunca. Carol não
voltara sequer a mencioná-lo depois do seu segundo dia em
Colorado Springs, e entretanto tinham passado dez dias. Em
virtude de o restaurante hotel ser famoso, todas as noites
aparecia gente nova na grande sala de jantar, e Therese dava
sempre uma olhadela em redor, sem esperar, realmente, vê-lo,
mas com uma espécie de precaução que se transformara num
hábito. Carol, porém, não prestava atenção a ninguém a não
ser a Walter, o empregado de mesa que as servia que todas as
noites vinha perguntar- Lhes que cocktail desejavam. Em
contrapartida, eram muitas as pessoas que olhavam para Carol,
pois ela era, geralmente, a muler mais atraente da sala. E
Therese sentia-se tão encantada na sua companhia, tão
orgulhosa dela, que não tinha olhos para mais ninguém.
Enquanto lia a ementa, Carol pisava-lhe devagarinho o pé,
debaixo da mesa, para a zer sorrir.
- Que lhe parece a Islândia no Verão? - podia
perguntar, porque faziam questão de falar de viagens, se via
um silêncio a seguir a sentarem-se.
- Tem de escolher terras tão frias? Quando é que
trabalharei?
250
- Não esteja triste. Convidamos a senhora French? Acha que
ela se importaria se déssemos as mãos?
Uma manhã, chegaram três cartas: de Rindy, de Abby e de
Dannie. Era a segunda carta de Abby, que antes não tivera
mais notícias a dar, e Therese reparou que Carol abriu
primeiro a carta da filha. Dannie dizia que continuava à
espera do resultado de duas entrevistas acerca de empregos. E
informava que Phil dizia que Harkevy ia fazer os cenários
para a peça ingelsa The Faint Heart, em Março.
- Ouça isto - pediu Carol. - "Encontrou alguns tatus no
Colorado? Gostava que me mandasse um, pois o camaleão perdeu-
se. O paizinho e eu procurámo-lo na casa toda, mas não o
achámos. Se me mandar o tatu, será suficientemente grande
para não se perder. " Novo parágrafo. "Tive noventa no
ditado, mas só setenta na aritmética. Detesto aritmética.
Detesto a professora. Bem, tenho de acabar. Saudades para si
e para a Abby. Rindy. P. S. Muito obrigada pela camisa de
camurça. Opaizinho comprou-me uma bicicleta de duas rodas,
tamanho normal. Tinha dito que eu era pequena de mais para
ela no Natal. Mas não sou. É uma linda bicicleta. " Ponto
final. Para que me esforço eu? O Harge consegue passar-me
sempre à frente -. Carol pousou a carta da filha e pegou na
de Abby.
- Por que diz a Rindy "Saudades para si e para a Abby"? -
perguntou Therese. - Ela pensa que a Carol está com a Abby?
- Não -. O abre-cartas de madeira da Carol parou a meio do
sobrescrito de Abby. - Suponho que ela pensa que eu Lhe
escrevo - acrescentou, e acabou de abrir o sobrescrito.
- Quero dizer, o Harge não lhe diria isso, pois não?
- Não, meu amor - respondeu Carol, preocupada, a ler a carta
de Abby.
Therese levantou-se, atravessou o quarto e parou à janela a
olhar para as montanhas. Escreveria a Harkevy naquela tarde,
pensou, a perguntar- lhe se haveria alguma possibilidade de
um lugar de assistente para ela, no
251
seu grupo, em Março. Começou a redigir a carta mentalmente.
As montanhas devolviam-lhe o olhar como
majestosos leões fulvos, olhando-a do alto da sua eminência.
Ouviu Carol rir-se duas vezes, embora ela não
lhe lesse alto nenhuma passagem daquela carta.
- Nenhuma novidade? - perguntou-lhe Therese, quando ela
acabou.
- Não, nenhuma novidade.
Carol ensinou-a a conduzir nas estradas à roda do
sopé das montanhas, onde era muito raro passarem
automóveis. Therese nunca na sua vida tinha aprendido
nada tão depressa, e ao fim de dois dias Carol deixou-a
conduzir no regresso a Colorado Springs. Em Denver
submeteu-se a exame e obteve a licença necessária. Carol
disse-lhe que poderia encarregar-se de metade da
condução quando voltassem para Nova Iorque, se quisesse.
Uma noite, à hora do jantar, ele estava sentado sozinho a uma
mesa, à esquerda e atrás de Carol. Therese
engasgou-se, sem ter nada na boca, e pousou o garfo.
O seu coração começou a bater como se quisesse abrir
caminho para fora do seu peito à martelada. Como pudera ela
chegar a meio da refeição sem o ter visto? Levantou os olhos
para o rosto de Carol e encontrou-a a
observá-la, a ler o que se passava com os olhos cinzentos,
menos calmos agora que um momento antes. Carol
calara-se a meio de uma frase.
- Fume um cigarro - disse, estendendo-lhe um cigarro e
acendendo-lhe. - Ele não sabe que a Therese o
pode reconhecer, pois não?
- Não.
- Bem, não permita que o descubra -. Carol sorriu-Lhe,
acendeu também um cigarro para si e olhou na
direcção oposta ao detective. - Tenha calma - acrescentou, no
mesmo tom.
Era fácil dizê-lo, fora fácil pensar que poderia olhá-lo
quando voltasse a vê-lo, mas de que servia tentar quando era
como se fosse atingida no rosto por uma bala de canhão?
252
- Não quer sobremesa esta noite? - perguntou Carol,
consultando a ementa. - Isso parte-me o coração.
Sabe o que vamos tomar?
- Chamou o empregado de mesa.
Walter acorreu, sorridente, ansioso por servi-las, como todas
as noites.
- Sim, madame?
- Dois Remy Martins, por favor, Walter - disse-Lhe
Carol.
O conhaque ajudou muito pouco, se é que ajudou alguma coisa.
O detective não olhou nem uma vez para
elas. Estava a ler um livro que encostara ao suporte metálico
dos guardanapos, e mesmo agora Therese continuava com uma
dúvida tão forte como a que sentira no
café à saída de Salt Lake City, uma incerteza que conseguia
ser mais horrível do que saber positivamente que
ele era o detective.
- Temos de passar por ele, Carol? - Havia uma
porta atrás do homem que dava para o bar.
- Temos. É por esse lado que saímos -. As sobrancelhas de
Carol ergueram-se quando ela sorriu, exactamente como em
qualquer outra noite. - Ele não nos pode fazer nada. Receia
que nos aponte alguma arma?
Therese seguiu-a e passou a trinta centímetros do indivíduo,
cuja cabeça estava baixa, voltada para o livro.
À sua frente, viu a figura de Carol inclinar-se graciosamente
quando ela cumprimentou a senhora French, que
estava sentada sozinha a uma mesa.
- Porque não foi juntar-se a nós? - perguntou Carol, e
Therese lembrou-se de que as duas mulheres com
quem a senhora French costumava comer tinham partido naquele
dia.
Carol deteve-se mesmo a conversar alguns momentos com a
senhora French, e Therese sentiu-se maravilhada com tanto
sangue-frio, mas não foi capaz de parar ali e, por isso,
passou adiante e foi esperar junto
dos elevadores.
No quarto, Carol encontrou o pequeno aparelho fixado num
canto, debaixo da mesa-de-cabeceira. Pegou na
253
tesoura e, servindo-se de ambas as mãos, cortou o fio que
desaparecia debaixo da alcatifa.
- As pessoas do hotel deixaram- no entrar aqui?perguntou
Therese, horrorizada.
- Provavelmente ele arranjou uma chave -. Carol arrancou o
objecto com um puxão e deixou-o cair na alcatifa: uma
caixinha preta com um pedaço de fio. - Repare, parece um
rato. Um retrato do Harge -. O rosto de Carol corou
subitamente.
- Onde vai ter?
- A algum quarto onde é gravado. Talvez do outro lado do
corredor. Benditas alcatifas modernas de parede a parede!
Carol empurrou o microfone, com um pontapé, para o meio do
quarto.
Therese olhou para a caixinha rectangular e imaginou-a a
beber as palavras ditas por elas na noite anterior.
- Há quanto tempo estará aqui? - perguntou.
- Há quanto tempo pensa que ele cá pode estar sem a Therese o
ter visto?
- Desde ontem, na pior das hipóteses - respondeu, embora
tivesse, no mesmo instante, consciência de que podia estar
enganada. Não podia ver a cara de todas as pessoas que
estavam no hotel.
E Carol abanava a cabeça.
- Precisaria ele de quase duas semanas para nos seguir o
rasto de Salt Lake City até aqui? Não, ele decidiu apenas
jantar esta noite connosco -. Carol virou-se, da estante, com
um copo de conhaque na mão. O rubor deixara-lhe o rosto.
Sorriu mesmo um pouco a Therese.
- Tipo desastrado, não acha? - Sentou-se na cama, puxou uma
almofada para trás de si e recostou-se.
- Bem, estivemos aqui praticamente o tempo suficiente, não
estivemos?
- Quando quer partir?
- Talvez amanhã. Fazemos as malas de manhã e partimos depois
do almoço. Que lhe parece?
Mais tarde, meteram-se no carro e deram um passeio,
254
para oeste, no escuro. Não viajaremos mais para oeste,
pensou Therese. Não conseguia expulsar o pânico que se
encontrava no próprio âmago do seu ser, que sentia ser devido
a qualquer coisa antiga, algo que acontecera há muito tempo,
não agora, não aquilo. Estava inquieta, mas Carol não. Carol
não se limitava a fingir serenidade; não tinha realmente
medo. Que podia ele ter feito, no fim de contas, perguntara
Carol, mas ela não queria, simplesmente, ser espiada.
- Mais uma coisa - disse Carol. - Tente descobrir em que tipo
de carro ele viaja.
Nessa noite, quando falavam de mapa aberto acerca do caminho
que seguiriam no dia seguinte, quando falavam em tom prático
como duas desconhecidas, Therese pensou: esta noite não será
com certeza como a noite passada. Mas quando se beijaram a
desejar as boas noites, na cama, Therese sentiu o súbito
disparo de ambas, aquela reacção que se dava nas duas como se
os seus corpos fossem feitos de materiais que, ao
estabelecerem contacto, geravam inevitavelmente desejo.
CAPíTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
Albert Kennedy, Bert para as pessoas de quem gostava, vivia
num quarto das traseiras da casa e era apenas um dos
primeiros hóspedes da senhora Cooper. Tinha quarenta e cinco
anos, nascera em São Francisco e era a pessoa mais parecida
com um nova-iorquino que Therese conhecera na cidade, único
facto que a levava a evitá-lo. Convidara-a com frequência
para ir ao cinema com ele, mas ela só fora uma vez. Sentia-se
inquieta e preferia vaguear sozinha, a maior parte das vezes
limitando-se a olhar e a pensar, porque os dias estavam
demasiado frios e ventosos para lhe permitirem desenhar ao ar
livre. E as vistas de que ao princípio gostara tinham-se
tornado demasiado banais para as desenhar, de tanto as olhar,
de tanto esperar. Ia quase todas as noites à biblioteca,
sentava-se a uma das mesas compridas a passar os olhos por
meia dúzia de livros e depois voltava para casa, por um
caminho sinuoso.
Voltava para casa só para voltar a sair pouco depois,
preparando-se para resistir ao vento caprichoso ou deixando-o
empurrá-la para ruas que de outro modo não teria percorrido.
Nas janelas iluminadas via uma rapariga sentada ao piano,
noutra um homem a rir, noutra uma mulher a costurar. Então
lembrava-se de que não podia sequer telefonar a Carol,
admitia para consigo própria que nem mesmo sabia o que Carol
estava a fazer naquele momento, e sentia-se mais vazia que o
vento. Carol não lhe tinha dito tudo nas suas cartas, tinha a
certeza, não Lhe tinha dito o pior.
289
Na biblioteca, folheava livros com fotografias da Europa,
fontes de mármore da Sicília, ruínas da Grécia ao sol, e
pensava se Carol e ela lá iriam, realmente, alguma vez. Havia
ainda tantas coisas que não tinham feito! Havia a primeira
travessia, juntas, do Atlântico. Havia simplesmente as
manhãs, manhãs em qualquer lado, em que poderia levantar a
cabeça da almofada e ver o rosto de Carol, e saber que o dia
seria delas e que nada as separaria.
E havia aquela bela coisa, capaz de paralisar os olhos e o
coração ao mesmo tempo, na montra escura de uma loja de
antiguidades de uma rua onde nunca estivera. Therese fitava-a
e sentia-a aplacar uma sede anónima e esquecida dentro dela.
A maior parte da sua superficie de porcelana tinha pintados
pequenos losangos brilhantes, de esmalte colorido, azul-vivo,
vermelho e verde- carregado, debruados de um ouro tão
brilhante como um bordado a seda, mesmo sob a sua película de
pó. Havia uma argola dourada na orla, para o dedo. Era um
minúsculo castiçal. Quem o teria feito, pensou, e para quem?
Voltou na manhã seguinte e comprou-o para o dar a Carol.
Nessa manhã chegara uma carta de Richard, reenviada de
Colorado Springs. Therese sentou-se num dos bancos de pedra
da rua onde ficava a biblioteca, e abriu-a. Fora escrita em
papel de carta comercial: The Semco Bottled Gas Company.
Cozinha - Aquece - Produz Gelo. Ao topo, o nome de Richard
como gerente da sucursal de Port Jef3Eerson.
Querida Therese:
Tenho a agradecer ao Dannie o ter-me dito onde estavas. Podes
pensar que esta carta é desnecessária, e talvez o seja, para
ti. Talvez ainda estejas naquela neblina em que estavas
quando conversámos naquela noite na cafetaria. Mas eu acho
necessário tornar uma coisa clara, ou seja, que já não sinto
por ti o que sentia ainda há duas semanas, e que a última
carta que te escrevi não foi mais que um último esforço
espasmódico
290
e eu sabia que era inútil quando a escrevi, e sabia que não
responderias e que não queria que respondesses. Sei quejá
deixara de te amar então, e agora a principal emoção que
sinto em relação a ti é a que esteve presente desde o
princípio: repugnância. É ofacto de te teres rendido a essa
mulher com exclusão de todas as outras pessoas, é essa
relação que, tenho a certeza, se tornou entretanto sórdida e
patológica, é isso que me repugna. Sei que não durará, como
disse desde o princípio. Só é lamentável que mais tarde tu
própria te sintas repugnada, na proporção da parte da tua
vida que com ela desperdiças agora. Não tem raízes, é
infantil, como viver de flores-de-lótus ou de qualquer doce
enjoativo em vez de do pão e da carne da vida. Tenho pensado
comfrequência nas perguntas que me fizeste naquele dia em que
lançámos o papagaio. Arrependo-me de não ter actuado então,
antes que fosse tarde de mais, porque nessa altura te amava o
suficiente para tentar salvar-te. Agora não amo.
As pessoas ainda me perguntam por ti. Que esperas que lhes
diga? Tenciono dizer-lhes a verdade. Só dessa maneira poderei
libertar-me dela - e eu não posso continuar a carregá-la
comigo. Mandei para o teu apartamento algumas coisas tuas que
estavam na minha casa. A mais pequena recordação tua ou
contacto contigo deprimem-me, fazem com que não queira tocar-
te nem em nada relacionado contigo. Mas eu estou a falar com
lógica, e é muito provável que tu não estejas a compreender
uma palavra do que digo. Excepto talvez isto: não quero ter
nada a ver contigo.
Richard
Therese viu os lábios finos e macios de Richard ficarem
tensos, transformados num risco, como deviam ter estado
quando escrevera a carta, um risco que apesar de tudo não
impedia que se visse o minúsculo encrespamento tenso do lábio
superior - viu o rosto dele nitidamente durante um momento, e
depois a imagem apagou-se com um pequeno estremecimento que
lhe pareceu tão amortecido e distante dela como o clamor da
sua carta. Levantou-se, meteu a carta no sobrescrito e
começou a andar. Desejava que ele conseguisse, de facto,
expurgar-se
291
dela. Mas só era capaz de o imaginar a falar dela a outras
pessoas com aquela curiosa atitude de participação apaixonada
que lhe vira em Nova Iorque, antes de partir. Imaginou
Richard a dizer a Phil, quando se encontrassem ao balcão do
Palermo, imaginou-o a dizer aos Kelly. Mas não se importaria
absolutamente nada, fosse o que fosse que ele dissesse.
Pensou no que estaria Carol a fazer naquele momento, às dez
horas, onze em Nova Jérsia. A ouvir as acusações de algum
desconhecido? A pensar nela, ou não haveria tempo para isso?
Estava um belo dia, frio e quase sem vento, cintilante de
sol. Podia meter-se no carro e ir a qualquer lado. Há três
dias já que não o utilizava. De súbito, deu conta de que não
queria utilizá-lo. O dia em que o tirara da garagem e
atingira quase cento e cinquenta quilómetros na estrada recta
para Dell Rapids, exultante depois de ter recebido uma carta
de Carol, parecia-lhe agora muito distante.
O senhor Bowen, outro dos hóspedes, estava no alpendre da
frente quando ela regressou a casa da senhora Cooper. Estava
sentado ao sol, com as pernas embrulhadas numa manta e o boné
puxado para os olhos como se estivesse a dormir, mas gritou-
lhe:
- Olá! Como vai a minha pequena?
Ela parou e conversou um pouco com ele, perguntou- lhe como
ia a sua artrite, tentando ser tão cortês como Carol fora
sempre com a senhora French. Descobriram qualquer coisa que
os fez rir, e ela ainda sorria quando entrou no quarto. Mas a
vista do gerânio apagou-lhe o sorriso.
Regou-o e colocou-o na extremidade do parapeito, onde
apanharia sol durante mais tempo. Tinha manchas castanhas até
nas pontas das folhas mais pequeninas da parte de cima. Carol
comprara-lho em Des Moines, pouco antes de apanhar o avião. O
vaso de hera morrera já - o homem da loja avisara-as de que
era uma planta delicada, mas mesmo assim Carol quisera-o - e
Therese duvidava que o gerânio resistisse. No entanto, a
variada
292
colecção de plantas da senhora Cooper vicejava na sacada.
"Ando e torno a andar pela cidade, escreveu a Carol, "mas
gostaria de poder continuar a andar numa só direcção - leste
- e chegar finalmente junto de si. Quando pode vir, Carol? Ou
devo eu ir ao seu encontro? Sinceramente, não consigo
suportar ficar tanto tempo separada de si...
Recebeu a resposta na manhã seguinte. Um cheque caiu da carta
de Carol para o chão do corredor da senhora Cooper. O cheque
era de duzentos e cinquenta dólares. A carta de Carol - as
longas curvas mais soltas e leves, os traços dos tês
estendendo-se a todo o comprimento da palavra - dizia que Lhe
era impossível juntar-se-lhe nas próximas duas semanas, e
mesmo então não tinha a certeza de poder. O cheque destinava-
se à passagem de avião para Therese regressar a Nova Iorque e
a pagar a quem trouxesse o carro para o Leste.
"Sentir-me-ia mais tranquila se viesse de avião. Venha já,
não espere, era o último parágrafo.
Carol escrevera a carta com pressa, provavelmente aproveitara
um momento disponível para a escrever, mas nela também
transparecia frieza, e isso abalou-a. Saiu, caminhou
atordoada até à esquina e, apesar de tudo, meteu no correio a
carta que escrevera na noite anterior, uma carta pesada, com
três selos de correio por avião. Poderia ver Carol dentro de
doze horas. A ideia, porém, não a tranquilizou. Deveria
partir naquela manhã? Naquela tarde? Que tinham feito a
Carol? Ficaria ela furiosa se lhe telefonasse, telefonar-Lhe
precipitaria uma crise, empurrá-la-ia para uma derrota total?
Só quando estava sentada a uma mesa, algures, com café e sumo
de laranja à sua frente, olhou para a outra carta que tinha
na mão. No canto superior esquerdo decifrou com dificuldade a
escrita rabiscada. Era da senhora R. Robichek.
Querida Therese:
Muito obrigada pelo delicioso chouriço que recebi o mês
passado. É uma rapariga simpática e bondosa e estou contente
293
por ter a oportunidade de lhe agradecer muitas vezes. Foi
bonito da sua parte lembrar-se de mim quando estava a
fazer uma viagem tão grande. Gosto dos lindos postais
ilustrados, sobretudo do grande, de Sioux Falls. Como é, no
Dacota do Sul? Há montanhas e cowboys? Nunca tive
oportunidade de viajar, a não ser à Pensilvânia. É uma
rapariga com sorte, tão jovem, bonita e amável. Eu continuo a
trabalhar. No armazém está tudo na mesma. Tudo na mesma, mas
mais frio. Visite-me, por favor, quando regressar. Farei um
bom jantar para si, sem ser da charcutaria. Mais uma vez
obrigada pelo chouriço. Vivi dele durante vários dias, era
realmente uma coisa especial e boa. Com os melhores
cumprimentos da
Ruby Robichek
Therese desceu do tamborete, deixou algum dinheiro em cima do
balcão e saiu a correr. Correu o caminho todo para o Warrior
Hotel, pediu a ligação e esperou com o auscultador encostado
ao ouvido até ouvir o telefone tocar em casa de Carol.
Ninguém atendeu. Tocou vinte vezes, e continuou a não atender
ninguém. Pensou em telefonar ao advogado de Carol, Fred
Haymes. Decidiu não o fazer. Também não quis telefonar a
Abby.
Nesse dia choveu e Therese ficou deitada na cama, no seu
quarto, de olhos fixos no tecto, à espera das três horas,
quando resolvera telefonar de novo. A senhora Gooper levou-
lhe um tabuleiro com o almoço, por volta do meio-dia. A
mulher pensava que ela estava doente. Therese, porém, não
conseguiu comer e não soube que fazer à comida.
Às cinco horas continuava a tentar telefonar a Carol. Por fim
o telefone deixou de tocar e houve uma confusão na linha,
duas telefonistas a interrogarem-se uma à outra sobre a
chamada, e as primeiras palavras que Therese ouviu de Carol
foram: "Sim, com os diabos!" Sorriu e sentiu-se um pouco
aliviada.
- Está? - perguntou Carol com brusquidão.
- Está? - A ligação estava má. - Recebi a carta... a que
trazia o cheque. Que aconteceu, Carol?... O quê?
294
A voz atormentada de Carol repetiu, no meio do crepitar das
interferências:
- Penso que esta linha está sob escuta, Therese... Você está
boa? Vai regressar? Agora não posso demorar-me muito tempo a
falar.
Therese franziu a testa, sem encontrar palavras.
- Sim, suponho que posso partir hoje -. Depois não se
conteve: - Que se passa, Carol? Não posso, realmente,
suportar isto, não saber nada!
- Therese! - Carol arrastou a exclamação ao longo de todas as
letras de Therese, como se as apagasse.
- Regressa, para eu poder falar consigo?
Therese julgou ouvi-la suspirar, impacientemente.
- Mas eu preciso de saber agora. Pode ver-me quando eu
regressar?
- Domine-se, Therese.
Era desta maneira que elas falavam uma com a outra? Eram
estas as palavras que empregavam?
- Mas pode?
- Não sei.
Um arrepio subiu pelo braço de Therese até aos dedos que
seguravam o telefone. Tinha a impressão de que Carol a
detestava. Porque a culpa era sua, do seu estúpido descuido
com a carta que Florence encontrara. Acon tecera alguma coisa
e talvez Carol não pudesse, e nem sequer quisesse, voltar a
vê-la.
- Aquilo do tribunal já começou?
-Já acabou. Escrevi-lhe a esse respeito. Não posso falar mais
tempo. Adeus, Therese -. Carol esperou que ela respondesse. -
Tenho de me despedir.
Therese pôs devagarinho o telefone no descanso.
Parou no átrio do hotel, a olhar para os vultos indistintos
que se encontravam na recepção. Tirou a carta de Carol da
algibeira e voltou a lê-la, mas a voz de Carol estava mais
perto, a dizer impacientemente, "Regresse, para eu poder
falar consigo?". Tirou o cheque e olhou-o de novo, de pernas
para o ar, e rasgou-o lentamente. Deitou os pedaços de papel
num escarrador de latão.
Mas as lágrimas só brotaram quando chegou a casa
295
e voltou a ver o seu quarto, a cama de casal com uma cova no
meio, a rima de cartas de Carol na escrivaninha. Não podia
ficar ali nem mais uma noite. Certamente que Carol
Iria passar a noite a um hotel, e se a carta q mencionara não
chegasse amanhã partiria mesmo assim.
Tirou a mala de viagem do roupeiro e abriu-a em cima da cama.
O canto dobrado de um lenço branco espreitava de uma das
bolsas. Therese tirou-o e levou-o ao nariz, lembrando-se da
manhã em Des Moines em que Carol o pusera ali, com o borrifo
do perfume e o comentário trocista que fizera e que lhe
causara riso. Therese parou com a mão nas costas de uma
cadeira e a outra cerrada e a subir e descer sem sentido, e o
que sentia naquele momento era tão vago e indistinto como a
secretária e as cartas para que olhava de testa franzida, à
sua frente. Depois estendeu subitamente a mão para a carta
encostada aos livros, ao fundo da escrivaninha. Não reparara
nela antes, embora estivesse bem à vista. Abriu-a. Era a que
Carol mencionara. Era longa. Therese leu a primeira página e
depois voltou atrás e leu-a de novo.
Segunda feira.
Minha Querida
Nem sequer vou a tribunal. Esta manhã foi-me mostrado em
privado o que o Harge tencionava apresentar contra mim. Eles
têm uma gravação de algumas conversas - nomeadamente de
Waterloo - e será inútil tentar enfrentar um tribunal nestas
circunstâncias. Sentir-me-ia envergonhada, curiosamente não
por mim própria, mas pela minha filha.
Arrependi-me de aparecer. O importante agora é o que eu
tenciono fazer nofuturo, disseram os advogados. Disso
dependerá se voltarei a ver a minha filha, pois o Harge
obteve com facilidade a custódia completa dela. A questão era
se eu deixaria de a ver a si (e a outras como você, disseram.
). Não o disseram tão a vontade, mas disseram-no.
296
(Que futuro determinaram para mim se vão examiná-lo daqui a
seis meses?) Disse que deixaria de a ver. Não sei se
compreenderá, Therese, visto ser tão jovem e nunca ter tido
uma mãe que gostasse desesperadamente de si. Em troca desta
promessa, presenteiam-me com a sua maravilhosa recompensa o
privilégio de ver a minha filha durante algumas semanas do
ano.
Horas depois.
A Abby está aqui. Falámos de si, ela manda-lhe o seu amor,
como eu lhe mando o meu. A Abby recorda-me coisas que eu já
sei: que a Therese é muito jovem e me adora. Ela acha que eu
não lhe deveria enviar esta carta, mas sim dizer-lhe o que se
passa quando a Therese voltar. Acabámos de ter uma discussão
acalorada a esse respeito. Eu digo-lhe que ela não a conhece
tão bem como eu, e agora penso também que não me conhece tão
bem como a Therese, em certos aspectos, ou seja os das
emoções. Hoje não me sinto muitofeliz, minha muito querida.
Tenho estado a beber os meus uisques, e a Therese dir-me-ia
que me deprimem, eu sei. Mas depois das semanas passadas
consigo, não estava preparada para estes dias. Foram semanas
felizes, a Therese sabia-o melhor do que eu. Embora tudo
quanto conhecemos tenha sido apenas um principio. Tencionava
tentar dizer-lhe nesta carta que não sabe, sequer, o resto e
talvez nunca venha a saber, por não estar destinada a sabê-
lo. Nós nunca brigámos, nunca voltámos a juntar-nos sabendo
que não havia nada que desejássemos no Céu ou no Inferno que
nãofosse estarmos juntas. Se alguma vez me quis assim tanto,
não sei. Mas isso faz parte da situação, e nós não conhecemos
mais que um princípio. E por tão pouco tempo! Por esse motivo
terá raizes menosfundas em si. Diz que me ama seja eu como
for e mesmo quando fraquejo. Eu digo que a amo sempre, a
pessoa que é e a pessoa que se tornará. Di-lo-ia num tribunal
se isso tivesse significado alguma coisa para aquelas pessoas
ou pudesse, porventura, mudar alguma coisa, porque não são
essas as palavras de que tenho medo. O que quero dizer, minha
muito querida, é que lhe vou enviar esta carta e penso gue
297
compreenderá por que o faço, por que motivo disse ontem aos
advogados que não voltaria a vê-la e por que tive de lhes
dizer isso, e porque estaria a subestimá-la se pensasse que
não compreenderia e preferiria que adiasse.
Therese parou de ler, levantou-se e dirigiu-se devagar para a
escrivaninha. Sim, compreendia por que razão enviara Carol a
carta. Fora por amar a filha mais do que a amava a ela. E por
isso os advogados tinham conseguido vergá-la, obrigá-la a
fazer exactamente o que eles queriam. Therese não conseguia
imaginar Carol obrigada a fazer o que não queria. No entanto,
isso estava ali, escrito pelo seu próprio punho. Era uma
rendição, uma rendição que, Therese sabia-o, nenhuma situação
em que fosse ela que estivesse em jogo teria conseguido
arrancar de Carol. Durante um momento teve a fantástica
percepção de que Carol só lhe devotara uma fracção de si, e
de repente o mundo inteiro do último mês, como uma tremenda
mentira, estalou e quase ruiu. No instante seguinte, porém,
não acreditou nisso. Contudo, permanecia evidente o facto de
Carol ter escolhido a filha. Olhou para o sobrescrito da
carta de Richard, que ainda se encontrava em cima da
escrivaninha, e pensou em todas as palavras que queria dizer-
lhe e que nunca lhe dissera, sentiu-as subir torrencialmente
dentro de si. Que direito tinha ele de falar de quem ela
amava ou como amava? Que sabia ele dela? Que soubera alguma
vez?
exagerado e ao mesmo tempo minimizado (leu noutra página da
carta de Carol). Mas entre o prazer de um beijo e o prazer
daquilo que um homem e uma mulher fazem na cama parece-me
haver apenas uma gradação. Pergunto-me se esses homens
graduam o seu prazer em termos de os seus actos gerarem ou
não filhos, e se os consideram mais agradáveis no caso
afirmativo. No fim de contas, é uma questão de prazer, e de
que qualquer um pode debater o prazer de um sorvete versus o
de um jogo de futebol - ou de um quarteto de Beethoven versus
Mona Lisa?
298
Deixo isso ao cuidado dos filósofos. Mas a atitude deles era
a de quem achava que eu devo ser mais ou menos demente ou
cega (mais uma espécie de pena, pensei, pelo facto de uma
mulher razoavelmente atraente se encontrar presumivelmente
indisponivel para os homens). Alguém levou a “estética" para
a discussão, contra mim, é evidente. Perguntei se queriam
realmente debater isso - o que originou a única gargalhada de
todo o espectáculo. Mas eu não mencionei o ponto mais
importante, e ninguém se lembrou dele: que a relação entre
dois homens ou duas mulheres pode ser absoluta e perfeita, o
que não pode acontecer nunca entre homem e mulher, e talvez
algumas pessoas queiram precisamente isso, do mesmo modo que
outras querem aquela coisa mais inconstante e incerta que
acontece entre homens e mulheres. Ontem foi dito, ou pelo
menos insinuado, que o meu rumo presente me conduzirá às
profundezas do vicio e da degeneração humanos. É verdade, eu
afundei-me muito desde que eles tiraram a Therese de mim. É
verdade, se eu continuar assim, se for viciada, atacada e
nunca puder possuir uma pessoa tempo bastante, do que
resultaria que o conhecimento dessa pessoa terá de ser apenas
uma coisa superficial - isso será degeneração. Ou viver ao
arreio do que somos, o que é, por definição, degeneração.
Minha querida, desabafo tudo isto consigo (as linhas
seguintes estavam riscadas). Conduzirá sem dúvida alguma o
seu futuro melhor do que eu. Que eu seja um mau exemplo para
si. Se está agora magoada para além do que julga poder
suportar, e se isso a levar - agora ou um dia - a odiar-me -
e istofoi o que eu disse à Abby -, então não me lamentarei.
Eu posso ter sido aquela única pessoa que estava destinada a
conhecer, como diz, a única, e a Therese pode deitar tudo
isso para trás das costas. No entanto, se o não conseguir,
apesar de todo este fracasso e desolação de agora, eu sei que
o que disse naquela tarde é verdade: não tem de ser assim.
Quero falar consigo uma vez quando regressar, se estiver
disposta a isso, a não ser que pense que não pode.
As suas plantas continuam a medrar no alpendre das traseiras.
Rego-as todos os dias...
299
Therese não pôde ler mais. Do lado de fora da sua porta
ouviu passos descerem lentamente a escada e depois
atravessarem o corredor com mais confiança. Quando deixou de
os ouvir, abriu a porta e parou um instante no limiar, a
lutar contra o impulso de se ir embora dali e deixar ficar
todas as suas coisas. Depois desceu o corredor e foi bater à
porta da senhora Cooper, nas traseiras da casa.
Quando ela atendeu, Therese disse-lhe as palavras que
preparara sobre a sua saída naquela noite. Observou o rosto
da senhora Cooper, que não estava a ouvir e só reagia ao
aspecto do próprio rosto de Therese, de modo que se tornou
subitamente o seu próprio reflexo, a que não podia voltar as
costas.
- Bem, lamento, menina Belivet. Lamento se os seus planos
correram mal - respondeu, enquanto a sua cara mostrava apenas
surpresa e curiosidade.
Therese voltou para o seu quarto e começou a fazer a mala,
pondo no fundo os modelos de cartão, que dobrara para ficarem
planos, e depois os livros. Passados momentos, ouviu a
senhora Cooper aproximar-se devagar da sua porta, como se
transportasse alguma coisa, e pensou que se ela lhe trouxesse
outro tabuleiro de comida gritaria. A senhora Cooper bateu à
porta.
- Para onde enviarei o seu correio, minha querida, se vierem
mais cartas? - perguntou.
- Ainda não sei. Terei de lhe escrever a dizer -. Therese
sentiu-se estonteada e agoniada quando se endireitou.
- Não vai partir para Nova Iorque a esta hora da noite, pois
não? - A senhora Cooper chamava "noite" a tudo quanto passava
das seis da tarde.
- Não. Viajarei apenas uma curta distância -. Estava
impaciente por ficar só. Olhou para as mãos da senhora
Cooper, que fazia uma corcova no avental aos quadrados
cinzentos, debaixo do cós, para os sapatos macios de trazer
por casa, finos como papel de tão gastos naqueles soalhos,
que tinham percorrido anos e anos antes de ela ali chegar e
continuariam a percorrer os mesmos trilhos anos depois de ela
ter partido.
300
- Bem, não se esqueça de me mandar dizer como lhe correm as
coisas - recomendou a senhora Cooper.
- Não esquecerei.
Meteu-se no automóvel e dirigiu-se para um hoteldiferente
daquele de onde telefonara sempre a Carol. Depois saiu para
dar um passeio a pé, desassossegada, evitando todas as ruas
por onde passara com Carol. Podia ter ido para outra cidade,
pensou, e parou, indecisa, meio tentada a voltar para o
carro. Mas continuou a andar, pouco Lhe importando, na
realidade, o lugar onde estava. Caminhou até ter frio, e a
biblioteca era o lugar mais próximo para onde poderia ir e
esquecer. Passou pelo café-restaurante e olhou para o
interior. Dutch viu-a e, com o baixar de cabeça costumado,
como se tivesse de olhar por baixo de qualquer coisa para a
ver pela montra, sorriu e acenou-Lhe. Automaticamente, a mão
dela levantou-se e retribuiu o aceno, e de súbito Therese
pensou no seu quarto em Nova Iorque, com o vestido ainda no
sofá do estúdio e o canto da carpete levantado para trás. Se
ao menos pudesse, agora, estender a mão e endireitar a
carpete, pensou. Parou a olhar para a avenida estreita e de
aspecto sólido, com os seus candeeiros de iluminação pública
redondos. No passeio caminhava um único vulto, na sua
direcção. Therese subiu os degraus da biblioteca.
A menina Graham, a bibliotecária, cumprimentou-a como de
costume, mas Therese não entrou na sala de leitura principal.
Estavam lá duas ou três pessoas, entre elas o homem calvo,
com os óculos de aros pretos, que frequentava assiduamente a
mesa do meio - e quantas vezes se sentara ela naquela sala
com uma carta de Carol na algibeira? Com Carol ao seu lado.
Subiu as escadas, passou pela sala de história e arte do
primeiro andar e continuou a subir para o segundo andar, onde
nunca estivera antes. Ali havia uma única sala grande e com
ar empoeirado, coberta de estantes com portas de vidro à
volta das paredes, alguns quadros a óleo e bustos de mármore
em pedestais.
Sentou-se a uma das mesas e o corpo descontraiu-se
301
doridamente. Apoiou a cabeça nos braços, em cima da mesa, de
súbito lassa e sonolenta, mas logo a seguir empurrou a
cadeira para trás e levantou-se. Sentiu picadas de terror nas
raízes do cabelo. Até àquele momento fingira, de algum modo,
que Carol não partira, que quando voltasse para Nova Iorque a
veria e seria, teria de ser, como fora antes. Olhou
nervosamente em redor da sala, como se procurasse alguma
contradição, alguma compensação. Durante um momento teve a
sensação de que o seu corpo podia despedaçar-se, ou
arremessar-se através dos vidros das janelas compridas do
outro lado da sala. Fitou um busto pálido de Homero, as
sobrancelhas inquiridoramente erguidas delineadas por ténues
contornos de pó. Virou-se para a porta e reparou pela
primeira vez no retrato que se encontrava sobre o lintel.
Era apenas parecido, pensou, não exactamente igual, não,
igual não, mas o reconhecimento abalou-a até ao âmago de si
mesma, aumentava enquanto o olhava, e teve a certeza de que o
retrato era exactamente igual, só que mais pequeno, e que o
vira muitas vezes no corredor que conduzia à sala de música,
antes de o tirarem quando ela ainda era pequena - a mulher
sorridente, de vestido enfeitado de uma qualquer corte, a mão
pousada logo abaixo da garganta, a cabeça arrogante
semivoltada, como se o pintor a tivesse captado em movimento,
de tal modo que até as pérolas que lhe pendiam de cada orelha
pareciam mover-se. Conhecia as faces curtas, firmemente
modeladas, os lábios de coral, cheios, com um canto a sorrir,
as pálpebras zombeteiramente semicerradas, a fronte forte mas
não muito alta, que até no quadro parecia projectar-se um
pouco sobre os olhos vivos que tudo sabiam de antemão e se
compadeciam e riam ao mesmo tempo. Era Carol. Nos longos
momentos em que não conseguiu desviar os olhos do retrato, a
boca sorriu e os olhos olharam-na com zombaria, apenas com
zombaria, levantado o último véu, e não revelando mais nada
senão zombaria e exultação maldosa, a gloriosa satisfação da
traição consumada.
Com um ofego trémulo, Therese passou a correr por
302
debaixo do retrato e desceu a escada. No corredor de baixo,
a menina Graham disse-lhe qualquer coisa, fez uma pergunta
inquieta, e Therese ouviu a sua própria resposta como o
tartamudeio de um idiota, porque ainda estava ofegante,
sufocada, e foi assim que passou pela frente da bibliotecária
e saiu de rompante do edificio.
CAPÍTULO XXII
No meio do quarteirão, abriu a porta de um café, mas estavam
a tocar uma das canções que ouvira com Carol em todo o lado e
ela largou a porta e continuou a andar. A música vivia, mas o
mundo estava morto. E a canção morreria um dia, pensou, mas
como voltaria o mundo à vida? Como voltaria o seu sal?
Foi a pé para o hotel. No quarto, humedeceu uma toalha com
água fria, para pôr em cima dos olhos. O quarto estava
gelado, por isso despiu o vestido, descalçou-se e meteu-se na
cama.
No exterior, uma voz aguda, abafada pelo espaço vazio,
gritou: "Eh, Chicago Sun-Times!"
Depois silêncio, e ela a perguntar-se se deveria tentar
adormecer, enquanto a fadiga começava já a embalá-la
desagradavelmente, como uma embriaguez. Agora soavam vozes no
corredor, falando de uma mala extraviada e invadiu-a uma
sensação de inutilidade, ali deitada com a toalha de rosto
húmida, a cheirar a desinfectante, sobre os olhos inchados.
As vozes altercavam, e ela sentia a coragem esvair-se, e
depois a vontade, e, em pânico, tentou pensar no mundo
exterior, em Dannie e na senhora Robichek, em Frances Gotter
da Pelican Press, na senhora Osborne e no seu próprio
apartamento ainda em Nova Iorque, mas a sua mente recusava-se
a reconhecer ou a renunciar, a sua mente era agora una com o
seu coração e recusava renunciar a Carol. Os rostos flutuavam
juntos, como as vozes do outro lado da porta. Havia
305
também o rosto da Irmã Alicia, e da sua mãe. Havia o último
quarto em que dormira na escola. Havia a manhã em que se
esgueirara no dormitório, muito cedo, e correra pelo relvado
como um animal jovem enlouquecido pela Primavera, e vira a
Irmã Alicia a correr também, loucamente, pelo meio de um
campo, com os sapatos brancos a brilharem, intermitentemente,
através da erva alta, como patos - e só passados minutos é
que percebera que a freira corria atrás de um frango que
fugira. Havia o momento, em casa de uma amiga de sua mãe, em
que ela estendera a mão para uma fatia de bolo e fizera o
prato cair ao chão, e a mãe lhe dera uma bofetada na cara.
Viu o retrato no corredor da escola, agora respirando e
mexendo-se como Carol, trocista, cruel e sem querer saber
mais dela, como se tivesse sido cumprido algum objectivo
perverso e há muito destinado. O seu corpo ficou tenso de
terror; e a conversa prosseguia distraidamente no corredor,
caindo nos ouvidos com o som estridente e alarmante do gelo a
estalar algures num charco.
- Quer dizer que fez isso?
- Não...
- Se tivesse feito, a mala estaria lá em baixo na portaria...
- Oh, eu disse-lhe...
- Mas quer que eu perca uma mala para que você não perca o
seu emprego!
A mente de Therese atribuía significado às frases uma a uma,
como um tradutor lento que ia ficando para trás e, por fim,
se perdia.
Sentou-se na cama, com o fim de um sonho mau na cabeça. O
quarto estava quase escuro, as suas sombras escuras e sólidas
nos cantos. Therese estendeu a mão para o interruptor do
candeeiro e semicerrou os olhos para se proteger da luz.
Meteu uma moeda de vinte e cinco cêntimos no rádio da parede
e aumentou muito o volume, ao primeiro som que ouviu. A uma
voz de homem seguiu-se música, uma peça cadenciada que
parecia oriental e se contava entre as escolhidas para as
avaliações
306
da classe de música da escola. Num Mercado Persa lembrou-se
automaticamente, e o seu ritmo ondulante que sempre a fizera
pensar num camelo a andar, reconduziu-a à pequena sala do
lar, com ilustrações de óperas de Verdi nas paredes, por cima
do lambril alto. Ouvira ocasionalmente aquela música em Nova
Iorque, mas nunca a escutara com Carol, nunca a escutara nem
pensara nela desde que conhecera Carol, e agora a música era
como uma ponte alçando-se através do tempo sem tocar em nada.
Tirou da mesa-de-cabeceira o abre-cartas de Carol, a faca de
madeira que, não sabia como, fora parar à sua mala quando se
tinham preparado para partir, e apertou o cabo e passou o
polegar ao longo do gume, mas a sua realidade pareceu negar
Carol em vez de a afirmar, evocou-a menos do que a música que
nunca tinham ouvido juntas. Pensou em Carol com uma ponta de
ressentimento, pensou nela como um ponto dis tante de
silêncio e imobilidade.
Foi ao lavatório lavar a cara em água fria. Tinha de arranjar
um emprego amanhã, se pudesse. Fora essa a sua intenção ao
parar ali, trabalhar umas duas semanas e não chorar em
quartos de hotel. Mandaria à senhora Cooper o nome do hotel
como morada, por uma simples questão de cortesia. Era mais
uma das coisas que devia fazer, embora não o desejasse. E
perguntou-se se valeria a pena escrever de novo a Harkevy,
depois do bilhete cortês mas inexplícito que dele recebera em
Sioux Falls: "... Gostaria de voltar a vê-la quando voltasse
para Nova Iorque, mas é-me impossível prometer-lhe alguma
coisa para esta Primavera. Será boa ideia procurar o senhor
Ned Bernstein, o co-produtor, quando chegar. Ele saberá
dizer-lhe melhor do que eu o que está a acontecer nos
estúdios de desenho... Não, não voltaria a escrever a esse
respeito.
Em baixo, comprou um postal ilustrado do lago Michigan e,
deliberadamente, escreveu umas palavras bem-dispostas à
senhora Robichek. Soaram-Lhe a falso quando as escreveu, mas,
ao afastar-se do marco onde o metera, teve subitamente
consciência da energia do seu
307
corpo, da elasticidade do seu andar, da juventude do sangue
que lhe aquecia as faces à medida que ela estugava o passo, e
compreendeu que era livre e afortunada em comparação com a
senhora Robichek, e que aquilo que escrevera não era falso
porque ela podia fazê-lo tão bem, sem qualquer dificuldade.
Não estava tolhida nem doente, não tinha dores. Parou diante
da montra de uma loja e, rapidamente, pintou os lábios. Uma
rajada de vento obrigou-a a dar um passo, para não se
desequilibrar. Mas sentiu na frialdade do vento o seu núcleo
de Primavera, como se tivesse dentro um coração quente e
jovem. Na manhã seguinte começaria a procurar trabalho.
Poderia viver do dinheiro que Lhe restava e reservar o que
ganhasse para regressar a Nova Iorque. Podia telefonar ao seu
banco e pedir que lhe enviassem o resto do dinheiro,
evidentemente, mas não era isso que queria. Queria passar
duas semanas a trabalhar entre pessoas que não conhecia,
fazendo o género de trabalho que milhões de outros faziam.
Queria colocar-se na situação de outra pessoa qualquer.
Respondeu a um anúncio que pedia uma empregada recepcionista-
arquivista, dizia ser necessário saber um pouco de
dactilografia e pedia a comparência em pessoa. Pareceram
achar que ela servia, e Therese passou toda a manhã a
familiarizar-se com o arquivo. Mas um dos patrões apareceu
depois do almoço e disse que precisava de uma rapariga que
soubesse alguma estenografia. Therese não sabia. Na escola
tinham-lhe ensinado dactilografia, mas não estenografia, por
isso veio-se embora.
Nessa tarde leu outra vez as colunas de "Precisa-se". Depois
lembrou-se do letreiro que vira na cerca do madeireiro, não
muito longe do hotel. "Precisa-se rapariga para serviço geral
de escritório e armazém. Quarenta dólares por semana. " Se
não exigissem estenografia, ela poderia servir. Eram umas
três horas quando entrou na rua ventosa onde ficava o
madeireiro. Levantou a cabeça e deixou o vento soprar-lhe o
cabelo da cara para trás. E lembrou-se de Carol dizer: "Gosto
de a ver andar. Quando a vejo de longe, tenho a sensação de
que está a
308
andar na palma da minha mão e tem uns quinze centímetros de
altura. " Pareceu-lhe ouvir a sua voz suave sob a tagarelice
do vento, e tornou-se tensa de azedume e medo. Estugou o
passo, correu um pouco, como se assim pudesse fugir do
pântano de amor, ódio e ressentimento em que a sua mente de
súbito se atolara.
Havia um escritório de madeira a um lado do pátio do
madeireiro. Dirigiu-se lá e falou com um tal senhor
Zambrowski, um homem calvo e vagaroso, com uma corrente de
ouro que parecia curta para as dimensões do seu ventre. Antes
que Therese lhe falasse da estenografia, ele próprio disse
que não era necessária. Explicou que ficaria com ela à
experiência durante o resto da tarde e o dia seguinte.
Apareceram duas outras raparigas interessadas no emprego na
manhã seguinte, e o senhor Zambrowski tomou nota dos seus
nomes, mas antes do almoço disse a Therese que o lugar era
dela.
- Se não se importar de estar aqui às oito da manhã
- acrescentou.
- Não me importo -. Naquele dia chegara às nove, mas estaria
lá às quatro horas, se ele lho pedisse. O seu horário era das
oito da manhã às quatro e meia da tarde, e o seu trabalho
consistia simplesmente em conferir os envios da serração para
o madeireiro contra as encomendas recebidas, e em escrever
cartas de confirmação. Não via muita madeira da sua
secretária no escritório, mas o cheiro dela andava pelo ar,
fresco como se as serras tivessem acabado de expor a
superficie das tábuas de pinho brancas, e ouvia-as bater e
ressaltar quando as camionetas chegavam carregadas ao meio do
pátio. Gostava do trabalho, gostava do senhor Zam browski e
gostava dos lenhadores e camionistas que entravam no
escritório para aquecerem as mãos no lume. Um dos lenhadores,
um jovem atraente chamado Steve, com um restolho de barba
dourada, convidou-a duas vezes para almoçar na cafetaria do
fundo da rua. Pediu-lhe também que saísse com ele no sábado à
noite, mas Therese ainda não estava com vontade de passar um
serão inteiro com ele ou com qualquer outra pessoa.
309
Uma noite, Abby telefonou- lhe.
- Sabe que telefonei duas vezes para Dacota do Sul à sua
procura? - perguntou, irritada. - Que está aí a fazer? Quando
regressa?
A voz de Abby trouxe Carol tão perto como se fosse a ela que
Therese estava a ouvir. Fê-la sentir de novo aquele estranho
aperto na garganta e por momentos não conseguiu responder
nada.
- Therese?
- A Carol está aí consigo?
- Ela está em Vermont. Tem estado doente - respondeu a voz
rouca de Abby, e agora não havia nela nenhum sorriso. - Está
a descansar.
- Está tão doente que não me pode telefonar? Porque não mo
diz, Abby? Ela está a melhorar ou a piorar?
-A melhorar. Porque não tentou telefonar, para saber?
Therese apertou o telefone. Sim, porque não tentara? Porque
tinha estado a pensar num quadro em vez de em Carol.
- Que é que ela tem?
- Bonita pergunta essa! A Carol escreveu-Lhe a dizer o que
aconteceu, não escreveu?
- Escreveu.
- Bem, esperava que ela se refizesse como uma bola de
borracha? Ou que andasse atrás de si a procurá-la por toda a
América? Que julga que isto é, um jogo de es condidas?
Toda a conversa que tivera com Abby naquele almoço distante
se despenhou sobre Therese como uma avalancha. No ver de
Abby, fora tudo culpa dela. A carta que Florence encontrara
tinha sido apenas a asneira final.
- Quando regressa? - perguntou Abby.
- Dentro de dez dias, mais ou menos. A não ser que Carol
queira o carro mais cedo.
- Não quer. Ela não estará em casa dentro de dez dias.
Therese fez um esforço para perguntar:
310
- A respeito daquela carta... a que eu escrevi... sabe se a
encontraram antes ou depois?
- Antes ou depois de quê?
- De os detectives começarem a seguir-nos.
- Encontraram-na depois - respondeu Abby, suspirando.
Therese cerrou os dentes. Mas não importava o que Abby
pensava a seu respeito, só importava o que Carol pensava.
- Onde está ela, em Vermont?
- Se fosse a Therese, não Lhe telefonaria.
- Mas não é, e eu quero telefonar-lhe.
- Não telefone. Até aí, posso dizer-Lhe. Transmitir-lhe-ei
qualquer recado seu... que seja importante -. E seguiu-se um
silêncio frio. - A Carol deseja saber se precisa de dinheiro
e o que há com o carro.
- Não preciso de dinheiro nenhum, e o carro está bem -.
Therese tinha mais uma pergunta a fazer:
- Que sabe a Rindy disto?
- Sabe o que a palavra divórcio significa. E queria ficar com
a mãe. Isso também não facilita as coisas para a Carol.
"Muito bem, muito bem", teve Therese vontade de dizer. Não
incomodaria Carol telefonando-lhe, escrevendo-lhe ou
mandando-lhe quaisquer mensagens, a não ser a respeito do
carro. Tremia quando pôs o telefone no descanso. E levantou-o
imediatamente:
- Fala do quarto seiscentos e onze - disse. - Não quero
atender mais chamadas de longa distância. Absolutamente
nenhumas.
Olhou para o abre-cartas de Carol, em cima da mesa-de-
cabeceira, e ele agora significou Carol, a pessoa de carne e
sangue, a Carol que tinha sardas e uma pontinha de um dente
partida. Devia alguma coisa a Carol, à Carol pessoa? Não
brincava Carol com ela, como Richard tinha dito? Lembrou-se
das palavras dela: "Quando se tem um marido e uma filha é
diferente. " Franziu a testa ao abre-cartas, sem compreender
como se tornara, de repente, apenas um abre-cartas, por que
razão lhe era indiferente, a ela, guardá-lo ou deitá-lo fora.
311
Dois dias depois, chegou uma carta de Abby com um cheque
pessoal de cento e cinquenta dólares, que ela Lhe recomendava
que "esquecesse". Falara com Carol, informava, e ela dissera
que gostaria de ter notícias suas. Por isso mandava a morada
onde ela estava. Era uma carta bastante fria, mas não havia
frieza alguma no gesto do cheque. Não tinha sido aconselhado
por Carol, Therese sabia-o.
"Muito obrigada pelo cheque", escreveu Therese em resposta.
"É muitíssimo simpático da sua parte, mas não o utilizarei e
não preciso dele. Pede-me que escreva a Carol. Penso que não
posso ou que não devo. "
Encontrou Dannie sentado no átrio do hotel, uma tarde, quando
regressou do trabalho. Custou-lhe a acreditar que fosse ele,
o jovem de olhos escuros que se levantou, sorrindo, da
cadeira e caminhou devagar ao seu encontro. Depois reparou no
seu cabelo preto solto, que a gola levantada do sobretudo
despenteava um pouco mais ainda, e no sorriso rasgado e
simétrico, e ele tornou-se- lhe tão familiar como se o
tivesse visto na véspera.
- Olá, Therese - disse ele. - Surpreendida?
Oh, tremendamente! - Já desistira de voltar a saber de si.
Não me escreveu nem uma palavra, em duas semanas -.
Lembrou-se de que ele dissera que deixaria Nova Iorque no
dia 28, e fora no dia 28 que ela partira para Chicago.
- Idem comigo, a seu respeito - respondeu Dannie, rindo. -
Tive um atraso em Nova Iorque. Acho que isso foi uma sorte,
porque tentei telefonar-lhe e a sua senhoria deu-me a sua
morada -. Os dedos de Dannie agarravam-Lhe o cotovelo com
firmeza. Caminhavam os dois lentamente na direcção dos
elevadores. - Está com um aspecto maravilhoso, Therese.
- Acha? Não calcula como estou satisfeita por vê- lo -. Havia
um elevador aberto à frente deles. Quer subir?
- Vamos comer qualquer coisa. Ou é demasiado cedo? Hoje não
almocei.
- Então não é, com certeza, demasiado cedo.
312
Foram a uma casa de que Therese ouvira falar, especializada
em bifes. Dannie até pediu cocktails, embora não costumasse
beber.
- Está aqui sozinha? - perguntou. - A sua senhoria de Sioux
Falls disse- me que tinha partido sozinha.
- Afinal, a Carol não pôde vir.
- Ah! E a Therese decidiu ficar mais tempo?
- Sim.
- Até quando?
- Até mais ou menos agora. Regresso na próxima semana.
Dannie escutava-a com os ternos olhos escuros fitos no rosto
dela, sem qualquer surpresa.
- Porque não viaja para oeste em vez de para leste e não
passa um tempo na Califórnia? Tenho um emprego em Ockland.
Preciso de lá estar depois de amanhã.
- Que tipo de emprego?
- Investigação... precisamente o que eu queria. Saí-me melhor
do que esperava nos meus exames.
- Foi o primeiro do curso?
- Não sei. Duvido. A classificação não foi feita desse modo.
Mas não respondeu à minha pergunta.
- Quero voltar para Nova Iorque, Dannie.
- Ah, - Sorriu, a olhar para o cabelo, para os olhos dela, e
reparou que nunca a vira com tanta maquilhagem. - Parece
adulta, de repente - observou.
- Mudou de penteado, não mudou?
- Um pouco.
-Já não parece assustada. Ou sequer grave.
- Isso agrada-me -. Sentia-se tímida com ele, mas ao mesmo
tempo, sem saber como, íntima, com uma intimidade cheia de
algo que nunca sentira com Richard. Algo indeciso, incerto,
que lhe agradava. Um pouco de sal, pensou. Olhou para as mãos
de Dannie, em cima da mesa, para o músculo forte protuberante
na base do polegar. Lembrou-se da sensação das mãos dele nos
seus ombros, naquele dia no quarto dele. A recordação era
agradável.
- Sentiu um bocadinho a minha falta, não sentiu, Terry?
313
- Claro que sim.
- Alguma vez pensou que podia interessar-se um pouco por mim?
Tanto quanto se interessou pelo Richard, por exemplo? -
perguntou, com uma nota de surpresa na voz, como se achasse a
pergunta fantástica.
- Não sei - respondeu Therese muito depressa.
- Mas não continua a pensar no Richard, pois não?
- Deve saber que não.
- Quem é, então? Carol?
Sentiu-se subitamente nua, ali sentada defronte dele.
- Sim. Era.
- Mas agora não é?
Therese ficou estupefacta por ser capaz de dizer as palavras
sem qualquer surpresa, sem nenhuma atitude:
- Não. que... não posso falar a ninguém a esse respeito,
Dannie - concluiu, e a voz soou profunda e serena aos seus
ouvidos, como se fosse a voz de outra pessoa.
- Não quer esquecer, se já é passado?
- Não sei. Não sei exactamente o que quer dizer com isso.
- Quero dizer, está arrependida?
- Não. Voltaria a fazer o mesmo? Sim.
- Quer dizer, com outra pessoa qualquer, ou com ela?
- Com ela - respondeu Therese. O canto da sua boca arqueou-se
para cima, num sorriso.
- Mas o fim foi um fiasco.
- Sim. Quis dizer que voltaria a passar pelo fim, também.
- E ainda está a passar por ele.
Therese não disse nada.
- Voltará a vê-la? Importa- se de eu lhe fazer todas estas
perguntas?
- Não me importo. Não, não voltarei a vê-la. Não quero.
- Mas outra pessoa qualquer?...
- Outra mulher? - Therese abanou a cabeça.
- Não.
314
Dannie olhou-a e sorriu, devagar.
- É isso que importa. Ou melhor, é isso que faz com que não
importe.
- Que quer dizer?
- Quero dizer que é muito nova, Therese. Mudará. Esquecerá.
Ela não se sentia nova.
- O Richard falou consigo?
- Não. Suponho que quis falar, uma noite, mas eu cortei antes
de ele começar.
Therese sentiu um sorriso amargo na boca, puxou uma última
fumaça do cigarro quase consumido e apagOu-O.
- Desejo que ele encontre alguém que o ouça. Precisa de uma
plateia.
- Sente-se rejeitado. O seu ego sofre. Mas não imagine,
nunca, que eu sou como o Richard. Penso que as vidas das
pessoas pertencem a elas próprias.
Therese lembrou-se de repente de uma coisa que Carol dissera
uma vez: todo o adulto tem segredos. Disse-o tão casualmente
como dizia tudo e ficou-lhe gravado no cérebro tão
indelevelmente como a morada que ela escrevera no talão de
venda do Frankenberg's. Sentiu um npulso para dizer o resto a
Dannie, acerca do retrato da biblioteca, do retrato na
escola. E acerca da Carol que não era um retrato, mas uma
mulher com uma filha e um marido, com sardas nas mãos, o
hábito de praguejar, de ficar melancólica inesperadamente, e
o mau hábito de fazer a sua vontade. Uma mulher que passara
por muito mais em Nova Iorque do que ela no Dacota do Sul.
Olhou para os olhos de Dannie, para o seu queixo com a leve
fenda. Sabia que até àquele momento estivera sob uma espécie
de encantamento que a impedia de ver alguém no mundo a não
ser Carol.
- Em que está a pensar? - perguntou ele.
- No que você disse uma vez em Nova Iorque, acerca de usar as
coisas e deitá-las fora.
- Ela fez-lhe isso?
- Eu é que farei - respondeu Therese, sorrindo.
315
- Então encontre alguém que nunca queira deitar fora.
- Que não se gaste.
- Escreve-me?
- Claro.
- Escreva-me daqui a três meses.
- Três meses? - perguntou Therese, mas de repente compreendeu
o que ele queria dizer. - Antes não?
- Não -. Ele olhava-a firmemente. - É um prazo justo, não é?
- É. Está bem. Prometo.
- Prometa-me outra coisa: não trabalhe amanhã, para poder
estar comigo. Estou livre até amanhã à noite.
- Não posso, Dannie. Tenho que fazer... e além disso preciso
de dizer ao meu patrão que me vou embora para a semana -. Ela
sabia que não eram bem estas as razões. E talvez Dannie
ficasse também a sabê-lo, olhando-a. Não queria passar o dia
seguinte com ele, seria demasiado intenso, ele recordá-la-ia
muito de si mesma e ela ainda não estava preparada.
Dannie foi ao escritório dela no dia seguinte, ao almoço.
Tinham tencionado almoçar juntos, mas em vez disso caminharam
e conversaram na Lake Shore Drive durante a hora inteira.
Nessa noite, às nove, Dannie meteu-se num avião, rumo a
oeste.
Oito dias depois, Therese partiu para Nova Iorque. Tencionava
mudar-se de casa da senhora Osborne o mais depressa possível.
Queria procurar algumas das pessoas de que fugira no último
Outono. E haveria outras pessoas, novas pessoas. Frequentaria
a escola nocturna, naquela Primavera. E queria mudar
completamente de guarda-roupa. Tudo quanto tinha agora, as
roupas que se lembrava de ter no seu roupeiro em Nova Iorque,
pareciam-lhe juvenis, como roupas que lhe tivessem pertencido
há anos. Em Chicago percorrera as lojas e ansiara por roupas
que ainda não podia comprar. Agora apenas se podia dar ao
luxo de um novo corte de cabelo.
316
CAPíTULO XXIII
Therese entrou no seu antigo quarto e a primeira coisa em que
reparou foi no canto da carpete, que estava direito. E em
como o quarto parecia pequeno e trágico. E, contudo, seu; o
minúsculo rádio na estante e as almofadas no sofá-cama, tão
pessoal como uma assinatura que tivesse feito há muito tempo
e esquecido. Como os dois ou três modelos de cenários
pendurados nas paredes e para os quais evitou deliberadamente
olhar.
Foi ao banco, levantou cem dos seus últimos duzentos dólares
e comprou um vestido preto e um par de sapatos.
Amanhã, pensou, telefonaria a Abby e combinaria qualquer
coisa a respeito do carro de Carol; hoje, não.
Nessa mesma altura, marcou uma entrevista com Ned Bernstein,
o co- produtor da peça inglesa para a qual Harkevy faria os
cenários. Levou três dos modelos que fizera no Oeste e também
as fotografias de Small Rain, para lhe mostrar. Um emprego
como aprendiza de Harkevy não lhe renderia o suficiente para
viver, mas havia outras fontes, outros armazéns onde poderia
trabalhar. Havia a televisão, por exemplo.
O senhor Bernstein olhou indiferentemente para o trabalho
dela. Therese disse que ainda não falara com o senhor Harkevy
e perguntou-lhe se sabia se ele aceitava ajudantes. O senhor
Bernstein respondeu-lhe que isso era com Harkevy, mas, tanto
quanto era do seu conhecimento, ele não precisava de mais
ajudantes. O senhor
317
Bernstein também não sabia de qualquer outro estúdio de
cenários que precisasse de alguém naquele momento. E Therese
pensou no vestido de sessenta dólares. E nos cem que lhe
restavam no banco. E tinha dito à senhora Osborne que podia
mostrar o apartamento quando desejasse, pois ia-se mudar. Não
fazia ainda nenhuma ideia para onde. Levantou-se para sair e
agradeceu ao senhor Bernstein por, apesar de tudo, ter visto
o seu trabalho. Fê-lo com um sorriso.
- A respeito da televisão? - perguntou-lhe o senhor
Bernstein. - Já tentou começar por aí? É mais fácil abrir
caminho por lá.
- Ao fim desta tarde vou falar com alguém em Dumont -. O
senhor Donohue dera-lhe dois nomes no mês de Janeiro passado.
O senhor Bernstein deu-lhe mais alguns.
Depois Therese telefonou para o estúdio de Harkevy. Ele
disse-lhe que ia sair naquele momento, mas que ela podia
deixar os modelos no seu estúdio e ele os veria na manhã
seguinte.
- A propósito, haverá um cocktail arty no St. Regis em
homenagem a Genevieve Granell amanhã por volta das cinco da
tarde. Se quiser passar por lá - disse Harkevy com o seu
sotaque em staccato que tornava a sua voz tão precisa como
matemática -, pelo menos teremos a certeza de nos vermos
amanhã. Pode ir?
- Posso. Gostaria muito. Onde, no St. Regis? Ele leu o
convite: Suite D, das cinco às sete.
- Eu estarei lá por volta das seis horas. Therese saiu da
cabina telefónica tão feliz como se Harkevy tivesse acabado
de lhe dar sociedade. Percorreu a pé os doze quarteirões até
ao seu estúdio e entregou os modelos a um jovem que lá
estava, um jovem diferente do que vira em Janeiro. Harkevy
mudava de ajudantes com frequência. Therese olhou
reverentemente a sua sala de trabalho, antes de fechar a
porta, Talvez ele a chamasse em breve para trabalhar ali.
Talvez ela o soubesse no dia seguinte.
Entrou num drugstore na Broadway e ligou para Nova
318
Jérsia, para Abby. A voz de Abby pareceu-lhe completamente
diferente do que lhe soara em Chicago. Carol devia estar
muito melhor, pensou Therese. Mas não perguntou por ela.
Telefonava para combinar a respeito do carro.
- Posso ir buscá-lo, se quiser - disse Abby. - Mas porque não
telefona à Carol para tratar disso? Sei que ela gostaria de
ter notícias suas -. Abby estava, na realidade, a recuar em
toda a linha.
- Bem... - Therese não lhe queria telefonar. Mas de que tinha
medo? Da voz de Carol? Da própria Carol?
- Pois sim. Eu levo-lhe o carro, a não ser que ela não queira
que eu o faça. Nesse caso, voltarei a telefonar-lhe.
- Quando? Esta tarde?
- Sim. Daqui a poucos minutos.
Therese foi até à porta do drugstore e parou aí alguns
momentos, a olhar para o anúncio dos cigarros Camel, com um
rosto gigantesco a soprar anéis de fumo que pareciam enormes
donuts, para os táxis achatados e de aspecto carrancudo que
manobravam como tubarões na hora de ponta depois da matinée e
para a miscelânea de tabuletas de restaurantes e bares,
toldos, degraus da frente e montras, para aquela confusão
castanho-avermelhada da rua transversal igual a centenas de
outras ruas de Nova Iorque. Lembrou-se de ter caminhado uma
vez por uma rua das 80 Ocidentais, as fachadas de arenito
pardo, camadas e camadas de humanidade, vidas humanas, umas
começando e outras terminando ali, e recordou a sensação de
opressão que isso lhe causara, e como apressara o passo para
chegar à avenida. Isso fora apenas há dois ou três meses.
Agora o mesmo tipo de rua enchia-a de uma excitação tensa,
dava-lhe vontade de mergulhar a cabeça nela, meter pelo
passeio com todas as suas tabuletas e toldos de teatros, e
pessoas apressadas e aos encontrões. Virou-se e voltou para
trás, para a cabina telefónica.
Um momento depois, ouviu, a voz de Carol.
- Quando chegou, Therese?
Um choque breve e trémulo, ao primeiro som da sua voz, e
depois nada.
319
- Ontem.
- Como está? Ainda tem o mesmo aspecto? - Carol parecia
reprimida, como se estivesse alguém com ela, mas Therese
tinha a certeza de que não estava ninguém.
- Não exactamente. E a Carol?
Carol não respondeu logo.
- Parece diferente.
- Estou diferente.
- Vê-la-ei? Ou não quer? Uma vez -. Era a voz de Carol, mas
as palavras não eram as dela. As palavras eram hesitantes e
cautelosas. - Que diz a esta tarde? Tem o carro?
- Esta tarde tenho de me encontrar com umas pessoas. Não
terei tempo -. Quando é que recusara alguma vez Carol quando
ela queria vê-la? - Quer que lhe leve aí o carro, amanhã?
-Não, eu posso ir buscá-lo. Não estou inválida. O carro
portou-se bem?
- Está em boa forma. Não tem arranhões em lado nenhum.
- E você? - perguntou Carol, mas Therese não lhe respondeu. -
Posso vê-la amanhã? Dispõe de algum tempo de tarde?
Combinaram encontrar-se no bar da Ritz Tower, na Rua 57, às
quatro e meia, e depois desligaram.
Carol chegou um quarto de hora atrasada. Therese esperava-a
sentada a uma mesa de onde podia ver as portas de vidro de
acesso ao bar, e por fim viu Carol empurrar uma das portas e
a tensão desfez-se nela como uma pequena dor surda. Carol
trazia o mesmo casaco de peles e os mesmos sapatos de camurça
preta que usara no dia em que ela a vira pela primeira vez,
mas agora um lenço vermelho que realçava a cabeça loura
levantada. Viu o rosto de Carol, mais magro, modificar-se de
surpresa, com um pequeno sorriso, quando a descobriu.
- Olá - cumprimentou Therese.
- Ao princípio nem sequer a reconheci - disse Carol, e ficou
um momento parada ao lado da mesa, a olhá-la, antes de se
sentar. - Foi amável da sua parte querer ver-me.
320
- Não diga isso.
O empregado veio e Carol pediu chá. Therese pediu o mesmo,
maquinalmente.
- Odeia-me, Therese?
- Não -. Therese aspirou levemente o perfume de Carol, aquele
doce perfume familiar que se tornara agora estranhamente
desconhecido porque não evocava o que em tempos evocara.
Pousou a carteira de fósforos que estivera a esmagar na mão.
- Como poderia eu odiá-la, Carol?
- Creio que poderia. Odiou durante um tempo, não odiou -
perguntou Carol, como se lhe apresentasse um facto.
- Odiá-la? Não -. Não inteiramente, podia ter dito. Mas sabia
que os olhos de Carol estavam a ler isso no seu rosto.
- E agora... está toda adulta... com cabelo e roupas de
adulta.
Therese olhou-a nos seus olhos cinzentos, agora mais sérios e
algo melancólicos também, apesar da segurança da cabeça
altiva, e baixou os seus, incapaz de os sondar. Continuava
bela, pensou com uma súbita agonia de perda.
- Aprendi umas coisas - disse.
- Quais?
- Que eu... - Calou-se, com os pensamentos repentinamente
bloqueados pela recordação do retrato de Sioux Falls.
- Sabe, está com muito bom aspecto - disse Carol.
- Desabrochou de repente. Foi esse o significado de se
separar de mim?
- Não - respondeu Therese muito depressa. Olhou de testa
franzida para o chá que não queria. A palavra "desabrochou"
dita por Carol fizera-a pensar em nascer e isso embaraçou-a.
Sim, ela nascera desde que deixara Carol. Nascera no instante
em que vira o retrato na biblioteca, e o seu grito sufocado
de então fora como o primeiro grito de um bebé ao ser trazido
para o mundo contra a sua vontade. Olhou para Carol. - Havia
um retrato na biblioteca de Sioux Falls - disse, e depois
321
contou-Lhe o que tinha acontecido, simplesmente e sem
emoção, como uma história que se tivesse passado com outra
pessoa.
E Carol escutou-a, sem nunca desviar os olhos dela. Observou-
a como se estivesse a observar de longe alguém que não podia
ajudar.
- Estranho - disse baixo. - E aterrador.
- Foi -. Therese sabia que Carol compreendia. Viu também
comiseração nos olhos dela, e sorriu. Mas Carol não retribuiu
o sorriso e continuou a fitá-la.
- Em que está a pensar? Carol tirou um cigarro.
- Que lhe parece? Naquele dia no armazém. Therese sorriu de
novo.
- Foi tão maravilhoso quando se dirigiu para mim. Porque se
dirigiu para mim?
Carol não respondeu logo.
- Por uma razão tão estúpida! Porque você era a única
rapariga que não estava numa azáfama dos diabos. E também
porque não vestia uma bata, lembro-me disso.
Therese desatou a rir. Carol sorriu apenas, mas pareceu de
súbito o que era, fora, em Colorado Springs, antes que alguma
coisa tivesse acontecido. Therese lembrou-se, de repente, do
castiçal que tinha na mala de mão.
- Trouxe-lhe isto - disse, estendendo-lho. - Encontrei-o em
Sioux Falls.
Therese limitara-se a enrolá-lo num pouco de papel de seda.
Carol desembrulhou-o em cima da mesa.
- Acho-o encantador - disse. - Parece-se exactamente consigo.
- Obrigada. Eu pensei que se parecia consigo -. Therese olhou
para a mão de Carol, o polegar e a ponta do dedo médio
pousados no rebordo delgado do castiçal, como os vira
segurando os pires das chávenas de café no Colorado, em
Chicago e em lugares esquecidos. Fechou os olhos.
- Amo-a - disse Carol.
Therese abriu os olhos, mas não os levantou.
322
- Sei que não sente o mesmo por mim. Pois não?
Therese teve uma vontade repentina de a desmentir
mas podia fazê-lo? Não sentia o mesmo.
- Não sei, Carol.
- Isso é a mesma coisa - a voz de Carol era suave,
expectante, esperava afirmação ou negação.
Therese olhou para o triângulo de torrada no prato entre as
duas. Pensou em Rindy. Adiara perguntar por ela.
- Tem visto a Rindy?
Carol suspirou. Therese viu a sua mão recuar do castiçal.
- Sim, vi-a no domingo passado, cerca de uma hora. Suponho
que ela pode vir visitar-me uma ou duas
tardes por ano. Muito de longe em longe. Perdi-a
completamente.
- Pensei que tinha dito que a poderia ver algumas
semanas por ano.
- Bem, aconteceu algo mais... privadamente, entre o
Harge e eu. Recusei-me a fazer uma quantidade de promessas
que ele me pediu que fizesse. E a família também
se meteu. Recusei-me a viver segundo uma lista de promessas
idiotas elaboradas por eles como um rol de delitos, mesmo que
daí resultasse isolarem a Rindy de mim
como se eu fosse um papão. E resultou. O Harge disse
tudo aos advogados... o que quer que eles ainda não
soubessem.
- Meu Deus - murmurou Therese. Imaginava o
que seria Rindy de visita uma tarde, acompanhada por
uma preceptora vigilante prevenida contra Carol, a
quem fora provavelmente recomendado que não perdesse a
criança de vista, e Rindy que não tardaria a dar-se
conta de tudo isso. Que prazer poderia haver numa visita
assim? Harge... Therese não queria dizer o seu nome.
- Até o tribunal foi mais generoso - observou.
- Na realidade não prometi muito no tribunal, também recusei,
lá.
Therese sorriu um pouco, mau grado seu, porque estava
satisfeita por Carol ter recusado, por ainda ter orgulho para
isso.
323
- Mas não se tratou de um tribunal, compreende, apenas de
uma discussão numa mesa redonda. Sabe como fizeram aquela
gravação em Waterloo? Pregaram uma cavilha na parede,
provavelmente mais ou menos assim que lá chegámos.
- U ma cavilha?
- Lembro-me de ter ouvido alguém martelar qualquer coisa.
creio que foi quando tínhamos acabado no chuveiro. Lembra-se?
- Não.
Carol sorriu.
- Uma espécie de cavilha que capta som como um microfone. Ele
estava no quarto ao lado do nosso.
Therese não se lembrava de ouvir martelar, mas a violência de
tudo quanto se passara voltou, demolidora, destruidora.
-Já acabou - disse Carol. - Sabe, quase preferiria nunca mais
ver a Rindy. Não pedirei, jamais, para a ver se ela deixar de
me querer ver. Deixarei isso à vontade dela.
- Não consigo imaginá-la a não a querer ver.
Carol ergueu as sobrancelhas.
- Existe alguma maneira de prever o que o Harge lhe pode
fazer?
Therese ficou calada. Desviou os olhos de Carol e viu um
relógio. Eram cinco e trinta e cinco. Deveria chegar ao
cocktail antes das seis, pensou, se fosse. Vestira-se para
ir, o vestido preto novo e um lenço de pescoço branco, os
sapatos novos e as luvas pretas novas. Mas como as roupas lhe
pareciam agora sem importância! Pensou, inesperadamente, nas
luvas de lã verdes que a Irmã Alicia lhe dera. Estariam ainda
embrulhadas no velho papel de seda, no fundo do seu baú?
Queria deitá-las fora.
- Nós curamo-nos das coisas - disse Carol.
- É verdade.
- O Harge e eu vamos vender a casa, e eu arranjei um
apartamento na Avenida Madison. E um emprego, por muito que
lhe custe a acreditar. Vou trabalhar para uma casa de
mobiliário da 4. a Avenida, como vendedora.
324
Alguns dos meus antepassados devem ter sido marceneiros -.
Olhou para Therese e continuou: - Seja como for, é um modo de
ganhar a vida, e eu vou gostar. O apartamento é bonito e
grande, suficientemente grande para duas. Estava com
esperança de que quisesse morar comigo, mas suponho que não
quer.
O coração de Therese deu um salto, exactamente como naquele
dia em que Carol lhe telefonara para o armazém. Alguma coisa
reagiu nela contra sua vontade, a fez sentir-se
repentinamente feliz e orgulhosa. Estava orgulhosa por Carol
ter tido a coragem de fazer tais coisas, de dizer tais
coisas, certa de que a teria sempre. Recordou a coragem de
Carol quando defrontava o detective na estrada rural. Engoliu
em seco, tentou engolir o bater descompassado do seu coração.
Carol nem sequer olhara para ela. Estava a esmagar a ponta do
cigarro no cinzeiro. Viver com Carol? Tempos houvera em que
isso tinha sido impossível e o que ela mais desejara no
mundo. Viver com ela e partilhar tudo com ela, Verão e
Inverno; Passearem e lerem juntas, viajarem juntas. E
recordou os dias de ressentimento contra Carol, em que a
imaginara a pedir-Lhe aquilo e ela a responder que não.
- Quereria? - Carol olhou-a.
Therese sentia-se equilibrada num gume fino. O ressentimento
já desaparecera. Agora não restava mais que a decisão, um fio
fino suspenso no ar sem nada de qualquer dos lados a empurrá-
la ou a puxá-la. Mas de um lado estava Carol e do outro um
grande ponto de interrogação. De um lado Carol, e agora seria
diferente porque estavam ambas diferentes. Seria um mundo tão
desconhecido como o acabado de passar fora quando nele
entrara. Com a diferença de não haver agora quaisquer
obstáculos. Pensou no perfume de Carol, que naquele dia não
significava nada. Um vazio para ser preenchido, diria Carol.
- Bem... - disse Carol, sorrindo, impaciente.
- Não - respondeu Therese. - Não, acho que não"Porque me
voltaria a trair. " Fora isso que pensara em Sioux Falls,
isso o que tencionara escrever ou dizer. Mas
325
Carol não a traíra. Carol amava-a mais do que amava a sua
filha. Isso fazia parte da razão por que recusara fazer as
promessas. Agora estava a arriscar, como arriscara na
probabilidade de obter tudo do detective naquele dia, na
estrada... e então perdera, também. Viu o rosto de Carol
mudar, viu os pequenos sinais de espanto e choque tão subtis
que talvez só ela no mundo inteiro pudesse notar, e durante
um momento não foi capaz de pensar.
- É essa a sua decisão? - disse Carol.
- É.
Carol olhou fixamente para o seu isqueiro, em cima da mesa.
- Então, pronto.
Therese olhou para ela, querendo ainda estender as mãos,
tocar no cabelo de Carol e apertá-lo com força com todos os
seus dedos. Não ouvira Carol a indecisão na sua voz?
Apeteceu-lhe subitamente fugir, sair rapidamente pela porta
da frente e correr pelo passeio abaixo. Faltava um quarto
para as seis.
- Tenho de ir a um cocktail esta tarde. importante, por causa
de um possível emprego. O Harkevy estará lá -. Harkevy dar-
lhe-ia qualquer tipo de trabalho, tinha a certeza.
Telefonara-lhe ao meio-dia, para saber a sua opinião sobre os
modelos que deixara no seu estúdio. Ele tinha gostado de
todos. - Também arranjei uma coisa na televisão, ontem.
Carol levantou a cabeça, sorrindo.
- A minha pequena pessoa importante. Agora tem todo o ar de
quem poderá fazer alguma coisa boa. Sabe que até a sua voz
está diferente?
- Está? - Therese hesitou, achando cada vez mais dificil
continuar ali sentada. - Carol, podia ir ao cocktail, se
quisesse. É uma festa grande em duas salas de um hotel, para
dar as boas-vindas à mulher que vai ser a protagonista da
peça do Harkevy. Sei que não se importariam se eu levasse
alguém -. E não compreendeu por que estava a convidá-la, por
que haveria Carol, agora, de ter mais vontade do que ela de
ir a um cocktail.
326
Carol abanou a cabeça.
- Não, minha querida, obrigada. melhor ir sozinha. Na
verdade, tenho um encontro no Elysée daqui a um minuto.
Therese reuniu as luvas e a mala no colo. Olhou para as mãos
de Carol, para as sardas claras que lhe salpicavam as costas
- a aliança de casamento desaparecera, agora -, e para os
seus olhos. Teve a sensação de que nunca mais a veria. Dentro
de dois minutos, ou menos, despedir-se-iam no passeio.
- O carro está lá fora. No passeio defronte, à esquerda. E
aqui estão as chaves.
- Eu sei, vi-o.
- Vai continuar aqui? Eu pago a despesa.
- Não, eu pago. Vá, se tem de ir.
Therese levantou-se. Não podia deixar Carol ali sentada à
mesa onde estavam as suas duas chávenas, com as cinzas dos
seus cigarros à frente.
- Não fique. Saia comigo.
Carol levantou a cabeça com uma espécie de surpresa
indagadora no rosto.
- Está bem - respondeu. - Ficaram umas coisas suas lá em
casa. Quer que...
- Não tem importância - interrompeu Therese sem a deixar
acabar.
- E as suas flores. As suas plantas -. Carol estava a pagar a
conta que o empregado trouxera. - Que aconteceu às flores que
lhe dei?
- As flores que me deu... morreram.
Os olhos de Carol fitaram os dela durante um segundo, e
depois Therese afastou os seus.
Despediram-se no passeio, à esquina da Avenida Park com a Rua
57. Therese atravessou a avenida a correr, apenas um instante
antes de se acenderem as luzes verdes que soltaram uma
matilha de carros atrás dela esbatendo a figura de Carol
quando ela virou no outro passeio. Carol caminhava devagar,
passando pela entrada da Ritz Tower e continuando a afastar-
se. E era assim que devia ser, pensou Therese, não com um
aperto
327
de mão demodado, não com olhares para trás. Depois, quando a
viu tocar no puxador da porta do carro, lembrou-se da lata de
cerveja, ainda debaixo do banco da frente, lembrou-se do seu
chocalhar quando ela subira a rampa do Túnel Lincoln, ao
entrar em Nova Iorque. Pensara então que tinha de a tirar
dali antes de devolver o carro a Carol, mas esquecera-se.
Estugou o passo, a caminho do hotel.
Havia já pessoas que transbordavam das duas portas para o
corredor, e um empregado tinha dificuldade em empurrar a sua
mesa rolante com baldes de gelo para dentro da sala. O
barulho era muito e Therese não viu Bernstein ou Harkevy em
lado algum. Não conhecia ninguém. A não ser uma cara, um
homem com quem falara meses atrás, algures, a respeito de um
emprego que não se concretizara. Therese virou-se. Um homem
pôs-lhe uma taça alta na mão.
- Mademoiselle - disse ele, com um floreado. - Era isto que
procurava?
- Obrigada -. Não ficou com o homem. Pareceu-lhe ver o senhor
Bernstein ao canto da sala. Havia várias mulheres com grandes
chapéus no caminho.
- É actriz? - perguntou o mesmo homem, avançando com ela pelo
meio da multidão.
- Não. Desenhadora cénica.
Era de facto o senhor Bernstein, e Therese meteu-se pelo meio
de dois grupos de pessoas e chegoujunto dele. O senhor
Bernstein estendeu-lhe uma mão roliça e cordial e levantou-se
do irradiador.
- Menina Belivet! - exclamou. - A senhora Crawford,
consultora de caracterização...
- Não falemos de trabalho! - disse a senhora Crawford
esganiçadamente.
- O senhor Stevens, o senhor Fenelton - continuou o senhor
Bernstein, enquanto ela ia inclinando a cabeça a uma dúzia de
pessoas e dizendo Como está?" aí a metade delas. - E Ivor...
Ivor! - chamou o senhor Bernstein.
E ali estava Harkevy, figura esguia, rosto esguio com um
pequeno bigode, sorrindo-lhe, estendendo-lhe a mão.
328
- Olá - cumprimentou ele. - Alegra-me muito voltar a vê-la.
Sim, gostei do seu trabalho. Estou a ver a sua ansiedade -
riu um pouco.
- Gostou o suficiente para me deixar entrar? - perguntou
Therese.
- Quer saber? - respondeu ele, sorrindo. - Sim, pode entrar.
Apareça no meu estúdio amanhã por volta das onze horas. Pode
ser?
- Pode.
- Depois vá ter comigo. Agora tenho de me despedir destas
pessoas que se vão embora -. E afastou-se.
Therese pousou o copo na beira de uma mesa e procurou um
cigarro na mala. Conseguira. Olhou para a porta. Uma mulher
com o cabelo louro penteado para cima e olhos azuis
brilhantes e intensos acabava de entrar e estava a causar um
pequeno furor à sua volta. Fazia movimentos rápidos,
positivos, quando se voltava para cumprimentar pessoas,
apertar mãos, e, de súbito Therese compreendeu que se tratava
de Genevieve Gra nell, a actriz inglesa que representaria o
papel principal. Parecia diferente dos imstantâneos que vira
dela. Tinha o tipo de rosto que tem de ser visto em acção
para ser atraente.
- Olá, olá! - exclamou por fim para toda a gente, olhando em
redor da sala, e Therese notou que o seu olhar se demorava um
instante nela, e sentiu um choque um pouco semelhante ao que
sentira quando vira Carol pela primeira vez, e viu nos olhos
azuis da mulher o mesmo lampejo de interesse que, tinha a
certeza, brilhara nos seus próprios quando vira Carol. E
agora foi ela que continuou a olhar, e a outra que desviou os
olhos e se voltou.
Therese olhou para o copo que tinha na mão e sentiu um calor
súbito no rosto e nas pontas dos dedos, um tumulto dentro de
si que não era inteiramente nem o seu sangue nem apenas os
seus pensamentos. Soube, antes de serem apresentadas, que
esta mulher era como Carol. E era bela. E não se parecia com
o retrato da biblioteca. Sorriu e sorveu um gole da sua
bebida, um gole longo, para se acalmar.
329
- Uma flor, madame? - um empregado estendia-lhe uma bandeja
cheia de orquídeas brancas.
- Muito obrigada -. Therese tirou uma. Teve dificuldades com
o alfinete, e alguém... o senhor Fenelton ou o senhor
Stevens... correu a ajudá-la.
- Obrigada- agradeceu.
Genevieve Granell vinha na sua direcção, com o senhor
Bernstein atrás. A actriz cumprimentou o homem que estava com
Therese como se o conhecesse muito bem.
- Foi apresentada à menina Granell? - perguntou o senhor
Bernstein a Therese.
Therese olhou para a mulher.
- Chamo-me Therese Belivet - disse, e apertou a mão que a
outra lhe estendeu.
- Como está? então, o departamento de cenários?
- Não. Sou apenas uma parte dele -. Continuou a sentir a
força do aperto da mão da actriz, depois de ela largar a sua.
Estava excitada, louca e estupidamente excitada.
- Ninguém me vai buscar uma bebida? - perguntou Genevieve
Granell, sem se dirigir a nenhum dos ho mens em especial.
O senhor Bernstein atendeu o seu pedido e acabou de a
apresentar às pessoas que estavam consigo e ainda não a
conheciam. Therese ouviu-a dizer a alguém que acabara de
desembarcar de um avião e que a sua bagagem estava empilhada
no átrio, e viu-a olhá-la umas duas vezes enquanto falava,
por cima dos ombros dos homens. Therese descobria uma
atracção excitante na perfeição da sua nuca, no arrebitar
engraçado e despreocupado da ponta do seu nariz, a única
feição descuidada do seu rosto estreito e clássico. Os seus
lábios eram delgados. Parecia extremamente atenta e
imperturbavelmente aprumada. No entanto, pressentiu que
Genevieve Granell poderia não lhe voltar a falar ali, pela
simples razão de que provavelmente queria falar-lhe.
Therese abriu caminho para um espelho de parede e olhou, para
ver se o seu cabelo e a pintura dos seus lábios ainda estavam
em ordem.
330
- Therese - disse uma voz perto dela. - Gosta de champanhe?
Therese voltou-se e viu Genevieve Granell.
- Claro.
- Claro. Bem, apareça no seiscentos e dezanove daqui a alguns
minutos. É a minha suite. Mais tarde temos uma reunião para o
círculo mais íntimo.
- Honra-me muito.
- Por isso não desperdice a sua sede com uísque e soda. Onde
arranjou esse vestido encantador?
- No Bonwit's... uma extravagância louca.
Genevieve Granell riu-se. Usava um conjunto de lã azul que,
esse sim, parecia realmente uma extravagância louca.
- Tem um ar tão jovem que não se importa, com certeza, se Lhe
perguntar que idade tem.
- Vinte e um.
A actriz revirou os olhos.
- Incrível. É possível ainda haver alguém com vinte e um
anos?
Algumas pessoas observavam a actriz. Therese estava
lisonjeada, tremendamente lisonjeada, e esse sentimento
atravessava-se no caminho do que sentia, ou poderia sentir,
por Genevieve Granell.
A actriz estendeu-Lhe uma cigarreira e comentou:
- Cheguei a pensar que fosse menor.
- Isso é crime?
Genevieve Granell olhava só para ela, com os olhos azuis
sorrindo, por cima da chama do seu isqueiro. Depois, quando
ela virou a cabeça para acender o seu próprio cigarro,
Therese soube que a actriz nunca significaria nada para si,
nada além daquela meia hora no cocktail, que a excitação que
experimentava não continuaria e não voltaria a ser evocada em
nenhuma outra ocasião ou lugar. Que é que lhe dizia isso?
Therese fitou a linha tensa da sua sobrancelha loura quando o
primeiro fumo subiu do cigarro de Genevieve Granell, mas a
resposta não estava lá. E, subitamente, apoderou-se dela,
encheu-a de um sentimento de tragédia, quase de pesar.
331
- É nova-iorquina? - perguntou-Lhe a actriz.
- SoU.
As pessoas que tinham acabado de chegar à porta rodearam
Genevieve Granell e levaram-na consigo. Therese voltou a
sorrir, acabou a sua bebida e sentiu o primeiro calor
reconfortante do uísque alastrar por ela. Falou com quem
estivera breves momentos, na véspera, no escritório do senhor
Bernstein, e com outro que nem sequer conhecia, e olhou para
a entrada da porta do outro lado da sala, que naquele momento
era um rectângulo vazio, olhou e pensou em Carol. Seria
próprio de Carol vir, apesar de tudo, para a convidar de
novo. Ou melhor, seria próprio da Carol antiga, mas não da de
agora. Na quele momento, Carol estaria presente no encontro
que mencionara, no Elysée. Com Abby? Com Stanley McVeiCh?
Therese desviou os olhos da porta, como se tivesse medo que
Carol aparecesse e ela tivesse de lhe dizer, novamente, Não".
Aceitou outro uísque e sentiu o vazio dentro de si a encher-
se com o pensamento de que podia ver Genevieve Granell com
muita frequência, se quisesse, e que, embora ela própria
nunca se envolvesse, poderia ser amada.
Um dos homens que estavam ao seu lado perguntou-lhe:
- Quem fez os cenários para The Lost Messiah, Therese?
Lembra-se?
- Blanchard - respondeu distraída, porque estava ainda a
pensar em Genevieve Granell com um sentimento de revulsão, de
vergonha pelo que acabara de lhe passar pela cabeça e que
sabia que nunca seria. Escutou a conversa a respeito de
Blanchard e de outra pessoa qualquer, participou até nela,
mas a sua percepção detivera-se num emaranhado em que uma
dúzia de fios se cruzavam e embaraçavam. Um era Dannie. Outro
era Carol. O outro era Genevieve Granell. Um avançava e saía
do emaranhado, mas a sua mente ficava presa no cruzamento.
Inclinou-se para aceitar lume para o seu cigarro, sentiu que
se afundava mais na rede e agarrou-se a Dannie. Mas o fio
preto e forte não conduzia a nada. Soube,
332
como se uma voz prenunciadora estivesse agora a falar, que
não iria mais longe com Dannie. E a solidão fustigou-a como
um vento impetuoso, misteriosa como as lágrimas ténues que
subitamente lhe cobriram os olhos, tão ténues que ninguém as
veria, ao erguer a cabeça e olhar de novo para a porta.
- Não se esqueça -. Genevieve Granell estava a seu lado, a
dar-lhe palmadinhas no braço e a dizer-lhe muito depressa: -
Seiscentos e dezanove. Vamos transferir-nos para lá -.
Começou a voltar-se mas retrocedeu. - A Therese vai, não vai?
O Harkevy também vai. Therese abanou a cabeça.
- Obrigada... pensei que podia ir, mas lembrei-me de que
tenho de estar noutro lado.
A mulher olhou-a ironicamente.
- Que se passa, Therese? Correu alguma coisa mal?
- Não - respondeu, sorrindo, e encaminhou-se para a porta. -
Obrigada por me ter convidado. Voltarei a vê-la, sem dúvida.
- Sem dúvida - disse a actriz.
Therese dirigiu-se para o quarto ao lado da sala grande e
tirou o casaco do monte que se encontrava em cima da cama.
Meteu apressadamente pelo corredor na direcção da escada,
passou pelas pessoas que esperavam no elevador, entre as
quais estava Genevieve Granellmas Therese não se importou que
ela a visse ou não, quando correu pela larga escada abaixo,
como se fugisse de alguma coisa. Sorriu para consigo. O ar
batia-lhe na fronte com uma sensação de frescura e suavidade,
produzia um som plúmeo, como as asas, ao passar-lhe pelos
ouvidos, e ela tivera a sensação de que atravessava as ruas e
subia os passeios a voar. Ao encontro de Carol. E talvez
Carol o soubesse naquele momento, porque antes soubera coisas
desse género. Atravessou outra rua, e lá estava o toldo do
Elysée.
O maitre disse-lhe qualquer coisa, no átrio, e ela respondeu:
- Procuro uma pessoa - e continuou a dirigir-se para a
entrada da porta.
333
Parou, a olhar para as pessoas sentadas à mesa na sala onde
um piano tocava. As luzes não eram fortes e, ao princípio,
ela não a viu, semioculta na sombra junto da parede oposta,
voltada para Therese. Carol também não a viu. Estava um homem
sentado defronte dela, um homem que Therese não sabia quem
era. Carol levantou a mão, devagar, e alisou o cabelo para
trás, um lado de cada vez, e Therese sorriu porque aquele
gesto era Carol, e era Carol quem ela amava e amaria sempre.
Oh, agora de maneira diferente, sim, porque ela era uma
pessoa diferente, era como se voltasse a conhecer Carol pela
primeira vez, mas continuaria a ser Carol e mais ninguém.
Seria Carol em mil cidades, em mil casas, em terras
estrangeiras onde iriam juntas, no Verão e no Inferno.
Therese esperou. Depois, quando se preparava para ir ao seu
encontro, Carol viu-a, pareceu fitá-la um momento
incredulamente, enquanto Therese via o sorriso lento a
alastrar, antes de o seu braço se levantar de súbito e a sua
mão acenar uma saudação rápida, ansiosa, que Therese nunca
vira antes. Therese caminhou então para ela.
POSFACIO
Quando O Preço do Sal foi escrito, alguns romances sobre
homossexualidade começavam a surgir, um tanto timidamente,
embora os editores escrevessem na publicidade das sobrecapas
"ousado", e estavam a ser lidos por homossexuais masculinos e
femininos e, sem dúvida, por heterossexuais curiosos acerca
do que era então uma parte desconhecida da sociedade, quase
um submundo. Nesse tempo, nos anos 40 e início dos anos 50,
os bares ga de Nova Iorque encontravam-se ocultos atrás de
portas muito escuras, algures, e clubes particulares
organizavam encontros nas noites de sexta-feira, mediante uma
entrada de três dólares, que incluía uma bebida e permitia
convidar uma pessoa amiga. Dançava-se e jantava-se em mesas à
luz de velas. Uma atmosfera muito decente, na verdade, a
desses clubes. Os gays conversavam a respeito do último
romance sobre homossexuais e talvez rissem à socapa do fim da
história.
O romance homossexual de então tinha de ter um fim trágico.
Geralmente acerca de homens. Uma das principais personagens,
se não ambas, tinha de cortar os pulsos, ou de se afogar na
piscina de alguma encantadora propriedade, ou de dizer adeus
ao seu companheiro por haver decidido tornar-se hetero. Um
deles tinha de ver o erro dos seus - dele ou dela - costumes,
a infelicidade que o esperava, tinha de se conformar a fim
de... De quê? De conseguir que o livro fosse publicado? De
ter a certeza de que o editor não se candidataria a um olho
335
negro por parecer tolerar a homossexualidade? Era como se a
juventude tivesse de ser advertida para não se deixar atrair
por pessoas do mesmo sexo, como a juventude de agora é
advertida contra as drogas. Pedia-se aos escritores desses
tempos que mudassem o fim desses livros? Alguns livros davam
a impressão de que assim era.
Em 1952, disse-se de O Preço do Sal que era o primeiro livro
gay com um fim feliz. Não tenho a certeza de que isso fosse
absolutamente verdade, porque nunca conferi. No entanto, a
quantidade de cartas recebidas depois da edição brochada, em
1953, foi espantosa, em número e conteúdo, doze por dia,
algumas vezes, e durante semanas a fio. Obrigada ou obrigado,
diziam muitas delas, de raparigas e também de rapazes, de
jovens e de pessoas de meia- idade, mas principalmente de
jovens, e dolorosamente tímidas. Agradeciam-me por ter
escrito acerca de duas pessoas apaixonadas, do mesmo sexo,
que tinham realmente chegado vivas ao fim e com uma boa dose
de esperança de um futuro feliz. "Vivo numa pequena cidade.
Não há aqui ninguém como eu. Que devo fazer?... " E: "Não sei
dizer-lhe a satisfação que sinto por alguém ter tido a
coragem de escrever uma história de duas lésbicas que esperam
ser bem sucedidas..." Havia sobretudo optimismo, o cheiro de
coragem naquelas cartas de Eagle Pass, Texas, de algures no
Canadá, de cidades do Dacota do Sul de que eu nunca ouvira
falar, de Nova Iorque, até mesmo da Austrália. Respondi ao
maior número que pude, pus uma alma solitária em contacto com
outra semelhante, pedindo-lhe que escrevesse à outra, para
evitar que tivesse eu de fazê-lo, e lhe exprimisse os meus
agradecimentos pela sua carta. Que se podia dizer então de
uma pessoa que estava sozinha numa cidade, a não ser que
mudasse para uma maior, onde poderia ter mais probabilidades
de encontrar um parceiro ou uma parceira?
Os anos 80 apresentam um quadro diferente. E se uma pessoa em
cada dez é gay, ou pelo menos tem propensão para isso, como
os autores de estatísticas dizem, uma pequena cidade não
parece tão desolada como em
336
tempos pareceu. Agora os gays não se escondem. A chantagem
perdeu uma boa quantidade dos seus dentes graças às leis
sobre consentimento mútuo, embora o facto de ser homossexual
ainda possa custar à pessoa o seu emprego, o que depende mais
do emprego que do comportamento ou carácter da pessoa.
Atitude muito perversa, visto que uma pessoa feliz trabalha
melhor que uma pessoa que não seja e que não a tenha,
qualquer que seja o emprego.
Um leitor dos anos 80 poderá achar Therese uma violeta
demasiado tímida para ser acreditada. Mas ela vivia numa
época mais repressiva. Hoje, uma rapariga com a sua ambição e
nível de percepção teria consciência do mundo gay desde os
doze anos, ou da idade em que se desse conta do caminho que
os seus desejos seguiam. Revistas e livros são agora mais
francos e mais acessíveis. As actividades sexuais começam
mais cedo que os dezanove anos de Therese. Talvez agora,
mesmo em cidades pequenas, rapazes e raparigas desabrochem no
princípio da adolescência, ou pelo menos descubram que não
estão sós no seu desvio do curso habitual. Mas mesmo no mundo
ocidental, só um rapaz ou uma rapariga excepcional, com uma
coragem excepcional, é capaz de, aos catorze anos, fazer uma
afirmação aos pais, como quem faz uma declaração de
independência e liberdade. Aceitarão os pais essas notícias
calmamente? Não haverá uma cena, ameaças, talvez visitas
forçadas ao psiquiatra? Ainda hoje, são provavelmente poucas
as pessoas homossexuais que não tenham tentado escapar o mais
tmpo possível, durante o período terrível dos catorze aos
dezoito anos, representando para os pais, esperando manter as
coisas ocultas até ao grande dia em que a escola acaba e elas
podem procurar emprego, ir viver com um amigo ou uma amiga ou
arranjarem um lugar seu, por muito modesto que seja. Apesar
da libertação de hoje e dos pais sofisticados que podem
dizer, enquanto bebem uns copos com contemporâneos seus,
"Imaginem, a nossa filha é gay!, existe uma acrimónia, uma
decepção. Não será provável que nasçam netos do rebento em
337
questão. A família encara e prevê relacionamentos instáveis
e desastrosos.
Poderá haver menos Thereses nestes tempos mais livres, mas
haverá sempre Carols num milhar de cidades, com histórias
similares. Uma rapariga casa nova, frequentemente com alguma
instigação parental, com uma vaga e inexplorada convicção de
que faz o que é certo. Poucos anos depois, a verdade revela-
se e tem de ser posta em prática pois não pode ser reprimida
por muito mais tempo. Muitas vezes, nessa altura, existe já
um filho. Às fúrias do Inferno poderá juntar-se a fúria do
marido e pai que "perdeu o amor da sua mulher a favor de
outra mulher". Impotentes como homens, recorrem às leis para
que se cumpra aquilo que vêem como sentido da justiça, e
frequentemente como vingança justificável, e por isso
insistem para que a lei tome as piores decisões.
Porque se fascinam tanto as pessoas com a vida sexual dos
outros? Em parte isso deve-se ao prazer decorrente da
fantasia, de mimos jornalísticos tanto mais suculentos quanto
maior a importância das pessoas, por exemplo um membro de uma
família real de qualquer lado, presumivelmente porque o
cenário é muito elegante; em parte, também, e isso é mais
asqueroso, pela satisfação do instinto primitivo que manda
punir aqueles que se tresmalham do rebanho. Se vemos um vulto
informe, de gabardina, numa estrada enevoada, a primeira
pergunta que nos fazemos é se é homem ou mulher? Esta é a
pergunta imediata e inconsciente que tem de receber resposta.
Se a figura informe nos aborda e pergunta um caminho, ou
qualquer coisa do género, e continuamos sem saber distinguir
o sexo por causa da velhice da pessoa, de ela ter a cabeça
enrolada num cachecol ou da sua voz andrógina, pronto: o caso
transforma-se numa história divertida que vale a pena
contarmos aos amigos. O sexo é definido por características
fisicas e tem de constar dos passaportes. O amor está na
cabeça, é um estado de espírito.
Apaixonar-se, para alguns, está fora de moda, é perigoso
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e até mesmo desnecessário. Nada de emoções fortes, eis o
slogan. O que é preciso é engatar e gozar a vida. O sexo,
para eles, é uma "viagem" de ego. Que pensarão essas pessoas
do caminho difícil de Therese e Carol para conseguirem uma
relação? O Preço do Sal foi rejeitado pelo primeiro editor
que o viu e aceite pelo segundo. Teve críticas "sérias e
respeitáveis" aquando da sua edição encadernada. Sem outras
críticas, foi uma avalancha esmagadora em brochura, quando a
sua publicidade se fez de boca em boca. Muita gente se deve
ter identificado com Carol ou com Therese. Por isso, um livro
que começou por ser recusado acabou por subir ao topo. Sinto-
me feliz por poder pensar que deu alguma coisa a vários
milhares de pessoas solitárias e assustadas, uma esperança à
qual se puderam agarrar.
Claire Morgan, Outubro, 1983
Fiiiiiiim