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Patricia Highsmith

O Preço do Sal

The Price Of Salt

Tradução:
Fernanda Pinto Rodrigues
Primeira edição publicada nos Estados Unidos da América, em
1952, com o título The Price of Salt
e sob o pseudónimo de Claire Morgan
Edição revista com um posfácio da Autora
Copyright 1984 by Claire Morgan
As letras citadas nas páginas 157 e 159 são da
canção Easy Liuing, de Leo Robin e Ralph Rainger, Copyright
1937 by Famous Music Corporation, Copyright renovado em 1964
por Famous Music Corporation e reimpresso com a sua
autorização

Para Edna, Jordy e, Jeff

Prefácio

Tive a inspiração de escrever este livro em finais de 1948,


quando estava a viver em Nova Iorque. Acabara de escrever O
Desconhecido do Oriente Expresso, que só seria publicado em
1949. O Natal aproximava-se e eu estava vagamente deprimida e
também com falta de dinheiro e, a fim de ganhar algum,
aceitei um emprego de caixeira num grande armazém em
Manhattan, durante o período de muito movimento no Natal, que
dura cerca de um mês. Creio que resisti duas semanas e meia.
Destacaram-me para a Secção de Brinquedos, no meu caso o
balcão das bonecas, caras e assim assim, com cabelo
verdadeiro ou artificial, mas sempre com dois pormenores da
máxima importância: o tamanho e o vestuário. As crianças,
algumas das quais mal chegavam com o nariz ao cimo do
expositor de vidro, atropelavam-se, acompanhadas pela mãe ou
pelo pai, ou por ambos, deslumbradas com a quantidade de
bonecas novinhas em folha que choravam, abriam e fechavam os
olhos, algumas eram capazes de se manter de pé e, claro,
gostando todas elas de mudar de roupa. Era, efectivamente, um
corrupio, e eu e as quatro ou cinco mulheres jovens com quem
trabalhava atrás do comprido balcão não po díamos sentar-nos
das oito e meia da manhã até à hora do almoço. E mesmo
então... De tarde acontecia a mesma coisa.
Certa manhã, no meio daquele caos de barulho e de comércio,
apareceu uma mulher alourada, de casaco de peles. Aproximou-
se do balcão das bonecas com um ar hesitante - compraria uma
boneca ou qualquer outra coisa -, e creio que batia
distraidamente com um par de luvas numa das mãos. Talvez eu
tivesse reparado nela porque vinha sozinha, ou porque um
casaco de marta era uma raridade - e, com certeza, porque ela
era alourada e parecia irradiar luz. Com o mesmo ar
pensativo, comprou uma boneca, uma das duas ou três que eu
lhe mostrei, e eu escrevi o seu nome e morada no recibo,
porque a boneca deveria ser entregue numa vizinha. Foi uma
transacção rotineira, a mulher pagou e foi-se embora. Mas eu
senti-me esquisita e com a cabeça um pouco à roda, quase a
desmaiar, mas, ao mesmo tempo, exaltada, como se tivesse tido
uma visão.
Como de costume, depois do trabalho regressei ao meu
apartamento, onde vivia sozinha. Nessa noite passei a escrito
uma ideia, um enredo, uma história a respeito de uma mulher
loura de casaco de peles. Umas oito páginas escritas à mão no
meu livro de apontamentos ou caderno da altura. Era a
história inteira de O Preço do Sal. Jorrou-me da caneta sem
esforço, naturalmente: princípio, meio e fim. Levou-me quase
duas horas, talvez menos.
Na manhã seguinte senti-me ainda mais esquisita e dei conta
de que tinha febre. Devia ser domingo, porque me lembro de me
ter metido no metro de manhã, e nesse tempo as pessoas tinham
de trabalhar aos sábados de manhã - e todo o sábado no
período movimentado do Natal. Recordo-me de quase ter
desfalecido enquanto me agarrava a uma alça do metro. A amiga
com quem tinha encontro marcado possuía alguns conhecimentos
de medicina, e eu disse- lhe que me sentia um pouco nauseada
e que ao tomar um duche reparara numa pequena vesícula na
barriga. Ela observou a vesíeula e diagnosticou: "Varicela".
Infelizmente eu nunca tivera essa doença infantil, embora
tivesse tido praticamente todas as outras. A enfermidade não
era agradável para os adultos, pois a febre atinge uns
quarenta graus durante uns dois dias e, pior ainda, o rosto,
o tronco, a
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parte superior dos braços e até os ouvidos e as narinas ficam
cobertos ou forrados de pústulas que causam comichão e
rebentam. necessário evitar coçá-las durante o sono, pois de
contrário ficamos com cicatrizes e "bexigas". Durante um mês
andamos com manchas hemorrágicas, visíveis no rosto, como se
tivéssemos sido atingidos por uma rajada de chumbo de uma
espingarda de ar comprimido.
Na segunda-feira de manhã tive de informar o armazém que não
voltaria para o trabalho. Uma das criancinhas ranhosas que
por lá apareciam devia ter-me transmitido o micróbio, mas com
ele, também de certo modo, o germe de um livro: a febre é
estimulante para a imaginação. Não comecei logo a escrever o
livro. Prefiro deixar as ideias germinar durante semanas. E,
além disso, quando O Desconhecido do Oriente Expresso foi
publicado e, pouco depois, vendido a Alfred Hitchcock, que
desejava fazer dele um filme, os meus editores, assim como o
meu agente, diziam- me: "Escreva outro livro do mesmo tipo,
para firmar a sua reputação como... " Como o quê? O
Desconhecido do Oriente Expresso fora publicado com a
classificação de "Um Romance de Susense da Harper", pela
Harper & Bros. como era então o nome da firma, e por isso eu
tornara-me, por assim dizer da noite para o dia, uma
escritora de susense, embora no meu entender, O Desconhecido
do Oriente Expresso não estivesse catalogado e fosse
simplesmente um romance com uma história inte ressante. Se
escrevesse um romance acerca de uma relação lésbica seria,
consequentemente, rotulada de escritora de livros lésbicos?
Era uma possibilidade, embora eu pudesse nunca mais vir a
sentir-me inspirada para escrever outro livro do género na
minha vida. Resolvi por isso oferecer o livro para publicação
com outro nome. Em 1951 tinha-o pronto. Não podia deixá-lo
para trás durante dez meses e escrever outra coisa qualquer,
simplesmente porque, por razões comerciais, teria sido
sensato escrever outro livro de susense.
A Harper & Bros. rejeitou O Preço do Sal, o que me obrigou a
procurar outro editor americano - com pesar
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meu, pois desagrada-me muito mudar de editor. O Preço do Sal
teve algumas críticas sérias e respeitáveis quando apareceu
em edição encadernada em 1952. Mas o verdadeiro êxito
verificou-se um ano depois com a edição em brochura, que
vendeu quase um milhão de exemplares e foi com certeza lida
por um número ainda maior de pessoas. As cartas de
admiradores chegaram dirigidas a Claire Morgan, ao cuidado da
editora. Lembro-me de receber sobrescritos com dez e quinze
cartas duas vezes por semana e durante semanas a fio.
Respondi a uma quantidade delas, mas não poderia responder a
todas, a não ser por meio de uma carta-circular, que nunca
elaborei.
A minha jovem protagonista, Therese, pode parecer uma violeta
tímida no meu livro, mas naquele tempo os bares gay eram uma
porta escura algures em Manhattan, e as pessoas que queriam
ir a um deles tinham de se apear do metro uma estação antes
ou depois da indicada, receosas de se tornarem suspeitas de
serem homossexuais. A atracção de O Preço do Sal residia no
facto de ter um fim feliz para as suas duas personagens
principaisou, pelo menos, de elas irem tentar um futuro
juntas. Antes deste livro, os homossexuais masculinos e
femininos dos romances americanos tiveram de pagar pelo seu
desvio cortando os pulsos, afogando-se na piscina, mudando
para a heterossexualidade (era o que se dizia) ou caindo -
sós, infelizes e marginalizados - numa depressão que
equivalia ao Inferno. Muitas das cartas que recebi
transmitiam-me mensagens como: "O seu é o primeiro livro
deste género que acaba bem! Nem todos nos suicidamos e alguns
de nós estão bem!" Outras diziam: "Obrigado por ter escrito
esta história. É um pouco como a minha própria... " E: "Tenho
dezoito anos e vivo numa pequena cidade. Sinto-me só porque
não posso falar com ninguém... " Algumas vezes respondi
sugerindo a quem me escrevera que fosse para uma cidade
maior, onde teria a possibilidade de conhecer mais pessoas.
Se a memória não me atraiçoa, recebi tantas cartas de homens
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como de mulheres, o que considerei um bom augúrio para o meu
livro. E confirmou-se que era. As cartas foram pingando
durante anos e ainda hoje, uma ou duas vezes por ano, recebo
uma carta de um leitor ou leitora. Não voltei a escrever
outro livro semelhante. O meu romance seguinte foi The
Blunderer. Gosto de evitar rótulos. Quem gosta de rótulos são
os editores americanos.
24 de Maio de 1989

Capítulo I
A hora de almoço na cafetaria do pessoal do Frankenbergs
atingira o auge.
Não restava qualquer espaço nas mesas compridas e chegavam
cada vez mais pessoas, que tinham de esperar atrás das
divisórias de madeira, junto da caixa registadora. As pessoas
que já tinham os seus tabuleiros de comida passavam por entre
as mesas à procura de um espaço onde pudessem encaixar-se, ou
de algum lugar que alguém estivesse prestes a deixar, mas não
encontravam. O chinfrim dos pratos, das cadeiras, das vozes,
do arrastar de pés e do rangido das portas de borboleta, na
sala de paredes nuas, era como o troar de uma máquina enorme.
Therese comia nervosamente, com a pequena brochura do uBem-
vindo ao Frankenberg's" aberta à sua frente e encostada ao
açucareiro. Já lera a volumosa brochura toda a semana
anterior, no primeiro dia da aula de treino, mas não tinha
consigo mais nada que pudesse ler e, na cafetaria do pessoal,
sentia necessidade de se concentrar em qualquer coisa. Por
isso estava a reler o respeitante às vantagens de férias, às
três semanas de férias dadas às pessoas que trabalhavam há
quinze anos no Frankenberg's, enquanto comia o prato quente
do dia - uma fatia acinzentada de carne assada com uma bola
de puré de batata coberto de molho castanho, um montinho de
ervilhas e um pequeno copo de papel de rábano-bastardo.
Tentou imaginar o que sentiria alguém que ti13
vesse trabalhado quinze anos no Frankenberg's, e descobriu-se
incapaz de o conseguir. Os que tinham vinte e cinco anos de
casa tinham direito a quatro semanas de férias, dizia a
brochura. O Frankenberg's também proporcionava um acampamento
para férias de Verão e de Inverno aos seus funcionários.
Também deviam ter uma igreja, pensou ela, e um hospital para
o nascimento de bebés. O armazém estava organizado de modo
tão se melhante a uma prisão que, de vez em quando, se
assustava ao dar-se conta de que fazia parte dele.
Virou rapidamente a página e leu, escrito em grandes letras
pretas de ponta a ponta de duas páginas: " Você É Material
para o Frankenberg's?"
Therese olhou para o lado oposto da sala, para as janelas, e
tentou pensar noutra coisa. Na bonita camisola norueguesa que
vira no Saks e que talvez comprasse para oferecer ao Richard
como prenda de Natal, se não encontrasse uma carteira mais
bonita que as que já vira por vinte dólares. Na possibilidade
de ir de carro com os Kelly, no próximo domingo, a West
Point, para assistir a um jogo de hóquei. A grande janela
quadrada do outro lado da sala parecia um quadro de - como se
chamava ele? - Mondrian. A pequena janela, ao canto, abria-se
para um céu branco. E nenhum pássaro para entrar ou sair por
ela. Que tipo de cenário se podia fazer para uma peça que
decorreria num grande armazém geral? Tinha voltado à
realidade.
- Mas contigo é muito diferente, Terry - dissera-Ihe Richard.
- Tu tens a convicção absoluta de que sairás de lá dentro de
poucas semanas, e os outros não têm -. Richard dissera que
ela poderia estar em França no próximo Verão. Estaria. Queria
que fosse com ele, e não havia realmente nada que a impedisse
de ir. E o amigo de Richard, Phil McElroy, escrevera-lhe a
dizer que talvez conseguisse arranjar emprego para Therese
num grupo de teatro, no mês seguinte. Therese ainda não
conhecia Phil, mas tinha muito pouca esperança de que ele
conseguisse arranjar-lhe emprego. Desde Setembro que passava
Nova Iorque a pente fino não uma, mas várias
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vezes, e não encontrara nada. Quem dava trabalho, a meio do
Inverno, a uma aprendiza de desenhadora cénica, e ainda por
cima no início do aprendizado? Também não lhe parecia real
que pudesse estar em França com Richard no próximo Verão,
sentada com e1e em esplanadas de cafés, passeando com ele em
Arles, procurando os lugares que Van Gogh pintara, escolhendo
os dois, Richard e ela, lugares onde parariam algum tempo
para eles próprios pintarem. Tudo isso lhe parecia ainda
menos real nos últimos dias, desde que trabalhava no armazém.
Therese sabia o que a preocupava no armazém. Tratava-se de um
tipo de coisas que não tentaria contar a Richard. O armazém
intensificara coisas que sempre a tinham incomodado, desde
que se lembrava. Eram os gestos desperdiçados, as tarefas sem
sentido que pareciam impedi-la de fazer o que queria, o que
poderia ter feito - e ali eram as normas de procedimento com
os sacos de dinheiro, as revistas aos casacos e os relógios
de ponto que impedem as pessoas de servir até mesmo o armazém
tão eficientemente como de outro modo poderiam servi-lo -, a
sensação de que todos estavam incomunicáveis uns com os
outros e vivendo num plano completamente errado, de modo que
o significado, a mensagem, o amor, ou fosse o que fosse que a
vida continha, jamais conseguia encontrar a sua expressão.
Isso recordava-lhe conversas à mesa, em sofás, com pessoas
cujas palavras pareciam pairar sobre coisas mortas, inertes,
que nunca tangiam uma corda que tocasse. E quando alguém
tentava tocar numa corda viva, olhavam-no com rostos tão
mascarados como sempre, faziam um co mentário tão perfeito na
sua banalidade que uma pessoa não podia sequer acreditar que
se tratava de um subterfúgio. E a solidão era aumentada pelo
facto de ver no armazém os mesmos rostos, dia após dia, os
poucos com quem se poderia ter falado e nunca se falava, ou
nunca se podia falar. Não era como o rosto que passa, o que
parece falar, que se vê uma vez e pelo menos desaparece para
sempre.
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Ela perguntava-se, à espera na bicha para marcar o ponto, na
cave, todas as manhãs, com os olhos a distinguirem
inconscientemente os funcionários efectivos dos temporários,
como fora ali parar - respondera a um anúncio, evidentemente,
mas isso não explicava o destino - e o que se seguiria em vez
de um emprego a desenhar para o teatro. A sua vida era uma
série de ziguezagues. Aos dezanove anos, vivia angustiada.
- Deves aprender a confiar nas pessoas, Therese. Não te
esqueças disso - dissera-lhe com frequência a Irmã Alicia. E
frequentemente, muito frequentemente, Therese tentara aplicar
essa regra.
- Irmã Alicia - murmurou baixinho, cuidadosamente,
reconfortada com a sílaba sibilante.
Therese endireitou-se na cadeira e pegou de novo no garfo,
porque o rapaz que levantava os pratos se encaminhava na sua
direcção.
Viu o rosto da Irmã Alicia, ossudo e avermelhado como uma
pedra escura quando o sol lhe batia, e a onda azul engomada
do seu seio. A grande figura ossuda da Irmã Alicia surgindo
de um cotovelo do corredor, entre as mesas de esmalte branco
do refeitório, a Irmã Alicia em mil lugares, os seus pequenos
olhos azuis localizando-a sempre entre as outras raparigas,
vendo-a diferentemente, Therese sabia, de todas elas, apesar
de os lábios finos e rosados apresentarem sempre a mesma
linha recta. Viu a Irmã Alicia entregando- lhe as luvas
verdes tricotadas, embrulhadas em papel de seda, sem sorrir,
entregando-lhas apenas, pessoalmente, quase sem uma palavra,
no seu oitavo aniversário. A Irmã Alicia a dizer-lhe, com a
mesma boca em linha recta, que ela tinha de ficar bem em
aritmética. Quem mais se importara que ela ficasse bem ou não
em aritmética? Therese guardara as luvas verdes no fundo do
seu baú de folha, na escola, durante anos, depois já de a
Irmã Alicia ter ido para a Califórnia. O papel de seda branco
tornara-se mole e deixara de crepitar como tecido antigo, mas
mesmo assim ela continuara sem utilizar as luvas. Finalmente,
deixaram de lhe servir.
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Alguém mexeu no açucareiro e a brochura que a ele estava
encostada caiu da mesa.
Therese olhou para o par de mãos que se encontravam à sua
frente, do outro lado da mesa, mãos de mulher, papudas e
envelhecidas, mexendo o café, partindo
um pãozinho com uma avidez trémula, molhando metade,
sofregamente, no molho castanho do prato idêntico
ao de Therese. As mãos estavam gretadas, tinham sujidade nos
vincos paralelos dos nós dos dedos, mas a direita ostentava
um vistoso anel de prata filigranada com
uma pedra verde-clara e a esquerda tinha uma aliança de
casamento de ouro e havia vestígios de verniz vermelho nos
cantos das unhas. Therese observou a mão a subir para levar à
boca uma garfada de ervilhas, e não precisou de olhar para o
rosto para saber como ele era.
Devia ser como os rostos de todas as mulheres quinquagenárias
que trabalhavam no Frankenberg's, marcados por uma eterna
exaustão e terror, olhos desfigurados atrás de óculos que os
aumentavam ou tornavam mais pequenos, faces esborratadas de
rouge que não animava o cinzento que se escondia por baixo.
Therese não foi capaz de olhar.
- É nova cá, não é? - A voz soou estridente e clara e no meio
do alarido, quase uma voz terna.
- Sou - respondeu Therese, e levantou a cabeça.
Lembrou-se do rosto. Era aquele cuja exaustão lhe fizera
reviver todos os outros. Era a mulher que vira descer com
dificuldade a escada de pedra da sobreloja por volta das seis
e meia de uma tarde, quando o armazém estava vazio, deixando
escorregar as mãos pelo largo corrimão de mármore, a fim de
aliviar um pouco o peso sobre os pés martirizados pelos
joanetes. Therese pensara: ela não estará doente, ela não é
uma pedinte, trabalha, simplesmente, aqui.
- Está a dar-se bem?
A mulher sorria-lhe, com os mesmos terríveis vincos debaixo
dos olhos e à volta da boca. Os seus olhos mostravam-se agora
realmente vivos e afectuosos.
- Está a dar-se bem? - repetiu a mulher, pois o ba17
rulho de vozes e o entrechocar de pratos à volta delas era
muito grande.
Therese humedeceu os lábios.
- Estou, obrigada.
- Gosta disto aqui?
Therese acenou afirmativamente.
- Acabou? - Um homem novo, com um avental branco, agarrou o
prato da mulher com um polegar im perioso.
Ela fez um gesto trémulo, de assentimento, e puxou para si o
pires de fatias de pêssego enlatado. Os frutos, como peixes
viscosos cor de laranja, escorregavam para fora da colher
todas as vezes que esta era levantada, excepto um pedaço que
a mulher comia.
- Eu estou no segundo andar, na Secção de Malhas. Se precisar
de me perguntar alguma coisa - ofereceu a mulher, com uma
hesitação nervosa, como se estivesse a tentar transmitir uma
mensagem antes de serem interrompidas ou separadas -, vá até
lá acima e fale comigo. O meu nome é senhora Robichek, Ruby
Robichek, cinco-quatro-cinco.
- Muito obrigada - agradeceu Therese e, de súbito, a fealdade
da outra mulher desapareceu, porque os seus olhos castanho-
avermelhados se mostravam, atrás dos óculos, bondosos e
interessados nela. Therese sentiu o coração a bater, como se
ele tivesse ressuscitado. Observou a mulher a levantar-se e
seguiu a sua figura baixa e gorda a afastar-se, até a perder
de vista atrás da multidão que esperava na bicha.
Não visitou a senhora Robichek, mas os seus olhos procuravam-
na todas as manhãs, quando os empregados iam entrando no
estabelecimento por volta das nove menos um quarto, e também
nos elevadores e na cafetaria. Nunca a via, mas era agradável
ter alguém que procurar no armazém. Tornava tudo diferente.
Quase todas as manhãs, quando chegava ao trabalho no sexto
andar, parava um momento, a observar um certo comboio de
brincar. O comboio estava, sozinho, numa mesa perto dos
elevadores. Não era um grande e bonito
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comboio como o que corria no chão, no fundo da Secção de
Brinquedos, mas havia nos movimentos dos seus êmbolos uma
fúria que os comboios maiores não tinham. A raiva e a
frustração com que percorria a linha oval e fechada
fascinavam Therese.
Aurr rr rrgh!, rugia ao lançar-se às cegas para o interior do
túnel de aier-mâché. E Urr rr rr rrgh!, ao sair dele.
O pequeno comboio estava sempre em movimento quando ela saía
do elevador, de manhã, e quando acabava de trabalhar, à
tarde. Tinha a impressão de que ele amaldiçoava a mão que o
ligava todos os dias. Na guinada da frente da locomotiva, ao
fazer as curvas, e nas suas arrancadas furiosas pelas rectas
fora, adivinhava Therese uma perseguição frenética e inútil a
um senhor tirano. Puxava três carruagens Pullman nas quais
minúsculas figuras humanas mostravam perfis empedernidos nas
janelas; atrás das carruagens, um vagão aberto carregado de
touros miniaturais de madeira verdadeira, outro cheio de
carvão a fingir e uma carruagem-cozinha que chiava nas curvas
e se agarrava ao veloz comboio como uma criança às pernas da
mãe. Era como uma criatura que enlouquecera no cativeiro,
qualquer coisajá morta que nunca se consumiria, como as
raposas elegantes, de passadas elásticas, do Central Park
Zoo, cujas pegadas complexas se repetiam, se multiplicavam
infinitamente enquanto elas andavam à roda nas suas jaulas.
Naquela manhã, Therese afastou-se depressa do comboio e
dirigiu-se rapidamente para o balcão das bonecas onde
trabalhava.
Às nove horas e cinco minutos, o grande quadro que constituía
a Secção de Brinquedos começava a encher-se de vida. Panos
verdes eram retirados das mesas compridas. Brinquedos
mecânicos começavam a atirar bolas ao ar e a apanhá-las,
galerias de tiro disparavam e os seus alvos giravam. Na mesa
do pátio de quinta, animais grasnavam, cacarejavam e
zurravam. Atrás de Therese começava um rat-tat-tat-tat
fatigado: era o rufar do tambor do soldado de folha gigante
que, militantemente,
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olhava para os elevadores e tocava o dia todo. Da mesa de
artes e artesanato vinha um cheiro a barro fresco,
reminiscente da sala de arte da escola, quando ela era muito
pequena, e também de uma espécie de abóbada existente nos
terrenos da escola, que constava ser o túmulo verdadeiro de
alguém e por entre cujas grades de ferro ela costumava meter
o nariz.
A senhora Hendrickson, chefe do balcão das bonecas, tirava
bonecas das prateleiras de stock e sentava-as, de pernas
abertas, em cima dos balcões de vidro.
Therese deu os bons-dias à menina Martucci, que estava de pé,
ao balcão, a contar as notas e moedas do seu saco de dinheiro
com uma tal concentração que respondeu apenas com um inclinar
mais profundo da sua cabeça que acenava ritmicamente,
acompanhando a contagem. Therese contou vinte e oito dólares
e cinquenta, do seu próprio saco de dinheiro, registou a
importância num pedaço de papel branco para o sobrescrito das
receitas das vendas e transferiu o dinheiro, por ordem de
valores, para a sua gaveta da caixa registadora.
Entretanto, os primeiros clientes começavam a sair dos
elevadores, hesitando um momento, com as expressões confusas
e algo assustadas que as pessoas mostravam sempre que davam
consigo na Secção de Brinquedos, e avançando depois,
sinuosamente.
- Tem aquelas bonecas que fazem chichi? - perguntou uma
mulher a Therese.
- Eu gostaria dessa boneca, mas com um vestido amarelo -
disse outra, empurrando uma boneca para ela, e Therese
voltou-se e tirou a que ela queria da prateleira de stock.
Reparou que a mulher tinha a boca e as faces como a sua mãe,
faces ligeiramente bexigosas debaixo do rouge rosa-escuro,
separadas por uma boca fina e vermelha cheia de linhas
verticais.
- As bonecas que bebem e fazem chichi são todas deste
tamanho?
Não era preciso ter habilidade para vender. As pessoas
queriam uma boneca, qualquer boneca, para dar no
20
Natal. Resumia-se tudo a baixar-se, a tirar as caixas para
procurar uma boneca com olhos castanhos em vez de azuis,
chamar a senhora Hendrickson para abrir um expositor com a
sua chave, coisa que ela fazia de má vontade se estava
convencida de que não havia em stock a boneca em questão,
descer a coxia atrás do balcão para colocar uma boneca
comprada na montanha de caixas de acondicionamento - montanha
que crescia e ruía constantemente, por muitas vezes que os
rapazes do ares- mazém viessem buscar os embrulhos. Quase
não apareciam crianças na secção. A crença era de quem dava
as bonecas era o Pai Natal, um Pai Natal representado peon
las caras frenéticas e pelas mãos ávidas. No entanto,
de. beveria haver uma certa boa vontade em todas elas,
pensaita- va Therese, mesmo atrás dos rostos frios e empoados
das mulheres que usavam casaco de ui. son e zibelina, que
eram em geral as mais arrogantes e compravam apressaredamente
as bonecas maiores e mais caras, as que tinham cabelo
verdadeiro e mudas de roupa. Havia com certeza amor nas
pessoas pobres, que aguardavam a sua vez e a sair perguntavam
com voz baixa quanto custava determinaces- da boneca,
abanavam pesarosamente a cabeça e se afastra- tavam.
Treze dólares e cinquenta por uma boneca apeuenas com vinte e
cinco centímetros de altura.
"Leve-a", gostaria Therese de lhes dizer. "É na verdade muito
cara, mas dou-lha. O Frankenberg's não sentirá falta dela. "
Mas as mulheres de casacos de fazenda baratos, os homens
tímidos embrulhados com cachecóis esfiapados, ira-
afastavam-se, olhando tristemente para os outros
balcões, de regresso aos elevadores. Se as pessoas iam al
para comprar uma boneca, não queriam outra coisa.
Uma boneca era um tipo especial de presente de Natal, era uma
coisa praticamente viva, o que mais se aproximava de um bebé.
Quase nunca se viam crianças, mas de vez em quando aparecia
uma, geralmente uma menina pequena, no muito raro um
rapazinho, com a mão firmemente agarrada pelo pai ou pela
mãe. Therese mostrava-lhe as bo21
Natal. Resumia-se tudo a baixar-se, a tirar as caixas para
procurar uma boneca com olhos castanhos em vez de azuis,
chamar a senhora Hendrickson para abrir um expositor com a
sua chave, coisa que ela fazia de má von tade se estava
convencida de que não havia em stock a boneea em questão,
descer a coxia atrás do balcão para colocar uma boneca
comprada na montanha de caixas de acondicionamento - montanha
que crescia e ruía constantemente, por muitas vezes que os
rapazes do armazém viessem buscar os embrulhos.
Quase não apareciam crianças na secção. A crença era de quem
dava as bonecas era o Pai Natal, um Pai Natal representado
pelas caras frenéticas e pelas mãos ávidas. No entanto,
deveria haver uma certa boa vontade em todas elas, pensava
Therese, mesmo atrás dos rostos frios e empoados das mulheres
que usavam casaco de Vison e zibelina, que eram em geral as
mais arrogantes e compravam apressadamente as bonecas maiores
e mais caras, as que tinham cabelo verdadeiro e mudas de
roupa. Havia com certeza amor nas pessoas pobres, que
aguardavam a sua vez e perguntavam com voz baixa quanto
custava determinada boneca, abanavam pesarosamente a cabeça e
se afastavam. Treze dólares e cinquenta por uma boneca apenas
com vinte e cinco centímetros de altura.
"Leve-a", gostaria Therese de lhes dizer. "É na verdade muito
cara, mas dou-lha. O Frankenberg's não sentirá falta dela. "
Mas as mulheres de casacos de fazenda baratos, os homens
tímidos embrulhados com cachecóis esfiapados, afastavam-se,
olhando tristemente para os outros balcões, de regresso aos
elevadores. Se as pessoas iam ali para comprar uma boneca,
não queriam outra coisa. Uma boneca era um tipo especial de
presente de Natal, era uma coisa praticamente viva, o que
mais se aproximava de um bebé.
Quase nunca se viam crianças, mas de vez em quando aparecia
uma, geralmente uma menina pequena, muito raro um rapazinho,
com a mão firmemente agarrada pelo pai ou pela mãe. Therese
mostrava-lhe as bo21
necas de que pensava que a criança poderia gostar. Era
paciente e, por fim, uma certa boneca operava aquel
metamorfose no rosto da criança, aquela reacção ao faz-de-
conta que constituía, afinal, o objectivo de tudo aquilo, e
de modo geral era com essa boneca que a criança acabava por
se ir embora.
Até que uma tarde, depois do trabalho, Therese viu a senhora
Robichek na loja que vendia cafés e donuts, do outro lado da
rua. Therese passava por lá com frequência para tomar uma
chávena de café antes de regressar a casa. A senhora Robichek
estava na parte de trás da loja, ao fundo do comprido balcão
curvo, a molhar um donut na sua chávena de café.
Therese abriu caminho na direcção dela, pelo meio da confusão
de raparigas, chávenas de café e donuts. Ao chegar ao lado da
senhora Robichek disse um Olá ofegante e voltou-se para o
balcão, como se uma chávena de café tivesse sido o único
motivo que ali a levara.
- Olá - respondeu a senhora Robichek, tão indiferentemente
que Therese se sentiu desalentada. Não ousou olhar de novo
para ela, apesar de os ombros de ambas estarem, de facto,
comprimidos um contra o outro.
Ia a meio do café quando a mulher disse, desanimadamente:
- Vou apanhar o metro Independent. Mas não sei se
conseguiremos sair daqui -. A sua voz era melancólica, nada
parecida com a daquele dia, na cafetaria. Agora ela era a
velha corcovada que Therese vira arrastar-se pela escada
abaixo.
- Havemos de sair - respondeu-lhe, tranquilizadoramente.
Therese abriu caminho para ambas até à porta. Ela também ia
no metro Independent. Infiltraram-se, as duas, na multidão
lenta que entupia a entrada do metro e foram, gradual e
inevitavelmente, aspiradas pela escada abaixo, como pedaços
de detritos flutuantes sugados para um cano. Descobriram que
também se apeavam, as duas, na estação da Avenida Lexington,
embora a senhora Robichek morasse na Rua 55, a leste da 3ªa
Avenida.
22
Therese acompanhou-a à charcutaria onde ela ia comprar
qualquer coisa para ojantar. Ela também precisava de comprar
umas coisas para o seu jantar, mas, sem o saber porquê, não
foi capaz de o fazer na presença da outra.
- Tem comida em casa?
- Não, comprarei qualquer coisa depois.
- Porque não janta comigo? Estou só. Venha!
A senhora Robichek terminou o convite com um encolher de
ombros, como se isso custasse menos que um sorriso.
O impulso de Therese para protestar delicadamente durou
apenas um minuto.
- Obrigada. Tenho muito gosto -. Depois viu no balcão um
embrulho em celofane, um bolo inglês, que lembrava um grande
tijolo castanho coberto de cerejas vernelhas, e comprou-o
para o oferecer à senhora Robichek.
- A casa era como aquela onde Therese morava, com a
diferença de ser de arenito pardo e muito mais escura e
sombria. Não havia luz nos patamares, e quando a senhora
Robichek acendeu a luz do segundo andar, Therese notou que a
casa não primava pelo asseio. O quarto da senhora Robichek
também não estava muito limpo e a cama encontrava-se por
fazer. Therese pensou que ela se levantaria tão cansada como
se deitava. Foi abandonada no meio do quarto, enquanto a
mulher se dirigia, a arrastar os pés, para a kitchenette, com
o saco de compras que lhe tirara das mãos. Therese teve a
impressão de que, ao encontrar-se agora onde ninguém podia
vê-la, a senhora Robichek se permitia mostrar-se tão fatigada
como na realidade se sentia.
Therese nunca foi capaz de se lembrar como aquilo
começou. Não se lembrava da conversa imediatamente anterior,
mas a conversa não interessava, claro. O que aconteceu foi
que a senhora Robichek se afastou vagarosamente dela, de modo
estranho, como se estivesse em transe, passando de súbito a
murmurar em vez de falar e se deitou de costas, ao comprido,
na cama por fazer. Foi
23
o murmurar contínuo, o ténue sorriso de desculpa e a
terrível, chocante fealdade do corpo curto e pesado, com o
abdómen proeminente e a cabeça inclinada ainda a olhá-la
cortesmente, foi por tudo isso que Therese não conseguiu
forçar-se a ouvir.
-Eu tive a minha própria loja de vestidos, em Queens. Oh, era
uma bela loja, grande! - disse a se nhora Robichek, e Therese
detectou uma nota de gabarolice e começou a escutar mau grado
seu, embora detestasse fazê-lo. - Deve lembrar-se, os
vestidos com o V na cintura e as fieiras de botõezinhos a
subir. Foi há uns três, cinco anos... - A senhora Robichek
abriu as mãos hirtas, deformadas e encurtadas na cintura, sem
conseguir, longe disso, abarcar a metade da frente do seu
corpo. Parecia muito velha à luz eléctrica fraca, que
enegrecia as sombras debaixo dos seus olhos. - Chamavam-lhes
vestidos Caterina. Lembra-se? Fui eu que os desenhei. Era a
minha loja em Queens que os fornecia. Foram famosos, oh se
foram!
A senhora Robichek levantou-se da cama e dirigiu-se a uma
pequena arca que se encontrava contra a parede. Abriu-a, sem
deixar de falar, e começou a tirar lá de dentro vestidos de
um tecido escuro e pesado, que deixava cair para o chão.
Ergueu um de veludo vermelho-granada, com gola branca e
minúsculos botões que formavam um V na parte inferior do
corpo estreito.
- Vê, tenho uma quantidade deles. Fui eu que os fiz. Outros
armazéns copiaram-nos -. Por cima do vestido de gola branca,
que ela segurava com o queixo, a cabeça feia da senhora
Robichek inclinava-se grotescamente para o lado. - Gosta
deste? Eu dou-lhe um. Chegue cá. Chegue cá, experimente um.
Therese sentia-se repelida pela ideia de experimentar um dos
vestidos. Desejava que a senhora Robichek se deitasse e
descansasse de novo, mas obedientemente levantou- se, como se
não tivesse vontade própria, e aproximou-se dela.
A senhora Robichek encostou-lhe um vestido de veludo preto ao
corpo, eom as mãos trémulas e importunas,
24
e Therese soube de súbito como ela devia atender os clientes,
no armazém, mostrando-lhes camisolas atabalhoadamente, pois
seria incapaz de o fazer de qualquer outra maneira. Lembrou-
se de a ter ouvido dizer que trabalhava no Frankenberg's há
quatro anos.
-Gosta mais do verde? Experimente-o. - E, no instante em que
Therese hesitou, largou o verde e pegou noutro, no vermelho-
escuro. - Vendi cinco a raparigas do armazém, mas a si dou-
lhe um. Sobraram, mas ainda estão na moda. Gosta mais deste?
Therese gostava mais do vermelho. Gostava de vermelho, em
especial de vermelho-granada, e adorava veludo vermelho. A
senhora Robichek conduziu-a para um canto onde ela podia
despir-se e pôr a roupa numa ca deira de braços. Mas Therese
não queria o vestido, não queria que ela lho desse. Isso
recordava-lhe o tempo em que lhe davam roupa usada, no lar,
por ser considerada praticamente como uma das raparigas
órfãs, que constituíam metade das alunas e nunca recebiam
encomendas do exterior. Despiu a camisola e teve a impressão
de ficar completamente nua. Apertou os braços acima do
cotovelo e sentiu a carne fria e insensível.
- Eu costurei - dizia extasiadamente, para consigo própria, a
senhora Robichek -, oh, como costurei, de manhã à noite!
Tinha quatro raparigas a trabalhar para mim. Mas fiquei
doente dos olhos. Um cegou, este. Vista o vestido -. Falou a
Therese da operação do olho. Não estava cego, estava apenas
parcialmente cego. Mas era muito doloroso. Glaucoma. Ainda
agora lhe doía. O olho e as costas. E os pés. Joanetes.
Therese sentiu que ela estava a contar-lhe todos os seus
problemas de saúde, e a sua pouca sorte, para que ela
compreendesse por que motivo descera ao ponto de trabalhar
num armazém.
- Serve-lhe? - perguntou a senhora Robichek, confiantemente.
Therese viu-se ao espelho da porta do roupeiro, que lhe
mostrou uma figura longa e delgada, com uma cabeça estreita
cujos contornos pareciam flamejantes, fogo
25
amarelo, luminoso, que corria para as alças vermelhas de cada
ombro. O vestido caía em pregas largas quase até aos
tornozelos. Um vestido de rainhas de contos de fadas, com um
vermelho mais carregado que o sangue. Recuou, apertou o
tecido folgado das costas para que o vestido se lhe ajustasse
às costas e à cintura, e fitou os seus próprios olhos cor de
avelã escura, no espelho. Ela vendo-se a si própria. Ela era
o que o espelho lhe mostrava, isso e não a rapariga de saia
de pregas e camisola bege sem graça, não a rapariga que
trabalhava na Secção de Bonecas do Frankenberg's.
- Gosta? - perguntou a senhora Robichek. Therese estudou a
boca surpreendentemente tranquila, cujo desenho via com toda
a clareza, embora não usasse mais bâton do que teria depois
de alguém a ter beijado. Desejou poder beijar a pessoa que o
espelho lhe mostrava e insuflar-lhe vida, mas permaneceu
absolutamente imóvel, como um retrato pintado.
- Se gosta, fique com ele - insistiu a senhora Robichek,
impacientemente, observando-a de certa distância, de tocaia,
encostada ao roupeiro, como é costume das empregadas de
balcão enquanto mulheres experimentam casacos e vestidos
diante de espelhos, nas lojas.
Mas aquilo não duraria, Therese sabia que não duraria. Ela
mexer-se-ia e pronto, desapareceria tudo. Mesmo que ficasse
com o vestido, desapareceria, porque era uma coisa de minuto,
daquele minuto. Não queria o vestido. Tentou imaginá-lo no
seu armário, em casa, entre a sua outra roupa, e não foi
capaz. Começou a desabotoar os botões, a soltar a gola.
- Gosta, não gosta? - perguntou-lhe a senhora Robichek, com a
mesma confiança.
- Gosto - respondeu Therese com firmeza, admitindo a verdade.
Não conseguia desabotoar o colchete da parte de trás da gola.
A senhora Robichek teve de a ajudar, porque ela se
impacientava, mal podia esperar. Tinha a sensação de estar a
ser estrangulada. Que fazia ali? O que a levara a vestir um
vestido como aquele? De súbito, a se26
nhora Robichek e a sua casa pareceram-lhe um sonho horrível,
um sonho que ela acabava de perceber que estava a sonhar. A
senhora Robichek era a carcereira corcunda da masmorra. Ela
tinha sido levada para ali para ser atormentada.
- Que foi? Picou-a algum alfinete?
Os lábios de Therese abriram-se para falar, mas a sua mente
estava muito, muito longe. A sua mente estava num ponto
distante, num vórtice longínquo que se abria para o quarto
aterrador e obscuramente iluminado onde as duas pareciam
travar um combate desesperado. E no ponto do vórtice em que a
sua mente se encontrava ela sabia que era desesperança e nada
mais que a aterrava. Era a desesperança do corpo achacado da
senhora Robichek e do seu trabalho no armazém, do seu monte
de vestidos na arca, da sua fealdade, a desesperança de que
era inteiramente feito o fim da sua vida. E a desesperança de
si própria, de Therese, era a de alguma vez vir a ser a
pessoa que queria ser e de fazer as coisas que essa pessoa
faria. Teria sido a sua vida apenas um sonho, nada mais que
um sonho, e seria a realidade de tudo aquilo? Era o terror da
desesperança que a fazia querer despir o vestido e fugir
antes que fosse tarde de mais, antes que as cadeias caíssem à
sua volta e se fechassem.
Talvez fosse já demasiado tarde. Como num pesadelo, Therese
estava parada no quarto, em combinação, a tremer e incapaz de
se mexer.
- Que tem? Está com frio? Mas está calor.
Estava calor. O irradiador sibilava. O quarto cheirava a alho
e ao mofo da velhice, a remédios e ao cheiro metálico da
própria senhora Robichek. Therese desejava
deixar-se cair na cadeira onde se encontrava a sua saia e a
sua camisola. Se se deitasse em cima da sua própria roupa,
pensou, talvez não tivesse importância. Mas não, não devia,
absolutamente, deitar-se, fosse como fosse. Se o fizesse,
estaria perdida. As cadeias fechar-se-iam e ela seria una com
a corcunda.
Therese tremia violentamente. De súbito, descontrolou-se.
Era um calafrio, o que sentia, e não apenas susto
ou fadiga.
27
- Sente-se - disse a voz da senhora Robichek, de longe e com
ehocante indiferença e enfado, como se estivesse
perfeitamente habituada a ver raparigas desfalecerem no seu
quarto e, também de longe, os seus dedos secos de pontas
ásperas comprimiram-se contra os braços de Therese.
Therese debatia-se contra a cadeira, sabendo que ia sucumbir-
lhe e consciente, até, de que era por essa razão que ela a
atraía. Deixou-se cair na cadeira, sentiu a senhora Robichek
a puxar-lhe a saia, para a tirar de debaixo do seu corpo, mas
não encontrou forças nem vontade para se mexer. Continuava,
porém, no mesmo nível de percepção, continuava a ter a mesma
liberdade de pensar, apesar de os braços escuros da cadeira
subirem à sua volta.
- Passa demasiado tempo de pé no armazém - dizia a senhora
Robichek. - São dificeis, estes Natais. Já passei por quatro,
por isso sei. Precisa de aprender a poupar-se um pouco.
Arrastando-se pela escada abaixo agarrada ao corrimão.
Almoçando na cafetaria para se poupar. Descalçando os sapatos
dos pés com joanetes, para os aliviar, como a fila de
mulheres empoleiradas no irradiador da sala das empregadas,
lutando por um espaço nele, uma nesga, sobre a qual colocavam
um jornal e se sentavam durante cinco minutos.
A mente de Therese funcionava com muita clareza. Com uma
clareza espantosa até, embora ela soubesse que estava
simplesmente de olhos fixos no espaço à sua frente e que não
poderia ter-se mexido, mesmo que quisesse.
- Está apenas cansada, minha querida - disse a senhora
Robichek, enquanto lhe aconchegava um cobertor de lã à volta
dos ombros, na cadeira. - Precisa de descansar, depois de
estar de pé todo o dia, e de ficar de pé outra vez, agora, à
noite.
Therese lembrou-se de um verso de Elliot: Isso não é o que eu
pretendia, de modo algum. Não é, de modo algum, de modo
algum. Quis dizê-lo, mas não conseguiu fazer os lábios
28
moverem-se. Tinha na boca qualquer coisa doce e que
queimava. A senhora Robichek estava defronte dela dando-lhe
colheradas de um líquido de uma garrafa, introduzindo a
colher entre os seus lábios. Therese engolia obedientemente,
indiferente, mesmo que fosse veneno. Agorajá poderia mover os
lábios, já se poderia levantar da cadeira, mas não queria
mexer-se. Por fim, recostou-se, deixou a senhora Robichek
tapá-la com o cobertor e fingiu adormecer. Mas sem deixar de
observar a figura corcovada a andar de um lado para o outro,
levantando a mesa, despindo-se para se deitar. Viu a senhora
Robichek tirar um grande espartilho arrendado e depois
qualquer coisa com correias, que lhe passava à volta dos
ombros e descia parcialmente pelas costas. Fechou os olhos,
horrorizada, fechou-os com força, até que o protesto de uma
mola e um longo suspiro entrecortado lhe disseram que a
senhora Robichek se deitara. Mas as coisas não ficaram por
aí. A mulher estendeu o braço para o despertador e deu-lhe
corda, e, sem levantar a cabeça da almofada, tacteou até
encontrar a cadeira de costas direitas que se encontrava ao
lado da cama, onde voltou a pôr o relógio. Na escuridão,
Therese viu com dificuldade o seu braço levantar-se e baixar-
se quatro vezes, antes de o relógio encontrar a cadeira.
Esperarei quinze minutos até ela adormecer e depois vou-me
embora, pensou.
E, porque estava fatigada, tornou-se tensa para poder conter
aquele espasmo, aquela espécie de ataque súbito que era como
cair e que surgia todas as noites muito antes do sono, mas
que, no entanto, anunciava o sono. Daquela vez, não o sentiu.
Por isso, quando calculou que tinham decorrido quinze
minutos, vestiu-se e saiu silenciosamente. Foi fácil, afinal,
abrir apenas a porta e fugir dali. Foi fácil, pensou, porque
ela não estava, realmente, de modo algum a fugir.

Gapítulo II
- Terry, lembras-te daquele tipo, do Phil McElroy, de que te
falei? O da companhia de reportório? Bem, ele está aqui na
cidade e diz que terás um emprego dentro de duas semanas.
- Um emprego verdadeiro? Onde?
- Um espectáculo na Village. O Phil quer ver-nos esta noite.
Depois conto-te, quando chegar. Estarei aí dentro de uns
vinte minutos. Estou a sair da escola.
Therese subiu a correr os três lanços de degraus que levavam
ao seu quarto. Estivera a meio de lavar-se e, entretanto, o
sabonete secara-lhe no rosto. Olhou para a luva de turco cor
de laranja no lavatório.
- Um emprego! - murmurou. A palavra mágica. Vestiu um
vestido, pôs ao pescoço um pequeno fio de seda com uma
medalha de São Cristóvão, presente de aniversário de Richard,
e penteou-se com um pouco de água, para o cabelo parecer mais
arranjado. Depois colocou vários esboços e modelos em cartao
logo à entrada do armário, de maneira a poder chegar- lhes
facilmente quando Phil McElroy pedisse para os ver. "Não, não
te nho o que se pode chamar muita experiência genuína", teria
de dizer - e pensar nisso causou-lhe uma deprimente sensação
de fracasso. Não tinha sequer trabalhado como aprendiza, a
não ser aqueles dois dias em Montclair, fazendo o modelo em
cartão que o grupo amador acabara por utilizar. Frequentara
dois cursos de desenho cénico em Nova Iorque e lera uma
quantidade de livros. Pareceu-lhe ouvir Phil McElroy - um
jovem e
31
muito atarefado, provavelmente um pouco aborrecido por tê-la
visitado para nada - dizer pesarosamente que, afinal, ela não
servia. Mas, com Richard consigo, pensou, não seria tão
deprimente como se estivesse só. Richard despedira-se ou fora
despedido de uns cinco empregos desde que ela o conhecia.
Nada o incomodava menos que perder e arranjar empregos.
Therese lembrou-se de ter sido despedida da Pelican Press, um
mês atrás, e estremeceu. Nem sequer lhe tinham dado aviso
prévio, e ela supunha que a única razão do seu despedimento
residia no facto de o seu processo específico de investigação
ter terminado. Quando fora falar com o senhor Nussbaum, o
direetor, protestando por não ter recebido aviso prévio, ele
não soubera, ou fingira não saber, o que a expressão
significava. "Aviso? Que aviso?", replicara indiferentemente,
com o seu sotaque sibilante, e ela virara as costas e saíra a
correr, com medo de desatar a chorar no gabinete dele. Era
fácil para Richard, que vivia em casa com uma família para o
animar. Era ainda mais fácil para ele juntar dinheiro.
Juntara cerca de dois mil dólares num período de serviço de
dois anos na Armada, e mais mil no ano que se seguira. Mas de
quanto tempo precisaria ela para juntar os mil e quinhentos
dólares necessários para uma inscrição, como aprendiza, no
Sindicato dos Desenhadores Cénicos? Ao fim de quase dois anos
em Nova Iorque, conseguira amealhar apenas quinhentos
dólares.
- Reza por mim - pediu à Madona de madeira que tinha na
estante. Era a única coisa bela do seu apartamento, a Madona
de madeira que comprara no seu primeiro mês em Nova Iorque.
Gostaria de ter um lugar melhor para a pôr, na sala, que a
feia estante, que parecia feita de diversos caixotes de fruta
empilhados e pintados de vermelho. Desejava muito ter uma
estante de madeira de cor natural, suave ao toque e sedosa de
cera.
Foi à charcutaria e comprou seis latas de cerveja e um pouco
de queijo azull [Blue cheese, em inglês. Trata-se de um
queijo similar ao Roguefo, no aspecto e no paladar. (N. da
T.)]. Depois de voltar para casa,
32
lmbrou-se do motivo original que a levara à charcutaria:
comprar carne para o jantar. Ela e Richard tinham planeado
jantar em casa, essa noite. Isso podia agora ser modificado,
mas ela não gostava de tomar a iniciativa quando se tratava
de alterar planos que o envolviam. Por isso, preparava-se
para voltar a descer quando a campainha soou, com o toque
prolongado habitual de Richard. Therese carregou no botão do
trinco.
Richard subiu os degraus a correr, sorrindo.
- O Phil telefonou?
- Não.
- Óptimo. Isso quer dizer que vem.
- Quando?
- Dentro de minutos, suponho. Provavelmente não
se demorará muito tempo.
- Parece-te que é realmente um trabalho a valer?
- O Phil diz que sim.
- Sabes de que género de peça se trata?
- A única coisa que sei é que eles precisam de alguém para os
cenários. Porque não hás-de ser tu? - Richard olhou-a de alto
abaixo, com ar crítico, e sorriu.
- Estás com um aspecto formidável esta noite. Não fiques
nervosa, hem? Trata-se apenas de uma pequena companhia da
Village, e tu provavelmente tens mais talento que todos eles
juntos.
Therese pegou no sobretudo que ele deixara cair numa cadeira
e pendurou-o no armário. Por debaixo do sobretudo estava um
rolo de papel de desenho que Richard trouxera da escola de
artes.
- Fizeste alguma coisa boa, hoje?
- Assim-assim. Isso é uma coisa em que quero trabalhar em
casa - respondeu Richard, despreocupadamente. - Hoje tivemos
aquela modelo ruiva, de que eu gosto.
Therese gostaria de ver o esboço mas sabia que,
provavelmente, ele não o achava bastante bom. Algumas das
suas primeiras pinturas eram boas, como o farol em
33
azuis e pretos que estava pendurado por cima da cama dela e
que Richard fizera quando estava na Armada e tinha começado a
pintar. Mas os seus desenhos de modelos vivos ainda não eram
bons, e Therese duvidava que alguma vez viessem a ser. Ele
tinha uma nova nódoa de carvão que cobria todo um joelho das
suas calças de algodão cor de bronze. Trazia uma camisa
debaixo da camisola aos quadrados vermelhos e pretos e
calçava mocassins de carneira que lhe davam aos pés grandes o
aspecto de informes patas de urso. Therese pensou que parecia
mais um lenhador ou um atleta profissional qualquer do que
outra coisa. Era-lhe mais fácil imaginá-lo com um machado na
mão que com um pincel! Vira-o uma vez com um machado, a
rachar lenha no quintal das traseiras da sua casa, em
Brooklyn. Se ele não conseguisse provar à família que estava
a progredir alguma coisa na pintura, o mais provável era ter
de ir trabalhar, no Verão, na empresa de botijas de gás
paterna, e abrir a sucursal em Long Island, como o pai
desejava.
- Tens de trabalhar este sábado? - perguntou Therese, ainda
receosa de falar no emprego.
- Espero que não. Estás livre?
Ela lembrou-se de que não estava.
- Estou livre na sexta- feira - respondeu, resignadamente. -
Sábado é dia de sair tarde.
Richard sorriu.
- É uma conspiração -. Pegou-lhe nas mãos e colocou os braços
de Therese à volta da sua cintura, terminando o seu passear
desassossegado pelo quarto. - Domingo, talvez? A família
manda perguntar se podes ir almoçar lá a casa no domingo, mas
não teremos de nos demorar muito. Posso pedir uma camioneta
emprestada para darmos uma volta por qualquer lado; de tarde.
- Está combinado -. Therese gostava, e Richard também, de se
sentar na cabina do grande carro-cisterna da firma e ir
passear a qualquer lado, livres como se uma borboleta os
transportasse. Tirou os braços da cintura de Richard. Sentia-
se constrangida e idiota, como se estivesse a abraçar o
tronco de uma árvore, com os braços à volta dele.
34
- Comprei um bife para esta noite, mas no armazêm roubaram-
mo.
- Roubaram-to? De onde?
- Da prateleira onde pomos as nossas malas de mão. As pessoas
que eles contratam para o Natal não têm os armários com
fechadura habituais -. Agora sorria do sucedido, mas de tarde
quase chorara. Lobos, uma alcateia de lobos, pensara,
roubaram o raio de um pacote de carne só porque era comida,
uma refeição de borla. Perguntara às caixeiras todas se o
tinham visto, e todas elas tinham respondido que não. Não era
permitido levar carne para o armazém, dissera a senhora
Hendrickson, indignadamente. Mas que remédio, se todos os
talhos fechavam às seis da tarde?
Richard estendeu-se no sofá-cama. A sua boca era estreita e
de contornos irregulares, metade dela a descair, o que dava
uma certa ambiguidade à sua expressão, um ar que era umas
vezes de humor, outras vezes de mordacidade, contradição que
os seus olhos azuis inexpressivos e francos em nada
contribuíam para clarificar. Perguntou, vagarosa e
zombeteiramente:
- Foste aos Perdidos e Achados? Perdeu-se uma libra de carne.
Resposta a Almôndega.
Therese sorriu, dando uma vista de olhos às prateleiras da
sua kitchenette.
-Julgas que disseste alguma graça? Pois fica sabendo que a
senhora Hendrickson me disse que fosse perguntar lá abaixo,
aos Perdidos e Achados!
Richard deu uma gargalhada e levantou-se.
- Tenho aqui uma lata de milho e alguma alface para uma
salada. E há pão e manteiga. Queres que vá comprar umas
costeletas de porco congeladas?
Richard estendeu o braço comprido por cima do ombro dela e
tirou da prateleira o rectângulo de pão de centeio integral.
- Chamas a isto pão? São fungos. Olha para ele, azul como o
rabo de um mandril. Porque não comes o pão quando o compras?
- Serve-me para ver no escuro. Mas já que não gos35
tas... - tirou-lhe o pão e deitou-o no saco do lixo.
- Aliás, não era a esse pão que eu me referia.
- Mostra-me o pão a que te referias.
A campainha da porta tocou mesmo ao lado do frigorífico e ela
saltou para o botão do trinco.
- São eles - disse Richard.
Eram dois homens novos. Richard apresentou-os como Phil
McElroy e o seu irmão, Dannie. Phil não era nada como Therese
esperara. Não tinha uma expressão veemente ou séria, nem
sequer particularmente inteligente. E mal a olhou quando
foram apresentados.
Dannie ficou parado, com o sobretudo no braço, até Therese
lho tirar. Ela não conseguiu arranjar mais um cabide para o
sobretudo de Phil, que lho tirou da mão e atirou para uma
cadeira - metade para a cadeira e metade para o chão. Era um
velho e sujo sobretudo de pêlo de camelo. Therese serviu a
cerveja, o queijo e crackers, sempre à espera de que a
conversa entre Phil e Richard mudasse para o trabalho. Mas só
falavam de coisas que tinham acontecido desde a última vez
que se tinham visto em Kingston, Nova Iorque. No último
Verão, Richard trabalhara lá umas duas semanas, num mural de
um restaurante à beira da estrada, onde Phil estivera como
criado de mesa.
- Também trabalha no teatro? - perguntou Therese a Dannie.
- Não, não trabalho -. Parecia tímido, ou talvez estivesse
aborrecido e impaciente por se ir embora. Era mais velho que
Phil e de constituição um pouco mais forte. Os seus olhos
castanho-escuros andavam pensativamente de objeeto em
objecto.
- Eles ainda não têm nada, além de um director e três actores
- disse Phil a Richard, recostando-se no sofá. - O director é
um tipo com quem trabalhei uma vez em Filadélfia, Raymond
Gortes. Se eu a recomendar, é garantido que você entra -
afirmou, lançando um olhar a Therese. - Ele prometeu-me o
papel do segundo irmão, na peça. Chama-se Small Rain.
- É uma comédia? - perguntou Therese.
36
- Comédia. Três actos. Já fez alguns cenários, sozinha?
- Quantos cenários serão precisos? - perguntou Richard,
quando ela ia a responder.
- Dois, no máximo, e provavelmente remediar-se-ão só com um.
O papel principal é para a Georgia Halloran. Viram, por
acaso, aquela coisa do Sartre que eles lá fizeram, no Outono?
Ela entrou nisso.
- Georgia? - Richard sorriu. - Que aconteceu entre ela e o
Rudy?
Decepcionada, Therese ouviu a conversa fixar-se em Georgia e
Rudy e outras pessoas que ela não conhecia. Supôs que Georgia
fosse uma das raparigas com quem Richard tivera um caso. Ele,
uma vez, falara de cinco, mas não se lembrava de nenhum dos
nomes, a não ser do de Gelia.
- Este é um dos seus cenários? - perguntou-lhe Dannie, a
olhar para o modelo de cartão pendurado na parede, e quando
Therese acenou afirmativamente levantou-se para o ver melhor.
Entretanto, Richard e Phil tinham mudado de assunto e estavam
a falar de um homem de um lugar qualquer, que devia dinheiro
a Richard. Phil disse que tinha visto o homem na noite
anterior, no bar San Remo. O rosto alongado e o cabelo
aparado curto de Phil lembravam um El Greco, pensou Therese,
enquanto as mesmas feições, no seu irmão, faziam lembrar um
índio americano. E a maneira como Phil falava destruía por
completo a ilusão do El Greco. Ele falava como qualquer das
pessoas que se viam nos bares da Village, gente jovem,
supostamente escritores ou actores, mas que em regra não
fazia nada.
- Muito interessante - disse Dannie, espreitando atrás de uma
das figuras suspensas.
- É um modelo para Petruska, a cena da feira - explicou
Therese, perguntando-se se ele conheceria o bailado. Ele
podia ser advogado, pensou, ou mesmo médico. Tinha manchas
amareladas nos dedos, mas não eram de cigarros.
37
Richard disse qualquer coisa a respeito de estar com fome, e
Phil declarou, por sua vez, que estava esfomeado, mas nenhum
deles tocava no queijo que tinham à frente.
- Esperam-nos daqui a meia hora, Phil - repetiu Dannie.
Um momento depois, estavam todos de pé, a vestir os
sobretudos.
- Vamos comer a qualquer lado, Terry - propôs Richard. - Que
tal aquela casa checa, na Segunda?
- Está bem - respondeu ela, tentando mostrar-se agradável.
Aquilo era o fim, supunha, e não ficara nada definido. Sentiu
um impulso para fazer a Phil uma pergunta crucial, mas não
fez.
Na rua, começaram a andar na direcção da Baixa, em vez de
para cima. Richard caminhava ao lado de Phil e só olhou para
trás, para ela, uma ou duas vezes, como se quisesse
certificar-se de que ainda ali estava. Dannie segurava-lhe o
braço quando atravessavam ruas e ao passarem por espaços
sujos e escorregadios, que não eram gelo nem neve, mas sim
restos de um nevão de três semanas atrás.
- médico? - perguntou- lhe Therese.
- Físico. Estou a fazer cursos de pós-graduação na New York
University -. Sorriu a Therese, mas a conversa ficou por aí,
durante um bocado.
Depois ele observou:
- É muito diferente de desenhar para o teatro, não é?
Therese acenou afirmativamente.
- Muito diferente - concordou. Começou a perguntar-lhe se
tencionava fazer algum trabalho relacionado com a bomba
atómica, mas desistiu. Que importância teria, se ele
tencionasse ou não? - Sabe onde vamos?
Ele mostrou os dentes brancos e quadrados num sorriso largo.
- Sei. Vamos para o metro. Mas primeiro o Phil quer petiscar
em qualquer lado.
Estavam a descer a 3. a Avenida. E Richard falava com Phil a
respeito da ida deles à Europa, no próximo
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Verão. Therese sentiu uma ponta de embaraço, enquanto
caminhava atrás de Richard como um apêndice pendurado, porque
Phil e Dannie pensariam, naturalmente que ela era amante de
Richard. Ela não era sua amante, e Richard não esperava que o
fosse na Europa. A relação deles era estranha, supunha, e
quem a acreditaria? Sim porque, a julgar pelo que tinha visto
em Nova Iorque, toda a gente dormia com toda a gente com quem
tivesse saído mais do que uma ou duas vezes. E as duas
pessoas
com quem ela saíra antes de Richard - Angelo e Harry -
tinham-na certamente abandonado ao descobrirem
que não estava interessada em ter um caso com eles.
Tentara tê-lo com Richard três ou quatro vezes desde que o
conhecia, há um ano, embora com resultados negativos; Richard
dizia que preferia esperar - esperar que ela gostasse mais
dele. Richard queria casar com ela, Therese era a primeira
rapariga a quem pedira em casamento, dizia. Ela sabia que ele
repetiria o pedido antes de partirem para a Europa, mas não o
amava o suficiente para casar com ele. E, no entanto,
aceitaria dele a maior parte do dinheiro para a viagem,
pensou, com um sentimento de culpa quejá lhe era familiar.
Depois a imagem da senhora Semco, a mãe de Richard, veio-lhe
à memória, sorrindo aprovadoramente a ambos, ao seu
casamento, e Therese abanou involuntariamente a cabeça.
- Que foi? - perguntou Dannie.
- Nada.
- Tem frio?
- Não, nenhum.
Mas, apesar da resposta, ele apertou mais o braço dela a si.
Therese tinha frio e sentia-se, de modo geral, muito infeliz.
Era a relação meio suspensa, meio cimentada com Richard, bem
sabia. Viam-se cada vez mais, sem na realidade se tornarem
mais íntimos. Ela continuava a não estar apaixonada por ele
ao fim de dez meses, e talvez nunca viesse mesmo a estar,
embora persistisse o facto de que gostava mais dele que de
qualquer
pessoa que já conhecera, sem dúvida alguma que de
qualquer outro homem. Às vezes pensava que o amava,
39
quando acordava de manhã, olhava confusamente para o tecto e
se lembrava, de súbito, que o conhecia, se lembrava de súbito
do seu rosto resplandecente de afecto por ela, devido a algum
gesto de afecto seu em relação a ele; pensava que o amava
antes de o seu vazio sonolento ter tempo de se encher com a
consciência das horas que eram, do dia, do que ela tinha de
fazer - em suma, da substância mais sólida que constitui a
vida de uma pessoa. Mas esse sentimento não tinha semelhança
alguma com o que ela lera a respeito do amor. O amor parecia
ser uma espécie de ditosa insanidade. Na verdade, Richard
também não procedia como um homem ditosamente insano.
- Oh, chama-se tudo Germain-des-Près! -
gritou Phil, com um gesto largo da mão. - Eu dou-te algumas
moradas, antes de ires. Quanto tempo pensas demorar-te lá?
Uma camioneta com correntes a chocalhar e a bater virou à
frente deles, impedindo Therese de ouvir a resposta de
Richard. Phil entrou no Riker's da esquina da Rua 53.
- Não temos de comer aqui. O Phil quer demorar-se apenas um
momento -. Richard apertou o ombro de Therese, enquanto
entravam. - É um grande dia, não é, Terry? Não o sentes? É o
teu primeiro trabalho a valer!
Richard estava convencido disso, e Therese esforçou- se muito
para se compenetrar de que aquele poderia ser um grande
momento. Mas não conseguiu recapturar, sequer, a certeza que
se lembrava de ter tido quando olhara para a luva turca cor
de laranja, no lavatório, depois do telefonema de Richard.
Encostou-se ao tamborete ao lado do de Phil, e Richard parou
ao seu lado, ainda a falar com ele. A ofuscante luz branca
reflectida nas paredes e no chão de mosaicos brancos parecia
mais brilhante que a luz do Sol, porque ali não havia
sombras. Therese conseguia ver cada cabelo preto lustroso das
sobrancelhas de Phil e os pontos irregulares e lisos do
cachimbo apagado que Dannie segurava. Conseguia ver os
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pormenores da mão de Richard, que saía molemente da manga do
seu sobretudo, e de novo se deu conta da incongruência que
existia entre as mãos dele e o seu corpo frágil, de ossos
compridos. Eram mãos grossas, papudas até, e moviam-se do
mesmo modo cego e desarticulado quer pegassem num saleiro
quer na asa de uma mala. Ou lhe afagassem o cabelo, pensou.
As palmas das mãos dele eram extremamente macias, como as de
uma rapariga, e um pouco húmidas. Mas o pior é que ele
geralmente se esquecia de limpar as unhas, mesmo quando se
dava ao trabalho de se vestir a rigor. Therese dissera-lhe
qualquer coisa a esse respeito umas duas vezes, mas achava
que não podia voltar a falar-lhe do assunto sem o irritar.
Dannie observava-a. Ela ficou um momento presa pelos olhos
atentos do rapaz, mas depois baixou os seus. De súbito, soube
por que motivo não era capaz de recapturar a sensação que
experimentara antes: não acreditava, simplesmente, que Phil
McElroy lhe conseguisse arrranjar trabalho por recomendação
sua.
- Está preocupada por causa daquele trabalho?perguntou-lhe
Dannie, que estava de pé ao seu lado.
- Não.
- Não esteja. O Phil pode dar-lhe alguns palpites -. Meteu a
haste do cachimbo entre os lábios e deu a impressão de que ia
dizer mais qualquer coisa, mas voltou-se e não disse.
Ela ouvia vagamente a conversa de Phil com Richard. Agora
falavam de reservas de lugares em barcos.
-A propósito - disse Dannie -, o Black Gat Theatre fica
apenas a dois quarteirões da Rua Morton, onde eu moro. E o
Phil está comigo. Apareça por lá qualquer dia para almoçar
connosco, sim?
- Muito obrigada, terei muito gosto -. Provavelmente não
iria, mas tinha sido simpático da parte dele convidá-la.
- Que te parece, Terry? - perguntou-lhe Richard.
- Achas Março cedo de mais para irmos à Europa? melhor ir
cedo do que esperar que esteja lá tudo cheio de gente.
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- Março parece-me bem.
- Não há nada que nos impeça, pois não? Não me importo se não
concluir o período de Inverno, na escola.
- Não, não há nada que nos impeça -. Era fácil dizer. Era
fácil acreditar em tudo aquilo, e igualmente fácil não
acreditar em nada daquilo. Mas se fosse tudo verdade, se o
trabalho fosse mesmo a sério, a peça um êxito e ela pudesse
ir a França com pelo menos uma realização, atrás de si... De
súbito, estendeu a mão para o braço de Richard e deixou-a
escorregar até aos seus dedos. Richard ficou tão surpreendido
que parou no meio de uma frase.
Na tarde seguinte, Therese telefonou para o número de Watkins
que Phil lhe dera. Atendeu-a uma rapariga que lhe pareceu
muito eficiente. O senhor Gortes não estava, mas tinham
ouvido falar de Therese por intermédio de Phil McElroy. O
lugar era dela, podia começar a trabalhar a 28 de Dezembro,
com um salário semanal de vinte e oito dólares e cinquenta.
Antes disso, podia aparecer e mostrar ao senhor Gortes algum
trabalho seu, se quisesse, mas isso não era necessário, visto
o senhor McElroy a ter recomendado tão empenhadamente.
Therese ligou para Phil a fim de lhe agradecer, mas ninguém
atendeu o telefone. Escreveu-lhe, por isso, um bilhete, ao
cuidado do Black Gat Theatre.

Capítulo III

Roberta Walls, a chefe de vendas mais jovem da Secção de


Brinquedos, ao fazer a sua ronda apressada do meio da manhã
deteve-se apenas o tempo necessário para murmurar a Therese:
"Se não vendermos hoje esta mala de vinte e quatro dólares e
noventa e cinco, o preço baixará na segunda- feira e a secção
terá um prejuízo de dois dólares!" Roberta indicou com a
cabeça a mala de cartão castanha que estava em cima do
balcão, deposi tou o seu carregamento de caixas cinzentas nas
mãos da menina Martucci e afastou-se apressadamente.
Pela comprida coxia fora, Therese viu as caixeiras abrirem
caminho para Roberta passar. Roberta corria de balcão em
balcão e de uma ponta à outra do andar, das nove da manhã às
seis da tarde. Therese ouvira dizer que ela se estava a fazer
a outra promoção. Usava óculos arlequim vermelhos e, ao
contrário das outras raparigas, arregaçava sempre as mangas
da sua bata verde acima dos cotovelos. Therese viu-a
atravessar rapidamente uma coxia e deter a senhora
Hendrickson com um recado acalorado, transmitido por gestos.
A senhora Hendrickson acenou a concordar, Roberta tocou-lhe
familiarmente no ombro, e Therese sentiu uma pontinha de
ciúme. Ciúme, apesar de não se interessar minimamente pela
senhora Hendrickson e até antipatizar com ela.
- Têm uma boneca de pano que chore?
Therese não sabia da existência de semelhante boneca em
stock, mas a mulher garantia que o Frankenberg's
43
a tinha pois a vira anunciada. Therese foi buscar outra
caixa, do último lugar onde ela poderia estar - mas não
estava.
- Quetá a procurar? - perguntou-lhe fanhosamente a menina
Santini, que estava constipada.
- U ma boneca de pano que chora - respondeu.
A menina Santini mostrava-se muito cortês com ela,
ultimamente. Therese lembrou-se da carne roubada. Mas desta
vez a menina Santini limitou-se a arquear as sobrancelhas, a
espichar o lábio inferior vermelho e a afastar-se, com um
encolher de ombros.
- Feita de pano? Com tranças? - A menina Martucci, uma
rapariga italiana de nariz comprido como o focinho de um
lobo, magra e de cabelo em desordem, olhou para Therese. -
Tenha cuidado, para a Roberta não a ouvir - aconselhou, com
um olhar em redor. Não deixe ninguém ouvi-la, mas essas
bonecas estão na cave.
- Ah!
A Secção de Brinquedos do seu andar estava em guerra com a
Secção de Brinquedos da cave. A táctica era forçar os
clientes a comprarem no sexto andar, onde tudo era mais caro.
Therese disse à mulher que encontraria as bonecas que
procurava na cave.
- Tente vender isto hoje - disse-lhe a menina Davis, ao
passar de lado por ela, batendo na maltratada mala de
imitação de crocodilo com a mão de unhas pintadas de
vermelho.
Therese acenou com a cabeça.
- Têm bonecas de pernas rígidas? Que se ponham em pé?
Therese olhou para a mulher de meia-idade, apoiada em muletas
que lhe empurravam os ombros para cima. O seu rosto era
diferente de todos os rostos que se encontravam do outro lado
do balcão, bondoso e com uma certa cognição nos olhos, como
se eles vissem realmente aquilo para que olhavam.
- Essa é um pouco maior do que eu queria - disse a mulher,
quando Therese Lhe mostrou a boneca.
- Desculpe. Tem alguma mais pequena?
44
-Acho que sim -. Therese foi um pouco mais abaixo, ao longo
da coxia, e reparou que a mulher a seguia apoiada nas
muletas, contornando os magotes de pessoas comprimidas contra
o balcão, a fim de Lhe poupar o trabalho de voltar para trás
com a boneca. Isso deu-lhe uma vontade súbita de se esforçar
ao máximo, de procurar até encontrar exactamente a boneca que
a mulher pretendia. Mas a que encontrou a seguir também não
era bem a desejada: não tinha cabelo verdadeiro. Procurou
noutro lado e encontrou a mesma boneca, mas com cabelo
verdadeiro. Até chorava quando a inclinavam para a frente.
Era exactamente o que a mulher queria. Therese colocou
cuidadosamente a boneca, envolvida em papel de seda, numa
caixa nova.
- Essa é perfeita - repetiu a mulher. - Vou mandá-la para a
Austrália, para uma amiga minha que é enfermeira. Diplomou-se
pela escola de enfermagem ao mesmo tempo que eu, por isso fiz
um pequeno uniforme como o nosso, para vestir a boneca. Muito
obrigada. E desejo-lhe um Natal feliz!
- Feliz Natal para si! - respondeu Therese, a sorrir. Era a
primeira vez que uma cliente lhe desejava um Natal feliz.
- Ainda não teve o seu intervalo, menina Belivet?perguntou-
lhe a senhora Hendrickson, tão asperamente como se estivesse
a repreendê-la.
Therese não tivera. Tirou a carteira e o romance que andava a
ler da prateleira que ficava por debaixo do balcão onde as
embalagens eram feitas. O romance era Retrato do Artista
Quando Jovem, de Joyce, que Richard estava ansioso por que
ela lesse. Não compreendia, dizia ele como alguém podia ter
lido Gertrude Stein sem ler nada de Joyce. Ela sentia-se um
pouco inferior quando Richard falava de livros. Therese
metera o nariz em todas as estantes de livros da escola, mas
a biblioteca organizada pela Ordem de Santa Margarida era
muito pouco católica, percebia-o agora, embora contasse com
escritores tão inesperados como Gertrude Stein.
O corredor para as salas de repouso das funcionárias
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estava bloqueado por grandes carros de carga cheios de
caixas empilhadas, o que a obrigou a esperar até poder
passar.
- Fada! - gritou-lhe um dos carregadores.
Therese sorriu um pouco, por achar aquilo uma tolice. Até no
vestiário, na cave, lhe gritavam "Fada!", de manhã e à noite.
- Fada, espera por mim? - voltou a gritar a voz um pouco
rude, fazendo-se ouvir apesar dos choques dos carros uns
contra os outros.
Ela passou e desviou-se de outro carro que vinha na sua
direcção, com um empregado de balcão em cima.
- Aqui não se fuma! - gritou uma voz de homem, a voz muito
rezinguenta de um executivo, e as raparigas que estavam à
frente de Therese e tinham acendido cigarros sopraram fumo
para o ar e disseram alto, em coro, imediatamente antes de
chegarem ao refúgio da sala das mulheres:
- Quem julga ele que é, o senhor Frankenberg?
- Uh, uh, Fada!
- Eutou só à espera da minha oportunidade, Fada! Um carro
derrapou à sua frente, e Therese bateu com uma perna contra a
esquina de metal. Mas continou a andar sem olhar para a
perna, embora a dor começasse a alastrar, como uma explosão
lenta. Entrou no caos diferente de vozes de mulheres, figuras
de mulheres e cheiro a desinfectante. Corria-lhe sangue para
o sapato e tinha um buraco irregular na meia. Puxou um pouco
de pele levantada para o seu lugar e, sentindo-se agoniada,
encostou-se à parede e agarrou-se a um cano de água. Ficou
assim alguns segundos, escutando a confusão de vozes das
raparigas que estavam junto do espelho. Depois humedeceu
papel higiénico e esfregou até que o vermelho desapareceu da
meia, para voltar logo a seguir.
- Não tem importância, obrigada - disse a uma rapariga que se
debruçou um pouco para ela, e a outra afastou-se.
Por fim, não teve outro remédio senão recorrer a um
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pnso higiénico, que tirou da máquina distribuidora. Utilizou
um pouco de algodão do interior e prendeu-o à perna com a
gaze. Feito isso, eram horas de regressar ao balcão.
Os seus olhos encontraram-se no mesmo instante. Therese
levantando os seus de uma caixa que estava a abrir, e a
mulher virando simplesmente a cabeça, de modo que olhou
directamente para Therese. Era alta e loura, uma figura
esbelta, graciosa no casaco de peles solto que mantinha
aberto com uma mão na cintura. Os seus olhos eram cinzentos,
pálidos, mas apesar disso dominantes como luz ou fogo, e,
atraída por eles, Therese não conseguiu desviar os seus.
Ouviu a cliente que estava à sua frente repetir uma pergunta,
e continuou imóvel, muda. A mulher também olhava para ela,
com ar preocupado, como se metade do seu pensamento estivesse
no que tencionava comprar ali, e embora houvesse diversas
vrndedoras entre elas, Therese teve a certeza de que a mulher
se dirigiria a si. Depois viu-a caminhar vagarosamente para o
balcão, ouviu o próprio coração acelerar para recuperar o
momento que deixara passar, e sentiu o rosto corar enquanto a
mulher se ia aproximando.
- Posso ver uma daquelas maletas? - perguntou, e encostou-se
ao balcão, a olhar para baixo, através do tampo de vidro.
A mala maltratada estava apenas a um metro de distância, mas
Therese voltou-se e foi buscar uma caixa ao fundo de uma
rima, uma caixa que nunca fora aberta. Quando se endireitou,
a mulher olhava-a com os calmos olhos cinzentos que ela não
conseguia nem fitar abertamente nem evitar.
- É daquela que eu gosto, mas acho que não posso ficar com
ela, pois não? - disse, indicando com um movimento da cabeça
a maleta castanha que se encontrava no mostruário, atrás de
Therese.
As suas sobrancelhas eram louras e acompanhavam a curva da
fronte. A sua boca era tão expressiva como os seus olhos,
pensou Therese, e a sua voz, como o seu casaco, opulenta e
flexível, e de certo modo cheia de segredos.
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- Pode - respondeu Therese.
Foi ao depósito buscar a chave, que se encontrava logo à
entrada da porta, num prego, e na qual ninguém, a não ser a
senhora Hendrickson, estava autorizado a tocar.
A menina Davis viu o que ela estava a fazer e abriu a boca de
espanto.
- Preciso dela - disse-lhe Therese, e voltou a sair. Abriu a
montra, tirou a mala e pô-la em cima do balcão.
- Vai-me vender a da montra? - A mulher sorriu como se
compreendesse. Encostou ambos os antebraços ao balcão, a
estudar o conteúdo da mala, e observou ca sualmente: - Eles
vão ter um ataque, não acha?
- Não tem importância - respondeu Therese.
- Está bem, gosto desta. É para enviar à cobrança. E quanto
às roupas? Está tudo incluído?
Eram roupas embrulhadas em celofane, arrumadas na tampa da
mala e com o preço numa etiqueta.
- Não - respondeu Therese. - As roupas são à parte. Se deseja
roupas para bonecas... estas não são tão boas como as do
balcão de roupas para bonecas, do outro lado do corredor.
- Ah, sim! Isto chegará a Nova Jérsia antes do Natal?
- Sim, chegará na segunda- feira -. Se não chegasse, pensou
Therese, iria ela fazer a entrega pessoalmente.
- Senhora H. F. Aird - disse a voz suave e distinta da
mulher, e Therese começou a preencher o talão de envio à
cobrança.
O nome, a morada, a cidade, surgiram de debaixo do bico do
lápis como um segredo que Therese nunca esqueceria, como uma
coisa que se estivesse a gravar para sempre na sua memória.
- Não haverá engano, pois não? - perguntou a voz da mulher.
Therese teve pela primeira vez consciência do perfume da
cliente e, em vez de lhe responder, conseguiu apenas abanar a
cabeça. Olhou para baixo, para o talão a
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que estava a acrescentar cuidadosamente os números
necessários, e desejou, com toda a força com que era capaz de
desejar alguma coisa, que a mulher continuasse simplesmente a
falar e acrescentasse às últimas palavras que dissera: "Está
na realidade assim tão satisfeita por me ter conhecido? Nesse
caso, porque não voltamos a ver-nos? Porque não almoçamos
juntas, hoje?" A sua voz era tão despreocupada, ela poderia
tê-lo dito tão facilmente! Mas nenhuma outra palavra se
seguiu ao "pois não?", nada que mitigasse a vergonha de ter
sido reconhecida como uma empregada nova, contratada para a
lufa-lufa do Natal, inexperiente e susceptível de se enganar.
Therese empurrou o livro na direcção da cliente, para que ela
assinasse.
Depois a mulher pegou nas luvas que pousara no balcão,
voltou-se e afastou-se devagar, e Therese viu a distância
aumentar, aumentar... Os tornozelos dela, debaixo da pele do
casaco, eram claros e delgados. Galçava sapatos de camurça
preta simples, de salto alto.
- uma encomenda à cobrança?
Therese olhou para o rosto feio e vazio da senhora
Hendrickson e respondeu:
- É, sim, senhora Hendrickson.
- Não sabe que deve dar à cliente a tira do topo do talão?
Como quer que levantem a encomenda, quando ela chegar? Onde
está a cliente? Consegue alcançá-la?
- Consigo -. Ela estava apenas a três metros de distância, do
outro lado do corredor, no balcão de roupas para bonecas.
Com o talão verde na mão, Therese hesitou um momento e depois
saiu do balcão e foi levá-lo, forçando-se a caminhar, pois
sentia-se subitamente embaraçada com o seu aspecto, a velha
saia azul, a blusa de algodão - quem quer que distribuía as
batas verdes esquecera-se dela - e os humilhantes sapatos de
salto raso. Para não mencionar a horrível ligadura da perna,
que provavelmente estava outra vez ensopada em sangue.
- Devia ter-lhe dado isto - disse, colocando o miserável
papel ao lado da mão pousada na beira do balcão, e voltou
para trás.
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De novo no seu balcão, virou-se para as caixas de stock,
puxando-as e voltando a colocá-las pensativamente no seu
lugar, como se procurasse alguma coisa. Estava a matar tempo,
à espera de que a mulher acabasse o que estava a fazer noutro
balcão e se fosse embora. Tinha consciência de que os
momentos que passavam eram tempo irrevogável, felicidade
irrevogável, pois naqueles últimos segundos poderia virar-se
e ver o rosto que nunca mais tornaria a ver. Tinha
consciência, também, mas agora vagamente e com um horror
diferente, das antigas e incessantes vozes de clientes ao
balcão, exigindo serem atendidas, chamando-a, e do rrrrr
baixo e sussurrante do pequeno comboio, como parte da
tempestade que se aproximava e a separava da mulher.
Mas quando finalmente se virou, deu de novo com os olhos
cinzentos. A mulher encaminhava-se para ela e, como se o
tempo tivesse andado para trás, encostou-se mais uma vez ao
balcão, apontou para uma boneca e pediu para a ver.
Therese foi buscar a boneca e deixou-a cair, ruidosamente, no
balcão de vidro. A mulher olhou-a.
- Parece inquebrável - comentou.
Therese sorriu.
- Sim, também a quero - disse a voz serena e lenta que criou
um lago de silêncio no tumulto que as cercava. Voltou a dizer
o seu nome e a sua morada e Therese escutou- os vagarosamente
dos seus lábios, como se os não soubesse já de cor. -
Chegará, de facto, antes do Natal?
- Chegará segunda-feira, o mais tardar. Dois dias antes do
Natal, portanto.
- Óptimo. Não é minha intenção enervá-la.
Therese apertou o nó do fio que colocara à volta da caixa da
boneca e, misteriosamente, o nó desfez-se.
- Não - disse. Num embaraço tão profundo que não lhe deixava
nada para defender, voltou a dar o nó, sob o olhar da mulher.
- É um trabalho ingrato, não é?
- É -. Therese meteu os talões da cobrança debaixo do fio e
prendeu-os com um alfinete.
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- Desculpe-me, por isso, se reclamei.
Therese lançou-lhe um olhar e voltou a ter a impressão de que
a conhecia de algum lado, de que a mulher estava na iminência
de revelar quem era. e ririam ambas, e compreenderiam.
- Não está a reclamar. Mas eu sei que chegará a tempo -.
Therese olhou para o outro lado do corredor, para onde a
mulher estivera antes, e viu que o talão de papel verde
continuava no balcão, onde ela o tinha posto. - Deve levar,
realmente, o talão de entrega à cobrança.
O sorriso modificou os olhos da outra, iluminou-os com um
fogo cinzento, incolor, que Therese quase conhecia, quase
sabia identificar.
-Já tenho levantado coisas sem eles. Perco-os sempre -.
Inclinou-se para assinar o segundo talão.
Therese viu-a afastar-se com o mesmo passo lento de quando
chegara, viu- a olhar para outro balcão, de passagem, e bater
com as luvas pretas duas, três vezes na palma da mão. Depois
desapareceu no elevador.
E Therese voltou-se para a cliente seguinte. Trabalhou com
uma paciência infatigável, mas os seus algarismos nos talões
de vendas tinham uma espécie de ténues caudas, onde o lápis
saltara convulsivamente. Foi ao escritório do senhor Logan, o
que pareceu levar horas, mas quando olhou para o relógio
verificou que tinham passado apenas quinze minutos, e agora
era altura de se lavar para o almoço. Parou rigidamente
diante da toalha rotativa, a enxugar as mãos, sentindo-se
despegada de tudo e de todos, isolada. O senhor Logan
perguntara-lhe se queria continuar a trabalhar ali depois do
Natal. Podiam arranjar-lhe um lugar na Secção de Gosméticos.
Respondeu que não.
No meio da tarde, foi ao primeiro andar e comprou um cartão
no balcão respectivo. Não era um cartão muito interessante,
mas pelo menos era simples, num despretensioso azul e
dourado. Parou com a caneta imóvel sobre o cartão, pensando
no que poderia escreveraÉ esplêndida", ou "Amo-a" -, mas
acabando por es51
crever muito depressa a frase angustiantemente insípida e
impessoal: "Saudações especiais do Frankenberg's!"
Acrescentou o seu número, 645- A, em lugar da assinatura.
Depois foi ao posto dos correios, na cave, hesitou na caixa
do correio, perdendo subitamente a coragem ao ver a sua mão
segurando o cartão meio enfiado na ranhura. Que aconteceria?
Ia deixar o armazém dentro de poucos dias. Que se importaria
a senhora H. F. Aird? As sobrancelhas louras talvez se
erguessem um pouco, ela olharia um momento para o cartão e
depois esquecê-lo-ia. Therese deixou- o cair na caixa.
A caminho de casa, teve uma ideia para um cenário, o interior
de uma casa com mais profundidade que largura, com uma
espécie de vórtice no centro, do qual partiriam salas de um
lado e do outro. Queria começar o modelo em cartão nessa
noite, mas não conseguiu mais que desenvolver o esquisso a
lápis. Apetecia-lhe ver alguém - não Richard, não Jack ou
Alice Kelly, do andar de baixo, talvez Stella, Stella
Overton, a desenhadora cénica que conhecera durante as suas
primeiras semanas em Nova Iorque. Só então se deu conta de
que não a via desde que ela comparecera no cocktail que
Therese oferecera antes de se mudar do seu outro apartamento.
Stella era uma das pessoas que não sabiam onde ela morava
agora. Ia a descer para o telefone do átrio, quando ouviu os
três toques rápidos de campainha que significavam haver um
telefonema para si.
- Obrigada - gritou para baixo, para a senhora Osborne.
Era o telefonema habitual de Richard, por volta das nove da
noite. Queria saber se ela estava com disposição para ir ao
cinema na noite seguinte. Era o filme que ia no Sutton e que
ainda não tinham visto. Therese respondeu que não tinha nada
combinado para essa altura, mas que queria acabar a cobertura
de uma almofada. Alice Kelly dissera que ela podia servir-se
da sua máquina de costura na noite seguinte. E, além disso,
tinha de lavar a cabeça.
- Lava-a esta noite e encontra-te comigo amanhãdisse Richard.
52
-Já é muito tarde. Não posso dormir com a cabeça molhada.
- Eu lavo-ta amanhã à noite. Não utilizaremos a banheira,
apenas dois baldes.
Therese sorriu.
- Acho melhor não -. Ela caíra na banheira, na ocasião em que
Richard lhe lavara a cabeça. Ele estava a imitar o barulho do
cano da banheira, torcendo-se e fazendo ruídos, e ela rira-se
tanto que os pés lhe tinham escorregado no chão.
- E quanto àquela exposição de arte, no sábado? Está aberta à
tarde.
- Mas sábado é o dia em que tenho de trabalhar até às nove.
Não conseguirei sair antes das nove e meia.
- Ah. Bem, eu fico na escola e depois encontramo-nos à
esquina, cerca das nove e meia. Na esquina da Quarenta e
Cinco e Cinquenta, está bem?
- Combinado.
- Alguma novidade, hoje?
- Não. E tu?
- Não. Vou informar-me sobre as reservas para viagens de
barco, amanhã. Telefono-te amanhã à noite.
Therese acabou por não telefonar a Stella. No dia seguinte
era sexta- feira, a última sexta-feira antes do Natal e o dia
mais cheio de trabalho que Therese tivera desde que estava no
Frankenberg's, embora toda a gente dissesse que o dia
seguinte ainda seria pior. As pessoas apertavam-se, com uma
força alarmante, contra os balcões de vidro. Clientes que
começara a atender eram arrastados e perdiam-se na corrente
glutinosa que enchia o corredor. Impossível imaginar que
poderiam caber mais pessoas naquele andar, mas os elevadores
não paravam de despejar gente.
- Não percebo por que motivo não fecham as portas lá em
baixo! - observou Therese à menina Martucci quando estavam
ambas curvadas para uma prateleira de stock.
- O quê? - perguntou a outra, que não conseguira ouvi-la.
53
- Menina Belivet! - gritou alguém, e soou um apito. Era a
senhora Hendrickson. Naquele dia resolvera utilizar um apito
quando queria que alguém lhe prestasse atenção. Therese foi
na sua direcção, passando por outras caixeiras e pelo meio de
caixas vazias, no chão.
- Chamam-na ao telefone - informou a senhora Hendrickson,
apontando para o aparelho que se encontrava perto da mesa
onde se faziam os embrulhos.
Therese fez um gesto de impotência que a senhora Hendrickson
não teve tempo de ver. Era impossível ouvir alguma coisa pelo
telefone, naquela altura. E ela sabia que, provavelmente, se
tratava de Richard, armado em engraçadinho. Já uma vez lhe
telefonara.
- Sim?
- É a colega seis quarenta e cinco A, Therese Belivet? -
perguntou a telefonista, no meio dos estalidos e zumbidos. -
Atenda.
- Sim? - repetiu Therese, e quase não ouviu nada em resposta.
Tirou o telefone de cima da mesa e penetrou umas dezenas de
centímetros com ele na sala de stocks. O fio era curto e ela
teve de se inclinar para o chão. - Sim?
- Olá - disse a voz do outro lado. - Bem... queria agradecer-
lhe o cartão de Natal.
-Ah! Ah, é a...
- Fala a senhora Aird. Foi você que o enviou, ou não?
- Fui - respondeu Therese, subitamente tensa e sentindo-se
culpada, como se tivesse sido surpreendida a cometer um
crime. Fechou os olhos e puxou o telefone, vendo de novo o
olhar inteligente e risonho, como o vira na véspera. -
Lamento muito se a aborreceu - acrescentou maquinalmente, com
a voz que empregava quando atendia as clientes.
A mulher riu-se.
- Isto é muito engraçado - disse despreocupadamente, e
Therese detectou o mesmo arrastar de voz na tural que ouvira
na véspera... que amara na véspera, e sorriu.
54
- Aeha? Porquê?
- Você deve ser a rapariga da Secção de Brinquedos.
- Sou.
- Foi muitíssimo simpático da sua parte enviar-me o cartão -
declarou a mulher, cortesmente.
Therese compreendeu, então. Ela pensara que era de um homem,
de algum outro empregado que a atendera.
- Foi muito agradável atendê-la - respondeu.
- Foi? Porquê? - Falava como se estivesse a troçar dela. -
Bem, já que é Natal, porque não nos encontramos para tomar um
café, pelo menos? Ou uma bebida. Therese estremeceu, quando a
porta se abriu de repente e uma rapariga entrou e parou
diante dela.
- Sim... teria muito gosto.
- Quando? - perguntou a mulher. - Amanhã de manhã vou a Nova
Iorque. Porque não almoçamos as duas? Tem algum tempo
disponível, amanhã?
- Claro que tenho. Uma hora, do meio-dia à uma
- respondeu Therese, de olhos fixos nos pés, metidos em
mocassins largos e rasos, da rapariga que estava à sua
frente. A parte de trás dos seus tornozelos grossos e as
barrigas das suas pernas, de meias de algodão, mexiam-se como
as pernas de um elefante.
- Posso esperá-la cá em baixo, na entrada do lado da Rua 34,
cerca do meio-dia?
- Pois sim. Eu... - Therese lembrou-se que no dia seguinte
começava a trabalhar à uma hora em ponto. Tinha a manhã
livre. Levantou o braço, para se proteger da avalancha de
caixas que a outra empregada tirara da prateleira. A própria
rapariga recuou contra ela. - Es tá? - gritou Therese, no
meio do barulho das caixas a
cair.
- Peço desculpa - disse irritadamente a senhora Zabriskie, e
saiu.
- Está? - repetiu Therese. O telefone estava desligado.
55
56
Capítulo IV
- Olá - saudou a mulher, sorrindo.
- Olá.
- Que se passa?
-Nada -. Pelo menos ela tinha-a reconhecido, pensou Therese.
- Tem alguma preferência a respeito de restaurantes? -
perguntou-lhe a outra, no passeio.
-Não. Seria agradável arranjarmos um sossegado, mas aqui nas
imediações não há nenhum.
- Não tem tempo para irmos ao East Side? Claro que não, se
tem apenas uma hora para o almoço. Acho que conheço um lugar
bom, a dois quarteirões a oeste desta rua. Acha que tem
tempo?
- Tenho, com certeza -. Já era meio-dia e um quarto. Therese
sabia que chegaria atrasadíssima ao trabalho, mas não se
importava nada com isso.
Não se incomodaram a falar no caminho. De vez em quando, a
multidão separava-as, e numa ocasião a mulher olhou para
Therese, com um carro de mão cheio de roupas de permeio, e
sorriu. Entraram num restaurante com traves de madeira e
toalhas de mesa brancas, miraculosamente sossegado e apenas
meio de gente. Sentaram-se num compartimento grande, de
madeira, e a mulher encomendou um Old Fashioned sem açúcar
[Cocktail feito com uísque, angustura, açúcar e frutas (N. do
E.)] e
57
convidou Therese a tomar outro, ou um xerez, e como ela
hesitasse mandou o empregado de mesa embora.
Tirou o chapéu e passou os dedos pelo cabelo louro, uma vez
de cada lado, e depois olhou para Therese.
- Onde foi buscar a bonita ideia de me enviar um cartão de
Natal?
- Lembrei-me de si -. Therese olhou para os pequenos brincos
de pérolas, que não pareciam mais claros que o próprio cabelo
ou os olhos. Achava-a bela, embora o rosto fosse agora uma
mancha vaga, porque não era capaz de o olhar de frente. Ela
tirou qualquer coisa da mala de mão - bâton e compact - e
Therese observou o estojo do bâton: dourado como uma jóia e
do formato de um baú de bordo. Desejava olhar para a boca da
mulher, mas os olhos cinzentos, tão próximos, não a deixavam,
percorriam-na, tremeluzentes como fogo.
- Não trabalha naquele armazém há muito tempo, pois não?
- Não. Há cerca de duas semanas, apenas.
- E não ficará lá muito tempo... provavelmente -. Ofereceu um
cigarro a Therese, que aceitou.
- Não. Terei outro emprego -. Inclinou-se para o isqueiro que
ela estendia, para a mão esguia com as unhas ovais vermelhas
e salpicos de sardas nas costas.
- Sente-se muitas vezes inspirada para mandar bilhetes-
postais?
- Bilhetes-postais?
- Cartões de Natal -. Sorriu a si mesma.
- Claro que não.
- Bem, ao Natal -. Tocou com o seu no copo de Therese e
bebeu. - Onde mora? Em Manhattan?
Therese disse-lhe. Na Rua 63. Os seus pais tinham morrido,
acrescentou. Vivia em Nova Iorque há dois anos, e antes disso
estivera numa escola em Nova Jérsia. Não disse que a escola
era semi-religiosa. Episcopal. Não mencionou a Irmã Alicia,
que adorara e em quem pensava tantas vezes, com os seus olhos
azul-pálidos, o seu nariz feio e a sua carinhosa severidade.
Não a mencionou porque, desde a manhã do dia anterior, a Irmã
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Alicia fora relegada para muito longe, encontrava-se muito
abaixo da mulher sentada agora defronte de si.
- E que faz no seu tempo livre? - O candeeiro da mesa
tornava-lhe os olhos prateados, enchia-os de luz líquida. Até
a pérola no lóbulo da orelha parecia viva, como uma gota de
água que um toque poderia destruir.
- Eu... - Deveria dizer-lhe que, geralmente, trabalhava nos
seus modelos cénicos? Que às vezes desenhava e pintava,
esculpia coisas como cabeças de gatos e figurinhas minúsculas
para os seus cenários de bailado, mas do que mais gostava era
de dar longos passeios a pé, fosse onde fosse, do que mais
gostava era, simplesmente, de sonhar? Achou que não tinha de
lho dizer. Achou que os olhos da mulher não eram capazes de
olhar para uma coisa sem a compreenderem completamente. Bebeu
um pouco mais, a gostar, apesar de a sensação que lhe causava
engolir o líquido fosse, como a mulher, aterradora e forte.
A outra fez sinal ao empregado, que trouxe duas novas
bebidas.
- Gosto disso.
- De quê? - perguntou Therese.
- Que alguém tivesse enviado um cartão, alguém que eu não
conhecia. Era assim que as coisas deviam ser no Natal. E este
ano gostei particularmente.
- Ainda bem -. Therese sorriu, perguntando-se se ela estaria
a falar a sério.
- Você é uma rapariga muito bonita - disse a outra. - E muito
sensitiva, também, não é?
Podia estar a falar de uma boneca, pensou Therese, tão
casualmente dissera que ela era bonita.
- Acho-a magnífica - respondeu, encorajada pela segunda
bebida, sem se importar com a maneira como as palavras
soavam, pois estava certa de que, de qualquer modo, a mulher
sabia.
A outra riu-se, com a cabeça lançada para trás. O seu riso
era um som mais belo que música. Produziu-lhe uma rugazinha
ao canto dos olhos, e depois ela franziu os lábios vermelhos,
para puxar fumo do cigarro.
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Olhou um momento para além de Therese, com os cotovelos em
cima da mesa e o queixo apoiado na mão que segurava o
cigarro. Da cintura do casaco do seu conjunto preto, justo,
subia uma linha comprida até ao ombro que alargava, e depois
seguia-se, bem erguida, a cabeça loura, de cabelo
desordenado. Devia ter trinta, trinta e dois anos, pensou
Therese, e a sua filha, para a qual comprara a maleta e a
boneca, talvez seis, oito. Conseguia imaginar a criança,
cabelo louro, rosto dourado e feliz, corpo esguio e bem
proporcionado, e sempre a brincar. Mas o rosto da criança, ao
contrário do da mulher com as suas faces curtas e uma
compacidade um tanto nórdica, era vago e indefnido. E o
marido? A ele não conseguia imaginá-lo.
- Tenho a certeza de que pensou que tinha sido um homem que
lhe enviara o cartão de Natal, não pensou?
- Pensei - confirmou, sorrindo. - Pensei que talvez tivesse
sido um homem da Secção de Esqui.
- Desculpe.
- Não tem de quê, estou encantada -. Encostou-se para trás. -
Duvido muito que tivesse vindo almoçar com ele. Sério, estou
encantada.
O odor estranho e levemente doce do seu perfume chegou de
novo às narinas de Therese, um odor sugestivo de seda verde-
escura, que era só dela, como o cheiro de uma flor especial.
Therese inclinou-se, chegou-se mais para ela, de olhos baixos
no copo. Apetecia-lhe afastar a mesa para o lado e saltar
para os braços dela, mergulhar o nariz no lenço verde e ouro
que ela trazia bem aconchegado ao pescoço. Uma vez, as costas
das mãos de ambas roçaram uma na outra, em cima da mesa, e
depois a pele de Therese, na área do contacto, pareceu
separada da restante, com vida independente e abrasada. Ela
não podia compreender aquilo, mas era assim. Olhou para o
rosto da mulher, que estava um pouco virado, e voltou a
sentir aquele instante de semi-reconhecimento. E soube,
também, que não devia acreditar nele. Nunca tinha visto
aquela mulher antes. Se tivesse, poderia tê-la esquecido? No
silêncio, percebeu
60
que esperavam ambas que a outra falasse, mas apesar disso o
silêncio não era incómodo. Os pratos da comida tinham
chegado. Creme de espinafres com um ovo em dma, fumegante e
rescendendo a manteiga.
- Por que razão vive sozinha? - perguntou a mulher, e quando
Therese deu conta de si tinha-lhe contado a história da sua
vida.
Mas não com pormenores enfadonhos. Em meia dúzia de frases,
como se tudo significasse menos para ela do que uma história
que lera em qualquer lado. E, no fim de contas, que
importavam os factos, que importava que a sua mãe fosse
francesa, inglesa ou húngara, ou que o seu pai tivesse sido
um pintor irlandês, ou um advogado checo, se tivera êxito ou
não, ou que a mãe a tivesse entregue à Ordem de Santa
Margarida como uma criancinha impertinente e chorona, ou como
uma garota de oito anos insolente e tristonha? Ou se ela lá
tinha sido feliz? Porque ela era feliz agora, a partir
daquele dia. Não tinha necessidade alguma de pais nem de
antecedentes.
- Haverá alguma coisa mais aborrecida que a história passada?
- perguntou, sorrindo.
- Talvez futuros sem história alguma.
Therese não meditou naquelas palavras. Estavam certas.
Continuava a sorrir, como se tivesse acabado de aprender como
se sorria e não soubesse parar. A mulher sorria também,
divertida, e Therese pensou que talvez estivesse a rir-se
dela.
- Que tipo de apelido é Belivet?
- checo. Foi modificado - explicou Therese, atrapalhada. -
Originariamente...
- É muito original.
-E o seu nome, qual é? - perguntou Therese.
- O seu primeiro nome?
-O meu nome? Carol. Por favor, não me chame nunca Carole.
- Por favor, não me chame nunca Therise - pediu Therese,
pronunciando o "th".
- Como gosta que seja pronunciado? Therese?
61
- Sim. Como o pronunciou. Carol pronunciava o nome dela à
maneira francesa..
- Têrez. Therese estava habituada a uma dúzia de variações, e
às vezes ela própria o pronunciava de modo diferente. Gostava
da maneira como Carol o pronunciava, e gostava de ver os seus
lábios dizê-lo. Uma ânsia indefinida, de que antes tivera
apenas, às vezes, uma consciência vaga, tornou-se
reconhecível como um desejo. Mas era um desejo tão absurdo,
tão embaraçoso, que o expulsou do pensamento.
- Que faz aos domingos? - perguntou-lhe Carol.
- Nem sempre sei. Nada de especial. E você?
- Nada... ultimamente. Se alguma vez quiser visitar-me, será
bem-vinda. Pelo menos há algum campo à volta do lugar onde
vivo. Gostaria de sair este domingo?
- Agora os olhos cinzentos olhavam-na bem de frente, e
Therese fitou-os pela primeira vez. Viu neles uma certa dose
de humor. E que mais? Curiosidade, e também um desafio.
- Gostaria - respondeu.
- Que estranha rapariga você é.
- Porquê?
- Saída do espaço - disse Carol.
62
Capítulo V
Richard estava à esquina da rua, à sua espera, apoiando-se
ora num pé ora no outro, ao frio. Therese percebeu de repente
que naquela noite não tinha frio nenhum, apesar de ver outras
pessoas pelas ruas encolhidas dentro de sobretudos e abafos.
Deu o braço a Richard e apertou-o afectuosamente.
- Estiveste lá dentro? - perguntou-lhe. Chegara dez minutos
atrasada.
- Claro que não. Estive à tua espera -. Encostou os lábios e
o nariz frios à face dela. - Tiveste um dia muito mau?
- Não.
A noite estava muito escura, apesar das luzes natalícias
nalguns candeeiros de iluminação pública. Therese olhou para
o rosto de Richard, à chama do fósforo que ele acendeu. A
laje lisa da sua fronte sobrepujava-lhe os olhos
semicerrados, com o aspecto forte da fronte de uma baleia,
pensou, suficientemente forte para amolgar qualquer coisa. A
sua cara parecia esculpida em madeira, alisada e despida de
adornos. Viu os olhos dele abrirem-se como manchas de céu
azul na escuridão.
Richard sorriu-lhe.
-Esta noite estás bem disposta. Queres descer o quarteirão?
Não se pode fumar lá dentro. Um cigarro?
- Não, obrigada.
Começaram a andar. A galeria ficava mesmo ao lado deles, uma
enfiada dejanelas iluminadas, cada uma com
63
a sua coroa de Natal, no primeiro andar do grande edificio.
Amanhã veria Carol, pensou Therese, amanhã, às
onze horas da manhã. Vê-la-ia apenas a uns dez quarteirões
dali, dentro de pouco mais de doze horas. Ia a dar
de novo o braço a Richard, mas, de súbito, sentiu-se
acanhada. A leste, ao fundo da Rua 43, viu Oríon,
perfeitamente posicionada no centro do céu, entre os
edificios. Costumara olhá-la das janelas da escola e da
janela
do seu primeiro apartamento em Nova Iorque.
- Hoje fiz as nossas reservas - disse Richard.
- No President Taylor, que parte a 7de Março. Falei com
o tipo que vende os bilhetes e creio que ele poderá arranjar-
nos quartos exteriores, se eu não o largar.
- 7de Março? - Therese ouviu o sobressalto de excitação na
sua própria voz, apesar de agora não querer
de modo algum ir à Europa.
- Daqui a cerca de dez semanas - confirmou Richard, pegando-
lhe na mão.
- Podes cancelar a reserva no caso de não me ser
possível ir? - O melhor seria dizer-lhe já que não queria ir,
pensou, mas isso só serviria para ele discutir, como
fizera antes quando ela hesitara.
- Oh, claro que sim, Terry! - respondeu e riu-se.
Richard balançava a mão dela enquanto andavam.
Como se fossem amantes, pensou Therese. O que sentia
por Carol era quase como amor, com a diferença de que
Carol era uma mulher. Não era exactamente loucura, mas era
com certeza ditoso. Uma palavra idiota, mas como poderia ela
sentir-se mais feliz do que se sentia agora, e se sentira
desde quinta-feira?
- Gostaria que pudéssemos compartilhar um - disse Richard.
- Compartilhar um quê?
- Um quarto! - gritou Richard, a rir, e Therese reparou que
duas pessoas que estavam no passeio se voltaram para os
olhar. - Vamos tomar uma bebida em
qualquer lado, para festejarmos? Podemos ir ao Mansfield,
depois da esquina.
- Não me apetece estar parada. Deixemos isso para
mais tarde.
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Entraram na exposição por metade do preço, graças a bilhetes
distribuídos pela escola de arte que Richard freequentava. A
galeria era composta por uma série de salas de tectos altos e
sumptuosamente alcatifadas, um pano de fundo de opulência
financeira para os cartazes publicitários, os desenhos,
litografias, ilustrações ou fosse o que fosse que pendia, em
filas apertadas, das paredes. Richard observou alguns minutos
a fio, mas Therese chou-os um pouco deprimentes.
- Viste este? - perguntou Richard, apontando para o desenho
complicado de um guarda-fios a reparar uma linha telefónica,
que Therese já vira em qualquer lado e que naquela noite não
tinha vontade nenhuma de olhar, porque lhe causava verdadeira
pena.
- Vi - respondeu, a pensar noutra coisa. Se deixasse de
poupar para juntar dinheiro para a Europa... o que
de qualquer modo era idiota, pois não tencionava ir...
poderia comprar um casaco novo. Haveria saldos logo depois do
Natal. O casaco que tinha agora era de uma npécie de pêlo de
camelo preto, e sentia-se sempre sem graça com ele.
Richard pegou-lhe no braço.
-Não tens respeito suficiente pela técnica, minha menina.
Ela fez-lhe uma careta trocista e deu-lhe de novo o braço.
Sentiu-se de súbito muito chegada a ele, tão afectuosa e
feliz na sua companhia como na noite em que o conhecera, na
festa da Rua Christopher, onde Frances Gotter a levara.
Richard estava então um pouco embriagado, como não voltara a
estar depois disso, com ela, e falava de livros, política e
pessoas mais positivamente do que, também depois disso,
voltara a ouvi-lo. Conversara com ela durante o serão
inteiro, e ela gostara muito dele aessa noite pelos seus
entusiasmos, pelas suas ambições, pelas suas simpatias e
antipatias e porque era a primeira festa verdadeira a que ia
e ele a transformara, para ela, aum êxito.
- Não estás a ver - observou Richard.
-É extenuante. Quando quiseres, podemos ir-nos embora.
65
Perto da porta, encontraram umas pessoas que Richard conhecia
da Liga, um homem novo, uma rapariga e um jovem negro.
Richard apresentou-lhes Therese. Ela percebeu que não eram
amigos íntimos de Richard, mas ele anunciou, a todos:
- Vamos à Europa, em Março. E todos eles pareceram invejosos.
Cá fora, a 5. a Avenida parecia deserta e à espera, como um
cenário de teatro, que acontecesse alguma coisa dramática.
Therese caminhava rapidamente ao lado de Richard, de mãos nas
algibeiras. Durante o dia perdera as luvas, não sabia onde.
Pensava no dia seguinte, às onze horas. Perguntava-se se
amanhã, àquela hora da noite, ainda estaria com Carol.
- E a respeito de amanhã? - perguntou Richard.
- Amanhã?
- Tu sabes. A família perguntou se podias almoçar connosco,
amanhã.
Therese hesitou, ao lembrar- se. Visitara os Semco quatro ou
cinco vezes, em tardes de domingo. Comiam um grande almoço
por volta das duas da tarde e depois o senhor Semco, um homem
baixo e calvo, queria dançar com ela ao ritmo de polcas e
música popular russa. que o gira-discos tocava.
- verdade, sabes que a minha mãe quer fazer-te um vestido? -
continuou Richard. -Já comprou o tecido e quer tirar-te as
medidas.
- Um vestido... mas isso dá muito trabalho -. Therese teve
uma visão das blusas da senhora Semco, blusas brancas com
carreiras e carreiras de pontos. A senhora Semco orgulhava-se
do seu jeito para trabalhos de agulha. Therese achou que não
devia aceitar um labor tão colossal.
- Ela adora fazê-lo - afirmou Richard. - Bem, e quanto a
amanhã? Queres aparecer por volta do meio-dia?
- Não creio que me apeteça, este domingo. Eles não fizeram
nenhuns grandes planos, pois não?
- Não - respondeu Richard, decepcionado.
- Amanhã só queres trabalhar, ou coisa desse género?
66
- Sim, preferia -. Não queria que ele soubesse a respeito de
Carol, nem mesmo que a conhecesse.
- Nem mesmo dar uma volta de carro, a qualquer lado?
- Acho que não, obrigada -. Desagradava-lhe agora que Richard
lhe pegasse na mão. A dele estava húmida, o que a tornava
fria como gelo.
- Não poderás mudar de ideias?
- Não -. Therese abanou a cabeça. Poderia dizer algumas
coisas que tornassem a recusa menos crua, desculpas, mas
também não queria mentir... mais do quejá mentira... a
respeito do dia seguinte. Ouviu Richard suspirar e caminharam
em silêncio durante um bocado.
- A minha mãe quer fazer-te um vestido branco debruado de
renda. Está a enlouquecer de frustração por não haver outras
raparigas na família, além da Esther.
Tratava-se de uma prima por afinidade, que Therese vira
apenas uma ou duas vezes.
-Como está a Esther?
- Na mesma.
Therese soltou os dedos dos de Richard. Sentiu-se de repente
esfomeada. Passara a hora do jantar a escrever uma coisa, uma
espécie de carta a Carol, que não metera nem tencionava meter
no correio. Apanharam o autocarro que seguia para a parte
alta da cidade na 3. a Avenida e depois foram a pé para
leste, para casa de Therese. Ela não queria convidá-lo a
subir, mas acabou por convidar.
- Não, obrigado, vou andando -. Richard pôs um pé no primeiro
degrau. - Acho-te com uma disposição esquisita, esta noite.
Estás a quilómetros de distância.
- Não, não estou - disse ela, sentindo dificuldade om
exprimir-se, e irritada com isso.
- Estás, sim. Eu sinto-o. No fim de contas, tu não...
- Eu não o quê?
- Não estamos a progredir muito, pois não? - perguntou ele,
subitamente sério. - Se nem ao menos queres passar os
domingos comigo, como vamos passar meses juntos na Europa?
67
- Bem... se queres desistir de tudo, Richard...
- Terry, eu amo-te -. Passou a palma da mão pelo
cabelo, exasperadamente. - Claro que não quero desistir,
mas... - deixou de novo a frase inacabada.
Therese sabia o que ele estivera prestes a dizer que não lhe
dava praticamente nada no capítulo de afecto - mas não o
diria porque sabia que ela não o amava.
Sendo assim, porque esperava ele, realmente, afeição da
sua parte? No entanto, o simples facto de não o amar fazia-a
sentir-se culpada, culpada por aceitar fosse o que
fosse dele, um presente de aniversário ou um almoço em
casa da sua família, até mesmo o seu tempo. Apoiou as
pontas dos dedos, com força, no corrimão de pedra.
- Está bem... eu sei. Não estou apaixonada por ti.
- Não é isso que eu quero dizer, Terry.
- Se alguma vez quiseres desistir de tudo... quero
dizer, deixar mesmo de me ver, deixa -. Também não
era a primeira vez que lhe dizia aquilo.
- Terry, sabes muito bem que prefiro estar contigo
do que com qualquer outra pessoa do mundo. O inferno
é esse.
- Bem, se é o inferno...
- Sentes algum amor por mim, Terry? Como é que
me amas?
Deixa-me contar as maneiras de amar, pensou ela.
- Não te amo, mas gosto de ti. Hoje, há poucos minutos, senti
- disse, martelando as palavras, pois fosse qual fosse a
maneira como soassem eram verdadeiras - que nunca me sentira
tão perto de ti, na verdade.
Richard olhou-a, com alguma incredulidade.
- Sentiste? - Começou a subir devagar os degraus, sorrindo, e
parou logo abaixo dela. - Então... porque
não me deixas ficar contigo esta noite, Terry? Tentemos
apenas, sim?
Ela percebera, assim que ele dera o primeiro passo
na sua direcção, que lhe ia pedir aquilo. E sentiu-se infeliz
e envergonhada, com pena por ela própria e por ele, porque
era tão impossível, e tão embaraçoso não o querer. Havia
sempre aquele tremendo bloqueio de não que68
rer sequer tentar, o que reduzia tudo a uma espécie de
deplorável embaraço e nada mais, cada vez que ele lho pedia.
Lembrou-se da primeira noite que o deixara ficar, desesperou-
se de novo por dentro. Fora tudo menos agradável, e ela
perguntara, mesmo no meio de tudo, "Isto está bem? Como podia
estar bem e ser tão desagradável?", pensara. E Richard rira-
se, demorada e ruidosamente, e com uma energia que a
irritara. E a segunda ainda fora pior, provavelmente porque
ele pensara que todas as dificuldades tinham sido vencidas.
Tinha sido doloroso ao ponto de a fazer chorar, e Richard
pediu-lhe muitas desculpas e dissera que ela o fazia sentir-
se um chato. E depois Therese protestara que não era. Sabia
muito bem que não era, que Richard era angelical comparado
com o que Angelo Rossi, por exemplo, teria sido! Se ela
tivesse dormido com ele na noite em que Angelo i estivera,
naqueles mesmos degraus, a fazer-lhe a mesma pergunta.
- Terry, meu amor.
- Não - interrompeu-o Therese, encontrando finalmente a voz -
. Não, esta noite não posso, e também não posso ir contigo à
Europa - concluiu, com uma franqueza abjecta e desesperada.
Os lábios de Richard abriram-se de espanto. Therese não foi
capaz de olhar para o cenho franzido.
- Porquê?
- Porque não. Porque não posso - respondeu, cada palavra uma
agonia. - Porque não quero dormir contigo.
- Oh, Terry! - Richard riu-se. - Lamento muito ter-to pedido.
Esquece isso, querida, sim? E na Europa, também?
Therese desviou o olhar, reparou mais uma vez em Oríon,
inclinada num ângulo ligeiramente diferente, e olhou de novo
para Richard. "Mas não posso", pensou. "Tenho de pensar nisso
de vez em quando, porque tu pensas". Teve a impressão de que
pronunciara as palavras e de que elas estavam, sólidas como
blocos de mara, no ar entre eles, apesar de não ter ouvido
som al69
gum. Dissera aquelas palavras antes a Richard, no seu quarto,
lá em cima, e uma vez em Prospect Park, enquanto enrolava a
guita de um papagaio. Mas ele recusava-se a considerá-las, e
que podia ela fazer agora, repeti-las?
- De qualquer modo, queres subir um bocado? - perguntou,
torturada por si mesma, por uma vergonha que não sabia,
realmente, explicar.
- Não - respondeu Richard com um riso suave, que a
envergonhou ainda mais pela sua tolerância e compreensão. -
Não, vou andando. Boa noite, querida. Amo-te, Terry -. E,
depois de lhe lançar um último olhar, foi-se embora.
70
Capítulo VI
Therese saiu para a rua e olhou, mas as ruas estavam vazias,
apresentavam o vazio das manhãs de domingo. O vento lançava-
se contra a alta esquina de cimento do Frankenberg's, como
que furioso por não encontrar ali nenhuma figura humana que
se lhe opusesse. A não ser ela, pensou Therese, e sorriu de
súbito. Devia ter pensado num ponto de encontro mais
agradável que aquele. O vento era como gelo contra os seus
dentes. Carol estava um quarto de hora atrasada. Se não
viesse, provavelmente ela continuaria à espera, todo o dia e
pela noite dentro. Saiu um vulto da entrada do metro, o vulto
magro e frágil de uma mulher apressada, de casaco preto
comprido debaixo do qual os pés se moviam tão rapidamente
como se fossem quatro, caminhando sobre uma roda e fazendo-a
girar.
Depois Therese voltou-se para o outro lado e viu Carol num
carro encostado ao passeio, do outro lado da rua. Therese
atravessou na sua direcção.
- Olá! - saudou Carol, e inclinou-se para lhe abrir a porta.
- Olá. Pensei que não viria.
- Peço muita desculpa por chegar atrasada. Está enregelada?
- Não -. Therese entrou e fechou a porta. Estava quente, no
interior do carro, um automóvel comprido, verde-escuro, com
estofos de cabedal também verde-escuros. Carol conduziu
devagar para oeste.
71
- Vamos a minha casa? Onde gostaria de ir?
- Não importa onde -. Therese viu sardas no alto do nariz de
Carol. O seu cabelo louro, curto, que lhe lembrava um perfume
chegado a uma luz, estava preso pelo lenço verde e dourado
que lhe contornava a cabeça como uma faixa.
- Vamos a minha casa. O sítio é bonito. Seguiram para a parte
alta da cidade. Era como viajar dentro de uma montanha em
movimento, capaz de varrer tudo quanto encontrava à sua
frente, mas absolutamente obediente a Carol.
- Gosta de conduzir? - perguntou-lhe Carol, sem olhar para
ela. Tinha um cigarro na boca e conduzia com as mãos
ligeiramente apoiadas no volante, como se não fizesse esforço
algum, como se estivesse descontraidamente sentada em
qualquer lado, a fumar. - Porque está tão calada?
Entraram ruidosamente no Túnel Lincoln. Uma excitação louca e
inexplicável crescia em Therese, enquanto ela olhava
fixamente pelo pára-brisas. Desejou que o túnel ruísse e as
matasse a ambas, que os seus corpos fossem retirados dos
destroços juntos. Sentia Carol olhá-la de relance, de vez em
quando.
- Tomou o pequeno-almoço?
- Não, não tomei - respondeu Therese, supondo que devia estar
pálida. Começara a tomar o pequeno-almoço, mas deixara cair a
garrafa do leite no lava-louças, e depois desistira.
- melhor beber um pouco de café. Está ali, no termo.
Tinham saído do túnel. Carol parou na beira da estrada.
- Ali - repetíu Carol, inclinando a cabeça para o termo que
se encontrava no banco, entre elas. Depois pegou-lhe ela
própria e deitou um pouco de café para a tampa, fumegante e
castanho-claro.
Therese olhou, grata, para o café.
- De onde veio?
- Quer sempre saber de onde vêm as coisas? - observou Carol,
a sorrir.
72
O café era muito forte e estava um pouco doce. Foi como se
derramasse força pelo seu corpo. Quando ela bebera metade,
Carol pôs de novo o carro em movimenM. Therese continuou
calada. De que podia falar? Do trevo de quatro folhas
dourado, com o nome e morada de Carol, que pendia da corrente
das chaves, no painel de instrumentos? Do local de venda de
árvores de Natallo qual passaram, na estrada? Do pássaro que
voava sozinho sobre um campo que parecia pantanoso? Não. Só
as coisas que escrevera a Carol, na carta que não metera no
correio, mereciam ser ditas, e isso era impossível.
- Gosta do campo? - perguntou Carol, ao virarem para uma
estrada mais pequena.
Tinham acabado de entrar e sair de uma cidadezinha. Agora, no
caminho de carros que descrevia uma ande curva semicircular,
aproximavam-se de uma casa branca, de dois andares, com alas
laterais projectadas como as patas de um leão em repouso.
Havia um tapete de porta metálico, uma grande caixa de
correio de latão reluzente e um cão que ladrava, num tom
cavo, do outro lado da casa, onde se via uma garagem branca a
seguir a algumas árvores. A casa cheirava a uma especiaria
qualquer, pensou Therese, misturada com um odor doce,
independente, que não era o perfume de Carol. Atrás dela, a
porta fechou-se com um bater duplo e firme, mas leve. Therese
virou-se e encontrou Carol a olhá-la intrigadamente, de
lábios um pouco entreabertos como se estivesse surpreendida,
e pensou ue não se admiraria se, no instante seguinte, ela
lhe perguntasse: "Que está aqui a fazer?", como se se tivesse
esquecido que ali a levara - ou não tivesse, sequer,
tencionado levá-la.
- Não se encontra ninguém em casa além da empregada, e ela
está longe - disse Carol, como se respondesse a uma pergunta.
- uma casa encantadora - elogiou Therese, e viu o pequeno
sorriso de Carol, desta vez com vestígios de npaciência.
- Dispa o casaco -. Carol tirou o lenço da cabeça e
73
enfiou os dedos no cabelo. - Quer tomar qualquer coisa, como
pequeno- almoço? quase meio-dia.
- Não, obrigada.
Carol passou o olhar pela sala e voltou-lhe ao rosto o mesmo
ar de intrigado descontentamento.
- Vamos lá para cima. É mais confortável. Therese seguiu-a
pela larga escada de madeira, passando por um retrato a óleo
de uma rapariguinha de cabelo louro e queixo quadrado como o
de Carol, e depois por uma janela na qual um jardim com um
carreiro em forma de S e uma fonte com uma estátua azul-
esverdeada apareceu um instante e logo desapareceu. No andar
superior havia um vestíbulo pequeno com quatro ou cinco
quartos à volta. Carol entrou numa sala com alcatifa e
paredes verdes, e tirou um cigarro de uma caixa que estava em
cima de uma mesa. Olhou de relance para Therese, enquanto o
acendia. Therese não soube que fazer ou dizer, embora tivesse
a impressão de que a outra esperava que ela fizesse ou
dissesse alguma coisa, fosse o que fosse. Therese observou a
sala simples, com a sua alcatifa verde-escura e a comprida
bancada verde, almofadada, ao longo de uma parede. Havia uma
mesa simples, de madeira clara, ao centro. Uma sala de jogo,
pensou, embora parecesse mais uma sala de leitura, com os
seus livros, os seus álbuns de música e a sua ausência de
quadros.
-A minha sala favorita - disse Carol, saindo.
- O meu quarto é ali.
Therese olhou para o quarto que ficava em frente. Tinha
estofos de algodão florido e móveis simples, de madeira clara
como a mesa da outra sala. Havia um espelho simples e
comprido por cima do toucador, e como que uma atmosfera geral
soalheira, embora não estivesse a entrar sol nenhum no
quarto. A cama era de casal. E estavam escovas de estilo
militar na cómoda escura, do outro lado de aposento. Therese
olhou em vão à procura de uma fotografia "dele". Havia uma de
Carol no toucador, com uma pequenita de cabelo louro ao colo.
E outra de uma mulher de cabelo escuro encaracolado e sorriso
rasgado, numa moldura de prata.
74
- Tem uma filha pequena, não tem? - perguntou Therese.
Carol abriu um armário de parede, no vestíbulo.
- Tenho. Quer uma Coca-Cola?
O zumbido do frigorífico ouvia-se agora mais nitidamente. Em
toda a casa, o único ruído era o que elas faziam. Therese não
queria o refrigerante, mas aceitou a garrafa e levou-a para
baixo, atrás de Carol, atravessou a cozinha e encontrou-se no
jardim das traseiras que vira da janela. Para lá da fonte
havia uma quantidade de plantas com cerca de um metro de
altura e protegidas por sacos de serapilheira; assim em
grupo, lembrando alguma coisa a Therese, mas ela não sabia o
quê. Carol a apertou um nó que o vento desatara. Inclinada,
com a
grossa saia de fazenda e o casaco de malha azul, a sua figura
parecia sólida e forte, como o seu rosto, mas não como os
seus tornozelos esbeltos. Carol deu a impressão a
de esquecer a presença de Therese durante vários minutos,
caminhando devagar, assentando firmemente no chão os pés
calçados de mocassins, como se no jardim frio som flores se
sentisse, enfim, confortável. Sem casaco, o frio era
cortante, mas como Carol parecia alheia, também, por isso,
Therese tentou imitá-la.
- Que gostaria de fazer, Therese? Dar um passeio a pé? Ouvir
discos?
- Sinto-me muito bem assim.
Ela estava preocupada com alguma coisa e devia ter-se
arrependido de a ter convidado a ir lá a casa, achava
Therese. Voltaram para trás, para a porta ao fundo do
carreiro do jardim.
- Gosta do seu trabalho? - perguntou Carol, na cozinha, ainda
com o seu ar de alheamento e a olhar para o grande
frigorífico. Tirou dois pratos cobertos de papel encerado. -
Eu já almoçava qualquer coisa, e você?
Therese tencionara falar-lhe do emprego no Blackat Theatre.
Isso teria algum significado, pensara, seria a única coisa
importante que poderia dizer a seu respeito. Mas aquele não
era o momento. Respondeu devagar, tentando mostrar-se tão
desprendida quanto Carol, embora ela própria ouvisse a sua
timidez predominar.
75
- Acho que é educativo. Aprendo a ser ladra, mentirosa e
poeta, tudo ao mesmo tempo -. Inclinou-se para trás, na
cadeira de espaldar direito, para que a sua cabeça ficasse no
quadrado quente de sol. Gostaria de acrescentar: "e a amar".
Nunca amara ninguém antes de Carol, nem mesmo a Irmã Alicia.
Carol olhou para ela.
- Como é que se aprende a ser poeta?
- Sentindo as coisas... demasiado, suponho - respondeu
Therese, conscientemente.
- E ladra? - Carol lambeu qualquer coisa do polegar e franziu
a testa. - Não quer pudim de caramelo, pois não?
- Não, obrigada. Ainda não roubei, mas tenho a certeza de que
lá é fácil. Há carteiras por todo o lado, e pode-se tirar
qualquer coisa. Elas roubam a carne que uma pessoa compra
para o jantar -. Therese riu-se. Podia rir-se daquilo com
Carol. Podia rir-se de tudo com Carol.
Havia fatias de frango frio, molho de arando, azeitonas
verdes e aipo branco, estaladiço. Mas Carol deixou o seu
almoço e foi à sala. Voltou com um copo com um pouco de
uísque, a que acrescentou água da torneira. Therese observou-
a. Depois, durante um longo momento, olharam-se uma à outra,
Carol parada à entrada da cozinha e Therese à mesa, a olhar
por cima do ombro e sem comer.
- Conhece muita gente, por cima do balcão, desta maneira? -
perguntou Carol, calmamente. - Não pre cisa de ter cuidado a
respeito das pessoas com quem trava conversa?
- Oh, sim! - Therese sorriu.
- Ou com quem sai para almoçar? - Os olhos de Carol
cintilavam. - Podia sair-lhe na rifa algum raptor -. Rolou a
bebida à volta do copo sem gelo e depois bebeu tudo, com as
delgadas pulseiras de prata a tilintar contra o copo. - Mas,
afinal, conhece muitas pessoas dessa maneira?
- Não.
76
- Não muitas? Apenas umas três ou quatro?
- Como você? - Therese sustentou-lhe com firmeza o olhar.
E Carol olhou-a fixamente, como se Lhe exigisse ou tra
palavra, outra frase. Mas depois pôs o copo em cima da tampa
do fogão e voltou-se.
- Toca piano?
- Um pouco.
- Venha tocar qualquer coisa -. E quando Therese sboçou uma
recusa, acrescentou imperiosamente: - Oh, não me importo como
toca. Quero só que toque qualquer coisa.
Therese tocou uma peça de Scarlatti que aprendera no lar.
Sentada numa cadeira do outro lado da sala, Carol escutava,
descontraída e imóvel, não bebendo sequer o novo uísque com
água que preparara. Therese tocava a Sonata em Dó Maior, que
era lenta e muito simples, cheia de oitavas fragmentadas, mas
que ela achou enfadonha, depois pretensiosa nas partes
trinadas e que acabou por interromper. Foi subitamente
demasiado para si - as suas mãos no teclado que ela sabia ser
tocado por Carol, Carol a observá-la de olhos cemicerrados,
toda a casa de Carol à sua volta e a música que a fazia
abandonar-se, que a tornava indefesa. Com um suspiro, deixou
cair as mãos no regaço.
- Está cansada? - perguntou-lhe Carol, calmamente. A pergunta
parecia não se referir àquele momento, mas a sempre.
- Estou.
Carol aproximou-se por detrás dela e pôs-lhe as mãos nos
ombros. Therese viu mentalmente as suas mãos - flexíveis e
fortes, com os tendões delicados a ficarem salientes quando
lhe comprimiam os ombros. Pareceu decorrer um século,
enquanto as suas mãos se moviam na direcção do pescoço e para
debaixo do queixo de Therese, um século de tumulto tão
intenso que anulou o prazer quando Carol lhe inclinou a
cabeça para trás e a beijou ao de leve no nascer do cabelo.
Therese não sentiu o beijo.
77
- Venha comigo - disse Carol.
Therese voltou a subir com ela ao andar superior. Apoiou-se
no corrimão e lembrou-se, de súbito, da se nhora Robichek.
- Acho que uma sesta não lhe faria mal nenhum - sugeriu
Carol, puxando para baixo a colcha de algodão florida e o
cobertor de cima.
- Obrigada, não tenho realmente...
- Descalce os sapatos - disse Carol docemente, mas num tom
que exigia obediência.
Therese olhou para a cama. Quase não dormira a noite
anterior.
- Creio que não dormirei, mas se adormecer...
- Eu acordo-a daqui a meia hora -. Carol tapou-a com o
cobertor, quando ela se deitou, e sentou-se na beira da cama.
- Quantos anos tem?
Therese ergueu o olhar para ela, incapaz agora de sustentar
os seus olhos, mas sustentando-os apesar disso, não se
importando de morrer naquele instante, não se importando
mesmo se Carol a estrangulasse, prostrada e vulnerável na sua
cama, uma intrusa.
- Dezanove -. Que velhos lhe pareceram aqueles dezanove anos!
Mais velhos que noventa e um.
As sobrancelhas de Carol franziram-se, embora ela sorrisse um
pouco. Therese sentiu que ela pensava em qualquer coisa tão
intensamente que seria possível tocar no pensamento suspenso
no ar entre ambas. Depois Carol meteu as mãos debaixo dos
seus ombros e inclinou a cabeça para a sua garganta, e
Therese sentiu a tensão abandonar o corpo de Carol com o
suspiro que Lhe aqueceu o pescoço e que estava impregnado do
perfume do seu cabelo.
- uma criança - disse, como se fizesse uma censura, e
levantou a cabeça. - Deseja alguma coisa?
Therese lembrou-se do que pensara no restaurante, e cerrou os
dentes, envergonhada.
- Deseja alguma coisa? - repetiu Carol.
- Não, obrigada.
Carol levantou-se, foi ao toucador e acendeu um ci-
78
garro. Therese observava-a por entre as pálpebras
semicerradas, preocupada com o seu desassossego, embora
dorasse o cigarro, adorasse vê-la fumar.
- Quer beber alguma coisa?
Therese compreendeu que se referia a água. Compreendeu-o pela
ternura e preocupação da sua voz, como se ela fosse uma
criança e estivesse doente, com febre. Respondeu então:
- Creio que gostaria de um pouco de leite quente. O canto da
boca de Carol ergueu-se num sorriso.
- Um pouco de leite quente - repetiu, trocista, e saiu do
quarto.
E Therese permaneceu num limbo de ansiedade e insónia até
Carol reaparecer com o leite numa chávena de lados rectos,
segurando o pires e a asa da chávena, e fechar a porta com o
pé.
- Deixei-o ferver e ficou com espuma - disse Carol,
aborrecida. - Desculpe.
Mas Therese ficou satisfeita, pois sabia que Carol procederia
sempre exactamente assim, estaria sempre a pensar em qualquer
outra coisa e deixaria o leite ferver.
- assim que gosta? Assim simples?
Therese acenou afirmativamente.
-Brr... - murmurou Carol, com repugnância, e sentou-se no
braço de uma cadeira a observá-la.
Therese apoiara-se num cotovelo. O leite estava tão qttente
que, ao princípio, quase não conseguira tocar-lhe com os
lábios. Os pequenos goles que sorvia alastravam-lhe pelo
interior da boca, libertando uma mistura de sabores
orgânicos. O leite parecia saber a osso e sangue, a carne
quente, ou cabelo, insosso como o giz e, contudo, vivo como
um embrião a desenvolver-se. Estava quente de cima abaixo da
chávena, e ela bebeu-o até ao fim, como, nos contos de fadas,
as pessoas bebem a poção que as transformará, ou o guerreiro,
confiado, a taça que o há-de matar. Depois Carol acercou-se e
pegou na chávena, e Therese teve sonolentamente consciência
de que da lhe fez três perguntas, uma relacionada com
felicidade, outra a respeito do armazém e a terceira sobre o
fu-
79
turo. Ouviu-se a si mesma responder, ouviu a sua voz soar
subitamente num rumorejo, crescer como uma fonte sobre a qual
não tinha qualquer domínio, e deu conta de que estava
desfeita em lágrimas. Dizia a Carol tudo quanto receava e de
que não gostava, falava-lhe da sua solidão, de Richard e de
tremendas decepções. E dos seus pais. A sua mãe não tinha
morrido. Mas desde os catorze anos que ela não a via.
Carol interrogava-a e ela respondia, embora não quisesse
falar da sua mãe. Ela não era assim tão importante, nem
sequer uma das decepções. O pai, sim, era. O seu pai era
completamente diferente. Morrera tinha ela seis anos,
advogado de ascendência checoslovaca que toda a sua vida
quisera ser pintor. Ele, sim, fora completamente diferente,
gentil, não erguendo nunca a voz con tra a mulher rezingona,
que o importunara por ele não ter sido nem um bom advogado
nem um bom pintor. Nunca fora forte e morrera de pneumonia,
mas no espírito de Therese a mãe matara-o. Carol perguntava,
perguntava, e ela contava-lhe, dizia-lhe que a mãe a deixara
na escola de Montclair quando ela tinha oito anos, falava das
poucas visitas que lhe fizera depois, porque viajava muito
pelo país. Fora pianista - não de primeira categoria, não,
como poderia ter sido, mas arranjara sempre trabalho porque
era agressiva. E quando Therese tinha cerca de dez anos, a
sua mãe voltara a casar. Ela visitara a mãe na sua casa de
Long Island, nas férias de Natal, e eles tinham-na convidado
a ficar, mas não como se quisessem que ficasse, realmente. E
Therese não gostara do marido, Nick, porque ele era
exactamente como a mãe, corpulento e de cabelo escuro, com
voz alta e gestos violentos e apaixonados. Ela tivera a
certeza de que o casamento deles seria perfeito. A mãe estava
grávida, já nessa altura, e agora tinha dois filhos. Ao fim
de uma semana em casa deles, Therese regressara ao lar.
Depois disso, a mãe visitara-a talvez três ou quatro vezes,
sempre com um presente qualquer - uma blusa, um livro, uma
vez um estojo de cosmética que ela detestara pela simples
razão de lhe recordar as pestanas quebradiças,
80
cobertas de rímel, da mãe -, coisas que lhe eram
constrangidamente entregues como oferendas de paz hipócritas.
Uma vez, a mãe levara consigo o rapazinho, o seu meio-irmão,
e Therese soubera, então, que era uma intrusa. A sua mãe não
amara o seu pai, decidira deixá-la na escola quando ela tinha
oito anos: porque se incomodava agora a visitá-la, sequer, a
reconhecê-la? Ter-se-ia sentido mais feliz se não tivesse,
pura e simplesmente, pais, como metade das raparigas da
escola. Por fim, dissera à mãe que não queria que voltasse a
visitá-la, e a mãe não voltara - e a expressão ressentida e
envergonhada, o nervoso olhar de soslaio dos olhos castanhos,
o espasmo de um sorriso e o silêncio, essas eram as últimas
recordações que guardava da mãe. Depois fizera quinze anos.
As freiras da escola tinham sabido que a mãe não lhe escrevia
e haviam-lhe pedido que escrevesse, e ela escrevera, mas
Therese não tinha respondido. Chegara o dia do fim do curso
secundário, a escola pedira duzentos dólares à sua mãe.
Therese não quisera dinheiro algum dela, quase acreditara que
não enviaria nenhum. Mas mandara, e ela aceitara-o.
- Estou arrependida de o ter aceitado. Nunca disse a ninguém,
a não ser a si. Um dia, quero devolver-lho.
- Disparate - disse Carol, docemente. Estava sentada no braço
da cadeira, com o queixo apoiado nas ntãos, os olhos postos
em Therese e sorrindo. - Ainda tra uma criança. Quando se
esquecer de que quer pagar- lhe, será uma pessoa adulta.
Therese não respondeu.
- Acha que nunca mais quererá voltar a vê-la? Talvez daqui a
alguns anos?
Therese abanou a cabeça. Sorriu, mas as lágrimas continuavam
a brotar- lhe dos olhos.
- Não quero falar mais no assunto.
- Richard sabe tudo isso?
- Não. Apenas que ela vive. Tem alguma importância? Não é
isso que importa -. Sentia que se chorasse usuficiente tudo a
abandonaria, o cansaço, a solidão e a decepção, como se essas
coisas estivessem contidas nas
81
próprias lágrimas, fizessem parte delas. E sentiu-se
satisfeita por Carol, agora de pé junto do toucador, de
costas para ela, a deixar chorar sozinha. Therese estava
deitada, rígida na cama, meio soerguida no cotovelo, sacudida
por soluços parcialmente contidos.
- Nunca mais voltarei a chorar - afirmou.
- Voltará, sim -. E soou o riscar de um fósforo. Therese
tirou outro lenço de papel da mesa-de- cabeceira e assoou-se.
- Quem mais existe na sua vida, além de Richard?
- perguntou Carol.
Ela fugira a todos. Houvera Lily e o senhor e a senhora
Anderson, na casa onde primeiro morara em Nova Iorque.
Frances Gotter e Tim, na Pelican Press. Lois Vavrica, uma
rapariga que também estivera no lar em Montclair. Quem havia
agora? Os Kelly, que moravam no primeiro andar da casa da
senhora Osborne. E Ri chard.
- Quando fui despedida daquele emprego, o mês passado - disse
Therese -, senti-me envergonhada e mudei-me... - calou-se.
- Mudou-se para onde?
- Não disse a ninguém para onde, a não ser a Richard.
Desapareci, simplesmente. Suponho que era essa a minha ideia
de começar uma vida nova, mas estava simplesmente
envergonhada. Não queria que ninguém soubesse onde me
encontrava.
Carol sorriu.
- Desapareceu! Gosto disso. E que sorte a sua, poder fazê-lo.
É livre. Dá-se conta disso?
Therese não respondeu.
- Não dá - respondeu por ela a própria Carol. Ao seu lado, no
toucador, um relógio quadrado, cin zento, tiquetaqueava quase
inaudivelmente, e, como fizera mil vezes no armazém, Therese
viu as horas e atribuiu-lhes um significado. Passava um pouco
das quatro e meia, e, de súbito, sentiu-se ansiosa, com
receio de estar ali deitada há demasiado tempo, de que Carol
pudesse estar à espera de alguém, de alguma visita.
82
E Depois o telefone tocou no vestíbulo, um toque inesperado e
longo como o guincho de uma mulher histérica e elas viram-se,
uma à outra, estremecer.
Carol endireitou-se e bateu com qualquer coisa duas vezes na
palma da mão, como batera com as luvas, no armazém. O
telefone gritou de novo, e Therese teve a certeza de que
Carol ia atirar fosse o que fosse que tinha na mão, ia atirá-
lo pelo quarto fora, contra a parede. Mas ela limitou- se a
voltar-se, a pousar silenciosamente o que segurara e a sair
do quarto.
Therese ouviu-lhe a voz no vestíbulo. Não queria escutar o
que ela dizia. Levantou-se, vestiu a saia e calçou os
sapatos. Viu então o que Carol tivera na mão: era
uma calçadeira de madeira de tom castanho-amarelado. Qualquer
outra pessoa tê-la-ia atirado pelos ares, pensou. Encontrou
então uma palavra para o que sentia por
Carol: orgulho. Ouviu a voz dela a repetir os mesmos tons, e
depois, ao abrir a porta para sair do quarto, distinguiu as
palavras:
- Tenho uma visita - pela terceira vez apresentadas
calmamente como um obstáculo. - Penso que é uma excelente
razão. Que melhor poderia haver?... Porque não pode ser
amanhã? Se tu.... Depois não se ouviu nenhum som até ao
primeiro passo de Carol na escada, e Therese soube que quem
telefonara desligara o telefone sem a deixar acabar de falar.
Quem se atreveria a fazer semelhante coisa? - admirou-se.
- Não é melhor ir-me embora? - perguntou. Carol olhou-a do
mesmo modo que a olhara quando tinham entrado em casa, ao
chegarem.
- Não, a não ser que queira. Não. Daremos uma volta de
carro, mais tarde, se quiser.
Therese sabia que Carol não queria dar uma volta de carro.
Começou a endireitar a cama.
- Deixe a cama - disse Carol, que a observava do vestíbulo. -
Feche apenas a porta.
- Quem vem cá?
Carol voltou-se e entrou na sala verde.
83
- O meu marido - respondeu. - Hargess. Depois a campainha da
porta tocou duas vezes, no andar de baixo, e o trinco soou,
ao mesmo tempo.
- Que pontualidade, hoje - murmurou Carol.
- Venha para baixo, Therese.
Therese sentiu-se subitamente agoniada de medo, não do homem,
mas da irritação de Carol pela sua vinda.
Ele subia já a escada. Quando viu Therese, andou mais
devagar, perpassou-lhe pelo rosto uma leve surpresa e depois
olhou para Carol.
- Harge, esta é a menina Belivet - apresentou Carol. - O
senhor Aird.
- Como está? - cumprimentou Therese. Harge lançou-lhe apenas
um olhar rápido, mas os seus nervosos olhos azuis
inspeccionaram-na dos pés à cabeça. Era um homem de
constituição forte e com um rosto muito avermelhado. Tinha
uma sobrancelha mais alta que a outra, formando um pico
vigilante no centro, como se tivesse sido deformada por uma
cicatriz.
- Como está? - retribuiu, e acrescentou, dirigindo-a a Carol:
- Peço desculpa de te incomodar. Venho apenas buscar uma ou
duas coisas. Continuou a subir e abriu a porta de um quarto
que Therese não tinha visto.
- São para a Rindy - acrescentou.
- Quadros de parede? - perguntou Carol. O homem não
respondeu.
Carol e Therese foram para baixo. Na sala, Carol sentou-se,
mas Therese não.
- Toque um pouco mais, se quiser - disse Carol. Therese
abanou a cabeça.
- Toque qualquer coisa - insistiu Carol, firmemente. Therese
assustou-se com a cólera súbita que lhe viu nos olhos.
- Não sou capaz - respondeu, teimosa como uma mula.
E Carol serenou. Sorriu, até.
Ouviram Harge atravessar depressa o vestíbulo e parar, e
depois descer a escada vagarosamente. Therese viu aparecer o
seu vulto vestido de escuro e, em seguida, a sua cabeça loura
e de rosto rosado.
84
- Não consigo encontrar aquela caixa de aguarelas. Julgava
que estava no meu quarto - disse ele, queixoso.
- Eu sei onde está -. Carol levantou-se e começou a andar na
direcção da escada.
- Suponho que queres que lhe leve alguma coisa para o Natal -
observou Harge.
- Obrigada, eu dou-lhe pessoalmente -. Carol subiu a escada.
Eles acabaram de se divorciar, pensou Therese, ou estão a
divorciar-se.
Harge olhou para Therese, pareceu quase estender-lhe a
cigarreira, mas não estendeu. Tinha uma expressão intensa, em
que a ansiedade e o enfado se misturavam curiosamente. A
carne à volta da sua boca era firme e pesada, envolvendo a
linha dos lábios, de modo que eles pareciam inexistentes.
Acendeu um cigarro para si.
- É de Nova Iorque? - perguntou.
Therese sentiu o desdém e a descortesia da pergunta como o
ardor de uma bofetada na cara.
- Sim, sou de Nova Iorque.
Ele preparava-se para lhe fazer outra pergunta quando Carol
desceu a escada. Therese revestira-se de coragem para ficar a
sós com ele alguns minutos. Não conseguiu conter um
estremecimento ao descontrair-se com a volta de Carol, e
soube que ele reparou nisso.
- Obrigado - disse Harge, recebendo a caixa da mão de Carol.
Dirigiu-se para o seu sobretudo, que Therese vira no pequeno
sofá, aberto e com os braços pretos stendidos como se
estivesse a lutar pela casa e fosse to mar posse dela. -
Adeus - despediu-se de Therese. Vestiu o sobretudo e caminhou
para a porta. - Amiga da Abby? - perguntou, em voz baixa, a
Carol.
- Minha amiga.
- Vais levar os presentes à Rindy? Quando?
- E se eu não lhe der nada, Harge?
-Carol... - Ele parou no alpendre e Therese ouviu-o, com
dificuldade, dizer qualquer coisa acerca de tornar as coisas
desagradáveis. E depois: - Agora vou visitar a Cynthia. Posso
passar por aqui no regresso? Será antes das oito.
85
- Para quê, Harge? - perguntou Carol, aborrecida.
- Sobretudo quando procedes de maneira tão antipática.
- Porque diz respeito à Rindy -. Depois a sua voz esbateu-se
e tornou-se inaudível.
Passado um instante, Carol voltou sozinha para dentro e
fechou a porta. Encostou-se a ela com as mãos atrás do corpo,
e ouviram ambas o carro partir. Carol deve ter acedido a vê-
lo esta noite, pensou Therese.
- Vou-me embora - disse, e Carol não respondeu. No silêncio
entre elas havia agora uma apatia, e Therese sentiu-se ainda
menos à vontade. - É melhor ir-me embora, não é?
- Sim. Desculpe. Desculpe o comportamento do Harge. Ele não é
sempre assim tão grosseiro. Foi um erro da minha parte dizer
que tinha cá uma visita.
- Não tem importância.
Carol franziu a testa e disse, com dificuldade:
- Importa-se se eu a levar ao comboio, esta noite, em vez de
a conduzir a casa de carro?
- Não -. Não teria suportado que Carol a levasse de carro a
casa e regressasse depois sozinha, na escuridão.
Mantiveram-se caladas, também no automóvel. Therese abriu a
porta, assim que ele parou na estação.
- Há um comboio dentro de cerca de quatro minutos - disse-lhe
Carol.
- Voltarei a vê-la? - deixou escapar Therese, de súbito.
Carol limitou-se a sorrir- lhe, com um leve ar de censura,
enquanto o vidro da janela que as separava subia.
- Au revoir - despediu- se.
Claro, claro que voltaria a vê-la, pensou Therese. Que
pergunta idiota a sua!
O carro recuou rapidamente e virou para a escuridão. Therese
ansiou por voltar ao armazém, ansiou por segunda-feira,
porque Carol podia lá ir novamente na segunda-feira. Mas não
era provável. Na terça-feira era véspera de Natal. Ela, no
entanto, poderia telefonar-lhe na terça-feira, quanto mais
não fosse para lhe desejar um Natal feliz.
86
Mas não havia um único momento em que não visse mentalmente
Carol, e tudo o mais que via parecia vê-lo através de Carol.
Essa noite, as ruas escuras e planas de Nova Iorque, o amanhã
de trabalho, a garrafa de leite deixada cair e partida no
lava-louças, tudo isso se tornou sem importância. Atirou-se
para cima da cama e traçou um risco a lápis numa folha de
papel. E depois outro risco, cuidadosamente, e mais outro.
Tinha nascido um mundo à sua volta, como uma floresta
luminosa com um milhão de folhas tremeluzentes.
87

88

Capítulo VII

O homem olhou-a, segurando-a descuidadamente entre o polegar


e o indicador. Era calvo, tinha apenas alguns compridos fios
de cabelo preto que cresciam na antiga linha da fronte e
estavam pegajosamente colados ao crânio nu. Espichava o lábio
inferior com o desdém e a recusa que se Lhe tinham fixado no
rosto assim que Therese se dirigira ao balcão e pronunciara
as primeiras palavras.
- Não - disse o homem, por fim.
- Não me pode dar nada por ela?
O lábio espichou-se mais.
- Talvez cinquenta cêntimos - e empurrou-a para da, por cima
do balcão.
Os dedos de Therese cobriram-na, possessivos.
- Bem, e por isto? - Tirou da algibeira do casaco o fio de
prata com a medalha de São Cristóvão.
De novo o polegar e o indicador foram uma demonstração
eloquente de desdém, voltando a medalha como se fosse uma
imundície.
- Dois e meio.
"Mas custou pelo menos vinte dólares", ia Therese a dizer,
mas conteve-se, porque era o que toda a gente dizia.
- Obrigada -. Pegou no fio e saiu.
Quem seriam os felizardos, pensou, que tinham conseguido
vender os seus velhos canivetes, relógios de pulso avariados
e plainas de carpinteiro pendurados agora, aos molhos, na
montra da frente? Não resistiu a olhar para trás, pela
janela, e viu o rosto do homem novamente
89
debaixo das facas de caça penduradas. Ele também estava a
olhá-la, sorrindo. Therese achou que ele compreendia todos os
seus gestos e movimentos. Meteu apressadamente pelo passeio
abaixo.
Dez minutos depois, voltou. Empenhou a medalha de prata por
dois dólares e meio.
Seguiu para oeste, apressada, atravessou a Avenida Lexington
a correr, depois a Park e virou para descer Madison. Apertava
a caixinha que levava no bolso com tanta força que as arestas
lhe cortavam os dedos. Fora-Lhe dada pela Irmã Beatrice. Era
de madeira castanha embutida de madrepérola, a formar
quadrados. Ignorara quanto valia em dinheiro, mas supusera
que era preciosa. Bem, agora sabia que não era. Entrou numa
loja di artigos de pele.
- Gostava de ver a preta que está na montra... a que tem a
correia e a fivela dourada - disse à empregada de balcão.
Era a mala de mão em que reparara no sábado de manhã, quando
tinha ido encontrar-se com Carol para almoçar. Bastara-lhe um
olhar para perceber que lhe ficaria bem. Mesmo que Carol não
comparecesse ao encontro nesse dia, pensara, mesmo que não
voltasse a vê-la, tinha de comprar a mala e enviar-lha.
- Fico com ela - disse à empregada.
- São setenta e um dólares e dezoito cêntimos, com o imposto
- informou a rapariga. - Quer que embrulhe para oferta?
- Sim, por favor. - Therese contou e colocou no balcão seis
notas novas de dez dólares e o restante em notas de um dólar.
- Posso deixá-la aqui até cerca das seis e meia da tarde?
Saiu da loja com o recibo na carteira. Não se arriscaria a
levar a mala para o armazém. Podiam roubar-lha, apesar de ser
véspera de Natal. Sorriu. Era o seu último dia de trabalho no
armazém. E quatro dias depois começaria a trabalhar no Black
Gat. Phil ficara de lhe levar uma cópia da peça, no dia a
seguir ao Natal.
Passou pelo Brentano's. A montra estava cheia de fitas de
cetim, livros com encadernações de pele e quadros
90
representando cavaleiros couraçados. Voltou para trás e
entrou, não para comprar, mas para ver, por momentos apenas,
se ali havia alguma coisa mais bonita que a mala de mão.
Uma ilustração, num dos mostruários de balcão, prendeu-lhe o
olhar. Representava um jovem cavaleiro montado num cavalo
branco, atravessando uma floresta que parecia um ramalhete e
seguido por uma fila de pequenos pajens, o último dos quais
transportava uma almofada sobre a qual estava um anel de
ouro. Pegou no livro encadernado de pele. Viu, no lado dentro
da capa, que custava vinte e cinco dólares. Se fosse
simplesmente ao banco e levantasse mais vinte e cinco
dólares, poderia comprá-lo. Que eram vinte e cinco dólares?
Não tivera precisão de empenhar a medalha de prata. Sabia que
a empenhara apenas por lhe ter sido dada por Richard e já
nãoo a querer. Fechou o livro e olhou para as arestas das
páginas, que pareciam uma barra de ouro côncava. Mas Carol
gostaria realmente do livro, gostaria de um livro medieval de
poemas de amor? Não sabia. Não tinha a mínima pista quanto ao
gosto de Carol no capítulo de livros. Repôs rapidamente o
livro no seu lugar e saiu.
Lá em cima, na Secção das Bonecas, a menina Santini andava
vagarosamente atrás do balcão, oferecendo a toda a gente
chocolates que tirava de uma grande caixa.
- Tire dois - disse a Therese. - Foi a Secção de Doces que os
mandou.
- Tiro, tiro - respondeu. Imaginem, pensou, trincando um
nougat, o espírito de Natal contagiou a Secção de Doces!
Naquele dia reinava uma atmosfera estranha no armazém. Para
começar, havia um sossego fora do vulgar. Não faltavam
clientes, mas não pareciam apressados, apesar de ser véspera
de Natal. Therese olhou para os elevadores, à procura de
Carol. Se ela não aparecesse, e provavelmente não apareceria,
telefonava- lhe às eis e meia, só para lhe desejar um Natal
feliz. Sabia o número do seu telefone. Vira-o no aparelho,
quando estivera lá em casa.
- Menina Belivet! - chamou a voz da senhora Hendrickson, e
Therese pôs- se rapidamente em sentido. Mas a
91
encarregada limitou-se a acenar ao boletineiro da Wesi Union,
que colocou um telegrama à frente de Therese.
Ela assinou o recibo com um rabisco e abriu o telegrama.
Dizia:
"ESPERO-A RÉS-DO-ChÃO CINCO DA TARDE"
Therese amarrotou o papel, apertou-o com força co o polegar
contra a palma da mão, a ver o boletineir que naquele caso
era um velho, dirigir-se para os elevadores. O homem
caminhava arrastadamente, com uma curvatura do corpo que lhe
lançava os joelhos muito pa ra a frente, e com as grevas
soltas e torcidas.
- Parece feliz - disse-lhe tristemente a senhora Za briskie,
ao passar por ela.
Therese sorriu.
- E estou -. A senhora Zabriskie tinha um bebé d dois meses,
contara-lhe, e o marido estava desempregado. Pensou se a
senhora Zabriskie e o marido estariam apaixonados um pelo
outro e seriam realmente felizes? Talvez fossem, mas nada o
indicava no rosto vazio ou no andar arrastado da senhora
Zabriskie. Talvez, em tempo a colega tivesse sido tão feliz
quanto ela era agora. E depois tivesse acabado. Lembrava-se
de ter lido - e até Ri chard uma vez o dissera - que o amor
morre geralment ao fim de dois anos de casamento. Era uma
coisa cruel, uma partida. Tentou imaginar o rosto de Carol, o
cheiro do seu perfume, a perderem o significado que tinham
para si. Mas, para começar, podia dizer que amava Carol? Ali
estava uma pergunta a que não sabia responder.
Quando faltava um quarto para as cinco, foi ter com a senhora
Hendrickson e pediu-lhe autorização para sair meia hora mais
cedo. Talvez a encarregada tivesse pen sado que o telegrama
tinha alguma coisa a ver com o pe dido, mas, pensasse ou não,
deixou-a ir-se embora sem um olhar de protesto sequer, e isso
foi outra coisa qu tornou o dia estranho.
Carol esperava-a no átrio onde se tinham encontrado antes.
- Olá! - saudou Therese. - Acabei.
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- Acabou o quê?
- O trabalho. Aqui -. Mas Carol parecia deprimida, isso
desanimou-a imediatamente. Não deixou, no entan to, de dizer:
- Fiquei felicíssima por receber o telegrama.
- Eu não sabia se estaria livre. Está livre esta noite?
- Claro.
E começaram a andar, devagar, pelo meio da multi dão que se
empurrava, Carol de sapatos decotados, de murça, com ar
delicado, que a tornavam uns cinco centímetros mais alta que
Therese. Começara a nevar cerca de uma hora antes, mas já
estava a parar. A neve formava apenas uma película debaixo
dos pés, como lã branca, fina, atravessada na rua e no
passeio.
- Poderíamos encontrar-nos com a Abby esta noite, se ela não
estivesse ocupada - disse Carol. - De qualquer modo, podemos
dar uma volta de carro, se quiser. Que bom vê-la. É um anjo
por estar livre esta noite, sabia?
- Não - respondeu Therese, ainda feliz, mau grado e apesar de
a disposição de Carol a inquietar. Presentia que tinha
acontecido alguma coisa.
-Acha que há por aqui um lugar qualquer onde possamos beber
um café?
-Há. Um pouco mais para leste.
Therese estava a pensar numa das lojas de sanduíches entre a
Quinta e a Madison, mas Carol escolheu um pequeno bar com um
toldo na frente. Primeiro o triado mostrou-se relutante e
alegou que era a hora dos Coktails, mas quando Carol fez
menção de sair ele foi buscar o café. Therese estava
preocupada, por causa de ter de ir buscar a mala. Não queria
fazê-lo na companhia de Carol, apesar de a mala estar
embrulhada.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou.
- Aconteceu uma coisa demasiado longa para explicar -. Carol
sorriu-lhe, mas com um sorriso fatigado a que sucedeu um
silêncio vazio, como se viajassem no espaço para longe uma da
outra.
Provavelmente Carol tivera de quebrar um compromisso em que
estivera interessada, pensou Therese. Claro que ela devia ter
que fazer na véspera de Natal.
93
- Estou a impedi-la de fazer alguma coisa, neste momento? -
perguntou Carol.
Therese sentiu-se irremediavelmente mais tensa.
- Fiquei de ir buscar uma encomenda à Avenida Ma dison. Não é
longe. Posso ir agora, se esperar por mim.
- Está bem.
Therese levantou-se.
- Posso fazê-lo em três minutos, de táxi. Mas não creio que
espere por mim, pois não?
Carol sorriu e estendeu o braço. Apertou-lhe a mão
indiferentemente, e depois largou-a.
- Espero, sim.
O tom entediado da voz de Carol não lhe saía dos ouvidos,
quando seguia sentada na beira do banco do táxi. No regresso,
o trânsito era tão intenso e lento que ela se apeou e
percorreu a correr o último quarteirão.
Carol ainda lá estava, com o café apenas meio bebido.
- Eu não quero o meu café - disse Therese, porque Carol
parecia pronta para se ir embora.
- O meu carro está na Baixa. Vamos num táxi até lá.
Desceram à zona comercial, não longe de Battery. O carro de
Carol foi trazido para cima, de uma garagem subterrânea, e
ela conduziu para ocidente, para a auto-estrada de Westside.
- Estou melhor assim - disse Carol, despindo o casaco
enquanto guiava. - Atire-o para trás, sim?
E o silêncio voltou. Carol conduzia mais velozmente, mudando
de faixa para fazer ultrapassagens, como se tivessem um
destino. Therese decidiu que tinha de dizer alguma coisa,
qualquer coisa, por alturas da Ponte George Washington. De
súbito, pensou que, se Carol e o marido se estavam a
divorciar, ela tinha estado na Baixa a falar com um advogado.
Naquela zona havia muitos escritórios de advogados. E alguma
coisa correra mal. Porque se estavam eles a divorciar? Porque
Harge tinlia um caso com a mulher chamada Cynthia? Therese
estava gelada. Carol baixara a janela do seu lado e todas as
vezes que o carro acelerava o vento entrava e envolvia-a nos
seus braços gelados.
94
- É ali que Abby mora - disse Carol, inclinando a cabeça para
a outra margem do rio.
Therese olhou, mas nem sequer viu quaisquer luzes especiais.
- Quem é a Abby?
- A Abby? A minha melhor amiga -. Depois Carol olhou para ela
e perguntou: - Não tem frio, com esta janela aberta?
- Não.
- Deve ter -. Pararam, por causa de uma luz veroelha, e Carol
fechou a janela. Olhou para Therese, como se a visse
realmente pela primeira vez naquela noite, sob o olhar que
desceu do seu rosto para as suas mãos abandonadas no regaço,
ela sentiu-se como um cachorrinho que Carol comprara num
canil da beira da estrada e que acabava de se lembrar que
seguia a seu lado.
- Que aconteceu, Carol? Está a divorciar-se?
Carol suspirou.
-Sim, estou a divorciar-me - respondeu, calmamente.
- E ele tem a menina?
- Só esta noite.
Therese ia a fazer outra pergunta, mas Carol interveio:
- Falemos de outra coisa qualquer.
Passou um carro com o rádio a tocar canções de Natal e toda a
gente a cantar.
E ela e Carol em silêncio. Deixaram Yonkers para e Therese
teve a impressão de que deixara também para trás, algures na
estrada, uma oportunidade de falar mais com Carol. Ela
insistiu, de súbito, para que comese alguma coisa, pois já
eram quase oito horas, e por isso pararam num pequeno
restaurante da berma da estrada, onde serviam sanduíches de
mariscos grelhados. Sentaram-se ao balcão e pediram
sanduíches e café mas Carol não comeu. Fez perguntas a
respeito de Richard o com o interesse que mostrara no sábado
à tarde, mas antes como se falasse para evitar que Therese
fizesse mais perguntas a respeito de si própria. Apesar de
serem perguntas pessoais, Therese respondeu maquinal e
npessoalmente. A voz de Carol contimuou a falar, a fa-
95
lar, muito mais calma que a do empregado de balcão, que
falava com alguém a três metros de distância.
- Dorme eom ele? - perguntou Carol.
- Dormi. Duas óu três vezes -. Therese falou dessas vezes, da
primeira e das três que se seguiram. Não se sentia embaraçada
ao falar disso. Nunca antes lhe parecera tão enfadonho e sem
importância. Parecia-lhe que Carol conseguia imaginar cada
minuto dessas noites. Sentiu o seu olhar objectivo e
avaliador percorrê-la, e soube que ela estava prestes a dizer
que não a achava com um ar particularmente frio, ou talvez
emocionalmente faminto. Mas Carol ficou calada e Therese
olhou, pouco à vontade, para a lista de canções da pequena
máquina automática de discos que tinha à frente. Lembrou-se
de alguém lhe ter dito uma vez que ela tinha uma boca
apaixonada - mas não conseguiu lembrar-se de quem fora.
- Às vezes leva tempo - disse Carol. - Não acredita que se
deve dar outra oportunidade às pessoas?
- Mas... porquê? Não é agradável. E eu não o amo.
- Não acha que poderá amá- lo, se resolver esse pormenor?
- É dessa maneira que as pessoas se apaixonam?
Carol olhou para cima, para a cabeça de veado da parede atrás
do balcão.
- Não - respondeu, sorrindo. - De que é que gosta no Richard?
- Bem, ele tem... - Mas Therese não tinha a certeza se era
realmente sinceridade. Ele não era sincero, ela sentia que
ele não era sincero acerca da sua ambição de ser pintor. -
Gosto da sua atitude... mais que da atitude da maioria dos
homens. Ele trata-me como uma pessoa, em vez de apenas como
uma rapariga com a qual ele pode ou não ir até certo ponto. E
gosto da família dele... do facto de ele ter uma família.
- Inúmeras pessoas têm famílias.
Therese tentou de novo.
- Ele é flexível. Muda. Não é como a maioria dos homens que
podemos rotular de médicos ou... agentes de seguros.
96
- Acho que o conhece melhor do que eu conhecia o Harge
depois de meses de casados. Pelo menos não vai cometer o
mesmo erro que eu cometi ao casar, porque era isso que se
fazia quando tínhamos uns vinte anos, no meio que eu
conhecia.
- Quer dizer que não estava apaixonada?
-Estava, estava muito. E o Harge também. E ele a o tipo de
homem capaz de, numa semana, embrulhar a nossa vida e metê-la
na algibeira. Alguma vez esteve apaixonada, Therese?
Ela esperou até que a palavra, vinda não sabia de onde,
falsa, culpada, lhe moveu os lábios.
- Não.
- Mas gostaria de estar -. Carol sorria.
- O Harge ainda está apaixonado por si?
Carol olhou para baixo, para o colo, impacientemente, e
Therese pensou que talvez estivesse escandalizada com a sua
falta de tacto. Mas quando Carol falou, a sua voz soava como
antes.
- Nem eu sei. De certo modo, ele é emocionalmente o mesmo que
sempre foi. A diferença é que agora eu sei o que ele
realmente é. Ele disse que eu era a primeira mulher por quem
estivera apaixonado. Creio que isso seja verdade, mas não
penso que tenha estado apaixonado por mim... no sentido
habitual do termo... mais que alguns meses. Também é verdade
que nunca se interessou por mais ninguém. Talvez fosse mais
humano, se se interrssasse. Isso eu saberia compreender e
perdoar.
- Ele gosta da Rindy?
- Babosamente -. Carol olhou-a, sorrindo. - Se está
apaixonado por alguém, é pela Rindy.
- Que tipo de nome é esse?
-Nerinda. Foi o Harge que escolheu o nome. Ele queria um
filho, mas acho que está ainda mais satisfeito com uma filha.
Eu queria uma filha. Queria dois ou três filhos.
-E... o Harge, não?
- Eu é que não quis -. Olhou de novo para Therese. - Isto
será uma conversa apropriada para a véspera
97
de Natal? - Carol fez menção de tirar um cigarro e aceitou o
que Therese lhe ofereceu, um Philip Morris:
- Gosto de saber tudo a seu respeito.
- Eu não quis ter mais filhos porque receava que o nosso
casamento estivesse a desmoronar-se, mesmo com a Rindy. A
Therese quer, então, apaixonar-se? Isso pro vavelmente
acontecerá em breve, e se acontecer aproveite bem; mais tarde
é mais dificil.
- Amar alguém?
- Apaixonarmo-nos. Ou até ter o desejo de fazer amor. Penso
que o sexo flui mais morosamente em todos nós do que gostamos
de acreditar... especialmente do que os homens gostam de
acreditar. As primeiras aventuras não são, em geral, nada
mais que a satisfação da curiosidade, e depois disso
continuamos a repetir os mesmos gestos, tentando descobrir...
o quê?
- O quê? - repetiu Therese.
- Existirá uma palavra para o dizer? Um amigo, um
companheiro, ou talvez apenas um parceiro. Para que servem as
palavras? Quero dizer, penso que as pessoas tentam
frequentemente encontrar através do sexo coisas que são muito
mais fáceis de encontrar de outras maneiras.
Therese sabia que era verdade o que Carol dissera a respeito
de curiosidade.
- Que outras maneiras?
- Acho que compete a cada pessoa descobri-las. Poderão
servir-me uma bebida aqui?
Mas o restaurante servia apenas cerveja e vinho e, por isso,
elas foram-se embora. Carol não parou em lado nenhum para a
sua bebida, no caminho de regresso a Nova Iorque. Perguntou a
Therese se queria ir para casa ou passar um bocado na casa
dela, e Therese escolheu a segunda hipótese. Lembrou-se de
que os Kelly a tinham convidado para o serão de bolo de
frutas e vinho e ela prometera aparecer, mas pensou que eles
não dariam pela sua falta.
- Tenho-a feito passar muitos maus bocados - disse Carol,
inesperadamente. - Domingo, e agora isto.
98
Não sou a melhor companhia esta noite. Que gostaria de
fazer? Gostaria de ir a um restaurante de Newark, onde esta
noite têm iluminações e música de Natal? Não é um áCht club.
E também podíamos jantar decentemente.
- Realmente, não me interessa ir a lado nenhum... por minha
causa.
- Passou o dia inteiro naquele desgraçado armazém, e nós não
fizemos nada para festejar a sua libertação.
- Eu gosto de estar apenas aqui, consigo - disse Therese e,
ao ouvir o tom explicativo da sua voz, sorriu.
Carol abanou a cabeça, sem olhar para ela.
- Criança, criança, por onde vagueias sozinha? Um momento
depois na auto-estrada de Nova Jérsia, disse:
-Já sei -. E virou o carro para um trecho ensaibrado da
estrada e parou. - Venha comigo.
Estavam defronte de uma plataforma iluminada cheia de árvores
de Natal. Carol disse-lhe que escolhesse uma, nem demasiado
grande nem demasiado pequena. Puseram a árvore na parte de
trás do carro e Therese sentou-se à frente, ao lado de Carol,
com os braços cheios de azevinho e ramos de abeto. Therese
encostou-lhes o rosto e inalou a pungência verde-escura do
seu cheiro, a sua fragrância limpa que era como uma floresta
selvagem e como todos os artifícios do Natal - árvore
ornamentos, prendas, neve, música natalícia, férias. Era ter
deixado o armazém e estar agora ao lado de Carol. Era o
ronronar do motor do carro e as agulhas dos ramos de abeto em
que podia tocar com os dedos. "Estou feliz, estou feliz",
pensou Therese.
- Agora vamos arranjar a árvore - disse Carol, assim que
entraram em casa.
Ligou o rádio na sala e preparou uma bebida para cada uma. O
rádio transmitia músicas de Natal, sinos a tocar
vibrantemente, como se elas estivessem dentro de uma grande
igreja. Carol foi buscar um cobertor de algodão branco para
fingir de neve à roda da árvore, e Therese polvilhou-o com
açúcar, para brilhar. Depois re-
99
cortou um anjo alongado, numa fita dourada, fixou-o no cimo
da árvore, e dobrou papel de seda e cortou uma série de anjos
para entretecer nos ramos.
- Tem muita habilidade para essas coisas - dis Carol, a
observar a árvore da lareira. - Está soberba! Tem tudo menos
presentes.
O presente de Carol estava no sofá, ao lado do casaco de
Therese. O cartão que escrevera para o acompanhar estava,
porém, em casa, e ela não queria dar o presente sem o cartão.
- De que mais precisamos? - perguntou Therese, a olhar para a
árvore.
- De nada. Sabe que horas são?
O programa da rádio terminara. Therese olhou para o relógio
da consola da chaminé e viu que passava da uma hora.
- Natal - disse.
- É melhor passar cá a noite.
- Pois sim.
- Que tem de fazer amanhã?
- Nada.
Carol tirou o seu copo de cima da telefonia.
- Não tem de se encontrar com o Richard?
Ela tinha de se encontrar com Richard ao meio-dia. Ficara de
passar o dia em sua casa. Mas podia arranjar uma desculpa
qualquer.
- Não. Eu disse-Lhe que talvez o visse. Não é importante.
- Eu posso levá-la de carro, cedo.
- Está ocupada amanhã?
Carol bebeu o último dedo de líquido do copo.
- Estou.
Therese começou a limpar o lixo que fizera, os restos de
papel de seda e as aparas de fita. Detestava sempre limpar
depois de fazer alguma coisa.
- O seu amigo Richard parece-me o tipo de homem que precisa
de uma mulher à sua volta, para trabalhar para ela. Quer case
com ela quer não - observou Carol. - Não é assim?
100
"Para quê falar de Richard agora?", pensou Therese, irritada.
Parecia- lhe que Carol gostava de Richard - e a culpada disso
só podia ser ela própria - e sentiu a ferroada de um ciúme
distante, aguçada como um alfinete.
- Para ser franca, admiro-os mais que os homens que vivem
sozinhos, ou pensam que vivem sozinhos, e acabam por cometer
os disparates mais estúpidos com mulheres.
Therese fitava o maço de cigarros de Carol, em cima da
mesinha de centro. Não tinha absolutamente nada que dizer
acerca daquele assunto. Distinguia o perfume de Carol como um
fio ténue no cheiro mais forte das sempre-verdes e apetecia-
lhe segui-lo, pôr os braços à volta dela.
- Não tem nada a ver com as pessoas casarem ou não, pois não?
- O quê? - Therese olhou-a e viu-a a sorrir um pouco.
- O Harge é o tipo de homem que não deixa uma mulher entrar
na sua vida. E, por outro lado, o seu amigo Richard é dos que
podem não casar nunca. Mas Richard encontra prazer em pensar
que quer casar -. Carol olhou para Therese de alto a baixo. -
Com as raparigas erradas - acrescentou. - Dança, Therese?
Gosta de dançar?
Carol parecia de súbito fria e amarga, e Therese teve vontade
de chorar.
- Não - respondeu. Não devia ter-lhe dito nada a respeito de
Richard, pensou, mas agora estava feito.
- Está fatigada. Venha para a cama.
Carol levou-a para o quarto onde Harge estivera no domingo e
abriu uma das duas camas. Podia ter sido o quarto de Harge,
pensou Therese. Não havia nele nada que indicasse tratar-se
de um quarto de criança. Pensou nas coisas de Rindy que Harge
levara dali e imaginou-o a sair, primeiro do quarto que
partilhara com Carol e, depois, a deixar Rindy levar as suas
coisas para aquele quarto e mantendo-as ali, isolando-se, com
a filha, de Carol.
101
- Então, boa noite - disse Carol, à porta, depois de ter
colocado um pijama aos pés da cama. - Feliz Natal. Que quer
para o Natal?
- Nada - respondeu Therese, sorrindo de súbito. Nessa noite
sonhou com aves, compridas aves vermelhas luminosas parecidas
com flamingos, voando velozmente numa floresta negra e
desenhando, no voo, recortes, arcos vermelhos que curvavam
como os seus gritos. Depois abriu os olhos e ouviu realmente
o som, um assobio suave que curvava, subindo e descendo de
novo com uma nota suplementar no fim, e, através desse som, o
verdadeiro e mais fraco chilreio de pássaros. Ajanela era uma
mancha cinzenta luminosa. O assobiar recomeçou, mesmo por
debaixo da janela, e Therese levantou-se. No caminho de
carros estava um automóvel comprido, de tejadilho aberto, e
nele uma mulher de pé, a assobiar. Era como se estivesse a
olhar para um sonho, uma cena sem cor, esbatida nas margens.
Depois ouviu o murmúrio de Carol, tão claramente como se as
três estivessem juntas no mesmo quarto:
-Vais para a cama ou acabaste de te levantar? A mulher do
carro, com o pé no assento, respondeu com a mesma suavidade:
- As duas coisas - e Therese ouviu o tremor do riso contido
nas palavras e gostou imediatamente dela.
- Queres dar uma volta? - perguntou a mulher. Estava a olhar
para cima, para a janela de Carol, com um grande sorriso que
Therese só naquele momento começou a ver.
- Pateta - murmurou Carol.
- Estás só?
- Não.
- Oh-oh...
- Não há problema. Queres entrar?
A mulher saiu do carro.
Therese dirigiu-se para a porta do seu quarto e abriu-a.
Carol vinha a chegar ao vestíbulo, a atar o cinto do roupão.
- Desculpe tê-la acordado. Volte para a cama.
102
- Não tem importância. Posso descer?
- Claro que pode! - Carol sorriu, de súbito. - Tire roupão
do roupeiro.
Therese assim fez - provavelmente era um roupão de Harge,
pensou -, e desceu.
-Quem arranjou a árvore de Natal? - estava a mulher a
perguntar.
Encontravam-se na sala.
- Foi ela - respondeu Carol, voltando-se para Therese. - Esta
é a Abby. Abby Gerhard. Therese Belivet.
- Olá - cumprimentou Abby.
- Prazer -. Therese desejara que fosse Abby. Ela olhava-a
agora com a mesma expressão radiosa e divertida de olhos um
pouco arregalados, que lhe vira ao descobri-la de pé no
carro.
- Fez uma bonita árvore - elogiou Abby. í - E se deixássemos
todas de falar baixinho? - sugeriu Carol.
Abby esfregou as mãos e foi atrás dela para a cozinha.
-Tens café, Carol?
Therese parou junto da mesa da cozinha a observá-las,
sentindo-se à vontade porque Abby deixara de lhetar atenção,
despira simplesmente o casaco e começara a ajudar Carol a
fazer o café.
A sua cintura e as suas ancas pareciam perfeitamente
cilíndricas, sem parte da frente nem de trás, sob o fato de
malha púrpura. As suas mãos eram um pouco desajeitadas,
reparou, e aos seus pés faltava em absoluto a graça dos de
Carol. Parecia também mais velha do que ela e tinha duas
rugas horizontais na fronte, que se tornavam fundas quando
ela ria e as suas sobrancelhas fortes e arqueadas se erguiam.
E agora ela e Carol riam constantemente, enquanto faziam o
café e espremiam laranjas, falando em frases curtas acerca de
nada - ou de nada que fosse suficientemente importante para
prolongar a conversa.
Excepto quando, ao tirar uma pevide de laranja do último copo
de sumo e limpar o dedo descuidadamente no próprio vestido,
Abby perguntou:
103
- Então e como vai o velho Harge?
- Na mesma -. Carol procurava qualquer coisa no frigorífico
e, ao observá-la, Therese não ouviu tudo quanto Abby disse a
seguir, ou talvez tenha sido apenas mais uma das frases
fragmentadas que só Carol compreendia, mas fosse o que fosse
fé-la endireitar-se e rir-se subitamente e com vontade,
transformou-lhe todo o rosto e Therese pensou, com uma inveja
inesperada, que ela não conseguia fazê-la rir assim mas Abby
conseguia,
- Hei-de dizer-lhe isso - replicou Carol. - Não posso
resistir.
Tratava-se de qualquer coisa sobre uma engenhoca de bolso de
escuteiro para Harge.
- E diz-lhe também de onde veio - recomendoa Abby, olhando
para Therese e sorrindo abertamente, co mo se quisesse que
ela também participasse na brincadeira.
- De onde é você? - perguntou a Therese quando se sentaram à
mesa, no nicho que ficava num lado da cozinha.
- É de Nova Iorque - respondeu Carol por ela, e Therese
pensou que Abby ia dizer, mas que invulgar, ou qualquer
patetice desse género, mas não disse absolutamente nada,
limitou-se a olhá-la com o mesmo sorriso de expectativa, como
se esperasse que a deixa seguinte partisse dela.
Apesar de toda a azáfama das duas por causa do pequeno-
almoço, havia apenas sumo de laranja e café, e umas tostas
sem manteiga que ninguém quis. Abby acendeu um cigarro antes
de tocar fosse no que fosse.
- Tem idade suficiente para fumar? - perguntou a Therese,
estendendo-lhe uma caixa vermelha onde estava escrito Crauen
A's.
- Abby, que vem a ser isso? - perguntou Carol pousando a
colher, com um ar de embaraço que Therese nunca lhe vira
antes.
- Obrigada, aceito um - respondeu Therese, e tirou um
cigarro.
Abby apoiou os cotovelos na mesa.
- Que vem a ser o quê? - perguntou a Carol.
104
- Desconfio que estás um pouco pifada.
- Depois de conduzir durante horas, ao ar livre? Saí de New
Rochelle às duas, cheguei a casa, encontrei o teu recado e
aqui estou.
Provavelmente dispunha de todo o tempo do mundo, pensou
Therese, provavelmente não fazia nada todo o dia, a não ser o
que lhe apetecia.
- Então? - perguntou Abby.
- Então... não ganhei o primeiro assalto - respondeu Carol.
Abby puxou fumo do cigarro, sem demonstrar a mínima surpresa.
- Por quanto tempo?
- Três meses.
- A começar quando?
- A começar agora. Para ser exacta, a começar a noite passada
-. Carol olhou de relance para Therese edepois baixou os
olhos para a sua chávena de café, e Therese compreendeu que
Carol não diria mais nada com ela ali sentada.
- Isso não está já decidido, pois não? - perguntou Abby.
- Receio bem que esteja - respondeu Carol, casualmente, num
tom de voz que sugeria um encolher de ombros. - Apenas
verbalmente, mas irá por diante. Que fazes esta noite? Tarde.
- Cedo não faço nada. O almoço é às duas.
- Telefona-me quando puderes.
- Com certeza.
Carol manteve os olhos baixos, fitos agora no copo de sumo de
laranja que tinha na mão, e Therese viu-lhe um descair de
lábios de tristeza, de uma tristeza que não era agora de
sabedoria mas sim de derrota.
- Eu faria uma viagem - disse Abby. - Faz uma pequena viagem
a qualquer lado -. Depois olhou para Therese, com outro dos
seus olhares luminosos, amigáveis e despropositados, como se
quisesse incluí-la em qualquer coisa em que era impossível
ela ser incluídae, de qualquer modo, Therese tornara-se
rígida só de pensar que Carol poderia viajar para longe dela.
105
- Não estou com muita disposição para isso - res pondeu
Carol, embora Therese detectasse a interferência da
possibilidade nas suas palavras.
Abby pareceu um pouco embaraçada e olhou à sua volta.
- Esta casa, de manhã, é lúgubre como uma mina de carvão, não
acham?
Therese esboçou um sorriso. Uma mina de carvão com o sol a
começar a amarelecer o parapeito da janela e a árvore de
Natal, um pouco adiante?
Carol olhava afectuosamente para Abby e acendia um dos
cigarros da amiga. Deviam conhecer-se muito bem, pensou
Therese, tão bem que nada do que qualquer delas dizia ou
fazia à outra poderia jamais surpreender, jamais ser mal
interpretado.
- A festa foi boa? - perguntou Carol.
- Mm - respondeu Abby, com indiferença. - Conheces alguém
chamado Bob Haversham?
- Não.
- Estava lá esta noite. Já o tinha encontrado antes, algures
em Nova Iorque. Curiosamente, disse que ia trabalhar no
departamento de corretagem da Rattner e Aird.
- Deveras?
- Eu não lhe disse que conhecia um dos patrões.
- Que horas são? - perguntou Carol, passados momentos.
Abby olhou para o relógio de pulso, um pequeno relógio
montado numa pirâmide de painéis de ouro.
- Sete e meia. Mais ou menos. Porquê?
- Quer dormir mais, Therese?
- Não. Estou óptima.
- Levo-a de carro onde quer que tenha de ir - disse Carol.
Mas foi Abby que acabou por a levar, por volta das dez horas,
porque não tinha mais nada que fazer, afirmou, e lhe
agradaria.
Abby era outra que gostava de ar frio, pensou Therese quando
seguiam velozmente na auto-estrada. Quem andava num carro de
tejadilho aberto em Dezembro?
106
- Onde conheceu Carol? - gritou-lhe Abby. Therese achou que
podia dizer-lhe quase toda, mas não toda, a verdade.
- Num armazém - gritou por seu turno.
- Sim? - Abby conduzia desordenadamente, lançando o grande
carro nas curvas, acelerando onde não se sperava que
acelerasse. - Gosta dela?
- Claro! - Que pergunta! Era como perguntar-lhe se acreditava
em Deus.
Therese apontou a Abby a casa onde morava, quando entraram na
sua rua.
- Importa-se de me fazer um favor? - perguntou.
- Pode esperar aqui um momento? Quero dar-lhe uma coisa para
entregar à Carol.
- Com certeza.
Therese correu pela escada acima, foi buscar o cartão que
fizera e meteu-o debaixo da fita do presente para Carol.
Trouxe-o novamente para baixo, para o entregar a Abby.
- Vê a Carol esta noite, não vê?
Abby acenou devagar, e Therese julgou ver a sombra de um
desafio nos seus curiosos olhos pretos, porque ela ia ver
Carol e Therese não, e contra factos não havia argumentos.
- Obrigada por me ter trazido.
Abby sorriu.
- Tem a certeza de que não quer que a leve a qualquer outro
lugar?
- Não, obrigada -. Therese sorriu também, porque Abby tê-la-
ia com certeza levado de bom grado até Brooklyn HeiChts.
Subiu os degraus da frente da casa e abriu a sua caixa de
correio. Havia duas ou três cartas e cartões de Natal, um
deles do Frankenberg's. Quando voltou a olhar para a rua, o
grande carro creme desaparecera como uma coisa que ela
tivesse imaginado, como uma das aves do seu sonho.
107

108

Capítulo VIII

- E agora deseja uma coisa - disse Richard. Therese assim


fez. Desejou Carol.
Richard tinha as mãos nos seus braços. Estavam parados
debaixo de uma coisa que parecia um crescente enfeitado de
contas, ou um fragmento de uma estrela-do-mar, que pendia do
tecto do vestíbulo. Era uma coisa feia, mas a família Semco
atribuía-lhe poderes quase mágicos e pendurava-a em ocasiões
especiais. O avô de Richard trouxera-a da Rússia.
-Que foi que desejaste? - Sorriu-lhe possessivamente. Aquela
era a sua casa e ele acabava de beijá-la, embora a porta que
dava para a sala estivesse aberta e a sala cheia de gente.
- Não se deve dizer.
- Na Rússia pode dizer-se.
- Bem, eu não estou na Rússia.
O som do rádio aumentou subitamente, com vozes a cantar uma
canção natalícia. Therese bebeu o resto da gemada cor-de-rosa
que tinha no copo.
- Quero ir lá para cima, para o teu quarto.
Richard pegou-lhe na mão e começaram a subir a escada.
- Ri-chard?
A tia da boquilha chamava-o da porta da sala. Richard disse
uma palavra que Therese não compreendeu e acenou-lhe com a
mão. Até mesmo no segundo andar, a casa tremia com o dançar
frenético em curso
109
no rés-do-chão, um dançar que não tinha, aliás, nada a
ver com a música. Therese ouviu cair outro copo e imaginou a
gemada rosada e espumosa a alastrar pelo chão.
Oque se estava a passar era suave, comparado com os
verdadeiros natais russos que eles costumavam festejar
na primeira semana de Janeiro, disse Richard. O rapaz
sorriu-lhe, enquanto fechava a porta do quarto.
- Gostei da minha camisola - disse.
- Ainda bem -. Therese girou a saia rodada num
arco e sentou-se na beira da cama de Richard. A grossa
camisola norueguesa que dera a Richard estava na cama
atrás dela, atravessada na sua caixa forrada de papel de
seda. Richard dera-lhe uma saia que comprara numa loja das
Índias Orientais, uma saia comprida, com listas
verdes e douradas e bordadas. Era encantadora, mas
Therese não sabia onde poderia alguma vez usá-la.
- Que tal uma bebida a sério? Aquela mistela lá de
baixo é enjoativa -. Richard tirou a sua garrafa de uísque do
fundo do roupeiro.
- Não, obrigada -. Therese abanou a cabeça.
- Fazia-te bem.
Ela abanou de novo a cabeça. Olhou à sua volta, para o quarto
quase quadrado e de tecto alto, para o papel
da parede com o seu desenho de rosas quase indiscernível,
para as duas tranquilas janelas com cortinas de
musselina branca ligeiramente amarelecida. Partindo da
porta, havia dois rastos coçados na alcatifa verde,
conduzindo um à cómoda e o outro à secretária, ao canto.
Ovaso com pincéis e a pasta de desenhos, no chão ao
lado da secretária, eram os únicos indícios de que Richard
pintava. Como se pintar ocupasse apenas um canto do seu
cérebro, pensou Therese, e perguntou-se durante quanto tempo
continuaria ele ainda a pintar, antes
de desistir da pintura a favor de qualquer outra coisa.
E perguntou-se também, como já fizera muitas vezes, se
Richard gostava dela apenas porque era mais compreensiva em
relação às ambições dele que qualquer outra
pessoa sua conhecida de momento, e porque sentia que
as críticas dela o ajudavam. Levantou-se, desassossegada,
110
e foi à janela. Amava aquele quarto - porque ele se mantinha
o mesmo e permanecia no mesmo lugar -, no entanto, agora,
lutava com um impulso para sair dali para fora. Era uma
pessoa diferente da que ali estivera há três semanas. Esta
manhã acordara em casa de Carol. Carol era como um segredo
que alastrava por ela, que alastrava também por aquela casa,
como uma luz invisível para todos menos para si.
- Hoje estás diferente - observou Richard, tão abruptamente
que um frémito de perigo desceu pelo corpo de Therese.
- Talvez seja o vestido - respondeu.
Trazia um vestido de tafetá azul que só Deus sabia quantos
anos tinha e que não voltara a usar depois dos seus primeiros
meses em Nova Iorque. Sentou-se de novo na cama e olhou para
Richard, que estava parado no meio do quarto com o pequeno
copo de uísque puro na mão e cujos olhos azul-claros desciam
do rosto dela para os seus pés, de sapatos pretos novos, de
saltos altos, e subiam outra vez para o seu rosto.
- Terry -. Richard pegou-lhe nas mãos e imobilizou-as na
cama, uma de cada lado. Os seus lábios delgados e lisos
desceram para os dela, firmemente, com o contacto rápido da
língua entre os de Therese e o cheiro aromático do uísque. -
Terry, és um anjo - disse, em voz profunda, e ela pensou em
Carol a dizer a mesma coisa.
Therese observou-o enquanto ele apanhava do chão o pequeno
copo e o guardava com a garrafa no roupeiro. De súbito,
sentiu-se imensamente superior a ele, a todas as pessoas que
se encontravam no rés-do-chão. Era mais feliz que qualquer
delas. A felicidade era um pouco como voar, pensou, como ser
um papagaio de papel. Dependia da quantidade de guita que se
soltava...
- Bonito? - perguntou Richard.
- É uma beleza! - exclamou Therese, e endireitou-se.
- Acabei-o a noite passada. Pensei que, se o dia hoje
estivesse bom, poderíamos ir ao parque e lanÇá-lo -. Richard
111
sorria como um garoto, orgulhoso do seu trabalho. - Vê a
parte de trás.
Era um papagaio turco, rectangular e arqueado como um escudo,
com a armação delgada entalhada e atada aos cantos. Na parte
da frente, Richard pintara uma catedral com cúpulas
turbilhonantes e um céu vermelho atrás.
- Vamos lançá-lo agora - propôs Therese. Levaram o papagaio
para baixo. Então toda a gente os viu e veio ao vestibulo -
tios, tias, primos e primas -, a fazer uma grande algazarra,
e Richard teve de erguer o papagaio no ar para o proteger. O
barulho irritou Therese, mas Richard adorou-o.
-Fiquem para o champanhe, Richard! - gritou uma das tias, uma
das tias de cintura gorda a esticar como um segundo busto o
cetim do vestido.
- Não podemos - respondeu Richard, e acrescentou qualquer
coisa em russo. Therese teve uma impressão que tinha
frequentemente quando o via com a família, a impressão de que
devia ter havido um engano, de que o próprio Richard podia
ser um órfão, uma criança trocada, deixado no degrau e criado
como filho por aquela família. Mas ali estava o seu irmão
Stephen, parado à entrada da porta, com os mesmos olhos azuis
de Richard, embora fosse ainda mais alto e mais magro que
ele.
- Que telhado? - perguntou esganiçadamente a mãe de Richard.
- Este telhado?
Alguém perguntara se iam lançar o papagaio do telhado e, como
a casa não tinha telhado em qe uma pessoa se pudesse firmar
de pé, a mãe de Richard desatara a rir à gargalhada. Depois o
cão começou a ladrar.
- Vou-lhe fazer aquele vestido! - disse a mãe de Richard a
Therese, de dedo admoestador espetado.
- Sei as suas medidas!
Tinham-na medido com uma fita métrica, na sala, no meio de
toda a confusão de cantorias e desembrulhar de presentes, e
dois dos homens tinham tentado ajudar. A senhora Semco pôs o
braço à volta da cintura de Therese que, de súbito, a abraçou
e beijou firmemente na fa-
112
ce, afundando os lábios na carne macia e empoada,
concentrando nesse único segundo, no beijo e no convulsivo
apertar do braço, o afecto que sentia realmente por ela e que
sabia voltaria a ocultar-se, como se não existisse, no
imstante em que a largasse.
Depois ela e Richard ficaram livres e sós e desceram pelo
passeio fronteiro. Não seria diferente se fossem casados,
pensou Therese, uma visita à família no dia de Natal. Richard
lançaria os seus papagaios de papel mesmo quando fosse velho,
como o seu avô, que lançara papagaios em Propesct Park até ao
ano da sua morte, segundo lhe dissera Richard.
Seguiram de metro para o parque e depois subiram ao monte
despido de árvores onde já tinham ido uma dúzia de vezes.
Therese olhou em redor. Alguns rapazes jogavam à bola, lá em
baixo, no campo plano da orla das árvores, mas tirando isso o
parque parecia silencioso e imóvel. Não havia muito vento,
não era de facto suficiente, disse Richard, e o céu estava
densamente branco como se transportasse neve.
Richard gemeu, ao falhar uma nova tentativa. Corria com o
papagaio, a tentar fazê-lo subir.
Therese, sentada no chão com os braços à volta dos joelhos,
observou-o a erguer a cabeça e virá-la em todas as direcções,
como se tivesse perdido alguma coisa no ar.
- Cá está ele!
Ela levantou-se, a apontar.
- Sim, mas não é firme.
Apesar disso, Richard correu para o vento com o papagaio, que
bambeou na guita comprida e depois estremeceu como se alguma
coisa o tivesse feito saltar. Descreveu um grande arco e por
fim começou a subir noutra direcção.
- Encontrou o seu próprio vento! - exclamou Therese.
- Sim, mas é lento.
- Mas que pessimista! Posso segurá-lo eu?
- Espera até subir mais.
Richard sacudia o papagaio com longos movimentos
113
dos braços, mas ele mantinha-se no mesmo lugar, no indolente
ar frio. As cúpulas douradas da catedral oscila vam de lado
para lado, como se todo o papagaio abanasse a cabeça a dizer
não, e a cauda comprida e solta imitava-o estupidamente,
repetindo a negação.
- É o melhor que podemos conseguir - disse Richard. - Não
aguenta mais guita.
Therese não tirava os olhos do papagaio. Nisto, o pa pagaio
firmou-se e parou, como a gravura de uma cate dral colada no
denso céu branco. Provavelmente, Carol não gostava de
papagaios, pensou Therese. Eram coisas que a não deviam
divertir. Olharia para um e diria que era idiota.
- Queres pegar? - Richard meteu o pau da guita nas mãos de
Therese, e ela levantou-se. Richard trabalhara a fazer o
papagaio na noite anterior, pensou, quando ela estava com
Carol, e fora por isso que não lhe telefonara e, portanto,
não sabia que ela não tinha estado em casa. Se tivesse
telefonado, ter-lhe-ia dito. Em breve surgiria a primeira
mentira.
De súbito, o papagaio quebrou as amarras que o prendiam ao
céu e puxou vivamente, para se soltar. Therese deixou o pau
da guita girar-lhe, rápido, nas mãos, o mais que se atreveu,
sob o olhar de Richard, pois o pa pagaio continuava baixo. E
eis que voltou a descansar, teimosamente imóvel:
- Puxa! - disse Richard. - Não pares de o manipular.
Ela assim fez. Era como brincar com uma tira de ", elástico
comprida. Mas a guita dada era agora tanta e x tão frouxa que
todos os seus esforços mal chegavam para imprimir ao papagaio
o mínimo movimento. Ela bem
puxava, puxava. Depois Richard tirou-lho das mãos e Therese
deixou pender os braços. Tinha alguma dificul dade em
respirar e sentia vibrar pequenos músculos dos braços.
Sentou-se no chão. Não ganhara ao papagaio. Ele não fizera o
que ela queria que fizesse.
- Talvez a guita seja demasiado pesada - alvitrou.
114
Era uma guita nova, macia, branca e grossa como uma lagarta.
- A guita é muito leve. Repara. Agora está a mover-se!
O papagaio subia em arremessos ascendentes curtos, como se
tivesse descoberto, de súbito, o que queria, juntamente com a
vontade de fugir.
- Dá mais guita! - gritou ela.
Therese levantou-se. Um pássaro voou por debaixo do papagaio.
Os olhos dela estavam fixos no rectângulo que se ia tornando
cada vez mais pequeno, com solavancos de recuo como a vela
cheia de um navio em marcha à ré. Therese sentiu que o
papagaio significava alguma coisa, aguele papagaio, naquele
momento.
- Richard...
- O que é?
Ela via-o pelo canto do olho, curvado e com as mãos à sua
frente, como se guiasse uma prancha de surf
- Quantas vezes estiveste apaixonado?
Richard soltou uma gargalhada breve, rouca.
- Nunca, até te conhecer.
- Estiveste, sim. Falaste-me de duas vezes.
- Se contar essas, poderei contar mais uma dúzia de oútras -
disse Richard muito depressa, com a aspereza da preocupação.
O papagaio começava a dar passos em arco, para baixo.
Therese manteve a voz no mesmo nível, quando perguntou:
-Alguma vez estiveste apaixonado por um rapaz?
- Um rapaz? - repetiu Richard, surpreendido.
- Sim.
Decorreram talvez cinco segundos antes de ele responder, em
tom firme e definitivo:
- Não.
Pelo menos deu-se ao incómodo de responder, pensou Therese.
Sentiu um impulso para Lhe perguntar o que teria ele feito se
isso acontecesse, mas a pergunta não teria praticamente
nenhuma utilidade. Therese manteve os
115
olhos fixos no papagaio. Estavam ambos a olhar para o mesmo
papagaio, mas como deviam ser diferentes os pensamentos que
iam na cabeça de cada um.
- Alguma vez ouviste falar disso?
- Se ouvi falar disso? Referes-te a pessoas desse tipo? Claro
que sim -. Richard estava agora direito, en rolando a guita
com movimentos em oito que imprimia ao pau de a enrolar.
Therese disse com cuidado, consciente de que ele estava a
ouvir:
- Não me refiro a pessoas desse tipo. Refiro-me a duas
pessoas que se apaixonam subitamente uma pela outra, sem mais
nem menos. Digamos dois homens ou duas raparigas.
A expressão do rosto de Richard era a mesma que seria se
estivessem a falar de política.
- Queres saber se alguma vez conheci algumas? Não.
Therese esperou até ele voltar a movimentar o papagaio,
tentando fazê-lo subir mais alto. Depois observou:
- Suponho, no entanto, que isso podia acontecer a quase toda
a gente, não podia?
Ele continuou a manobrar o papagaio.
- Mas essas coisas não acontecem assim, simplesmente. Existe
sempre qualquer razão para elas, nos antecedentes.
- Sim - disse Therese, em tom de concordância. Ela pensara
nos antecedentes. A coisa mais parecida com "estar
apaixonada" de que se conseguia lembrar era do que sentira
por um rapaz que vira algumas vezes na cidade de Montclair,
quando viajava no autocarro da escola. Ele tinha cabelo preto
encaracolado e um rosto bonito e sério, e deveria ter talvez
doze anos, mais do que ela tinha então. Recordava-se de um
breve período em que pensara nele todos os dias. Mas isso não
era nada, absolutamente nada que se comparasse ao que sentia
por Carol. E que absurdo, nem sequer saber! Ouvira falar de
raparigas que se apaixonavam umas pelas outras; e sabia que
tipo de pessoas eram e qual o seu aspecto.
116
Um aspecto que nem ela nem Carol tinham. No entanto, o que
sentia por Carol passava todos os testes e correspondia a
todas as descrições do amor.
- Achas que isso me podia acontecer? - perguntou
simplesmente, antes de ter tempo de averiguar se ousaria ou
não perguntar.
- O quê? - Richard sorriu. - Apaixonares-te por uma rapariga?
Claro que não! Meu Deus, não te apaixonaste, pois não?
- Não - respondeu Therese em tom peculiar, inconclusivo, mas
ele não pareceu reparar no tom.
- Está outra vez a subir. Olha, Terry!
O papagaio subia a direito, cada vez mais depressa, e o pau
da guita girava nas mãos de Richard. De qualquer modo, pensou
Therese, nunca se sentira tão feliz como agora. E que
necessidade havia de se preocupar a definir tudo?
- Eh! - Richard corria atrás do pau da guita, que saltava
loucamente no chão, como se também ele tentasse abandonar a
terra. - Queres segurá-lo? - perguntou, quando o apanhou. -
Levanta praticamente uma pessoa do chão!
Therese pegou no pau. Não restava muita guita, e agora o
papagaio estava quase invisível. Quando deixava os braços
subirem todos, sentia-o puxá-la um pouco, de uma maneira
deliciosa e leve, como se o papagaio pudesse realmente
levantá-la, se reunisse todas as suas forças.
- Solta-o! - gritou Richard, acenando com os braços. Tinha a
boca aberta e duas manchas vermelhas nas faces. - Solta-o!
- Não há mais guita!
- Vou cortá-la!
Therese não pôde acreditar no que ouviu, mas quando olhou
para ele viu- o levar a mão dentro do sobretudo, para tirar o
canivete.
-Não faças isso!
Richard aproximou-se a correr, rindo.
-Não faças isso! - repetiu ela, furiosa. - Estás doido? -
Tinha as mãos cansadas, mas cada vez se agarrava com mais
força ao pau da guita.
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- Vamos cortá-lo! É mais divertido! - E Richard chocou
fortemente com ela, porque estava a olhar para cima.
Therese puxou o pau para o lado, para o tirar do seu alcance,
muda de cólera e de espanto. Houve um instante de medo,
quando sentiu que Richard podia ter repentinamente perdido o
juízo, e depois ela cambaleou para trás, desaparecida a
sensação de estar a ser puxada, com pau vazio de guita na
mão.
- Estás doido! - gritou-lhe. - Enlouqueceste!
- É apenas um papagaio! - Richard riu-se, de pescoço esticado
a perscrutar o nada.
Therese olhou em vão, em vão tentou ver nem que fosse apenas
a guita pendurada.
- Porque fizeste isto? - As lágrimas tornavam-lhe a voz
esganiçada. - Era um papagaio tão lindo!
- Era apenas um papagaio! - repetiu Richard.
- Eu posso fazer outro!
118

Capítulo IX

Therese começou a vestir-se, mas depois mudou de ideias.


Estava ainda de robe, a ler o manuscrito de Small Rain que
Phil lhe levara mais cedo e se encontrava agora todo
espalhado no sofá. Carol dissera que estava na esquina da 48
com a Madison. Podia chegar ali em dez minutos. Passou um
olhar pela sala, viu o rosto no espelho e resolveu ficar como
estava.
Levou alguns cinzeiros para o lava-louças e lavou-os, e
empilhou o manuscrito muito bem na mesa de trabalho. Pensou
se Carol traria a mala consigo. Telefonara-lhe na noite
anterior de um lugar qualquer em Nova Jérsia, onde estava eom
Abby, e dissera-lhe que achava a mala bonita, mas um presente
demasiado grandioso. Therese sorriu ao recordar a sugestão de
Carol de que a aceitasse de volta. Pelo menos Carol gostava
dela. . A campainha da porta tocou, três toques rápidos.
Therese olhou para baixo, pelo poço da escada, e viu Carol
transportando qualquer coisa. Correu pela escada abaixo.
-Está vazia. É para si - disse Carol, sorrindo. Era uma mala
de viagem, embrulhada. Carol tirou
os dedos de baixo da pega e deixou Therese levá-la. Therese
pô-la em cima do sofá e, cuidadosamente, cortou o papel pardo
do embrulho. A mala era de cabedal grosso, castanho-claro,
perfeitamente simples.
- É tremendamente bonita!
- Gosta? Eu nem sequer sabia se precisava de uma mala de
viagem.
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- Claro que gosto -. Aquele era o tipo de mala para ela,
exactamente aquele e nenhum outro. Tinhas as suas iniciais,
em pequenas letras douradas: T. M. B. Lembrou-se de que Carol
lhe perguntara qual era o seu segundo nome, na véspera de
Natal.
- Experimente a combinação, para abrir, e veja se gosta do
interior.
Therese assim fez.
- Também gosto do cheiro - afirmou.
- Está ocupada? Se estiver, vou-me embora.
- Não. Sente-se. Não estou a fazer nada... só a ler
uma peça.
- Que peça?
- Uma peça para a qual tenho de fazer cenários - Lembrou-se
de súbito de que nunca dissera a Carol que desenhava cenários
para teatro.
- Cenários?
- Sim... sou desenhadora de cenários -. Pegou no casaco de
Carol, que sorria de espanto.
- Por que diabo não me disse? - perguntou calmamente. - Que
outros coelhos vai tirar do chapéu?
- É o primeiro trabalho a sério. E não é uma peça para a
Broadway. Vai ser representada na Village. É uma comédia.
Ainda não estou sindicalizada. Tenho de esperar por uma peça
para a Broadway, para isso.
Carol perguntou-lhe tudo a respeito do sindicato, das
filiações como principiante e mestre, que custavam mil e
quinhentos e dois mil dólares, respectivamente. E se ela
tinha todo esse dinheiro junto.
-Não... tenho apenas umas centenas de dólares. Mas se
arranjar um trabalho, eles deixam-me pagar em prestações.
Carol estava sentada na cadeira de espaldar direito, onde
Richard se sentava frequentemente, a observá-la. Therese leu
na sua expressão que subira de súbito no seu apreço, e não
conseguiu compreender por que motivo não mencionara antes que
era desenhadora de cenários e até já tinha, de facto,
trabalho.
- Bem, se daí resultar um trabalho para a Broad-
120
way - disse Carol -, considerará a ideia de eu lhe emprestar
o resto do dinheiro? Como uma simples transacção comercial?
- Obrigada. Eu...
-Gostaria de fazer isso por si. Com a sua idade, não deveria
preocupar-se com o pagamento de dois mil dólares.
- Obrigada. Mas isso não poderá acontecer antes de mais uns
dois anos.
Carol ergueu a cabeça e soprou o fumo num jacto fino.
- Oh, eles não acompanham realmente o desenrolar dos
aprendizados, pois não?
Therese sorriu.
- Não. Evidentemente que não. Quer uma bebida? Tenho uma
garrafa de uísque.
- Que bom. Gostaria muito, Therese -. Carol levantou-se e
espreitou nas prateleiras da kitchenette, enquanto ela
preparava as bebidas. - É boa cozinheira?
- Sou. Sobretudo quando tenho alguém para quem cozinhar. Faço
boas omeletas. Gosta?
- Não - respondeu Carol sem hesitar, e Therese riu-se. -
Porque não me mostra algum do seu trabalho?
Therese tirou uma pasta do roupeiro. Carol sentou-se no sofá
e viu tudo com muito cuidado, mas, julgando pelos seus
comentários e perguntas, Therese achou que ela considerava os
trabalhos demasiado bizarros para serem utilizados, e talvez
também não muito bons. Carol disse que do que gostava mais
era do de Petruska, que estava na parede.
- Mas é a mesma coisa - explicou Therese. - É a mesma coisa
que os desenhos, só que na forma de modelo.
-Bem, talvez sejam os seus desenhos. São muito positivos,
aliás. Gosto desse aspecto deles -. Carol pegou no copo, que
pusera no chão, e inclinou-se para trás no sofá. - Está a
ver, não me enganei, pois não?
- A respeito de quê?
-A seu respeito.
Therese não compreendeu exactamente o que ela queria dizer.
Carol sorria-lhe através do fumo do cigarro e isso irritava-
a.
121
- Pensava que se tinha enganado?
- Não. Quanto tem de pagar por um apartamento como este?
- Cinquenta dólares por mês.
Carol deu um estalo com a língua.
- Não lhe sobra muito do seu ordenado, pois não?
Therese inclinou-se sobre a pasta, a atá-la.
-Não. Mas ganharei mais, em breve. E também não ficarei a
morar eternamente aqui.
- Claro que não. E viajará, também, como viaja em imaginação.
Verá uma casa em Itália pela qual se apaixonará. Ou talvez
goste de França. Ou da Califórnia, ou do Arizona.
Therese sorriu. Provavelmente não teria dinheiro para isso,
quando acontecesse.
- As pessoas apaixonam-se sempre por coisas que não podem
ter?
- Sempre - respondeu Carol, também a sorrir. Enfiou os dedos
no cabelo. - Acho que, afinal, sempre viajarei.
- Por quanto tempo?
- Apenas um mês, mais ou menos.
Therese arrumou a pasta no roupeiro.
- Quando parte?
- Imediatamente. Quero dizer, assim que tratar de tudo. E não
há muito de que tratar.
Therese voltou-se. Carol estava a esmagar a ponta do cigarro
no cinzeiro. Não significava nada para ela, pensou Therese,
não se irem ver durante um mês.
- Porque não vai a qualquer lado com a Abby?
Carol levantou a cabeça para olhar para ela e, depois, para o
tecto.
- Para começar, não creio que ela esteja livre.
Therese fitou-a. Tocara em qualquer coisa, ao mencionar Abby.
Mas o rosto de Carol estava agora impenetrável.
- Você é muito simpática, deixando-me vê-la tantas vezes -
disse Carol. - Sabe, neste momento não tenho vontade de ver
as pessoas do costume. Não posso, realmente. São precisos
pares para fazer todas as coisas.
122
Como ela está frágil, pensou Therese, de súbito, como
está diferente do dia do primeiro almoço. Depois Caro
levantou-se, como se adivinhasse os seus pensamentos, e
Therese sentiu um alarde de segurança na sua cabeça erguida,
no seu sorriso, quando ela passou tão junto de si que os
braços de ambas se tocaram.
- Porque não fazemos qualquer coisa esta noite? -
sugeriu Therese. - Pode ficar aqui, se quiser, e eu acabo de
ler a peça. Depois vamos a qualquer lado as duas
à noite.
Carol não respondeu. Estava a olhar para o vaso das
flores da estante.
- Que tipo de plantas são estas? - perguntou.
- Não sei.
- Não sabe?
Eram todas diferentes, um cacto com folhas grossas que não
crescera nem um bocadinho desde que o comprara, há um ano,
uma planta como uma palmeira em miniatura, e outra descaída,
vermelho-verde, que tinha de ser amparada por uma cana.
- São apenas plantas.
Carol voltou-se para ela, sorrindo.
- São apenas plantas - repetiu.
- E a respeito desta noite?
- Está combinado. Mas eu não fico. São só três horas.
Telefono-lhe por volta das seis -. Carol meteu o isqueiro na
mala de mão. Que não era a que Therese lhe dera. - Apetece-me
ver móveis esta tarde.
- Móveis? Em armazéns?
- - Em armazéns ou na Parke-Bernet. Ver móveis faz-me bem.
Carol estendeu a mão para o casaco, que estava na poltrona, e
Therese reparou mais uma vez na longa linha que ia do seu
ombro até ao cinto de cabedal largo e se prolongava pela sua
perna. Era bela como um acorde de música ou todo um bailado.
Ela, Carol, era bela e porque haviam os seus dias de ser tão
vazios agora, pensou Therese, quando ela era feita para viver
com pessoas que a amavam, para caminhar numa bela casa, em
belas
123
cidades, ao longo de litorais azuis com um extenso horizonte
e um céu azul para lhe servirem de fundo?
- Até logo - despediu-se Carol e, no mesmo movi mento com que
vestiu o casaco, pôs o braço à volta da cintura de Therese.
Foi apenas um instante demasiado perturbador, com o braço de
Carol a enlaçá-la subitamente, apenas um instante para poder
ser alívio, ou fim ou princípio, antes de a campainha da
porta lhes retinir nos ouvidos como o rasgar de uma parede de
latão. Carol sorriu.
- Quem é? - perguntou.
Therese sentiu o raspar da unha do polegar de Carol no seu
pulso, quando ela a soltou.
- Provavelmente é o Richard -. Só podia ser ele, porque ela
conhecia o seu toque longo de campainha.
- Óptimo. Gostaria de o conhecer.
Therese carregou no botão do trinco e depois ouviu os passos
apressados e firmes de Richard na escada. Abriu a porta.
- Olá - saudou ele. - Decidi...
- Richard, apresento-te a senhora Aird - interrompeu-o
Therese. - Richard Semco.
- Como está? - cumprimentou Carol. Richard inclinou a cabeça,
quase numa vénia.
- Como está? - repetiu, com os olhos azuis muito abertos.
Fitaram-se um ao outro, Richard com uma caixa quadrada nas
mãos, como se estivesse prestes a oferecer-lha, e Carol
parada, a segurar um novo cigarro, com um ar de quem não
ficava nem partia. Richard colocou a caixa numa extremidade
da mesa.
- Estava tão perto que me lembrei de subir - disse; e, sob a
aparente explicação, Therese ouviu a afirmação
inconsciente de um direito, do mesmo modo que vira, atrás do
olhar interrogador, uma desconfiança instintiva de Carol. -
Tive de ir levar um presente a uma amiga da mamã. Isto é
lebkuchen [Broa de mel. (N. do E.)] - indicou a caixa com uma
124
inclinação da cabeça e sorriu afavelmente. - Alguém quer um
bocadinho?
Carol e Therese declinaram. Carol observava-o enquanto ele
abria a caixa com o canivete. Gostava do sorriso dele, pensou
Therese. Gosta dele, do jovem desengonçado, de cabelo louro
rebelde, ombros largos e grandes pés cómicos metidos em
mocassins.
- Sente-se, por favor - disse Therese a Carol.
- Não, tenho de ir.
- Dou-te metade, Terry, e depois também me vou embora - disse
Richard.
Therese olhou para Carol, que sorriu do seu nervosismo e se
sentou a um canto do sofá.
- De qualquer modo, não se apresse por minha causa - pediu o
rapaz, levando o papel com um pedaço de bolo para uma
prateleira da cozinha.
- Não, esteja descansado. É pintor, não é, Richard?
- Sou -. Meteu na boca um pouco de cobertura do bolo que se
soltara e olhou para Carol, aprumado, pois era incapaz de
estar de outro modo, pensou Therese, e com o olhar franco
porque não tinha nada para escon der. - Também é pintora?
- Não - respondeu Carol, e voltou a sorrir. - Eu não sou
nada.
- A coisa mais dificil de ser.
-Acha? É um bom pintor?
-Serei. Posso ser - respondeu Richard, sem se perturbar. -
Tens alguma cerveja por aí, Terry? Estou com uma sede danada.
Therese foi ao frigorífico e tirou as duas garrafas que lá
estavam. Richard perguntou a Carol se também queria cerveja,
mas ela recusou. Depois o rapaz passou pelo sofá, olhou para
a mala e para o papel em que viera embrulhada, e Therese
pensou que ele ia dizer alguma coisa a esse respeito. Mas não
disse.
- Pensei que podíamos ir ao cinema esta noite, Terry. Gostava
de ver aquele filme que está no Victoria. Queres ir?
- Esta noite não posso. Tenho um encontro com a senhora Aird.
125
- Ah! - Richard olhou para Carol, que apagou o cigarro e se
levantou.
- Tenho de ir -. Sorriu a Therese. - Volto a telefonar-lhe
por volta das seis horas. Se mudar de ideias, não tem
importância. Até à vista, Richard.
- Até à vista.
Carol piscou o olho a Therese, enquanto descia a escada, e
recomendou-lhe, a sorrir.
- Porte-se bem.
- De onde veio esta mala? - perguntou Richard, quando Therese
voltou para dentro.
- É um presente.
- Que se passa, Terry?
- Não se passa nada.
- Interrompi alguma coisa importante? Quem é ela?
Therese pegou no copo vazio de Carol, que tinha um pouco de
bâton na borda.
- É uma mulher que conheci no armazém.
- Foi ela que te deu esta mala?
- Foi.
- Que grande presente. assim tão rica?
Therese lançou-lhe um olhar rápido. A aversão de Richard aos
ricos, aos burgueses, era automática.
- Rica? Referes-te ao casaco de vison? Não sei. Eu fiz-lhe um
favor. Encontrei uma coisa que ela perdera no armazém.
- Sim? O quê? Não tinhas dito nada.
Therese lavou e limpou o copo de Carol e arrumou-o na
prateleira.
- Deixou a carteira no balcão e eu levei-lha, mais nada.
- Ah! Estupenda recompensa -. Richard franziu a testa. -
Terry, que se passa? Não continuas zangada por causa daquele
papagaio idiota, pois não?
- Não, claro - respondeu, com impaciência. Desejava que ele
se fosse embora. Meteu as mãos nas algibeiras do roupão,
atravessou a sala e parou onde Carol parara, a olhar para as
plantas. - O Phil trouxe a peça esta manhã. Comecei a lê- la.
126
- É por causa disso que estás preocupada?
- Porque pensas que estou preocupada?
- Estás de novo num daqueles teus estados de espírito, como
se te encontrasses a quilómetros de distância.
- Não estou preocupada e não estou a quilómetros de distância
-. Therese respirou fundo, antes de acrescentar: - curioso
que te apercebas tão bem de alguns estados de espírito e tão
mal de outros.
Richard olhou para ela.
- Está bem, Terry - disse com um encolher de ombros, como se
aceitasse o que ela dissera. Sentou-se na cadeira de espaldar
direito e deitou no copo o resto da cerveja. - Que encontro é
esse que tens com essa mulher, esta noite?
Os lábios de Therese estenderam-se num sorriso, enquanto ela
passava por eles a ponta do bâton. Olhou um momento para a
pinça das sobrancelhas que estava na pequena prateleira
fixada no lado interior da porta do roupeiro. Depois colocou
o bâton ao seu lado.
- Creio que é uma espécie de cocktail. Qualquer coisa de
beneficência, por causa do Natal. Ela disse que era num
restaurante.
- Hmm. Queres ir?
- Disse que ia.
Richard bebeu a cerveja, de sobrancelhas um pouco
*carregadas.
- E depois? Talvez eu pudesse ficar por aqui e ler a peça, na
tua ausência, e depois podíamos petiscar qualquer coisa e ir
ao cinema.
- Eu pensei que depois era melhor eu acabar de ler a peça.
Devo começar a trabalhar no sábado, e convém que tenha
algumas ideias na cabeça.
Richard levantou-se.
- Está bem - disse em tom casual, com um suspiro. Therese
observou-o enquanto ele se aproximava do sofá e parava, a
olhar para o manuscrito. Depois baixou-se e olhou com atenção
a página do título e do elenco. Olhou para o relógio de pulso
e a seguir para ela.
127
- E se eu a lesse agora? - perguntou.
- À vontade - respondeu Therese com uma brusquidão que
Richard ou não ouviu, ou ignorou, pois limitou-se a deitar-se
no sofá com o manuscrito nas mãos começou a ler.
Therese tirou uma carteira de fósforos da prateleira.
"Não", pensou, "ele só dava conta dos estados de espíri do
tipo a quilómetros de distância quando se senti privado dela
pela distância concreta." E, de súbito, pensou nas vezes em
que fora para a cama com ele, da sua distância de então, ao
invés da proximidade, da intimidade que devia existir e de
que toda a gente falava. Isso não tivera importância para
Richard, então, devido, supunha ela, ao facto físico de
estarem na cama juntos. E passou-lhe pelo espírito, vendo-o
tão completamente absorto na leitura, vendo os dedos roliços
e rígidos pegarem numa mecha de cabelo da frente da cabeça e
puxá-la a direito na direcção do nariz, como o vira fazer um
milhar de vezes antes, passou-lhe pelo espírito que a atitude
de Richard era a de quem pensava que o seu lugar na vida dela
era inexpugnável, o laço que a prendia a ele permanente e
inquestionável, porque ele era o primeiro homem com quem ela
dormira. Atirou a carteira de fós foros para a prateleira, e
um frasco de qualquer coisa caiu.
Richard sentou-se no sofá, sorrindo um pouco, sur preendido.
- Que se passa, Terry?
- Richard, apetece-me ficar sozinha... o resto da tarde.
Importas-te?
Ele levantou-se. A surpresa continuou estampada no seu rosto.
- Não. Claro que não -. Largou de novo o manuscrito no sofá.
- Está bem, Terry. Provavelmente é melhor assim. Talvez devas
ler isto agora... ler sozinha - disse, em tom argumentativo,
como se estivesse a persuadir-se a si mesmo. Consultou de
novo o relógio.
- Talvez vá passar um bocado com o Sam e a Joan.
Ela ficou onde estava sem se mexer, sem pensar se-
128
quer em nada, a não ser nos poucos segundos que passaram até
ele sair, enquanto Richard lhe passava uma vez a mão, um
pouco viscosa de humidade, pelo cabelo e se inclinava para a
beijar. Depois, de repente, lembrou-se do álbum de Degas que
comprara dias atrás, do álbum de reproduções que ele queria e
não conseguira encontrar em lado algum. Tirou-o da gaveta de
baixo da cómoda.
- Encontrei isto. O álbum de Degas.
- Oh, óptimo! Obrigado -. Pegou no livro, que ainda estava
embrulhado. - Onde o encontraste?
- No Frankenberg's. Imagina, logo lá.
- No Frankenberg's -. Richard sorriu. - São seis
dólares, não é?
- Oh, não tem importância.
Richard tirara a carteira.
- Mas fui eu que te pedi que o procurasses para mim.
- Não tem importância, sério.
Richard protestou, mas ela não aceitou o dinheiro.
E, passado um minuto, ele saíra, com a promessa de Lhe
telefonar no dia seguinte às cinco horas. Podiam fazer
qualquer coisa amanhã à noite, disse.
Carol telefonou às seis e dez. Apetecia-lhe ir a Chinatown?
"Com certeza", respondeu Carol.
- Estou a tomar cocktails com uma pessoa no St. Regis -
continuou Carol. - Porque não vem cá ter comigo? Estou na
sala pequena, não na grande. E, escute, nós vamos a qualquer
coisa relacionada com o teatro, para que você me convidou.
Percebeu?
- Assim uma espécie de cocktail de beneficência natalício?
Carol riu-se.
- Despache-se.
Therese voou.
O amigo de Carol era um homem chamado Stanley McVeich,
um tipo alto e muito atraente, de bigode e com um boxer pela
trela. Carol estava pronta para sair quando Therese chegou.
Stanley saiu com elas, meteu-as num táxi e deu algum dinheiro
ao motorista, pela janela.
129
- Quem é ele? - perguntou Therese.
- Um velho amigo. Encontra-se comigo mais vezes; agora que o
Harge e eu nos estamos a separar.
Therese olhou-a. Carol tinha um maravilhoso pequeno sorriso
nos olhos, esta noite.
- Gosta dele?
- Assim-assim - respondeu Carol. E para o motorista: - Quer
fazer o favor de seguir para Chinatown, em vez de para outro
destino?
Começou a chover quando ainda estavam a jantar, Carol disse
que chovia sempre em Chinatown, chovera todas as vezes que lá
fora. Mas não teve grande importância, porque elas corriam de
loja em loja, vendo montras e comprando coisas. Therese viu
umas sandálias de cunhas que lhe pareceram lindas, mais
persas no aspeeto que as chinesas, e quis comprá-las para
Carol, mas ela disse-lhe que a filha não aprovaria. Rindy era
conservadora, não gostava sequer de a ver andar sem meias, no
Verão, e Carol fazia-lhe a vontade. No mesmo estabelecimento
havia conjuntos chineses de um tecido preto brilhante, com
umas calças simples e um casaco de gola alta, e Carol comprou
um para a filha. Therese comprou, apesar de tudo, as
sandálias para Carol, enquanto ela dava as indicações para o
envio do fato de Rindy. Bas tou- lhe olhar para elas para
saber que eram do tamanho certo, e no fim Carol ficou
satisfeita por lhas ter comprado. Depois passaram uma hora
estranha num teatro chinês, onde pessoas dormiam na plateia
apesar de todo o barulho. E, por fim, foram à parte alta da
cidade, para uma ceia tardia num restaurante onde se tocava
harpa. Foi uma noite maravilhosa, uma noite realmente
magnífica.
130

Capítulo X

Na terça-feira, o quinto dia de trabalho, Therese estava


sentada numa pequena sala nua, sem tecto, à espera de que o
senhor Donohue, o novo director, viesse ver o seu modelo de
cartão. Na manhã anterior, Donohue substituira Gortes como
director, rejeitara o primeiro modelo que ela tinha feito e
rejeitara também Phil McElroy como segundo irmão, na peça.
Phil tinha-se ido embora, amuado. Fora uma sorte ela não ter
sido rejei tada juntamente com o seu modelo, pensou Therese,
e por isso seguira as instruções do senhor Donohue à letra. O
segundo modelo não tinha a secção móvel que ela pusera no
primeiro e que teria permitido converter o cenário da sala de
estar no cenário da varanda, no último acto. O senhor Donohue
parecia ser inexorável contra tudo o que fosse fora do comum,
ou mesmo simples. Em conscquência de se situar toda a peça na
sala, tivera de se modificar uma quantidade de diálogo no
último acto e haviam-se perdido algumas das falas mais
brilhantes. O novo modelo de Therese indicava uma lareira,
largas janelas inteiras dando para uma varanda, duas portas,
um sofá, duas poltronas e uma estante. Pareceria, quando
acabado, uma sala de uma casa-modelo do Sloan, natural até ao
último cinzeiro.
Therese levantou-se, espreguiçou-se e estendeu a mão para o
casaco de bombazina que estava pendurado num prego da porta.
A sala estava fria como um barracão. O senhor Donohue
provavelmente só viria de tarde,
131
ou era mesmo capaz de nem vir nesse dia, se ela o não
lembrasse de novo. Não havia pressa quanto ao cenário. Podia
ser a coisa menos importante de toda a produção, mas ela
ficava de pé até tarde a trabalhar entusiasticamente no
modelo.
Foi de novo até aos bastidores. O elenco estava todo no
palco, de manuscrito na mão. O senhor Donohue continuava a
fazer os intérpretes ler a peça toda, para lhes apanhar o
fluir, como dizia, mas naquele dia parecia conseguir apenas
pô- los a dormir. Todos os intérpretes tinham um ar
indolente, com excepção de Tom Harding, um homem novo, alto e
louro a quem fora dado o principal papel masculino, e esse
parecia excessivamente enérgico. Georgia Hallahan estava
atormentada por dores de cabeça devidas a sinusite e tinha de
parar de hora a hora para pôr pingos no nariz e deitar-se
alguns minutos. Geofrey Andrews, um homem de meia-idade que
fazia de pai da heroína, resmungava constantemente en tre as
suas falas, porque não gostava de Donohue.
- Não, não, não, não - disse o senhor Donohue pela décima vez
naquela manhã, interrompendo tudo e fazendo toda a gente
baixar o manuscrito e voltar-se para ele com uma docilidade
irritada e confusa. - Vamos começar a partir da página vinte
e oito.
Therese observou-o a acenar com os braços para indicar quem
falava, a levantar a mão para os silenciar, acompanhando o
manuscrito de cabeça baixa, como se estivesse a dirigir uma
orquestra. Tom Harding piscou o olho a Therese e passou a mão
pelo nariz. Passados momentos, ela voltou para a sala atrás
da divisória, onde trabalhava e onde se sentiu um pouco menos
inútil. Já quase sabia a peça de cor. Era uma comédia quase
*sheridanesca, com um enredo de equívocos: dois irmãos que
fingiam ser criado e amo a fim de impressionarem uma herdeira
pela qual um deles estava apaixonado. O diálogo era divertido
e não de todo mau, mas o cenário sombrio que Donohue
exigia... Therese esperava que fosse possível fazer alguma
coisa com a cor que usassem.
O senhor Donohue acabou por aparecer pouco de-
132
pois do meio-dia. Olhou para o modelo, levantou-o e voltou a
olhá-lo de baixo e dos lados, sem que se registasse qualquer
mudança na sua expressão nervosa e mortificada.
- Sim, está óptimo. Gosto muito deste. Está a ver quanto isto
é muito melhor que aquelas suas paredes nuas do anterior, não
está?
Therese respirou fundo de alívio.
- Estou - respondeu.
- Um cenário nasce a partir das necessidades dos actores. O
que tem de desenhar não é um cenário de
bailado, menina Belivet.
Ela acenou afirmativamente e olhou também para o modelo,
tentando ver no que ele podia ser melhor, no que era mais
funcional.
- O carpinteiro vem esta tarde, por volta das quatro. Vamos
reunir-nos e falar a este respeito - continuou o senhor
Donohue.
Therese fitava o modelo de cartão. Pelo menos vê-lo-ia ser
utilizado. Pelo menos ela e os carpinteiros transformá-lo-iam
numa coisa real. Foi até à janela e olhou para o céu de
Inverno, cinzento mas luminoso, e para as traseiras de
prédios de cinco andares engalanados com escadas de salvação.
Do lado da frente havia um pequeno espaço vago com uma árvore
raquítica e sem folhas, toda torcida como um sinal de
trânsito que tivesse enlouquecido. Desejou telefonar a Carol
e convidá-la para almoçar. Mas Carol estava a uma distância
de hora e meia de automóvel.
- O seu apelido é Beliver?
Therese voltou-se para a rapariga que falara da porta.
- Belivet. Telefone?
- O aparelho junto das luzes.
- Obrigada -. Therese apressou-se, desejando que fosse Carol,
mas sabendo que o mais provável era ser Richard. Carol ainda
não lhe telefonara para ali.
- Fala a Abby.
- Abby? - Therese sorriu. - Como soube que eu estava aqui?
133
- Foi você que me disse, lembra-se? Gostaria de a
ver. Não estou longe daí. Já almoçou?
Combinaram encontrar-se no Palermo, um restaurante que fica a
um quarteirão ou dois do Black Gat.
Therese assobiou uma canção no caminho para lá, feliz como se
fosse encontrar-se com Carol. O restaurante tinha serradura
no chão, e dois gatinhos pretos brincavam debaixo do corrimão
do balcão. Abby estava sentada a uma mesa, ao fundo.
- Olá - saudou quando Therese se aproximou.
- Está com um ar muito animado. Quase não a reconheci. Quer
uma bebida?
Therese abanou a cabeça.
- Não obrigada.
- O quê, está tão feliz sem uma bebida? - perguntou Abby, e
riu-se com aquela secreta troça que, não se sabia porquê,
nela não era ofensiva.
Therese aceitou o cigarro que ela lhe ofereceu. Abby sabia,
pensou. E talvez estivesse também apaixonada por Carol. Este
pensamento fê-la ficar na defensiva a seu respeito. Gerou uma
rivalidade táctil que lhe provocou uma exaltação curiosa, lhe
deu a noção de possuir uma certa superioridade sobre Abby -
emoções que nunca conhecera antes, com as quais nunca se
atrevera a so: nhar, emoções consequentemente revolucionárias
em si mesmas. Por isso, o encontro de ambas para almoçar, no
restaurante, se revestiu de quase tanta importância como o
encontro com Carol.
- Como está Carol? - perguntou Therese, que não a via há três
dias.
- Está muito bem - respondeu Abby, a observá-la.
O empregado de mesa aproximou-se e Abby perguntou-lhe se
recomendava os mexilhões e os scalopine.
- Excelente, madame! - O homem sorriu-lhe, como se ela
fosse uma cliente especial.
Isso devia-se à maneira de ser de Abby, ao brilho do
seu rosto, como se aquele dia, se cada dia, fosse um feriado
especial para ela. Era um aspecto de que Therese gostava.
Olhou com admiração para o seu conjunto de
134
fazenda de fios vermelhos e azuis entrelaçados, para os eus
botões de punho que eram uns gês ornamentados, como botões de
filigrana de prata. Abby interrogou-a acerca do seu trabalho
no Black Gat. Therese achava-o enfadonho, mas Abby parecia
impressionada. Abby estava impressionada, pensou Therese,
porque não fazia nada.
- Conheço umas pessoas ligadas ao lado da produção do teatro.
Gostaria de dizer uma palavrinha a seu favor, quando fosse
preciso.
- Obrigada -. Therese brincava com a tampa da taça do queijo
ralado, que estava à sua frente. - Conhece alguém chamado
Andronich? Creio que é de Filadélfia.
- Não.
O senhor Donohue dissera-lhe que fosse procurar Andronich na
próxima semana, em Nova Iorque. Ele estava a produzir um
espectáculo que estrearia na Primavera em Filadélfia e depois
seguiria para a Broadway.
- Prove os mexilhões - Abby estava a comer os seus com
apetite. - Carol também gosta deles assim.
- Conhece-a há muito tempo?
- Hm-hmm - Abby acenou afirmativamente, olhando-a com os seus
olhos luminosos, que não revelavam nada.
- E, claro, também conhece o marido dela.
Abby acenou de novo, em silêncio.
Therese sorriu um pouco. Abby estava ali para a interrogar,
mas não para revelar nada a respeito de si própria ou de
Carol.
- Que diz a um pouco de vinho? Gosta de chianti?! [Vinho
italiano da Toscana. (N. do E.)]
- Abby chamou um empregado com um estalar de dedos. - Traga-
nos uma garrafa de chianti. Boa. Fortalece o sangue -
acrescentou, olhando para Therese.
Depois chegou o prato principal e dois empregados atarefaram-
se a volta da mesa, abrindo a garrafa de vinho, servindo mais
água e trazendo manteiga fresca. O rádio, ao canto, tocava um
tango - era um aparelho
135
pequeno, com a frente partida, mas a música dir-se-ia vir de
uma orquestra de cordas que tocasse atrás dele, a pedido de
Abby. Não admira que a Carol goste dela, pensou Therese. Ela
complementava a solenidade de Carol, conseguia lembrar Carol
de se rir.
- Viveu sempre sozinha? - perguntou Abby.
- Sim. Desde que saí da escola -. Therese bebeu um gole de
vinho. - Também vive sozinha? Ou vive com a sua família?
- Com a minha família. Mas tenho a minha metade própria da
casa.
- E trabalha? - arriscou Therese.
- Tenho tido empregos. Dois ou três. A Carol não lhe disse
que tivemos uma loja de móveis? Uma loja, em tempos, logo à
saída de Elizabeth, na auto-estrada. Comprávamos antiguidades
ou simples coisas em segunda mão e arranjávamo-las. Nunca
trabalhei tanto na minha vida -. Abby sorriu-lhe alegremente,
como se cada uma das palavras pudesse não ser verdadeira. - E
há o meu outro emprego. Sou entomologista. Não serei muito
boa, mas sei o suficiente para tirar os insectos de grades de
limões italianos e coisas desse género. Os lírios das Baamas
estão cheios de insectos.
- Já tinha ouvido dizer - disse Therese, a sorrir.
- Acho que não me acredita.
- Acredito, sim. Ainda trabalha nisso?
- Estou na reserva. Mas em alturas de emergência, trabalho.
Como na Páscoa.
Therese observou o garfo de Abby a cortar os scalopine em
bocadinhos pequenos, antes de espetar algum.
- Viaja muito com a Carol?
- Muito? Não, porquê?
- Acho que seria bom para ela, por a Carol ser tão séria -.
Therese desejaria conduzir a conversa para o âmago das
coisas, mas não sabia o que era o âmago das coisas. O vinho
corria-lhe lento e tépido nas veias, até às pontas dos dedos.
- Nem sempre - corrigiu Abby, com o riso mesmo debaixo da
superficie da sua voz, como na primeira pa lavra que Therese
a ouvira dizer.
136
O vinho na sua cabeça prometia música, ou poesia, ou verdade,
mas ela estava encalhada na margem de tudo isso. Não
conseguia pensar numa única pergunta que fosse apropriado
fazer, porque todas as perguntas que lhe vinham à ideia eram
tão enormes, desmesuradas.
- Como conheceu a Carol? - perguntou Abby.
- Ela não lhe disse?
-Disse apenas que a conheceu no Frankenberg's, quando a
Therese lá trabalhava.
-Bem, foi assim - confirmou Therese, sentindo
crescer em si um ressentimento contra Abby,
incontrolavelmente.
- Começaram a conversar, sem mais nem menos? - Abby sorria,
enquanto acendia um cigarro.
- Eu atendi-a - disse Therese, e calou-se.
Sabia que Abby esperava uma descrição precisa desse encontro,
mas ela não a faria, nem a ela nem a ninguém. Era uma coisa
sua, pertencia-lhe. Com certeza
Carol não dissera a Abby, pensou, não lhe contara a história
idiota do cartão de Natal. Não tivera, para Carol,
importância justificável para falar disso.
- Importa-se de me dizer quem iniciou a conversa?
De súbito, Therese riu-se. Tirou um cigarro e acendeu-o,
sem deixar de sorrir. Não, Carol não lhe contara
do cartão de Natal, e a pergunta de Abby parecia-lhe
tremendamente divertida.
- Fui eu.
- Gosta muito dela, não gosta?
Therese explorou a pergunta em busca de hostilidade.
Descobriu que não era hostil, apenas ciumenta.
- Gosto.
- Porquê?
- Porque gosto dela? Porque gosta a Abby?
Os olhos de Abby ainda riam.
- Eu conheço a Carol desde que ela tinha quatro anos.
Therese ficou calada.
- É muito jovem, não é? Já tem vinte e um anos?
- Não. Ainda não.
137
- Sabe que a Carol está cheia de preocupações, neste momento?
- Sei.
- E sente-se só, agora - acrescentou Abby, de olhos
atentos.
- Quer dizer que é por isso que se encontra comigo?
- perguntou Therese, calmamente. - Pretende dizer-me que
não devo vê-la?
Os olhos fixos de Abby acabaram por pestanejar
duas vezes.
- Não, de modo algum. Mas não quero que a Therese seja
magoada. E também não quero que magoe a Carol.
- Eu jamais magoaria a Carol. Acha que seria capaz
disso?
Abby continuava a observá-la atentamente, nunca
desviara os olhos dela.
- Não, não acho que fosse capaz - respondeu, como se
tivesse acabado de chegar a essa conclusão. E agora sorria
como se estivesse particularmente satisfeita a respeito de
qualquer coisa.
Mas Therese não gostou do sorriso nem gostara da pergunta,
e, percebendo que o seu rosto revelava os seus sentimentos,
olhou para baixo, para a mesa. À sua frente, em cima de um
prato, estava um copo de zabagliont quente.
- Gostava de ir a um cocktail, esta tarde, Therese? É na
parte alta da cidade, por volta das seis horas. Não
sei se estarão lá cenaristas de teatro, mas uma das
raparigas que o oferece é actriz.
Therese apagou o cigarro.
- A Carol estará lá?
- Não, não estará. Mas são tudo pessoas de convívio
fácil. E é uma pequena festa.
- Obrigada. Acho que não irei. Tanto mais que hoje
terei de trabalhar até tarde.
- Ah. Ia dar-lhe o endereço, mas se não vai...
- Não vou.
Abby quis dar uma volta a pé pelo quarteirão quan-
138
do saíram do restaurante. Therese concordou, embora já
estivesse farta dela. Com a sua autoconfiança, com as suas
perguntas sem cerimónia e descuidadas, Abby fade ia-a sentir
que possuía uma vantagem qualquer sobre ela. Não a deixara
pagar a conta.
- A Carol tem-na em muito alta conta, sabe? Diz que tem muito
talento.
- Sério? - perguntou Therese, sem acreditar totalar mente.
- Nunca mo disse -. Apetecia-Lhe andar mais depressa, mas
Abby não a acompanhava.
- Deve saber que a tem em alta conta, se deseja que vá viajar
com ela.
Therese olhou e viu Abby sorrir, francamente.
- Ela também não me disse nada a esse respeito respondeu com
serenidade, embora o seu coração tivesse começado a bater com
força.
- Mas eu tenho a certeza de que dirá. Aceitará ir com ela,
não é verdade? - Porque saberia Abby antes dela?,
perguntou-se Therese, e sentiu um rubor de cólera a alastrar-
lhe o rosto. Aque vinha tudo aquilo? Odiá-la-ia Abby? Se
odiava, fa porque não se mostrava coerente a esse
respeito? No insis tante seguinte, porém, a exeitação da
cólera dissipou-se e deixou-a fraca, deixou-a vulnerável e
indefesa.
Se Abby a empurrasse agora contra a parede, pensou, e
dissesse: "Desembuche! Que pretende da Carol? Que quantidade
dela quer tirar-me", ela teria tartamuo deado tudo. Teria
dito: "Quero estar com ela. Adoro esttar com ela, e que tem
você com isso?"
- Isso não é assunto para ser falado pela Carol?
Porque me pergunta estas coisas? - Therese fez um esforço
para parecer indiferente. Em vão.
Abby parou de andar e disse, voltando-se para ela:
-Desculpe. Penso que compreendo melhor agora.
- Compreende o quê?
- Apenas... que venceu.
- Venci o quê?
- O quê? - repetiu Abby, como um eco, de cabeça levantada a
olhar para a esquina de um edifício, para o
139
céu, e Therese sentiu-se, de súbito, furiosamente impaciente.
Desejou que Abby se fosse embora para ela poder telefonar
a Carol. Nada importava, a não ser o som da voz de Carol.
Nada importava a não ser Carol, e porque permitira ela
esquecer isso por momentos?
- Não admira que a Carol a tenha em tão alta conta - disse
Abby, mas, se se tratou de uma observação amável, Therese não
a aceitou como tal. - Até à vista, Therese. Voltarei a vê-la,
sem dúvida -. Abby estendeu a mão, que Therese aceitou.
- Até à vista - respondeu. Viu Abby caminhar na direcção de
Washington Square, o passo mais rápido, agora, a cabeça
encaracolada bem erguida.
Therese entrou no drugstore da esquina seguinte e ligou para
Carol. Primeiro atendeu a empregada e depois ela.
- Que aconteceu, Therese? Parece em baixo.
- Nada. É um trabalho enfadonho.
- Tem algum compromisso esta noite? Gostaria de vir até cá?
Therese saiu do drugstore a sorrir. Carol viria buscá-la às
cinco e meia. Insistira em vir buscá-la, porque a viagem de
comboio era muito desagradável.
No outro lado da rua, a caminhar na direcção oposta, sem
casaco e com uma garrafa de leite desembrulhada na mão, viu
Dannie McElroy.
- Dannie! - chamou.
Dannie voltou-se e foi ao seu encontro.
- Quer vir daí uns minutos comigo? - gritou ele.
Therese começou a dizer que não, mas quando ele chegou junto
dela deu-lhe o braço e acedeu:
- Só um minutinho. Já tive uma hora de almoço prolongada.
Dannie sorriu-lhe.
- Que horas são? Estive a estudar até ficar cego.
- Passa das duas. - Sentiu o braço de Dannie tenso, para
resistir ao frio. Tinha pele de galinha sob os pêlos escuros
do antebraço. - É uma loucura sair sem casaco.
140
- Desanuvia-me a cabeça -. Segurou, para ela pas ar, a
cancela de ferro de acesso à sua casa. - O Phil saiu não sei
para onde.
A sala cheirava a fumo de cachimbo, um cheiro parecido com o
chocolate quente. O apartamento ficava numa meia cave e era
geralmente escuro, e o candeeiro projectava um charco de luz
na secretária sempre avancada. Therese olhou para os livros
abertos em cima dela, para as páginas e páginas cobertas de
símbolos que não sabia decifrar, mas para os quais gostava de
olhar. Tudo quanto os símbolos representavam era verdadeiro e
provado. Os símbolos eram mais fortes e claros que as
palavras. Sentia a mente de Dannie suspensa, passando de um
facto para outro, como se ele agarrasse as correntes fortes,
uma após a outra, através do espaço. Observou-o a preparar
uma sanduíche, parando junto da mesa da cozinha. Os seus
ombros pareciam muito largos e almofadados de músculos,
debaixo da camisa branca, movimentando-se um pouco com os
gestos a colocar o salame e as fatias de queijo na grande
fatia de pão de centeio.
- Gostaria que passasse por cá com mais frequência, Therese.
A quarta- feira é o único dia em que não estou aqui ao meio-
dia. Podíamos almoçar sem incomodar o Phil, mesmo que ele
estivesse a dormir.
- Passarei - prometeu Therese. Sentou-se na cadeira da
secretária, que estava meio virada. Fora ali uma vez almoçar
e outra depois do trabalho. Gostava de visitar Dannie. Não
era preciso inventar conversa com ele.
Ao canto da sala, o sofá-cama de Phil estava por fazer, numa
confusão de lençóis e cobertores. Das outras duas vezes que
ali fora, ou a cama estava por fazer, ou Phil ainda se
encontrava deitado. A estante comprida, formando ângulo recto
com o sofá, transformava o canto da sala de Phil numa
unidade, mas uma unidade que estava sempre desarrumada, numa
desarrumação frustrada e nervosa que não se assemelhava nada
à desarrumação resultante do trabalho da secretária de
Dannie.
141
A lata de cerveja sibilou quando ele a abriu. Dannie
encostou-se à parede, com a cerveja e a sanduíche, sorrindo,
encantado por ela ali estar.
- Lembra-se do que disse a respeito de a física não se
aplicar às pessoas?
- Hmm. Vagamente.
- Bem, não estou muito certo de que tenha razão - comentou
ele, e deu uma dentada na sanduíche. - Veja as amizades, por
exemplo. Lembro-me de uma quanti dade de casos em que as duas
pessoas não têm nada em comum. Penso que existe uma razão
definida para cada amizade, assim como existe uma razão para
o facto de certos átomos se unirem e outros não...
determinados factores ausentes de um, ou determinados
factores presentes no outro... Que lhe parece? Eu acho que as
amizades são o resultado de certas necessidades que podem
estar completamente ocultas de ambas as pessoas, algumas
vezes ocultas para sempre.
- Talvez. Eu própria tenho o conhecimento de alguns casos,
também -. Richard e ela, para começar. Richard lidava com as
pessoas, abria o seu caminho no mundo de uma maneira que para
ela era impossível. Sentira-se sempre atraída por pessoas com
o tipo de confiança própria de Richard. - E que há de fraco
em si, Dannie?
- Em mim? - perguntou ele, sorridente. - Quer ser minha
amiga?
- Quero. Mas você deve ser praticamente a pessoa mais forte
que conheço.
- Sério? Devo enumerar as minhas deficiências?
Foi a vez de ela sorrir, a olhá-lo. Era um jovem de vinte e
cinco anos que soubera o que queria desde os ca torze.
Concentrara toda a sua energia num caminhoexactamente o
oposto do que Richard fizera.
- Tenho uma necessidade secreta e muito entranhada de uma
cozinheira - respondeu Dannie -, um pro fessor de dança e
alguém que me lembre de fazer pequenas coisas do género de
levar a roupa para a lavandaria e cortar o cabelo.
142
- Eu também me esqueço de levar a roupa para a lavandaria.
- Oh! - exclamou ele tristemente. - Então nada feito, e eu
que tinha alguma esperança. Uma pequena sensação de destino.
Porque, compreende, o que eu quero dizer no tocante às
amizades aplica-se daí para baixo, até ao olhar acidental a
alguém, na rua: existe sempre uma razão definida, algures.
Penso que até os poetas concordariam comigo.
- Até os poetas? - Therese sorriu. Pensou em Carol e depois
em Abby e na sua conversa durante o almoço, que tinha sido
muito mais e muito menos que um olhar casual, e na sequência
de emoções que desencadeara nela. Isso deprimiu-a. - Mas é
necessário fazer certas concessões, ter em conta as
perversidades das pessoas, coisas que não têm muita lógica.
- Perversidades? Isso é apenas um subterfúgio. Uma palavra
usada pelos poetas.
- Eu pensava que era usada pelos psicólogos.
-Referia-me a fazer concessões, dar desconto... É uma
expressão sem significado. A vida é uma ciência à cata de
conformidade com os seus próprios termos; a questão consiste
apenas em encontrá-los e defini-los. Oque é que não tem
lógica nenhuma para si?
- Nada. Aliás, eu estava a pensar numa coisa que não tem
importância -. Sentiu-se subitamente irritada, de novo, como
se sentira no passeio depois do almoço.
- Em quê? - insistiu ele, de testa franzida.
- No almoço que acabei de ter.
- Com quem?
- Não tem importância. Se tivesse, eu falaria no assunto. É
apenas um desperdício, como perder qualquer coisa, pensei.
Mas talvez qualquer coisa que, de resto, não existia -.
Quisera gostar de Abby porque Carol gostava.
-A não ser no seu pensamento? Isso pode ser do mesmo modo uma
perda.
- Sim... mas há algumas pessoas, ou algumas coisas que as
pessoas fazem, das quais no fim não podemos sal-
143
var nada, porque nada liga connosco -. Era, no entanto, de
outra coisa que ela queria falar, não daquilo, de modo algum.
Não de Abby ou Carol, mas antes de uma coisa que ligava
perfeitamente e que era perfeitamente lógica. Amava Carol.
Apoiou a testa na mão.
Dannie olhou-a um momento e depois afastou-se da parede.
Voltou-se para o fogão e tirou um fósforo da algibeira da
camisa, e Therese teve a sensação de que a conversa estava
suspensa, ficaria sempre suspensa e nunca seria concluída,
fosse o que fosse que dissessem a seguir. Achava no entanto
que se dissesse a Dannie todas as palavras que ela e Abby
tinham trocado, ele poderia pôr de lado todos os seus
subterfúgios com uma frase, como se espargisse o ar com um
produto químico que secaria a neblina instantaneamente. Ou
existiria sempre uma coisa que a lógica não conseguia
atingir? Alguma coisa ilógica, por detrás do ciúme, da
suspeita e da hostilidade existentes na conversa de Abby, e
que era a própria Abby?
- Nem tudo é tão simples como a possibilidade de combinações
- acrescentou Therese.
- Algumas coisas não reagem. Mas tudo está vivo -
Dannie voltou-se para ela com um sorriso largo, como se lhe
tivesse entrado na cabeça um encadeamento de pensamentos
completamente diferente. Segurava o fósforo, que ainda
fumegava. - Como este fósforo. E eu não estou a falar de
fisica, da indestrutibilidade do fumo. Na realidade, hoje
sinto-me muito poético.
- A respeito do fósforo?
- Tenho a sensação de que ele está a crescer, como uma
planta, e não a desaparecer. Tenho a sensação de que tudo
quanto há no mundo deve algumas vezes ter a textura de uma
planta, para um poeta. Até esta mesa, como a minha própria
carne -. Tocou na aresta da mesa com a palma da mão. - É como
o que senti uma vez, ao subir a cavalo uma encosta. Foi na
Pensilvânia. Eu não sabia montar muito bem nesse tempo e
lembro-me de o cavalo virar a cabeça e, vendo o monte,
decidir por si próprio subir por ali acima. As suas patas
traseiras
144
cravaram-se no chão antes de arrancarmos e, de súbito, íamos
a toda a velocidade e eu não tinha medo algum. Sentia-me
completamente em harmonia com o cavalo e a terra, como se
fôssemos o todo de uma árvore a que o vento agitava
simplesmente os ramos. Lembro-me de ter a certeza de que nada
me aconteceria, naquele momento, mas que em qualquer outra
ocasião, sim, porventura. E isso fez com que me sentisse
feliz. Pensei em todas as pessoas que têm medo e escondem
coisas, a si mesmas, e que quando toda a gente do mundo
conseguisse sentir e perceber o que eu sentia ao subir aquele
monte, então haveria uma espécie de economia certa do viver e
do usar e gastar. Compreende o que eu quero dizer? - Dannie
cerrara o punho, mas os seus olhos brilhavam como se ele
ainda se risse de si mesmo. - Alguma vez usou muito uma
camisola de que gostasse de maneira especial, e acabou por a
deitar fora?
Therese pensou nas luvas de lã verdes da Irmã Alicia, que não
usara nem deitara fora.
- Sim.
-Bem, é só a isso que me refiro. E aos carneiros que não
deram conta da quantidade de lã que estavam a perder quando
alguém os tosquiou para fazer a camisola, porque lhes
voltaria a crescer mais lã. É muito sim ples. - Voltou-se
para a cafeteira que pusera a aquecer e que já fervia.
- Sim -. Ela sabia. E era como Richard e o papagaio de papel,
porque ele podia fazer outro. Pensou em Abby, com uma súbita
sensação de vacuidade, como se o almoço tivesse sido
erradicado. Durante um instante, foi como se a sua mente
tivesse transbordado, derramado, e estivesse a nadar, vazia,
no espaço. Levantou-se.
Dannie aproximou-se dela, pôs-lhe as mãos nos ombros e,
embora Therese percebesse que era apenas um gesto, um gesto
em vez de uma palavra, o encanto quebrou-se. Sentiu-se
desconfortável com o seu contacto, e o desconforto era um
ponto de concreticidade.
- Tenho de voltar. Já estou muito atrasada.
As mãos dele desceram, imobilizaram-lhe os cotovelos,
145
com força, contra os lados do corpo, e ele beijou-a
inesperadamente, comprimiu, com força, os lábios contra os
dela, um momento, e Therese sentiu-lhe o hálito quente no
lábio superior, antes de ele a soltar.
- Está - disse Dannie, olhando-a.
- Porque fez... - calou-se, pois houvera no beijo um misto
tão grande de ternura e rudeza que ela não sabia como
interpretá-lo.
- Porque sim, Terry - afastou-se dela, a sorrir.
- Importou-se?
- Não.
- O Richard importar-se-ia?
- Suponho que sim. - Therese abotoou o casaco. - Tenho de ir
- repetiu, encaminhando-se para a porta.
Dannie abriu-lha, com o seu sorriso natural, como se não
tivesse acontecido nada.
- Volta amanhã? Venha almoçar.
- Amanhã é sábado. Não trabalho.
- E provavelmente não poderíamos almoçar. - Therese abanou a
cabeça.
- Acho que não.
- Está bem, venha na segunda-feira.
- Combinado. - Therese sorriu também, estendeu
automaticamente a mão e Dannie apertou-lha uma vez,
cortesmente.
Therese correu os dois quarteirões até ao Black Gat. Um pouco
como o cavalo, pensou. Mas não o suficiente, não, não o
suficiente para ser perfeito, e o que Dannie dissera era
perfeito.
146

CAPÍTULO XI
- Os passatempos das pessoas ociosas - disse Carol,
estendendo as pernas à sua frente na cadeira suspensa. - É
altura de a Abby arranjar outro emprego.
Therese não fez comentários. Não contara a Carol toda a
conversa do almoço, mas não queria falar mais de Abby.
- Não se quer sentar numa cadeira mais confortável?
-Não -. Therese estava sentada num tamborete de couro, perto
da cadeira de Carol. Tinham acabado de jantar há momentos e
vindo para aquele aposento que ela não vira antes, uma
marquise envidraçada, na frente da sala verde simples.
- Que mais lhe disse a Abby que a incomoda? perguntou Carol,
ainda a olhar a direito para a sua frente, para as suas
pernas compridas ocultas por calças azul-marinho.
Parecia fatigada. Estava preocupada com outras coisas, pensou
Therese, coisas mais importantes que aquilo.
- Nada. Incomoda-a a si, Carol?
- Se me incomoda?
- Está diferente comigo, esta noite.
Carol lançou-lhe um olhar rápido.
- Imaginação sua - disse, e a vibração agradável da sua voz
dissipou-se de novo no silêncio.
A página que escrevera a noite passada, pensou Therese, não
tinha nada a ver com aquela Carol, não Lhe era
147
dirigida. "Sinto que estou apaixonada por si, escrevera, e
devia ser Primavera. Quero o sol a latejar na minha cabeça
como acordes de música. Penso num sol como Beethoven, num
vento como Debussy, em gorjeios de pássaros como Strauinsky.
Mas o ritmo é todo meu."
- Não creio que a Abby goste de mim - observou.
- Não creio que ela queira que eu a visite.
- Isso não é verdade. Está outra vez a imaginar coisas.
- Não estou a dizer que ela o tenha dito -. Therese tentou
parecer tão calma quanto Carol. - Foi muito simpática.
Convidou-me para um cocktail.
- De quem?
- Não sei. Ela disse que era na parte alta da cidade. Disse
que a Carol não estaria lá, e por isso não senti nenhum
desejo especial de ir.
- Na parte alta da cidade onde?
- Não disse. Apenas que uma das raparigas que o oferecia era
actriz.
Carol pousou o isqueiro na mesa de vidro, com um estalido, e
Therese apercebeu-se do seu desagrado.
- Ah, sim?... - murmurou Carol, meio para consigo mesma. -
Sente-se aqui.
Therese levantou-se e foi sentar-se mesmo aos pés da cadeira
dela.
- Não deve pensar que a Abby sente desse modo a seu respeito.
Eu conheço-a o suficiente para saber que seria incapaz disso.
- Está bem.
- Mas às vezes ela é incrivelmente desajeitada na maneira
como fala.
Therese queria esquecer tudo aquilo. Carol continuava tão
distante, mesmo quando falava, mesmo quando a olhava! Uma
faixa de luz vinda da sala verde pairava-lhe no alto da
cabeça, mas Therese não lhe podia ver agora o rosto.
Carol tocou-lhe com o bico do pé.
- Upa!
Mas Therese foi lenta nos movimentos e ela passou-lhe
148
os pés por cima da cabeça e levantou-se. Depois Therese ouviu
os passos da empregada na sala ao lado, e a mulher roliça com
ar de irlandesa e uniforme cinzento e branco entrou com o
tabuleiro do café, fazendo tremer o chão da marquise com as
suas pequenas passadas rápidas, que pareciam tão ansiosas por
agradar.
-As natas estão aqui, minha senhora - disse, apontando para
uma leiteira que não condizia com as xícaras. Florence olhou
para Therese com um sorriso amigável e olhos redondos e
inexpressivos. Tinha cerca de cinquenta anos e usava um
carrapito na nuca, debaixo da touca branca engomada.
Therese não conseguia situá-la, determinar a sua fidelidade.
Ouvira-a referir-se duas vezes ao senhor Aird como se lhe
fosse muito dedicada, e não era capaz de distinguir se isso
era uma atitude profissional ou genuína.
- A senhora precisa de mais alguma coisa? - perguntou
Florence. - Apago as luzes?
- Não, gosto das luzes acesas. Não é preciso mais
nada, obrigada. A senhora Jordan telefonou?
-Ainda não, minha senhora.
-Diga-lhe que eu saí, quando ela telefonar, sim?
-Sim, senhora -. Florence hesitou. - Estive a pensar se a
senhora já teria acabado aquele livro novo.
-Aquele acerca dos Alpes.
- Pode ir ao meu quarto buscá-lo, se quiser, Florence. Acho
que não me apetece acabar de lê-lo.
-Obrigada, minha senhora. Boa noite, minha sesnhora. Boa
noite, menina.
- Boa noite - respondeu Carol.
-Já decidiu quando parte? - perguntou Therese, enquanto Carol
servia o café.
- Talvez dentro de uma semana - respondeu Carol, estendendo-
lhe a xícara, com natas. - Porquê?
- Só porque vou sentir a sua falta. Evidentemente.
Carol ficou imóvel um momento, e depois estendeu a mão para
um cigarro, o último, e amarrotou o maço.
- Na verdade, estive a pensar que talvez gostasse de
149
ir comigo. Que lhe parece, durante umas três semanas, mais
ou menos?
Ali estava! Tão casual como se sugerisse que dessem um
passeio a pé as duas, pensou Therese.
- Falou nisso à Abby, não falou?
- Falei. Porquê?
Porquê?
Therese não saberia exprimir por palavras por que motivo a
magoava tanto que Carol o tivesse feito.
- Acho simplesmente estranho que lho tenha dito a ela antes
de me dizer alguma coisa a mim.
- Eu não lhe disse. A única coisa que Lhe disse foi que
poderia pedir-lho -. Carol aproximou-se e pôs as mãos nos
ombros de Therese. - Escute, não existe razão alguma para ter
esses sentimentos a respeito da Abby... a não ser que ela Lhe
tenha dito muito mais, ao almoço, do que a Therese me contou.
- Não. Não, mas eram os pressentimentos, a im pressão, era
ainda pior. - Sentiu as mãos de Carol deixarem-lhe os ombros.
- A Abby é uma amiga de muito longa data. Eu discuto tudo com
ela.
- Sim.
- Bem, acha que gostaria de ir?
Carol voltou-se, e de súbito deixou tudo de ter importância,
por causa do modo como ela Lhe perguntara, como se na
realidade não se importasse que ela fosse ou não.
- Obrigada... acho que não me será possível, neste momento.
- Não precisará de muito dinheiro. Iremos de carro: Mas se
lhe oferecerem um trabalho imediatamente, enfim, isso será
diferente.
Como se ela não recusasse um trabalho, mesmo um cenário de
bailado, para ir com Carol, para ir com ela a terras que
nunca vira antes, por rios e montanhas, sem saber onde
estariam quando a noite chegasse. Carol sabia-o, e sabia que
ela teria de recusar se o convite fosse feito daquela
maneira. Therese teve de súbito a certeza de que ela a
escarnecia e ressentiu-se, com o ressentimento
150
amargo da traição. Ressentimento que se transformou na
decisão de nunca mais voltar a vê-la. Olhou-a. Carol
aguardava a sua resposta, com aquele desafio semimascarado
apenas por um ar de indiferença, uma expressão que, Therese
sabia-o, não se modificaria nada se ela desse uma resposta
negativa. Levantou-se e foi à caixa do canto da mesa buscar
um cigarro. Na caixa não havia nada, a não ser umas agulhas
de gira-discos e uma fotografia.
- Que é? - perguntou Carol, observando-a. - Therese sentiu
que ela estivera a ler-lhe todos os pensamentos.
- É uma fotografia da Rindy.
- Da Rindy? Deixe ver.
Therese observou o rosto de Carol enquanto ela olhava para a
fotografia da menina de cabelo louro-estopa e cara séria, com
o penso branco no joelho. Na fotografia, ele estava de pé num
barco a remos e Rindy passava de um cais para os braços dele.
- Não é uma fotografia muito boa - disse Carol, mas o seu
rosto modificara-se, tornara-se mais suave.
-Deve ter uns três anos. Era um cigarro que queria? Há alguns
aqui. A Rindy vai ficar com o pai durante os próximos três
meses.
Therese deduzira isso da conversa na cozinha, naquela manhã,
com Abby.
- Isso também é em Nova Jérsia?
- É. A família do Harge vive em Nova Jérsia. Têm uma casa
grande -. Carol fez uma pausa. - O divórcio estará concluído
dentro de um mês, calculo, e depois de Março eu ficarei com a
Rindy o resto do ano.
-Ah! Mas vê-a antes de Março, não vê?
- Algumas vezes. Provavelmente não muitas.
Therese olhou para a mão de Carol que segurava a fotografia a
seu lado na cadeira, descuidadamente.
- Ela não sentirá a sua falta?
- Sentirá. Mas também gosta muito do pai.
- Mais que de si?
- Não. Não, na verdade. Mas ele comprou-lhe uma
151
cabra, para brincar com ela. Leva-a para a escola quando vai
para o trabalho e vai buscá-la às quatro horas. Descura os
seus negócios por causa dela, e que mais se pode exigir a um
homem?
- Não a viu no Natal, pois não?
- Não. Por causa de uma coisa que aconteceu no escritório do
advogado. Foi na tarde em que o advogado do Harge queria
falar com os dois, e o Harge tinha levado também a Rindy. Ela
disse que queria ir passar o natal a casa do Harge. Rindy não
sabia que, este ano, não estaria lá. Eles têm uma grande
árvore de Natal no relvado e decoram-na sempre, por isso ela
estava decidida a ir. Fosse como fosse, o facto causou uma
forte impressão ao advogado, compreende, a criança pedindo
para ir passar o Natal a casa do pai. E, naturalmente, nessa
altura não quis dizer à Rindy que não iria, pois ficaria
decepcionada. De resto, não o poderia ter dito na presença do
advogado. Bastam-me as maquinações de Harge.
Therese estava de pé, a amarrotar o cigarro apagado entre os
dedos. A voz de Carol era calma, como seria se estivesse a
falar com Abby, pensou Therese. Carol nunca lhe tinha dito
tantas coisas.
- Mas o advogado compreendeu?
Carol encolheu os ombros.
- É o advogado do Harge, não o meu. Por isso, agora concordei
com o esquema dos três meses, porque não quero que ela seja
atirada de um para o outro. Se eu tiver de a ter comigo nove
meses e o Harge três... enfim, é melhor começar agora.
- Nem sequer a visitará?
Carol demorou tanto para responder que Therese pensou que não
o faria.
- Não muito frequentemente. A família não é muito cordial.
Falo todos os dias com a minha filha pelo telefone. Ela
telefona-me algumas vezes, também.
- Porque é que a família não é cordial?
- Nunca gostaram de mim. Queixam-se desde que Harge me
conheceu, numa festa de debutantes. Têm
152
muito jeito para criticar. Às vezes pergunto-me quem
conseguiria passar pelo seu crivo.
- Que lhe criticavam eles?
- O facto de ter uma loja de móveis, por exemplo. Mas isso
não durou um ano. Depois por não jogar bridge, ou não gostar
de jogar. Aproveitam as coisas mais singulares, mais
superficiais.
- Parecem horrorosos.
-Não são. Pretendem apenas que nos moldemos. Eu sei do que
eles gostariam: gostariam de um vazio que pudessem preencher.
Uma pessoa já preenchida perturba-os terrivelmente. Vamos
ouvir um pouco de música? Nunca gosta de ouvir rádio?
- Às vezes.
Carol encostou-se ao parapeito da janela.
- E agora a Rindy tem televisão todos os dias. Hopalong
Gassidy. Como ela adoraria ir ao Oeste! Aquela boneca foi a
última que lhe comprei, Therese. E só a comprei porque ela
disse que queria uma, pois já não está em idade de bonecas.
Atrás de Carol, um holofote do aeroporto descreveu um arco
pálido na noite e desapareceu. A voz de Carol pareceu ficar a
pairar na escuridão. No seu tom mais rico e mais feliz,
Therese detectava o recôndito, o mais fundo do seu ser, onde
amava Rindy mais profundamente, talvez, do que jamais amaria
qualquer outra pessoa.
- O Harge não lhe torna fácil vê-la, pois não?
- Sabe que não.
- Não compreendo como ele pôde estar apaixonado por si, e
amá-la tanto.
-Não se trata de amor. uma compulsão. Penso que ele me quer
controlar. Suponho que se eu fosse muito mais rebelde, mas
nunca tivesse uma opinião acerca de nada que não fosse a
opinião dele. Consegue acompanhar tudo isto?
- Consigo.
- Nunca fiz nada que o embaraçasse socialmente, e isso é tudo
quanto lhe interessa, na realidade. Há no clube uma certa
mulher com a qual desejo que ele tivesse
153
casado. A vida dela é totalmente preenchida pelos pequenos
jantares requintados que dá e por ser transportada para fora
dos melhores bares com os pés para a frente... Tornou o
negócio de publicidade do marido num grande êxito, por isso
ele sorri dos seus pequenos deslizes. O Harge não sorriria,
mas teria alguma razão concreta para se queixar. Creio que me
escolheu como esco lheria uma tapeçaria para a sua sala, e
cometeu um erro grave. Duvido que seja capaz de amar,
realmente, alguém. O que tem é uma espécie de cobiça, que não
sa diferencia muito da sua ambição. Está a tornar-se uma
doença, não está, a incapacidade de amar? - Olhou pa ra
Therese. - Talvez seja dos tempos. Se uma pessoa quisesse,
poderia reunir argumentos para provar a existência de um
suicídio rácico. O homem a tentar acertar o passo com as suas
próprias máquinas destruidoras!
Therese não disse nada. Aquilo recordava-lhe conversas com
Richard, em que ele misturava guerra, grandes negócios e caça
às bruxas congressional, e finalmente certas pessoas que ele
conhecia, num grande inimigo cujo único rótulo colectivo era
ódio. Agora Carol fazia o mesmo. Isso abalou-a no mais fundo
de si pró pria, onde não existiam palavras, palavras simples
como a morte, ou morrer, ou matar. Essas palavras eram d
algum modo futuro, e isto era presente. Uma ansiedad muda, um
desejo de saber, de saber qualquer coisa com certeza,
apertou-lhe a garganta, de modo que durante um momento quase
não pôde respirar. "Pensa, pensa, ameaçava a pergunta dentro
de si. Pensa que nós duas morremos violentamente, qualquer
dia, seremos subitamente extintas?" Mas mesmo essa pergunta
não era bastante definida. Talvez fosse, no fim de contas,
uma declaração: "não quero morrer ainda, sem a conhecer.
Sente o mesmo, Carol?" Teria sido capaz de proferir a últina
pergunta, mas não conseguiria ter dito tudo quanto a
antecedera.
- A Therese pertence à geração jovem. E que tem para dizer? -
perguntou Carol, sentando-se na cadeira.
- Suponho que a primeira coisa é não ter medo.
154
Therese voltou-se e viu-a sorrir. - Creio que está a sorrir
porque pensa que eu tenho medo.
- quase tão fraca como este fósforo -. Carol levantou o
fósforo aceso um momento, depois de acender o cigarro.
- Mas, com as condições adequadas, seria capaz de fazer arder
uma casa inteira, não seria?
- Ou uma cidade.
- Mas tem medo até de fazer uma pequena viagem. Tem medo
porque pensa que não dispõe de dinheiro suficiente.
- Não é isso.
- Tem alguns valores muito estranhos, Therese. Pedi-lhe que
fosse comigo porque me daria prazer levá-la. E parece-me que
também seria bom para si e para o seu trabalho. Mas você
tinha de estragar tudo com um orgulho pateta a respeito de
dinheiro. Como aquela mala de mão que me ofereceu.
Absolutamente despropositada. Porque não a aceita de volta,
se precisa do dinheiro? Eu não preciso da mala. Deu-lhe
prazer oferecer-ma, suponho. Trata-se da mesma coisa, está a
ver? Só que o meu
gesto tem lógica e o seu não -. - Carol passou pela sua
frente e depois voltou-se de novo para ela, com um pé
avançado e a cabeça bem erguida, o cabelo louro curto
tão
livre como o de uma estátua. - Bem, acha divertido?
Therese estava a sorrir.
- O dinheiro não me preocupa - respondeu, serenamente.
- Que quer dizer?
- Isso, apenas. Tenho dinheiro para ir. Irei.
Carol fitou-a. Therese viu a expressão mal-humorada
desaparecer-lhe do rosto, e depois Carol começou também a
sorrir, com surpresa e alguma incredulidade.
- Ora muito bem - disse. - Estou encantada.
- Eu estou encantada.
-A que se deveu esta feliz mudança?
"Ela não saberá, realmente?" perguntou-se Therese.
- Parece importar-lhe que eu vá ou não - disse
simplesmente.
155
- Mas claro que me importo. Convidei-a, não convidei? -
replicou Carol, ainda sorridente, mas, girando sobre o dedo
grande do pé, voltou as costas a Therese e caminhou na
direcção da sala verde.
Therese viu-a afastar-se, de mãos nas algibeiras com os
mocassin a fazer cliques leves e lentos no chão. Ficou a
olhar para o vão da porta vazio. Carol teria saído
exactamente da mesma maneira, pensou, se ela tivesse dito que
não, não iria. Pegou na xícara meia de café mas depois
pousou-a de novo.
Saiu, atravessou o vestíbulo e foi até à porta do quarto de
Carol.
- Que está a fazer?
Carol estava inclinada para o seu toucador, a escrever.
- Que estou a fazer? - Endireitou-se e meteu um pedaço de
papel na algibeira. Agora sorria, sorria real mente com os
olhos, como naquele momento na cozinha com a Abby. - Uma
coisa - disse. - Vamos ouvir u pouco de música.
- Óptimo -. Um sorriso alastrou pelo rosto de Therese.
- Porque não se prepara primeiro para se deitar? É tarde,
sabia?
- Consigo faz-se sempre tarde.
- Isso é um cumprimento?
- Esta noite não me apetece deitar-me. - Carol atravessou o
quarto para a sala verde.
- Mas prepare-se. Está com olheiras.
Therese despiu-se rapidamente no quarto que tinha as duas
camas. O gira-discos, na outra sala, tocava Em braceable You.
Depois o telefone tocou. Therese abriu a gaveta de cima da
cómoda. Continha apenas dois lenços de homem, uma velha
escova de fatos e uma chave. E alguns papéis, a um canto.
Therese pegou num cartão revestido de mica. Era uma antiga
carta de condução, passada em nome de Harge: Hargess Foster
Aird. Idade: 31 anos. Altura: 1, 72 m. Peso: 78 kg. Cabelo:
louro. Olhos azuis. Ela sabia tudo isso.
156
Um Oldsmobile de 1950. Cor: azul-escuro. Therese pôs o
cartão no seu lugar e fechou a gaveta. Foi até à porta e
escutou.
- Lamento, Tessie, mas afinal não foi possível - dizia Carol
pesarosamente, mas a sua voz era feliz.
-A festa está a ser boa?... Não, não estou vestida e estou
cansada.
Therese foi à mesa-de-cabeceira e tirou um cigarro da caixa
que lá se encontrava. Um Phili Morris. Soube que fora Carol
que lá os pusera, e não a empregada, pois Carol lembrara-se
de que ela gostava daquela marca. Nua, parou a escutar a
música. Era uma canção que não conhecia.
Estaria Carol a falar de novo ao telefone?
- Bem, não me agrada - ouviu-a dizer, meio irritada, meio
brincalhona -, não me agrada mesmo nada.
não é fácil viver. quando estamos apaixonados.
-Como posso saber que género de pessoas são?... Oh, oh! É
isso?
Era Abby; Therese teve a certeza. Soprou o fumo e aspirou o
cheiro ligeiramente doce dos pequenos fiapos, lembrando-se do
primeiro cigarro que fumara, um Philip Morris, no telhado de
um dormitório do lar - quatro raparigas, passando-o de uma
para a outra.
- Sim, vamos - disse Carol, com ênfase. - Bem, eu estou...
Não pareço?
"... Para ti... talnez eu seja um idiota, mas é divertido...
As pessoas dizem que me dominas com um gesto da tua mão. meu
amor, é maravilhoso. elas simplesmente não compreendem."
Era uma bonita canção. Therese fechou os olhos e encostou-se
à porta entreaberta, a ouvir. Por detrás da porta, ouvia-se
um piano lento, que sussurrava ao longo de todo o teclado. E
um trompete indolente.
- Ninguém tem nada com isso, a não ser eu, não é verdade?...
- disse Carol. - Tolice! - Therese sorriu da sua veemência.
Depois fechou a porta. O gira-discos deixara cair outro
disco.
- Porque não vem dar as boas-noites à Abby?perguntou Carol.
157
Therese correra para trás da porta da casa de banho, porque
estava nua.
- Porquê?
- Venha, ande - insistiu Carol, e ela enfiou um roupão e foi.
- Olá - disse Abby. - Constou-me que vai.
- Isso é novidade para si?
Abby parecia pateta, como se quisesse passar a noite toda a
conversar. Desejou a Therese uma viagem agradável, e falou-
lhe das estradas da "cintura do Milho", de como eram más no
Inverno. [Região do Centro-Oeste dos EUA, cuja principal
produção é o milho e o gado alimentado a milho. (N. da T.)]
- Desculpa-me, se fui grosseira esta tarde? - perguntou pela
segunda vez. - Eu gosto de si, Therese.
- Desligue, desligue! - gritou Carol para baixo.
- Ela quer falar outra vez consigo, Carol.
- Diga à Abigail que estou na banheira. Therese disse, e
desligou.
Carol levara uma garrafa e dois copos pequenos para a sala.
- Que se passa com a Abby? - perguntou Therese.
- Que quer dizer com isso? - Carol deitou um licor castanho
nos dois copos. - Suponho que ela bebeu uns copos a mais esta
noite.
- Bem sei. Mas porque quis ela almoçar comigo?
- Bem... creio que por uma quantidade de razões. Prove, para
ver se gosta.
- que me parece vago...
- O quê?
- Todo o almoço.
Carol estendeu-lhe um copo.
- Há algumas coisas que são sempre vagas, minha querida.
Era a primeira vez que Carol a tratava por "minha querida".
- Que coisas? - Therese queria uma resposta, uma resposta
clara.
158
Carol suspirou.
- Muitas coisas. As coisas mais importantes. Prove
o seu licor.
Therese tomou um sorvo. Era doce e castanho-escuro, como
café, e tinha a ardência do álcool.
- Sabe bem.
- Já esperava essa resposta de si.
- Porque bebe, se não gosta?
- Porque é diferente. Vamos beber à nossa viagem, por isso
tem de ser qualquer coisa diferente -. Carol fez
uma careta e bebeu o que restava no seu copo.
À luz do candeeiro, Therese via todas as sardas de metade do
rosto dela. A sobrancelha que parecia branca, curva como uma
asa acompanhando a linha da fronte.
Sentiu-se de súbito extasiadamente feliz.
- Que canção era aquela que tocou antes, aquela só
com a voz e o piano?
- Trauteie-a.
Therese assobiou parte da melodia e Carol sorriu.
- Easy Lining. antiga.
- Gostaria de a ouvir de novo.
-E eu gostaria que fosse para a cama. Mas está
bem, eu ponho-a a tocar outra vez.
Carol entrou na sala verde e ficou lá enquanto o disco
tocava. Therese parou à porta do seu quarto, a escutar e a
sorrir.
"... jamais lamentarei. os anos que estou a dar. São tão fá
ceis de dar, quando amamos. Sinto-me feliz por fazer. tudo
quanto faço por ti..."
Aquela era a sua canção. Era tudo quanto sentia por Carol.
Foi para a casa de banho antes de o disco terminar, abriu a
torneira, meteu-se na banheira e deixou a água esverdeada
despenhar-se sobre os seus pés.
- Eh! - chamou Carol. - Alguma vez esteve no Wyoming?
- Não.
- É tempo de ver a América.
Therese pegou no turco de banho, a pingar, e comprimiu-o
contra o joelho. A água estava já tão alta na
159
banheira que os seus seios pareciam objectos planos,
flutuando na superficie. Observou-os, tentando decidir o que
pareciam além do que eram.
- Não adormeça aí - recomendou Carol, em voz preocupada, e
Therese soube que ela estava sentada na cama, a ver um mapa.
- Não adormeço.
- Bem, há quem adormeça.
- Fale-me mais do Harge - pediu, enquanto se enxugava. - Que
faz ele?
- Uma data de coisas.
- Quero dizer, a que negócio se dedica?
- Investimento imobiliário.
- Como é ele? Gosta de ir ao teatro? Gosta das pessoas?
- Gosta de um pequeno grupo de pessoas que jogam golfe -
respondeu Carol, em tom decisivo. E acrescentou, em voz mais
alta: - E que mais? É muito, muito meticuloso a respeito de
tudo. Mas esqueceu-se da sua melhor navalha de barba. Está no
armário dos medicamentos, pode vê-la se quiser... e acho que
quer. Suponho que tenho de lha mandar pelo correio.
Therese abriu a porta do armário dos medicamentos e viu a
navalha. O armário ainda estava cheio de coisas de homem,
after-shave e pincéis de barbear.
- Este quarto era dele? - perguntou, quando saiu da casa de
banho. - Em que cama dormia?
- Não era na sua - respondeu Carol, sorrindo.
- Posso beber um pouco mais disto? - perguntou, a olhar para
a garrafa de licor.
- Claro que pode.
- E posso dar-lhe um beijo de boas noites?
Carol estava a dobrar o mapa rodoviário, de lábios franzidos
como se fosse assobiar.
- Não - respondeu.
- Porquê? - Tudo parecia possível, naquela noite, - Dou-lhe
antes isto -. Carol tirou a mão da algi beira.
Era um cheque. Therese viu a importância - duzentos dólares -
e que estava passado em seu nome.
160
- Para quê?
- Para a viagem. Não quero que gaste o dinheiro que lhe será
necessário para se filiar no sindicato -. Carol pegou num
cigarro. - Não precisará de tudo isso, eu só quero que fique
com ele.
- Mas eu não preciso - protestou Therese. - Obrigada, mas não
me importo de gastar o dinheiro para o sindicato.
- Nada de insolências - interrompeu-a Carol.
- Dá-me prazer, lembra-se?
- Mas eu não aceito -. A sua voz saiu brusca e, por isso,
Therese sorriu e colocou o cheque em cima da mesa, junto da
garrafa do licor. Mas bateu-o com força. Desejou ser capaz de
explicar a Carol. O dinheiro não tinha importância alguma,
mas como dava prazer a Carol oferecer-lho ela detestava não o
aceitar. - Não me agrada a ideia - acrescentou. - Pense em
qualquer outra coisa -. Olhou-a. Ela observava-a e Therese
percebeu com agrado que não ia discutir.
- Para me dar prazer?
O sorriso de Therese tornou-se maior.
- Sim - respondeu, e pegou no pequeno copo.
- Está bem. Vou pensar no assunto. Boa noite -. Carol parara
à porta.
Estranha maneira de dar as boas-noites, pensou Therese, numa
noite tão importante.
- Boa noite - respondeu.
Voltou-se para a mesa e viu de novo o cheque. Mas era a Carol
que competia rasgá-lo. Empurrou-o para debaixo do naperon de
linho azul- escuro da mesa, para não o ver.
161

162

CAPÍTULO XII

Era janeiro.
Era todas as coisas. E era uma coisa. O seu frio encerrava a
cidade numa cápsula cinzenta. Janeiro era momentos, e Janeiro
era um ano.
Janeiro desfez-se em momentos, como chuva, e congelou, menos
na memória dela: a mulher que viu a olhar ansiosamente, à luz
de um fósforo, para os nomes escritos num mostrador escuro; o
homem que escreveu rapidamente um recado e entregou o papel
ao seu amigo antes de se separarem, no passeio; o homem que
correu ao longo de um quarteirão atrás de um autocarro e o
apanhou. De todos os gestos e actos humanos parecia
desprender-se uma magia. Janeiro era o mês de duas caras,
tilintando como os guizos do bobo, estalando como a crosta da
neve, puro como qualquer começo, sombrio como um velho,
misteriosamente familiar e, contudo, desconhecido como ma
palavra que quase podemos definir mas não conseguimos definir
inteiramente.
Um jovem chamado Red Malone e um carpinteiro trabalharam com
ela no cenário de Small Rain, com o qual o senhor Donohue
estava muito satisfeito. Disse-lhe que pedira a um tal senhor
Baltin que viesse ver o trabalho dela. O senhor Baltin
formara-se numa academia russa e desenhara alguns cenários
para teatros de Nova Iorque. Therese nunca ouvira falar dele.
Tentou convencer o senhor Donohue a arranjar-lhe uma
entrevista com Myron Blanchard ou Ivor Harkevy, mas o senhor
163
Donohue nunca prometeu nada a esse respeito. Não po dia,
supunha Therese.
O senhor Baltin apareceu, uma tarde. Era um homem alto e
curvado, de chapéu preto e sobretudo cossado, e olhou com
atenção o trabalho que ela lhe mostrou. Therese levara apenas
três ou quatro modelos para teatro, os melhores que tinha. O
senhor Baltin falou-lhe de uma peça cuja produção se
iniciaria dentro de cerca de seis semanas. Teria prazer em a
recomendar como assistente, e ela disse que calhava muito bem
porque de qualquer modo estaria ausente da cidade até essa
altura. Aliás estava tudo a correr muito bem, nos últimos
dias. O senhor Andronich prometera-lhe um trabalho de duas
semanas em Filadélfia, em meados de Fevereiro, o que era mais
ou menos na altura em que ela regressaria de viagem com
Carol. Therese tomou nota do nome e da morada do homem que o
senhor Baltin conhecia.
- Ele anda agora a procurar alguém, por isso telefone-lhe no
princípio da semana - recomendou o senhor Baltin. - Será
apenas um trabalho de ajudante, pois quem o ajudava antes, um
aluno meu, está agora a trabalhar com o Harkevy.
- Ah! Poderá... o senhor, ou o seu ajudante, arranjar maneira
de eu falar com o senhor Harkevy?
- Nada mais fácil. A única coisa que tem de fazer é ligar
para o estúdio dele e pedir para falar com Charle Charles
Winant. Diga-Lhe que falou comigo. Vejamos: ligue-lhe na
sexta-feira. Sexta-feira à tarde, por volta das três horas.
- Pois sim, muito obrigada.
Faltava uma semana inteira para sexta-feira. Therese ouvira
dizer que Harkevy não era inacessível, mas tinha fama de
nunca marcar entrevistas e muito menos comparecer a elas, se
as marcava, em virtude de ter muito que fazer. Mas talvez o
senhor Baltin soubesse como resolver esse problema.
- E não se esqueça de telefonar ao Kettering - recomendou o
senhor Baltin, à saída.
Therese olhou de novo para o nome que ele lhe dera:
164
Adolph Kettering, Theatrical Investiments, Inc. e um
tndereço particular.
- Telefono-lhe na segunda-feira de manhã. MuitíssiImo
obrigada.
Era nesse dia - um sábado - que combinara encontrar-se com
Richard no Palermo, depois do trabalho: 1 de Janeiro, onze
dias antes da data em que Carol e ela planeavam partir. Viu
Phil parado ao balcão, com Richard.
- Olá, como vai o velho Gat? - perguntou-lhe Phil, arrastando
um banco para ela se sentar. - Também trabalha aos sábados?
- O elenco não trabalha. Só a minha secção.
- Quando é a estreia?
- No dia 21.
- Olha - disse Richard, apontando para uma mancha de tinta
verde- escura na saia de Therese.
-Já vi. Sujei a saia há dias.
-Que gostaria de beber? - perguntou-lhe Phil.
-Não sei. Talvez uma cerveja, obrigada -. Richard virara as
costas a Phil, que estava do outro lado dele, e Therese
pressentiu uma atmosfera carregada entre eles.
- Pintaste alguma coisa hoje? - perguntou a Richard, que
tinha ambos os cantos da boca descaídos.
-Tive de substituir um motorista que adoeceu. Acabou-se-me a
gasolina a meio de Long Island.
- Oh, que azar! Talvez prefiras pintar a sair, amanhã -.
Tinham combinado ir a Hoboken no dia seguinte, só para darem
uma volta e comerem no Glam House. Mas Carol viria à cidade e
prometera telefonar-lhe.
- Pinto, se posares para mim.
Therese hesitou, pouco à vontade.
- Não tenho andado com disposição para posar, ultimamente.
- Está bem, não tem importância -. Richard sorriu-lhe. - Mas
como posso eu pintar, se tu nunca posas?
- Porque não pintas ao ar livre?
Phil estendeu a mão e pegou no fundo do copo dela.
- Não beba isso. Tome qualquer coisa melhor. Eu bebo a
cerveja.
165
- Está bem. Experimento um uísque com água.
Phil estava agora de pé do outro lado dela. Parecia bem-
disposto, mas tinha umas pequenas olheiras. Mal-humorado na
última semana, andara a escrever una peça. Lera algumas cenas
em voz alta, na sua festa de Ano Novo. Phil dizia que se
tratava de um prolongamento d'A Metamorfose, de Kafka. Ela
fizera o esboço i um cenário na manhã do dia de Ano Novo e
mostrara a Phil, quando fora visitá-lo. E, de súbito, pensou
que era esse o motivo do aborrecimento de Richard.
- Terry, gostaria que fizesse um modelo que pudéssemos
fotografar daquele esboço que me mostrou. Queria ter um
cenário para acompanhar o manuscrito.
Phil empurrou para ela o uísque com água e encostou-se ao
balcão, ao seu lado.
- Talvez faça - respondeu Therese. - Vai tentar realmente a
produzam?
- Porque não? - Os olhos escuros de Phil desafiaram-na, por
cima do seu sorriso. Estalou os dedos ao empregado. - A
conta.
- Eu pago - disse Richard.
- Não pagas nada. Esta é a minha vez -. Phil tinha a velha
carteira preta na mão.
A sua peça nunca seria produzida, pensou Theresa. talvez
nunca fosse mesmo, sequer, acabada, porque os estados de
espírito de Phil eram caprichosos.
- Vou andando - disse Phil. - Apareça em bre, Terry. Até à
vista, Rich.
Therese seguiu-o com o olhar enquanto ele saía e subia a
pequena escada da frente, mais pelintra que outras vezes que
o vira, nas suas sandálias e no seu sobretudo coçado de pêlo
de camelo, mas apesar disso com uma certa indiferença
atraente na sua pelintrice. Como um homem a percorrer a sua
casa no seu velho roupão turco preferido, pensou. Retribuiu-
lhe o aceno de mão pela janela da frente.
- Ouvi dizer que levaste sanduíches e cerveja a Phil, no dia
de Ano Novo - observou Richard.
- É verdade. Ele telefonou a dizer que estava com uma
ressaca.
166
- Porque não falaste nisso?
- Esqueci-me, suponho. Não teve importância.
- Não teve importância. Se tu... - A mão rígida de
Richard fez um gesto lento, impotente. - Se passaste
o dia no apartamento de um tipo a quem levaste
sanduíches e cerveja, achas que isso não teve importância?
Não te passou pela cabeça que eu também poderia ter querido
umas sanduíches?
- Se tivesses querido, não te faltaria gente para tas
arranjar. Na véspera tínhamos comido e bebido tudo
quanto o Phil tinha em casa, lembras-te? - Richard
acenou com a cabeça comprida, ainda com o sorriso desanimado
e os cantos da boca descaídos.
- E estiveste sozinha com ele, só vocês os dois.
- Oh, Richard... - Therese lembrou-se do que se
passara, e que tivera tão pouca importância. Dannie
ainda não tinha voltado de Connecticut. Passara o Ano Novo em
casa de um dos seus professores. Ela esperara que
Dannie regressasse nessa tarde a casa de Phil, mas Richard
provavelmente nunca pensaria, nunca imaginaria, que ela
gostava muito mais de Dannie que de Phil.
- Se qualquer outra rapariga fizesse isso, eu desconfiaria de
que estava a tramar alguma, e não me enganaria - insistiu
Richard.
- Acho que estás a ser idiota.
- E eu acho que tu estás a ser ingénua -. Richard
fitava-a carrancudamente, ressentidamente, e Therese
pensou que, com certeza, o seu ressentimento não podia
ser só por causa daquilo. Estava ressentido porque ela
não era, nem nunca poderia ser, o que ele desejava que
fosse, uma rapariga que o amava apaixonadamente e
adoraria ir à Europa com ele. Uma rapariga como ela
própria, com o seu rosto, as suas ambições, mas que o
não adorasse.
- és do tipo que o Phil gosta, sabes?
- Quem disse que eu era? O Phil?
-Aquele mostrengo, aquele diletante meio tarado
- resmungou Richard. - E esta noite teve o descaramento de se
vangloriar de que não me ligas a mínima.
- O Phil não tem direito nenhum de dizer isso. Eu
não te discuto com ele.
167
- Oh, bela resposta! Queres dizer que, se discutisses, ele
saberia que não me ligas a mínima? - Richard falava
calmamente mas a sua voz tremia de cólera.
- Que tem o Phil, de repente, contra ti?
- A questão não é essa!
- Qual é, então? - perguntou Therese, impacienNte.
- Oh, Terry, acabemos com isto!
- Não descobres qual é a questão, porque não há nenhuma -
respondeu ela, mas vendo Richard voltar o rosto e mudar a
posição dos cotovelos, no balcão, quase como se as suas
palavras o fizessem estrebuchar fisicamente, sentiu uma
súbita compaixão por ele. Não era o que se passava agora, ou
se passara na semana anterior que o amargurava, mas sim toda
a inutilidade passada e futura dos seus próprios sentimentos
por ela.
Richard esmagou o cigarro no cinzeiro do balcão.
- Que queres fazer esta noite? - perguntou.
Fala-lhe da viagem com Carol, pensou Therese. duas vezes
antes tencionara dizer-lhe e depois adiara.
- Tu queres fazer alguma coisa? - perguntou por sua vez,
sublinhando as últimas palavras.
- Claro que quero - respondeu, deprimido. - Que dizes a
jantarmos e depois irmos ver o Sam e a Joan? Talvez possamos
ir até lá esta noite.
- Está bem.
Therese detestou a ideia. Eram duas das pessoas mais
maçadoras que jamais conhecera, um empregado de sapataria e
uma secretária, casados e felizes e residentes na Rua 20,
oeste. E, além disso, sabia que Richard pretendia mostrar-
lhos como exemplo de uma vida ideal e lembrar-lhe que ela e
ele poderiam um dia viver do mesmo modo, juntos. Ela detestou
a ideia e, em qualquer outra noite, talvez tivesse
protestado, mas a compaixão por Richard continuava a dominá-
la, a arrastá-la numa amorfa esteira de culpa e necessidade
de expiação. De súbito, recordou um piquenique que tinham
feito no último Verão, perto de Tarrytown, e lembrou-se com
tod a a precisão de Richard reclinado na relva, a tirar muito
devagar, com o canivete, a rolha da garrafa de vinho,
enquanto
168
conversavam... a respeito de quê? Esquecera-se, mas
recordava o momento de satisfação, a convicção de que
partilhavam qualquer coisa maravilhosamente real e rara
naquele dia, e perguntou a si mesma o que era feito disso, em
que fora baseado. Agora até mesmo a figura alta e espalmada
dele, de pé ao seu lado, parecia oprimi-la com o seu peso.
Therese sufocou o próprio ressentimento, mas conseguiu apenas
que ele se tornasse maispesado dentro dela, como uma coisa
com substância. Olhou para as figuras atarracadas dos dois
trabalhadores italianos que estavam de pé, ao balcão, e para
as duas raparigas de calças que se encontravam a seguir a
eles, ao fundo, e em quem já reparara antes, e agora que elas
iam a sair viu que vestiam calças. Uma usava o cabelo cortado
como o de um rapaz. Therese olhou para outro lado, consciente
de que as evitava, de que evitava ser surpreendida a olhar
para elas.
- Queres comer aqui? Ainda não tens fome? - perguntou
Richard.
- Não. Vamos a outro lado qualquer.
Saíram, por isso, e caminharam para norte, mais oumenos na
direcção de onde Sam e Joan moravam.
Therese ensaiou as primeiras palavras, até todo o seu sentido
desaparecer.
- Lembras-te da senhora Aird, a mulher que encontraste em
minha casa, no outro dia?
- Com certeza.
- Ela convidou-me para fazer uma viagem com ela, uma viagem
ao Oeste, de carro, durante duas semanas, mais ou menos.
Gostaria de ir.
- Ao Oeste? Califórnia? - perguntou Richard, surpreendido. -
Porquê?
- Porquê?
- Enfim... conhece-la assim tão bem?
- Estive com ela algumas vezes.
- Ah... Não me tinhas dito nada -. Richard caminhava com as
mãos a balançar aos lados do corpo e a olhar para ela. - Só
vocês duas?
- Sim.
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- Quando partiriam?
- Por volta do dia 18.
- Deste mês? Mas assim não verias o teu espectáculo: Therese
abanou a cabeça.
- Não creio que perdesse grande coisa.
- Então. está decidido?
- Está.
Ele ficou um momento silencioso.
- Que espécie de mulher é ela? Não bebe, ou coisa do género,
pois não?
- Não -. Therese sorriu. - Tem ar de quem beba?
- Não. Na realidade, acho-a muito bonita. Parece-me apenas
tremendamente surpreendente.
- Porquê?
- É tão raro decidires-te a respeito seja do que for;
Provavelmente mudarás de opinião.
- Não creio.
- Talvez eu possa voltar a vê-la qualquer dia contigo.
Porque não combinas isso?
- Ela disse que estaria na cidade amanhã. Não sei de quanto
tempo dispõe... ou, realmente, se telefonará ou não.
Richard não continuou a conversa, e Therese também não. Nessa
noite não voltaram a falar de Carol.
Richard passou a manhã a pintar e foi ao apartamento de
Therese por volta das duas horas. Estava lá quando Carol
telefonou, pouco depois. Therese disse-lhe que Richard estava
com ela, e a resposta foi: - Traga-o consigo -. Carol disse
que estava perto do Plaza, e que podiam encontrar-se lá, na
Sala da Palmeira.
Meia hora depois, Therese viu-a olhar para eles numa mesa
perto do centro da sala, e, quase como na primeira vez, como
o eco de um choque que fora tremendo; Therese sentiu-se
abalada ao vê-la. Carol usava o mesmo conjunto preto com o
lenço de pescoço verde e dourado que usara no dia do almoço.
Mas desta vez prestou mais atenção a Richard do que a ela.
Os três não falaram de nada de especial, e Therese
170
vendo a calma dos olhos cinzentos de Carol, que só uma vez
se voltaram para ela, vendo a expressão absolutamente normal
do rosto de Richard, sentiu uma espécie de decepção. Richard
mostrara grande empenho em conhecê-la, mas Therese achava que
tinha sido menos por curiosidade do que por não ter mais nada
que fazer. Viu-o olhar para as mãos de Carol, para as unhas
tratadas e pintadas de vermelho-vivo, e reparar no anel com
límpida safira verde, e na aliança de casamento, na outra
mão. Ele não poderia dizer que eram mãos inúteis, mãos
ociosas, apesar das unhas compridas. As mãos de Carol eram
fortes e mexiam-se com economia de movimentos. A sua voz
erguia-se acima do murmúrio de outras vozes que os cercavam,
falando de coisas sem importância alguma com Richard, e a
certa altura riu-se. Depois olhou para Therese.
-Já disse ao Richard que talvez façamos uma viagem? -
perguntou.
-Já. A noite passada.
- Ao Oeste? - indagou Richard.
-Eu gostaria de subir até ao Noroeste. Depende das estradas.
E Therese sentiu-se, de súbito, impaciente. Porque estavam
ali sentados a fazer uma conferência sobre aquele assunto?
Agora falavam de temperaturas e do Estado de Washington.
- Washington é o meu estado natal - disse Carol.
Praticamente.
Depois, passados momentos, perguntou se alguém ieria dar um
passeio pelo parque. Richard pagou a conta da cerveja e do
café que tinham tomado, tirando a nota da desordem de notas e
moedas que lhe avolumavam uma algibeira das calças. Como ele
era, afinal, indiferente a respeito de Carol, pensou Therese.
Parecia-lhe que não a via, como algumas vezes não vira
figuras em formações de rocha ou nuvens, quando ela tentara
chamar-lhe a atenção para elas. Agora olhava para ela, com a
linha fina e indiferente da boca num meio riso, enquanto se
levantava e passava rapidamente a mão pelo cabelo.
171
Caminharam da entrada do parque da Rua 59 na direcção do
zoo, que depois percorreram em passo vagaroso. Continuaram a
andar, passando por baixo da primeira ponte sobre o caminho,
onde este curva e o parq propriamente dito começa. O ar
estava frio e parado, o céu um pouco encoberto, e Therese
sentia em tudo u inércia, uma imobilidade inanimada até mesmo
neles próprios, que se moviam lentamente.
- Querem que procure uns amendoins? - ofereceu Richard.
Carol estava curvada na beira do caminho, de dedos estendidos
para um esquilo.
- Eu tenho uma coisa - disse suavemente, e o esquilo
sobressaltou-se com a sua voz, mas avançou de novo, segurou-
lhe os dedos com uma força nervosa, cravando os dentes em
qualquer coisa e fugiu -. Carol endireita-se, sorrindo. -
Tinha uma coisa na algibeira, que sobrou desta manhã.
- Dá comida a esquilos, onde vive? - perguntou Richard.
- A esquilos e tâmias.
Falavam de coisas tão enfadonhas, pensou Therese. Depois
sentaram-se num banco e fumaram um cigarro, e Therese,
observando um sol diminuto chegar finalmente com o seu fogo
cor de laranja aos descarnados ramos pretos de uma árvore,
desejou que a noite já tivesse chegado e ela estivesse
sozinha com Carol. Começaram a andar, de regresso. Se Carol
tivesse de voltar já para casa, pensou Therese, faria uma
coisa violenta. Como, por exemplo, saltar da ponte da Rua 59.
Ou tomar os comprimidos de benzedrine que Richard lhe dera a
semana passada.
- Querem tomar chá em qualquer lado? - perguntou Carol,
quando se aproximavam novamente do bar.
- Que dizem àquela casa russa perto de Garnegie
- A Rumpelmayer's é mesmo aqui - observou Richard. - Gostam
da Rumpelmayer's?
Therese suspirou. E Carol pareceu hesitar. Mas foram lá.
Therese lembrou-se de que estivera ali uma vez
172
com Angelo. Não gostava da casa. As suas luzes fortes
causavam-Lhe uma sensação de nudez, e era irritante não saber
se se estava a ver uma pessoa verdadeira ou o seu reflexo num
espelho.
-Não, não quero nada, obrigada - disse Carol, abanando a
cabeça à grande bandeja de bolos que a empregada estendia.
Mas Richard escolheu dois bolos, embora Therese também
tivesse declinado.
-Para que é isso, para o caso de eu mudar de ideias? -
perguntou Therese, e Richard piscou-lhe o olho. Tinha de novo
as unhas sujas, reparou ela.
Richard perguntou a Carol de que tipo era o seu carro, e
começaram a discutir os méritos de várias marcas de
automóveis. Therese viu Carol lançar olhares às mulheres que
estavam à sua frente. Ela também não gosta desta casa,
pensou. Olhou com atenção para um homem reflectido no espelho
que estava obliquamente atrás de Carol. O homem estava de
costas e inclinado para a frente, a conversar animadamente
com uma mulher e a dar ênfase às palavras com movimentos
bruscos da mão esquerda aberta. Therese olhou para a mulher
magra, de meia-idade, com quem ele falava, e depois novamente
para ele, perguntando-se se a aura de familiaridade que
descobria nele era autêntica ou uma ilusão como o espelho,
até que uma recordação frágil como uma bola de sabão subiu no
seu consciente e rebentou à superfície. Era Harge.
Therese olhou de relance para Carol, mas se esta
reparara nele, pensou, não podia saber que ele estava
reflectido no espelho atrás de si. Momentos depois, Theresa
olhou por cima do ombro e viu Harge de perfil, muito
semelhante a uma das imagens que trazia na memória,
reflectidas lá em casa - o nariz recto e curto, a parte
inferior do rosto cheia. Carol devia tê-lo visto, apenas a
três mesas de distância, à sua esquerda. Carol olhou de
Richard para Therese.
- Sim - disse à rapariga, sorrindo um pouco, e voltou-se
173
de novo para Richard e continuou a conversa com ele. A sua
atitude mantinha-se a mesma, absolutamente nada diferente.
Therese olhou para a mulher que estava com Harge. Não era nem
nova nem muito atraente. Talvez fosse uma pessoa da sua
família.
Depois viu Carol esmagar um cigarro comprido. Richard parara
de falar. Estavam prontos para sair. Therese olhava Harge no
momento em que ele viu Carol. Após o primeiro vislumbre, os
seus olhos quase se fecharam, como se tivesse de os
semicerrar para acreditar que era ela, e depois disse
qualquer coisa à mulher que acompanhava, levantou-se e
aproximou-se da mesa.
- Carol - disse.
- Olá, Harge. - Voltou-se para Therese e Richard e pediu: -
Dão-me licença, um momento?
Observando da porta, para onde fora com Richard, Therese
tentava ver tudo, ver para além do orgulho e agressividade da
figura ansiosa e inclinada para a frente de Harge, que não
era tão alto como a copa do chapéu de Carol, para ver para
além dos acenos de cabeça aquiescentes dela enquanto ele
falava, para conjecturar, não o que eles estavam a dizer
agora, mas sim o que tinham dito um ao outro há cinco anos,
três anos, no passeio daquele retrato do barco a remos. Carol
amara-o uns tempos, e isso era doloroso de recordar.
- Agora podemos ficar livres, Terry? - perguntou-lhe Richard.
Therese viu Carol cumprimentar com uma inclinação de cabeça a
mulher sentada à mesa de Harge e i pois afastar-se dele.
Harge olhou por cima de Carol para Therese e Richard e, sem
aparentemente a reconhecer, voltou para a sua mesa.
- Desculpem - disse Carol, quando se lhes juntou No passeio.
Therese puxou Richard de parte e disse-lhe:
- Agora tenho de te dar as boas noites, Richard. A Carol quer
que eu visite uma amiga sua com ela, esta
noite.
Richard franziu a testa.
174
- Mas eu tenho aqueles bilhetes para o concerto
desta noite, bem sabes.
Therese lembrou-se subitamente.
- Do Alex. Esqueci-me. Desculpa.
- Não tem importância - respondeu ele, tristemente.
Não tinha de facto importância. O amigo de Richard,
Alex, acompanhava alguém num concerto de vio lão e dera os
bilhetes a Richard há semanas.
- Preferes ir com ela a ir comigo, não é? - perguntou
ele.
Therese viu que Carol estava a procurar um táxi.
Deixá-los-ia a ambos dentro de poucos momentos.
- Devias ter-me falado do concerto esta manhã, Richard.
ter-mo recordado, pelo menos.
- Aquele era o marido dela? - Os olhos de Richard
semicerraram-se sob o franzir da testa. - Que vem a ser
isto, Terry?
- Que vem a ser o quê? Não conheço o marido dela.
Richard aguardou um momento e depois desfranziu
a testa. Sorriu, como se admitisse que não tinha sido
razoável.
- Desculpa. Estava apenas convencido de que te
divertiria esta noite -. Aproximou-se de Carol. - Boa noite
- despediu-se.
Dava a impressão de que se ia embora sozinho, e por
isso Carol disse-lhe:
-Vai para a Baixa? Talvez eu possa deixá-lo em
qualquer lado.
- Vou a pé, obrigado.
- Julgava que vocês dois tinham um encontro - observou
Carol a Therese.
Therese viu que Richard não se afastava e aproximou-se por
sua vez de Carol, de modo que ele não ouvisse o que diziam.
- Não era importante. Preferia ficar consigo.
Um táxi parara ao lado de Carol, que pôs a mão no
puxador.
- Bem, o nosso encontro também não é muito importante.
Por isso, porque não vai com o Richard esta noite?
175
Therese olhou para Richard e percebeu que ele a o vira.
- Até depois, Therese - disse Carol.
- Boa noite - respondeu Richard.
- Boa noite - repetiu Therese, vendo Carol fechar a porta do
táxi, depois de entrar.
- Pronto - disse Richard.
Therese virou-se para ele. Não iria ao concerto, mas também
não faria nada violento, sabia-o, nada mais violento que
caminhar rapidamente para casa e trabalhar no cenário que
queria acabar até terça-feira, para kevy. Pôde antever todo o
serão, com um fatalismo mi melancólico, meio desafiador, no
segundo que Richard levou para se aproximar dela.
- Continuo a não querer ir ao concerto - disse-lhe. Para sua
surpresa, Richard recuou e replicou, furioso:
- Está bem, não vás! - e voltou-lhe as costas. Seguiu para
oeste, pela Rua 59, na sua passada assimétrica, que lhe
lançava o ombro direito para a frente do outro, mãos a
balançar, sem ritmo, aos lados do corpo, e ela percebeu, pela
simples maneira como ele caminhava, que estava zangado. Num
instante deixou de o ver. A rejeição de Kettering, na última
segunda-feira passou-lhe rapidamente pelo pensamento. Ficou
de olhos fixos na escuridão que engolira Richard. Não se
sentia culpada a respeito daquela noite. Tratava-se de outra
coisa. Invejava-o. Invejava a convicção que ele tinha que
haveria sempre um lugar, um lar, um emprego, outra pessoa
para ele. Invejava-lhe essa atitude. Quase sentia
ressentimento por ele a ter.
176

CAPíTULO XIII

Foi Richard que começou.


- Porque gostas tanto dela?
Era uma noite em que ela desfizera um encontro com Richard
por haver uma escassa possibilidade de Carol aparecer.
Afinal, Carol não viera e Richard aparecera no seu lugar.
Agora, às onze e cinco, na enorme cafetaria de paredes rosa-
escuro da Avenida Lexington, ela estivera prestes a começar,
mas Richard antecipara-se.
- Gosto de estar com ela, gosto de falar com ela. Tenho
afecto às pessoas com quem posso falar -. Frases duma das
cartas que escrevera a Carol e nunca Lhe enviarra passaram-
lhe pela mente, como que em resposta a Richard. - Sinto que
estou num deserto de mãos estendidas.
- Estás com uma danada de uma paixonite por ela - sentenciou
Richard, explicativa e ressentidamente. Therese respirou
fundo. Deveria ser simples e dizer e sim, ou seria melhor
tentar explicar? Que poderia compreender do que se passava,
mesmo que ela lho explicasse com um milhão de palavras?
- Ela sabe? Claro que sabe -. Richard franziu a testa e puxou
fumo do cigarro. - Não achas isso muito pateta? É como
aquelas paixonites que as raparigas da escola apanham.
-Não compreendes - afirmou Therese. Sentia-se segura de si
177
- Que há para compreender? Mas ela compreende. Ela não
deveria ser indulgente contigo. Não deveria brincar desta
maneira. Não é justo para ti.
- Não é justo para mim?
- Que pretende ela, divertindo-se contigo? Um dia, cansa-se
de ti e corre-te a pontapé.
"Corre-me a pontapé", pensou Therese. Havia alguma
coisa de onde ela pudesse ser corrida? Era possível correr
com uma emoção? Estava furiosa, mas não queria discutir. Não
disse nada.
- Estás aturdida!
- Estou plenamente desperta. Nunca me senti tão desperta -.
Pegou na faca e passou o polegar, para trás e para diante,
pelo gume da lâmina. - Porque não me deixas em paz?
Ele franziu a testa.
- Não te deixo em paz?
- Sim.
- Referes-te à Europa, também?
- Também.
- Escuta, Terry... - Richard mexeu-se agitadamente na
cadeira, inclinou-se para a frente, hesitou, depois tirou
outro cigarro, acendeu-o com ar repugnado e atirou o fósforo
para o chão. - Estás numa espécie de transe! É pior.
- Só porque não quero discutir contigo?
- Pior que estar cego de amor, visto ser tão absolutamente
desrazoável. Não compreendes isso?
Não, ela não compreendia uma palavra.
- Mas vais curar-te disso numa semana, mais ou menos. Espero.
Meu Deus! - Voltou a mexer-se na cadeira. - Pensar... pensar,
nem que seja por um minuto, que praticamente queres dizer-me
adeus por causa do uma qualquer paixonite pateta!
- Eu não disse isso. Foste tu que disseste -. Therese olhou-
o, observou o rosto rígido que começava a ficar vermelho no
centro das faces planas. - Mas porque haveria eu de querer
estar contigo se tu não fazes outra coisa senão discutir a
respeito deste assunto?
178
Richard recostou-se na cadeira.
-Na quarta-feira, no próximo sábado, já não te sentirás de
modo algum assim. Não a conheces nem há três semanas!
Therese olhou na direcção das mesas de aquecimento a vapor;
as pessoas aproximavam-se devagar, escolhiam isto e aquilo e
iam avançando para a curva do balcão, onde dispersavam.
- Acho que é melhor dizermos adeus um ao outro
- disse -, porque nenhum de nós será jamais diferente do que
somos neste momento.
-Therese, és como uma pessoa que enlouqueceu, pensas que
nunca estiveste tão lúcida!
- Oh, acabemos com isto!
A mão de Richard, com a fila dos nós dos dedos enterrados na
carne branca e sardenta, estava cerrada em cima da mesa,
imóvel, como o retrato de uma mão que acabava de reduzir a
nada um argumento ineficaz, inaudível.
- Digo-te uma coisa: penso que a tua amiga sabe o que está a
fazer. Penso que ela está a cometer um crime contra ti. Quase
tenho vontade de a denunciar a alguém, mas o problema é que
tu não és uma criança. Estás apenas a proceder como se
fosses.
- Porque dás tanta importância ao assunto? Estás praticamente
frenético.
- Tu dás-lhe importância suficiente para me quereres mandar
passear! Que sabes tu a respeito dela?
- E tu, que sabes tu a respeito dela?
- Ela alguma vez teve atrevimentos contigo?
- Santo Deus! - exclamou Therese, com vontade de repetir as
palavras uma dúzia de vezes. Elas resumiam tudo, o seu
confinamento agora, ali, ainda. - Tu não compreendes -. Mas
ele compreendia, e era por isso que estava furioso.
Compreenderia, porém, que ela sentiria o mesmo se Carol nunca
lhe tivesse tocado? Sim e também se Carol nunca lhe tivesse
sequer falado depois da breve conversa acerca de uma mala de
roupas de boneca, no armazém. Se Carol não lhe tivesse de
facto
179
jamais falado, pois tudo acontecera naquele instante em que
a vira parada no meio da sala, a olhá-la. Deu então conta de
que acontecera tanto depois desse encontro que se sentiu, de
súbito, incrivelmente afortunada. Era tão fácil um homem e
uma mulher encontrarem-se, encon trarem alguém que servisse!
Mas que ela tivesse encontrado Carol...
- Creio que te compreendo melhor do que tu me compreendes a
mim. Tu também não queres realmente voltar a ver-me, porque
tu próprio disseste que eu não sou a mesma pessoa. Se
continuarmos a ver-nos, ficarás cada vez mais... mais assim.
- Terry, esquece por um momento que alguma vez te disse que
queria que me tivesses amor, ou que te amo. Quero dizer, és
tu como uma pessoa. Gosto de ti. Gostaria...
- Pergunto-me às vezes por que pensas que gostas de mim, ou
gostaste de mim. Pois nem sequer me co nheces.
- Tu não te conheces a ti própria.
- Oh! conheço-me... e conheço- te. Qualquer dia abandonarás a
pintura, e a mim com ela. Do mesmo modo que tens abandonado
tudo o mais que alguma vez começaste, tanto quanto posso ver.
A ideia da limpeza a seco, ou o negócio de carros em segunda
mão...
- Isso não é verdade - disse Richard, carrancudo.
- Mas porque pensas tu que gostas de mim? Porque eu também
pinto um pouco e podemos conversar a esse respeito? Sou tão
pouco prática para ti, como namorada, como a pintura como
profissão -. Hesitou um momento, mas depois disse o resto: -
De qualquer modo, conheces o suficiente de arte para saberes
que nunca serás um bom pintor. És como um miúdo rebelde
armado em gazeteiro enquanto podes, mas sabendo sempre o que
devias estar a fazer e o que acabarás por fazer: trabalhar
para o teu pai.
Os olhos azuis de Richard tinham-se tornado repentinamente
frios. A linha da sua boca era agora recta e muito curta, com
o delgado lábio superior ligeiramente crispado.
180
- A questão agora não tem nada a ver com isso, pois não?
- Bem... tem. Faz parte do teu hábito de persistires quando
sabes que é inútil, e que no fim acabarás por desistir.
- Não desistirei!
- Richard, não vale a pena!...
- Vais mudar de opinião, bem sabes.
Ela compreendia. Era como uma canção que ele não parava de
Lhe cantar.
Uma semana depois, Richard estava parado em casa dela, com a
mesma expressão de cólera sombria no rosto e falando no mesmo
tom. Aparecera a uma hora que não era habitual, às três da
tarde, e insistira em vê-la por um momento. Ela preparava uma
mala, para o fim-de-semana que ia passar em casa de Carol. Se
não estivesse a fazer a mala para ir para casa de Carol,
talvez Richard estivesse num estado de espírito muito
diferente, pensou, pois vira-o três vezes na semana que
decorrera e ele nunca tinha sido mais agradável, nunca
mostrara maior consideração por ela.
- Não me podes dar, simplesmente, ordem de marcha para fora
da tua vida - disse, agitando os braços compridos mas com um
tom de desolação nas palavras e nos gestos, como se tivesse
enveredado já pela estrada que o separava dela. - O que
realmente me magoa é procederes como se eu não valesse nada,
não prestasse absolutamente para nada. Não é justo para mim,
Terry. Eu não posso competir!
Não, pensou Therese, claro que não podia.
-Não tenho nada contra ti, nenhuma zanga, Richard. Tu é que
resolveste zangar-te e discutir por causa da Carol. Ela não
te tirou nada, porque, para começar, tu o não tinhas. Mas se
não podes continuar a ver-me...
- Calou-se, sabendo que ele podia e, provavelmente,
continuaria a vê-la.
- Que lógica - comentou Richard, esfregando um olho com as
costas da mão.
Therese observava-o, atraída pela ideia que acabava
181
de ter, e que de repente soubera ser um facto. Porque não
lhe ocorrera na noite do teatro, três dias antes? Devia tê-lo
percebido num cento de gestos, palavras, olhares, naquela
última semana. Mas lembrava-se em particular da noite do
teatro - ele surpreendera-a com bilhetes para um espectáculo
que ela estava particularmente interessada em ver -, a
maneira como Lhe pegara na mão nessa noite, a sua voz ao
telefone que não lhe dissera simplesmente que se encontrasse
com ele aqui ou ali, mas lhe perguntara muito docemente se
podia. Therese não gostara. Não se tratava de uma
manifestação de afecto, mas sim de uma maneira de se
insinuar, de certo modo de pavimentar o caminho para as
perguntas inesperadas que tão casualmente lhe fizera nessa
noite: "Que pretendes dizer quando afirmas que gostas dela?
Queres ir para a cama com ela?" Therese respondeu-Lhe: "Achas
que te diria, se quisesse?", enquanto uma sucessão rápida de
emoções - humilhação, ressentimento, aversão por ele - a
emudecia, quase a impossibilitava de continuar a caminhar ao
seu lado. E, olhando-o de relance, vira-o a observá-la com
aquele sorriso suave e vazio que, recordado agora, Lhe
parecia cruel e mórbido. A sua morbidez poderia ter-lhe
escapado, pensou, não fora o facto de Richard estar tão
claramente a tentar convencê-la de que ela era mórbida.
Therese voltou-se e atirou para a mala a escova de dentes e a
escova do cabelo, mas depois lembrou- se de que tinha uma
escova de dentes em casa de Carol.
- Que queres tu, ao certo, dela, Therese? Que se segue, a
partir daqui?
- Porque estás tão interessado?
Ele fitou-a e, por momentos, ela viu sob a cólera a
curiosidade obcecada que vira antes, como se ele estivesse a
assistir a um espectáculo pelo buraco de uma fechadura. Ela
sabia, porém, que não estava assim tão despreendido. Pelo
contrário, sentia que nunca estivera tão ligado a ela como
agora, nunca tão determinado em não abrir mão dela. Isso
assustava-a. Conseguia imaginar a determinação transformada
em ódio e violência.
182
Richard suspirou e amarrotou o jornal que tinha nas mãos.
- Estou interessado em ti. Não podes dizer-me simplesmente:
Arranja outra qualquer. " Nunca te tratei como tratei as
outras, nunca pensei em ti dessa maneira.
Therese não respondeu.
- Chiça! - Richard atirou o jornal contra a estante e virou-
lhe as costas.
O jornal acertou na Madona que se inclinou para trás, contra
a parede, como se estupefacta, e caiu da estante. Richard
saltou e apanhou-a em ambas as mãos. Olhou para Therese e
sorriu involuntariamente.
- Obrigada -. Therese tirou-lha, levantou-a para a repor no
seu lugar, mas depois, com um gesto rápido, atirou-a ao chão
e a estatueta partiu- se.
- Terry!
A Madona tinha-se partido em três ou quatro bocados.
- Não te preocupes - disse ela, com o coração a bater como se
estivesse furiosa, ou a lutar.
- Mas...
- Ao diabo com ela - interrompeu-o, empurrando os bocados com
o sapato.
Richard saiu um momento depois, batendo com a porta.
Porque fora, pensou Therese, por causa de Andronich ou de
Richard? A secretária do senhor Andronich telefonara-lhe há
perto de uma hora, para a informar que o senhor Andronich
resolvera contratar uma assistente de Filadélfia, em vez
dela. Esse trabalho não estaria, portanto, à sua espera
depois da viagem com Carol. Therese olhou para a Madona
partida. A madeira era muito bela, no interior. Partira-se
sem falhas, ao longo do grão.
Nessa noite, Carol interrogou-a minuciosamente a respeito da
sua conversa com Richard. Irritava Therese vê-la tão
preocupada em saber se ele ficara ou não magoado.
- Não está habituada a pensar nos sentimentos das outras
pessoas - disse-lhe Carol, sem rodeios.
183
Estavam na cozinha a preparar um jantar tardio, porque Carol
dera folga à empregada naquela noite.
- Que razão concreta tem para pensar que ele não está
apaixonado por si? - perguntou Carol.
- Talvez eu não perceba simplesmente como é que ele funciona.
Mas a mim não me parece que exista amor.
Depois, no meio do jantar, no meio de uma conversa a respeito
da viagem, Carol observou subitamente:
- Não devia sequer ter falado com o Richard.
Era a primeira vez que Therese Lhe falava do assunto, lhe
dizia alguma coisa sobre a conversa que tivera com Richard na
cafetaria.
- Porquê? Devia ter-lhe mentido?
Carol parara de comer. Depois empurrou a cadeira e levantou-
se.
- É demasiado jovem para saber o que quer. Ou do que está a
falar. Sim, nesse caso devia mentir.
Therese largou o garfo. Viu Carol tirar um cigarro e acendê-
lo.
- Eu tinha de acabar com ele e acabei. Não voltarei a vê-lo.
Carol abriu uma porta disfarçada no fundo da estante e tirou
uma garrafa. Deitou um pouco do que continha num copo e
fechou a porta com força.
- Porque fez isso agora? Porque não há dois meses, ou daqui a
três meses? E porque me mencionou?
- Bem sei... acho que o assunto o fascina.
- Provavelmente fascina.
- Mas se eu o não voltar, simplesmente, a ver... Não pôde
concluir a frase, dizer que assim ele não poderia segui-la,
espiá-la. Não queria dizer essas coisas a Carol. E, além
disso, havia a recordação dos olhos de Ri chard. - Penso que
ele desistirá. Disse que não podia
competir.
Carol deu uma palmada na testa.
- Não podia competir - repetiu. Voltou para a mesa e deitou
um pouco de água do seu copo no uísque.
- Como é verdade! Acabe o seu jantar. Talvez eu esteja a
exagerar, não sei.
184
Mas Therese não se mexeu. Procedera erradamente. E, na
melhor das hipóteses, mesmo que procedesse acertadamente, não
conseguiria fazer Carol feliz, como Carol a fazia a ela,
pensou pela centésima vez. Carol só estava feliz em certos
momentos, numa ou outra ocasião, momentos que Therese
agarrava e guardava. Um deles fora a noite em que tinham
arrumado as decorações de Natal e Carol dobrara a enfiada de
anjos e os metera entre as páginas de um livro. "Vou guardá-
los", tinha dito. "Com vinte e dois anjos para me defenderem,
não posso perder. " Therese olhou-a, agora, e embora Carol
estivesse a olhá-la também, era através daquele véu de
preocupação que tantas vezes lhe via, que as mantinha em
mundos separados.
-Falas - disse Carol. - Não posso competir. Eainda há quem
fale dos clássicos! Isso é um clássico. Uma centena de
pessoas diferentes dirão as mesmas palavras. Há falas para a
mãe, falas para a filha, para o mtarido e para o amante.
Preferia ver-te morta aos meus pés. É a mesma peça repetida
com elencos diferentes. Que é que dizem que torna uma peça um
clássico, Therese?
- Um clássico... - A voz de Therese soou tensa e delicada. -
Um clássico é uma peça com uma situação humana básica.
Quando Therese acordou, o sol estava no seu quarto. Ficou um
momento quieta, olhando as manchas solares de aspecto aguado
que ondulavam no tecto verde-pálido, lutando para ver se
havia algum som de actividade na casa. Olhou para a sua
blusa, dependurada do ângulo da cómoda. Porque era ela tão
desarrumada em casa de Carol? Carol não gostava. O cão, que
tinha a sua casota algures, para lá das garagens, ladrava
intermitentemente com pouco entusiasmo. Houvera um intervalo
agradável, a noite passada: o telefonema de Rindy. Ela falara
de uma festa de aniversário, às nove e meia. iia oferecer uma
festa assim, quando fizesse anos? Carol respondeu que sim,
evidentemente. E depois
185
disso tinha ficado diferente. Falara da Europa e dos Verões
em Rapallo.
Therese levantou-se e foi à janela, empurrou-a mais para cima
e apoiou-se no parapeito, preparando-se para o frio. Não
havia em lado algum manhãs como as que via daquela janela. O
leito redondo de relva para lá do caminho de carros estava
crivado de dardos de luz, com agulhas de ouro espalhadas numa
coberta verde. Havia cintilações de sol nas folhas húmidas da
sebe e o céu estava de um azul sólido e fresco. Therese olhou
para o lugar, no caminho, onde Abby estivera naquela manhã,
para o pedaço de vedação branca para lá das sebes, que
assinalava o fim do relvado. O solo parecia respirar, jovem,
apesar de o Inverno ter acastanhado a relva. Houvera árvores
e sebes à volta da escola em Montclair, e o verde terminara
sempre em parte de um muro de tijolo vermelho, ou numa
construção de pedra cinzenta que pertencia à escola - uma
enfermaria, uma arrecadação de lenha ou de ferramentas -, e
todas as Primaveras o verde parecera já velho, usado e legado
por uma geração de crianças à seguinte, parte tão integrante
dos aprestes da escola como os livros de estudo e os
uniformes.
Vestiu as calças de xadrez que trouxera de casa, uma das
camisas que deixara de outra visita e que fora lavada e
passada a ferro. Eram oito e vinte. Carol gostava de se
levantar por volta das oito e meia, de ser acordada por
alguém com uma chávena de café, embora Therese tivesse
reparado que nunca mandava Florence fazer isso.
Florence estava na cozinha quando ela desceu, mas ainda só
começara a fazer o café.
- Bom dia - saudou Therese. - Importa-se se preparar o
pequeno-almoço? - Florence não se importara das outras duas
vezes em que entrara e a encontrara a prepará-lo.
- Esteja à sua vontade, menina. Eu frito apenas os meus ovos.
Gosta de fazer coisas para a senhora, não gosta? - disse, mas
como quem faz uma afirmação e não uma pergunta.
186
- Gosto - respondeu Therese, que estava a tirar
dois ovos do frigorífico. Deitou um dos ovos na água
que
começava a aquecer. A sua resposta pareceu-lhe muito
curta, mas que outra poderia dar? Quando se voltou, depois de
preparar o tabuleiro do pequeno-almoço, viu que Florence
metera o outro ovo na água. Therese tirou-o com os dedos.
- Ela só quer um ovo - explicou.
- Esse vai para a minha omeleta.
- Só um? Costumava comer sempre dois.
- Bem... agora não quer.
- Não acha melhor contar o tempo de cozedura, menina? -
Florence lançou-lhe um simpático olhar profissional. - Tem o
relógio para isso em cima do fogão.
Therese abanou a cabeça.
- Sai-me melhor quando calculo -.
Ainda nunca se emganara com o ovo para Carol, que gostava
dele um pouco mais duro que quando era medido pelo relógio.
Olhou para Florence, concentrada agora nos dois ovos
que estava a fritar. O café estava quase todo filtrado. Em
silêncio, Therese preparou a chávena para levar a Carol.
Mais tarde, ainda de manhã, ajudou Carol a recolher
no relvado das traseiras da casa as cadeiras de ferro
branco e o sofá de balouço. O trabalho seria mais fácil
com Florence, disse Carol, mas ela mandara-a fazer
compras e depois tivera o desejo súbito de recolher o
mobiliário. Fora ideia de Harge deixá-lo ali fora todo o
Inverno, mas ela achava-lhe um ar desolador. Por fim
restava uma cadeira, junto da fonte redonda, uma cadeirinha
de ar alambicado, de metal branco, com um assento abaulado e
quatro pés rendilhados. Therese olhou -ae perguntou-se quem
se sentaria nela.
- Gostaria que houvesse mais peças que decorassem fora de
casa - observou.
- Em que é que pensa primeiro, quando começa a
fazer um cenário? Por onde começa?
- Penso na disposição da peça, suponho. Que quer dizer?
- Pensa no tipo de peça de que se trata ou em alguma coisa
que deseje ver?
187
Uma das observações do senhor Donohue perpassa pela mente de
Therese com uma vaga sensação de desagrado. Naquela manhã,
Carol estava com disposição para discutir.
- Acho que está decidida a considerar-me amadora
- respondeu.
- Penso que você é muito subjectiva. Isso é amadorismo, não
é?
- Nem sempre - mas Therese julgou saber o que Carol queria
dizer.
- É preciso saber muito para se ser absolutamente subjectivo,
não lhe parece? Naquelas coisas que me mostrou, penso que é
demasiadamente subjectiva... sem saber o suficiente.
Therese cerrou as mãos dentro das algibeiras. Desejara tanto
que Carol gostasse do seu trabalho, sem o qualificar.
Magoara-a tremendamente que ela não tivesse gostado, ao menos
um pouco, de certos cenários que lhe mostrara. Tecnicamente,
não percebia nada do a sunto, mas era capaz de destruir um
cenário completo com uma frase.
- Creio que um olhar pelo Oeste lhe fará saber. Quando disse
que tinha de voltar? Meados de Fevereiro?
- Bem, agora já não preciso... fiquei a sabê-lo a tempo.
- Que quer dizer? Foi ao ar? O trabalho de Filadélfia?
- Telefonaram. Querem alguém de Filadélfia.
- Oh, minha filha! Lamento.
- Faz parte desta profissão - disse Therese.
A mão de Carol estava na parte de trás do seu pescoço, com o
polegar a esfregar-lhe atrás da orelha, como se estivesse a
fazer festas a um cão.
- Não ia dizer-me.
- Ia, sim.
- Quando?
- Em qualquer altura, na viagem.
- Está muito decepcionada?
- Não - respondeu Therese, positivamente.
188
Aqueceram a última chávena de café, levaram-na para fora,
para a cadeira branca do relvado, e compartilharam-na.
- Vamos almoçar a qualquer lado? - sugeriu Carol. - Vamos ao
clube. Depois preciso de fazer umas compras em Newark. Que me
diz a um casaco? Gostaria de um casaco de tweed.
Therese estava sentada na beira da fonte, com uma mão
comprimida contra a orelha porque lhe doía, do frio.
- Não necessito particularmente de nenhum.
-Mas eu gostaria particularmente de a ver com um.
Therese estava no primeiro andar, a mudar de roupa, quando
ouviu o telefone tocar. E depois Florence dizer:
-Oh, bom dia, senhor Aird... Sim, vou chamá-la imediatamente.
Therese atravessou o quarto e fechou a porta. Agitadamente,
começou a arrumar o quarto, pendurou a sua roupa no roupeiro
e alisou a coberta da cama, que já fizera. Depois Carol bateu
à porta e espreitou para o interior.
- O Harge passa por aqui dentro de alguns minutos. Não creio
que ele se demore.
- Quer que eu saia e dê uma volta? - perguntou Therese, que
não desejava vê-lo.
- Não - respondeu Carol, sorrindo. - Fique aqui em cima e
leia um livro se lhe apetecer.
Therese pegou no livro que comprara na véspera, o Oxford Book
ofEnglish lierse, e tentou ler, mas as palavras permaneciam
desligadas umas das outras e vazias de significado. Tinha a
sensação perturbadora de que estava a esconder-se e, por
isso, foi à porta e abriu-a.
Carol vinha a sair do seu quarto e, durante um momento,
Therese viu passar-lhe pelo rosto a mesma expressão de
indecisão que lhe vira, e recordava, da primeira vez que
entrara ali em casa. Depois disse-lhe:
- Venha para baixo.
O carro de Harge chegou quando elas entravam na
189
sala. Carol foi abrir a porta e Therese ouviu-os
cumprimentarem-se, Carol apenas cordial mas Harge muito bem-
disposto. A seguir Carol entrou com uma comprida caixa de
flores nos braços.
- Harge, esta é Therese Belivet. Creio que já a viste
uma vez.
Os olhos de Harge semicerraram-se um pouco, e depois voltaram
a abrir-se, naturalmente.
- Ah, sim. Como está?
Florence apareceu e Carol entregou-lhe a caixa de flores.
- Ponha-as em qualquer coisa, sim?
- Ah, cá está o tal cachimbo. Bem me parecia - Meteu a mão
por detrás da hera da consola da chaminé e tirou o cachimbo.
- Está tudo bem lá em casa? - perguntou Carol, enquanto se
sentava num lado do sofá.
- Sim. Muito bem -. O sorriso tenso de Harge não
deixava ver-lhe os dentes, mas o seu rosto e os movimentos
rápidos da sua cabeça irradiavam jovialidade e
satisfação
consigo mesmo. Olhou, com um prazer de proprietário, quando
Florence trouxe as flores... rosas vermelhas... numa jarra e
as colocou na mesa pequena, defronte do sofá, Therese desejou
subitamente ter trazido flores a Carol, tê-las trazido em
qualquer da meia dúzia de ocasiões
passadas, e recordou-se das flores que Dannie lhe levara
um dia, quando passara simplesmente pelo teatro.
Olhou para Harge, e o olhar dele desviou-se, a fronte
ergueu-se ainda mais alto, os olhos saltitaram de um lado
para o outro, como se procurasse pequenas mudanças na
sala. Mas podia ser tudo fingimento, o ar de boa disposição,
pensou Therese. E se ele se importava o suficiente para
fingir, então também podia gostar de algum modo de Carol.
- Posso levar uma para a Rindy? - perguntou Harge.
- Claro -. Carol levantou-se e fez menção de partir o caule
de uma flor, mas ele aproximou-se e, com um canivete,
190
cortou o caule e a flor soltou-se.
- São muito bonitas. Obrigada, Harge.
Harge chegou a flor ao nariz. Dirigindo-se em parte a Carol,
em parte a Therese, disse:
- Está um belo dia. Vão dar um passeio de carro?
- Vamos, sim - respondeu Carol. - A propósito, gostava de me
meter no carro e ir até lá, uma tarde da semana que vem.
Talvez terça-feira.
Harge pensou um momento.
- Está bem, eu digo-lhe.
- Falarei com ela pelo telefone. Tencionava dizer à tua
família.
Harge acenou uma vez com a cabeça, num gesto de aquiescência,
e depois olhou para Therese.
- Lembro-me de si. Claro. Estava aqui umas três semanas antes
do Natal.
- Sim, num domingo -. Therese levantou-se. Queria deixá-los
sós. - Adeus, senhor Aird.
-Adeus - repetiu ele, com uma pequena vénia. Enquanto subia,
Therese ouviu-o dizer:
-Bem, que sejam muito felizes, Carol. Não quis deixar de to
dizer. Importas-te?
Era o aniversário de Carol, pensou Therese. Claro, ela não
lhe diria.
Fechou a porta e olhou em redor do quarto, consciente de que
estava a procurar qualquer sinal de que passara ali a noite.
Não encontrou nenhum. Parou ao espelho e olhou-se um momento,
de testa franzida. Não estava tão pálida como há três semanas
atrás, quando Harge a vira, não se sentia a criatura abatida
e assustada que ele então conhecera. Abriu a gaveta de cima e
tirou bâton da mala de mão. Mas ouviu Harge bater à porta e
fechou a gaveta.
- Entre.
- Desculpe. Preciso de levar uma coisa -. Atravessou
rapidamente o quarto, foi à casa de banho, e sorria quando
voltou eom a navalha de barbear na mão.
- Estava no restaurante com Carol no domingo passado, não
estava?
191
- Estava - respondeu Therese.
- A Carol diz que desenha para o teatro.
- Desenho.
Ele olhou do rosto dela para as mãos, para o chão e
novamente para cima.
- Espero que se encarregue de fazer com que a Carol saia o
suficiente. Parece jovem e activa. Faça-a dar
alguns passeios a pé.
Depois saiu desembaraçadamente pela porta fora,
deixando atrás de si um leve cheiro a sabão de barbear.
Therese atirou com o bâton para cima da cama e esfregou
as palmas das mãos nos lados da saia. Porque se dera
Harge ao trabalho de Lhe dar a conhecer que tinha por certo
que ela passava muito tempo com Carol?
- Therese! - chamou Carol, de súbito. - Venhá
para baixo!
Encontrou-a sentada num sofá, a fumar um cigarro.
Harge partira. Olhou para Therese com um pequeno
sorriso. Depois Florence entrou e Carol disse-lhe:
- Florence, pode levá-las para outro lado qualquer.
Ponha-as na sala de jantar.
- Sim, minha senhora.
Carol piscou o olho a Therese.
Ninguém se servia da sala dejantar, Therese sabia-o. Carol
preferia comer em qualquer outro lado.
- Porque não me disse que era o dia dos seus anos?
- Oh! - Carol riu-se. - Não é. O aniversário do
meu casamento. Vá buscar o seu casaco, para sairmos.
Quando saíam em marcha atrás do caminho de carros, Carol
declarou:
- Se há coisa que não posso suportar é um hipócrita.
- Que disse ele?
- Nada que tivesse qualquer importância -. Carol continuava a
sorrir.
- Mas acaba de dizer que ele é um hipócrita.
- Por excelência.
- Finge todo aquele bom humor?
- Oh... isso apenas parcialmente.
192
- Ele disse alguma coisa a meu respeito?
- Disse que parecia uma rapariga simpática. Acha isso uma
novidade? - Carol lançou o carro velozmente numa estrada
estreita que descia para a aldeia. - Disse que o divórcio
demoraria cerca de seis semanas mais do que pensáramos,
devido a mais papelada e burocracia. Isso é novidade. Ele
imagina que ainda poderei mudar de opinião, entretanto. Isso
é hipocrisia. Acho que gosta de se enganar a si mesmo.
"Era a vida, eram as relações humanas sempre assim?",
perguntou-se Therese. Nunca terreno sólido debaixo dos pés.
Sempre uma espécie de saibro, cedendo ligeiramente, ruidoso
para que o mundo inteiro pudesse ouvir e também para que uma
pessoa estivesse sempre à escuta de um passo barulhento,
agressivo, do pé do intruso.
- Carol, eu nunca levei aquele cheque, sabe? - disse Therese,
de súbito. - Meti-o debaixo do naperon da mesa-de-cabeceira.
- Porque pensou agora nisso?
- Não sei. Quer que o rasgue? Comecei a fazê-lo a noite
passada.
- Se insiste.
193
194

Capítulo XIV

Therese olhou para a grande caixa de cartão.


-Não quero levá-la -. Tinha as mãos cheias.
- Posso pedir à senhora Osborne que fique com a comida e
deixe o resto aqui.
- Traga-a - respondeu Carol, dirigindo-se para a porta. Levou
para baixo a última carga de coisas, os livros e os casacos
que Therese resolvera no último instante levar.
Therese voltou a subir a fim de levar a caixa. Chegara uma
hora antes, por mensageiro - uma quantidade de sanduíches
embrulhadas em papel impermeabilizado, uma garrafa de vinho
de amoras pretas, um bolo e uma caixa contendo um vestido
branco que a senhora Semco lhe prometera. Sabia que Richard
não tivera nada a ver com a caixa, pois de contrário viria um
livro ou um bilhete, além do resto.
Um vestido que decidira não levar ainda se encontrava em cima
do sofá e uma ponta da carpete estava dobrada, mas ela
sentia-se impaciente por partir. Fechou a porta e correu pela
escada abaixo com a caixa, passando sem parar pela porta dos
Kelly, que estavam ambos a trabalhar, e pela da senhora
Osborne, de quem se despedira uma hora atrás quando pagara a
renda do mês seguinte.
Therese estava a fechar a porta do carro quando a senhora
Osborne a chamou, dos degraus.
- Telefone! - gritou a mulher e, relutantemente, Therese saiu
do carro, a pensar que era Richard.
195
Era Phil McElroy, querendo saber como correra a entrevista
com Harkevy, na véspera. Ela contara-o a Dannie na noite
anterior, quando tinham jantado juntos. Harkevy não Lhe
prometera nenhum trabalho, mas dissera- lhe que se mantivesse
em contacto, e ela achara que não se tratava apenas de
palavras. Permitira que lhe fosse falar nos bastidores do
teatro onde estava a dirigir os cenários para Winter Torwn.
Escolhera três dos modelos em cartão de Therese e observara-
os com muito cuidado, recusara um por achá-lo um pouco
monótono, apontara uma certa impraticabilidade no segundo e
gostara mais do cenário tipo antecâmara que Therese começara
a fazer na noite em que regressara da sua primeira visita a
casa de Carol. Tinha sido a primeira pessoa que considerara
com serenidade os seus cenários menos conven cionais. Ela
telefonara imediatamente a Carol e contara-lhe como tinha
decorrido o encontro. Falou a Phil da entrevista com Harkevy,
mas não lhe disse que o trabalho para Andronich falhara. Não
o disse, sabia, porque não queria que Richard soubesse. Pediu
a Phil que a informasse da peça que Harkevy ia fazer a
seguir, pois ele dissera-lhe que não se decidira ainda entre
duas peças. As probabilidades de a aceitar como aprendiza
seriam maiores se ele escolhesse a peça inglesa de que lhe
falara na véspera.
- Ainda não sei nenhum endereço para lhe dar, Phil. Sei que
iremos a Chicago.
Phil respondeu-lhe que talvez lhe enviasse uma carta para a
posta restante de lá...
- Era o Richard? - perguntou Carol, quando ela voltou.
- Não. Era o Phil McElroy.
- Não teve, então, notícias do Richard?
- Nos últimos dias, não. Mas recebi um telegrama dele esta
manhã. - Therese hesitou, mas depois tirou-o da
algibeira e leu-o: - "EU NÃO MUDEI. NEM TU. ESCREVE-ME. AMO-
TE. RIChARD".
- Acho que lhe devia telefonar - disse Carol.
- Telefone-lhe da minha casa.
196
Passariam a noite em casa de Carol e partiriam de manhã cedo.
- Veste aquele vestido esta noite?
- Experimento-o. Parece um vestido de noiva.
Therese vestiu o vestido pouco antes de jantar. Ficava-lhe
abaixo da barriga da perna e era atado atrás, na ántura, por
compridas tiras brancas cosidas à frente e bordadas. Desceu
para o mostrar a Carol, que encontrou na sala a escrever uma
carta.
- Olhe - disse Therese, a sorrir.
Carol olhou-a demoradamente e depois aproximou-se e examinou
o bordado da cintura.
- É uma peça de museu. Fica adorável nele. Use-o esta noite,
sim?
- É tão rebuscado -. Therese não queria usá-lo, porque lhe
recordava Richard.
- Que diabo de estilo é esse... russo?
Therese deu uma gargalhada. Gostava da maneira como Carol
praguejava, sempre casualmente e quando mais ninguém podia
ouvi-la.
- É? - insistiu Carol.
- É o quê? - perguntou Therese a subir a escada.
-Onde adquiriu esse hábito de não responder às pessoas? -
indagou Carol, com a cólera a tornar-lhe a voz subitamente
ríspida.
Os seus olhos tinham a luz branca irada que lhe vira daquela
vez em que se recusara a tocar piano. E o que a irava agora
era uma ninharia semelhante.
- Desculpe, Carol. Suponho que não a ouvi.
-Vá - disse-lhe Carol, voltando-lhe as costas.
-Suba e dispa-o.
Era mais uma vez Harge, pensou Therese, que hesitou um
momento e depois subiu, desatou a cintura e as mangas, viu-se
ao espelho e voltou a atar tudo de novo. Se Carol queria que
continuasse com ele vestido, continuaria.
Prepararam elas próprias o jantar porque Florence já começara
as suas três semanas de férias. Abriram uns boiões especiais
de umas coisas que Carol disse que ti-
197
nha antes do jantar. Therese pensou que o mau humor de Carol
passara, mas quando começou a servir-se de um segundo
stinger, ela disse-lhe secamente:
- Acho que não devia beber mais disso.
E Therese submeteu-se, sorrindo. E o mau hunor continuou.
Nada que Therese dissesse ou fizesse conseguia mudá-lo, e ela
culpava o vestido inibidor da sua capacidade de pensar nas
coisas acertadas para dizer.
Levaram castanhas maceradas em conhaque e café para a
marquise de cima, depois do jantar, mas falaram menos uma com
a outra, na semiescuridão, e Therese sentiu-se ensonada e
muito deprimida.
Na manhã seguinte, encontrou um cartucho de papel
no degrau da porta das traseiras. No interior estava um
macaco de brinquedo, com pelagem cinzenta e branca.
Mostrou-o a Carol.
- Meu Deus! - exclamou ela docemente, e sorriu.
- Jacomo. Pegou no macaco e passou o dedo indicador
pela face branca ligeiramente suja. - A Abby e eu
costumávamos tê-lo pendurado no vidro de trás do carro.
- Foi ela que o trouxe? A noite passada?
- Suponho que sim -. Carol dirigiu-se para o
carro, com o macaco e uma mala de viagem.
Therese lembrava-se de ter passado pelo sono e acordado na
cadeira suspensa, num silêncio absoluto, e
encontrar Carol sentada no escuro, de olhos fixos
em frente. Carol devia ter ouvido o carro de Abby a noite
passada. Therese ajudou-a a arrumar as malas e a maleta de
viagem na retaguarda do carro.
- Porque não entrou ela? - perguntou.
- Oh, a Abby é assim - respondeu Carol, sorrindo
com a timidez fugaz que sempre surpreendia Therese.
- Porque não vai telefonar ao Richard?
Therese suspirou.
Cocktails feitos de conhaque, creme de menta e gelo. (N. da
T. )
198
- Agora não posso, mesmo que quisesse. A esta hora ele já
saiu de casa -. Eram oito e quarenta e as aulas dele
começavam às nove.
- Telefone então à família dele. Não lhes vai agradecer a
caixa que lhe enviaram?
- Tencionava escrever-lhes uma carta.
- Telefone-lhes agora e não terá de escrever a carta. De
resto, é muito mais simpático telefonar.
Foi a senhora Semco que atendeu o telefone. Therese elogiou o
vestido e o trabalho de costura e agradeceu-lhe a comida e o
vinho.
- O Richard acaba de sair - disse a senhora Semco. - Vai
sentir-se terrivelmente só. Mesmo assim, já andava por aí
tristonho -. Mas riu- se, soltou a sua gargalhada vigorosa e
aguda que enchia a cozinha onde Therese sabia que ela estava,
uma gargalhada que vibraria pela casa toda e chegaria mesmo
ao quarto vazio de Richard, no andar de cima. - Está tudo bem
entre si e Richard? - perguntou depois, com uma suspeita
muito ténue na voz, embora Therese soubesse que continuava a
sorrir.
Respondeu que sim. E prometeu que escreveria. Depois sentiu-
se melhor por ter telefonado.
Carol perguntou-lhe se fechara a janela do primeiro andar, e
Therese voltou a subir porque não se lembrava. Não fechara, e
também não fizera a cama, mas agora não havia tempo para
isso. Florence podia tratar da cama, quando viesse na
segunda-feira para fechar a casa.
Carol estava a telefonar quando Therese desceu. Olhou para
cima, para Therese, sorriu-lhe e estendeu o telefone para
ela. Therese percebeu logo, pelo primeiro som que ouviu, que
era Rindy.
... em... hem... em casa do senhor Byron. É uma quinta.
Alguma vez lá esteve, mãe?
- Onde é, minha querida?
- Em casa do senhor Byron. Ele tem cavalos. Mas não são dos
que a mãe gostaria.
- Ah! Porquê? - perguntou Carol.
- Bem, estes são pesados.
199
Therese esforçou-se por detectar alguma coisa na voz aguda,
desembaraçada, que lembrava a de Carol, mas não conseguiu.
- Está? - perguntou Rindy. - Mãe?
- Ainda aqui estou.
- Agora tenho de dizer adeus. O paizinho está pronto para
sair -. E tossiu.
- Tens tosse? - perguntou Carol.
- Não.
- Então não tussas para o telefone.
- Gostava que me levasse na viagem.
- Bem, não posso, porque tens escola. Mas faremos viagens
este Verão.
- Ainda me pode telefonar?
- Na viagem? Claro que sim. Telefonarei todos os dias -.
Carol pegou no telefone e sentou-se com ele. mas continuou a
olhar para Therese no minuto ou mais que durou a conversa.
- Ela parece tão séria - observou Therese.
- Esteve a contar-me o grande dia de ontem. O Harge deixou-a
fazer gazeta.
Carol vira Rindy no dia anterior a esse, recordou Therese.
Tinha sido uma visita agradável, a julgar pelo que ela lhe
dissera ao telefone, mas não mencionara
quaisquer pormenores e Therese não lhe perguntara nada.
Quando se preparavam para partir, Carol decidiu fazer um
último telefonema a Abby. Therese voltou para a cozinha
porque estava muito frio no carro.
- Não conheço cidades pequenas nenhumas no Ilinóis - estava
Carol a dizer. - Ilinóis porquê?... E bem, Rockford... Não me
esquecerei, pensarei em rocfort... tomarei bem conta dele.
Gostaria que tivesses entrado, minha tonta... Bem, estás
enganada, muito enganada.
Therese bebeu o resto de café que Carol não acabara e que
deixara na mesa da cozinha, bebeu pondo os lábios na mancha
de bâton.
- Nem uma palavra - disse Carol, arrastando a voz.
200
- Ninguém, que eu saiba, nem mesmo a Florence... Bem, faz
isso, minha querida. E agora adeus.
Cinco minutos depois, deixavam a cidade de Carol pela auto-
estrada assinalada a vermelho no mapa, a mesma que
utilizariam até Chicago. O céu estava carregado. Therese
olhava para a região que, entretanto, se lhe tornara
familiar, o aglomerado de matas à esquerda, por onde a
estrada para Nova Iorque passava, o pau de bandeira alto, ao
longe, assinalando o clube a que Carol pertencia.
Therese deixava entrar uma nesga de ar pela sua janela.
Estava muito frio e o irradiador aceso sabia-lhe bem, a
aquecer-lhe os tornozelos. O relógio do painel indicava que
faltava um quarto para as dez, e ela pensou, de súbito, nas
pessoas que trabalhavam no Frankenberg's, ali encurraladas ao
quarto para as dez da manhã, aquela manhã, e amanhã de manhã,
e depois de amanhã, com os ponteiros dos relógios a
controlarem cada movimento que faziam. Mas os ponteiros do
relógio do painel do carro não significavam agora nada para
Carol nem para ela. Dormiriam ou não dormiriam, conduziriam
ou não conduziriam, conforme lhes agradasse. Pensou na
senhora Robichek, vendendo camisolas naquele preciso momento,
no terceiro andar, iniciando ali outro áno, o seu quinto ano.
- Tão calada, porquê? - observou Carol. - Que se passa?
- Nada -. Não queria falar. No entanto, tinha a sensação de
que milhares de palavras lhe estrangulavam a ggarganta e que
talvez só a distância, milhares de quilómetros, pudesse
soltá-las. Talvez fosse a própria liberdade que a
estrangulava.
Algures na Pensilvânia passaram por um trecho de ar pálido,
como se houvesse uma fenda no céu, mas por volta do meio-dia
começou a chover. Carol praguejou, embora o som da chuva
fosse agradável, tamborilando descompassadamente no pára-
brisas e no tejadilho.
- Sabe do que me esqueci? - perguntou-lhe Carol.
- De uma gabardina. Tenho de arranjar uma em qualquer lado.
201
E, de repente, Therese lembrou-se de que se esquecera do
livro que andava a ler. E estava uma carta para Carol nele,
uma folha de papel que saía de ambas as extremidades do
livro. Diabo! Estivera separado dos outros livros e fora por
isso que o esquecera, na mesa-de-cabeceira. Desejou que
Florence não decidisse lê-la. Tentou lembrar-se se escrevera
o nome de Carol na carta, e não conseguiu. E o cheque. Também
se esquecera de o rasgar.
- Carol, guardou aquele cheque?
- O cheque que lhe dei? A Therese disse que o ia rasgar.
- Não rasguei. Continua debaixo do naperon.
- Bem, não tem importância.
Quando pararam para meter gasolina, Therese tentou comprar
uma cerveja preta, de que Carol às vezes gostava, numa
mercearia que ficava ao lado da estação de serviço, mas só
tinham cerveja normal. Comprou uma lata, porque Carol não
apreciava. Depois metera por uma pequena estrada que saía da
auto-estrada, pararam e abriram a caixa de sanduíches que a
mãe de Richard preparara. Havia também pickles condimentados
com endro, com queijo mozzarella e dois ovos cozidos. Therese
esquecera-se de pedir um abre-latas e por isso não pôde abrir
a lata de cerveja; mas havia café no termo. Pôs a lata de
cerveja no chão, na retaguarda do carro.
- Caviar. Que amabilidade, que grande amabilidade a deles -
disse Carol olhando para o recheio de un sanduíche. - Gosta
de caviar?
- Não. Quem me dera gostar.
- Porquê?
Therese observou Carol que dava uma dentadinha na sanduíche,
da qual retirara a fatia de pão de cima com uma dentadinha no
ponto onde havia mais caviar.
- Porque as pessoas gostam sempre tanto de caviar quando
gostam - respondeu.
Carol sorriu e continuou a mordiscar a sanduíche devagarinho.
202
- É um gosto adquirido. Os gostos adquiridos são
sempre mais agradáveis... e mais dificeis de perder.
Therese deitou mais café na chávena que partilhavam. Ela
estava a adquirir um gosto por café forte, simples.
- Como eu estava nervosa a primeira vez em que
segurei esta chávena! A Carol trouxera-me café nesse
dia. Lembra-se?
- Lembro.
- Porque Lhe juntou natas, dessa vez?
- Pensei que gostaria. Mas porque estava tão nervosa?
Therese lançou-lhe um olhar rápido.
- Estava muito agitada a seu respeito - respondeu,
levantando a chávena. Depois olhou de novo para Carol
e viu uma imobilidade súbita, como um choque, na sua
cara. Já a vira assim duas ou três vezes, quando lhe dissera
alguma coisa semelhante àquela, sobre que sentia, ou se Lhe
fizera algum elogio extravagante. Não saberia
dizer se isso lhe agradava ou desagradava. Observou
Carol, enquanto ela enrolava o papel impermeabilizado à
volta da outra metade da sanduíche.
Havia bolo, mas Carol não quis. Era o bolo castanho, de
especiarias, que Therese comera muitas vezes
em casa de Richard. Voltaram a guardar tudo na mala
onde iam os pacotes de cigarros e a garrafa de uísque, com um
cuidado e arrumo minuciosos que teriam irritado Therese
noutra pessoa que não fosse Carol.
- Disse que Washington era o seu estado natal, não
disse, Carol?
- Nasci lá, e o meu pai encontra-se lá agora. Escrevi-lhe a
dizer que talvez o visitássemos, se chegarmos tão
longe.
- Ele é parecido consigo?
- Eu sou parecida com ele, sim... mais que com a
minha mãe.
- É estranho pensar em si como tendo uma família.
- Porquê?
- Porque eu penso simplesmente na Carol como a
Carol. Sui generis.
203
Carol sorriu com a cabeça erguida enquanto guiava.
- Está bem, continue.
- Irmãos e irmãs? - perguntou Therese.
- Uma irmã. Suponho que também quer saber tudo a respeito
dela. Chama-se Elaine, tem três filhos e viv em Virgínia. É
mais velha que eu e não sei se você gostaria dela. Era capaz
de a achar enfadonha.
Sim, Therese conseguia imaginá-la como uma som bra de Carol,
com todas as feições de Carol enfraqueci- das e diluídas.
À tarde pararam num restaurante da berma da estrada que tinha
uma aldeia holandesa na montra da frente. Therese apoiou-se
no varão, ao lado, e olhou-a. Havia um pequeno rio que saía
de uma torneira, numa extremidade, corria num leito oval e
fazia girar um moi nho de vento. Pequenas figuras vestidas à
holandesa espalhavam-se pela aldeia, paradas em manchas de
relva verdadeira. Therese pensou no comboio eléctrico da
Secção de Brinquedos do Frankenberg's e na fúria que o
impelia a correr pela linha oval, que era mais ou menos do
tamanho do curso de água.
- Nunca lhe falei no comboio do Frankenberg's - disse Therese
a Carol. - Reparou nele quando...
- Um comboio eléctrico? - respondeu Carol. Therese estivera a
sorrir, mas sentiu de súbito qualquer coisa a apertar-lhe o
coração. Aquilo era demasiado complicado para aprofundar e a
conversa ficou por ali.
Carol pediu sopa para ambas. Estavam entorpecidas e
enregeladas do carro.
- Não sei se irá gostar realmente desta viagem, Therese.
Prefere coisas reflectidas num espelho, não é verdade? Tem a
sua concepção pessoal de tudo. Comó aquele moinho de vento.
Para si, é praticamente tão bom como estar na Holanda.
Pergunto-me se alguma vez gostará de ver montanhas a sério, e
pessoas a sério:
Therese sentiu-se esmagada como se Carol a tivesse acusado de
mentir. E achou que Carol também quisera dizer que ela tinha
uma concepção pessoal dela, Carol, e que isso lhe
desagradava.
204
Pessoas a sério? Lembrou-se de repente da senhora Robichek.
E de que fugira dela por a achar hedionda.
- Como espera conseguir criar jamais alguma coisa se obtém
todas as suas experiências em segunda mão?perguntou Carol em
voz suave e calma, e todavia implacável.
Carol fazia-a sentir que não fizera nada, que não era
absolutamente nada, como um fiapo de fumo. Carol vivera como
um ser humano, casara e tinha uma filha.
O velho saíra de detrás do balcão e dirigia-se para elas.
Coxeava. Parou junto da mesa onde se tinham sentado e cruzou
os braços.
- Alguma vez estiveram na Holanda? - perguntou
agradavelmente.
- Não, eu não estive - respondeu Carol. - Mas suponho que o
senhor esteve. A aldeia que está na montra foi feita por si?
Ele acenou afirmativamente.
- Levei cinco anos a fazê-la.
Therese olhou para os dedos ossudos do homem, para os braços
magros com as veias cor de púrpura serpenteando logo abaixo
da pele fina. Avaliava melhor que Carol o trabalho que a
pequena aldeia exigira, mas não foi capaz de dizer uma
palavra.
- Tenho bons chouriços e presuntos na porta ao lado, se
gostar de produtos genuínos da Pensilvânia - disse o homem a
Carol. - Criamos os nossos próprios porcos, que são abatidos
e curados aqui mesmo.
Entraram na loja ao lado do restaurante, que parecia uma
caixa caiada de branco. Pairava nela um cheiro delicioso a
presunto fumado, de mistura com o cheiro de fumo de lenha e
especiarias.
- Vamos escolher qualquer coisa que não tenhamos de cozinhar
- disse Carol, a olhar para o balcão frigorífico. - Queremos
um pedaço disto - acrescentou dirigindo-se ao homem novo, de
boné com orelheiras.
Therese lembrou-se de ter estado na charcutaria com a senhora
Robichek e de ela comprar fatias finas de salame e chouriço
de fígado. Um letreiro na parede anunciava
205
que mandavam os produtos para todo o lado, e ela pensou em
enviar à senhora Robichek um dos grandes chouriços envoltos
em pano, imaginou o deleite que se estamparia no seu rosto
quando ela abrisse a encomenda, com mãos trémulas, e
encontrasse um chouriço. Mas deveria ela, perguntou-se
Therese, fazer um gesto qué era provavelmente motivado pela
piedade, ou por um sentimento de culpa, ou até mesmo por
alguma perversidade sua? Franziu a testa, afundada num mar
sem norte nem gravidade, no qual a única coisa que sabia era
que podia interpretar mal os seus próprios impulsos.
- Therese... Therese voltou-se e a beleza de Carol
transtornou-a como um vislumbre da Vitória Alada de
Samotrácia. Carol perguntou- Lhe se lhe parecia que deviam
comprar um presunto inteiro.
O jovem empregado empurrou todos os embrulhos por cima do
balcão e aceitou a nota de vinte dólares que Carol lhe
estendeu. Therese pensou na senhora Robichek a empurrar
tremulamente a sua nota de um dólar e a moeda de vinte e
cinco cêntimos, no balcão, naquela noite.
- Interessa-lhe mais alguma coisa, Therese?
- Pensei que podia enviar uma coisa a uma pessoa. Uma mulher
que trabalha no armazém. Ela é pobre e uma vez convidou-me
para jantar.
- Que mulher? - indagou Carol, recebendo o troco.
- Não quero realmente mandar- lhe nada -. De repente, a única
coisa que ela queria era ir-se embora.
Carol olhou-a de testa franzida, através do fumo da cigarro.
- Mande.
- Não quero. Vamo-nos embora, Carol -. Era outra vez como o
pesadelo, em que não conseguia fugir
dela.
- Mande - repetiu Carol. - Feche a porta e mande-Lhe qualquer
coisa.
Therese fechou a porta, escolheu um dos chouriços
206
de seis dólares e escreveu num dos cartões de presente:
"Isto é da Pensilvânia. Espero que chegue para algumas manhãs
de domingo. Com afecto, Therese Belivet. "
Mais tarde, no carro, Carol fez-lhe perguntas a respeito da
senhora Robichek, a que, como sempre, Therese respondeu
sucintamente e com a sinceridade involuntária e absoluta que
depois a deixava sempre deprimida. A senhora Robichek e o
mundo em que ela vivia eram tão diferentes do de Carol que
era como se ela estivesse a descrever outra espécie de vida
animal, algum monstro horrendo que vivia noutro planeta.
Carol não fazia qualquer comentário ao que ouvia, limitava-se
a fazer perguntas e mais perguntas enquanto conduzia.
Continuou sem fazer qualquer comentário quando não havia mais
nada para perguntar, mas a expressão tensa e pensativa com
que escutara permaneceu no seu rosto mesmo quando começaram a
falar de outras coisas. Therese cerrou os dedos sobre os
polegares. Porque deixava a senhora Robichek atormentá-la? E
agora que metera Carol no assunto, nunca mais se livraria
dele.
- Por favor não volte a falar dela, Carol. Prometa-me.
207

208

CAPíTULO XV

Carol dirigiu-se, descalça, com passos curtos, para o


chuveiro, ao canto, a resmungar contra o frio. Tinha as unhas
dos pés pintadas de vermelho e vestia um pijama azul
demasiado grande.
- A culpa é sua, por abrir tanto a janela - disse-lhe
Therese.
Carol correu a cortina e ela ouviu a águajorrar, com força.
- Ah, divinamente quente! - exclamou. - Melhor que a noite
passada.
Era um chalé turístico de luxo, com uma alcatifa espessa,
paredes apaineladas de madeira e tudo, desde panos para
limpar sapatos fechados em embalagens de celofane a
televisão.
Therese estava sentada na sua cama, de roupão, a consultar um
mapa rodoviário, que ia medindo a palmo. Palmo e meio era,
teoricamente, mais ou menos um dia de viagem, embora fosse
provável que não avançassem tanto.
- Hoje poderíamos atravessar todo o Ohio - disse Therese.
- Ohio. Famoso pelos seus rios, borracha e certas vias-
férreas. À nossa esquerda a famosa ponte levadiça
Chillichothe, onde vinte e oito homens chacinaram uma Yrz
cem. parvalhões.
Therese riu-se.
- E onde Lewis e clark acamparam, um dia
209
- acrescentou Carol. - Acho que hoje vou vestir as minhas
calças. Importa-se de ver se estão nessa mala? Se não
estiverem, terei de ir ao carro. Não são as claras que quero,
são as de gabardina azul-marinho.
Therese abriu a grande mala de viagem de cartão que se
encontrava aos pés da cama. Estava cheia de camisolas, roupa
interior e sapatos, mas quanto a calças, nada. Viu um tubo
niquelado, que saía de uma camisola dobrada. Pegou na
camisola e achou-a pesada. Desdobrou-a e teve um sobressalto
tão grande que quase a deixou cair. Era uma arma com a
coronha branca.
- Não? - perguntou Carol.
- Não -. Therese enrolou de novo a arma na camisola e
arrumou-a como a encontrara.
- Querida, esqueci-me da minha toalha. Creio que está numa
cadeira.
Therese pegou-lhe e levou- a, e, no seu nervosismo, ao pôr a
toalha na mão estendida de Carol os seus olhos desceram do
rosto dela para os seus seios nus e mais para baixo, e viu
surpresa no olhar de Carol, quando voltou. Fechou os olhos
com força e dirigiu-se lentamente para a cama, vendo à frente
das pálpebras cerradas a imagem do corpo nu de Carol.
Tomou por sua vez um duche e, quando saiu, Carol estava
defronte do espelho, quase vestida.
- Que é que se passa? - perguntou Carol.
- Nada.
Carol virou-se para ela, a pentear o cabelo ligeiramente
escurecido pelo duche. Tinha um cigarro entre os lábios
brilhantes, acabados de pintar.
- Já imaginou quantas vezes por dia me obriga a fazer essa
pergunta? Não acha que há um pouco de falta de consideração
nisso?
Durante o pequeno-almoço, Therese perguntou:
- Porque traz aquela arma consigo?
- Ah! então é isso que a incomoda. É a arma de Harge, mais
uma coisa de que ele se esqueceu -. Carol falava em tom
casual. - Achei que seria melhor trazê-la do que deixá-la.
210
- Está carregada?
- Está, está carregada. O Harge tem licença, porque uma vez
nos entrou um ladrão em casa.
- Sabe usá-la? Carol sorriu-lhe.
- Não sou um ás no gatilho, mas sei usá-la. Suponho que isso
a preocupa. Descanse, não espero ter de a usar.
Therese não falou mais no assunto. Mas sempre que pensava na
arma ficava transtornada. Pensou no caso na
noite seguinte, quando um mandarete largou a mala,
pesadamente, no passeio. Imaginou que a arma se poderia
disparar, com a mala a ser largada daquela maneira.
Tinham tirado umas fotografias no Ohio, e como eles
prometeram que as teriam reveladas na manhã seguinte, cedo,
passaram um longo serão e uma noite numa cidade chamada
Delfiance. Passaram uma parte desse tempo a passear pelas
ruas, vendo montras, percorrendo residenciais silenciosas,
onde se viam luzes acesas nas
salas da frente e as casas pareciam tão confortáveis como
ninhos de aves. Therese receara que Carol se
aborrecesse com passeios sem destino, mas foi ela própria que
sugeriu que percorressem mais um quarteirão, e subissem a
encosta toda para ver o que ficava do outro lado. Carol falou
de si e de Harge. Therese tentou resumir numa palavra o que
afastara Carol e Harge, mas evitou as palavras quase
imediatamente: tédio, ressentimento indiferença. Carol
contou-lhe da vez em que arge levara Rindy numa viagem para
pescarem e não dera notícias durante dias, como retaliação
por ela se ter recusado a passar as férias com ele na casa de
Verão da
família, no Massachusetts. Tratava-se de uma coisa mútua. E
os incidentes não tinham sido o princípio. Carol pôs duas das
fotografias na sua carteira, uma de Rindy de calções de
montar e chapéu de coco, que fora tirada na primeira parte do
rolo, e outra de Therese de cigarro na boca e cabelo
esvoaçando ao vento. Havia
a fotografia pouco lisonjeira de Carol, encolhida de
211
frio no seu casaco, que ela disse que enviaria a Abl por
estar tão má.
Chegaram a Chicago ao fim de uma tarde, entraram devagar na
sua desordem cinzenta e extensa atrás de um grande camião de
uma empresa distribuidora de carne. Therese ia inclinada para
a frente, chegada ao pára-brisas. Não se lembrava de nada
acerca da cidade, da viagem que lá fizera com o pai. Carol
parecia conhecer Chicago tão bem como conhecia Manhattan.
Mostrou-lhe o famoso Loop, e pararam um bocado a ver os
comboios e as multidões da hora de ponta das cinco e meia da
tarde. Não se comparava com o manicómio em que Nova Iorque se
transformava às cinco e meia.
Na principal estação dos correios, Therese encontrou um
postal de Dannie, nada de Phil, e uma carta de Richard. Deu
uma vista de olhos à carta e notou que começava e terminava
afectuosamente. Não esperara outra coisa: Richard obtendo de
Phil a morada da posta restante e escrevendo-lhe uma carta
afectuosa. Meteu a carta na algibeira antes de voltar para
junto de Carol.
- Alguma coisa?
- Só um postal. Do Dannie. Ele acabou os exames. Carol seguiu
para o Drake Hotel. Tinha o chão aos quadrados pretos e
brancos e um repuxo no átrio, e Therese achou-o sumptuoso. No
quarto, Carol despiu o casaco e atirou-se para cima de uma
das duas camas.
- Conheço aqui algumas pessoas - disse, sonolentamente. -
Procuramos alguém?
Mas adormeceu antes de decidirem.
Therese olhou pela janela para o lago debruado a luzes e para
a linha irregular e desconhecida dos edifícios altos contra o
céu ainda acinzentado. A cidade parecia indistinta e
monótona, como uma pintura de Pisa
- uma comparação de que Carol não gostaria, pensou. Apoiou-se
no parapeito, de olhos fitos na cidade, observando a luz dos
faróis de um carro distante a ser fracionada em pontos e
traços enquanto ele passava por detrás das árvores. Estava
feliz.
- Porque não telefona a pedir uns cocktails? - sussurrou a
voz de Carol atrás dela.
212
- De que tipo gostaria?
- E você?
- Martinis.
Carol assobiou.
- Gibsons duplos -. Depois interrompeu-a, quando ela
telefonava, para acrescentar: - E um prato de canapés. E já
agora quatro Martinz.
Therese leu a carta de Richard enquanto Carol estava no
duche. Toda a carta era afectuosa. "Tu não és como nenhuma
das outras raparigas", dizia ele. Esperara e comtinuaria a
esperar, porque tinha a certeza absoluta deque podiam ser
felizes juntos. Queria que ela lhe escrevesse todos os dias,
Lhe mandasse ao menos um postal. Contou-lhe que uma noite
relera as três cartas que ela lhe escrevera no último Verão,
quando ele estivera em Kingston, Nova Iorque. A carta
respirava um sentimen talismo que não era de modo algum
próprio de Richard, o primeiro pensamento de Therese foi que
ele estava a sofrer, Talvez para mais tarde lho deitar em
cara. A sua segunda reacção foi de aversão. Sentiu
fortalecer-se a sua decisão final: não lhe escrever, não Lhe
dizer mais nada, seria o caminho mais curto para acabar com
tudo.
Os cocktails chegaram e Therese pagou-os, em vez de assinar o
talão. Não conseguia nunca pagar uma conta, a não ser nas
costas de Carol.
- Vai usar esse conjunto preto? - perguntou, quando Carol
voltou do duche.
- Ter de ir até ao fundo daquela mala? - protestou Carol,
dirigindo-se para a bagagem. - Tirá-lo, escová-lo e levar
meia hora a tirar-lhe as rugas a vapor?
- Levaremos meia hora a beber isto.
-A sua capacidade de persuasão é irresistível!
Carol levou o fato para a casa de banho e abriu a tornei ra
da banheira.
Era o fato que ela vestira no dia em que tinham almoçado
juntas pela primeira vez.
-Já reparou que esta é a primeira bebida que tomo desde que
saímos de Nova Iorque? - perguntou Carol.
- Claro que não reparou. Sabe porquê? Porque estou feia.
213
- Está linda - afirmou Therese.
E Carol lançou-lhe o sorriso depreciativo que el adorava e
dirigiu-se para o toucador. Pôs um lenço de seda amarelo ao
pescoço, atou-o descuidadamente e começou a pentear- se. A
luz do candeeiro emoldurava sua figura como um quadro, e
Therese teve a impressão de que tudo aquilo já acontecera
antes. De súbito, lembrou-se: a mulher à janela, a escovar o
cabelo comprido. lembrou-se até dos próprios tijolos da
parede, da textura da chuva nevoenta daquela manhã.
- Que tal um pouco de perfume? - perguntou Carol, dirigindo-
se para ela com o frasco. Tocou-lhe com os dedos na testa, na
linha de nascimento do cabelo, onde a beijara naquele dia.
- Lembra-me a mulher que uma vez vi - disa Therese -, algures
nas imediações da Lexington. Não a Carol, mas a luz. Ela
estava a pentear-se -. calou-se mas Carol ficou à espera de
que ela continuasse. carol esperava sempre, e ela nunca
conseguia dizer exactamente o que queria.
- Foi de manhã cedo, quando e ia para o trabalho, e lembro-me
de que tinha começad a chover - continuou, desajeitadamente.
- Vi-a numa janela -. Não podia na verdade continuar, dizer
que ficara ali parada uns três ou quatro minutos, com uma
intensidade tão grande que a esvaía de forças. seria bem
recebida se se dirigisse à casa e batesse à porta? desejando
poder fazer isso em vez de ir para o seu emprego na Pelican
Press.
- Minha pequena órfã.
Therese sorriu. Não havia nada de lúgubre, nenhuma intenção
de ofender na palavra, quando Carol disse.
- Como é a sua mãe, no aspecto?
- Tinha cabelo preto - disse Therese muito depressa. - Não se
parecia nada comigo -. Dava sempre por si a falar da mãe no
passado, embora ela estivesse viva naquele momento, algures
no Connecticut.
- Está realmente convencida de que ela não quererá, nunca,
voltar a vê-la? - Carol estava parada diante do espelho.
214
- Acho que não quererá.
- E a família do seu pai? Não disse que ele tinha um irmão?
- Nunca o conheci. Era geólogo, ou coisa parecida, e
trabalhava para uma companhia petrolífera. Não sei onde está.
- Era mais fácil falar do tio que nunca conhecera.
- Como se chama a sua mãe?
- Esther... senhora Nicholas Strully -. O nome significava
tão pouco para ela como um nome que visse numa lista
telefónica. Olhou para Carol, subitamente arrependida de o
ter dito. Carol seria capaz, um dia... Apoderou-se dela um
sentimento de perda, de impotência. Afinal, sabia tão pouco a
respeito de Carol.
- Eu nunca o direi - prometeu-lhe ela, olhando-a.
- Não voltarei a mencioná-lo. Se esse segundo Martini a vai
deixar neura, não o beba. Não a quero neura esta noite.
O restaurante onde jantaram também dava para o lago. Ojantar
foi um verdadeiro banquete, com champanhe e conhaque no fim.
Era a primeira vez na sua vida que Therese se sentia um pouco
embriagada, na realidade muito mais embriagada do que
desejaria que Carol a visse. A sua impressão de Lakershore
Drive ficaria para sempre a de uma larga avenida guarnecida
de mansões todas parecidas com a Casa Branca, em Washington.
Na sua memória ficaria a voz de Carol a indicar-lhe uma casa
aqui e outra ali, onde estivera antes, e a perturbadora
consciência de que aquele fora durante algum tempo o mundo de
Carol, como Rapallo, Paris e outros lugares que Therese não
conhecia tinham, durante algum tempo, sido a moldura de tudo
quanto Carol fazia.
Nessa noite, Carol sentou-se na beira da sua cama, a fumar um
cigarro, antes de apagarem a luz. Therese estava deitada na
sua própria cama a observá-la sonolentamente, tentando
decifrar o significado da expressão inquieta e desnorteada
dos olhos de Carol, que fitavam por um momento qualquer coisa
no quarto e depois procuravam
215
outra. Seria nela que pensava, ou em Harge, ou em Rindy?
Carol pedira que a acordassem às sete da manhã, a fim de
telefonar a Rindy antes de a filha ir para a escola. Therese
recordou a conversa delas em De fiance. Rindy zangara-se com
outra menina, e Carol passara quinze minutos a falar do
assunto e a tentar persuadir a filha de que deveria dar o
primeiro passo e pedir desculpa. Therese ainda sentia os
efeitos do que bebera, o formigamento do champanhe que a
aproxima va tão dolorosamente de Carol. Achava que se
pedisse; simplesmente, Carol a deixaria dormir na mesma cama
com ela. Queria, porém, mais que isso, queria beijá-la;
sentir os seus corpos encostados um ao outro. Pensou nas duas
raparigas que vira no Palermo. Elas faziam isso, tinha a
certeza, e até mais. Empurrá-la-ia Carol subi tamente,
repugnada, se ela quisesse apenas apertá-la nos braços? E a
afeição, fosse ela qual fosse, que Carol lhe ti nha agora
desapareceria nesse instante? Uma visão da rejeição fria de
Carol levou-lhe toda a coragem, que vol tou lenta e
humildemente na pergunta que a si mesma fez: não poderia
pedir- lhe simplesmente para dormir na mesma cama com ela?
- Carol, importava-se se...
- Amanhã vamos ver os currais temporários - disse Carol ao
mesmo tempo, e Therese desatou a rir.
- Que há de tão divertido no que eu disse? - pergun tou,
apagando o cigarro, mas também ela a sorrir.
- Sei lá, é divertido. Tremendamente divertido- respondeu
Therese ainda a rir, a rir com um riso que consumia toda a
ânsia e intento da noite.
- Esse risinho é do champanhe - comentou Carol e apagou a
luz.
Ao fim da tarde seguinte saíram de Chicago e parti ram na
direcção de Rockford. Carol disse que talvez lá estivesse uma
carta de Abby, mas o mais provável era não estar, porque ela
era uma má correspondente. Therese foi a uma oficina de
sapateiro para Lhe coserem um mocassin, e quando voltou Carol
estava a ler a carta no carro.
216
- Por que estrada vamos? - A expressão de Carol
parecia mais feliz.
- Pela 20, para oeste.
Carol ligou o rádio e procurou até encontrar música.
- Que boa estrada há para esta noite, no caminho
para Minneapolis?
-Dubuque - respondeu Therese, consultando o
mapa. - Ou Waterloo, que parece relativamente grande,
mas fica a cerca de trezentos e vinte quilómetros de
distância.
- Talvez consigamos lá chegar.
Meteram pela auto-estrada 20na direcção de Freepor e Galena,
que no mapa tinha a indicação de ser a
terra natal de Ulysses S. Grant.
- Que diz a Abby?
- Pouca coisa. É apenas uma carta muito simpática.
Carol falou pouco no automóvel, ou mesmo no café
onde pararam mais tarde para tomarem café. Aí, dirigiu-se a
uma máquina de música e começou a meter-lhe
moedas, devagar.
- Gostaria que a Abby tivesse vindo, não gostaria? ,
- Não, Therese.
- Está tão diferente desde que recebeu a carta dela.
Carol olhou-a por cima da mesa.
- Minha querida, é apenas uma carta pateta. Até a
pode ler, se quiser -. Carol pegou na mala, mas não tirou a
carta.
Nessa noite, Therese adormeceu no carro e acordou
com as luzes de uma cidade a baterem-lhe na cara. Carol
repousava ambos os braços, fatigada, em cima do volante.
Tinham parado numa luz vermelha.
- É aqui que vamos passar a noite - disse.
O sono ainda entorpecia Therese quando atravessou
o átrio do hotel. Subiu num elevador, agudamente conscente da
presença de Carol a seu lado, como se tivesse
um sonho de que ela era o assunto e a única figura. No
quarto, levantou a sua mala do chão para uma cadeira, abriu-
a, largou-a e ficou parada junto da escrivaninha, a
observar Carol. Como se tivessem estado latentes nas últimas
217
horas, ou dias, as suas emoções submergiam-na agora, ao
observar Carol a abrir a sua mala tirando, primeiro, como
sempre fazia, o estojo de cabedal que continha os seus
objectos de toilette e deixando-o cair em cima da cama. Olhou
para as mãos dela, para a mecha de cabelo que Lhe saía do
lenço atado à volta da cabeça, para a esfoladura que fizera
dias antes na biqueira de um mocassin.
- Porque está aí parada? - perguntou-lhe Carol. Meta-se na
cama, sua dorminhoca.
- Carol, amo-a.
Carol endireitou-se. Therese fitou-a, com olhos intensos,
sonolentos. Depois Carol acabou de tirar o pijama da mala e
deixou cair a tampa. Aproximou-se de Therese e pôs-lhe as
mãos nos ombros. Apertou-lhos com força, como se estivesse a
exigir- Lhe uma promessa, ou talvez a observá-la para ver se
o que ela tinha dito era verdade. Depois beijou-a nos lábios,
como se já se tivessem beijado mil vezes antes.
- Não sabe que eu a amo? - perguntou. Levou o pijama para a
casa de banho e ficou um mo mento parada, a olhar para o
lavatório.
- Vou sair - disse a Therese. - Mas volto imediatamente.
Therese esperou-a junto da mesa, enquanto o tempo passava
vagamente, ou talvez nem sequer passasse, até que a porta se
abriu e Carol voltou. Pôs um cartucho de papel em cima da
mesa e Therese adivinhou que tinha ido buscar uma embalagem
de leite, como ela ou a própria Therese faziam com muita
frequência à noite.
- Posso dormir consigo? - perguntou Therese.
- Não viu a cama?
Era uma cama de casal. Sentaram-se, de pijama, a beber leite
e a partilhar uma laranja que Carol, por ter muito sono, não
acabou. Depois Therese pôs a embalagem de leite no chão e
olhou para Carol, que dormiajá de bruços e com um braço
estendido para cima, como sempre adormecia. Apagou a luz.
Depois Carol passou-lhe o braço por baixo do pescoço e todo o
comprimento
218
dos seus corpos se tocou, ajustados um ao outro como se
alguma coisa tivesse sido feita de antemão para que assim
fosse. A felicidade era como uma trepadeira verde a
alastrar pelo corpo de Therese, a estender finas gavinhas, a
brotar em flor da sua carne. Teve uma visão de
uma flor branca, pálida, a luzir como se fosse vista no
escuro ou através de água. Porque falavam as pessoas do
Gélu?, pensou.
- Durma - disse Carol.
Therese desejou não adormecer. Mas quando sentiu
a mão de Carol mexer-se no seu ombro soube que tinha
dormido. Alvorecia, agora. Os dedos de Carol cerraram-se no
seu cabelo, Carol beijou-a nos lábios e o prazer
eclodiu de novo em Therese como se fosse apenas uma
continuação do momento em que Carol metera o braço
debaixo do seu pescoço, na noite anterior. "Amo-a", desejou
dizer de novo, e depois as palavras foram apagadas
pelo prazer formigante e aterrador que alastrava em ondas ao
contacto dos lábios de Carol no seu pescoço, nos
seus ombros, que irrompia súbita e tumultuosamente ao
longo de todo o seu corpo. Os seus braços apertavam
Carol com força, e ela só tinha consciência de Carol e
nada mais. Das mãos de Carol a deslizarem-lhe pelas
costelas, do cabelo de Carol a roçar-Lhe pelos seios nus, e
depois o seu próprio corpo pareceu também desvanecer-se em
círculos que alargavam, que saltavam cada vez
para mais longe, para além do alcance do pensamento.
Ao mesmo tempo, mil recordações e momentos, palavras. O
primeiro "minha querida", a segunda vez que
Carol se encontrara com ela no armazém, mil recordações do
rosto de Carol, da sua voz, momentos de cólera e
riso atravessaram-lhe velozmente o cérebro como a cauda de um
cometa. E agora era distância e espaço azul-pálido, um espaço
que se expandia e no qual ela voava
subitamente, como uma flecha comprida. A flecha parecia
transpor com facilidade um abismo incomensuravelmente largo,
descrever um arco infinito no espaço, sem
nunca parar. Depois deu conta de que continuava a
apertar Carol, de que tremia violentamente e a flecha
219
era ela própria. Viu o cabelo claro de Carol atravessado nos
seus olhos, e a cabeça de Carol encostada à sua E não teve de
perguntar se aquilo estava bem, ninguém teve de lho dizer,
porque o que acontecera não poderia ter sido melhor nem mais
perfeito. Apertou Carol com mais força e sentiu na sua boca
sorridente a boca de Carol. Ficou imóvel a olhá-la, a olhar
para o rosto de Carol apenas a centímetros dela, os olhos
cinzentos calmos como nunca os vira, como se retivessem algum
do espaço de onde ela acabava de emergir. E pareceu-lhe
estranho que continuasse a ser o rosto de Carol, com as
sardas, a sobrancelha arqueada loura que tão bem conhecia, a
boca tão calma agora como os olhos, como ela vira muitas
vezes antes.
- Meu anjo - disse Carol. - Arremessada do es paço.
Therese olhou para os cantos do quarto, agora muito mais
luminosos, para a escrivaninha com a frente bojuda e os
puxadores em forma de escudo, para o espelho sem moldura,
para os cortinados verdes estampados que pendiam, direitos,
das janelas e para as duas pontas cinzentas de edificios que
se viam logo acima do parapeito. Havia de recordar sempre
todos os pormenores daquele quarto.
- Que cidade é esta?
Carol riu-se.
- Esta? É Waterloo -. Estendeu a mão para um cigarro. - Não é
horrível?
Sorrindo, Therese apoiou-se num cotovelo. Carol pôs um
cigarro entre os lábios.
- Há um par de Waterloos em cada estado - diss Therese.
220

CAPíTULO XVI

Therese saiu para comprar jornais enquanto Carol se vestia.


Entrou no elevador e voltou-se, no centro exacto do
compartimento. Sentia-se um pouco estranha, como se tudo se
tivesse deslocado e as distâncias não fossem inteiramente as
mesmas, o equilíbrio não fosse inteiramente o mesmo.
Atravessou o átrio e dirigiu-se ao balcão dos jornais, à
esquina.
- O Courier e o Tribune - disse ao homem, pegando nos
jornais, e até o proferir das palavras lhe pareceu tão
estranho como os nomes dos jornais que comprou.
- Oito cêntimos - disse o homem, e Therese olhou para o troco
que ele lhe dera e viu que continuava a haver a mesma
diferença entre oito cêntimos e um quarto de dólar.
Atravessou de novo o átrio e olhou pelo vidro para a
barbearia onde dois homens estavam a fazer a barba. Um negro
engraxava sapatos. Passou por ela um homem alto, de charuto,
chapéu de aba larga e sapatos característicos do Oeste.
Também se lembraria sempre daquele átrio, das pessoas, do
trabalho de madeira antiquado da base do balcão da portaria e
do homem de sobretudo escuro que a olhou por cima do jornal,
se deixou escorregar na cadeira e continuou a ler, ao lado da
coluna de mármore preta e cor de creme.
Quando abriu a porta do quarto, a visão de Carol trespassou-a
como uma lança. Parou um momento, com a mão na maçaneta.
221
Carol olhou-a da casa de banho, com o pente suspenso,
imóvel, sobre a cabeça. Olhou-a da cabeça aos pés.
- Não faça isso em público - disse-lhe depois. Therese atirou
os jornais para cima da cama e foi ter com ela. Carol
apertou-a subitamente nos braços. Ficaram assim, abraçadas,
como se não fossem separar-se nunca. Therese estremeceu, com
lágrimas nos olhos. Era dificil encontrar palavras, fechada
assim nos braços de Carol, mais chegada a ela do que se se
beijassem.
- Porque esperou tanto tempo? - perguntou.
- Porque... pensava que não haveria uma segunda vez, que eu
não quereria. Mas isso não é verdade.
Therese pensou em Abby e foi como se uma mancha delgada de
amargura se intrometesse entre elas. soltou-a.
- E havia ainda outra coisa... Tê-la perto recorda-me,
conhecendo-a e sabendo que seria tão fácil. Desculpe. Não foi
justo para si.
Therese cerrou os dentes com força. Seguiu com olhar Carol
que se afastava lentamente, viu o espaço alargar-se e
recordou-se da primeira vez que a vira afastar-se tão devagar
no armazém, pensara então que para sempre. Carol também amara
Abby e censurava-se por isso. Como se censuraria um dia por a
amar a ela, pensou Therese. Compreendia agora por que tinham
as semanas de Dezembro e Janeiro sido cheias de cólera e
indecisão, de reprimendas alternando com indulgência, Mas
compreendia também que, fosse o que fosse que Carol dissesse
por palavras, não havia agora quaisquer barreiras ou
indecisões. Tão-pouco havia Abby, depois daquela manhã, fosse
o que fosse que tivesse acontecido antes entre Carol e ela.
- Pois não? - perguntou Carol.
- Fez-me tão feliz desde que a conheci.
- Não creio que possa julgar, Therese.
- Posso julgar esta manhã.
Carol não respondeu. A única resposta foi o girar d chave na
fechadura. Carol fechara a porta à chave e estavam juntas.
Therese encaminhou-se para ela, direita aos seus braços.
222
-Amo-a - disse, só para ouvir as palavras.
- Amo-a, amo-a.
Mas naquele dia Carol pareceu, deliberadamente, quase não
lhe prestar atenção. Havia mais arrogância na
imclinação do cigarro na sua boca, no modo como tirou o
carro, em marcha atrás, da beira de um passeio, praguejando
sem ser inteiramente de brincadeira. "Diabos me
levem se meto dez cêntimos num parcómetro quando tenho uma
pradaria à vista!" Mas quando Therese a surpreendeu a olhá-
la, os olhos de Carol riam. Carol
fitava-a, encostando-se ao seu ombro diante de uma
máquina de cigarros, tocando-lhe no pé debaixo de mesas. Isso
deixava Therese lassa e tensa ao mesmo tempo.
Pensou em pessoas que vira de mãos dadas no cinema. e
por que não oderiam Carol e ela fazer o mesmo?
No entanto, quando deu simplesmente o braço a Carol
quando estavam a escolher uma caixa de chocolates numa loja,
ela murmurou-lhe: "Não faça isso. "
Therese mandou uma caixa de chocolates à senhora Robichek da
loja da especialidade, em Minneapolis, e
outra aos Kelly. Mandou uma caixa exageradamente
grande à mãe de Richard, uma caixa que na realidade eram duas
sobrepostas, cem compartimentos de madeira, que ela sabia
serem utilizados depois pela senhora Semco para guardar os
seus materiais de costura.
- Alguma vez fez o mesmo com a Aby. - perguntou Therese
abruptamente, nessa noite, no carro.
Os olhos de Carol compreenderam, de súbito, e ela
pestanejou.
- Faz cada pergunta! Claro que sim.
Claro que sim. Ela soubera.
- E agora.
- Therese...
- Foi a mesma coisa que comigo? - perguntou.
- Não, querida - respondeu Carol, sorrindo.
- Não acha que é mais agradável que dormir com um homem?
- Não necessariamente -. O sorriso de Carol era
223
divertido. - Depende. Quem é que já conheceu além de
Richard?
- Ninguém.
- Bem, não acha que seria melhor experimentar mais alguns?
Therese ficou um momento sem fala, mas tentou parecer
despreocupada, a tamborilar com os dedos no livro que tinha
no colo.
- Estou a referir-me a qualquer dia. Tem uma quantidade de
anos à sua frente.
Therese não disse nada. Também não conseguia inaginar que
alguma vez deixaria Carol. Essa fora a dúvida terrível que ao
princípio lhe viera à mente e que lhe martelava agora o
cérebro a pedir resposta a uma insistência dolorosa. Carol
quereria alguma vez deixá-la?
- Quero dizer, com quem dormimos depende muito do hábito -
continuou Carol. - E a Therese é denasiado jovem para tomar
decisões enormes. Ou adquirir hábitos.
- A Carol é apenas um hábito? - perguntou, sorrindo, mas
ouviu o ressentimento na sua voz. - Quer dizer que não passa
disso?
- Therese... que altura havia de escolher para estar tão
melancólica.
- Eu não estou melancólica - protestou, mas sentiu de novo o
gelo fino debaixo dos pés, as incertezas. Ou tratar- se-ia
apenas de querer sempre um pouco mais do que tinha, por muito
que tivesse? Acrescentou, impetuosamente:
- A Abby também a ama, não ama?
Carol sobressaltou-se um pouco e largou o volante.
- A Abby tem-me amado praticamente toda a vida. como você.
Therese fitou-a.
- Um dia conto-lhe. O que aconteceu pertence, ao passado. Foi
há meses e meses - disse, tão suavemente que Therese quase
não a ouviu.
- Só meses?
- Sim.
224
- Conte-me agora.
- Não é este o momento nem o lugar.
- Não há nunca um momento - declarou Therese.
- A Carol não disse que não havia nunca um momento certo?
- Eu disse isso? A respeito de quê?
Mas nenhuma delas falou durante alguns instantes, porque uma
nova barragem de vento arremessou a chuva, como um milhão de
balas, contra a capota e o pára-brisas, e mesmo que elas
falassem não teriam podido
ouvir mais nada. Não havia trovoada, como se os trovões,
algures lá em cima, se abstivessem modestamente
de competir com aquele outro deus da chuva. Therese e
Carol aguardaram no inadequado abrigo da encosta de
um monte, ao lado da estrada.
- Posso contar-lhe o meio - disse Carol -, porque
é divertido... e irónico. Foi no Inverno passado, quando
nós tínhamos, em conjunto, a loja de móveis. Mas não
posso começar sem lhe contar a primeira parte, e essa
passou-se quando éramos crianças. As nossas famílias viviam
perto uma da outra, em Nova Jérsia, por isso víamo-nos nas
férias. A Abby teve sempre um pequeno fraco por mim, sempre
achei, mesmo quando tínhamos uns seis e oito anos. Depois ela
escreveu-me umas duas cartas, quando tinha catorze anos e
estava ausente, na escola. E nessa altura já eu ouvira falar
de raparigas que
preferiam raparigas. Mas os livros também dizem que
isso passa, depois dessa idade -. Carol fazia pausas entre as
frases, como se saltasse outras frases de permeio.
- Andou na escola com ela?
- Não, nunca. O meu pai mandou-me para uma escola diferente,
fora da cidade. Depois a Abby foi para a
Europa, quando tinha dezasseis anos, e eu não estava
em casa quando ela voltou. Vi-a uma vez numa festa
qualquer, mais ou menos na altura em que casei. A Abby
tornara-se muito diferente, já não parecia uma maria-rapaz.
Nesse tempo, o Harge e eu vivíamos noutra cidade e eu não
voltei a vê-la... não voltei a vê-la durante
anos, até muito depois de a Rindy nascer. Ela ia de vez
225
em quando à cavalariça que nós frequentávamos, para
praticar equitação. Cavalgávamos todos juntos, algumas
vezes. Depois a Abby e eu começámos a jogar ténis aos
sábados à tarde, quando o Harge costumava jogar golfe.
Ela e eu sempre nos divertimos juntas. A antiga paixonite da
Abby por mim nunca me passou pela cabeça; éramos ambas muito
mais velhas e muita coisa acontecera.
Eu andava com a ideia de abrir uma loja, porque queria
ver menos o Harge. Parecia-me que estávamos a ficar
aborrecidos um com o outro e que isso ajudaria. Perguntei,
portanto, à Abby se queria ser minha sócia, e abrimos a loja
de móveis. Passadas algumas semanas, para
minha surpresa, percebi que me sentia atraída por ela - disse
Carol, na mesma voz tranquila. - Não compreendia que isso
pudesse acontecer e sentia-me mesmo um
pouco assustada, pois lembrava-me de como a Abby fora
antes e percebia que ela podia sentir o mesmo, ou que
ambas sentíamos. Por isso, tentei evitar que ela percebesse,
e creio que o consegui. Mas por fim... e aqui está
a parte cómica... houve a noite em casa da Abby, no Imverno
passado. As estradas estavam bloqueadas pela neve e a mãe da
Abby insistiu para que ficássemos juntas
no quarto da filha, simplesmente porque o quarto onde
eu ficara algumas vezes não tinha lençóis na cama e era
muito tarde. A Abby disse que poria os lençóis, protestamos
ambas, mas a mãe dela insistiu -. Carol sorriu um
pouco e olhou de relance para Therese, mas esta teve
impressão de que ela nem a via. - Por isso fiquei com
Abby. Nada teria acontecido se não fosse aquela noite,
tenho a certeza. Se não fosse a mãe da Abby, a ironia
é essa, pois ela não sabe de nada. Mas aconteceu e eu senti-
me muito como você se sente, suponho, tão feliz como
se sente -. Carol disse as últimas palavras muito
depressa, embora a sua voz continuasse serena e
de certo modo despida de qualquer espécie de emoção.
Therese fitou-a, sem saber se era ciúme, ou espanto
ou cólera que, de repente, estava a confundir tudo.
- E depois disso? - perguntou.
- Depois disso eu soube que estava apaixonada por
226
Abby. Não sei por que não hei-de chamar-lhe amor, pois
tinha todas as características disso. Mas durou apenas
dois meses, como uma doença que se tivesse declarado e
passado -. Carol acrescentou, em tom diferente: - Minha
querida, não tem nada a ver consigo e já acabou. Eu
percebia que a Therese queria saber, mas até agora não
tinha encontrado nenhuma razão para lhe dizer. Tão
pouca importância tem.
- Mas se sentiu o mesmo por ela...
- Durante dois meses? Quando se tem um marido e
uma filha, compreende, é um pouco diferente.
Diferente dela, queria Carol dizer, porque ela não tinha
quaisquer responsabilidades.
- É? - Pode-se simplesmente começar e parar?
- Quando não existe nenhuma hipótese - respondeu Carol.
A chuva abrandava, mas apenas na medida em que
Therese a podia ver agora como chuva e não como lençóis de
prata sólidos.
- Não acredito.
- Não está praticamente em estado de falar, Therese.
- Porque é tão cínica?
- Cínica? Acha que sou cínica?
Therese não se sentia suficientemente segura para
responder. O que era amar alguém, o que era exactamente o
amor, e porque acabava ele ou não? Estas eram
as verdadeiras incógnitas, e quem saberia responder-lhes?
- Está a aliviar - disse Carol. - E se fóssemos
procurar um bom conhaque em qualquer lado? Ou haverá lei seca
neste estado?
Seguiram para a cidade seguinte e encontraram um
bar deserto no maior hotel. O conhaque era delicioso e
elas repetiram.
- É conhaque francês - disse Carol. - Qualquer
dia vamos a França.
Therese girou o pequeno balão de vidro entre os dedos. Ouvia-
se o tiquetaque de um relógio ao fundo do
227
bar. Um comboio apitou ao longe. E Carol pigarreou.
Sons normais, embora o momento o não fosse. Nenhum
momento fora normal depois daquela manhã em Waterloo. Therese
olhou para a forte luz castanha no balão do
conhaque e de súbito não teve dúvida alguma de que
Carol e ela iriam um dia a França. Depois, do tremeluzente
sol castanho do copo emergiu o rosto de Harge -
boca, nariz e olhos.
- O Harge sabe a respeito da Abby, não sabe? -
perguntou.
- Sabe. Perguntou-me qualquer coisa sobre ela, há
uns meses, e eu contei-Lhe tudo, do princípio ao fim.
- Contou-lhe... - Therese pensou em Richard, imaginou como
ele reagiria. - É por isso que se estão a
divorciar?
- Não. Não tem nada a ver com o divórcio. Essa é a
outra ironia... eu ter dito ao Harge depois de estar tudo
acabado. Um esforço errado para ser honesta quando já não
nos restava nada para salvar, ao Harge e a mim. Já tinhamos
falado de divórcio. Por favor, não me recorde erros! - Carol
franziu a testa.
- Quer dizer... ele com certeza deve ter tido ciúmes.
- Teve. Porque qualquer que tenha sido a maneira
como eu o disse, suponho que ficou claro que, em determinado
período, gostei mais da Abby do que alguma vez
gostei dele. Houve uma certa altura em que, mesmo com
a Rindy, eu teria abandonado tudo para ir com ela. Não
sei mesmo como é que não o fiz.
- E levaria a Rindy consigo?
- Não sei. Sei apenas que o facto de a Rindy existir
me impediu de deixar o Harge nessa altura.
- Lamenta-o?
Carol abanou a cabeça, lentamente.
- Não. Não teria durado. Não durou, e talvez eu
soubesse que não duraria. Com o meu casamento a desmoronar-
se, eu estava demasiado assustada e demasiado
fraca...
- Está assustada agora?
Carol ficou calada.
228
- Carol.
- Não estou assustada - disse ela obstinadamente, levantando
a cabeça e puxando fumo do cigarro.
Therese olhou-lhe para o rosto de perfil, na luz fraca. E
quanto à Rindy, agora, teria gostado de perguntar, que
acontecerá? Mas sabia que Carol estava na iminência de se
tornar de súbito impaciente e dar-lhe uma resposta
desinteressada, ou nem sequer lhe responder. Noutra ocasião,
pensou, agora não. Poderia destruir tudo, até a solidez do
corpo de Carol ao seu lado - e a curva do corpo de Carol na
camisola preta parecia a única coisa sólida que existia no
mundo. Therese passou o polegar pelo lado de Carol, de
debaixo do braço até à cintura.
- Lembro-me de que o Harge ficou particularmente aborrecido
com uma viagem que fiz com a Abby ao Gonnecticut. Nós fomos
lá para comprar umas coisas para a loja. Foi apenas uma
viagem de dois dias, mas ele disse: "Nas minhas costas. Tu
tinhas de fugir. " - Carol
proferiu as palavras amargamente. Numa voz em que havia mais
censura a si mesma do que intenção de imitar Harge.
- Ele ainda fala disso?
- Não. alguma coisa de que valha a pena falar?
É alguma coisa de que nos devamos orgulhar?
- É alguma coisa de que nos devamos envergonhar?
- É. Sabe isso, não sabe? - perguntou Carol, em voz serena e
distinta. - Aos olhos do mundo é uma abominação.
Disse-o de tal maneira que Therese não foi capaz de
sorrir.
- Não acredita nisso, pois não?
- Pessoas como a família do Harge.
- Elas não são o mundo inteiro.
- Mas chegam. E nós temos de viver no mundo. Você, quero
dizer... e não me estou a referir agora a nada relacionado
com quem decidir amar -. Olhou para
Therese, que viu finalmente um sorriso subir-lhe aos olhos,
devagar, e trazer Carol com ele. - Refiro-me a
229
responsabilidades existentes no mundo em que outras pessoas
vivem e que pode não ser o seu. Neste momento não é, e foi
por isso que em Nova Iorque eu era exacta mente a pessoa
errada para você conhecer. porque eu sou indulgente consigo e
a impeço de crescer.
- Porque não pára?
- Tentarei. O problema é que gosto de ser indulgente consigo.
- A Carol é exactamente a pessoa certa para eu co nhecer.
- Sou?
Na rua, Therese observou:
- Creio que o Harge também não ficaria satisfeito agora, se
soubesse que estamos a viajar as duas, pu não?
- Não o vai saber.
- Ainda quer ir a Washington?
-Absolutamente, se você tiver tempo. Pode ficar ausente o mês
de Fevereiro todo?
Therese acenou com a cabeça.
- A não ser que tenha algumas notícias em Salt Lake City.
Disse ao Phil que escrevesse para lá. É uma possibilidade
muito fraca -. Provavelmente ele nem sequer escreveria,
pensou. Mas se houvesse a mínima possibilidade de um emprego
em Nova Iorque, ela regressaria.
- Seguiria viagem até Washington sem mim? Carol olhou-a.
- Para dizer a verdade, não seguiria - respondeu, com um
pequeno sorriso.
O quarto de hotel estava tão sobreaquecido quando regressaram
nessa noite que tiveram de escancarar as janelas durante um
bocado. Carol apoiou-se no parapeito da janela a amaldiçoar o
calor, para gáudio de Therese chamando-lhe salamandra porque
ela podia suportá-lo. Depois perguntou, abruptamente:
- Que dizia o Richard ontem?
Therese ignorara, até, que ela tivesse conhecimento da última
carta do Richard - a que ele prometera, de Chicago, enviar
para Minneapolis e para Seattl.
230
- Pouca coisa - respondeu. - A carta tinha uma só página.
Continua a querer que eu lhe escreva. E eu não tenciono fazê-
lo -. Deitara fora a carta, mas lembrava-se do que dizia.
"Não tenho tido notícias tuas, e começo a ter consciência do
incrível aglomerado de contradições que tu és. És sensível e,
contudo, tão insensível, imaginativa e, contudo, tão falha de
imaginação... Se a tua extravagante amiga te deixar
encalhada, informa-me que te vou buscar. Isso não vai durar,
Terry. Eu sei um pouco a respeito dessas coisas. Vi o Dannie,
que quis saber que notícias tinha eu de ti, o que estavas a
fazer. Gostarias, se eu lhe tivesse dito? Não disse nada,
para teu bem, porque penso que um dia te corarás. Ainda te
amo, admito-o. Irei ter contigo - e mostrar-te-ei como a
América realmente é -, se gostares de mim o suficiente para
escreveres e o dizeres... A carta era insultuosa para Carol,
e Therese rasgara-a. Sentou-se na cama, com os braços à roda
dos joelhos e a apertar os pulsos dentro das mangas do
roupão. Carol exagerara na ventilação e o quarto estava frio.
Os ventos do Minnesota tinham-se apoderado do quarto,
atiravam- se ao fumo do cigarro de Carol e esfrangalhavam-no,
reduziam-no a nada. Therese via-a lavar calmamente os dentes
no lavatório.
- É a sério, isso de não Lhe escrever? É essa a sua decisão?
- perguntou Carol.
- É.
Therese viu-a sacudir a água da escova de dentes, virar as
costas ao lavatório e ocultar o rosto com uma toalha. Não
havia em Richard nada que significasse tanto para ela como a
maneira como Carol ocultava o rosto com uma toalha.
- Não digamos mais nada a esse respeito - disse Carol.
Therese compreendeu que ela não diria mais nada. Sabia que
tentara empurrá-la para Richard até àquele momento. E
pareceu-lhe que poderia ter sido tudo para que acontecesse
aquele momento, quando Carol caminhou para ela e o seu
coração deu um gigantesco salto em frente.
231
Continuaram a viajar para oeste, passando por Sleepy Eye,
Tracy e Pipestone, metendo ocasionalmente por
uma auto-estrada indirecta, de acordo com o capricho
do momento. O Oeste desenrolava-se como um tapete
mágico, salpicado de unidades bem delineadas e coesas
formadas por casa de quinta, estábulo e silo, que podiam
ver meia hora antes de as alcançarem. Pararam uma vez
numa casa de quinta, a fim de perguntarem se Lhes vendiam
gasolina que desse para chegarem à estação de serviço mais
próxima. A casa tinha um cheiro parecido com
o de queijo fresco frio. Os passos delas soavam cavos e
solitários nas sólidas tábuas castanhas do chão, e Therese
pensou, numa explosão fervorosa de patriotismo: América. Na
parede havia uma moldura com um galo feito de
retalhos de tecidos coloridos pregados num fundo preto, tão
bonito que não ficaria mal num museu. O agricultor
avisou-as de que havia gelo na estrada imediatamente a
oeste e, por isso, elas meteram por outra que seguia para
sul.
Nessa noite, descobriram um circo de uma pista, ao
lado de um trecho de via-férrea, numa cidade chamada
Sioux Falls. Os artistas não eram muito perfeitos. Os lugares
delas eram dois caixotes de laranjas, na primeira
fila. Um dos acrobatas convidou-as para a tenda dos artistas
depois do espectáculo e insistiu em oferecer a Carol uma
dúzia dos cartazes do circo, porque ela os admirara. Carol
enviou alguns para Abby e alguns para
Rindy, à qual mandou igualmente um camaleão verde, numa caixa
de cartão. Foi uma noite que Therese nunca
mais esqueceria, e, ao contrário do que costuma acontecer com
noites desse género, esta impôs-se como inesquecível enquanto
ainda durava. Graças ao cartucho de
pipocas que partilhavam, ao circo e ao beijo que Carol
lhe deu atrás de uma cabina, na tenda dos artistas. Graças
àquele encanto especial que Carol irradiava - apesar de ela
achar naturais todos os bons momentos que
passavam - e que pareceu produzir efeito sobre todos
quantos as rodeavam, graças ao facto de tudo ter corrido
perfeitamente, sem decepções nem obstáculos, exactamente como
tinham desejado.
232
Therese saiu do circo de cabeça baixa, perdida nos
seus pensamentos.
- Pergunto-me se alguma vez quererei voltar a criar
alguma coisa - observou.
- A que vem agora isso?
- Quero dizer. que tentei eu alguma vez conseguir
a não ser isto? Estou feliz.
Carol pegou-lhe no braço e apertou-lho, fazendo tanta força
com o polegar que Therese gritou. Depois leu
um marco da estrada e disse:
- Quinta e Nebrasca. Creio que vamos por este caminho.
- Que vai acontecer quando voltarmos a Nova Iorque? Não pode
continuar como agora, pois não?
- Pode. Até se cansar de mim.
Therese riu-se. Ouviu o estalar suave da ponta do
lenço do pescoço de Carol, ao vento.
- Poderemos não viver juntas, mas será o mesmo.
Não poderiam viver juntas com Rindy, Therese sabia-o. Seria
inútil sonhar com isso. Mas era mais do que suficiente que
Carol prometesse por palavras que seria o
mesmo.
Perto da fronteira do Nebrasca com o Wyoming pararam para
jantar num enorme restaurante construído, como um abrigo numa
floresta de árvores de folhas perenes. Eram quase as únicas
pessoas presentes na grande casa de jantar, e escolheram uma
mesa perto da lareira.
Abriram o mapa rodoviário e resolveram seguir directamente
para Salt Lake Gity. Podiam ficar lá alguns dias, disse
Carol, porque era um lugar interessante e ela estava cansada
de guiar.
Lusk* - disse Therese, a olhar para o mapa.
- Que nome tão sexy.
Carol inclinou a cabeça para trás e riu-se.
- Onde fica?
- Na estrada.
* Associação de ideias com lurt, que significa "luxúria, ",
lascívia", etc. ( N. da E.)
233
Carol pegou no copo de vinho e disse:
- Château Neufdu-Pae no Nebrasca. A que vamos beber?
- A nós.
Em certos instantes ela sentia-se como um actor, só de vez em
quando recordava a sua identidade com uma sensação de
surpresa, como se nos últimos dias tivesse andado a
representar o papel de qualquer outra pessoa, de alguém
fabulosa e excessivamente afortunado. Olhou para os ramos de
abeto presos nos caibros, para o homem e a mulher que falavam
inaudivelmente numa mesa encostada à parede, para o homem
sentado sozinho a uma mesa, fumando lentamente o seu cigarro.
Pensou no homem sentado com o jornal à frente, no hotel de
Waterloo. Não tinha os mesmos olhos claros e os mesmos vincos
compridos de cada lado da boca? Ou dever-se-ia essa impressão
simplesmente ao facto de aquele momento de percepção ser tão
semelhante ao outro?
Passaram a noite em Lusk, a cento e cinquenta quilómetros de
distância.
234

CAPÍTULO XVII

Senhora H. F. Aird? - O recepcionista olhou para Carol,


depois de ela ter assinado o registo do hotel. É a senhora
Carol Aird?
- Sou.
- Há correspondência para si -. Voltou-se e tirou um
sobrescrito de um cacifo. - Um telegrama.
- Obrigada -. Carol olhou para Therese com um erguer de
sobrancelhas, antes de o abrir. Leu-o de testa franzida e
depois voltou-se para o empregado. - Onde fica o Belvedere
Hotel?
O homem indicou-lhe.
- Tenho de ir buscar outro telegrama - disse Carol a Therese.
- Quer ficar aqui enquanto lá vou?
- De quem é?
- Da Abby.
- Está bem. São más notícias?
Carol continuava de cenho franzido.
- Só saberei quando o ler. Neste a Abby limita-se a dizer que
está um telegrama à minha espera no Belvedere.
- Mando levar as malas para cima?
- Bem... acho melhor esperar. O carro está estacionado.
- Por que não posso ir consigo?
- Claro que pode, se quiser. Vamos a pé. Fica a dois
quarteirões de distância, apenas.
Carol caminhava depressa. Estava um frio cortante.
235
Therese olhou em volta, para a cidade plana e de aspecto
arrumado, e lembrou-se de Carol ter dito que Salt Lake City
era a cidade mais limpa dos Estados Unidos. Quando o
Belvedere estava à vista, Carol olhou- a subitamente e
observou:
- Se calhar a Abby teve uma ideia, repentina e resolveu
meter-se num avião e juntar-se-nos.
No Belvedere, Therese comprou um jornal enquanto
Carol se dirigia para a recepção. Quando se voltou de novo
para ela, Carol estava a baixar a mão que segurava o
telegrama, depois de o ter lido. Tinha uma expressão de
atordoamento no rosto. Caminhou devagar na direcção de
Therese, por cujo pensamento passou, repentina, a ideia de
que Abby morrera, de que aquele segundo telegrama era da
família dela.
- Que aconteceu?
- Nada. Ainda não sei -. Carol olhou à sua volta e bateu com
o telegrama nos dedos. - Preciso de fazer um telefonema.
Talvez demore alguns minutos -. Olhou para o relógio de
pulso.
Faltava um quarto para as duas. A recepcionista do hotel
disse que talvez fosse possível fazer a ligação para Nova
Jérsia em cerca de vinte minutos. Entretanto, Carol quis uma
bebida. Encontraram um bar no hotel.
- Que foi? A Abby está doente?
- Não -. Carol sorriu. - Eu depois digo-lhe.
- É a Rindy?
- Não! - Carol acabou de beber o seu conhaque. Therese andou
de um lado para o outro, no átrio, enquanto Carol telefonava,
numa cabina. Viu-a acenar lentamente com a cabeça várias
vezes e tactear para acender um cigarro, mas quando Therese
chegou para lho acender já ela o conseguira e fez-lhe sinal
para se afastar. Carol falou durante três ou quatro minutos e
depois saiu da cabina e pagou a despesa.
- Que se passa?
Carol parou um momento à porta do hotel, a olhar para fora.
- Agora temos de ir ao Temple Square Hotel - respondeu.
236
Encontraram aí outro telegrama. Carol abriu-o, olhou-o um
instante e rasgou-o enquanto se dirigiam para a porta.
- Acho que não vamos ficar aqui esta noite. Voltemos para o
carro.
Voltaram ao hotel onde Carol recebera o primeiro telegrama.
Therese não disse nada, mas tinha a impressão
de que acontecera alguma coisa que obrigaria Carol a
regressar imediatamente ao Leste. Carol disse ao
recepcionista que cancelasse a sua reserva de quarto.
- Gostaria de deixar um endereço, para se chegar
outro telegrama mo poderem enviar - disse ao recepcionista. -
Brown Palace, Denver.
- Fique tranquila.
- Muito obrigada. Essa morada é válida para a próxima semana,
pelo menos.
No carro, perguntou a Therese:
- Qual é a cidade que se segue, para oeste?
- Oeste? - Therese consultou o mapa. - Wendover. este
estirão. Duzentos e cinco quilómetros.
-Jesus! - Carol parou completamente o carro, pegou no mapa e
consultou-o por sua vez.
- E a respeito de Denver? - perguntou-lhe Therese.
- Não quero ir para Denver. - Carol dobrou o mapa e pôs de
novo o carro em marcha. - Bem, havemos
de lá chegar. Acenda-me um cigarro, sim, minha querida? E
esteja atenta a um lugar onde possamos comer
qualquer coisa.
Ainda não tinham almoçado e já passava das três.
Tinham falado naquele trecho de estrada da noite anterior, a
recta que partia de Salt Lake Cìty para oeste, atravessando o
Grande Lago Salgado. Tinham gasolina
suficiente, pensou Therese, e provavelmente a região não
era completamente deserta, mas Carol estava cansada.
Viajavam desde as seis da manhã. Carol conduzia depressa. De
vez em quando, carregava no pedal do acelerador até ao fundo
e deixava passar um bom bocado antes de tirar o pé. Therese
olhava-a apreensivamente.
237
Tinha a impressão de que estavam a fugir de qualquer coisa.
- Vem alguma coisa atrás de nós? - perguntou Carol.
- Não -. No banco entre elas, Therese via uma ponta do
telegrama a espreitar da mala de mão de Carol. Receberes
ESTE. JAcOPO - era tudo quanto conseguia ler. Lembrou-se de
que, Jacopo era o nome do pequeno macaco da janela da
retaguarda do carro.
Viram um café de uma estação de gasolina que se seguia,
isolada, como uma verruga na paisagem plana: Talvez fossem as
primeiras pessoas que ali paravam, nos últimos dias. Carol
olhou para Therese, do outro lado da mesa forrada de oleado
branco, e recostou-se na cadeira de espaldar direito. Antes
que pudesse falar, um velho de avental saiu da cozinha, nas
traseiras, e informou-a de que só tinham presunto e ovos. Foi
isso que pediram, portanto, além de café. Depois Carol
acendeu um cigar ro e inclinou-se para a frente, de olhos
baixos postos na mesa.
- Sabe o que se passa? O Harge tem um deteetive a seguir-nos
desde Chicago.
- Um detective? Para quê?
- Não adivinha? - perguntou Carol, quase num murmúrio.
Therese mordeu a língua. Sim, adivinhava. Harg descobrira que
estavam a viajar juntas.
- Foi a Abby que a informou?
- A Abby descobriu -. Os dedos de Carol escorregaram pelo
cigarro abaixo e a brasa queimou-a. Quando tirou o cigarro da
boca, o lábio começou a sangrar-lhe.
Therese olhou em redor. A sala estava deserta.
- A seguir-nos? - perguntou. - Connosco?
- Talvez agora esteja em Salt Lake City. A investigar em
todos os hotéis. É um trabalho muito sujo, ninha querida.
Desculpe, desculpe, desculpe -. Carol i clinou-se
agitadamente para trás. - Talvez o melhor seja metê-la num
comboio e mandá-la para casa.
- Está bem... se pensa que essa é a melhor ideia.
238
- Não precisa de se envolver nisto. Eles que me sigam até ao
Alasca, se quiserem. Não sei o que terão descoberto, até
agora. Não creio que tenha sido muito.
Therese estava rigidamente sentada na beira da sua cadeira.
-Que está ele a fazer... a tomar apontamentos a nosso
respeito?
O velho voltava, trazendo-lhes copos de água. Carol acenou
afirmativamente à pergunta de Therese.
- E há também o truque do microfone - acrescentou, enquanto o
homem se afastava. - Não tenho a certeza se eles irão tão
longe. Não tenho a certeza de que oHarge fizesse isso -. O
canto da sua boca tremia. Olhou para uma mancha no oleado
branco gasto.
- E também não sei se eles tiveram tempo para instalar o
microfone em Chicago. Foi o único lugar onde nos demorámos
mais de dez horas. Espero que não tenham tido. Seria uma
ironia tão grande... Lembra-se de Chi cago?
- Claro que lembro -. Therese esforçava-se para
manter a sua voz firme, mas era fingimento, era o mesmo que
aparentar autodomínio quando uma coisa que
amamos está morta diante dos nossos olhos. Teriam de
se separar ali. - E quanto a Waterloo? - Lembrou-se
de súbito, do homem que vira no átrio.
- Chegámos lá tarde. Não teria sido fácil.
-Carol, eu vi alguém... não tenho a certeza, mas
parece-me que o vi duas vezes.
- Onde?
- No átrio do hotel em Waterloo, a primeira vez. De
manhã. Depois pareceu-me ver o mesmo homem naquele
restaurante com a lareira -. Tinha sido apenas na
noite anterior, o restaurante com a lareira.
Carol quis que descrevesse completamente o que se
passara nas duas vezes, assim como o homem. Ele era
difícil de descrever. Mas Therese espremeu os miolos para
extrair deles o mínimo pormenor a seu respeito, até à
cor, dos sapatos. E era estranho, e ao mesmo tempo aterrador
239
arrancar da memória o que talvez não passasse de uma
fantasia da sua imaginação e ligá-lo a uma situação que era
real. Tinha a sensação de que podia até estar a mentir a
Carol, enquanto via os seus olhos tornarem-se cada vez mais
intensos.
- Que pensa disto? - perguntou, no fim.
- Que pode alguém pensar? - Carol suspirou.
- Peço-lhe que esteja atenta, para o caso de o ver uma
terceira vez.
Therese olhou para o seu prato. Era impossível comer.
- É por causa da Rindy, não é?
- É -. Carol pousou o garfo, sem ter comido a pri meira
garfada, e pegou num cigarro. - O Harge quere-a... o tempo
todo. Talvez com isto pense que o pode conseguir.
- Só porque estamos a viajar juntas?
- Sim.
- Eu devia deixá-la.
- Diabos o levem - praguejou Carol em voz baixa, a olhar para
um canto da sala.
Therese esperou, embora soubesse que não havia nada a
esperar.
- Posso meter-me num autocarro em qualquer lado, e depois num
comboio.
- Quer ir?
- Claro que não quero. Penso apenas que é o melhor.
- Está com medo?
- Com medo? Não -. Sentiu os olhos de Carol medirem-na tão
rigorosamente como tinham feito naquele
momento em Waterloo, quando ela lhe dissera que a amava.
- Então macacos me mordam se a deixo partir! Quero que fique
comigo.
- Fala a sério?
- Falo. Coma os seus ovos e deixe de ser pateta -. Carol foi
mesmo ao ponto de sorrir um pouco. - Segui mos para o Reno,
como tínhamos planeado?
240
- Para qualquer lado.
- E não nos apressemos.
Momentos depois, quando estavam na estrada, Therese repetiu:
- Continuo a não ter a certeza se era o mesmo homem, na
segunda vez.
- Eu acho que tem a certeza - comentou Carol. Depois, na
comprida recta, parou subitamente o carro. Ficou um momento
calada, a olhar para a estrada. Depois olhou para Therese. -
Não posso ir para o Reno. Isto é um bocado divertido. Conheço
um lugar maravilhoso, logo a sul de Denver.
- Denver?
- Denver - repetiu Carol firmemente, e virou o carro em
marcha atrás.

CAPÍTULO XVIII
De manhã, ficaram deitadas nos braços uma da outra muito
depois de o sol ter entrado no quarto. O sol aquecia-as
através da janela do hotel da pequena cidade em cujo nome não
tinham reparado. Havia neve no solo, lá fora.
- Haverá neve no Estes Park - disse Carol.
- Que é o Estes Park?
- Vai gostar. Não é como o Yellowstone. Está aberto todo o
ano.
- Carol, não está preocupada, pois não?
Carol apertou-a a si.
- Estou a proceder como se estivesse preocupada?
Therese não estava preocupada. O pânico inicial desaparecera.
Estava vigilante, mas não como estivera na tarde da véspera,
logo depois de Salt Lake City. Carol queria-a consigo, e
fosse o que fosse que acontecesse seria enfrentado por elas
sem fugirem. Como era possível ter medo e estar apaixonada?,
pensava Therese. As duas coisas não combinavam. Como era
possível ter medo quando as duas se tornavam mais fortes
juntas, cada dia? E cada noite. Cada noite era diferente, e
cada manhã. Juntas estavam na posse de um milagre.
A estrada para Estes Park era a descer. A neve amontoava-se
cada vez mais alto de ambos os lados da estrada, e depois
começaram a aparecer luzes, enfileiradas ao longo dos abetos,
arqueadas sobre a estrada. Era uma aldeia de casas de troncos
castanhos, lojas e hotéis.
243
Havia música e na rua iluminada andavam pessoas de
cabeça erguida, como que encantadas.
- Gosto - disse Therese.
- O que não significa que não precisa de estar atenta ao
nosso homenzinho.
Levaram o gira-discos portátil para o quarto e tocaram alguns
discos que tinham acabado de comprar e outros antigos, de
Nova Jérsia. Therese quis ouvir Easy Lining duas vezes, e
Carol ficou do outro lado do quarto a
observá-la, sentada no braço de uma cadeira e de braços ;
cruzados.
- Faço-a passar um tempo desgraçado, não faço?
- Oh, Carol... - Therese tentou sorrir. Era apenas
um estado de espírito de Carol, apenas um momento.
Mas fazia-a sentir-se desamparada.
Carol olhou para a janela.
- Porque não fomos à Europa, para começar? Suíça.
Ou, pelo menos, não viemos para aqui de avião?
- Eu não teria gostado nada disso -. Therese olhou
para a camisa de camurça amarela que Carol lhe comprara e que
estava nas costas de uma cadeira. Carol enviara uma verde a
Rindy. Comprara uns brincos de prata, dois livros e uma
garrafa de Trile Sec. Há meia hora, tinham-se sentido
felizes, caminhando pelas ruas juntas.
- Foi aquele último uísque que tomou lá em baixo observou. -
O uísque deprime-a.
- Sério?
- Mais que o conhaque.
- Vou levá-la ao lugar mais bonito que conheço deste lado de
Sun Valley.
- Que mal há em Sun Valley? - Therese sabia que
ela gostava de esquiar.
- Sun Valley não é simplesmente o lugar indicado
- respondeu Carol, misteriosamente. - O lugar a que
me refiro fica perto de Colorado Springs.
Em Denver, Carol parou e vendeu o anel de noivado
de diamantes, numa joalharia. Therese sentiu-se um
pouco transtornada com isso, mas Carol disse que o anel
não significava nada para ela e, de qualquer modo, detestava
244
diamantes. Além disso, vendê-lo era mais rápido que
telegrafar ao seu banco a pedir que lhe mandassem dinheiro.
Tencionava parar num hotel a poucos quilómetros de Colorado
Springs, no qual já estivera antes, mas mudou de ideias
praticamente assim que lá chegaram. Parecia- se demasiado com
uma estância de férias, explicou, por isso foram para outro
hotel que ficava de costas para a cidade e voltado para as
montanhas. O quarto delas era comprido, da porta às janelas
quadradas até ao chão, que davam para um jardim e, depois
dele, para as montanhas vermelhas e brancas. Havia manchas
brancas no jardim, umas quantas pequenas pirâmides de pedra,
um ou outro banco ou cadeira brancos. Parecia ridículo,
comparado com a magnificente paisagem que o rodeava, a
planura que subia para montanhas atrás de montanhas, enchendo
o horizonte como metade de um mundo. O quarto tinha mobília
clara, quase da cor do cabelo de Carol, e havia uma estante
tão lisa e macia quanto se poderia desejar, com alguns bons
livros entre os maus, e Therese sabia que não leriam nenhum
deles enquanto ali permanecessem. Por cima da estante estava
pendurado um quadro representando uma mulher com um grande
chapéu preto e um lenço vermelho, e na parede mais próxima da
porta estava esticada uma pele de couro castanho - não se
tratava, porém, de uma pele verdadeira, mas de uma imitação
que alguém cortara de um bocado de camurça castanha. Por cima
dela, uma lanterna de folha com uma vela. Carol alugou também
o quarto contíguo, que tinha uma porta de comunicação com o
delas, embora não o utilizassem nem para pôr as malas de
viagem. Tencionavam demorar-se uma semana, ou mais, se
gostassem.
Na manhã do segundo dia, Therese voltou de uma visita de
inspecção ao recinto do hotel e encontrou Carol inclinada
para a mesa-de-cabeceira. Carol olhou-a apenas de relance,
dirigiu-se para o toucador e observou também debaixo dele, e
depois foi investigar o comprido roupeiro metido na parede.
- Pronto - disse. - Agora esqueçamos o assunto.
245
Therese sabia o que ela procurava.
- Não tinha pensado nisso - disse. - Tenho a impressão de que
o despistámos.
- Só que, provavelmente, a esta hora ele já deve ter chegado
a Denver - respondeu Carol, calmamente. Sorriu, mas com um
sorriso que lhe torceu um pouco a boca. - E, também
provavelmente, passará por aqui.
Ela tinha razão, claro. Havia mesmo uma probabilidade, ainda
que muito remota, de o detective as ter visto quando
retrocediam por Salt Lake City, e as ter seguido: Se não as
encontrasse em Salt Lake City, investigaria: nos hotéis. Ela
sabia que fora por isso que Carol deixara a morada de Denver,
precisamente porque não tencionà vam ir para lá. Therese
atirou-se para a poltrona e olhou i para Carol. Ela dera-se
ao trabalho de procurar um microfone, mas a sua atitude era
arrogante. Desafiara mesmo o perigo indo para ali. E a
explicação, a resolução daqueles factos contraditórios, não
se encontrava em lado algum a não ser na própria Carol,
indecisa, nos seus passos lentos e inquietos, ao caminhar
agora para a porta e voltar para trás, no porte indiferente
da sua cabeça levantada e na linha nervosa das sobrancelhas,
que num segundo registavam irritação e no seguinte estavam
serenas. Therese olhou para o grande quarto, para o tecto
alto, para a grande cama quadrada e simples, para o quarto
que, não obstante toda a sua modernidade, tinha um ar amplo,
antiquado, que ela associava com o Oeste americano, como as
enormes selas da região que vira mo estábulo de cavalos de
montar, em baixo. E um aspecto de asseio, também. E, no
entanto, Carol procurava um microfone. Therese observava-a,
voltando atrás na sua direcção, ainda de pijama e roupão.
Sentiu um impulso de correr para ela, esmagá-la nos braços,
empurrá-la para a cama - e o facto de Carol não a deixar
agora tensa e alerta encheu- a de uma alegria contida, mas
afoita:
Carol soprou fumo para o ar.
- Estou-me nas tintas. Espero que os jornais descubram o que
se passa e esfreguem a cara do Harge na sua própria porcaria.
Desejo que ele desbarate cinquenta
246
mil dólares. Quer que levemos, esta tarde, aquela chata que
leva a língua inglesa à falência? Já falou à senhora
French?
Tinham conhecido a senhora French na noite anterior, na sala
de jogos do hotel. Ela não tinha carro e Carol perguntara-lhe
se queria dar um passeio de automóvel com elas.
- Falei - respondeu Therese. - Ela disse que estaria pronta
logo a seguir ao almoço.
- Leve a sua camisa de camurça -. Carol tomou nas mãos o
rosto de Therese, apertou-o e beijou-a.
- Vista-a agora.
Era uma viagem de seis ou sete horas à mina de ouro de Griple
Greek. A senhora French foi com elas, sem parar de falar. Era
uma mulher dos seus setenta anos, com sotaque de Marilândia e
aparelho auditivo sempre pronta para sair do carro e subir
fosse para onde fosse, apesar de ter de ser ajudada em cada
passo do caminho. Therese sentia-se muito preocupada com ela,
embora na realidade lhe desagradasse tocar-lhe, sequer. Tinha
a impressão de que, se caísse, a senhora French se quebraria
num milhão de bocadinhos. Carol e a senhora French falavam do
estado de Washington, que a segunda conhecia bem em virtude
de lá ter vivido nos últimos anos com um dos seus filhos.
Carol fez algumas perguntas e a senhora French contou-lhe
tudo a respeito dos seus doze anos de viagens, desde a morte
do marido, e dos seus dois filhos, o de Washington e o do
Havai que trabalhava para uma empresa que negociava em
ananases. E, obviamente, a senhora French adorava Carol e com
certeza, iam vê-la muitas mais vezes. Eram quase onze horas
quando chegaram ao hotel, de regresso. Carol convidou a
senhora French para cear com elas no bar, mas ela disse que
estava tão cansada que se contentaria com os seus flocos de
trigo com leite quente, que comeria no seu próprio quarto.
- Ainda bem - comentou Therese, quando ela as
deixou. - Prefiro ficar sozinha consigo.
247
- Deveras, menina Belivet? Que quer dizer ao certo? -
perguntou Carol, enquanto abria a porta do bar. - Acho melhor
sentar-se e dizer-me tudo a esse respeito.
Mas não estiveram sozinhas no bar mais de cinco minutos. Dois
homens, um chamado Dave e outro cujo
nome Therese, pelo menos, não sabia nem estava interessada em
saber, aproximaram-se e perguntaram se podiam fazer-lhes
companhia. Eram os dois que tinham estado na sala de jogos,
na noite anterior, e as haviam
convidado para jogar gin rumm. [Jogo de cartas. (N. do E. )]
Nessa altura Carol declinara, mas agora respondeu:
- Claro, sentem-se.
Carol e Dave iniciaram uma conversa que parecia
muito interessante, mas o lugar onde Therese estava sentada
não lhe dava grande possibilidade de participar nela. E o
homem a seu lado queria falar de outra coisa, de
uma viagem a cavalo que acabara de fazer por Steaboat
Springs. Depois de cearem, Therese aguardou u
sinal de Carol para se recolherem, mas ela continuava
muito entretida a conversar. Therese lera coisas acerca
do prazer especial que causava às pessoas o facto de
alguém que amavam ser, também, atraente aos olhos de
outros. Ela não sentia, simplesmente, esse prazer.
olhava de vez em quando para ela e piscava-lhe o olho.
Por isso, Therese ficou ali sentada hora e meia e conseguiu
ser cortês, porque sabia que Carol queria que o fizesse com
As pessoas que se lhes reuniam no bar e, algumas
vezes, na sala de jantar, não a aborreciam tanto como a
senhora French, que quase todos os dias ia com elas
a qualquer lado, de carro. Nessas ocasiões, um ressentimento
de que na realidade se envergonhava crescia nela,
porque alguém a impedia de estar a sós com Carol.
- Minha querida, alguma vez pensou que um
dia também terá setenta e um anos?
- Não - respondeu Therese.
Mas havia outros dias em que se metiam no carro e
248
iam sozinhas para as montanhas, metendo por qualquer estrada
que encontrassem. Uma vez, foram ter a uma pequena cidade de
que gostaram e passaram lá a noite, sem pijamas nem escovas
de dentes, sem passado ou futuro, e a noite tornou-se mais
uma daquelas ilhas no tempo, suspensa algures no coração ou
na memória, intacta e absoluta. Ou talvez não fosse outra
coisa senão amizade, pensava Therese, uma amizade completa,
plena, que devia ser tão rara que eram muito poucas as
pessoas que alguma vez a sentiam. Mas se era meramente
felicidade, então ultrapassara os limites comuns e tornara-se
outra coisa, uma espécie de pressão excessiva, de tal modo
que o peso de uma chávena de café na sua mão, a velocidade de
um gato a atravessar o jardim, em baixo, ou o choque
silencioso de duas nuvens pareciam quase superiores às suas
forças. E do mesmo modo que não compreendera, há um mês, o
fenómeno da felicidade súbita, assim também não compreendia
agora o seu estado, que parecia uma sequela do anterior. Era,
frequentemente, mais doloroso que agradável, e por isso ela
receava sofrer de alguma deficiência grave e única. Às vezes
tinha medo, como se andasse por ali com a espinha partida. Se
calhava sentir um impulso para o dizer a Carol, as palavras
dissolviam-se antes de ela começar, perdiam-se no medo e na
sua desconfiança habitual em relação às suas próprias
reacções, na angústia de pensar que as suas reacções não eram
como as de mais ninguém e, por conseguinte, nem mesmo Carol
seria capaz de as compreender.
De manhã, costumavam dirigir-se para qualquer lado, nas
montanhas, e deixarem o carro sempre que se oferecia a
oportunidade de subirem a um monte. Viajavam ao acaso, por
estradas em ziguezague que eram como linhas de giz branco
ligando um ponto da montanha a outro. De longe, podiam ver
nuvens pairando sobre os picos mais altos, o que lhes dava a
sensação de voarem no espaço, um pouco mais perto do céu que
da terra. O lugar preferido de Therese ficava na auto-estrada
acima de Gripple Greek, onde a estrada se agarrava
subitamente
249
à aresta de uma gigantesca depressão. Lá muito em baixo,
via-se a pequena desordem da cidade mineira abandonada. Aí os
olhos e o cérebro pregavam partidas entre si, pois era
impossível fazer uma ideia concreta da proporção das coisas
de baixo, impossível compará-las com qualquer escala humana.
A sua própria mão, colocada à sua frente, podia parecer
liliputiana ou curiosa: =mente enorme. E a cidadezinha
ocupava apenas uma fracção do grande rasgão côncavo da terra,
como una única experiência, uma única coisa comum situada em
determinado e incomensurável território da mente: O olhar,
flutuando no espaço, voltava a repousar no lu gar que parecia
uma caixa de fósforos esmagada por um automóvel, a confusão
criada pelo homem na pequena cidade.
Therese estava sempre atenta, a ver se aparecia o homem com
os sulcos de cada lado da boca, mas Carol nunca. Carol não
voltara sequer a mencioná-lo depois do seu segundo dia em
Colorado Springs, e entretanto tinham passado dez dias. Em
virtude de o restaurante hotel ser famoso, todas as noites
aparecia gente nova na grande sala de jantar, e Therese dava
sempre uma olhadela em redor, sem esperar, realmente, vê-lo,
mas com uma espécie de precaução que se transformara num
hábito. Carol, porém, não prestava atenção a ninguém a não
ser a Walter, o empregado de mesa que as servia que todas as
noites vinha perguntar- Lhes que cocktail desejavam. Em
contrapartida, eram muitas as pessoas que olhavam para Carol,
pois ela era, geralmente, a muler mais atraente da sala. E
Therese sentia-se tão encantada na sua companhia, tão
orgulhosa dela, que não tinha olhos para mais ninguém.
Enquanto lia a ementa, Carol pisava-lhe devagarinho o pé,
debaixo da mesa, para a zer sorrir.
- Que lhe parece a Islândia no Verão? - podia
perguntar, porque faziam questão de falar de viagens, se via
um silêncio a seguir a sentarem-se.
- Tem de escolher terras tão frias? Quando é que
trabalharei?
250
- Não esteja triste. Convidamos a senhora French? Acha que
ela se importaria se déssemos as mãos?
Uma manhã, chegaram três cartas: de Rindy, de Abby e de
Dannie. Era a segunda carta de Abby, que antes não tivera
mais notícias a dar, e Therese reparou que Carol abriu
primeiro a carta da filha. Dannie dizia que continuava à
espera do resultado de duas entrevistas acerca de empregos. E
informava que Phil dizia que Harkevy ia fazer os cenários
para a peça ingelsa The Faint Heart, em Março.
- Ouça isto - pediu Carol. - "Encontrou alguns tatus no
Colorado? Gostava que me mandasse um, pois o camaleão perdeu-
se. O paizinho e eu procurámo-lo na casa toda, mas não o
achámos. Se me mandar o tatu, será suficientemente grande
para não se perder. " Novo parágrafo. "Tive noventa no
ditado, mas só setenta na aritmética. Detesto aritmética.
Detesto a professora. Bem, tenho de acabar. Saudades para si
e para a Abby. Rindy. P. S. Muito obrigada pela camisa de
camurça. Opaizinho comprou-me uma bicicleta de duas rodas,
tamanho normal. Tinha dito que eu era pequena de mais para
ela no Natal. Mas não sou. É uma linda bicicleta. " Ponto
final. Para que me esforço eu? O Harge consegue passar-me
sempre à frente -. Carol pousou a carta da filha e pegou na
de Abby.
- Por que diz a Rindy "Saudades para si e para a Abby"? -
perguntou Therese. - Ela pensa que a Carol está com a Abby?
- Não -. O abre-cartas de madeira da Carol parou a meio do
sobrescrito de Abby. - Suponho que ela pensa que eu Lhe
escrevo - acrescentou, e acabou de abrir o sobrescrito.
- Quero dizer, o Harge não lhe diria isso, pois não?
- Não, meu amor - respondeu Carol, preocupada, a ler a carta
de Abby.
Therese levantou-se, atravessou o quarto e parou à janela a
olhar para as montanhas. Escreveria a Harkevy naquela tarde,
pensou, a perguntar- lhe se haveria alguma possibilidade de
um lugar de assistente para ela, no
251
seu grupo, em Março. Começou a redigir a carta mentalmente.
As montanhas devolviam-lhe o olhar como
majestosos leões fulvos, olhando-a do alto da sua eminência.
Ouviu Carol rir-se duas vezes, embora ela não
lhe lesse alto nenhuma passagem daquela carta.
- Nenhuma novidade? - perguntou-lhe Therese, quando ela
acabou.
- Não, nenhuma novidade.
Carol ensinou-a a conduzir nas estradas à roda do
sopé das montanhas, onde era muito raro passarem
automóveis. Therese nunca na sua vida tinha aprendido
nada tão depressa, e ao fim de dois dias Carol deixou-a
conduzir no regresso a Colorado Springs. Em Denver
submeteu-se a exame e obteve a licença necessária. Carol
disse-lhe que poderia encarregar-se de metade da
condução quando voltassem para Nova Iorque, se quisesse.
Uma noite, à hora do jantar, ele estava sentado sozinho a uma
mesa, à esquerda e atrás de Carol. Therese
engasgou-se, sem ter nada na boca, e pousou o garfo.
O seu coração começou a bater como se quisesse abrir
caminho para fora do seu peito à martelada. Como pudera ela
chegar a meio da refeição sem o ter visto? Levantou os olhos
para o rosto de Carol e encontrou-a a
observá-la, a ler o que se passava com os olhos cinzentos,
menos calmos agora que um momento antes. Carol
calara-se a meio de uma frase.
- Fume um cigarro - disse, estendendo-lhe um cigarro e
acendendo-lhe. - Ele não sabe que a Therese o
pode reconhecer, pois não?
- Não.
- Bem, não permita que o descubra -. Carol sorriu-Lhe,
acendeu também um cigarro para si e olhou na
direcção oposta ao detective. - Tenha calma - acrescentou, no
mesmo tom.
Era fácil dizê-lo, fora fácil pensar que poderia olhá-lo
quando voltasse a vê-lo, mas de que servia tentar quando era
como se fosse atingida no rosto por uma bala de canhão?
252
- Não quer sobremesa esta noite? - perguntou Carol,
consultando a ementa. - Isso parte-me o coração.
Sabe o que vamos tomar?
- Chamou o empregado de mesa.
Walter acorreu, sorridente, ansioso por servi-las, como todas
as noites.
- Sim, madame?
- Dois Remy Martins, por favor, Walter - disse-Lhe
Carol.
O conhaque ajudou muito pouco, se é que ajudou alguma coisa.
O detective não olhou nem uma vez para
elas. Estava a ler um livro que encostara ao suporte metálico
dos guardanapos, e mesmo agora Therese continuava com uma
dúvida tão forte como a que sentira no
café à saída de Salt Lake City, uma incerteza que conseguia
ser mais horrível do que saber positivamente que
ele era o detective.
- Temos de passar por ele, Carol? - Havia uma
porta atrás do homem que dava para o bar.
- Temos. É por esse lado que saímos -. As sobrancelhas de
Carol ergueram-se quando ela sorriu, exactamente como em
qualquer outra noite. - Ele não nos pode fazer nada. Receia
que nos aponte alguma arma?
Therese seguiu-a e passou a trinta centímetros do indivíduo,
cuja cabeça estava baixa, voltada para o livro.
À sua frente, viu a figura de Carol inclinar-se graciosamente
quando ela cumprimentou a senhora French, que
estava sentada sozinha a uma mesa.
- Porque não foi juntar-se a nós? - perguntou Carol, e
Therese lembrou-se de que as duas mulheres com
quem a senhora French costumava comer tinham partido naquele
dia.
Carol deteve-se mesmo a conversar alguns momentos com a
senhora French, e Therese sentiu-se maravilhada com tanto
sangue-frio, mas não foi capaz de parar ali e, por isso,
passou adiante e foi esperar junto
dos elevadores.
No quarto, Carol encontrou o pequeno aparelho fixado num
canto, debaixo da mesa-de-cabeceira. Pegou na
253
tesoura e, servindo-se de ambas as mãos, cortou o fio que
desaparecia debaixo da alcatifa.
- As pessoas do hotel deixaram- no entrar aqui?perguntou
Therese, horrorizada.
- Provavelmente ele arranjou uma chave -. Carol arrancou o
objecto com um puxão e deixou-o cair na alcatifa: uma
caixinha preta com um pedaço de fio. - Repare, parece um
rato. Um retrato do Harge -. O rosto de Carol corou
subitamente.
- Onde vai ter?
- A algum quarto onde é gravado. Talvez do outro lado do
corredor. Benditas alcatifas modernas de parede a parede!
Carol empurrou o microfone, com um pontapé, para o meio do
quarto.
Therese olhou para a caixinha rectangular e imaginou-a a
beber as palavras ditas por elas na noite anterior.
- Há quanto tempo estará aqui? - perguntou.
- Há quanto tempo pensa que ele cá pode estar sem a Therese o
ter visto?
- Desde ontem, na pior das hipóteses - respondeu, embora
tivesse, no mesmo instante, consciência de que podia estar
enganada. Não podia ver a cara de todas as pessoas que
estavam no hotel.
E Carol abanava a cabeça.
- Precisaria ele de quase duas semanas para nos seguir o
rasto de Salt Lake City até aqui? Não, ele decidiu apenas
jantar esta noite connosco -. Carol virou-se, da estante, com
um copo de conhaque na mão. O rubor deixara-lhe o rosto.
Sorriu mesmo um pouco a Therese.
- Tipo desastrado, não acha? - Sentou-se na cama, puxou uma
almofada para trás de si e recostou-se.
- Bem, estivemos aqui praticamente o tempo suficiente, não
estivemos?
- Quando quer partir?
- Talvez amanhã. Fazemos as malas de manhã e partimos depois
do almoço. Que lhe parece?
Mais tarde, meteram-se no carro e deram um passeio,
254
para oeste, no escuro. Não viajaremos mais para oeste,
pensou Therese. Não conseguia expulsar o pânico que se
encontrava no próprio âmago do seu ser, que sentia ser devido
a qualquer coisa antiga, algo que acontecera há muito tempo,
não agora, não aquilo. Estava inquieta, mas Carol não. Carol
não se limitava a fingir serenidade; não tinha realmente
medo. Que podia ele ter feito, no fim de contas, perguntara
Carol, mas ela não queria, simplesmente, ser espiada.
- Mais uma coisa - disse Carol. - Tente descobrir em que tipo
de carro ele viaja.
Nessa noite, quando falavam de mapa aberto acerca do caminho
que seguiriam no dia seguinte, quando falavam em tom prático
como duas desconhecidas, Therese pensou: esta noite não será
com certeza como a noite passada. Mas quando se beijaram a
desejar as boas noites, na cama, Therese sentiu o súbito
disparo de ambas, aquela reacção que se dava nas duas como se
os seus corpos fossem feitos de materiais que, ao
estabelecerem contacto, geravam inevitavelmente desejo.

CAPíTULO XIX

Therese não conseguiu descobrir que género de carro era o


dele, porque os carros estavam fechados em garagens separadas
e embora ela as pudesse ver do solário, não o viu a ele sair
nessa manhã. Tão-pouco o viram à
hora do almoço.
A senhora French insistiu para que fossem ao seu quarto
tomar um licor, quando soube que iam partir.
- Tem de aceitar um copinho de despedida - disse a senhora
French a Carol. - Eu nem sequer ainda tenho a sua morada!
Therese lembrou-se de que tinham prometido trocar bolbos de
flores. Recordou uma longa conversa no carro, um dia, acerca
de bolbos de flores, que cimentara a amizade delas. Carol foi
incrivelmente paciente até ao fim. ninguém diria, vendo-a
sentada no sofá da senhora French, com o pequeno copo que a
idosa senhora não parava de encher, que estava com pressa de
partir. A senhora French beijou ambas na face, quando se
despediram.
Em Denver meteram por uma auto-estrada para norte, na
direcção de Wyoming. Pararam para tomar café no tipo de lugar
de que sempre gostavam, um restaurante vulgar, com um balcão
e uma máquina automática de música. Meteram moedas na
máquina, mas não foi como antes. Therese sabia que não seria
como antes durante o resto da viagem, embora Carol
continuasse a falar em irem a Washington, e talvez mesmo ao
Canadá. Therese sentia que a meta de Carol era Nova Iorque.
257
Passaram a primeira noite num acampamento de turistas
construído como um círculo de cabanas de índios. Enquanto se
despiam, Carol olhou para o tecto, onde os postes da cabana
se juntavam em ângulo, e disse com enfado: "O trabalho que
alguns idiotas têm!" E, por qualquer razão, Therese achou as
palavras histericamente cómicas. Riu-se até Carol se cansar e
ameaçar obrigá-la a beber um cálice de conhaque se não
parasse. Therese continuava a sorrir, parada junto da janela
com um conhaque na mão, à espera de que Carol saísse do
chuveiro, quando viu um carro aproximar-se da grande cabana
que servia de escritório e parar. Passado um momento, o homem
que entrara no escritório saiu e olhou à
volta, para a área escura dentro do círculo de cabanas, e
foram os seus passos furtivos que lhe chamaram a atenção.
Teve subitamente a certeza, sem precisar de lhe ver a cara ou
sequer a figura com muita nitidez, de que era o detective.
- Carol! - chamou.
Carol afastou a cortina do chuveiro, olhou para ela e parou
de se enxugar.
- É...
- Não sei, mas penso que sim - respondeu Therese, e viu a ira
alastrar lentamente pelo rosto de Carol e torná-lo rígido, o
que a abalou de tal modo que a devolveu à sobriedade, como se
acabasse de ter consciência de um insulto feito a si própria
ou a Carol.
- Jesus! - exclamou Carol, e atirou a toalha para o chão.
Enfiou o roupão e atou o cinto. - Bem... que está ele a
fazer?
- Suponho que vai ficar aqui. - Therese recuou da beira da
janela. - De qualquer modo, o carro dele ainda está defronte
do escritório. Se apagarmos a luz, poderei ver muito melhor.
Carol gemeu.
- Oh, não faça isso! Eu não seria capaz. Maça-me
- disse, com o máximo enfado e repugnância. E Therese sorriu,
de esguelha, e conteve outro impulso insano para desatar a
rir, porque Carol teria ficado
258
furiosa se ela se risse. Depois viu o carro passar por baixo
da porta da garagem de uma cabana do outro lado do círculo.
- Sim, ele vai ficar aqui. O carro é um sedan preto de duas
portas.
Carol sentou-se na cama, com um suspiro. Sorriu a Therese, um
sorriso leve, de fadiga e tédio, resignação, impotência e
ira.
- Tome o seu duche. E depois volte a vestir-se.
- Mas eu não tenho sequer a certeza se é ele.
- O diabo do problema é precisamente esse, amor.
Therese tomou duche e deitou-se, vestida, ao lado de Carol,
que apagara a luz. Fumava cigarros às escuras e esteve muito
tempo sem dizer nada, até que finalmente lhe tocou no braço.
- Vamos - disse. Eram três e meia da manhã quando saíram do
acampamento turístico. Tinham pago a conta antecipadamente.
Não havia luz em lado algum, e a não ser que o detective as
estivesse a observar com a sua luz apagada, ninguém as viu. -
Que quer fazer - perguntou depois -, voltar a dormir em
qualquer lado?
- Não. E a Carol?
- Não. Vejamos que distância conseguimos percorrer. - Pisou o
acelerador até ao fundo. A estrada estava deserta e era lisa
até onde os faróis permitiam ver.
Quando a alvorada despontava, um polícia de trânsito mandou-
as parar por excesso de velocidade e Carol teve de pagar uma
multa de vinte e dois dólares numa cidade chamada Central
City, no Nebrasca. Perderam cinquenta quilómetros por terem
de voltar atrás com o polícia até à cidadezinha, mas Carol
fez tudo isso sem uma palavra, o que não parecia dela e não
teve qualquer semelhança com uma vez em que argumentara com
outro polícia de trânsito e o adulara até conseguir safar-se
de uma detenção por excesso de velocidade, e para mais
tratando-se de um polícia de trânsito de Nova Jérsia.
- Irritante - comentou Carol quando voltaram para o carro, e
essa foi a única palavra que disse durante horas.
259
Therese ofereceu-se para conduzir, mas Carol disse que
queria ser ela a fazê-lo. E a pradaria plana do Nebrasca
desenrolava-se diante delas, amarelada pelo restolho do
trigo, com manchas castanhas de terra nua de pedra,
enganosamente cálida de aspecto ao sol brando do Inverno. Em
virtude de irem agora mais devagar, Therese tinha a sensação,
que raiava o pânico, de que não avançavam sequer, como se a
terra fugisse debaixo delas e continuassem no mesmo lugar.
Observava a estrada, na retaguarda, atenta ao possível
aparecimento de outro carro-patrulha, do carro do detective e
da coisa informe, inominável, que sentia persegui-las desde
Colorado Springs. Observava a terra e o céu, atenta aos even
tos sem significado a que a sua mente teimava em atribuir
significado. Por volta das oito horas, uma sonolência
invencível tornou-Lhe as pálpebras pesadas e nublou-lhe a
cabeça, de tal modo que quase não sentiu qualquer surpresa
quand viu atrás delas um carro como aquele a cujo
aparecimento estivera atenta, um sedan escuro de duas portas.
- Há um carro como o dele atrás de nós - disse.
- Tem uma chapa de matrícula amarela.
Carol não disse nada durante um minuto, mas olhou
para o retrovisor e soltou a respiração por entre os lábios
franzidos.
- Duvido que seja o nosso. Se é, o indivíduo é melhor do que
eu pensava -. Começou a reduzir a velocidade. - Se eu o
deixar passar, acha que pode reconh cê-lo?
- Acho -. Naquela altura, não seria capaz de reconhecer o
vulto mais indistinto dele?
Carol reduziu a velocidade quase até parar, pegou
no mapa rodoviário, abriu-o no volante e olhou O outro carro.
aproximou- se - era ele que ia lá dentro - e passou.
- Sim - disse Therese. O homem nem a olha.
260
Carol acelerou.
- Tem a certeza, não tem?
- Absoluta -. Therese viu o velocímetro subir aos sessenta e
cinco quilómetros e ultrapassá-los. - Que vai fazer?
- Falar com ele.
Carol reduziu a velocidade à medida que a distância
encurtava. Colocaram-se ao lado do carro do detective e o
homem voltou-se para as olhar, com a boca larga e recta como
de costume, os olhos como pingos cinzentos redondos, tão
inexpressivos como a boca. Carol fez-lhe sinal, acenando com
a mão para baixo. A velocidade do
carro do homem diminuiu.
- Desça o vidro da sua janela - disse a Therese. O carro do
detective encostou à berma arenosa da estrada e parou.
Carol parou também o seu, com as rodas traseiras na auto-
estrada, e falou para o outro lado de Therese:
- Gosta da nossa companhia, ou quê? - perguntou. O homem saiu
do carro e fechou a porta. Alguns metros de terreno separavam
os carros, e o detective atravessou metade dessa distância e
parou. Os seus olhos pequenos e inexpressivos tinham orlas
mais escuras à volta das íris cinzentas, como os olhos
parados e vazios de um boneco. Não erajovem. O seu rosto
parecia gasto e cansado pelo tempo, e a sombra da barba
acentuava os sulcos curvos de cada lado da sua boca.
- Estou a fazer o meu trabalho, senhora Aird - declarou.
- Isso é muito óbvio. É um trabalho desagradável, não é?
O detective bateu um cigarro na unha do polegar e acendeu-o,
apesar das rajadas de vento, com uma lentidão que sugeria um
desempenho em palco.
- Pelo menos está quase acabado.
- Então porque não nos deixa em paz? - perguntou Carol, com a
voz tão tensa como o braço com que se apoiava no volante.
- Porque tenho ordens para as seguir nesta viagem.
261
Mas se a senhora está a voltar para Nova Iorque, deixarei de
ter de o fazer. Aconselho-a a regressar, senhora Aird. Vai
regressar?
- Não, não vou.
- Em virtude de eu estar de posse de certa informação...
enfim, baseado nessa informação, acho que seria do seu
interesse regressar e ter cuidado.
- Obrigada - agradeceu Carol cinicamente.
- Muito obrigada por mo dizer: Mas não faz parte dos meus
planos regressar, por enquanto. Posso, no entanto, informá-lo
do nosso itinerário, para que nos deixe em paz e ponha o sono
em dia.
O detective olhou-a com um sorriso falso e sem significado,
de modo algum como uma pessoa, mas como um maquinismo a que
se dera corda e se pusera em movimento.
- Penso que regressará a Nova Iorque. Estou-lhe a dar um bom
conselho. A sua filha está em jogo. Suponho que sabe isso,
não sabe?
- A minha filha é propriedade minha!
Um vinco na cara do detective crispou-se.
- Um ser humano não é propriedade, senhora Aird. Carol
levantou a voz:
- Vai andar atrás de nós o resto do caminho?
- Regressa a Nova Iorque?
- Não.
- Acho que regressa - redarguiu o detective, e adiantou-se
lentamente na direcção do seu carro.
Carol pisou o acelerador. Pegou na mão de Therese
apertou-a um momento, num gesto tranquilizador, e depois o
carro lançou-se para a frente. Therese tinha os co tovelos
apoiados nos joelhos e as mãos comprimidas contra a testa,
entregue a uma vergonha e um espanto que nunca sentira antes,
que contivera na presença do detective.
- Carol! i Carol chorava, em silêncio. Therese olhou para a
curva descendente dos seus lábios, que não tinha nada a ver
com ela, antes parecia o esgar de uma criança a chorar.
262
Olhou incredulamente para a lágrima que lhe descia pela face.
- Dê-me um cigarro - pediu Carol.
Quando Therese lho estendeu, aceso, ela limpara a lágrima e
deixara de chorar. Conduziu um minuto, lentamente, a fumar o
cigarro.
- Passe para trás e tire a arma - pediu. Therese não se
mexeu, durante um momento.
- Faça isso, sim? - pediu Carol, olhando-a de relance.
Therese, que vestia calças compridas, passou agilmente por
cima das costas do banco, para trás, e puxou a mala azul-
marinho para cima do banco. Abriu-a e tirou a camisola em que
a arma estava embrulhada.
- Dê-ma - pediu Carol, calmamente. - Quero-a na minha
algibeira lateral -. Estendeu a mão por cima do ombro e
Therese depositou nela a coronha branca da arma e passou de
novo para o banco da frente.
O detective continuava a segui-las, menos de um quilómetro na
sua retaguarda, atrás do cavalo e da carroça que tinham saído
de um caminho de terra para a auto-estrada. Carol pegou na
mão de Therese e conduziu com a esquerda. Therese olhou para
os dedos levemente sardentos, cujas pontas fortes e frias
apertavam a palma da sua mão.
- Vou falar novamente com ele - disse Carol. Pisou com
firmeza o acelerador. - Se quer sair, deixo-a na primeira
estação de serviço que encontrarmos, ou em qualquer outro
lugar, e depois volto atrás e vou buscá-la.
- Não a quero deixar - respondeu Therese. Carol ia exigir ao
detective que lhe entregasse as gravações e ela teve uma
visão de Carol ferida, do detective a sacar a arma com uma
rapidez suave de perito e a disparar antes de Carol ter tempo
de puxar o gatilho, sequer. Mas coisas dessas não aconteciam,
não aconteceriam, pensou, e cerrou os dentes. Apertou a mão
de Carol.
- Está bem. Mas não se preocupe. Eu quero só falar com ele -.
Virou bruscamente o carro para uma estrada mais pequena, que
partia da auto- estrada, à esquerda.
263
A estrada subia entre montes em declive, virava e seguia
entre arvoredo. Carol conduzia depressa, apesar de o caminho
ser mau.
- Ele segue-nos, não segue?
- Segue.
Havia uma casa de quinta nos montes ondulantes, e
depois nada mais além de terra restolhenta e rochosa e a
estrada que desaparecia constantemente à roda de curvas que
surgiam à frente. Numa altura em que a estrada acompanhava um
monte em declive, Carol contornou uma curva e parou
descuidadamente, com metade do carro na estrada.
Levou a mão à algibeira lateral e tirou a arma. Abriu
qualquer coisa, e Therese viu as balas, no interior. Depois
Carol olhou pelo pára-brisas e deixou cair as mãos, com a
arma, no colo.
- É melhor não, é melhor não - disse muito depressa, e meteu
novamente a arma na algibeira. Depois tomou o volante e
endireitou o carro ao lado do monte.
- Fique no carro - disse a Therese, e saiu. Therese ouviu o
automóvel do detective. Carol caminhou devagar na direcção do
som, e a seguir o automóvel contornou a curva, não a grande
velocidade, mas os travões chiaram e Carol desviou-se para o
lado da estrada. Therese abriu ligeiramente a porta e apoiou-
se no parapeito da janela.
O homem desceu do carro e, levantando a voz no
vento, perguntou:
- Que temos agora?
- Que lhe parece? - Carol aproximou-se um pouco mais dele. -
Gostaria que me entregasse tudo quanto tem a meu respeito:
gravações e o mais que tiver.
As sobrancelhas do detective quase não se ergueram sobre os
pontos pálidos que eram os seus olhos. Encostou-se ao pára-
choques da frente do carro, com um sorriso sardónico na boca
larga e fina. Olhou para Therese e depois de novo para Carol.
- Já foi tudo enviado. Não tenho nada, além de alguns
apontamentos. Acerca de datas e lugares.
- Muito bem, gostaria que mos entregasse.
264
- Quer dizer que pretende comprá-los?
- Eu não disse isso, o que disse foi que gostaria que mos
entregasse. Prefere vendê-los?
- Não sou pessoa que se possa comprar.
- Porque está a fazer isto, a não ser por dinheiro?
- perguntou Carol, impacientemente. - Porque não ganhar um
pouco mais? Quanto receberá pelo que tem?
O homem cruzou os braços.
-Já lhe disse que foi tudo enviado. A senhora estaria a
deitar o seu dinheiro à rua.
- Não creio que já tenha posto no correio as gravações de
Colorado Springs.
- Não? - perguntou ele, sarcasticamente.
- Não. Dou-lhe o que pedir por elas.
O homem mediu Carol de alto a baixo, olhou para Therese e
novamente a boca se lhe estendeu num sorriso.
-Vá buscá-las... gravações, apontamentos, seja o que for -
disse Carol, e o homem mexeu-se.
Contornou o carro para o compartimento da bagagem, e Therese
ouviu o tilintar das chaves quando ele o abriu. Incapaz de
continuar mais tempo metida no automóvel, saiu e foi parar a
poucos passos de Carol. O de tective estava a tirar qualquer
coisa de uma grande mala. Quando se endireitou, a porta
levantada do compartimento da bagagem tirou-lhe o chapéu. Ele
pisou a aba, para impedir que o vento o levasse. Agora tinha
uma coisa numa das mãos; tão pequena que não se via.
- São duas - disse. - Calculo que valem quinhentos. Valeriam
mais, se não houvesse outras em Nova Iorque.
- É um grande vendedor. Não acredito em si - respondeu Carol.
- Porquê? Eles estão cheios de pressa de as receber, em Nova
Iorque -. Apanhou o chapéu e fechou a porta do compartimento
da bagagem. - Mas agora já têm que chegue. Eu disse-Lhe que
seria melhor para si regressar a Nova Iorque, senhora Aird -.
Esmagou o cigarro com o pé na terra solta. - Vai regressar
agora a Nova Iorque?
265
- Não mudo de opinião - respondeu-Lhe Carol.
O detective encolheu os ombros.
- Não tomo partido, não estou de um lado nem do outro. Quanto
mais depressa a senhora regressar a Nova Iorque, mais
depressa podemos dar o assunto por arrumado.
- Podemos dá-lo por arrumado agora, já. Depois de me entregar
o que tem aí, pode ir-se embora e continuar sempre na mesma
direcção.
O detective estendera devagar a mão cerrada, como num jogo em
que o punho fechado pode não esconder nada.
- Está disposta a dar-me quinhentos dólares por elas?
Carol olhou para a mão dele e depois abriu a mala a tiracolo.
Tirou a carteira e em seguida o livro de cheques.
- Prefiro dinheiro - disse ele.
- Não tenho.
Ele encolheu de novo os ombros.
- Está bem, aceito um cheque.
Carol preencheu o cheque em cima do pára-choques do carro do
detective.
Quando o homem se inclinou para observar Carol, Therese viu o
pequeno objecto preto que ele tinha na mão. Aproximou-se
mais. O homem estava a soletrar o seu nome. Quando Carol lhe
deu o cheque, ele deixou cair duas caixinhas pretas na sua
mão.
- Há quanto tempo anda a recolhê-las? - perguntou Carol.
- Ouça-as e saberá.
- Não vim aqui para brincadeiras! - exclamou Carol, e a voz
tremeu-lhe.
O detective sorriu, enquanto dobrava o cheque.
- Não diga que não a avisei. O que recebeu de mim não é tudo.
Já está que chegue em Nova Iorque.
Carol fechou a mala e voltou-se na direcção do seu carro, sem
olhar sequer para Therese. Depois parou e encarou de novo o
detective.
266
- Se eles já têm tudo quanto querem, agora pode largar-nos,
não pode? Promete que o fará?
O homem estava parado, com a mão na porta do seu carro, a
olhar para ela.
- Eu continuo no caso, senhora Aird... continuo a trabalhar
para o meu escritório. A não ser que a senhora queira apanhar
um avião para regressar agora. Ou vá para qualquer outro
lado. Despiste-me. Terei de dizer alguma coisa no
escritório... de justificar o facto de não ter os últimos
dias em Colorado Springs... qualquer coisa mais excitante que
isto.
- Oh, eles que inventem qualquer coisa excitante! O sorriso
do detective deixou ver um pouco dos seus dentes. Ele meteu-
se no carro. Engrenou, pôs a cabeça de fora para ver atrás de
si e recuou, numa curva rápida. Partiu na direcção da auto-
estrada.
O barulho do seu motor não tardou a deixar de se ouvir. Carol
caminhou lentamente para o automóvel, entrou e sentou-se de
olhos fixos no pára- brisas, a olhar para a elevação de terra
seca, poucos metros adiante. O seu rosto estava tão vazio
como se ela tivesse desmaiado.
Therese sentou-se a seu lado e passou-lhe o braço pelos
ombros. Apertou o ombro de fazenda do casaco e sentiu-se tão
inútil como uma estranha.
- Oh, acho que é mais bluffque outra coisa - disse Carol, de
súbito.
Mas tornara-lhe o rosto cinzento, tirara toda a energia à sua
voz.
Carol abriu a mão e olhou para as duas caixinhas redondas.
- Este lugar é tão bom como qualquer outro -. Saiu do carro e
Therese seguiu-a. Carol abriu uma caixa e tirou a bobina de
fita que parecia celulóide. - Pequenina, não é? Suponho que
arde. Vamos deitar-Lhe fogo.
Therese riscou o fósforo ao abrigo do carro. A fita ardeu
depressa, e Therese atirou-a ao chão e o vento apagou-a.
Carol disse-lhe que não se preocupasse, que podiam atirar
ambas a um rio. Carol estava sentada no carro, a fumar.
267
- Que horas são? - perguntou.
- Vinte para o meio-dia -. Therese voltou a entrar no carro e
Carol arrancou imediatamente e desceu na direcção da auto-
estrada.
- Em Omaha vou telefonar à Abby e depois ao meu advogado.
Therese olhou para o mapa rodoviário. Omaha era a cidade
grande seguinte, se virassem ligeiramente para sul. Carol
parecia fatigada e Therese sentia a sua ira, ainda não
aplacada, no silêncio em que ela se mantinha. O carro deu um
solavanco, ao passar por um buraco, e Therese ouviu o bater
da lata de cerveja, que rebolou algures debaixo do banco da
frente - a lata de cerveja que não tinham conseguido abrir no
primeiro dia. Tinha fome, havia horas que estava agoniada de
fome.
- E se eu conduzisse?
- Está bem - concordou Carol, cansada, descontraindo-se como
se se rendesse. Reduziu a velocidade muito depressa.
Therese passou por cima dela para o volante.
- E se parássemos para tomar o pequeno-almoço?
- Não conseguiria comer.
- Ou uma bebida?
- Deixemos isso para Omaha.
Therese fez subir o velocímetro para cem e manteve-o logo
abaixo dos cento e dez. Seguiam pela auto-estrada 30. Depois
passaram para a 275 para entrarem em Omaha, e esta não era
uma estrada de primeira.
- Não acreditou no que ele disse acerca de haver gravações em
Nova Iorque, pois não?
- Não fale nisso! Estou farta!
Therese apertou o volante com força e depois,
deliberadamente, descontraiu-se. Sentia uma mágoa tremenda
pairando sobre elas, à frente delas, que começava apenas a
revelar os seus contornos, uma mágoa ao encontro da qual
corriam. Recordou o rosto do detective e a sua expressão
quase ininteligível, que compreendia agora ter sido de
velhacaria. Fora velhacaria que vira no seu sorriso, mesmo
quando ele dissera que não tomara partido, e
268
adivinhava nele um desejo, que era efectivamente pessoal, de
as separar, porque sabia que estavam unidas.
Acabava de ver o que antes somente pressentira: que o mundo
inteiro estava preparado para ser inimigo delas; e
subitamente que o que as ligava parecia já não ser amor, ou
alguma coisa feliz, mas sim um monstro no meio delas, a
segurar cada uma por um pulso.
- Estou a pensar naquele cheque - disse Carol. As palavras
caíram como outra pedra dentro de Therese.
- Está a pensar que vão revistar a casa?
- Possivelmente. Possivelmente, apenas.
- Não creio que o encontrassem. Está debaixo do naperon -.
Mas havia a carta dentro do livro. Um estranho orgulho
animou-a durante um instante, para logo desaparecer. Era uma
bela carta e ela preferiria que a encontrassem em vez do
cheque, embora, no aspecto incriminador, pesassem
provavelmente o mesmo e eles com certeza emporcalhassem tanto
um como o outro. A carta que nunca entregara e o cheque que
nunca des contara. Era mais provável que encontrassem a
carta, com certeza. Não conseguia arranjar coragem para falar
a Carol da carta, fosse por pura cobardia, fosse pelo desejo
de lhe poupar mais preocupações, não sabia. Viu uma ponte à
frente.
- Há aqui um rio - anunciou.
- Pode ser aqui?
- Perfeitamente. - Carol entregou-Lhe as pequenas caixas.
Repusera a fita meio queimada na caixa respectiva.
Therese apeou-se e atirou-as por cima do gradea mento
metálico, sem olhar. Para o que olhou foi para o jovem de
fato-macaco, que entrava na ponte do outro lado, e detestou o
insensato antagonismo que sentiu contra ele.
Carol telefonou de um hotel, em Omaha. Abby não estava em
casa, e ela deixou recado a informar que telefonaria às seis
da tarde, quando lhe disseram que a esperavam. Depois disse a
Therese que seria inútil telefonar agora para o seu advogado,
porque estaria ausente para almoçar até às duas horas, pelo
tempo de lá. Queria lavar-se e depois tomar uma bebida.
269
Tomaram Old Fashioneds no bar do hotel, em completo
silêncio. Therese pediu o segundo quando Carol fez o mesmo,
mas ela disse-Lhe que deveria antes comer alguma coisa. O
empregado informou Carol de que não serviam comida no bar.
- Ela quer comer qualquer coisa - insistiu Carol, firmemente.
- A sala de jantar é do outro lado do átrio, madame, e há uma
cafetaria...
- Carol, eu posso esperar - disse Therese.
- Quer fazer o favor de me mostrar a ementa? Ela prefere
comer aqui - teimou Carol, a olhar para o empregado.
Ele hesitou, mas acabou por dizer:
- Sim, madame - e foi buscar a ementa. Enquanto Therese comia
ovos mexidos com salsichas, Carol tomava a sua terceira
bebida. Por fim, num tom de desespero, perguntou-lhe:
- Posso pedir-lhe que me perdoe, querida?
O tom feriu mais Therese do que a pergunta.
- Amo-a, Carol.
- Mas está a compreender o que isso significa?
- Estou -. Mas, pensou, aquele momento de derrota no carro
tinha sido apenas um momento, assim como este agora era
apenas uma situação. - Não acho, no entanto, que tenha de ser
assim para sempre. Não vejo como isto possa destruir alguma
coisa - afirmou com veemência.
Carol tirou a mão do rosto e recostou-se no lugar, apesar da
fadiga, o seu aspecto era aquele com que Therese sempre a
recordava: os olhos que eram capazes de ser ternos e severos
ao mesmo tempo enquanto a olhavam, os lábios vermelhos
inteligentes, fortes e macios, embora o superior tremesse
agora um nadinha.
- E a Carol? - perguntou Therese, e percebeu subitamente que
a pergunta era tão grande como a que Carol lhe fizera sem
palavras no quarto, em Waterloo. Era, de facto, a mesma
pergunta.
- Não. Acho que tem razão. Fez-me compreendê-la.
270
Carol foi telefonar. Eram três horas. Therese pagou a conta e
depois ficou sentada à espera, perguntando-se quando acabaria
aquilo, se a palavra tranquilizadora viria do advogado de
Carol ou de Abby, ou se as coisas piorariam antes de
melhorarem. Carol demorou-se cerca de meia hora.
- O meu advogado não teve conhecimento de nada
- disse, quando voltou. - E eu também não lhe disse nada. Não
sou capaz. Terei de lhe escrever.
- Já calculava.
- Ah, já? - redarguiu Carol, com o primeiro sorriso do dia. -
Que diz a ficarmos num quarto aqui? Perdi a vontade de
viajar.
Carol pediu que Lhes servissem o almoço no quarto. Deitaram-
se ambas para dormir a sesta, mas quando Therese acordou,
faltava um quarto para as cinco, Carol não estava. Olhou à
roda do quarto e viu as luvas pretas de Carol no toucador e
os seus mocassins, lado a lado, junto da poltrona. Suspirou
tremulamente, tão fatigada com se não tivesse dormido. Abriu
a janela e olhou para baixo. Estavam no sétimo ou oitavo
andar, não se lembrava bem. Um carro eléctrico passou
vagarosamente pela frente do hotel, havia pessoas no passeio
a caminhar em todas as direcções, com pernas por todos os
lados. Passou-lhe pelo pensamento saltar. Olhou para o
pequeno horizonte pardacento de edificios cinzentos e fechou
os olhos. Depois, voltou-se e Carol estava no quarto, parada
à porta, a olhá-la.
- Onde esteve? - perguntou-Lhe Therese.
- A escrever aquela maldita carta.
Carol atravessou o quarto e abraçou-a. Therese sentiu as suas
unhas através das costas do casaco.
Quando Carol foi telefonar, Therese saiu do quarto e meteu
pelo corredor na direcção dos elevadores. Desceu para o átrio
e sentou-se a ler um artigo sobre gorgulhos na Corngrower's
Gazette, perguntando-se sobre se Abby saberia tudo quanto ali
vinha acerca de gorgulhos. Atenta ao relógio, passados vinte
minutos voltou para cima.
Carol estava deitada na cama, a fumar um cigarro. Therese
esperou que ela falasse.
271
- Amor, tenho de regressar a Nova Iorque.
Therese tivera a certeza disso. Dirigiu-se para os pés da
cama e perguntou:
- Que mais disse a Abby?
- Ela voltou a falar com o tal tipo chamado Bob Haversham -.
Carol soergueu-se no cotovelo. - Mas, nesta altura, ele sabe
menos que eu. Ninguém parece saber nada, a não ser que se
estão a preparar aborrecimentos. Não poderá acontecer muito
enquanto eu não chegar lá. Mas tenho de lá estar.
- Claro -. Bob Haversham era o amigo de Abby que trabalhava
na firma de Harge em Newark... não um amigo íntimo nem dela
nem de Harge, mas apenas um elo, um elo fraco entre os dois,
a única pessoa que poderia saber alguma coisa sobre o que
Harge estava a fazer se fosse capaz de reconhecer um
detective ou ouvir parte de uma conversa telefónica no
escritório de Harge. Therese achava que não valia quase nada.
- A Abby vai buscar o cheque - disse Carol, sen tando-se na
cama e estendendo as mãos para os mocassins.
- Ela tem chave?
- Quem me dera que tivesse. Tem de pedir a Flwrence. Mas não
haverá problema nisso. Disse-lhe que dissesse à Florence que
eu queria que ela me mandasse umas coisas.
- Pode dizer-lhe que tire também uma carta? Deixei uma carta
para si entre as folhas de um livro, no meu quarto. Desculpe
não lho ter dito antes. Não sabia que ia pedir à Abby que lá
fosse.
Carol olhou-a de testa franzida.
- Mais alguma coisa? - perguntou.
- Não. Desculpe não lho ter dito antes.
Carol suspirou e levantou-se.
- Oh, paremos de nos preocupar! Duvido que eles se incomodem
com a casa, mas de qualquer modo falarei à Abby da carta.
Onde está ela?
- No Oxford Book of English lierse. Creio que o deixei em
cima da cómoda -. Viu Carol olhar à volta do quarto, para
tudo menos para ela.
272
- Afinal não quero ficar aqui esta noite - disse Carol.
Meia hora depois, estavam no carro e seguiam para leste.
Carol queria chegar a Des Moines nessa noite. Após um
silêncio de mais de uma hora, parou subitamente na berma da
estrada, inclinou a cabeça e exclamou:
- Raios partam!
Therese via as depressões escuras debaixo dos olhos de Carol,
no clarão dos faróis dos carros que passavam. Ela não dormira
nada na noite anterior.
- Voltemos para a última cidade - propôs Therese.
- Ainda são uns vinte quilómetros até Des Moines.
- Quer ir para o Arizona? - perguntou-lhe Carol, como se tudo
quanto estivessem a fazer fosse voltar para trás.
- Oh, Carol... para quê falar nisso? - Apoderou-se
subitamente de Therese uma sensação de desespero. As mãos
tremiam-lhe quando acendeu um cigarro. Deu-o a Carol e depois
acendeu outro para si.
- Porque eu quero falar nisso. Pode dispor de mais três
semanas?
- claro -. Claro, claro. Que mais importava, a não ser estar
com Carol fosse onde fosse e como fosse? Havia um espectáculo
do Harkevy em Março, ele podia recomendá-la para trabalho em
qualquer outro lado, mas o trabalho era incerto e Carol não.
- Não deverei ter de ficar em Nova Iorque mais do que uma
semana, no máximo, porque o divórcio está todo tratado,
segundo me disse hoje o Fred, o meu advogado. Sendo assim,
porque não passamos mais umas semanas no Arizona? Ou no
México? Não quero passar o resto do Inverno pendurada em Nova
Iorque -. Carol conduzia devagar. Os seus olhos estavam agora
diferentes. Tinham-se tornado vivos, como a sua voz.
- Claro que gostaria. Em qualquer lado.
- Está bem. Vamos para Des Moines. E se conduzisse você um
bocado?
Mudaram de lugares. Faltava pouco para a meia-noite
273
quando chegaram a Des Moines e arranjaram quarto num hotel.
- Que necessidade há de a Therese voltar, sequer, para Nova
Iorque? - perguntou Carol. - Podia ficar com o carro e
esperar por mim em qualquer lado, como Tucson ou Santa Fé, e
eu ia de avião.
- E deixá-la? - Therese voltou- se do espelho, diante do qual
estava a escovar o cabelo.
Carol sorriu.
- Que quer dizer com isso, deixar-me?
Therese fora apanhada de surpresa e agora vira no
rosto de Carol uma expressão que, apesar de ela a olhar com
atenção, a fazia sentir-se posta de lado, como se Carol a
tivesse remetido para um canto esconso do seu pensamento a
fim de arranjar espaço para alguma coisa mais importante.
- Queria dizer apenas deixá- la agora - respondeu,
voltando-se de novo para o espelho. - Não, talvez seja uma
boa ideia. É mais rápido para si.
- Pensei que talvez a Therese preferisse ficar em qualquer
lado, no Oeste. A não ser que queira fazer alguma coisa em
Nova Iorque, nestes poucos dias. - A voz de Carol era casual.
- Não quero -. Assustavam-na os dias frios em Manhattan, em
que Carol estaria demasiado ocupada para poder vê-la. E
pensou também no detective. Se Carol fosse de avião, não
seria atormentada pela possibilidade de ele a seguir. Tentou
imaginar tudo, Carol a chegar ao Leste sozinha, para
enfrentar uma coisa que não sabia ainda o que era, uma coisa
para a qual era impossível preparar- se. Imaginou-se a si
mesma em Santa Fé, i à espera de um telefonema, à espera de
uma carta dela. Mas ficar a mais de três mil quilómetros de
Carol... não, isso não podia ela imaginar tão facilmente.
- Só uma semana, Carol? - perguntou, passando de novo o pentt
pelo risco, apartando o cabelo comprido e fino para um lado.
Aumentara de peso, mas reparou de súbito que o seu rosto
estava mais magro e isso agradou-Lhe. Parecia mais velha.
274
Pelo espelho, viu Carol aproximar-se por detrás dela. Não
obteve resposta, mas o prazer de sentir os seus braços a
envolvê-la, isso impossibilitou-a de pensar e Therese torceu-
se e voltou-se mais bruscamente do que tencionara, e ficou
parada ao canto do toucador olhando para
Carol, momentaneamente perplexa, aturdida com a
intangibilidade daquilo de que falavam, tempo e espaço, o
metro e pouco que as separava agora e os mais de três mil
quilómetros. Passou de novo a escova pelo cabelo.
- Só cerca de uma semana?
- Foi isso que eu disse - respondeu Carol com um sorriso no
olhar, mas Therese ouviu nas palavras a mesma dureza que
existira na sua própria pergunta, como se mutuamente se
desafiassem. - Se não lhe agrada tomar conta do carro, posso
mandar levá-lo para o Leste.
- Não me importo de tomar conta do carro.
- E não se preocupe com o detective. Telegrafarei ao Harge a
dizer que vou a caminho.
- Não me preocuparei com isso -. Como podia Carol ser tão
fria, perguntou-se Therese, pensar em tudo menos na sua
separação? Pousou a escova do cabelo no toucador.
- Therese, pensa que eu vou gostar?
E Therese pensou nos detectives, no divórcio, na hostilidade,
em tudo quanto Carol tinha de enfrentar. Ela tocou-lhe no
rosto, comprimiu com força as palmas das mãos contra as suas
faces, de modo que a sua boca se abriu como a de um peixe e
Therese teve de sorrir. Therese ficou parada junto ao
toucador a observá-la, a observar todos os movimentos das
suas mãos, dos seus pés, enquanto descalçava as meias e
voltava a descalçar os mocassins. A partir dali, pensou, não
havia palavras. Que mais precisavam elas de explicar ou
perguntar, ou pedir por palavras? Não precisavam sequer de
ver os olhos uma da outra. Therese viu-a pegar no telefone e
depois deitou-se de bruços na cama, enquanto Carol fazia a
marcação, reservava um bilhete para o dia seguinte, um
bilhete só de ida para a manhã seguinte às onze horas.
- Para onde pensa ir? - perguntou-lhe Carol.
275
- Não sei. Talvez volte para Sioux Falls.
- Para Colorado Springs não?
- Não! - Therese riu-se e levantou-se. Pegou na escova de
dentes e foi para a casa de banho. - Talvez arranje até um
emprego em qualquer lado, durante uma semana.
- Que género de emprego?
- Qualquer género. Só para não estar sempre a pensar em si.
- Mas eu quero que pense em mim. E espero que não arranje um
emprego num armazém geral.
- Não -. Therese estava parada à porta da casa de banho, a
ver Carol despir a combinação e vestir o roupão.
- Não está outra vez preocupada por causa de dinheiro, pois
não?
Therese enfiou as mãos nas algibeiras do roupão e cruzou os
pés.
- Se estiver falida, não me importo. Começarei a preocupar-me
quando o dinheiro se acabar.
- Amanhã dou-lhe duzentos dólares para o carro -. Carol puxou
o nariz de Therese ao passar por ela.
- E não quero que o use para dar boleia a desconhecidos -.
Entrou na casa de banho e abriu a água do chuveiro.
Therese entrou atrás dela.
- Pensava que eu é que estava a usar esta casinha.
- Eu estou a usá-la, mas deixo-a entrar.
- Oh, muito obrigada! - Therese despiu o roupão ao mesmo
tempo que Carol.
- Então?
- Então? - repetiu Therese, e meteu-se debaixo do chuveiro.
- É preciso descaramento! - Carol meteu-se também debaixo do
chuveiro e torceu o braço de Therese atrás dela, mas Therese
limitou-se a soltar pequenas gargalhadas.
Therese queria abraçá-la, beijá-la, mas o seu braço livre
estendeu-se convulsivamente e puxou a cabeça de
276
Carol contra ela debaixo do jorro da água, e ouviu-se o som
horrível de um pé a escorregar.
-Acabe com isso ou caímos! - gritou Carol.
- Valha-nos Deus, não será possível duas pessoas tomarem o
duche em paz?

CAPÍTULO XX

Em Sioux Falls, Therese parou o carro defronte do hotel onde


tinham ficado antes, o Warrior. Eram nove e meia da noite.
Carol chegara a casa há cerca de uma hora, calculava. Ficara
combinado que Therese lhe telefonaria à meia-noite.
Alugou um quarto, mandou levar as malas para cima e depois
saiu para dar uma volta pela rua principal. Havia um cinema,
e ela pensou que nunca vira um filme com Carol. Entrou. Mas
não estava com disposição para ficar até ao fim, apesar de no
filme haver uma mulher com uma voz um pouco parecida com a de
Carol, de modo algum semelhante às vozes nasaladas que ouvia
por todo o lado. Pensou em Carol, naquele momento a mais de
mil e quinhentos quilómetros de distância, pensou que naquela
noite dormiria sozinha, levantou-se e voltou a vaguear pela
rua. Havia um drugstore onde, uma manhã, Carol comprara
lenços de papel e pasta de dentes. E a esquina onde Carol
parara e lera os nomes das ruas - Quinta e Nebrasca. Comprou
um maço de cigarros no mesmo drugstore, voltou para o hotel e
sentou-se no átrio a saborear o primeiro cigarro que fumava
desde que deixara Carol, a saborear o estado esquecido de
estar só. Era apenas um estado fisico. Ela não se sentia
realmente só, de modo algum. Leu alguns jornais durante um
bocado, depois tirou da mala de mão as cartas de Dannie e
Phil, que tinham chegado nos últimos dias passados em
Colorado Springs, e voltou a lê-las.
279
Vi o Richard há duas noites no Palermo, sozinho (dizia a
carta do Phil). Perguntei por si e ele respondeu-me que não
lhe escrevia. Calculei que houve uma pequena rutura, mas não
insisti para obter informações. Ele não estava com disposição
alguma para falar. E ultimamente não somos grandes amigos,
como sabe. Tenho andado a elogiá-la a um anjo chamado Francis
Puckett, que nai entrar com cinquenta mil numa certa peça da
França que será representada em Abril. Mantê-la-ei ao
corrente, visto ainda não haver sequer um produtor. Dannie
manda-lhe o seu amor, tenho a certeza disso. Provavelmente
ele deve estar a partir em breve para qualquer lado, anda com
esse ar, e eu terei de procurar onde passar o Inverno ou de
arranjar quem partilhe o quarto comigo. (....) Recebeu os
recortes que Lhe mandei a respeito de Small Rain? Com os
desejos de que Lhe corra tudo pelo melhor,
Phil
A breve carta de Dannie dizia:
Querida Therese:
Existe uma possibilidade de eu partir para a Costa no fim do
mês, para trabalhar na Califórnia. Preciso de me decidir
entre este emprego (trabalho laboratorial) e uma oferta que
tive de uma firma comercial quimica, na Marilândia. Mas se
pudesse vê-la no Colorado ou em qualquer outro lugar durante
algum tempo, partiria um pouco mais cedo. Provavelmente
aceitarei o emprego na Califórnia, pois creio que tem
melhores perspectivas. Quer, pois, por isso, dizer-me onde
estará? Não tem importância onde for; há uma quantidade de
caminhos para chegar à Califórnia. Se a sua amiga não se
importasse, seria agradável passar uns dias consigo em
qualquer lado. De qualquer modo, estarei em Nova Iorque até
28 de Fevereiro.
Beijos, Dannie
Therese ainda não lhe respondera. No dia seguinte mandar-lhe-
ia um endereço, assim que arranjasse um
quarto em qualquer lado, na cidade. Mas quanto ao destino
280
que se seguiria, teria de falar com Carol a esse respeito. E
quando poderia Carol decidir? Pensou no que ela teria
encontrado em Nova Jérsia, naquela noite, e o seu moral
desceu assustadoramente. Pegou num jornal e procurou a data:
15 de Fevereiro. Há vinte e nove dias que partira de Nova
Iorque com Carol. Seria possível que fossem tão poucos dias?
Em cima, no quarto, pediu que fizessem a chamada para Carol,
tomou banho e vestiu o pijama. Depois o telefone tocou.
- Olá! - disse Carol, como se tivesse esperado muito tempo. -
Como se chama esse hotel?
- lÉ o Warrior. Mas eu não vou ficar aqui.
- Não deu boleia a desconhecidos na estrada, pois não?
Therese riu-se. A voz lenta de Carol percorria-a toda como se
ela lhe tocasse.
- Quais são as notícias?
- Esta noite? Nenhumas. A casa está gelada e Florence só pode
vir depois de amanhã. A Abby está aqui. Quer cumprimentá-la?
- Não está aí mesmo consigo, pois não?
- Não. Lá em cima, na sala verde, com a porta fechada.
- Não quero realmente falar com ela agora.
Carol quis saber tudo o que ela fizera, como estavam as
estradas e se tinha vestido o pijama amarelo ou o azul.
- Vou ter muita dificuldade em adormecer esta noite, sem a
Therese.
- Sim -. Imediatamente, quase sem saber porquê, Therese
sentiu a pressão das lágrimas a chegarem-Lhe aos olhos.
- Não sabe dizer mais nada além de sim?
- Amo-a.
Carol assobiou. Depois houve silêncio. Por fim:
- A Abby encontrou o cheque, querida, mas não a carta. Não
recebeu o meu telegrama, mas de qualquer modo não há carta
nenhuma.
281
- Encontraram o livro?
- Encontrámos o livro mas não estava lá nada.
Therese pensou se, afinal, a carta não estaria no seu
apartamento. Mas via a carta no livro, a marcar a página.
- Acha que alguém revistou a casa?
- Não; sei que não por várias coisas. Mas não se preocupe com
isso, ouviu?
Um momento depois, Therese meteu-se na cama e apagou a luz.
Carol pedira-lhe que voltasse a telefonar no outro dia,
também à noite. Durante um bocado, a voz de Carol permaneceu
nos seus ouvidos. Depois começou a invadi-la uma melancolia.
Estava deitada de costas com os braços estendidos ao longo do
corpo e a sensação de espaço vazio a toda a sua volta, como
se estivesse preparada para ser sepultada. Depois adormeceu.
De manhã, encontrou um quarto que lhe agradou numa casa
situada numa das ruas a subir, um grande quarto no lado da
frente, com uma janela de sacada cheia de plantas e cortinas
brancas. Havia uma cama de colunas e um tapete oval, feito à
mão, no chão. A muLher disse que eram sete dólares por
semana, mas Therese explicou que não sabia se ficaria uma
semana e, por isso, seria melhor alugar ao dia.
- É a mesma coisa - respondeu a mulher. - De onde é?
- Nova Iorque.
- Vai ficar a viver aqui?
- Não. Estou apenas à espera que uma pessoa amiga venha ter
comigo.
- Homem ou mulher?
Therese sorriu.
- Uma mulher. Há algum espaço naquelas garagens das
traseiras? Tenho um carro.
A mulher respondeu-lhe que havia duas garagens vazias e que
não cobrava nada pelas garagens se as pessoas moravam ali.
Não era velha, mas tinha as costas um pouco encurvadas e uma
figura frágil. O seu nome era senhora Elizabeth Cooper. Há
quinze anos que tinha
282
hóspedes, disse, e dois dos três com quem começara ainda
moravam com ela.
No mesmo dia, Therese travou conhecimento com Dutch Huber e a
sua mulher, que dirigiam o café-restaurante que ficava perto
da biblioteca pública. Ele era um homem magro de cerca de
cinquenta anos, com olhos azuis pequenos e curiosos. A
mulher, Edna, era gorda, tinha a seu cargo a cozinha e falava
muito menos que o marido. Dutch tinha trabalhado algum tempo
em Nova Iorque, há anos. Fez-lhe perguntas a respeito de
áreas da cidade que por acaso ela nem sequer conhecia,
enquanto Therese mencionava lugares de que Dutch nunca ouvira
falar ou de que se esquecera, e talvez por isso a conversa
vagarosa e arrastada fê-los rir a ambos. Dutch perguntou-Lhe
se gostaria de ir com ele e a mulher às corridas de
motocicletas que se realizariam, alguns quilómetros fora da
cidade, no sábado, e Therese respondeu que sim.
Comprou cartão e cola e trabalhou no primeiro dos modelos que
tencionava mostrar a Harkevy quando regressasse a Nova
Iorque. Tinha-o quase acabado quando saiu, às onze e meia,
para telefonar a Carol do Warrior.
Carol não estava em casa e ninguém atendeu o telefone.
Therese tentou até à uma da manhã e depois voltou para casa
da senhora Cooper.
Conseguiu falar com Carol na manhã seguinte, por volta das
dez e meia. Carol contou-lhe que discutira tudo com o seu
advogado no dia anterior, mas que não havia nada que ela ou
ele pudessem fazer enquanto não soubessem qual seria o passo
seguinte de Harge. Carol foi um pouco breve com ela porque
tinha um compromisso para almoçar em Nova Iorque e primeiro
ainda precisava de escrever uma carta. Parecia, pela primeira
vez, inquieta quanto ao que Harge estava a fazer. Tentara
falar com ele pelo telefone duas vezes, mas não o conseguira
encontrar. O que mais transtornou Therese, porém, foi a sua
brusquidão.
- Não mudou de ideias a respeito de nada? - perguntou-lhe.
283
- Claro que não, querida. Amanhã à noite tenho
convidados. Terei saudades suas.
Therese tropeçou no degrau do hotel, ao sair, e sentiu a
primeira onda cava de solidão rebentar sobre ela.
Que estaria a fazer amanhã à noite? A ler na biblioteca
até à hora de fechar, às nove horas? A trabalhar noutro
modelo? Recordou os nomes das pessoas que Carol dissera ir
receber - Max e Glara Tibbett, o casal que tinha uma estufa
numa estrada qualquer, perto da casa de
Carol, e que Therese vira uma vez, Tessie, a amiga de
Carol que nunca tinha visto, e Stanley McVeiCh, o homem com
quem Carol estivera na noite em que elas tinham ido a
Chinatown. Carol não mencionara Abby.
E não lhe dissera que lhe telefonasse no dia seguinte.
Continuou a andar, e o último momento em que vira
Carol voltou-lhe ao pensamento como se estivesse a
acontecer de novo diante dos seus olhos. Carol a acenar-lhe
da porta do avião no aeroporto de Des Moines, Carol já
pequena e muito distante porque Therese tivera de
se afastar da vedação de arame que atravessava a pista.
A escada fora retirada, mas ela pensara que havia ainda
alguns segundos antes de fecharem a porta e que
poderia vê-la a fazer o gesto de Lhe soprar um beijo.
O facto de ela ter voltado significara muito, absurdamente
muito.
Therese foi às corridas de motocicletas, no sábado; e
levou Dutch e Edna com ela, porque o carro de Carol
era maior. Depois eles convidaram-na para jantar em
sua casa, mas não aceitou. Não chegara nenhuma carta
de Carol nesse dia, e ela esperara pelo menos um bilhete.
Domingo deprimiu-a, e nem mesmo o passeio de carro que deu à
tarde, subindo Sioux River até Dell Rapids, mudou a cena
triste que tinha dentro da cabeça.
Na segunda-feira de manhã foi para a biblioteca ler
peças de teatro. Depois, por volta das duas, quando a
confusão da hora do almoço estava a abrandar no café-
restaurante, foi até lá tomar chá e conversar com
Dutch, enquanto punha a tocar, na máquina automática, as
canções que Carol e ela costumavam ouvir. Dissera a Dutch que
o carro pertencia à amiga que esperava.
E, pouco a pouco, as perguntas intermitentes dele levaram-na
a dizer que Carol vivia em Nova Jérsia, que provavelmente
viria de avião, que Carol queria ir de novo ao México.
- A Carol quer? - perguntou Dutch, voltando-se para ela
enquanto dava brilho a um copo.
E então cresceu em Therese um estranho ressentimento por ter
dito o nome de Carol, e tomou a decisão de não voltar a falar
nela, de não a mencionar a ninguém da cidade.
Na terça-feira chegou a carta de Carol, apenas um bilhete
breve, mas ela dizia que Fred estava mais optimista a
respeito de tudo, que parecia não haver outros motivos de
preocupação além do divórcio e que provavelmente ela poderia
partir no dia 24 de Fevereiro. Therese começou a sorrir
enquanto lia a carta. Apeteceu-Lhe sair e festejar com
alguém, mas não havia ninguém com quem o pudesse fazer e, por
isso, teve de se contentar em dar um passeio a pé, beber
solitariamente um copo no bar do Warrior e pensar em Carol,
dali a cinco dias. Não havia ninguém em cuja companhia
desejasse estar, excepto, talvez, Dannie. Ou Stella Overton.
Stella era divertida, e embora ela não lhe pudesse ter dito
nada a respeito de Carol - a quem poderia dizer? -, teria
sido bom vê-la agora. Tencionava escrever-Lhe um postal, há
dias, mas ainda não escrevera.
Escreveu a Carol nessa noite, já tarde.
A noticia é maravilhosa. Festejei-a com um único daiquiri
[Bebida de rum e limão. (N. do E. )] no Warrior. Não que eu
seja moderada, mas sabia que uma bebida produz o efeito de
três quando estamos sós?... Amo esta cidade porque tudo nela
me lembra você. Sei que não gosta mais dela que de qualquer
outra cidade, mas a questão não é essa. O que quero dizer é
que a Carol está aqui tanto quanto eu posso suportar que
esteja, não estando.
285
Carol escreveu:
Nunca gostei da Florence. Digo isto como um prelúdio. Parece
que ela encontrou a carta que Therese me tinha escrito e a
vendeu a Harge, por certo preço. também o interesse de Harge
saber onde nós (ou pelo menos eu) íamos, disso não tenho
dúvida alguma. Não sei o que deixei aqui em casa ou o que ela
poderá ter escutado, pensava que tinha estado muito calada,
mas se o Harge se deu ao trabalho de a subornar, e eu estou
certa de que o fez, nunca se sabe. Fosse como fosse, eles
localizaram-nos em Chicago. Querida, eu não fazia ideia de
como o caso tinha ido longe. Só para lhe dar uma ideia da
atmosfera: ninguém me diz nada, as coisas são apenas
descobertas subitamente. Se alguém está de posse dos factos,
esse alguém é o Harge. Falei com ele pelo telefone, mas
recusa-se a dizer-me seja o quefor, o que, evidentemente, tem
por fim aterrorizar-me até ao ponto de eu ceder todo o meu
terreno antes mesmo de a luta começar. Eles não me conhecem,
nenhum deles, se pensam quefarei isso. A luta, claro, é sobre
Rindy, e sim, minha querida, receio que vou ter de travá-la
e, nesse caso, não poderei partir no dia 24. O Harge disse-me
pelo menos isso, quando me atirou de repente com a história
da carta, esta manhã, pelo telefone. Suponho que a carta deve
ser a sua arma mais forte (a história do microfone só se
passou em Colorado S. tanto quanto consigo imaginar), daí
ter-me ele informado dela. Mas posso imaginar de que tipo de
carta se trata, escrito antes mesmo de partirmos, e haverá um
limite para aquilo que até o próprio Harge será capaz de ler
nela. Ele está meramente a ameaçar - sob a forma peculiar do
silênciuo -, esperando completamente que eu recue no que
respeita à Rindy. Não rccuarei, e por isso chegará uma altura
em que as cartas terão de ser de algum modo postas na mesa;
só espero que não seja em tribunal. O Fred está, no entanto,
preparado para tudo. Ele é maravilhoso, a única pessoa que
fala claro comigo, mas infeliZmente é o que sabe menos de
todos.
Pergunta-me se sinto a sua falta. Penso na sua voz, nas suas
mãos e nos seus olhos quando olham directamente para os meus.
Lembro-me da sua coragem, de que não suspeitara, e ela
encoraja-me. Telefona-me querida? Não quero telefonar-lhe, se
o seu telefone está no corredor. Telefone-me a cobrar,
286
de preferência por volta das sete da tarde, que são seis
horas aí.
Therese preparava-se para telefonar, nesse dia, quando chegou
um telegrama:
NÃO TELEFONE DURANTE ALGUM TEMPO. DEPOIS EXPLIcO. TODO O MEU
AMOR, QUERIDA. Carol.
A senhora Cooper viu-a a lê-lo, no corredor.
- da sua amiga? - perguntou.
- É.
- Espero que não tenha acontecido nada -. A senhora Cooper
tinha uma maneira perscrutadora de observar as pessoas e
Therese levantou deliberadamente a cabeça.
- Não, ela vem - disse. - Sofreu apenas um atraso.

CAPÍTULO XXI
Albert Kennedy, Bert para as pessoas de quem gostava, vivia
num quarto das traseiras da casa e era apenas um dos
primeiros hóspedes da senhora Cooper. Tinha quarenta e cinco
anos, nascera em São Francisco e era a pessoa mais parecida
com um nova-iorquino que Therese conhecera na cidade, único
facto que a levava a evitá-lo. Convidara-a com frequência
para ir ao cinema com ele, mas ela só fora uma vez. Sentia-se
inquieta e preferia vaguear sozinha, a maior parte das vezes
limitando-se a olhar e a pensar, porque os dias estavam
demasiado frios e ventosos para lhe permitirem desenhar ao ar
livre. E as vistas de que ao princípio gostara tinham-se
tornado demasiado banais para as desenhar, de tanto as olhar,
de tanto esperar. Ia quase todas as noites à biblioteca,
sentava-se a uma das mesas compridas a passar os olhos por
meia dúzia de livros e depois voltava para casa, por um
caminho sinuoso.
Voltava para casa só para voltar a sair pouco depois,
preparando-se para resistir ao vento caprichoso ou deixando-o
empurrá-la para ruas que de outro modo não teria percorrido.
Nas janelas iluminadas via uma rapariga sentada ao piano,
noutra um homem a rir, noutra uma mulher a costurar. Então
lembrava-se de que não podia sequer telefonar a Carol,
admitia para consigo própria que nem mesmo sabia o que Carol
estava a fazer naquele momento, e sentia-se mais vazia que o
vento. Carol não lhe tinha dito tudo nas suas cartas, tinha a
certeza, não Lhe tinha dito o pior.
289
Na biblioteca, folheava livros com fotografias da Europa,
fontes de mármore da Sicília, ruínas da Grécia ao sol, e
pensava se Carol e ela lá iriam, realmente, alguma vez. Havia
ainda tantas coisas que não tinham feito! Havia a primeira
travessia, juntas, do Atlântico. Havia simplesmente as
manhãs, manhãs em qualquer lado, em que poderia levantar a
cabeça da almofada e ver o rosto de Carol, e saber que o dia
seria delas e que nada as separaria.
E havia aquela bela coisa, capaz de paralisar os olhos e o
coração ao mesmo tempo, na montra escura de uma loja de
antiguidades de uma rua onde nunca estivera. Therese fitava-a
e sentia-a aplacar uma sede anónima e esquecida dentro dela.
A maior parte da sua superficie de porcelana tinha pintados
pequenos losangos brilhantes, de esmalte colorido, azul-vivo,
vermelho e verde- carregado, debruados de um ouro tão
brilhante como um bordado a seda, mesmo sob a sua película de
pó. Havia uma argola dourada na orla, para o dedo. Era um
minúsculo castiçal. Quem o teria feito, pensou, e para quem?
Voltou na manhã seguinte e comprou-o para o dar a Carol.
Nessa manhã chegara uma carta de Richard, reenviada de
Colorado Springs. Therese sentou-se num dos bancos de pedra
da rua onde ficava a biblioteca, e abriu-a. Fora escrita em
papel de carta comercial: The Semco Bottled Gas Company.
Cozinha - Aquece - Produz Gelo. Ao topo, o nome de Richard
como gerente da sucursal de Port Jef3Eerson.
Querida Therese:
Tenho a agradecer ao Dannie o ter-me dito onde estavas. Podes
pensar que esta carta é desnecessária, e talvez o seja, para
ti. Talvez ainda estejas naquela neblina em que estavas
quando conversámos naquela noite na cafetaria. Mas eu acho
necessário tornar uma coisa clara, ou seja, que já não sinto
por ti o que sentia ainda há duas semanas, e que a última
carta que te escrevi não foi mais que um último esforço
espasmódico
290
e eu sabia que era inútil quando a escrevi, e sabia que não
responderias e que não queria que respondesses. Sei quejá
deixara de te amar então, e agora a principal emoção que
sinto em relação a ti é a que esteve presente desde o
princípio: repugnância. É ofacto de te teres rendido a essa
mulher com exclusão de todas as outras pessoas, é essa
relação que, tenho a certeza, se tornou entretanto sórdida e
patológica, é isso que me repugna. Sei que não durará, como
disse desde o princípio. Só é lamentável que mais tarde tu
própria te sintas repugnada, na proporção da parte da tua
vida que com ela desperdiças agora. Não tem raízes, é
infantil, como viver de flores-de-lótus ou de qualquer doce
enjoativo em vez de do pão e da carne da vida. Tenho pensado
comfrequência nas perguntas que me fizeste naquele dia em que
lançámos o papagaio. Arrependo-me de não ter actuado então,
antes que fosse tarde de mais, porque nessa altura te amava o
suficiente para tentar salvar-te. Agora não amo.
As pessoas ainda me perguntam por ti. Que esperas que lhes
diga? Tenciono dizer-lhes a verdade. Só dessa maneira poderei
libertar-me dela - e eu não posso continuar a carregá-la
comigo. Mandei para o teu apartamento algumas coisas tuas que
estavam na minha casa. A mais pequena recordação tua ou
contacto contigo deprimem-me, fazem com que não queira tocar-
te nem em nada relacionado contigo. Mas eu estou a falar com
lógica, e é muito provável que tu não estejas a compreender
uma palavra do que digo. Excepto talvez isto: não quero ter
nada a ver contigo.
Richard
Therese viu os lábios finos e macios de Richard ficarem
tensos, transformados num risco, como deviam ter estado
quando escrevera a carta, um risco que apesar de tudo não
impedia que se visse o minúsculo encrespamento tenso do lábio
superior - viu o rosto dele nitidamente durante um momento, e
depois a imagem apagou-se com um pequeno estremecimento que
lhe pareceu tão amortecido e distante dela como o clamor da
sua carta. Levantou-se, meteu a carta no sobrescrito e
começou a andar. Desejava que ele conseguisse, de facto,
expurgar-se
291
dela. Mas só era capaz de o imaginar a falar dela a outras
pessoas com aquela curiosa atitude de participação apaixonada
que lhe vira em Nova Iorque, antes de partir. Imaginou
Richard a dizer a Phil, quando se encontrassem ao balcão do
Palermo, imaginou-o a dizer aos Kelly. Mas não se importaria
absolutamente nada, fosse o que fosse que ele dissesse.
Pensou no que estaria Carol a fazer naquele momento, às dez
horas, onze em Nova Jérsia. A ouvir as acusações de algum
desconhecido? A pensar nela, ou não haveria tempo para isso?
Estava um belo dia, frio e quase sem vento, cintilante de
sol. Podia meter-se no carro e ir a qualquer lado. Há três
dias já que não o utilizava. De súbito, deu conta de que não
queria utilizá-lo. O dia em que o tirara da garagem e
atingira quase cento e cinquenta quilómetros na estrada recta
para Dell Rapids, exultante depois de ter recebido uma carta
de Carol, parecia-lhe agora muito distante.
O senhor Bowen, outro dos hóspedes, estava no alpendre da
frente quando ela regressou a casa da senhora Cooper. Estava
sentado ao sol, com as pernas embrulhadas numa manta e o boné
puxado para os olhos como se estivesse a dormir, mas gritou-
lhe:
- Olá! Como vai a minha pequena?
Ela parou e conversou um pouco com ele, perguntou- lhe como
ia a sua artrite, tentando ser tão cortês como Carol fora
sempre com a senhora French. Descobriram qualquer coisa que
os fez rir, e ela ainda sorria quando entrou no quarto. Mas a
vista do gerânio apagou-lhe o sorriso.
Regou-o e colocou-o na extremidade do parapeito, onde
apanharia sol durante mais tempo. Tinha manchas castanhas até
nas pontas das folhas mais pequeninas da parte de cima. Carol
comprara-lho em Des Moines, pouco antes de apanhar o avião. O
vaso de hera morrera já - o homem da loja avisara-as de que
era uma planta delicada, mas mesmo assim Carol quisera-o - e
Therese duvidava que o gerânio resistisse. No entanto, a
variada
292
colecção de plantas da senhora Cooper vicejava na sacada.
"Ando e torno a andar pela cidade, escreveu a Carol, "mas
gostaria de poder continuar a andar numa só direcção - leste
- e chegar finalmente junto de si. Quando pode vir, Carol? Ou
devo eu ir ao seu encontro? Sinceramente, não consigo
suportar ficar tanto tempo separada de si...
Recebeu a resposta na manhã seguinte. Um cheque caiu da carta
de Carol para o chão do corredor da senhora Cooper. O cheque
era de duzentos e cinquenta dólares. A carta de Carol - as
longas curvas mais soltas e leves, os traços dos tês
estendendo-se a todo o comprimento da palavra - dizia que Lhe
era impossível juntar-se-lhe nas próximas duas semanas, e
mesmo então não tinha a certeza de poder. O cheque destinava-
se à passagem de avião para Therese regressar a Nova Iorque e
a pagar a quem trouxesse o carro para o Leste.
"Sentir-me-ia mais tranquila se viesse de avião. Venha já,
não espere, era o último parágrafo.
Carol escrevera a carta com pressa, provavelmente aproveitara
um momento disponível para a escrever, mas nela também
transparecia frieza, e isso abalou-a. Saiu, caminhou
atordoada até à esquina e, apesar de tudo, meteu no correio a
carta que escrevera na noite anterior, uma carta pesada, com
três selos de correio por avião. Poderia ver Carol dentro de
doze horas. A ideia, porém, não a tranquilizou. Deveria
partir naquela manhã? Naquela tarde? Que tinham feito a
Carol? Ficaria ela furiosa se lhe telefonasse, telefonar-Lhe
precipitaria uma crise, empurrá-la-ia para uma derrota total?
Só quando estava sentada a uma mesa, algures, com café e sumo
de laranja à sua frente, olhou para a outra carta que tinha
na mão. No canto superior esquerdo decifrou com dificuldade a
escrita rabiscada. Era da senhora R. Robichek.
Querida Therese:
Muito obrigada pelo delicioso chouriço que recebi o mês
passado. É uma rapariga simpática e bondosa e estou contente
293
por ter a oportunidade de lhe agradecer muitas vezes. Foi
bonito da sua parte lembrar-se de mim quando estava a
fazer uma viagem tão grande. Gosto dos lindos postais
ilustrados, sobretudo do grande, de Sioux Falls. Como é, no
Dacota do Sul? Há montanhas e cowboys? Nunca tive
oportunidade de viajar, a não ser à Pensilvânia. É uma
rapariga com sorte, tão jovem, bonita e amável. Eu continuo a
trabalhar. No armazém está tudo na mesma. Tudo na mesma, mas
mais frio. Visite-me, por favor, quando regressar. Farei um
bom jantar para si, sem ser da charcutaria. Mais uma vez
obrigada pelo chouriço. Vivi dele durante vários dias, era
realmente uma coisa especial e boa. Com os melhores
cumprimentos da
Ruby Robichek
Therese desceu do tamborete, deixou algum dinheiro em cima do
balcão e saiu a correr. Correu o caminho todo para o Warrior
Hotel, pediu a ligação e esperou com o auscultador encostado
ao ouvido até ouvir o telefone tocar em casa de Carol.
Ninguém atendeu. Tocou vinte vezes, e continuou a não atender
ninguém. Pensou em telefonar ao advogado de Carol, Fred
Haymes. Decidiu não o fazer. Também não quis telefonar a
Abby.
Nesse dia choveu e Therese ficou deitada na cama, no seu
quarto, de olhos fixos no tecto, à espera das três horas,
quando resolvera telefonar de novo. A senhora Gooper levou-
lhe um tabuleiro com o almoço, por volta do meio-dia. A
mulher pensava que ela estava doente. Therese, porém, não
conseguiu comer e não soube que fazer à comida.
Às cinco horas continuava a tentar telefonar a Carol. Por fim
o telefone deixou de tocar e houve uma confusão na linha,
duas telefonistas a interrogarem-se uma à outra sobre a
chamada, e as primeiras palavras que Therese ouviu de Carol
foram: "Sim, com os diabos!" Sorriu e sentiu-se um pouco
aliviada.
- Está? - perguntou Carol com brusquidão.
- Está? - A ligação estava má. - Recebi a carta... a que
trazia o cheque. Que aconteceu, Carol?... O quê?
294
A voz atormentada de Carol repetiu, no meio do crepitar das
interferências:
- Penso que esta linha está sob escuta, Therese... Você está
boa? Vai regressar? Agora não posso demorar-me muito tempo a
falar.
Therese franziu a testa, sem encontrar palavras.
- Sim, suponho que posso partir hoje -. Depois não se
conteve: - Que se passa, Carol? Não posso, realmente,
suportar isto, não saber nada!
- Therese! - Carol arrastou a exclamação ao longo de todas as
letras de Therese, como se as apagasse.
- Regressa, para eu poder falar consigo?
Therese julgou ouvi-la suspirar, impacientemente.
- Mas eu preciso de saber agora. Pode ver-me quando eu
regressar?
- Domine-se, Therese.
Era desta maneira que elas falavam uma com a outra? Eram
estas as palavras que empregavam?
- Mas pode?
- Não sei.
Um arrepio subiu pelo braço de Therese até aos dedos que
seguravam o telefone. Tinha a impressão de que Carol a
detestava. Porque a culpa era sua, do seu estúpido descuido
com a carta que Florence encontrara. Acon tecera alguma coisa
e talvez Carol não pudesse, e nem sequer quisesse, voltar a
vê-la.
- Aquilo do tribunal já começou?
-Já acabou. Escrevi-lhe a esse respeito. Não posso falar mais
tempo. Adeus, Therese -. Carol esperou que ela respondesse. -
Tenho de me despedir.
Therese pôs devagarinho o telefone no descanso.
Parou no átrio do hotel, a olhar para os vultos indistintos
que se encontravam na recepção. Tirou a carta de Carol da
algibeira e voltou a lê-la, mas a voz de Carol estava mais
perto, a dizer impacientemente, "Regresse, para eu poder
falar consigo?". Tirou o cheque e olhou-o de novo, de pernas
para o ar, e rasgou-o lentamente. Deitou os pedaços de papel
num escarrador de latão.
Mas as lágrimas só brotaram quando chegou a casa
295
e voltou a ver o seu quarto, a cama de casal com uma cova no
meio, a rima de cartas de Carol na escrivaninha. Não podia
ficar ali nem mais uma noite. Certamente que Carol
Iria passar a noite a um hotel, e se a carta q mencionara não
chegasse amanhã partiria mesmo assim.
Tirou a mala de viagem do roupeiro e abriu-a em cima da cama.
O canto dobrado de um lenço branco espreitava de uma das
bolsas. Therese tirou-o e levou-o ao nariz, lembrando-se da
manhã em Des Moines em que Carol o pusera ali, com o borrifo
do perfume e o comentário trocista que fizera e que lhe
causara riso. Therese parou com a mão nas costas de uma
cadeira e a outra cerrada e a subir e descer sem sentido, e o
que sentia naquele momento era tão vago e indistinto como a
secretária e as cartas para que olhava de testa franzida, à
sua frente. Depois estendeu subitamente a mão para a carta
encostada aos livros, ao fundo da escrivaninha. Não reparara
nela antes, embora estivesse bem à vista. Abriu-a. Era a que
Carol mencionara. Era longa. Therese leu a primeira página e
depois voltou atrás e leu-a de novo.
Segunda feira.
Minha Querida
Nem sequer vou a tribunal. Esta manhã foi-me mostrado em
privado o que o Harge tencionava apresentar contra mim. Eles
têm uma gravação de algumas conversas - nomeadamente de
Waterloo - e será inútil tentar enfrentar um tribunal nestas
circunstâncias. Sentir-me-ia envergonhada, curiosamente não
por mim própria, mas pela minha filha.
Arrependi-me de aparecer. O importante agora é o que eu
tenciono fazer nofuturo, disseram os advogados. Disso
dependerá se voltarei a ver a minha filha, pois o Harge
obteve com facilidade a custódia completa dela. A questão era
se eu deixaria de a ver a si (e a outras como você, disseram.
). Não o disseram tão a vontade, mas disseram-no.
296
(Que futuro determinaram para mim se vão examiná-lo daqui a
seis meses?) Disse que deixaria de a ver. Não sei se
compreenderá, Therese, visto ser tão jovem e nunca ter tido
uma mãe que gostasse desesperadamente de si. Em troca desta
promessa, presenteiam-me com a sua maravilhosa recompensa o
privilégio de ver a minha filha durante algumas semanas do
ano.
Horas depois.
A Abby está aqui. Falámos de si, ela manda-lhe o seu amor,
como eu lhe mando o meu. A Abby recorda-me coisas que eu já
sei: que a Therese é muito jovem e me adora. Ela acha que eu
não lhe deveria enviar esta carta, mas sim dizer-lhe o que se
passa quando a Therese voltar. Acabámos de ter uma discussão
acalorada a esse respeito. Eu digo-lhe que ela não a conhece
tão bem como eu, e agora penso também que não me conhece tão
bem como a Therese, em certos aspectos, ou seja os das
emoções. Hoje não me sinto muitofeliz, minha muito querida.
Tenho estado a beber os meus uisques, e a Therese dir-me-ia
que me deprimem, eu sei. Mas depois das semanas passadas
consigo, não estava preparada para estes dias. Foram semanas
felizes, a Therese sabia-o melhor do que eu. Embora tudo
quanto conhecemos tenha sido apenas um principio. Tencionava
tentar dizer-lhe nesta carta que não sabe, sequer, o resto e
talvez nunca venha a saber, por não estar destinada a sabê-
lo. Nós nunca brigámos, nunca voltámos a juntar-nos sabendo
que não havia nada que desejássemos no Céu ou no Inferno que
nãofosse estarmos juntas. Se alguma vez me quis assim tanto,
não sei. Mas isso faz parte da situação, e nós não conhecemos
mais que um princípio. E por tão pouco tempo! Por esse motivo
terá raizes menosfundas em si. Diz que me ama seja eu como
for e mesmo quando fraquejo. Eu digo que a amo sempre, a
pessoa que é e a pessoa que se tornará. Di-lo-ia num tribunal
se isso tivesse significado alguma coisa para aquelas pessoas
ou pudesse, porventura, mudar alguma coisa, porque não são
essas as palavras de que tenho medo. O que quero dizer, minha
muito querida, é que lhe vou enviar esta carta e penso gue
297
compreenderá por que o faço, por que motivo disse ontem aos
advogados que não voltaria a vê-la e por que tive de lhes
dizer isso, e porque estaria a subestimá-la se pensasse que
não compreenderia e preferiria que adiasse.
Therese parou de ler, levantou-se e dirigiu-se devagar para a
escrivaninha. Sim, compreendia por que razão enviara Carol a
carta. Fora por amar a filha mais do que a amava a ela. E por
isso os advogados tinham conseguido vergá-la, obrigá-la a
fazer exactamente o que eles queriam. Therese não conseguia
imaginar Carol obrigada a fazer o que não queria. No entanto,
isso estava ali, escrito pelo seu próprio punho. Era uma
rendição, uma rendição que, Therese sabia-o, nenhuma situação
em que fosse ela que estivesse em jogo teria conseguido
arrancar de Carol. Durante um momento teve a fantástica
percepção de que Carol só lhe devotara uma fracção de si, e
de repente o mundo inteiro do último mês, como uma tremenda
mentira, estalou e quase ruiu. No instante seguinte, porém,
não acreditou nisso. Contudo, permanecia evidente o facto de
Carol ter escolhido a filha. Olhou para o sobrescrito da
carta de Richard, que ainda se encontrava em cima da
escrivaninha, e pensou em todas as palavras que queria dizer-
lhe e que nunca lhe dissera, sentiu-as subir torrencialmente
dentro de si. Que direito tinha ele de falar de quem ela
amava ou como amava? Que sabia ele dela? Que soubera alguma
vez?
exagerado e ao mesmo tempo minimizado (leu noutra página da
carta de Carol). Mas entre o prazer de um beijo e o prazer
daquilo que um homem e uma mulher fazem na cama parece-me
haver apenas uma gradação. Pergunto-me se esses homens
graduam o seu prazer em termos de os seus actos gerarem ou
não filhos, e se os consideram mais agradáveis no caso
afirmativo. No fim de contas, é uma questão de prazer, e de
que qualquer um pode debater o prazer de um sorvete versus o
de um jogo de futebol - ou de um quarteto de Beethoven versus
Mona Lisa?
298
Deixo isso ao cuidado dos filósofos. Mas a atitude deles era
a de quem achava que eu devo ser mais ou menos demente ou
cega (mais uma espécie de pena, pensei, pelo facto de uma
mulher razoavelmente atraente se encontrar presumivelmente
indisponivel para os homens). Alguém levou a “estética" para
a discussão, contra mim, é evidente. Perguntei se queriam
realmente debater isso - o que originou a única gargalhada de
todo o espectáculo. Mas eu não mencionei o ponto mais
importante, e ninguém se lembrou dele: que a relação entre
dois homens ou duas mulheres pode ser absoluta e perfeita, o
que não pode acontecer nunca entre homem e mulher, e talvez
algumas pessoas queiram precisamente isso, do mesmo modo que
outras querem aquela coisa mais inconstante e incerta que
acontece entre homens e mulheres. Ontem foi dito, ou pelo
menos insinuado, que o meu rumo presente me conduzirá às
profundezas do vicio e da degeneração humanos. É verdade, eu
afundei-me muito desde que eles tiraram a Therese de mim. É
verdade, se eu continuar assim, se for viciada, atacada e
nunca puder possuir uma pessoa tempo bastante, do que
resultaria que o conhecimento dessa pessoa terá de ser apenas
uma coisa superficial - isso será degeneração. Ou viver ao
arreio do que somos, o que é, por definição, degeneração.
Minha querida, desabafo tudo isto consigo (as linhas
seguintes estavam riscadas). Conduzirá sem dúvida alguma o
seu futuro melhor do que eu. Que eu seja um mau exemplo para
si. Se está agora magoada para além do que julga poder
suportar, e se isso a levar - agora ou um dia - a odiar-me -
e istofoi o que eu disse à Abby -, então não me lamentarei.
Eu posso ter sido aquela única pessoa que estava destinada a
conhecer, como diz, a única, e a Therese pode deitar tudo
isso para trás das costas. No entanto, se o não conseguir,
apesar de todo este fracasso e desolação de agora, eu sei que
o que disse naquela tarde é verdade: não tem de ser assim.
Quero falar consigo uma vez quando regressar, se estiver
disposta a isso, a não ser que pense que não pode.
As suas plantas continuam a medrar no alpendre das traseiras.
Rego-as todos os dias...
299
Therese não pôde ler mais. Do lado de fora da sua porta
ouviu passos descerem lentamente a escada e depois
atravessarem o corredor com mais confiança. Quando deixou de
os ouvir, abriu a porta e parou um instante no limiar, a
lutar contra o impulso de se ir embora dali e deixar ficar
todas as suas coisas. Depois desceu o corredor e foi bater à
porta da senhora Cooper, nas traseiras da casa.
Quando ela atendeu, Therese disse-lhe as palavras que
preparara sobre a sua saída naquela noite. Observou o rosto
da senhora Cooper, que não estava a ouvir e só reagia ao
aspecto do próprio rosto de Therese, de modo que se tornou
subitamente o seu próprio reflexo, a que não podia voltar as
costas.
- Bem, lamento, menina Belivet. Lamento se os seus planos
correram mal - respondeu, enquanto a sua cara mostrava apenas
surpresa e curiosidade.
Therese voltou para o seu quarto e começou a fazer a mala,
pondo no fundo os modelos de cartão, que dobrara para ficarem
planos, e depois os livros. Passados momentos, ouviu a
senhora Cooper aproximar-se devagar da sua porta, como se
transportasse alguma coisa, e pensou que se ela lhe trouxesse
outro tabuleiro de comida gritaria. A senhora Cooper bateu à
porta.
- Para onde enviarei o seu correio, minha querida, se vierem
mais cartas? - perguntou.
- Ainda não sei. Terei de lhe escrever a dizer -. Therese
sentiu-se estonteada e agoniada quando se endireitou.
- Não vai partir para Nova Iorque a esta hora da noite, pois
não? - A senhora Cooper chamava "noite" a tudo quanto passava
das seis da tarde.
- Não. Viajarei apenas uma curta distância -. Estava
impaciente por ficar só. Olhou para as mãos da senhora
Cooper, que fazia uma corcova no avental aos quadrados
cinzentos, debaixo do cós, para os sapatos macios de trazer
por casa, finos como papel de tão gastos naqueles soalhos,
que tinham percorrido anos e anos antes de ela ali chegar e
continuariam a percorrer os mesmos trilhos anos depois de ela
ter partido.
300
- Bem, não se esqueça de me mandar dizer como lhe correm as
coisas - recomendou a senhora Cooper.
- Não esquecerei.
Meteu-se no automóvel e dirigiu-se para um hoteldiferente
daquele de onde telefonara sempre a Carol. Depois saiu para
dar um passeio a pé, desassossegada, evitando todas as ruas
por onde passara com Carol. Podia ter ido para outra cidade,
pensou, e parou, indecisa, meio tentada a voltar para o
carro. Mas continuou a andar, pouco Lhe importando, na
realidade, o lugar onde estava. Caminhou até ter frio, e a
biblioteca era o lugar mais próximo para onde poderia ir e
esquecer. Passou pelo café-restaurante e olhou para o
interior. Dutch viu-a e, com o baixar de cabeça costumado,
como se tivesse de olhar por baixo de qualquer coisa para a
ver pela montra, sorriu e acenou-Lhe. Automaticamente, a mão
dela levantou-se e retribuiu o aceno, e de súbito Therese
pensou no seu quarto em Nova Iorque, com o vestido ainda no
sofá do estúdio e o canto da carpete levantado para trás. Se
ao menos pudesse, agora, estender a mão e endireitar a
carpete, pensou. Parou a olhar para a avenida estreita e de
aspecto sólido, com os seus candeeiros de iluminação pública
redondos. No passeio caminhava um único vulto, na sua
direcção. Therese subiu os degraus da biblioteca.
A menina Graham, a bibliotecária, cumprimentou-a como de
costume, mas Therese não entrou na sala de leitura principal.
Estavam lá duas ou três pessoas, entre elas o homem calvo,
com os óculos de aros pretos, que frequentava assiduamente a
mesa do meio - e quantas vezes se sentara ela naquela sala
com uma carta de Carol na algibeira? Com Carol ao seu lado.
Subiu as escadas, passou pela sala de história e arte do
primeiro andar e continuou a subir para o segundo andar, onde
nunca estivera antes. Ali havia uma única sala grande e com
ar empoeirado, coberta de estantes com portas de vidro à
volta das paredes, alguns quadros a óleo e bustos de mármore
em pedestais.
Sentou-se a uma das mesas e o corpo descontraiu-se
301
doridamente. Apoiou a cabeça nos braços, em cima da mesa, de
súbito lassa e sonolenta, mas logo a seguir empurrou a
cadeira para trás e levantou-se. Sentiu picadas de terror nas
raízes do cabelo. Até àquele momento fingira, de algum modo,
que Carol não partira, que quando voltasse para Nova Iorque a
veria e seria, teria de ser, como fora antes. Olhou
nervosamente em redor da sala, como se procurasse alguma
contradição, alguma compensação. Durante um momento teve a
sensação de que o seu corpo podia despedaçar-se, ou
arremessar-se através dos vidros das janelas compridas do
outro lado da sala. Fitou um busto pálido de Homero, as
sobrancelhas inquiridoramente erguidas delineadas por ténues
contornos de pó. Virou-se para a porta e reparou pela
primeira vez no retrato que se encontrava sobre o lintel.
Era apenas parecido, pensou, não exactamente igual, não,
igual não, mas o reconhecimento abalou-a até ao âmago de si
mesma, aumentava enquanto o olhava, e teve a certeza de que o
retrato era exactamente igual, só que mais pequeno, e que o
vira muitas vezes no corredor que conduzia à sala de música,
antes de o tirarem quando ela ainda era pequena - a mulher
sorridente, de vestido enfeitado de uma qualquer corte, a mão
pousada logo abaixo da garganta, a cabeça arrogante
semivoltada, como se o pintor a tivesse captado em movimento,
de tal modo que até as pérolas que lhe pendiam de cada orelha
pareciam mover-se. Conhecia as faces curtas, firmemente
modeladas, os lábios de coral, cheios, com um canto a sorrir,
as pálpebras zombeteiramente semicerradas, a fronte forte mas
não muito alta, que até no quadro parecia projectar-se um
pouco sobre os olhos vivos que tudo sabiam de antemão e se
compadeciam e riam ao mesmo tempo. Era Carol. Nos longos
momentos em que não conseguiu desviar os olhos do retrato, a
boca sorriu e os olhos olharam-na com zombaria, apenas com
zombaria, levantado o último véu, e não revelando mais nada
senão zombaria e exultação maldosa, a gloriosa satisfação da
traição consumada.
Com um ofego trémulo, Therese passou a correr por
302
debaixo do retrato e desceu a escada. No corredor de baixo,
a menina Graham disse-lhe qualquer coisa, fez uma pergunta
inquieta, e Therese ouviu a sua própria resposta como o
tartamudeio de um idiota, porque ainda estava ofegante,
sufocada, e foi assim que passou pela frente da bibliotecária
e saiu de rompante do edificio.

CAPÍTULO XXII
No meio do quarteirão, abriu a porta de um café, mas estavam
a tocar uma das canções que ouvira com Carol em todo o lado e
ela largou a porta e continuou a andar. A música vivia, mas o
mundo estava morto. E a canção morreria um dia, pensou, mas
como voltaria o mundo à vida? Como voltaria o seu sal?
Foi a pé para o hotel. No quarto, humedeceu uma toalha com
água fria, para pôr em cima dos olhos. O quarto estava
gelado, por isso despiu o vestido, descalçou-se e meteu-se na
cama.
No exterior, uma voz aguda, abafada pelo espaço vazio,
gritou: "Eh, Chicago Sun-Times!"
Depois silêncio, e ela a perguntar-se se deveria tentar
adormecer, enquanto a fadiga começava já a embalá-la
desagradavelmente, como uma embriaguez. Agora soavam vozes no
corredor, falando de uma mala extraviada e invadiu-a uma
sensação de inutilidade, ali deitada com a toalha de rosto
húmida, a cheirar a desinfectante, sobre os olhos inchados.
As vozes altercavam, e ela sentia a coragem esvair-se, e
depois a vontade, e, em pânico, tentou pensar no mundo
exterior, em Dannie e na senhora Robichek, em Frances Gotter
da Pelican Press, na senhora Osborne e no seu próprio
apartamento ainda em Nova Iorque, mas a sua mente recusava-se
a reconhecer ou a renunciar, a sua mente era agora una com o
seu coração e recusava renunciar a Carol. Os rostos flutuavam
juntos, como as vozes do outro lado da porta. Havia
305
também o rosto da Irmã Alicia, e da sua mãe. Havia o último
quarto em que dormira na escola. Havia a manhã em que se
esgueirara no dormitório, muito cedo, e correra pelo relvado
como um animal jovem enlouquecido pela Primavera, e vira a
Irmã Alicia a correr também, loucamente, pelo meio de um
campo, com os sapatos brancos a brilharem, intermitentemente,
através da erva alta, como patos - e só passados minutos é
que percebera que a freira corria atrás de um frango que
fugira. Havia o momento, em casa de uma amiga de sua mãe, em
que ela estendera a mão para uma fatia de bolo e fizera o
prato cair ao chão, e a mãe lhe dera uma bofetada na cara.
Viu o retrato no corredor da escola, agora respirando e
mexendo-se como Carol, trocista, cruel e sem querer saber
mais dela, como se tivesse sido cumprido algum objectivo
perverso e há muito destinado. O seu corpo ficou tenso de
terror; e a conversa prosseguia distraidamente no corredor,
caindo nos ouvidos com o som estridente e alarmante do gelo a
estalar algures num charco.
- Quer dizer que fez isso?
- Não...
- Se tivesse feito, a mala estaria lá em baixo na portaria...
- Oh, eu disse-lhe...
- Mas quer que eu perca uma mala para que você não perca o
seu emprego!
A mente de Therese atribuía significado às frases uma a uma,
como um tradutor lento que ia ficando para trás e, por fim,
se perdia.
Sentou-se na cama, com o fim de um sonho mau na cabeça. O
quarto estava quase escuro, as suas sombras escuras e sólidas
nos cantos. Therese estendeu a mão para o interruptor do
candeeiro e semicerrou os olhos para se proteger da luz.
Meteu uma moeda de vinte e cinco cêntimos no rádio da parede
e aumentou muito o volume, ao primeiro som que ouviu. A uma
voz de homem seguiu-se música, uma peça cadenciada que
parecia oriental e se contava entre as escolhidas para as
avaliações
306
da classe de música da escola. Num Mercado Persa lembrou-se
automaticamente, e o seu ritmo ondulante que sempre a fizera
pensar num camelo a andar, reconduziu-a à pequena sala do
lar, com ilustrações de óperas de Verdi nas paredes, por cima
do lambril alto. Ouvira ocasionalmente aquela música em Nova
Iorque, mas nunca a escutara com Carol, nunca a escutara nem
pensara nela desde que conhecera Carol, e agora a música era
como uma ponte alçando-se através do tempo sem tocar em nada.
Tirou da mesa-de-cabeceira o abre-cartas de Carol, a faca de
madeira que, não sabia como, fora parar à sua mala quando se
tinham preparado para partir, e apertou o cabo e passou o
polegar ao longo do gume, mas a sua realidade pareceu negar
Carol em vez de a afirmar, evocou-a menos do que a música que
nunca tinham ouvido juntas. Pensou em Carol com uma ponta de
ressentimento, pensou nela como um ponto dis tante de
silêncio e imobilidade.
Foi ao lavatório lavar a cara em água fria. Tinha de arranjar
um emprego amanhã, se pudesse. Fora essa a sua intenção ao
parar ali, trabalhar umas duas semanas e não chorar em
quartos de hotel. Mandaria à senhora Cooper o nome do hotel
como morada, por uma simples questão de cortesia. Era mais
uma das coisas que devia fazer, embora não o desejasse. E
perguntou-se se valeria a pena escrever de novo a Harkevy,
depois do bilhete cortês mas inexplícito que dele recebera em
Sioux Falls: "... Gostaria de voltar a vê-la quando voltasse
para Nova Iorque, mas é-me impossível prometer-lhe alguma
coisa para esta Primavera. Será boa ideia procurar o senhor
Ned Bernstein, o co-produtor, quando chegar. Ele saberá
dizer-lhe melhor do que eu o que está a acontecer nos
estúdios de desenho... Não, não voltaria a escrever a esse
respeito.
Em baixo, comprou um postal ilustrado do lago Michigan e,
deliberadamente, escreveu umas palavras bem-dispostas à
senhora Robichek. Soaram-Lhe a falso quando as escreveu, mas,
ao afastar-se do marco onde o metera, teve subitamente
consciência da energia do seu
307
corpo, da elasticidade do seu andar, da juventude do sangue
que lhe aquecia as faces à medida que ela estugava o passo, e
compreendeu que era livre e afortunada em comparação com a
senhora Robichek, e que aquilo que escrevera não era falso
porque ela podia fazê-lo tão bem, sem qualquer dificuldade.
Não estava tolhida nem doente, não tinha dores. Parou diante
da montra de uma loja e, rapidamente, pintou os lábios. Uma
rajada de vento obrigou-a a dar um passo, para não se
desequilibrar. Mas sentiu na frialdade do vento o seu núcleo
de Primavera, como se tivesse dentro um coração quente e
jovem. Na manhã seguinte começaria a procurar trabalho.
Poderia viver do dinheiro que Lhe restava e reservar o que
ganhasse para regressar a Nova Iorque. Podia telefonar ao seu
banco e pedir que lhe enviassem o resto do dinheiro,
evidentemente, mas não era isso que queria. Queria passar
duas semanas a trabalhar entre pessoas que não conhecia,
fazendo o género de trabalho que milhões de outros faziam.
Queria colocar-se na situação de outra pessoa qualquer.
Respondeu a um anúncio que pedia uma empregada recepcionista-
arquivista, dizia ser necessário saber um pouco de
dactilografia e pedia a comparência em pessoa. Pareceram
achar que ela servia, e Therese passou toda a manhã a
familiarizar-se com o arquivo. Mas um dos patrões apareceu
depois do almoço e disse que precisava de uma rapariga que
soubesse alguma estenografia. Therese não sabia. Na escola
tinham-lhe ensinado dactilografia, mas não estenografia, por
isso veio-se embora.
Nessa tarde leu outra vez as colunas de "Precisa-se". Depois
lembrou-se do letreiro que vira na cerca do madeireiro, não
muito longe do hotel. "Precisa-se rapariga para serviço geral
de escritório e armazém. Quarenta dólares por semana. " Se
não exigissem estenografia, ela poderia servir. Eram umas
três horas quando entrou na rua ventosa onde ficava o
madeireiro. Levantou a cabeça e deixou o vento soprar-lhe o
cabelo da cara para trás. E lembrou-se de Carol dizer: "Gosto
de a ver andar. Quando a vejo de longe, tenho a sensação de
que está a
308
andar na palma da minha mão e tem uns quinze centímetros de
altura. " Pareceu-lhe ouvir a sua voz suave sob a tagarelice
do vento, e tornou-se tensa de azedume e medo. Estugou o
passo, correu um pouco, como se assim pudesse fugir do
pântano de amor, ódio e ressentimento em que a sua mente de
súbito se atolara.
Havia um escritório de madeira a um lado do pátio do
madeireiro. Dirigiu-se lá e falou com um tal senhor
Zambrowski, um homem calvo e vagaroso, com uma corrente de
ouro que parecia curta para as dimensões do seu ventre. Antes
que Therese lhe falasse da estenografia, ele próprio disse
que não era necessária. Explicou que ficaria com ela à
experiência durante o resto da tarde e o dia seguinte.
Apareceram duas outras raparigas interessadas no emprego na
manhã seguinte, e o senhor Zambrowski tomou nota dos seus
nomes, mas antes do almoço disse a Therese que o lugar era
dela.
- Se não se importar de estar aqui às oito da manhã
- acrescentou.
- Não me importo -. Naquele dia chegara às nove, mas estaria
lá às quatro horas, se ele lho pedisse. O seu horário era das
oito da manhã às quatro e meia da tarde, e o seu trabalho
consistia simplesmente em conferir os envios da serração para
o madeireiro contra as encomendas recebidas, e em escrever
cartas de confirmação. Não via muita madeira da sua
secretária no escritório, mas o cheiro dela andava pelo ar,
fresco como se as serras tivessem acabado de expor a
superficie das tábuas de pinho brancas, e ouvia-as bater e
ressaltar quando as camionetas chegavam carregadas ao meio do
pátio. Gostava do trabalho, gostava do senhor Zam browski e
gostava dos lenhadores e camionistas que entravam no
escritório para aquecerem as mãos no lume. Um dos lenhadores,
um jovem atraente chamado Steve, com um restolho de barba
dourada, convidou-a duas vezes para almoçar na cafetaria do
fundo da rua. Pediu-lhe também que saísse com ele no sábado à
noite, mas Therese ainda não estava com vontade de passar um
serão inteiro com ele ou com qualquer outra pessoa.
309
Uma noite, Abby telefonou- lhe.
- Sabe que telefonei duas vezes para Dacota do Sul à sua
procura? - perguntou, irritada. - Que está aí a fazer? Quando
regressa?
A voz de Abby trouxe Carol tão perto como se fosse a ela que
Therese estava a ouvir. Fê-la sentir de novo aquele estranho
aperto na garganta e por momentos não conseguiu responder
nada.
- Therese?
- A Carol está aí consigo?
- Ela está em Vermont. Tem estado doente - respondeu a voz
rouca de Abby, e agora não havia nela nenhum sorriso. - Está
a descansar.
- Está tão doente que não me pode telefonar? Porque não mo
diz, Abby? Ela está a melhorar ou a piorar?
-A melhorar. Porque não tentou telefonar, para saber?
Therese apertou o telefone. Sim, porque não tentara? Porque
tinha estado a pensar num quadro em vez de em Carol.
- Que é que ela tem?
- Bonita pergunta essa! A Carol escreveu-Lhe a dizer o que
aconteceu, não escreveu?
- Escreveu.
- Bem, esperava que ela se refizesse como uma bola de
borracha? Ou que andasse atrás de si a procurá-la por toda a
América? Que julga que isto é, um jogo de es condidas?
Toda a conversa que tivera com Abby naquele almoço distante
se despenhou sobre Therese como uma avalancha. No ver de
Abby, fora tudo culpa dela. A carta que Florence encontrara
tinha sido apenas a asneira final.
- Quando regressa? - perguntou Abby.
- Dentro de dez dias, mais ou menos. A não ser que Carol
queira o carro mais cedo.
- Não quer. Ela não estará em casa dentro de dez dias.
Therese fez um esforço para perguntar:
310
- A respeito daquela carta... a que eu escrevi... sabe se a
encontraram antes ou depois?
- Antes ou depois de quê?
- De os detectives começarem a seguir-nos.
- Encontraram-na depois - respondeu Abby, suspirando.
Therese cerrou os dentes. Mas não importava o que Abby
pensava a seu respeito, só importava o que Carol pensava.
- Onde está ela, em Vermont?
- Se fosse a Therese, não Lhe telefonaria.
- Mas não é, e eu quero telefonar-lhe.
- Não telefone. Até aí, posso dizer-Lhe. Transmitir-lhe-ei
qualquer recado seu... que seja importante -. E seguiu-se um
silêncio frio. - A Carol deseja saber se precisa de dinheiro
e o que há com o carro.
- Não preciso de dinheiro nenhum, e o carro está bem -.
Therese tinha mais uma pergunta a fazer:
- Que sabe a Rindy disto?
- Sabe o que a palavra divórcio significa. E queria ficar com
a mãe. Isso também não facilita as coisas para a Carol.
"Muito bem, muito bem", teve Therese vontade de dizer. Não
incomodaria Carol telefonando-lhe, escrevendo-lhe ou
mandando-lhe quaisquer mensagens, a não ser a respeito do
carro. Tremia quando pôs o telefone no descanso. E levantou-o
imediatamente:
- Fala do quarto seiscentos e onze - disse. - Não quero
atender mais chamadas de longa distância. Absolutamente
nenhumas.
Olhou para o abre-cartas de Carol, em cima da mesa-de-
cabeceira, e ele agora significou Carol, a pessoa de carne e
sangue, a Carol que tinha sardas e uma pontinha de um dente
partida. Devia alguma coisa a Carol, à Carol pessoa? Não
brincava Carol com ela, como Richard tinha dito? Lembrou-se
das palavras dela: "Quando se tem um marido e uma filha é
diferente. " Franziu a testa ao abre-cartas, sem compreender
como se tornara, de repente, apenas um abre-cartas, por que
razão lhe era indiferente, a ela, guardá-lo ou deitá-lo fora.
311
Dois dias depois, chegou uma carta de Abby com um cheque
pessoal de cento e cinquenta dólares, que ela Lhe recomendava
que "esquecesse". Falara com Carol, informava, e ela dissera
que gostaria de ter notícias suas. Por isso mandava a morada
onde ela estava. Era uma carta bastante fria, mas não havia
frieza alguma no gesto do cheque. Não tinha sido aconselhado
por Carol, Therese sabia-o.
"Muito obrigada pelo cheque", escreveu Therese em resposta.
"É muitíssimo simpático da sua parte, mas não o utilizarei e
não preciso dele. Pede-me que escreva a Carol. Penso que não
posso ou que não devo. "
Encontrou Dannie sentado no átrio do hotel, uma tarde, quando
regressou do trabalho. Custou-lhe a acreditar que fosse ele,
o jovem de olhos escuros que se levantou, sorrindo, da
cadeira e caminhou devagar ao seu encontro. Depois reparou no
seu cabelo preto solto, que a gola levantada do sobretudo
despenteava um pouco mais ainda, e no sorriso rasgado e
simétrico, e ele tornou-se- lhe tão familiar como se o
tivesse visto na véspera.
- Olá, Therese - disse ele. - Surpreendida?
 Oh, tremendamente! - Já desistira de voltar a saber de si.
Não me escreveu nem uma palavra, em duas semanas -.
Lembrou-se de que ele dissera que deixaria Nova Iorque no
dia 28, e fora no dia 28 que ela partira para Chicago.
- Idem comigo, a seu respeito - respondeu Dannie, rindo. -
Tive um atraso em Nova Iorque. Acho que isso foi uma sorte,
porque tentei telefonar-lhe e a sua senhoria deu-me a sua
morada -. Os dedos de Dannie agarravam-Lhe o cotovelo com
firmeza. Caminhavam os dois lentamente na direcção dos
elevadores. - Está com um aspecto maravilhoso, Therese.
- Acha? Não calcula como estou satisfeita por vê- lo -. Havia
um elevador aberto à frente deles. Quer subir?
- Vamos comer qualquer coisa. Ou é demasiado cedo? Hoje não
almocei.
- Então não é, com certeza, demasiado cedo.
312
Foram a uma casa de que Therese ouvira falar, especializada
em bifes. Dannie até pediu cocktails, embora não costumasse
beber.
- Está aqui sozinha? - perguntou. - A sua senhoria de Sioux
Falls disse- me que tinha partido sozinha.
- Afinal, a Carol não pôde vir.
- Ah! E a Therese decidiu ficar mais tempo?
- Sim.
- Até quando?
- Até mais ou menos agora. Regresso na próxima semana.
Dannie escutava-a com os ternos olhos escuros fitos no rosto
dela, sem qualquer surpresa.
- Porque não viaja para oeste em vez de para leste e não
passa um tempo na Califórnia? Tenho um emprego em Ockland.
Preciso de lá estar depois de amanhã.
- Que tipo de emprego?
- Investigação... precisamente o que eu queria. Saí-me melhor
do que esperava nos meus exames.
- Foi o primeiro do curso?
- Não sei. Duvido. A classificação não foi feita desse modo.
Mas não respondeu à minha pergunta.
- Quero voltar para Nova Iorque, Dannie.
- Ah, - Sorriu, a olhar para o cabelo, para os olhos dela, e
reparou que nunca a vira com tanta maquilhagem. - Parece
adulta, de repente - observou.
- Mudou de penteado, não mudou?
- Um pouco.
-Já não parece assustada. Ou sequer grave.
- Isso agrada-me -. Sentia-se tímida com ele, mas ao mesmo
tempo, sem saber como, íntima, com uma intimidade cheia de
algo que nunca sentira com Richard. Algo indeciso, incerto,
que lhe agradava. Um pouco de sal, pensou. Olhou para as mãos
de Dannie, em cima da mesa, para o músculo forte protuberante
na base do polegar. Lembrou-se da sensação das mãos dele nos
seus ombros, naquele dia no quarto dele. A recordação era
agradável.
- Sentiu um bocadinho a minha falta, não sentiu, Terry?
313
- Claro que sim.
- Alguma vez pensou que podia interessar-se um pouco por mim?
Tanto quanto se interessou pelo Richard, por exemplo? -
perguntou, com uma nota de surpresa na voz, como se achasse a
pergunta fantástica.
- Não sei - respondeu Therese muito depressa.
- Mas não continua a pensar no Richard, pois não?
- Deve saber que não.
- Quem é, então? Carol?
Sentiu-se subitamente nua, ali sentada defronte dele.
- Sim. Era.
- Mas agora não é?
Therese ficou estupefacta por ser capaz de dizer as palavras
sem qualquer surpresa, sem nenhuma atitude:
- Não. que... não posso falar a ninguém a esse respeito,
Dannie - concluiu, e a voz soou profunda e serena aos seus
ouvidos, como se fosse a voz de outra pessoa.
- Não quer esquecer, se já é passado?
- Não sei. Não sei exactamente o que quer dizer com isso.
- Quero dizer, está arrependida?
- Não. Voltaria a fazer o mesmo? Sim.
- Quer dizer, com outra pessoa qualquer, ou com ela?
- Com ela - respondeu Therese. O canto da sua boca arqueou-se
para cima, num sorriso.
- Mas o fim foi um fiasco.
- Sim. Quis dizer que voltaria a passar pelo fim, também.
- E ainda está a passar por ele.
Therese não disse nada.
- Voltará a vê-la? Importa- se de eu lhe fazer todas estas
perguntas?
- Não me importo. Não, não voltarei a vê-la. Não quero.
- Mas outra pessoa qualquer?...
- Outra mulher? - Therese abanou a cabeça.
- Não.
314
Dannie olhou-a e sorriu, devagar.
- É isso que importa. Ou melhor, é isso que faz com que não
importe.
- Que quer dizer?
- Quero dizer que é muito nova, Therese. Mudará. Esquecerá.
Ela não se sentia nova.
- O Richard falou consigo?
- Não. Suponho que quis falar, uma noite, mas eu cortei antes
de ele começar.
Therese sentiu um sorriso amargo na boca, puxou uma última
fumaça do cigarro quase consumido e apagOu-O.
- Desejo que ele encontre alguém que o ouça. Precisa de uma
plateia.
- Sente-se rejeitado. O seu ego sofre. Mas não imagine,
nunca, que eu sou como o Richard. Penso que as vidas das
pessoas pertencem a elas próprias.
Therese lembrou-se de repente de uma coisa que Carol dissera
uma vez: todo o adulto tem segredos. Disse-o tão casualmente
como dizia tudo e ficou-lhe gravado no cérebro tão
indelevelmente como a morada que ela escrevera no talão de
venda do Frankenberg's. Sentiu um npulso para dizer o resto a
Dannie, acerca do retrato da biblioteca, do retrato na
escola. E acerca da Carol que não era um retrato, mas uma
mulher com uma filha e um marido, com sardas nas mãos, o
hábito de praguejar, de ficar melancólica inesperadamente, e
o mau hábito de fazer a sua vontade. Uma mulher que passara
por muito mais em Nova Iorque do que ela no Dacota do Sul.
Olhou para os olhos de Dannie, para o seu queixo com a leve
fenda. Sabia que até àquele momento estivera sob uma espécie
de encantamento que a impedia de ver alguém no mundo a não
ser Carol.
- Em que está a pensar? - perguntou ele.
- No que você disse uma vez em Nova Iorque, acerca de usar as
coisas e deitá-las fora.
- Ela fez-lhe isso?
- Eu é que farei - respondeu Therese, sorrindo.
315
- Então encontre alguém que nunca queira deitar fora.
- Que não se gaste.
- Escreve-me?
- Claro.
- Escreva-me daqui a três meses.
- Três meses? - perguntou Therese, mas de repente compreendeu
o que ele queria dizer. - Antes não?
- Não -. Ele olhava-a firmemente. - É um prazo justo, não é?
- É. Está bem. Prometo.
- Prometa-me outra coisa: não trabalhe amanhã, para poder
estar comigo. Estou livre até amanhã à noite.
- Não posso, Dannie. Tenho que fazer... e além disso preciso
de dizer ao meu patrão que me vou embora para a semana -. Ela
sabia que não eram bem estas as razões. E talvez Dannie
ficasse também a sabê-lo, olhando-a. Não queria passar o dia
seguinte com ele, seria demasiado intenso, ele recordá-la-ia
muito de si mesma e ela ainda não estava preparada.
Dannie foi ao escritório dela no dia seguinte, ao almoço.
Tinham tencionado almoçar juntos, mas em vez disso caminharam
e conversaram na Lake Shore Drive durante a hora inteira.
Nessa noite, às nove, Dannie meteu-se num avião, rumo a
oeste.
Oito dias depois, Therese partiu para Nova Iorque. Tencionava
mudar-se de casa da senhora Osborne o mais depressa possível.
Queria procurar algumas das pessoas de que fugira no último
Outono. E haveria outras pessoas, novas pessoas. Frequentaria
a escola nocturna, naquela Primavera. E queria mudar
completamente de guarda-roupa. Tudo quanto tinha agora, as
roupas que se lembrava de ter no seu roupeiro em Nova Iorque,
pareciam-lhe juvenis, como roupas que lhe tivessem pertencido
há anos. Em Chicago percorrera as lojas e ansiara por roupas
que ainda não podia comprar. Agora apenas se podia dar ao
luxo de um novo corte de cabelo.
316
CAPíTULO XXIII
Therese entrou no seu antigo quarto e a primeira coisa em que
reparou foi no canto da carpete, que estava direito. E em
como o quarto parecia pequeno e trágico. E, contudo, seu; o
minúsculo rádio na estante e as almofadas no sofá-cama, tão
pessoal como uma assinatura que tivesse feito há muito tempo
e esquecido. Como os dois ou três modelos de cenários
pendurados nas paredes e para os quais evitou deliberadamente
olhar.
Foi ao banco, levantou cem dos seus últimos duzentos dólares
e comprou um vestido preto e um par de sapatos.
Amanhã, pensou, telefonaria a Abby e combinaria qualquer
coisa a respeito do carro de Carol; hoje, não.
Nessa mesma altura, marcou uma entrevista com Ned Bernstein,
o co- produtor da peça inglesa para a qual Harkevy faria os
cenários. Levou três dos modelos que fizera no Oeste e também
as fotografias de Small Rain, para lhe mostrar. Um emprego
como aprendiza de Harkevy não lhe renderia o suficiente para
viver, mas havia outras fontes, outros armazéns onde poderia
trabalhar. Havia a televisão, por exemplo.
O senhor Bernstein olhou indiferentemente para o trabalho
dela. Therese disse que ainda não falara com o senhor Harkevy
e perguntou-lhe se sabia se ele aceitava ajudantes. O senhor
Bernstein respondeu-lhe que isso era com Harkevy, mas, tanto
quanto era do seu conhecimento, ele não precisava de mais
ajudantes. O senhor
317
Bernstein também não sabia de qualquer outro estúdio de
cenários que precisasse de alguém naquele momento. E Therese
pensou no vestido de sessenta dólares. E nos cem que lhe
restavam no banco. E tinha dito à senhora Osborne que podia
mostrar o apartamento quando desejasse, pois ia-se mudar. Não
fazia ainda nenhuma ideia para onde. Levantou-se para sair e
agradeceu ao senhor Bernstein por, apesar de tudo, ter visto
o seu trabalho. Fê-lo com um sorriso.
- A respeito da televisão? - perguntou-lhe o senhor
Bernstein. - Já tentou começar por aí? É mais fácil abrir
caminho por lá.
- Ao fim desta tarde vou falar com alguém em Dumont -. O
senhor Donohue dera-lhe dois nomes no mês de Janeiro passado.
O senhor Bernstein deu-lhe mais alguns.
Depois Therese telefonou para o estúdio de Harkevy. Ele
disse-lhe que ia sair naquele momento, mas que ela podia
deixar os modelos no seu estúdio e ele os veria na manhã
seguinte.
- A propósito, haverá um cocktail arty no St. Regis em
homenagem a Genevieve Granell amanhã por volta das cinco da
tarde. Se quiser passar por lá - disse Harkevy com o seu
sotaque em staccato que tornava a sua voz tão precisa como
matemática -, pelo menos teremos a certeza de nos vermos
amanhã. Pode ir?
- Posso. Gostaria muito. Onde, no St. Regis? Ele leu o
convite: Suite D, das cinco às sete.
- Eu estarei lá por volta das seis horas. Therese saiu da
cabina telefónica tão feliz como se Harkevy tivesse acabado
de lhe dar sociedade. Percorreu a pé os doze quarteirões até
ao seu estúdio e entregou os modelos a um jovem que lá
estava, um jovem diferente do que vira em Janeiro. Harkevy
mudava de ajudantes com frequência. Therese olhou
reverentemente a sua sala de trabalho, antes de fechar a
porta, Talvez ele a chamasse em breve para trabalhar ali.
Talvez ela o soubesse no dia seguinte.
Entrou num drugstore na Broadway e ligou para Nova
318
Jérsia, para Abby. A voz de Abby pareceu-lhe completamente
diferente do que lhe soara em Chicago. Carol devia estar
muito melhor, pensou Therese. Mas não perguntou por ela.
Telefonava para combinar a respeito do carro.
- Posso ir buscá-lo, se quiser - disse Abby. - Mas porque não
telefona à Carol para tratar disso? Sei que ela gostaria de
ter notícias suas -. Abby estava, na realidade, a recuar em
toda a linha.
- Bem... - Therese não lhe queria telefonar. Mas de que tinha
medo? Da voz de Carol? Da própria Carol?
- Pois sim. Eu levo-lhe o carro, a não ser que ela não queira
que eu o faça. Nesse caso, voltarei a telefonar-lhe.
- Quando? Esta tarde?
- Sim. Daqui a poucos minutos.
Therese foi até à porta do drugstore e parou aí alguns
momentos, a olhar para o anúncio dos cigarros Camel, com um
rosto gigantesco a soprar anéis de fumo que pareciam enormes
donuts, para os táxis achatados e de aspecto carrancudo que
manobravam como tubarões na hora de ponta depois da matinée e
para a miscelânea de tabuletas de restaurantes e bares,
toldos, degraus da frente e montras, para aquela confusão
castanho-avermelhada da rua transversal igual a centenas de
outras ruas de Nova Iorque. Lembrou-se de ter caminhado uma
vez por uma rua das 80 Ocidentais, as fachadas de arenito
pardo, camadas e camadas de humanidade, vidas humanas, umas
começando e outras terminando ali, e recordou a sensação de
opressão que isso lhe causara, e como apressara o passo para
chegar à avenida. Isso fora apenas há dois ou três meses.
Agora o mesmo tipo de rua enchia-a de uma excitação tensa,
dava-lhe vontade de mergulhar a cabeça nela, meter pelo
passeio com todas as suas tabuletas e toldos de teatros, e
pessoas apressadas e aos encontrões. Virou-se e voltou para
trás, para a cabina telefónica.
Um momento depois, ouviu, a voz de Carol.
- Quando chegou, Therese?
Um choque breve e trémulo, ao primeiro som da sua voz, e
depois nada.
319
- Ontem.
- Como está? Ainda tem o mesmo aspecto? - Carol parecia
reprimida, como se estivesse alguém com ela, mas Therese
tinha a certeza de que não estava ninguém.
- Não exactamente. E a Carol?
Carol não respondeu logo.
- Parece diferente.
- Estou diferente.
- Vê-la-ei? Ou não quer? Uma vez -. Era a voz de Carol, mas
as palavras não eram as dela. As palavras eram hesitantes e
cautelosas. - Que diz a esta tarde? Tem o carro?
- Esta tarde tenho de me encontrar com umas pessoas. Não
terei tempo -. Quando é que recusara alguma vez Carol quando
ela queria vê-la? - Quer que lhe leve aí o carro, amanhã?
-Não, eu posso ir buscá-lo. Não estou inválida. O carro
portou-se bem?
- Está em boa forma. Não tem arranhões em lado nenhum.
- E você? - perguntou Carol, mas Therese não lhe respondeu. -
Posso vê-la amanhã? Dispõe de algum tempo de tarde?
Combinaram encontrar-se no bar da Ritz Tower, na Rua 57, às
quatro e meia, e depois desligaram.
Carol chegou um quarto de hora atrasada. Therese esperava-a
sentada a uma mesa de onde podia ver as portas de vidro de
acesso ao bar, e por fim viu Carol empurrar uma das portas e
a tensão desfez-se nela como uma pequena dor surda. Carol
trazia o mesmo casaco de peles e os mesmos sapatos de camurça
preta que usara no dia em que ela a vira pela primeira vez,
mas agora um lenço vermelho que realçava a cabeça loura
levantada. Viu o rosto de Carol, mais magro, modificar-se de
surpresa, com um pequeno sorriso, quando a descobriu.
- Olá - cumprimentou Therese.
- Ao princípio nem sequer a reconheci - disse Carol, e ficou
um momento parada ao lado da mesa, a olhá-la, antes de se
sentar. - Foi amável da sua parte querer ver-me.
320
- Não diga isso.
O empregado veio e Carol pediu chá. Therese pediu o mesmo,
maquinalmente.
- Odeia-me, Therese?
- Não -. Therese aspirou levemente o perfume de Carol, aquele
doce perfume familiar que se tornara agora estranhamente
desconhecido porque não evocava o que em tempos evocara.
Pousou a carteira de fósforos que estivera a esmagar na mão.
- Como poderia eu odiá-la, Carol?
- Creio que poderia. Odiou durante um tempo, não odiou -
perguntou Carol, como se lhe apresentasse um facto.
- Odiá-la? Não -. Não inteiramente, podia ter dito. Mas sabia
que os olhos de Carol estavam a ler isso no seu rosto.
- E agora... está toda adulta... com cabelo e roupas de
adulta.
Therese olhou-a nos seus olhos cinzentos, agora mais sérios e
algo melancólicos também, apesar da segurança da cabeça
altiva, e baixou os seus, incapaz de os sondar. Continuava
bela, pensou com uma súbita agonia de perda.
- Aprendi umas coisas - disse.
- Quais?
- Que eu... - Calou-se, com os pensamentos repentinamente
bloqueados pela recordação do retrato de Sioux Falls.
- Sabe, está com muito bom aspecto - disse Carol.
- Desabrochou de repente. Foi esse o significado de se
separar de mim?
- Não - respondeu Therese muito depressa. Olhou de testa
franzida para o chá que não queria. A palavra "desabrochou"
dita por Carol fizera-a pensar em nascer e isso embaraçou-a.
Sim, ela nascera desde que deixara Carol. Nascera no instante
em que vira o retrato na biblioteca, e o seu grito sufocado
de então fora como o primeiro grito de um bebé ao ser trazido
para o mundo contra a sua vontade. Olhou para Carol. - Havia
um retrato na biblioteca de Sioux Falls - disse, e depois
321
contou-Lhe o que tinha acontecido, simplesmente e sem
emoção, como uma história que se tivesse passado com outra
pessoa.
E Carol escutou-a, sem nunca desviar os olhos dela. Observou-
a como se estivesse a observar de longe alguém que não podia
ajudar.
- Estranho - disse baixo. - E aterrador.
- Foi -. Therese sabia que Carol compreendia. Viu também
comiseração nos olhos dela, e sorriu. Mas Carol não retribuiu
o sorriso e continuou a fitá-la.
- Em que está a pensar? Carol tirou um cigarro.
- Que lhe parece? Naquele dia no armazém. Therese sorriu de
novo.
- Foi tão maravilhoso quando se dirigiu para mim. Porque se
dirigiu para mim?
Carol não respondeu logo.
- Por uma razão tão estúpida! Porque você era a única
rapariga que não estava numa azáfama dos diabos. E também
porque não vestia uma bata, lembro-me disso.
Therese desatou a rir. Carol sorriu apenas, mas pareceu de
súbito o que era, fora, em Colorado Springs, antes que alguma
coisa tivesse acontecido. Therese lembrou-se, de repente, do
castiçal que tinha na mala de mão.
- Trouxe-lhe isto - disse, estendendo-lho. - Encontrei-o em
Sioux Falls.
Therese limitara-se a enrolá-lo num pouco de papel de seda.
Carol desembrulhou-o em cima da mesa.
- Acho-o encantador - disse. - Parece-se exactamente consigo.
- Obrigada. Eu pensei que se parecia consigo -. Therese olhou
para a mão de Carol, o polegar e a ponta do dedo médio
pousados no rebordo delgado do castiçal, como os vira
segurando os pires das chávenas de café no Colorado, em
Chicago e em lugares esquecidos. Fechou os olhos.
- Amo-a - disse Carol.
Therese abriu os olhos, mas não os levantou.
322
- Sei que não sente o mesmo por mim. Pois não?
Therese teve uma vontade repentina de a desmentir
mas podia fazê-lo? Não sentia o mesmo.
- Não sei, Carol.
- Isso é a mesma coisa - a voz de Carol era suave,
expectante, esperava afirmação ou negação.
Therese olhou para o triângulo de torrada no prato entre as
duas. Pensou em Rindy. Adiara perguntar por ela.
- Tem visto a Rindy?
Carol suspirou. Therese viu a sua mão recuar do castiçal.
- Sim, vi-a no domingo passado, cerca de uma hora. Suponho
que ela pode vir visitar-me uma ou duas
tardes por ano. Muito de longe em longe. Perdi-a
completamente.
- Pensei que tinha dito que a poderia ver algumas
semanas por ano.
- Bem, aconteceu algo mais... privadamente, entre o
Harge e eu. Recusei-me a fazer uma quantidade de promessas
que ele me pediu que fizesse. E a família também
se meteu. Recusei-me a viver segundo uma lista de promessas
idiotas elaboradas por eles como um rol de delitos, mesmo que
daí resultasse isolarem a Rindy de mim
como se eu fosse um papão. E resultou. O Harge disse
tudo aos advogados... o que quer que eles ainda não
soubessem.
- Meu Deus - murmurou Therese. Imaginava o
que seria Rindy de visita uma tarde, acompanhada por
uma preceptora vigilante prevenida contra Carol, a
quem fora provavelmente recomendado que não perdesse a
criança de vista, e Rindy que não tardaria a dar-se
conta de tudo isso. Que prazer poderia haver numa visita
assim? Harge... Therese não queria dizer o seu nome.
- Até o tribunal foi mais generoso - observou.
- Na realidade não prometi muito no tribunal, também recusei,
lá.
Therese sorriu um pouco, mau grado seu, porque estava
satisfeita por Carol ter recusado, por ainda ter orgulho para
isso.
323
- Mas não se tratou de um tribunal, compreende, apenas de
uma discussão numa mesa redonda. Sabe como fizeram aquela
gravação em Waterloo? Pregaram uma cavilha na parede,
provavelmente mais ou menos assim que lá chegámos.
- U ma cavilha?
- Lembro-me de ter ouvido alguém martelar qualquer coisa.
creio que foi quando tínhamos acabado no chuveiro. Lembra-se?
- Não.
Carol sorriu.
- Uma espécie de cavilha que capta som como um microfone. Ele
estava no quarto ao lado do nosso.
Therese não se lembrava de ouvir martelar, mas a violência de
tudo quanto se passara voltou, demolidora, destruidora.
-Já acabou - disse Carol. - Sabe, quase preferiria nunca mais
ver a Rindy. Não pedirei, jamais, para a ver se ela deixar de
me querer ver. Deixarei isso à vontade dela.
- Não consigo imaginá-la a não a querer ver.
Carol ergueu as sobrancelhas.
- Existe alguma maneira de prever o que o Harge lhe pode
fazer?
Therese ficou calada. Desviou os olhos de Carol e viu um
relógio. Eram cinco e trinta e cinco. Deveria chegar ao
cocktail antes das seis, pensou, se fosse. Vestira-se para
ir, o vestido preto novo e um lenço de pescoço branco, os
sapatos novos e as luvas pretas novas. Mas como as roupas lhe
pareciam agora sem importância! Pensou, inesperadamente, nas
luvas de lã verdes que a Irmã Alicia lhe dera. Estariam ainda
embrulhadas no velho papel de seda, no fundo do seu baú?
Queria deitá-las fora.
- Nós curamo-nos das coisas - disse Carol.
- É verdade.
- O Harge e eu vamos vender a casa, e eu arranjei um
apartamento na Avenida Madison. E um emprego, por muito que
lhe custe a acreditar. Vou trabalhar para uma casa de
mobiliário da 4. a Avenida, como vendedora.
324
Alguns dos meus antepassados devem ter sido marceneiros -.
Olhou para Therese e continuou: - Seja como for, é um modo de
ganhar a vida, e eu vou gostar. O apartamento é bonito e
grande, suficientemente grande para duas. Estava com
esperança de que quisesse morar comigo, mas suponho que não
quer.
O coração de Therese deu um salto, exactamente como naquele
dia em que Carol lhe telefonara para o armazém. Alguma coisa
reagiu nela contra sua vontade, a fez sentir-se
repentinamente feliz e orgulhosa. Estava orgulhosa por Carol
ter tido a coragem de fazer tais coisas, de dizer tais
coisas, certa de que a teria sempre. Recordou a coragem de
Carol quando defrontava o detective na estrada rural. Engoliu
em seco, tentou engolir o bater descompassado do seu coração.
Carol nem sequer olhara para ela. Estava a esmagar a ponta do
cigarro no cinzeiro. Viver com Carol? Tempos houvera em que
isso tinha sido impossível e o que ela mais desejara no
mundo. Viver com ela e partilhar tudo com ela, Verão e
Inverno; Passearem e lerem juntas, viajarem juntas. E
recordou os dias de ressentimento contra Carol, em que a
imaginara a pedir-Lhe aquilo e ela a responder que não.
- Quereria? - Carol olhou-a.
Therese sentia-se equilibrada num gume fino. O ressentimento
já desaparecera. Agora não restava mais que a decisão, um fio
fino suspenso no ar sem nada de qualquer dos lados a empurrá-
la ou a puxá-la. Mas de um lado estava Carol e do outro um
grande ponto de interrogação. De um lado Carol, e agora seria
diferente porque estavam ambas diferentes. Seria um mundo tão
desconhecido como o acabado de passar fora quando nele
entrara. Com a diferença de não haver agora quaisquer
obstáculos. Pensou no perfume de Carol, que naquele dia não
significava nada. Um vazio para ser preenchido, diria Carol.
- Bem... - disse Carol, sorrindo, impaciente.
- Não - respondeu Therese. - Não, acho que não"Porque me
voltaria a trair. " Fora isso que pensara em Sioux Falls,
isso o que tencionara escrever ou dizer. Mas
325
Carol não a traíra. Carol amava-a mais do que amava a sua
filha. Isso fazia parte da razão por que recusara fazer as
promessas. Agora estava a arriscar, como arriscara na
probabilidade de obter tudo do detective naquele dia, na
estrada... e então perdera, também. Viu o rosto de Carol
mudar, viu os pequenos sinais de espanto e choque tão subtis
que talvez só ela no mundo inteiro pudesse notar, e durante
um momento não foi capaz de pensar.
- É essa a sua decisão? - disse Carol.
- É.
Carol olhou fixamente para o seu isqueiro, em cima da mesa.
- Então, pronto.
Therese olhou para ela, querendo ainda estender as mãos,
tocar no cabelo de Carol e apertá-lo com força com todos os
seus dedos. Não ouvira Carol a indecisão na sua voz?
Apeteceu-lhe subitamente fugir, sair rapidamente pela porta
da frente e correr pelo passeio abaixo. Faltava um quarto
para as seis.
- Tenho de ir a um cocktail esta tarde. importante, por causa
de um possível emprego. O Harkevy estará lá -. Harkevy dar-
lhe-ia qualquer tipo de trabalho, tinha a certeza.
Telefonara-lhe ao meio-dia, para saber a sua opinião sobre os
modelos que deixara no seu estúdio. Ele tinha gostado de
todos. - Também arranjei uma coisa na televisão, ontem.
Carol levantou a cabeça, sorrindo.
- A minha pequena pessoa importante. Agora tem todo o ar de
quem poderá fazer alguma coisa boa. Sabe que até a sua voz
está diferente?
- Está? - Therese hesitou, achando cada vez mais dificil
continuar ali sentada. - Carol, podia ir ao cocktail, se
quisesse. É uma festa grande em duas salas de um hotel, para
dar as boas-vindas à mulher que vai ser a protagonista da
peça do Harkevy. Sei que não se importariam se eu levasse
alguém -. E não compreendeu por que estava a convidá-la, por
que haveria Carol, agora, de ter mais vontade do que ela de
ir a um cocktail.
326
Carol abanou a cabeça.
- Não, minha querida, obrigada. melhor ir sozinha. Na
verdade, tenho um encontro no Elysée daqui a um minuto.
Therese reuniu as luvas e a mala no colo. Olhou para as mãos
de Carol, para as sardas claras que lhe salpicavam as costas
- a aliança de casamento desaparecera, agora -, e para os
seus olhos. Teve a sensação de que nunca mais a veria. Dentro
de dois minutos, ou menos, despedir-se-iam no passeio.
- O carro está lá fora. No passeio defronte, à esquerda. E
aqui estão as chaves.
- Eu sei, vi-o.
- Vai continuar aqui? Eu pago a despesa.
- Não, eu pago. Vá, se tem de ir.
Therese levantou-se. Não podia deixar Carol ali sentada à
mesa onde estavam as suas duas chávenas, com as cinzas dos
seus cigarros à frente.
- Não fique. Saia comigo.
Carol levantou a cabeça com uma espécie de surpresa
indagadora no rosto.
- Está bem - respondeu. - Ficaram umas coisas suas lá em
casa. Quer que...
- Não tem importância - interrompeu Therese sem a deixar
acabar.
- E as suas flores. As suas plantas -. Carol estava a pagar a
conta que o empregado trouxera. - Que aconteceu às flores que
lhe dei?
- As flores que me deu... morreram.
Os olhos de Carol fitaram os dela durante um segundo, e
depois Therese afastou os seus.
Despediram-se no passeio, à esquina da Avenida Park com a Rua
57. Therese atravessou a avenida a correr, apenas um instante
antes de se acenderem as luzes verdes que soltaram uma
matilha de carros atrás dela esbatendo a figura de Carol
quando ela virou no outro passeio. Carol caminhava devagar,
passando pela entrada da Ritz Tower e continuando a afastar-
se. E era assim que devia ser, pensou Therese, não com um
aperto
327
de mão demodado, não com olhares para trás. Depois, quando a
viu tocar no puxador da porta do carro, lembrou-se da lata de
cerveja, ainda debaixo do banco da frente, lembrou-se do seu
chocalhar quando ela subira a rampa do Túnel Lincoln, ao
entrar em Nova Iorque. Pensara então que tinha de a tirar
dali antes de devolver o carro a Carol, mas esquecera-se.
Estugou o passo, a caminho do hotel.
Havia já pessoas que transbordavam das duas portas para o
corredor, e um empregado tinha dificuldade em empurrar a sua
mesa rolante com baldes de gelo para dentro da sala. O
barulho era muito e Therese não viu Bernstein ou Harkevy em
lado algum. Não conhecia ninguém. A não ser uma cara, um
homem com quem falara meses atrás, algures, a respeito de um
emprego que não se concretizara. Therese virou-se. Um homem
pôs-lhe uma taça alta na mão.
- Mademoiselle - disse ele, com um floreado. - Era isto que
procurava?
- Obrigada -. Não ficou com o homem. Pareceu-lhe ver o senhor
Bernstein ao canto da sala. Havia várias mulheres com grandes
chapéus no caminho.
- É actriz? - perguntou o mesmo homem, avançando com ela pelo
meio da multidão.
- Não. Desenhadora cénica.
Era de facto o senhor Bernstein, e Therese meteu-se pelo meio
de dois grupos de pessoas e chegoujunto dele. O senhor
Bernstein estendeu-lhe uma mão roliça e cordial e levantou-se
do irradiador.
- Menina Belivet! - exclamou. - A senhora Crawford,
consultora de caracterização...
- Não falemos de trabalho! - disse a senhora Crawford
esganiçadamente.
- O senhor Stevens, o senhor Fenelton - continuou o senhor
Bernstein, enquanto ela ia inclinando a cabeça a uma dúzia de
pessoas e dizendo Como está?" aí a metade delas. - E Ivor...
Ivor! - chamou o senhor Bernstein.
E ali estava Harkevy, figura esguia, rosto esguio com um
pequeno bigode, sorrindo-lhe, estendendo-lhe a mão.
328
- Olá - cumprimentou ele. - Alegra-me muito voltar a vê-la.
Sim, gostei do seu trabalho. Estou a ver a sua ansiedade -
riu um pouco.
- Gostou o suficiente para me deixar entrar? - perguntou
Therese.
- Quer saber? - respondeu ele, sorrindo. - Sim, pode entrar.
Apareça no meu estúdio amanhã por volta das onze horas. Pode
ser?
- Pode.
- Depois vá ter comigo. Agora tenho de me despedir destas
pessoas que se vão embora -. E afastou-se.
Therese pousou o copo na beira de uma mesa e procurou um
cigarro na mala. Conseguira. Olhou para a porta. Uma mulher
com o cabelo louro penteado para cima e olhos azuis
brilhantes e intensos acabava de entrar e estava a causar um
pequeno furor à sua volta. Fazia movimentos rápidos,
positivos, quando se voltava para cumprimentar pessoas,
apertar mãos, e, de súbito Therese compreendeu que se tratava
de Genevieve Gra nell, a actriz inglesa que representaria o
papel principal. Parecia diferente dos imstantâneos que vira
dela. Tinha o tipo de rosto que tem de ser visto em acção
para ser atraente.
- Olá, olá! - exclamou por fim para toda a gente, olhando em
redor da sala, e Therese notou que o seu olhar se demorava um
instante nela, e sentiu um choque um pouco semelhante ao que
sentira quando vira Carol pela primeira vez, e viu nos olhos
azuis da mulher o mesmo lampejo de interesse que, tinha a
certeza, brilhara nos seus próprios quando vira Carol. E
agora foi ela que continuou a olhar, e a outra que desviou os
olhos e se voltou.
Therese olhou para o copo que tinha na mão e sentiu um calor
súbito no rosto e nas pontas dos dedos, um tumulto dentro de
si que não era inteiramente nem o seu sangue nem apenas os
seus pensamentos. Soube, antes de serem apresentadas, que
esta mulher era como Carol. E era bela. E não se parecia com
o retrato da biblioteca. Sorriu e sorveu um gole da sua
bebida, um gole longo, para se acalmar.
329
- Uma flor, madame? - um empregado estendia-lhe uma bandeja
cheia de orquídeas brancas.
- Muito obrigada -. Therese tirou uma. Teve dificuldades com
o alfinete, e alguém... o senhor Fenelton ou o senhor
Stevens... correu a ajudá-la.
- Obrigada- agradeceu.
Genevieve Granell vinha na sua direcção, com o senhor
Bernstein atrás. A actriz cumprimentou o homem que estava com
Therese como se o conhecesse muito bem.
- Foi apresentada à menina Granell? - perguntou o senhor
Bernstein a Therese.
Therese olhou para a mulher.
- Chamo-me Therese Belivet - disse, e apertou a mão que a
outra lhe estendeu.
- Como está? então, o departamento de cenários?
- Não. Sou apenas uma parte dele -. Continuou a sentir a
força do aperto da mão da actriz, depois de ela largar a sua.
Estava excitada, louca e estupidamente excitada.
- Ninguém me vai buscar uma bebida? - perguntou Genevieve
Granell, sem se dirigir a nenhum dos ho mens em especial.
O senhor Bernstein atendeu o seu pedido e acabou de a
apresentar às pessoas que estavam consigo e ainda não a
conheciam. Therese ouviu-a dizer a alguém que acabara de
desembarcar de um avião e que a sua bagagem estava empilhada
no átrio, e viu-a olhá-la umas duas vezes enquanto falava,
por cima dos ombros dos homens. Therese descobria uma
atracção excitante na perfeição da sua nuca, no arrebitar
engraçado e despreocupado da ponta do seu nariz, a única
feição descuidada do seu rosto estreito e clássico. Os seus
lábios eram delgados. Parecia extremamente atenta e
imperturbavelmente aprumada. No entanto, pressentiu que
Genevieve Granell poderia não lhe voltar a falar ali, pela
simples razão de que provavelmente queria falar-lhe.
Therese abriu caminho para um espelho de parede e olhou, para
ver se o seu cabelo e a pintura dos seus lábios ainda estavam
em ordem.
330
- Therese - disse uma voz perto dela. - Gosta de champanhe?
Therese voltou-se e viu Genevieve Granell.
- Claro.
- Claro. Bem, apareça no seiscentos e dezanove daqui a alguns
minutos. É a minha suite. Mais tarde temos uma reunião para o
círculo mais íntimo.
- Honra-me muito.
- Por isso não desperdice a sua sede com uísque e soda. Onde
arranjou esse vestido encantador?
- No Bonwit's... uma extravagância louca.
Genevieve Granell riu-se. Usava um conjunto de lã azul que,
esse sim, parecia realmente uma extravagância louca.
- Tem um ar tão jovem que não se importa, com certeza, se Lhe
perguntar que idade tem.
- Vinte e um.
A actriz revirou os olhos.
- Incrível. É possível ainda haver alguém com vinte e um
anos?
Algumas pessoas observavam a actriz. Therese estava
lisonjeada, tremendamente lisonjeada, e esse sentimento
atravessava-se no caminho do que sentia, ou poderia sentir,
por Genevieve Granell.
A actriz estendeu-Lhe uma cigarreira e comentou:
- Cheguei a pensar que fosse menor.
- Isso é crime?
Genevieve Granell olhava só para ela, com os olhos azuis
sorrindo, por cima da chama do seu isqueiro. Depois, quando
ela virou a cabeça para acender o seu próprio cigarro,
Therese soube que a actriz nunca significaria nada para si,
nada além daquela meia hora no cocktail, que a excitação que
experimentava não continuaria e não voltaria a ser evocada em
nenhuma outra ocasião ou lugar. Que é que lhe dizia isso?
Therese fitou a linha tensa da sua sobrancelha loura quando o
primeiro fumo subiu do cigarro de Genevieve Granell, mas a
resposta não estava lá. E, subitamente, apoderou-se dela,
encheu-a de um sentimento de tragédia, quase de pesar.
331
- É nova-iorquina? - perguntou-Lhe a actriz.
- SoU.
As pessoas que tinham acabado de chegar à porta rodearam
Genevieve Granell e levaram-na consigo. Therese voltou a
sorrir, acabou a sua bebida e sentiu o primeiro calor
reconfortante do uísque alastrar por ela. Falou com quem
estivera breves momentos, na véspera, no escritório do senhor
Bernstein, e com outro que nem sequer conhecia, e olhou para
a entrada da porta do outro lado da sala, que naquele momento
era um rectângulo vazio, olhou e pensou em Carol. Seria
próprio de Carol vir, apesar de tudo, para a convidar de
novo. Ou melhor, seria próprio da Carol antiga, mas não da de
agora. Na quele momento, Carol estaria presente no encontro
que mencionara, no Elysée. Com Abby? Com Stanley McVeiCh?
Therese desviou os olhos da porta, como se tivesse medo que
Carol aparecesse e ela tivesse de lhe dizer, novamente, Não".
Aceitou outro uísque e sentiu o vazio dentro de si a encher-
se com o pensamento de que podia ver Genevieve Granell com
muita frequência, se quisesse, e que, embora ela própria
nunca se envolvesse, poderia ser amada.
Um dos homens que estavam ao seu lado perguntou-lhe:
- Quem fez os cenários para The Lost Messiah, Therese?
Lembra-se?
- Blanchard - respondeu distraída, porque estava ainda a
pensar em Genevieve Granell com um sentimento de revulsão, de
vergonha pelo que acabara de lhe passar pela cabeça e que
sabia que nunca seria. Escutou a conversa a respeito de
Blanchard e de outra pessoa qualquer, participou até nela,
mas a sua percepção detivera-se num emaranhado em que uma
dúzia de fios se cruzavam e embaraçavam. Um era Dannie. Outro
era Carol. O outro era Genevieve Granell. Um avançava e saía
do emaranhado, mas a sua mente ficava presa no cruzamento.
Inclinou-se para aceitar lume para o seu cigarro, sentiu que
se afundava mais na rede e agarrou-se a Dannie. Mas o fio
preto e forte não conduzia a nada. Soube,
332
como se uma voz prenunciadora estivesse agora a falar, que
não iria mais longe com Dannie. E a solidão fustigou-a como
um vento impetuoso, misteriosa como as lágrimas ténues que
subitamente lhe cobriram os olhos, tão ténues que ninguém as
veria, ao erguer a cabeça e olhar de novo para a porta.
- Não se esqueça -. Genevieve Granell estava a seu lado, a
dar-lhe palmadinhas no braço e a dizer-lhe muito depressa: -
Seiscentos e dezanove. Vamos transferir-nos para lá -.
Começou a voltar-se mas retrocedeu. - A Therese vai, não vai?
O Harkevy também vai. Therese abanou a cabeça.
- Obrigada... pensei que podia ir, mas lembrei-me de que
tenho de estar noutro lado.
A mulher olhou-a ironicamente.
- Que se passa, Therese? Correu alguma coisa mal?
- Não - respondeu, sorrindo, e encaminhou-se para a porta. -
Obrigada por me ter convidado. Voltarei a vê-la, sem dúvida.
- Sem dúvida - disse a actriz.
Therese dirigiu-se para o quarto ao lado da sala grande e
tirou o casaco do monte que se encontrava em cima da cama.
Meteu apressadamente pelo corredor na direcção da escada,
passou pelas pessoas que esperavam no elevador, entre as
quais estava Genevieve Granellmas Therese não se importou que
ela a visse ou não, quando correu pela larga escada abaixo,
como se fugisse de alguma coisa. Sorriu para consigo. O ar
batia-lhe na fronte com uma sensação de frescura e suavidade,
produzia um som plúmeo, como as asas, ao passar-lhe pelos
ouvidos, e ela tivera a sensação de que atravessava as ruas e
subia os passeios a voar. Ao encontro de Carol. E talvez
Carol o soubesse naquele momento, porque antes soubera coisas
desse género. Atravessou outra rua, e lá estava o toldo do
Elysée.
O maitre disse-lhe qualquer coisa, no átrio, e ela respondeu:
- Procuro uma pessoa - e continuou a dirigir-se para a
entrada da porta.
333
Parou, a olhar para as pessoas sentadas à mesa na sala onde
um piano tocava. As luzes não eram fortes e, ao princípio,
ela não a viu, semioculta na sombra junto da parede oposta,
voltada para Therese. Carol também não a viu. Estava um homem
sentado defronte dela, um homem que Therese não sabia quem
era. Carol levantou a mão, devagar, e alisou o cabelo para
trás, um lado de cada vez, e Therese sorriu porque aquele
gesto era Carol, e era Carol quem ela amava e amaria sempre.
Oh, agora de maneira diferente, sim, porque ela era uma
pessoa diferente, era como se voltasse a conhecer Carol pela
primeira vez, mas continuaria a ser Carol e mais ninguém.
Seria Carol em mil cidades, em mil casas, em terras
estrangeiras onde iriam juntas, no Verão e no Inferno.
Therese esperou. Depois, quando se preparava para ir ao seu
encontro, Carol viu-a, pareceu fitá-la um momento
incredulamente, enquanto Therese via o sorriso lento a
alastrar, antes de o seu braço se levantar de súbito e a sua
mão acenar uma saudação rápida, ansiosa, que Therese nunca
vira antes. Therese caminhou então para ela.

POSFACIO
Quando O Preço do Sal foi escrito, alguns romances sobre
homossexualidade começavam a surgir, um tanto timidamente,
embora os editores escrevessem na publicidade das sobrecapas
"ousado", e estavam a ser lidos por homossexuais masculinos e
femininos e, sem dúvida, por heterossexuais curiosos acerca
do que era então uma parte desconhecida da sociedade, quase
um submundo. Nesse tempo, nos anos 40 e início dos anos 50,
os bares ga de Nova Iorque encontravam-se ocultos atrás de
portas muito escuras, algures, e clubes particulares
organizavam encontros nas noites de sexta-feira, mediante uma
entrada de três dólares, que incluía uma bebida e permitia
convidar uma pessoa amiga. Dançava-se e jantava-se em mesas à
luz de velas. Uma atmosfera muito decente, na verdade, a
desses clubes. Os gays conversavam a respeito do último
romance sobre homossexuais e talvez rissem à socapa do fim da
história.
O romance homossexual de então tinha de ter um fim trágico.
Geralmente acerca de homens. Uma das principais personagens,
se não ambas, tinha de cortar os pulsos, ou de se afogar na
piscina de alguma encantadora propriedade, ou de dizer adeus
ao seu companheiro por haver decidido tornar-se hetero. Um
deles tinha de ver o erro dos seus - dele ou dela - costumes,
a infelicidade que o esperava, tinha de se conformar a fim
de... De quê? De conseguir que o livro fosse publicado? De
ter a certeza de que o editor não se candidataria a um olho
335
negro por parecer tolerar a homossexualidade? Era como se a
juventude tivesse de ser advertida para não se deixar atrair
por pessoas do mesmo sexo, como a juventude de agora é
advertida contra as drogas. Pedia-se aos escritores desses
tempos que mudassem o fim desses livros? Alguns livros davam
a impressão de que assim era.
Em 1952, disse-se de O Preço do Sal que era o primeiro livro
gay com um fim feliz. Não tenho a certeza de que isso fosse
absolutamente verdade, porque nunca conferi. No entanto, a
quantidade de cartas recebidas depois da edição brochada, em
1953, foi espantosa, em número e conteúdo, doze por dia,
algumas vezes, e durante semanas a fio. Obrigada ou obrigado,
diziam muitas delas, de raparigas e também de rapazes, de
jovens e de pessoas de meia- idade, mas principalmente de
jovens, e dolorosamente tímidas. Agradeciam-me por ter
escrito acerca de duas pessoas apaixonadas, do mesmo sexo,
que tinham realmente chegado vivas ao fim e com uma boa dose
de esperança de um futuro feliz. "Vivo numa pequena cidade.
Não há aqui ninguém como eu. Que devo fazer?... " E: "Não sei
dizer-lhe a satisfação que sinto por alguém ter tido a
coragem de escrever uma história de duas lésbicas que esperam
ser bem sucedidas..." Havia sobretudo optimismo, o cheiro de
coragem naquelas cartas de Eagle Pass, Texas, de algures no
Canadá, de cidades do Dacota do Sul de que eu nunca ouvira
falar, de Nova Iorque, até mesmo da Austrália. Respondi ao
maior número que pude, pus uma alma solitária em contacto com
outra semelhante, pedindo-lhe que escrevesse à outra, para
evitar que tivesse eu de fazê-lo, e lhe exprimisse os meus
agradecimentos pela sua carta. Que se podia dizer então de
uma pessoa que estava sozinha numa cidade, a não ser que
mudasse para uma maior, onde poderia ter mais probabilidades
de encontrar um parceiro ou uma parceira?
Os anos 80 apresentam um quadro diferente. E se uma pessoa em
cada dez é gay, ou pelo menos tem propensão para isso, como
os autores de estatísticas dizem, uma pequena cidade não
parece tão desolada como em
336
tempos pareceu. Agora os gays não se escondem. A chantagem
perdeu uma boa quantidade dos seus dentes graças às leis
sobre consentimento mútuo, embora o facto de ser homossexual
ainda possa custar à pessoa o seu emprego, o que depende mais
do emprego que do comportamento ou carácter da pessoa.
Atitude muito perversa, visto que uma pessoa feliz trabalha
melhor que uma pessoa que não seja e que não a tenha,
qualquer que seja o emprego.
Um leitor dos anos 80 poderá achar Therese uma violeta
demasiado tímida para ser acreditada. Mas ela vivia numa
época mais repressiva. Hoje, uma rapariga com a sua ambição e
nível de percepção teria consciência do mundo gay desde os
doze anos, ou da idade em que se desse conta do caminho que
os seus desejos seguiam. Revistas e livros são agora mais
francos e mais acessíveis. As actividades sexuais começam
mais cedo que os dezanove anos de Therese. Talvez agora,
mesmo em cidades pequenas, rapazes e raparigas desabrochem no
princípio da adolescência, ou pelo menos descubram que não
estão sós no seu desvio do curso habitual. Mas mesmo no mundo
ocidental, só um rapaz ou uma rapariga excepcional, com uma
coragem excepcional, é capaz de, aos catorze anos, fazer uma
afirmação aos pais, como quem faz uma declaração de
independência e liberdade. Aceitarão os pais essas notícias
calmamente? Não haverá uma cena, ameaças, talvez visitas
forçadas ao psiquiatra? Ainda hoje, são provavelmente poucas
as pessoas homossexuais que não tenham tentado escapar o mais
tmpo possível, durante o período terrível dos catorze aos
dezoito anos, representando para os pais, esperando manter as
coisas ocultas até ao grande dia em que a escola acaba e elas
podem procurar emprego, ir viver com um amigo ou uma amiga ou
arranjarem um lugar seu, por muito modesto que seja. Apesar
da libertação de hoje e dos pais sofisticados que podem
dizer, enquanto bebem uns copos com contemporâneos seus,
"Imaginem, a nossa filha é gay!, existe uma acrimónia, uma
decepção. Não será provável que nasçam netos do rebento em
337
questão. A família encara e prevê relacionamentos instáveis
e desastrosos.
Poderá haver menos Thereses nestes tempos mais livres, mas
haverá sempre Carols num milhar de cidades, com histórias
similares. Uma rapariga casa nova, frequentemente com alguma
instigação parental, com uma vaga e inexplorada convicção de
que faz o que é certo. Poucos anos depois, a verdade revela-
se e tem de ser posta em prática pois não pode ser reprimida
por muito mais tempo. Muitas vezes, nessa altura, existe já
um filho. Às fúrias do Inferno poderá juntar-se a fúria do
marido e pai que "perdeu o amor da sua mulher a favor de
outra mulher". Impotentes como homens, recorrem às leis para
que se cumpra aquilo que vêem como sentido da justiça, e
frequentemente como vingança justificável, e por isso
insistem para que a lei tome as piores decisões.
Porque se fascinam tanto as pessoas com a vida sexual dos
outros? Em parte isso deve-se ao prazer decorrente da
fantasia, de mimos jornalísticos tanto mais suculentos quanto
maior a importância das pessoas, por exemplo um membro de uma
família real de qualquer lado, presumivelmente porque o
cenário é muito elegante; em parte, também, e isso é mais
asqueroso, pela satisfação do instinto primitivo que manda
punir aqueles que se tresmalham do rebanho. Se vemos um vulto
informe, de gabardina, numa estrada enevoada, a primeira
pergunta que nos fazemos é se é homem ou mulher? Esta é a
pergunta imediata e inconsciente que tem de receber resposta.
Se a figura informe nos aborda e pergunta um caminho, ou
qualquer coisa do género, e continuamos sem saber distinguir
o sexo por causa da velhice da pessoa, de ela ter a cabeça
enrolada num cachecol ou da sua voz andrógina, pronto: o caso
transforma-se numa história divertida que vale a pena
contarmos aos amigos. O sexo é definido por características
fisicas e tem de constar dos passaportes. O amor está na
cabeça, é um estado de espírito.
Apaixonar-se, para alguns, está fora de moda, é perigoso
338
e até mesmo desnecessário. Nada de emoções fortes, eis o
slogan. O que é preciso é engatar e gozar a vida. O sexo,
para eles, é uma "viagem" de ego. Que pensarão essas pessoas
do caminho difícil de Therese e Carol para conseguirem uma
relação? O Preço do Sal foi rejeitado pelo primeiro editor
que o viu e aceite pelo segundo. Teve críticas "sérias e
respeitáveis" aquando da sua edição encadernada. Sem outras
críticas, foi uma avalancha esmagadora em brochura, quando a
sua publicidade se fez de boca em boca. Muita gente se deve
ter identificado com Carol ou com Therese. Por isso, um livro
que começou por ser recusado acabou por subir ao topo. Sinto-
me feliz por poder pensar que deu alguma coisa a vários
milhares de pessoas solitárias e assustadas, uma esperança à
qual se puderam agarrar.
Claire Morgan, Outubro, 1983

Fiiiiiiim

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