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*
Elisa pegou, de dentro da gaveta de
sua mesa de trabalho, a caneta de ponta
esferográfica com a marca de um
laboratório de ansiolíticos na diagonal,
e aproveitou para guardar ali o cartão
do presente que ganhara de Liudmila
naquela tarde. Leu em voz alta: Um anjo
russo para iluminar, ainda mais, quem
já é feita de luz.
Ela tocou o cachecol que ganhara de
presente da esposa de um paciente
também ali guardado. Acendeu a
luminária nova de anjo, tirou o
estetoscópio do pescoço e o colocou ao
lado do otoscópio, perto do computador.
Depois, ao tentar destacar o título da
dissertação, percebeu que a caneta
estava com a tinta seca e a jogou no lixo,
onde o papel com desenhos da Catedral
Ortodoxa de Santo Isaac, de São
Petersburgo, na Rússia, que envolvera o
pacote do presente, disputava lugar com
o papel cinza-chumbo descartável do
forro da cama de exame clínico.
Procurou outra caneta ou lápis, mas nada
encontrou.
— Droga, vou ter que usar minha
caneta-herança, pelo menos hoje.
Elisa se referia à caneta Montblanc
Writers Edition Liev Tolstói, numa
edição especial em homenagem ao
escritor russo. De edição limitada, a
caneta é toda referência aos fatos que
marcaram a vida do escritor, inclusive
as cores azul e prata – alusivas à capa
de seus primeiros livros.
Tio Roger ficou fascinado pela
caneta artesanal requintada que estava
mais para relíquia que para instrumento
de escrita. O detalhe da malequita que
adornava o cone e fazia menção à lenda
da vara verde emocionou o tio de Elisa,
que não teve dúvidas em convencer tia
Eleonor sobre o presente de formatura
de Elisa.
A lenda da vara verde foi um
segredo que Nikolai, irmão de Tolstoy,
contou a este, garantindo que poderia
acabar de vez com as guerras e os
sofrimentos do mundo. Assim, todos os
homens poderiam ser felizes. Disse ao
irmão que escrevera o segredo em uma
vara verde, e a enterrado em Yasnaya
Polyana, sua amada propriedade.
Tolstoy nunca esqueceu dessa história,
acompanhando-a pelo resto de sua vida.
e ainda pediu para ser enterrado em
Yasnaya Polyana, no mesmo lugar onde
a vara verde presumidamente fora
enterrada. Simples como ele foi a vida
toda, ainda pediu, antes de morrer, que
depositassem seu corpo num caixão de
madeira. Assim, o martelado da base da
caneta lembra sua vida camponesa.
O consultório não era de uso
exclusivo de Elisa, mas cada médico
tinha o direito a uma porta do armário
para uso particular. Como ela passava a
maior parte do dia no Hospital, preferiu
deixar sua pequena herança, a caneta
Liev Tolstói, trancada no armário,
dentro da caixa de poesia. Vinte e nove
anos de vida tinham lhe ensinado que
não existe prazer maior do que ter
aquilo que mais se ama próximo de si.
Nada mais que isso.
Elisa pegou a chave de dentro do
bolso do jaleco. Rodou-a na fechadura.
Abriu a porta do armário. Segurou a
caixa nas mãos, pegou a caneta,
devolveu a caixa no lugar e retornou
para sua mesa de trabalho.
Enquanto alisava a barriga, ainda
sem evidência da gravidez de dois
meses, Elisa ergueu as sobrancelhas
bem definidas e seus olhos verdes de
aurora boreal ficaram ainda mais
brilhantes do que a luz do Norte no alto
inverno glacial. Respirou fundo e fez
uma cara de desagrado, intuindo que um
enjoo estava a caminho. Soltou os
cabelos, presos num coque displicente, e
ligou a luz da luminária de anjo.
Liudmila acertou no presente. Adorei,
pensou Elisa, tentando se distrair
daquele incômodo. Abriu um sorriso de
leve ao lembrar que sua melhor amiga
parecia mais um anjo que gente. Abriu o
livro de pesquisa com o título em inglês
Diagnostic and Statistical Manual for
Mental Disorders 4th edition, e anotou,
com uma caligrafia grande e letras
arredondadas – mais legível, impossível
– na primeira folha de sua tese: Ômega-
3 no combate à depressão e melhoria
no efeito dos Antidepressivos: Sua
mesa, que ficava de frente a uma grande
janela com vidros suados pela
temperatura fria do lado externo e verão
tropical do lado interno, e impecável
arrumação, ainda rescendia a lustra-
móveis de lavanda, que ela trouxe do
Brasil. Com o odor um pouco forte,
Elisa sentiu novamente um leve enjoo.
Abriu uma fresta na janela para receber
a lufada de ar fresco.
Quem sabe um copo d’água também
não me faça bem, ponderou.
A cozinha ficava no final do
corredor, a uns cinquenta passos do
consultório. Quando Elisa se levantava
para sair, o seu telefone celular tocou:
— Hallô — atendeu. — Sim, vou passar
a noite de plantão. Não está tarde para
você? Tá bom, vou esperar. Tchau.
Desligou o telefone, colocou o
aparelho em cima da mesa de trabalho e
foi até a cozinha com passos lentos e
despreocupados, tentando afastar o
pressentimento ruim de estar sendo
observada. Meneou a cabeça; afinal, o
hospital listava como um dos lugares
mais seguros para se trabalhar, na
Noruega. Pegou um copo com água e se
sentou numa poltrona velha com o
estofado marrom-chocolate um pouco
puído. Respirou fundo para tentar aliviar
o incômodo do enjoo, que se tornava
mais forte e, dessa vez, seguido de
náusea. Sentindo-se um pouco melhor,
voltou ao consultório. Já de pé em frente
à porta, reparou que ela não estava
como a deixara, entreaberta, para não
ranger e travar como de costume.
Alguém deveria ter passado por ali e
fechado, mas com o feriado, aquela área
estava semivazia.
Bem, deve ser impressão, pensou.
Elisa abriu a porta e entrou no
consultório. Levou o primeiro golpe.
Urrou. Sentiu a cabeça quase explodir.
Ziguezagueou e se apoiou no encosto da
cadeira giratória. Viu tudo rodar envolto
em uma luz branca. Ao segundo golpe,
ela ainda se mantinha de pé enquanto um
líquido quente descia pelas suas coxas.
Ao terceiro golpe, Elisa caiu de joelhos,
no chão. Virou-se do lado. Ainda pôde
perceber, como na cena de um pesadelo,
a porta do armário balançar acima da
sua cabeça. Gemeu. Passou a mão pelo
nariz, coberto por sangue vivo. Gemeu
uma segunda vez e perdeu os sentidos.
Um canto entrecortado e gutural se
espalhou pelo consultório, numa
linguagem não usada por aquelas
bandas. O canto joïk. O canto dos velhos
xamãs.
Naquele momento, o ranger da porta
acabou com a cantoria, e a luminária do
anjo russo espatifou-se no chão.
Førde – Noruega – 2008.
Na manhã de quinta-feira de um
outubro quase findo, o frio absurdo
parecia socar o nariz levemente aquilino
de Elisa com uma luva invisível de gelo.
Nevara durante toda a madrugada, bem
ao contrário da previsão dos
meteorologistas que diziam na noite
anterior, na NRK-TV, em frente a um
mapa da Noruega, que a neve chegaria
no início da semana. Decerto, a luneta
moderna de Galileu Galilei deveria
soltar ainda naquela manhã, no Instituto
Norueguês de Meteorologia, fotos de
uma Noruega de casas coloridas de
madeira, soterradas no meio do gelo.
— É, Sr. Hubble, e que se danem os
nervos de quase cinco milhões de
pessoas — desabafou Elisa, como se
alguém pudesse ouvi-la e, pior, entendê-
la.
Elisa caminhava pelas ruas de
Førde, equilibrando-se com grande
dificuldade e protegida do frio de
outono – mas de inverno prematuro –
por um pesado capote cinza com o capuz
de pelo artificial de raposa, calça preta
de tecido impermeável e botas próprias
de inverno. Ela precisava atravessar a
cidade inteira para chegar à escola, às
oito horas em ponto.
Apertou os passos. Sorriu de leve.
Como sempre, um sorriso forçado que
empregava como truque para espantar o
pavor em situações anormais, desde que
se conhecia por gente. Na real, Elisa
queria mesmo era gritar bem alto: —
Socorro... Tirem-me deste inferno
gelado!
As ruas semidesertas e iluminadas
apenas pela luz dos postes, e um ou
outro farol de carro que passava,
projetavam sombras da própria Elisa no
chão coberto por grossas camadas de
neve fofa, e davam a impressão
passageira de espectros assombrados.
Cada passo dado se constituía em uma
pequena vitória para Elisa.
Elisa tirou a luva de pele de foca,
revestida também nas bordas com pelo
artificial de raposa, olhou o relógio
comprado numa banca de camelô do Rio
de Janeiro e atualizado com o fuso
horário da Noruega. Murmurou alguma
coisa incompreensível. Prosseguiu,
puxando as pernas como se fosse uma
ursa pronta para hibernar – e não restava
dúvidas de que o que mais ela desejava
seria dormir o inverno todo e só acordar
no verão. Pouco depois, num estado de
ansiedade visível, consultou as horas
novamente e praguejou para quem
quisesse ouvir, embora não se visse
vivalma naquele breu gelado: — Que
droga! Estou atrasada!
O cansaço físico e mental tomou
conta de Elisa nos infernais quarenta
minutos em meio às trevas, silêncio e
gelo. Cansaço físico, porque enfiar e
tirar as pesadas botas de cano alto e
solado grosso daquela neve fofa, pesava
e amarrava seus passos. E mental,
porque a falta de disciplina com horário
produzia uma terrível irritação, que a
desgovernava. Elisa até podia ouvir os
gritos vindos da garganta de megafone
da tia-madrinha: — Olhe o relógio,
menina, e se apresse!
Elisa tremia e apertava os dentes de
porcelana uns contra os outros, em uma
inútil tentativa de aliviar o estresse que
tomava conta dela aos poucos. Sentia-
se, naquele momento, como uma rena
selvagem perseguida por um velho
lapão, num vilarejo de casas feitas de
toras, em alguma montanha isolada no
extremo norte norueguês. Ela encolheu
os ombros, imaginou o filhote de rena se
debatendo ao ver a mãe nas mãos do
predador. Podia até ouvir o ruído da
faca de cabo de bétula com sua lâmina
salpicada de ferrugem a escorrer pela
carne fresca do animal abatido. E a cara
de gozo do velho caçador ao separar a
membrana láctea da pele, como a neve
que caía daquele céu sem cor. Decerto
algum tamborete receberia o couro do
animal, ou ele manteria a temperatura
quente do corpo de um Sami ao redor
das fogueiras, nos rituais do solstício.
Elisa já tinha lido nos livros sobre a
Lapônia a respeito da história dos
quarenta dias sem ver a luz do sol, mas
nos contos sempre tem muita poesia,
pensava ela. A vida real se mostrava tão
apavorante quanto a faca aos olhos da
rena.
Elisa quis chorar, mas lembrou da
promessa do esposo de levá-la às aulas
nos dias de nevasca. Sussurrou, como
consolo para si mesma: Calma, Elisa,
vai dar tudo certo. Já deu certo.
Calma, menina!
*
Justo naquele dia em que Elisa mais
precisava de ajuda com uma carona até
a escola-coicidindo com o primeiro dia
de neve na sua vida-, o esposo precisou
sair de madrugada para pegar o primeiro
Ferry Boat para Bergen, às cinco horas
da manhã. Às três horas da madrugada,
Elisa ganhou um beijo de despedida do
esposo e, quando ainda se virava para o
outro lado da cama, recebeu nos olhos
sonolentos um facho de luz da garagem.
Ao desviar o olhar para o visor do
relógio digital em cima da mesa de
cabeceira, este marcava 3h15. Foi no
exato momento que o esposo voltou e
advertiu: — Elisa, tem uma nevasca lá
fora. Use a bota de neve para ir à
escola. E não se atrase!
Elisa virou para o lado, puxou o
edredom com capa de flanela sobre a
cabeça, e ainda pôde ouvir o raspar do
gelo no vidro do Lexus IS-250, em
seguida o ronco do motor. Depois,
dormiu como um urso que hiberna.
A casa voltou ao silêncio. Às sete
horas o despertador gritou.
Naquela hora o esposo já deveria
estar na reunião, na sala de eventos do
Thon Hotel, ao lado do aeroporto
Flesland, na cidade comercial de
Bergen, para uma coletiva com a mídia e
ativistas de defesa do meio ambiente
que insistentemente vivem a brigar na
tentativa de acabar com a criação de
peixe em cativeiro.
Elisa abriu os olhos verdes de
aurora boreal – herança genética da
mãe, uma imigrante polaca – que
destacavam ainda mais os enormes
cílios negros com leve ponta arqueada,
que mais pareciam postiços de tão
perfeitos. A sobrancelha espessa e
escura harmonizava com o rosto fino e
delgado, como os traços do pai, um
comerciante de ascendência árabe que
fez fortuna nas Minas Gerais, após
embarcar para o Brasil na década de 70,
trazendo apenas a irmã mais nova,
Eleonor, a quem confiou o batismo de
Elisa.
A bela Elisa parou o olhar na foto de
casamento com Eirik Leiv Myklebust
vestido com o Bunad, traje tradicional
da Noruega, pendurada na parede.
Espreguiçou-se ainda olhando para a
imagem da foto e falou bem alto: —
Como é liiinnndooooo meu Viking!
Elisa se levantou, com vontade de
ficar no quentinho da cama. Ao chegar à
sala percebeu que o esposo tinha
deixado a lareira acesa.
— Que querido! — agradeceu Elisa
pelo cuidado.
Do lado de fora a neve caía e
parecia ser noite. Elisa ligou o
computador. Procurou no Google o
número do telefone da Central de Táxi
de Førde e o digitou em seu BlackBerry.
Antes de alguém atender, Elisa
desligou.
— Não — decidiu, resoluta, e jogou
o telefone de lado.
Ela já tinha questionado o esposo
por que não pegara um voo no dia
anterior, reservado uma diária no Hotel
e usado táxi para os deslocamentos
necessários em Bergen, e a resposta foi
seca e direta: — Você sabe quanto custa
uma diária de hotel e um dia de corrida
de táxi na Noruega, Elisa?
Caro e desnecessário, foi o que
ficou subentendido.
Percebendo a cara de “não entendi
nada” de Elisa, o esposo deu uma
aulinha de custo/benefício e estilo
norueguês de vida.
— Vá se acostumando, minha
Rainha das Neves – falou o esposo em
tom de brincadeira.
Elisa encarou seus olhos azuis e
sinceros e devolveu a brincadeira: —
Tudo bem, meu Hans Christian
Andersen, sem problemas.
Depois de sorrir pelo canto da boca,
Elisa fechou a cara. Como poderia
questionar o conforto e a rapidez de uma
pequena viagem de negócios numa
cultura que despreza gastos extras? E
seu Eirik, embora jovem, era bem
agarrado às raízes da tradicional cultura
norueguesa.
Se o esposo não se dava ao luxo de
pegar táxi em Bergen, não seria Elisa a
ir à escola com um. Foi assim que ela se
deslocou a pé para a escola de idiomas.
*
Elisa seguia caminho, um tanto
distraída, quando da Rua Hafstad um
feixe de luz vindo de um farol de
automóvel ofuscou seus olhos. Com os
passos descontrolados ela foi parar no
meio da pista, onde um caminhão de
diesel vinha, célere, em sua direção. Eis
que uma moça alta e magra, com uma
mochila de viagem nas costas, apareceu
do nada e, com toda a força necessária,
puxou Elisa pelo braço tirando-a do
meio da rua, evitando assim um
acidente.
— Thank you — disse Elisa, com
dificuldade para respirar.
— This is OK — respondeu a moça.
Ainda bem que o inglês era a
segunda língua dos noruegueses, pensou
Elisa. Esse detalhe facilitava e muito
sua vida.
Elisa não podia se demorar. Estava
atrasada.
Oito horas menos dez minutos. Elisa
chegou à porta da sala de aula; os lábios
com a mesma palidez da pele do rosto
fino e comprido, mas delicado como de
um anjo barroco. Tirou a touca de tricô
feita pelas mãos talentosas da sogra, e
seus cabelos negros e longos caíram nos
ombros, escorregaram pela clavícula
protegida pelo cachecol também feito
dos mesmos fios tricotados da touca, até
repousarem as pontas na protuberância
dos seios, com a maciez dos fios da lã
escandinava.
Elisa tremia de cima a baixo como
se a presença de alguma coisa estranha
ou perigosa colocasse sua vida em
risco. O suor gelado escorria pelas suas
costas, já arcadas pelo medo súbito que
ela tentava acreditar não ter nenhum
fundamento. O corredor da escola
parecia girar; Elisa se sentia como que
saída de uma montanha-russa com
centenas de loopings. Levou a mão aos
olhos que, de tão verdes, pareciam
artificiais. Ela ofegava, mas precisava
entrar, não tinha como recuar. Chegara
até ali, e só uma porta a separava do seu
objetivo, depois de quarenta e cinco
minutos lutando contra a neve. Com a
mão trêmula e já um pouco aquecida,
tocou a maçaneta da porta e a abriu.
A professora interrompeu o que
falava e a encarou com o semblante
sério e um olhar bem típico de uma
reação moralizante. Os olhos, azuis
como duas blåberries, mirtilo, recém-
colhidas nas montanhas e repousadas em
cima de duas bolas de sorvete de creme
com topo de chantilly, davam o toque
final de surrealismo. Para evitar arfar,
Elisa se segurou a ponto de sentir dor no
peito.
— Entre, Elisa — disse a professora
com a voz não muito acolhedora, nem
animada.
A turma da sala a olhava, de rabo de
olho, e ainda que quase paralisada de
vergonha, podia perceber o mesmo
medo que sentia naqueles olhos
estrangeiros e desconfiados.
Elisa queria sumir dali, contudo,
lembrou-se de um conselho de seu tio-
padrinho, a quem ela sempre ouvia, e
que a orientava nas frequentes críticas
da tia-madrinha: — Endireite a coluna,
respire fundo e sorria. Não vale a pena
se estressar.
Elisa tomou coragem, ficou reta
como uma tábua, ergueu a cabeça e
soltou um disfarçado confiante: — Sorry
I’m late!
Com uma passada de olho pela sala,
escolheu um lugar para se sentar que não
atrapalhasse ainda mais a aula. Tirou o
capote e o repousou no encosto da
cadeira e se sentou em seguida. A
intenção era ser discreta, mas embora
não fumasse e tivesse boa saúde, o frio a
tinha atingido em cheio, e controlar a
respiração estava difícil. Incomodada
com o atraso e com o bufar da
respiração de Elisa, a professora, sem
nenhum sentimento de piedade, olhou o
relógio de parede comprado na Loja
IKEA, acima do quadro-negro e, com as
sobrancelhas arqueadas e semblante
desapontado, arremessou um olhar nada
suave em sua direção, dizendo em bom
norueguês: — Elisa, se você ainda tem
dificuldades com a neve e o frio, por
favor, venha mais cedo para se
recompor; e se esforce para estar na sala
de aula no horário exato. Chegar
atrasada a compromissos aqui, na
Noruega, é uma falta muito grande de
consideração e respeito.
Elisa não entendeu nada, mas pelo
tom da voz, deduziu que era um sabão.
Soube depois de trinta segundos do que
se tratava, porque o colega ao lado da
sua carteira escolar, com olhar sinistro e
sorriso sarcástico, fez questão de
traduzir em inglês, e em bom tom, para
que não restasse dúvida alguma a Elisa
sobre o que professora acabava de falar.
Com o olhar imóvel, sem acreditar no
que ouvia, agradeceu ao colega por pura
educação: — Thank you!
Elisa estremeceu. Engoliu em seco a
vergonha, que desta vez não socou seu
nariz perfeito de atriz de Hollywood,
mas seu estômago, igual a uma mão
impiedosa de aço. Sentia como se cada
osso de seu corpo se quebrasse ao
choque daquelas palavras. Logo ela que
sempre fora a mais dedicada da turma
de medicina e da residência médica em
cirurgia-geral no Hospital Vida Plena,
do Rio de Janeiro; e não costumava se
atrasar nem para ir a reuniões de
condomínio do Edifício Linda
Copacabana, quando a tia-madrinha
pedia que ela a representasse.
Estava com uma enorme vontade de
falar, ou melhor, gritar: — Desculpe,
sociedade norueguesa, mas o meu
termostato ainda se encontra no Rio de
Janeiro. Venho de um país tropical que
recebe luz solar quase todos os dias do
ano, tem praias fantásticas de águas
mornas. Eu não nasci nesse gelo e nem
pretendo me tornar um urso polar. É o
fim mesmo esse se esforce, como se eu
fosse uma folgada. Deus me livre!
Contudo, ficou de boca fechada, só
protestando em pensamento. Elisa
tentava se recompor, como sugeriu a
professora.
Houve silêncio na sala, e todos os
alunos inclinaram a cabeça para se
concentrarem na leitura indicada na
fotocópia entregue pela professora, no
início da aula: a Mitologia Nórdica.
Elisa ainda se sentia incapaz de
qualquer concentração, a nuca tão dura
quanto os olhos da professora olhando
para ela. O cenário poderia ter ficado
ainda mais dramático, como por
exemplo, um novo sermão, mas a
professora, percebendo as bochechas
avermelhadas de raiva de Elisa, tentou
suavizar a bronca. Falou em inglês para
que o colega com pose de general não
tivesse o trabalho de traduzir. Afinal,
todos ali entendiam bem o inglês.
— Nossa escola trabalha com
diferentes culturas. Aqui nesta sala, por
exemplo, temos alunos do Paquistão, Irã,
Afeganistão, Eritreia, Sri Lanka, Chile,
Polônia, Rússia e Brasil. Alguns não
estão acostumados com o clima severo
do inverno nórdico; por isso aconselho a
chegarem mais cedo para a
recomposição do fôlego e o andamento
da aula no horário estipulado pela
escola. Sendo assim, serei tolerante em
mais uma semana a esses pequenos
atrasos; depois não será mais permitida
a entrada dos alunos retardatários.
Espero que todos compreendam e, se
precisarem de algo em que eu possa
ajudá-los, só me procurar na hora do
intervalo ou ao final da aula.
Elisa, ao pensar sobre aquele “se
precisar de algo”, soltou como por
provocação as primeiras palavras,
espontâneas, em norueguês na sala de
aula: — Tusen takk, Berit. Godt å høyre
det!
A professora respondeu, como uma
boa norueguesa: — Så hyggelig!
Kjempebra, Elisa!
A aula seguiu normal e com
exercícios de fixação. Aquela manhã
seria longa para Elisa.
Quando o relógio marcou dez e
meia, a professora dispensou os alunos
para a pausa.
*
A maioria dos alunos da escola
vinha de países do Oriente Médio, em
guerra. Faziam aulas de segunda a sexta-
feira, das oito ao meio-dia, para
cumprirem o MDI –
Introduksjonsprogram – Programa de
Introdução aos Novatos – um programa
obrigatório a todo refugiado. Os alunos
se juntavam, nesse horário, num espaço
logo na entrada do corredor, próprio
para esse fim, que era bem servido de
um sofá, também comprado na Loja
IKEA, com diversos lugares; uma pia;
cafeteira; micro-ondas; lavadora de
louças e frigobar e um armário com
copos, xícara, talheres e potes de
plástico.
Todos aqueles alunos traziam o
lanche de casa, e o café ou chá era feito
no local, mas não era fornecido pela
escola de idioma norueguês para
adultos; afinal, os alunos já ganhavam
salário mensal e ajuda com o aluguel
para frequentarem a escola. Logo,
traziam das próprias despensas os
produtos que consumiam na escola.
Faziam rodízios para preparar a bebida,
e parecia funcionar bem a organização.
Os que falavam o mesmo idioma se
juntavam em grupos para tagarelar sem
parar e rir alto – momento oportuno para
desopilar o estresse do isolamento
social, comum a todo estrangeiro no
início da nova vida. Uma grande mistura
de línguas e culturas estava sentada
naquela pequena, mas aconchegante
sala.
Elisa não tinha com quem se juntar
para conversar em português e, para se
proteger do mundo frio e sem cor – não
somente o exterior, mas aquele que se
erguia dentro dela ao se deparar com
uma cultura tão diferente da sua –
preferia comprar algo para comer na
Cafeteria ao lado da escola.
Elisa se isolava propositalmente
com aquela atitude. Igual fizera a vida
toda para fugir das brigas domésticas
entre Eleonor e Roger, os tios-padrinhos
com quem ela morava desde os cinco
anos de idade, quando ficou órfã e
mudou-se da fazenda, no interior de
Minas Gerais, para Copacabana, no Rio
de Janeiro. Por isso escolheu estudar
medicina. Os livros grossos e cadernos
cheios de anotações tomavam seu tempo
e justificavam o isolamento. Afinal,
medicina é um curso de vida social
sacrificada, desculpava-se aos tios
quando queria ficar sozinha. E essa
vontade de viver em um mundo ilhado se
tornou a rotina na vida de Elisa.
Depois de descer as escadas foi ao
Café, ao lado da escola, onde havia uma
pequena fila. Pediu um chocolate quente
e uma fatia de pão integral recheada com
salmão defumado e omelete. Pagou com
o cartão de débito da sua conta no
Nordea, que abriu assim que seu
personalnumeret, número de identidade
norueguesa, chegou. Sentou-se por ali
mesmo, numa mesa desocupada e
procurou relaxar.
O relógio marcava dez e quarenta da
manhã, e Elisa pensava que já tinha
vivido emoções demais para aquelas
poucas horas do dia. Enfrentara seu
primeiro dia na neve; quase fora
atropelada por um caminhão e salva
pela mulher alta, magra e corajosa.
Levara uma bronca da professora de
norueguês, tendo de aguentar ao mesmo
tempo o olhar zombador do colega ao
lado, o que a fizera ter vontade de sair
correndo da sala de aula. Mas estava
satisfeita e excitada pelo fato de ter
falado a primeira frase, espontânea, em
norueguês. Elisa se permitiu um sorriso,
certa de que seu objetivo estava se
firmando. Decidiu naquele momento que
não mais usaria o inglês em sala de aula
e sim o nynorsk, o novo norueguês de
Ivar Aasen, custasse o que custasse,
mesmo pagando o mico dos erros
comuns aos iniciantes. Essa coragem e
determinação lhe renderam um sorriso,
embora tímido, mas prazeroso, num
rosto com pontinhos vermelhos
decorrentes das queimaduras dos
cristais de gelo.
Elisa mastigava o primeiro pedaço
do lanche quando uma mão tocou seu
ombro e disse num português um pouco
estranho: — Ulá, tudobein?
Elisa levantou os olhos em direção à
pessoa que a tocava. Encontrou um par
de olhos castanho-escuros destacando-
se num rosto oval, jovem e bonito, de
pele achocolatada e lisa.
— Olá — respondeu Elisa.
— Nasci na Angola e falo um pôco
purtuguêis, estudamuis na mesma sala.
— A professora não mencionou que
havia angolanos na sala — retrucou
Elisa.
— Ela deve pensá que sou da
Eritreia. Todos pensa. Válá tudobein.
— Que bom que encontrei alguém
que me entende — desabafou Elisa.
— Sim – pudemuis conversá.
— Como se chama?
— Francisca, mas todos me chama
de Nina.
— Muito bem, Nina, pelo jeito você
já sabe meu nome, pois se estava na sala
ouviu bem a professora me passando um
sermão.
Nina riu com gosto e respondeu: —
Ah, vi sim, eles são todos iguais esses
noruegueses, não fazconta, Elisa, ela faz
isso com toda genti. Tudobein.
— É... Já percebi que se a pessoa
quiser sobreviver e se dar bem na
Noruega, tem que chegar no horário;
nada de quinze minutos de tolerância,
como no Brasil – disse Elisa.
— Aqui é horário certo, isso é
mesmo, e a professora está a ensinar
bem — concordou Nina.
— Isso é verdade, Nina, e sem
contar que nada pago para fazer as
aulas, sou casada com um norueguês.
— Isso é mesmo muito bom, eu
tambaéin nada pago — respondeu Nina,
emendando: — Já voi indo; às onze a
porta fécha — e riu novamente com
gosto.
Elisa gostou do sotaque do português
falado com biquinho e do bom humor de
Nina e lamentou pelo tempo ser curto
para esticar a conversa, mas teriam o
suficiente nos dias que seguiriam. Então,
deu um sorriso de satisfação e continuou
a comer o lanche com mais pressa ainda
para terminar a tempo de chegar e não
encontrar a porta da sala fechada.
De volta à sala de aula Elisa não
encontrou Nina. Ao perguntar sobre ela
a uma colega do Afeganistão, sentada ao
lado da sua carteira, foi informada que
Nina precisou deixar a escola e voltar
para casa, depois de receber um
telefonema de urgência.
— Parecia ser algo relacionado com
a saúde do esposo — falou o afegão.
Que pena, pensou Elisa. Amanhã a
gente se encontra novamente.
Aquelas horas foram cansativas.
Leitura dos textos, exercícios
gramaticais de fixação, repetição de
palavras com ø - å - æ para uma
pronúncia perfeita, e quando Elisa
menos esperava, pois estava bem
concentrada, a professora dispensou a
turma. Elisa levantou os olhos e viu os
ponteiros juntos no número doze como
duas mãos numa prece.
Elisa arrumou sua mochila e vestiu o
casaco que repousava no encosto da
cadeira.
— Que hora sagrada — murmurou
baixinho. — Voltar para casa não tem
preço!
Elisa queria o conforto do seu lar.
Precisava de um descanso. Aquela
manhã a exauriu de tal maneira que ela
sentia o efeito desmoralizador da bronca
da professora e o veneno do colega
general afetar seus nervos periféricos,
produzindo na boca um gosto amargo
como café forte sem açúcar.
*
Já no caminho de volta para casa,
iluminado por uma tímida e suave luz,
Elisa passou a apreciar o panorama de
cartão postal de Europa setentrional.
Extasiava-se com o frescor da neve
enquanto se entregava aos devaneios que
lhe entregavam visões de instrumentos
de cordas dedilhados por anjos e feitos
do mais fino cristal.
— Quanta beleza! — sussurrou.
Quantas vezes Elisa suspirou ao
ouvir o tio-padrinho ler à hora de
dormir os contos da literatura nórdica,
com cenários tão lindos como a casa do
Papai Noel na época de Natal. Aquelas
plantações de furus – os pinheiros
silvestres – cobertos de flocos de neve
davam a impressão de que alguém
detalhista e caprichoso tinha depositado
cristal por cristal de gelo, com uma
delicada pinça, bem empilhadinhos,
daquele gelo branco-leite sobre os
galhos verdes, prontos para abraçá-la
com afeto e generosidade. Como se a
natureza abrisse um livro de contos de
fadas e a convidasse para entrar em suas
páginas. Elisa sentiu, naquele momento
de extrema suavidade, uma vontade
enorme de dançar. Mas eis que apareceu
um caminhão de gelo raspando tudo pela
Rua Hafstad, e a motivação de Elisa
mudou para o lado racional: — Esta é a
eficiente Noruega! — repetiu com toda a
empolgação.
Ainda no caminho para casa, um mar
de carrinhos de bebês, com jovens pais
encapotados a empurrá-los, desfilava
pelas calçadas e fazia com que Elisa
precisasse sair um pouco ao lado para
dar passagens a eles. Elisa achou
supermoderno os homens se envolverem
daquela forma com o cuidado dos bebês.
Ela já tinha visto em alguns lugares
públicos, ali mesmo em Førde, os pais
trocando as fraldas descartáveis de seus
filhotes nos reservados preparados para
esse fim. Elisa nunca tinha visto isso em
Copacabana. Quando ela descia do
apartamento para passear um pouco pela
orla e tomar água de coco nos quiosques
em frente ao mar, sempre depois do
trabalho, a figura feminina era a mais
comum a empurrar o carrinho de bebê
pela calçada. Isso quando a mãe não
estava com o telefone ao ouvido,
enquanto uma babá, toda vestida a
caráter, o empurrava. Os pais? Sentados
nas cadeiras dos quiosques, tomando
cerveja.
— Que diferença do Brasil! —
constatou Elisa, resmungando.
Isso agradava o coração de Elisa,
que defendia a igualdade entre gêneros
e, então, querendo ser gentil, ela e se
afastava para o lado. Sempre que isso
acontecia, ela ouvia um gentil: — Takk!
(Obrigado) E devolvia a gentileza, até
para treinar o norueguês: — Så
hygellig!
Em seguida, sorria como se um fio
invisível puxasse as bochechas
vermelhas para perto das orelhas.
Nisso, um senhor idoso,
acompanhado de uma ajudante que
mostrava um pedaço do uniforme com o
nome do Hospital Central de Førde por
debaixo da jaqueta de neve, passou por
Elisa e falou alguma coisa em norueguês
que ela não fazia a menor noção do que
se tratava. Elisa só entendeu a palavra
Sol (com pronúncia suurl), bastante
parecida com o português. Embora a
pronúncia fosse um pouco diferente,
dava para entender bem. Elisa imaginou
que ele estava tentando dizer que o sol
estava por vir.
— Só faltava essa agora: sol? Nesse
céu chumbo? Que tempo maluco! —
concluiu.
*
Elisa atravessou a Rua Hafstad
cortando caminho pela vidaregåande
Skule (Escola de Ensino Médio). Passou
pelo pátio da televisão norueguesa – a
NRK Sogn og Fjordane – do outro lado
da Rua Prestebøen, e seguiu rumo à
Igreja Norueguesa Luterana, de madeira
branca, construída no século XIX, no
estilo neogótico. Da rua em frente à
igreja, a Kirkjevegen bifurcava com a
rua da casa de Elisa. O terreno da sua
casa não tinha vizinho nem à direita,
nem à esquerda. Atrás, somente uma
floresta de abetos e pinheiros silvestres.
À frente corria o Sjøahola, um braço do
fiorde que, dependendo da maré, ficava
cheio em alguns dias e, em outros,
apenas deixava ver o substrato limoso
do fundo e as plantas aquáticas à mostra.
Naquela encruzilhada, Elisa
encontrou uma mulher alta de cabelos
longos e cachos loiros, apertados por
uma touca estilo soviético com tema
militar, e dona de um par de grandes
olhos amendoados que chamou a sua
atenção. Parecia tê-la visto em algum
lugar. Mas onde? A mulher percebeu o
olhar investigatório de Elisa e ergueu os
olhos para ela. Trocaram um breve
sorriso, e Elisa tinha quase certeza de
que se tratava da mesma pessoa que a
tirara do meio da pista, salvando-a de
um atropelamento ainda naquela manhã.
Mas foi tudo tão rápido, e Elisa estava
tão distraída, que a dúvida pairou sobre
sua cabeça como uma daquelas
fumacinhas negras dos desenhos
animados. A moça mantinha em seu
controle uma yorkhire de pelo cinza e
lacinho alaranjado na cabeça. A fofura
de quatro patas enamorou-se por um
terrier de pelo marrom que havia
atravessado a rua como um foguete,
vindo sabe-se lá de onde. Latia como se
a chamasse, imponente num dos degraus
da escada da igreja e com as patas
enterradas no gelo. O conquistador
deveria morar nas redondezas, pensou
Elisa, e tudo indicava que tinha fugido
de casa.
— Naaãoooo, Tinka — gritou a
moça, tentando em vão segurar sua
cachorra pela cordinha.
A yorkhire saltava e, à medida que
latia, se contorcia toda. Num supetão,
livrou-se da sua senhora.
— Auáaah, Tinka — disse a moça
massageando a mão, enquanto reclamava
em um idioma que Elisa não reconheceu.
Tinka uivava com energia pela
liberdade conseguida. Cruzou sem
demora a Rua Kyrkjevegen aos pinotes
e, já esbanjando um ar de dona de si,
correu para junto do seu conquistador.
Se pudessem se abraçar, na certa o
fariam, como fazem os namorados após
a ausência de uma longa viagem. E não
poupariam beijos nem suspiros de quem
carrega uma paixão volátil no peito e
precisa esgotá-la em prazer naquele
exato momento.
Tinka deveria sentir-se importante
ao lado do terrier, e demonstrava isso
com o abanar constante do rabo. Juntos,
correram livres pelos arredores da
igreja, parando, vez ou outra, para a
costumeira mania dos caninos de se
cheirarem. Em seguida, ganharam o
pátio novamente e contornaram a igreja,
saltando sem nenhum temor as lápides
que demarcavam o terreno irregular do
cemitério todo forrado de gélidas
sepulturas e velada por abetos
seculares.
Elisa reencontrou naquela cena a
figura de Marlon, seu chihuahua
castanho, que ganhou de presente do tio-
padrinho quando terminou a residência
médica em cirurgia-geral. Não
exatamente de prêmio pela formatura,
mas como consolo para o fim de um
relacionamento. Elisa namorou por dois
anos um jovem ator, figurante de
novelas. Nunca tinha dinheiro para nada
e vivia pegando emprestado o carro de
Elisa. Um dia, quando visitava um
apartamento à venda em sua imobiliária,
a tia Eleonor o pegou passeando com o
carro da sobrinha, em horário
comercial, no Leblon. Parado no
semáforo para esperar o sinal verde, o
rapaz trocava carinhos e beijos melados
com a amante ruiva do rosto cheio de
sardas. Tia Eleonor não ficou
paralisada, mas apertou o botão da
máquina fotográfica que trazia nas mãos,
a fim de fotografar o apartamento para o
cliente que morava no exterior.
— Cretinos! — vociferou tia
Eleonor, mas os traidores não a viram.
Ainda bem, pensou.
Elisa se desfez, naquele mesmo dia,
do namorado e da melhor amiga.
Elisa perdeu o sorriso. Trancou-se
no quarto. Deixou de socializar, ainda
mais, com os poucos amigos. Não
acreditava em mais ninguém. A tia fazia
de tudo, sem sucesso, para alegrá-la. Tio
Roger escrevia poemas e mais poemas.
Nada adiantava. O isolamento parecia
seu consolo.
Foi então que Marlon entrou para a
família. Chegou ao apartamento e mudou
a vida de todos ali. Da tia que aumentou
as críticas, por causa dos pelos pela
casa. Do tio que passou a comprar as
brigas, enfrentando a tia, que tinha se
arrependido de autorizar aquele
disparate de presente. E de Elisa, que
ganhou um amigo fiel e desinteressado.
Marlon foi, inclusive, o grande
responsável por Elisa morar na
Noruega. Aconteceu que, numa tarde de
verão, Elisa passeava com Marlon pelo
famoso calçadão de pedras portuguesas
sincronizadas em preto e branco com as
famosas ondas de Copacabana, quando
Marlon escapou de suas vistas e foi
atropelado na Avenida Atlântica por um
motorista que fugiu ao perceber o que
acontecera. Formou-se ali um fuzuê. Ao
ver Marlon grunhindo de dor e todo
ensanguentado, esticado no meio da
pista, Elisa gritava mais do que a sirene
da ambulância. Por sorte ela carregava o
celular com o número do telefone da
médica veterinária que sempre cuidava
de Marlon. Não demorou muito e a
ambulância da clínica levou Marlon
para o atendimento de emergência no
hospital veterinário do Rio de Janeiro,
na vizinha Ipanema. Eirik Leiv estava
sentado num quiosque em frente à cena
do acidente. Levantou-se, apressado, e
foi prestar solidariedade à moça alta, de
cabelos negros, pele bronzeada e um par
de olhos de um verde vivo e elegante.
Elisa não dispensou o cuidado do
norueguês e, passado o susto do
acidente, o convidou para jantar em sua
casa a fim de retribuir o carinho e
auxílio recebidos naquela tarde.
Marlon perdeu uma das pernas
traseiras no acidente, e Elisa ganhou um
namorado. Alto, loiro, de olhos de um
azul vivo e sincero e muita tranquilidade
na voz.
Elisa se deixou influenciar por
lembranças adormecidas. Sentiu
saudades de Marlon e um incômodo se
instalou em seu peito. Não chegava a ser
uma grande tristeza, mas com certeza
não anunciava nenhuma alegria.
Distraída, não notou o caminho
escorregadio e, quando se deu conta, o
bumbum foi batizado no chão de neve.
*
No quintal da grande casa de
arquitetura escandinava, pintada de
branco e feita de tábuas de abeto, tudo
se fazia silêncio. Nenhum pio de
pássaro. Em um dos galhos de um
pinheiro silvestre ainda se via a pequena
casa com sementes de girassol que Elisa
pendurara no início da primavera para
as aves. Os arbustos de groselhas, que
na época das frutas ostentavam
exuberantes cachos vermelhos de um
brilho tão intenso que ela dizia ter pena
de levá-los à boca, agora amparavam,
nos seus galhos secos e foscos, grossas
camadas de neve. Ao lado deles, numa
sequência um pouco desalinhada,
estendiam-se as árvores coniformes e,
mais ao fundo do quintal, em frente à
floresta de bétulas, a cabana para
defumar salmão e carne de caça. Toda
aquela neve na superfície das árvores e
das construções trazia para Elisa a
imagem do Natal adiantado. E, com ele,
a saudade do Rio de Janeiro.
— Que vontade de estar agora na
casa dos meus tios, no Brasil, e
desfrutar de um passeio à beira-mar em
Copacabana, com Marlon — desejou
Elisa em voz alta, enquanto sua
expressão facial mostrava um visível
desalento ao lançar um olhar sobre o
jardim, agora todo debaixo do gelo.
Aquele lugar tinha trazido a ela um
punhado de ânimo na última primavera,
pois cavoucar e lidar com a terra úmida
tirava-a do isolamento de casa e
amenizava, de certa forma, um pouco da
saudade que sentia. Bem que Eirik
poderia concordar em trazer Marlon,
embora as leis fossem rígidas quanto à
entrada de animais no reino da Noruega.
Contudo, a objetividade do esposo em
não perder tempo com burocracia, e
também manter a casa com cheiro de
limpeza, ordenada e sem trabalho extra,
fazia com que Elisa deixasse o caso
morrer.
Agora, no inverno, a vida seria toda
dentro de casa, com a lareira acesa e
velas aromáticas espalhadas pelos
cômodos. No jardim, as tulipas
vermelhas e rosadas descansariam
debaixo da terra fresca coberta pelo
manto branco de neve. E as pequenas
aves deveriam buscar comida em outros
quintais cheios de sol, longe dali. A
alegria só voltaria quando os pássaros
migratórios a despertassem numa manhã
incerta, batendo com o bico na sua
janela. Nesse dia, Elisa saberia que os
brotos de suas tulipas estariam saltando
da terra parda e apontando seus
pequenos caules verdes para o céu já
iluminado, enchendo de beleza,
elegância e perfume mais uma
primavera. E o sankthansfeiring
marcaria o auge do verão na grande
fogueira de São João, e suas labaredas
famintas erguendo-se para o céu cheio
de sol, enquanto salsichas no espeto e
outras comidas de festa causariam
burburinho nas crianças ansiosas,
correndo para lá e para cá na grande
festa do dia mais longo do ano.
Elisa imaginava-se um pouco
filosófica ao ser tomada por esses
pensamentos. Gostava, sim, daquela
casa. Do quintal, do ambiente onde
criaria seus filhos ao lado do homem
que amava. Não poderia desanimar por
causa de um inverno prematuro. De um
dia anormal como aquele. Precisava
enfrentar as dificuldades que viriam,
com coragem. Valeria a pena quando
olhasse sua descendência ao redor da
mesa de jantar, às quatro e meia da
tarde. E, nas horas livres, estaria ao
lado do marido e ele com grande
orgulho empurraria com certeza o
carrinho de bebê pelas ruas de Førde. E
as paredes da casa se encheriam de
rostos angelicais e olhos meigos nos
quadros de fotos de família.
*
Enquanto ainda observava o quintal,
um Volkswagen Caddy EcoFuel
vermelho estacionou em frente à casa.
Na porta traseira tinha uma frase escrita:
Vi lever for å levere (Nós vivemos para
entregar). Elisa sorriu. O correio
acabava de chegar.
De pé no quintal, Elisa aguardou a
mulher de uniforme cinza e jaqueta
vermelha, que aparentava mais de
quarenta anos devido aos cabelos
grisalhos, sair do carro e, com passos
secos, depositar os envelopes na caixa
de madeira na qual uma família de
Trolls, pintada a óleo, sorria em sua
feiura. Aparentemente a entregadora de
cartas nem a notou parada ali perto das
árvores coníferas. Entrou no carro e
sumiu pela Rua Korsevegen. Elisa
pegou a chave da caixa de correio na
bolsa da escola e quando apanhou os
envelopes – deveria ter bem uns dez –
olhou rapidinho um a um e encontrou
aquele que lhe aqueceu a alma.
Reconheceu a letra, eufórica: — Tio
Roger!
Queria ler a carta no quentinho da
sala. A entrada da casa, que se fazia por
uma escada de três degraus, tinha virado
um único bloco branco. Contudo, não foi
difícil subir.
Elisa abriu a porta da frente da casa
e entrou no hall tão rápido que quase
escorregou por causa do solado
molhado das botas.
Colocou a mochila da escola no
aparador de bétulas, ao lado de um
porta-retratos com a foto de seu esposo
e os pais dele, Therese Myklebust e Rolf
Leif Myklebust, numa pescaria de
salmão, no Lærdalselva, um rio de 79,5
km de extensão, a 283 km da capital,
Oslo.
O esposo de Elisa costumava contar,
orgulhoso, que por pouco um famoso
pescador esportivo, o rei da Noruega
Harald V, não saiu na foto, pois estava
acampado numa cabana próxima à deles.
— Enfim, livrei-me das malditas
botas pesadas, que faziam doer os dedos
dos pés. Que alívio!
Elisa tirou o capote e a touca e os
pendurou no cabideiro. Este estava tão
cheio de roupas de inverno que vergou e
tombou em cima do aparador, e as
coisas que o decoravam foram todas ao
chão.
— Droga! — praguejou alto. Logo
ela que não gostava de xingar, repetiu
nomes tão feios quanto os que se
costuma ler em paredes de banheiros
públicos. E seus nervos ficaram ainda
mais tensos quando viu os cacos de
vidro do porta-retratos grudados em boa
parte nas blusas de Eirik, tricotadas pela
mãe dele.
— Vou ter de lavá-las uma a uma, à
mão, e ainda aguentar o discurso da
sogrinha quando souber do ocorrido.
Sempre tão agarrada aos objetos da
casa, dela e do filho, claro, pois quem
decorou quase tudo por aqui a não ser
ela?
O fato é que Eirik dificilmente batia
de frente com a mãe. Aceitava cada
ordem em total obediência. Em parte,
por ser ela sua mãe, claro, e em parte
por orgulho e gratidão por ser uma
mulher de pulso firme, que trabalhou
pesado para tocar a empresa, a RLM
Seafood, fundada pelo marido, na
década de 80. Eirik, na época, estava na
faculdade de Economia, em Bergen, e
precisou trancar a matrícula naquele ano
de 1.995, para ajudar a mãe na fazenda
marinha de cultivo de salmão em
tanques rede. Eirik costuma se referir à
mãe como um salmão selvagem: “Forte
e destemida”. Isso porque o salmão não
mede dificuldades para retornar à
origem, o rio de água doce onde nasceu,
depois de viver alguns anos no mar, num
exercício de heroísmo. Elisa já tinha
visto muitas vezes os olhos de Eirik
marejados de lágrimas ao se referir a
essa época. De como Therese se
sacrificou em trabalhos braçais que
exigiriam dois ou três homens, para
poupar na folha de pagamento, quando
em 1990 a Comissão Europeia abriu
processo de antidumping contra o
salmão norueguês, e a RLM Seafood
quase fechou as portas por perder
clientes na Europa. Fato esse que levou
Rolf Leif a seguidas crises de nervos, e
consequentemente ao derrame fatal.
Na época, Therese passava quase
dia e noite no criatório onde eram
simuladas todas as condições da
natureza, inclusive a desova na água
doce, e depois o transporte dos peixes
para o mar, para a devida engorda nos
tanques rede. Ela inspecionava cada
detalhe para garantir a qualidade do
salmão comercializado.
Não bastasse tanto trabalho e o
processo de antidumping fechando as
fronteiras para o comércio, ainda tivera
de aguentar o posicionamento da mídia a
favor do salmão selvagem, dos pescados
de maneira natural, fortalecendo todo o
blá-blá-blá dos ambientalistas dispostos
a acabar com boa parte dos viveiros de
peixes – chamados por eles de cativeiro
– ao redor do mundo. Alegavam de tudo,
desde o uso de antibióticos para
combater patologias microbiológicas, à
ração usada na engorda, que, segundo
eles, poderiam contaminar o
ecossistema local. A RLM Seafood
nunca foi autuada, pois sempre manteve
um rígido controle de qualidade, tanto
que ganhou o mercado internacional com
rapidez, logo após a conclusão
favorável à Noruega do antidumping em
2003. Graças à imensa demanda global
por proteína, que encontrou no salmão
um aliado, a RLM Seafood tornou-se
uma gigante da exportação, até mesmo
para os Estados Unidos, onde os chefs
dos restaurantes sempre deram
preferência ao salmão selvagem do
Alasca.
Nesse ano, a RLM Seafood subiu no
ranking como uma das empresas mais
lucrativos da Noruega, fato que deu a
Eirik Leiv a fama de “Rei do Salmão”,
depois de uma matéria num importante
jornal financeiro Norueguês.
— Pronto — concluiu Elisa,
satisfeita. — O cabideiro está de pé com
metade da carga. As demais roupas
dobrei e já organizei no armário da
entrada. Agora vou lavar as blusas de lã.
São apenas três.
Distraída com o incidente do porta-
retratos, Elisa não tinha reparado na
sacola de pano ecológica com garrafas
pet vazias que precisavam ser
depositadas nas máquinas de reciclagem
dos supermercados. Decidiu deixar ali,
perto da porta de saída, para não
esquecer. Tampouco reparara que a casa
parecia estar mais gelada que o quintal.
Pegou com energia o envelope com a
carta do tio, e suas mãos se aqueceram
de tanta alegria.
Abriu a carta. Leu as primeiras
palavras e soltou um grito: — Que tudo!
Eu sabia que eles iriam voltar!
Lembrava-se bem da briga feia,
quando tio Roger deixou o apartamento.
Tia Eleonor berrava dentro de casa
batendo o espanador de pó na palma da
mão esquerda, depois de tê-lo arrancado
das mãos da faxineira: Velho folgado e
metido a poeta, que não é capaz de
abaixar a tampa do vaso sanitário na
hora de se aliviar, e ainda respinga o
banheiro todo de urina; ah não, que
saudades poderá deixar? Nenhuma
mesmo! Que vá arrumar um trabalho
que lhe pague salário mensal e uma
mulher da mesma laia para suportá-lo.
Depois, se quiser escrever seus poemas
e passar a noite com uma garrafa de
vinho e uivar para a lua, que vá; mas
não me amole nunca mais com seus
versos melados e sua imundícia que
nem a cabo de espanador dando na
carne gorda é capaz de consertar. Vá
mesmo, e não volte nunca mais.
Elisa concluiu:
— Tia Eleonor deve ter ficado com
vergonha de me contar sobre a
reconciliação com tio Roger, pelo
Skype, semana passada, quando
conversamos. Ah, deve. Ela jurava que
nunca mais queria tio Roger de volta
depois de todas as ofensas que ele falou
ao deixar a casa no dia da briga: Ah,
Eleonor, você gosta de pôr água no
meu vinho e soltar foguetes para
assustar os meus cachorros; se bem
que só essa sua cara de quem chegou
de um enterro já seria suficiente para
assombrar qualquer vivente. Mulher
mandona! Eu me sinto como uma folha
de papel entre as lâminas da sua
tesoura. Você é um livro ruim numa
capa de couro, Eleonor. Você é um
desperdício. Um exagero de chatice.
Tenho vontade de arrancar e queimar
todas as suas páginas, mas eu não sou
inquisidor, Eleonor, e sim o seu marido.
Mas se eu fosse um inquisidor, querida
Eleonor, eu jogaria no fogo ardente até
mesmo essa sua valiosa capa.
— Que briga! Agora acabou. Enfim,
reconciliaram-se!
Elisa adorava quando o tio enviava
cartas e junto delas um poema anexado.
Chegara até a comprar uma caixa de
trecos, para guardar suas
correspondências. Mas naquela carta
não tinha nenhuma poesia anexada.
— Que estranho — murmurou.
Bem, agora Elisa precisava aquecer
a casa e tirar um bom cochilo. Colocou
a carta no envelope e o deixou
encostado no repouso da cristaleira
nórdica em que guardava sua coleção de
anjos.
— Que casa gelada! — reclamou e
depois fez um brrrrrr.
Elisa colocou a lenha que o esposo
tinha abastecido, com certeza antes de
sair, na lareira e acendeu o fogo com um
resto de jornal velho que sempre ficava
por perto, para aquele fim.
— Ainda bem que meu Viking é
cuidadoso, assim não preciso voltar no
frio para buscar a lenha na garagem.
Aos poucos a casa se aqueceu. Elisa
tentou chamar no Skype o número do
apartamento onde moravam os tios, no
Rio de Janeiro. Estava louca para saber
tudo sobre a reconciliação dos dois.
Ninguém atendeu; então Elisa, que já
estava exausta pelo dia cheio de
obstáculos, jogou-se no sofá e puxou
para si o cobertor de lã que sempre
ficava por ali, cobriu-se e pegou no
sono, sem muita demora.
O vento soprava forte, chicoteando
seus cabelos negros de encontro ao rosto
branco como porcelana, enquanto a
cabeça girava de um lado a outro em
busca de uma posição menos dolorida
para respirar. O tecido leve da roupa
branca, já manchada de sangue,
esvoaçava e batia contra a rocha, onde
ela estava amarrada, e voltava a se
enrolar no corpo perfeito como uma
obra de arte. A água do mar avançava e
lambia suas feridas, oferecendo a dor
como recompensa. A maré subia...
Subia... Ao longe, observando seu
martírio, homens com dentes amarelados
e usando roupas com símbolos
indefinidos, riam e zombavam aos
gritos: — À mercê da maré... À mercê
da maré. Morra, sua völva maldita!
Com a pele pálida e translúcida se
tornando de roxa a escura a cada minuto,
ela tentava sustentar a coragem à espera
daquela demorada e terrível morte. Esta
chegaria, mas não com pressa. Levaria
cada centímetro da sua pele, e a carne
viva exposta na rocha seria atacada
pelos peixes marinhos famintos. Depois,
ao abaixar as águas, os insetos e vermes
necrófilos dariam conta do resto.
Flocos de neve descompassada e
encardida caíam do céu, onde abutres do
mar circulavam um pouco acima do topo
da rocha, que servia de altar para aquele
sacrifício humano.
Outros gritos eclodiam de bocas
com dentes falhos e malcuidados:
— Morra, sua völva maldita!
Mãos com dedos compridos e
nodulosos pela artrose apontavam para
ela e gargalhavam muitas e muitas vezes.
— Morra, sua völva desgraçada!
O âmago da sua alma gritava, porque
sua boca estava amordaçada.
— Eu não sou um xamã. Eu não sou
um xamã — repetiam os gritos mudos.
— Eu não quero morrer.
Elisa queimava em febre e estava
empapada de suor. Os olhos
semicerrados se reviravam na tentativa
inútil de se abrirem nos primeiros
minutos.
Como se alguém a espetasse, Elisa
deu um salto e sentou-se no sofá. O
coração batia forte. A náusea a
nocauteava. Zonza e apalpando o
encosto do sofá, ela se levantou. Era
como se houvesse passado por ela um
rolo compressor. Estava moída, mas o
que mais doía, sem dúvida, localizava-
se no meio do seu peito, onde os
orientais dizem que fica a linha do
sentimento. Seu humor estava alterado.
Sentia-se irritada.
Perpassou pelos olhos uma dor seca,
latente e opressiva. Arrastou o corpo
enxuto de qualquer gordura, mas com a
sensação de pesar cem quilos.
Como um fantasma, Elisa andou em
cada cômodo da casa que ela tanto
idealizou ter na vida, ao lado do homem
que lhe daria uma família, a qual ela
sempre desejou construir. Olhou para
cada porta, janela, parede e o chão
limpo e polido. Estava tudo no lugar de
sempre. Os retratos sorriam de
felicidade e o seu vaso de jacinto azul,
preenchido de galhos finos e retorcidos
de árvores, repousava seguro no peitoril
da grande janela em dupla cruz,
exibindo em seus quatro bulbos os
primeiros brotos verdes e super
saudáveis. Sua pequena coleção de
anjos continuava ordenada atrás do
vidro da cristaleira nórdica, e todos
mantinham o mesmo semblante
angelical. Elisa teve uma atitude que,
antes daquela manhã, jamais teria: —
Vingança! — gritou, como se anunciasse
um gol na Copa do Mundo.
Precisava, de alguma forma,
descontar a raiva que sentia. Do dia
terrível que tivera. Da odisseia da
travessia casa-escola, do sabão da
professora, do sarcasmo do colega
general, do tombo de bunda no chão
gelado da rua. Sem contar a saudade de
Marlon. E depois aquela impotência que
a aprisionava por não falar fluente,
ainda, o idioma e entender pouco aquela
cultura norueguesa tão arraigada na
mente dos nórdicos. Elisa abriu com
força uma das portas do corredor anexo
ao hall, e um rifle de caça que
pertencera ao seu sogro, pendurado na
parede, balançou. Elisa levou um susto.
Mas prosseguiu.
Desceu alguns degraus que não
chegavam a dar um lance completo e
chegou ao porão – que os noruegueses
chamam de kjeller – construído com
blocos de murestein, pedra natural, do
tamanho um pouco maior que uma
maleta de notebook. Uma adega
climatizada, construída em estrutura de
madeira, com portas de vidro duplo
temperado e molduras em madeira
padrão ocupava menos da metade do
espaço da kjeller. Tudo de muito bom
gosto contrastando com o restante do
ambiente, decorado com mobílias do
século XVIII. Eirik gostava dessa
mistura do contemporâneo com
antiguidades.
Abriu a porta da adega, onde se lia
numa plaquinha de pau-brasil – presente
filosófico do tio Roger – que descia do
revestimento de madeira das bordas da
porta, por uma corda fina de fibras
naturais, em letras artesanais:
Morfina
*
Do lado de fora escurecia, e a
ventania uivava como se as árvores
fossem lobos famintos e a casa
sacolejasse no meio da imperiosa força
do vento. No interior da sala, onde Elisa
repousava no sofá, ainda com uma taça
vazia em uma das mãos, apenas sons
secos saíam da lareira onde o lume
crepitava e se misturavam com seus
gemidos. Desalentada, ela parou o olhar
no fogo, imaginando ser um poente.
Quantas vezes assistira ao pôr do sol
sentada na pedra do Arpoador,
misturada aos turistas? Tendo sempre
como companhia o fiel Marlon, que
sabia de seu prazer em contemplar o sol
de fogo do Rio de Janeiro desmaiar,
exausto, no mar dourado, no finzinho de
tarde, ao som de aplausos efusivos dos
turistas. Alguns ousavam dançar, quase
embriagados pela beleza da imagem...
Elisa ficava olhando a faixa de areia que
vai do Arpoador ao Leblon, passando
por Ipanema, cobrir-se com o manto da
noite e as luzes públicas, ao longe,
tremelicarem. Marlon conhecia aquele
ritual de Elisa e corria para ela com
olhos piedosos e pedintes a fitá-la com
amor, e se aninhava em seu colo a ganir.
Cafunés. Isso ele queria. Elisa não
negava o carinho.
— Vê, Marlon! Lá no horizonte, o
grande índio de pedra, deitado, agora
dorme. — Elisa apontava para o
contorno decorrente do ocaso, ao fundo
do Morro Dois Irmãos e a Pedra da
Gávea, como se Marlon pudesse
entender.
A distância agora se fazia enorme
entre eles. A vida parecia ser bem outra.
Elisa se sentia, naquele momento,
sozinha como uma criança que ganha a
chave de casa e, passada a euforia de
brincar de adulta, descobre que ficar em
casa sozinha, depois da escola,
esperando a mãe ou o pai chegar para
fazer o jantar e lhe dar um pouco de
atenção, não se tratava de algo tão
bacana. Não que se sentir sozinha fosse
novidade para ela. Sabia o que essa
solidão causava. Por isso mesmo a
detestava. E pelo seu senso apurado de
orientação, seria assim sua vida na
Noruega. O esposo sempre em viagens
de negócios. A sogra que não falava
inglês para se comunicar, nem ela o
norueguês para sustentar uma conversa
longa. Amigos, nenhum. Em relação aos
contatos com a tia e o tio no Rio de
Janeiro, com a diferença de cinco horas
de fuso horário, bastava uma distraída
com as atividades e pronto! Nada de
papo por um dia. Assim, Elisa seguiria
sua vidinha de dona de casa. Acordaria
cedo como de costume e andaria, ainda
de pijamas, dentro da casa vazia.
Recolheria copos e pratos espalhados.
Colocaria-os na máquina de lavar,
guardando antes a louça já limpa.
Estenderia as roupas lavadas. Faria o
jantar. Outros dias chegariam, mas não a
luz do sol, e mais confinamento dentro
de casa. As noites cairiam impiedosas,
quase emendadas umas nas outras, e
nenhuma estrela rasgaria a negritude
para brilhar no céu de chumbo. Assim os
invernos se fariam infinitos, com as
mesmas baixas temperaturas e ventos
que varreriam a neve, deixando as ruas
como sabão escorregadio. O tempo
custaria a passar, e Elisa gastaria toda
sua vida ali.
Pensou em tomar uma decisão
radical. Não estava ali por falta de
opção. Poderia desfrutar de sua vida
com mais alegria no Brasil. Teria seus
lençóis limpos e com cheiro de
amaciante, lavados e passados por outra
pessoa. Seria servida, e não precisaria
servir dentro de uma casa.
Que mundos assimétricos, refletiu.
Elisa sabia que o tempo poderia ser
um talentoso cirurgião. Suturaria aqueles
dois tecidos – latino e nórdico –
separados pelo corte de uma cultura tão
diversa. O amor é esse fio da sutura.
Sim, ele vai dar jeito nisso, concluiu
Elisa.
Elisa acarinhava a aliança de
casamento em sua mão direita – sempre
se esquecia de que na Noruega se usava
desse lado – no rosto molhado de
lágrimas, como se esta pudesse estancar
seu choro persistente.
A porta da sala se abriu, sem nenhum
ruído de chave, e a imagem do esposo
não provocou movimento algum em
Elisa. Ela se manteve quieta onde
estava, apenas aprofundada no silêncio,
com um olhar mole no rosto inchado.
— Você não trancou a porta, Elisa
— disse Eirik.
Elisa não respondeu.
A garrafa de vinho vazia estava
deitada no chão, ao lado do sofá. Eirik
passou os olhos por ela, nada mais
falou. Aproximou-se da esposa e,
ajoelhado ao lado do sofá, a abraçou
ternamente. Passou com delicadeza a
mão em seu rosto, seguido de um beijo
suave em seus lábios trêmulos. Percebeu
que Elisa estava mais quente que o
normal.
— Vou fazer um café forte. É muito
melhor conversar com uma xícara de
café na mão.
Elisa não sentia a menor vontade de
conversar, embora fosse necessário.
*
Diante do café amargo e fumegante,
que quase lhe queimou a língua e
magoou as papilas gustativas, os olhos
de Elisa se enchiam de grossas lágrimas
doloridas.
Eirik interrompeu o silêncio e
perguntou: — Você quer falar, meu
amor?
Os dois se encararam por um bom
tempo, em seguida Elisa iniciou a
conversa: — Eu sempre fui muito
honesta e direta com você, Eirik, e vou
lhe confessar que não tenho
temperamento para confinamento
doméstico. Não sou uma fortaleza, e me
adaptar a essa cultura está sendo demais
para mim. Tudo bem que lavar, passar,
cozinhar, e fazer bricolagem no verão é
natural para uma mulher que nasceu
aqui, não para mim. Eu nunca precisei
fazer isso no Brasil. Lá minha vida era
bem outra. Contudo, tenho dado o
melhor que posso, mas parece que nunca
é suficiente. E hoje foi horrível: aquela
neve na minha cara; o medo do escuro,
em plena manhã. Atrasei dez minutos e
levei uma bronca da professora, igual
criança do jardim de infância. Sentime
mal, um lixo pra ser sincera. Esse trajeto
casa-escola é muito longo para eu fazer
a pé.
— Você vai se adaptar, Elisa.
Elisa retrucou num tom colérico: —
Não, eu não vou me acostumar. Parece
uma missão hercúlea. Eu não irei
suportar. Eu quero voltar para o Rio de
Janeiro!
— Calma, vamos conversar — disse
Eirik já com cara de choro.
Elisa se descuidou da linguagem e
falou algumas palavras que jamais
falaria se não tivesse se apoiado na
valentia que o álcool lhe proporcionava.
Com as duras palavras da esposa, Eirik
se rendeu às lágrimas.
Após um breve silêncio, ela tornou a
falar: — Eu amo você, Eirik Leiv. Não
quero te deixar; eu só não aguento mais
esse clima severo, e olha que o inverno
nem começou; e essa cultura norueguesa
na minha cabeça, como um martelo de
Thor esmiuçando o crânio e
sequestrando meu cérebro. Só isso. Sem
contar que só pude dirigir três meses
com minha habilitação do Brasil e
agora, se quiser dirigir, terei de fazer
todo o processo, desde o início. E leva-
se tempo para aprender a legislação,
sem contar que é caríssimo. Eu não irei
suportar este inverno indo a pé, de casa
pra escola, todos os dias da semana.
— Vamos encontrar um jeito para
melhorar isso tudo. Eu prometo, meu
amor. Agora preciso cuidar de você.
Depois de um longo abraço, Eirik
foi até ao banheiro e pegou na caixa de
primeiros-socorros o termômetro. Foi
até o sofá e mediu a temperatura de
Elisa.
— Eu sabia: 38º C! Vou ao mercado
comprar paracetamol. Aproveito e levo
as sacolas das garrafas pet.
— Obrigada!
Quando Eirik bateu a porta atrás de
si, Elisa tentou se levantar. A cabeça
parecia pesar uma tonelada e as pernas,
ter se tornado de pano roto. Nunca tinha
tomado sozinha uma garrafa inteira de
vinho.
Difícil se manter de pé. Apoiando-se
nos móveis ela conseguiu chegar à
cozinha e se servir de um pouco mais de
café forte, que já estava morno e sem
graça. Percebeu que o esposo deixara o
paletó em cima da plataforma, ao lado
da cuba. Deveria ter ficado
transtornado, pensou Elisa. Um pouco
mais fortalecida, pegou o paletó na
intenção de guardá-lo. Algo escorregou
e caiu no chão. Elisa se abaixou para
pegar e se deparou com uma caixinha
embrulhada em papel dourado e
arrematada em um pequeno laço
perolado. Parecia de uma joalheria.
Elisa enfiou a mão no bolso, atrás de
uma pista do que se tratava e encontrou
um cartão dentro de um envelope
prateado. Uma mensagem curta, só três
linhas, duas delas um poema, escritas
com caneta preta, em grandes letras bem
desenhadas:
*
A serva abriu o zíper da entrada da
cabana em forma de cone e com abertura
no teto chamada de lávut – o mesmo
modelo que fornece abrigo temporário
para pastores de renas enquanto as
seguem pelas tundras revestidas de neve
–, o famoso modelo Dança com Lobos.
Assim que entrou na cabana, ele
parou de cantar. Isso porque ela sempre
queria acompanhá-lo na cantoria que ele
lhe ensinara, mas este não gostava de
parceria naquele canto. Sentado no chão
forrado de pelegos de carneiros, em
frente a um fogo que crepitava
timidamente, ele a encarou. Os olhos de
âmbar levemente esverdeados dela
faiscaram de excitação e orgulho ao
abrir a mochila que carregava. Retirou
de dentro um objeto, confirmando que
sua tarefa estava cumprida. Ele deixou
escapar um sorriso de prazer que se
espalhou por toda sua face exótica e
bronzeada, até que ironizou: — Que
bom que nenhum gigante de gelo
espremeu sua garganta ou um anão
arrancou um de seus olhos — e soltou
uma gargalhada rouca e assustadora.
A serva apertou os lábios
demostrando impaciência pela piada.
— Estou me sentindo tão cheio de
entusiasmo — confessou o mandante —
como no dia em que encontrei meu bebê
Freki. Se Odin pode ter dois lobos, eu
posso muito bem ter um. Hoje eu
poderia até atravessar o mar Báltico a
nado para realizar meu próximo
capricho, não fossem os malditos
dinamarqueses poluírem as águas com
seus estercos de porcos. Mas isso não é
problema meu.
— Se você odeia tanto assim os
dinamarqueses, por que está comigo?
— Ah, eu não os odeio — admitiu.
— E você não é dinamarquesa coisa
nenhuma. Você não passa de uma russa
de pelo vermelho. Faça-me o favor.
— Então, tá. Se eu não sou nada, vou
devolver o cofre ao altar com cheiro
horroroso de ervas, e já volto —
contestou.
— Pare de drama, que não combina
nada com você. A sua castidade me é
muito preciosa, esqueceu do nosso
trato? Dê-me cá essa joiazinha — disse
olhando para a caixa de madeira — Ela
é minha agora — afirmou.
Entregou a caixa para o seu
mandante, que a pegou com um sorriso e
ar de quem carrega despojos valiosos
após uma grande batalha, depositando-a
ao seu lado, no chão, onde tinha uma
faca de desossar renas e bilhetes de
avião com destino à Noruega e escala de
cinco horas e cinquenta minutos na
Suécia. Depois pegou seu grosso livro
de capa puída e dourada com inscrições
em Norrøne, abriu uma das páginas e leu
em voz baixa:
*
O lago de um azul-cobalto intenso
produzia manifestações geotérmicas
misteriosas, chegando a temperatura
perto da ebulição, e em alguns pontos
jorravam torres de vapor muito
parecidas com alguns lugares na
Islândia, mas lá sabia-se dos vulcões e
ali, não havia nenhum.
A serva aproximou-se da boca da
gruta e por um triz teria ido ao chão, não
fosse a estalactite providencial na qual
se apoiou. Ao se deparar com o lago,
exclamou: — Uma raridade geológica!
Que coisa mais encantadora!
O mestre explicou: — Ninguém sabe
ao certo de onde vêm suas águas;
acredita-se na existência de um rio
subterrâneo que alimenta o lago com as
águas quentes. O lago é raso e daria
para atravessá-lo a pé até o outro lado,
não fossem suas águas termais que quase
fervem. Cuidado — ainda advertiu ele.
—Você não vai depositar, como
Odin, um olho na Fonte Milagrosa, vai?
— perguntou a serva.
— Eu já depositei bem mais —
respondeu o mestre. — De acordo com
um movimento religioso neopagão que
busca reconstruir a religião nórdica,
somente uma mulher virgem poderia
mergulhar a caixa de freixo nas águas do
lago para a purificação, antes dos rituais
das oferendas aos deuses vikings.
Claro que Mattias a estava levando
na conversa, mas foi um acordo que
fizeram, de não se envolverem
sexualmente, e assim prosseguirem
juntos — ela porque estava apaixonada,
e ele com interesses maiores. O acordo
foi firmado entre os dois, há alguns
meses, no verão, na falésia Trolltunga,a
língua do Trolls, em Tyssedal, na
comuna de Odda, condado de
Hordaland, no sudoeste da Noruega.
*
Do alto da pedra, a visão exuberante
do lago de Ringedalsvatnet, que se
parece muito com um Fiorde, atraía o
olhar de todos em busca do
enquadramento da foto perfeita para as
redes sociais. O professor de mitologia
nórdica, o mestre, acompanhava seus
alunos, que vinham do extremo norte
norueguês para visitar o precipício
famoso cuja estrutura remete ao desenho
de uma língua esticada – por isso a
origem do nome. Ficar sentado na
beirada do precipício é uma atividade
comum aos visitantes, embora sem
barreiras de proteção torne-se um ato
desafiador e perigoso. O mestre estava
de pé, bem na ponta da língua. Uma das
alunas o observava. Ele parecia se
movimentar de forma assustadora.
A aluna o chamou. Estava atrás dele.
— Ei, o que pensa que vai acontecer
se você não sair daí?
Quando ele tentou se arremessar no
abismo, ela o segurou pela jaqueta. Ele
foi para frente e para trás; uma
expressão de confusão e medo marcava
seu rosto. Dando um passo em falso para
se livrar das mãos da aluna, ele se
desequilibrou e torceu o pé. Gemeu de
dor. A aluna o segurou. Ele não tinha
condições de retornar os 11 km da trilha
a pé até o ônibus. Foi preciso um
helicóptero resgatá-lo. A aluna se
ofereceu para acompanhá-lo. No trajeto
conversaram. Ela deu a ele isotônico e
barra de cereais que trazia na mochila.
Ele aceitou. Iniciaram uma amizade. O
professor sofria de transtorno maníaco-
depressivo e passava por um período de
crise. A aluna não se surpreendeu, dias
depois, quando ele confessou que queria
ter se jogado lá de cima. Com a mente
confusa e uma esposa que não entendia
nem falava tão bem o norueguês, o
casamento passava por um período de
altos e baixos, e ele, normalmente, não
tinha com quem se abrir. Confidências e
mais confidências, e o professor se
tornou o mandante e a aluna a serva.
Uma espécie de amizade paranoica.
Florø – Noruega O Lexus IS-250
cinza estacionou no pátio de acesso ao
porto de Florø, na mesma hora em que
os passageiros do barco que chegara
de Bergen, um pouco antes, saíam. Um
grupo de estudantes com uniforme de
jogos de inverno atravessou às
gargalhadas o pátio do estacionamento
rumo à rodoviária a não mais de
duzentos metros dali. Elisa, de dentro
do carro, olhou de soslaio mas pôde
divisar saindo do barco a mulher que,
em seu primeiro dia de nevasca,
passeava com a cachorrinha Tinka nos
arredores da igreja em Førde e que
também parecia ser quem a salvara do
atropelamento naquela mesma manhã
escura. Ela só não tinha certeza pois
seu rosto estava afundado num chapka,
touca estilo soviética, de pelo de
raposa que lhe cobria boa parte do
rosto. O homem de corpo bem definido,
que parecia levar o treinamento físico
a sério, e não deveria ter trinta anos
pela aparência da pele lisa e
bronzeada, acompanhava-a. Após se
despedir dela com um beijo no rosto,
foi direto para o Brønnbåt da RLM
Seafood, que ostentava no pormenor da
proa o nome escrito com letras
ornamentais: Therese.
Elisa e Eirik se dirigiram ao barco.
— Uau — Elisa se deslumbrou. —
Pensei que se tratava de um barquinho
do Popeye e estamos diante de um
“quase” transatlântico!
— Não exagera, Elisa, é apenas um
barco de transporte de peixe — disse
Eirik.
— E se o barco levou o nome da sua
mãe, por que ela não veio ao evento?
— Estava indisposta. Coisas da
idade.
Elisa nunca estivera num Brønnbåt
antes, então a sua curiosidade estava
aguçada. Não queria ser intrometida de
entrar no barco para bisbilhotar cada
cantinho antes da quebra do champanhe
e do discurso do esposo. Precisava se
comportar como uma primeira-dama,
embora esperar lhe custasse uma
pontada nos rins. Eirik lhe apresentou os
chefes dos principais setores da RLM
Seafood e três novos funcionários.
Todos vestiam ternos que pareciam
comprados da mesma promoção,
mudando apenas a cor da gravata. O
jovem que tinha saído do barco vindo de
Bergen foi apresentado como ajudante
de bordo e iniciaria o trabalho naquele
mesmo dia. Trabalhara muitos anos
como professor no extremo norte
norueguês e agora queria viver mais
próximo da família, que morava em
Naustdal, a quinze minutos de carro de
Førde. Por isso fizera aplicação para o
emprego. Chamava-se Mattias Larsen e
vestia-se com uma roupa esportiva de
inverno na mesma cor da dos estudantes
que haviam seguido para a rodoviária.
Trazia nas costas uma grande mochila de
pano. Os olhos cor de avelã levemente
puxados pareciam tímidos ao se
desviarem do olhar de quem os
encarava. Deve ser descendente de
índio norueguês, os Samis da Lapônia,
pensou Elisa, que já tinha visto muitos
deles na televisão em programas sobre a
cultura Sami. Seu rosto era o mais
místico que se podia encontrar na
Noruega.
Elisa se aproximou do esposo e
resmungou: — Estou me sentindo um
peixe fora d’água!
— Calma, logo termina.
A solenidade do batismo do
Brønnbåt aconteceu como o previsto,
rápido, porém com tudo a que tinha
direito. O discurso de agradecimento de
Eirik Leiv emocionou os presentes. A
imprensa compareceu e alguns
fornecedores enviaram ramalhetes de
flores parabenizando a nova conquista.
Elisa sentia-se aliviada pelo fim
daquela formalidade. Estava irrequieta.
Depois de encerrada oficialmente
com o discurso de agradecimento de
Eirik, os convidados se serviram de
petiscos e bebidas diversas servidos
numa sala especial de reunião no
próprio barco, no castelo da proa. Elisa
refastelou-se à mesa com a farta
variedade de pães, frios, frutas e, claro,
não podia faltar o salmão defumado. No
centro da mesa um lindo bolo com a
bandeira da Noruega desenhada com
morangos, mirtilo e creme parecia
delicioso, mas não despertou apetite em
Elisa. Sentia-se enjoada, mesmo com o
barco parado. Refeita da hipoglicemia,
Elisa saiu sem demora para conhecer o
Brønnbåt, como uma criança que
descobre um novo Playground. Na
cabine de comando ficou encantada com
tamanha tecnologia. Telas de
monitoramento do barco prenderam sua
atenção, mas o capitão não estava
presente para lhe explicar tudo o que
desejava saber. Então, ficar ali não tinha
nenhuma graça com todas aquelas telas
desligadas e mil botões ao lado, pois
não fazia a mínima ideia de como usá-
los. E nem poderia, claro.
Teve a ideia de ir até a proa,
divertida com a ideia de experimentar a
sensação de apreciar tudo do alto, como
Kate Winslet, em Titanic. Desceu as
escadas direto no convés e examinou
cada detalhe. O vento do cais soprava
forte, fazendo o cachecol de Elisa ora se
enrolar em volta de seu pescoço, ora
querer fugir.
— Que vento chato — reclamou
enquanto arrumava a touca de lã.
Toda porta que ela encontrava, abria
para espiar o que tinha lá dentro.
Dirigia-se para a proa quando topou de
frente com o tal “índio” norueguês –
como ela o chamava em pensamento –
vindo dos lados da popa e com um copo
de bebida na mão. Vestia um macacão
laranja de trabalho, pois dentro de
pouco tempo já partiriam com a equipe
rumo aos tanques de salmão, no Mar do
Norte. Intimidada pelo seu olhar
estranho, Elisa concluiu que não gostava
do jeito que aquele “índio” a encarava.
Elisa fechou as mãos e apertou os
dedos, como que para manter a
respiração sob controle. E como não
queria ficar às vistas de Mattias Larsen,
desceu ao porão da embarcação, onde
ficavam os tanques com temperatura
controlada e capacidade de transportar
até 400 toneladas de peixes vivos – ela
tinha decorado essa parte do discurso do
esposo.
Percebeu a porta entreaberta de um
armário e aproximou-se, a curiosidade
falando mais alto.
— Olha só o que achei — exclamou
toda feliz.
Deparou-se com uma caixa diferente
e de aparência bem antiga. Deveria ter
sido colocada ali há pouco tempo, pois
estava úmida. Elisa estudou os desenhos
da caixa e a enrolou no cachecol para
mostrar ao esposo. Quem sabe ela
poderia pegá-la para guardar suas
poesias. No pequeno armário tinha
outras coisas, como um livro, mas Elisa
se encantou tanto pela caixa que quis
guardá-la logo no carro para depois
falar com o esposo.
Esperou uma oportunidade e
chamou-o num canto para falar da caixa.
— Pode ficar com a caixa —
concordou Eirik. — Deve ter sido do
meu pai, ele gostava de comprar essas
bugigangas nas lojas de antiguidades,
para colocar seu tabaco Long Cut
Copenhagen. Os tripulantes transferiram
tudo do velho barco do Popeye, como
você diz, para o Brønnbåt e, se a caixa
estava no armário do porão dos tanques,
com certeza pertencia a meu pai.
Satisfeita com a resposta do esposo,
pediu-lhe segredo. Se a sogra soubesse
que ela se apossara de um objeto de
Rolf Leif, com certeza confiscaria para
si. E Elisa não queria de jeito nenhum
perder seu novo tesouro. Era uma caixa
perfeita para guardar as poesias de tio
Roger.
Elisa queria ir à farmácia no centro
de Florø. Não sabia onde tinha enfiado
sua touca, mas não queria perder tempo,
pois a farmácia fecharia em pouco
tempo.
O vento estava cortante e Elisa
enrolou o cachecol na cabeça. Um grupo
de estudantes que vinha em sentido
contrário, passou e nem reparou nela,
tamanha a empolgação da conversa.
Elisa apressou os passos. Ao
alcançar a entrada do Shopping, as lojas
já estavam fechando, mas ela conseguiu
chegar à porta da farmácia no último
minuto que faltava para fechar. Comprou
o kit do teste de gravidez, guardou-o na
bolsa e dirigiu-se imediatamente ao
banheiro. Estava ansiosa para saber o
resultado. Quando a tarja escureceu,
mostrando os dois riscos, nem conseguia
acreditar no resultado positivo. Queria
sair gritando o quanto estava feliz. Em
meio à euforia da novidade ela notou
que a Princess, uma loja de roupas de
cama e cortinas, permanecia aberta por
conta de uma grande promoção.
— Já sei. Vou comprar cortinas
novas para a sala. Tem umas lindas com
tema natalino que eu vi na vitrine. Quero
deixar a casa bem linda nesse fim de
semana para comemorar essa vidinha
que está a caminho.
*
Quando Elisa e Eirik chegaram de
Florø por volta das seis da tarde, já
estava bastante escuro, mas puderam ver
que saía fumaça da chaminé da sua casa
e que as lâmpadas estavam acesas. O
rosto de Elisa mudou de cor e seu olhar,
fixo nos olhos do esposo, pareceu
protestar. Indagou-lhe quem poderia
estar na casa deles. Eirik disse que
deveria ser a mãe dele, pois ela possuía
a chave. Elisa já tinha imaginado que
seria a sogra. Achava super estranho o
modo como Therese tratava o filho
crescido, sempre à frente de tudo
naquela casa, mesmo depois do
casamento, como se Eirik fosse um
menino pequeno, e Elisa não estivesse
ali. Lembrou-se de que a sogra não
participara do batismo do barco porque
não estava se sentindo bem e, meio que
para provocar Eirik, perguntou: — Sua
mãe não estava indisposta?
— Deve ter melhorado.
— Na Noruega, é normal as sogras
invadirem a casa das noras?
Eirik demonstrou ter sido afetado
pelo verbo que ela empregara – invadir
– e num tom um pouco irritadiço, disse:
— Ela não invadiu. A casa é do filho
dela, Elisa.
— Isto quer dizer que não é minha
também? — retrucou Elisa, apanhando a
sacola da loja de cortinas, no banco de
trás.
— Bem, não vamos iniciar uma
guerra e, por favor, não bata de frente
com minha mãe. Ela já tem idade, uma
discussão pode complicar sua saúde —
disse Eirik, bem mais irritado.
Elisa olhou para o marido,
assentindo levemente com a cabeça, e
encontrou no rosto dele uma ausência de
expressão que o tornava quase hostil.
Pensou no arminho enrolado no plástico
preto, dentro do portamalas, e na
promessa que fizera de lhe dar uma
sepultura. Precisava saber o que fariam
com o bicho e arriscou mais uma
pergunta, mesmo com a fisionomia dura
do esposo: — E o enterro do Léo, como
fica?
— Amanhã você cuida disso, Elisa,
agora vamos entrar.
— É claro — disse Elisa
automaticamente.
Ainda no carro, ela lembrou-se de
outra coisa: o cofre de madeira.
— Ei, você acha que eu deveria
levar o cofrinho ou deixá-lo aqui e
pegar depois?
— Não acho nada, Elisa. Mas, se
bem conheço mamãe, ela vai confiscar a
caixa do papai.
Elisa refletiu por um minuto.
— Verdade, melhor deixá-la aqui.
Recolocou a caixa no chão do carro,
deu um suspiro profundo e apertou a
sacola com as cortinas contra o peito, já
imaginando como ficariam lindas nas
suas janelas.
— Bem, vamos entrar, mamãe já
deve estar impaciente, porque com
certeza ela ouviu o barulho do carro.
Ao chegarem na sala, Therese estava
de pé na porta da cozinha com um largo
sorriso no rosto. Apontando para as
janelas, anunciou com entusiasmo: —
Surpresa!
Elisa não conseguia acreditar no que
via. As cortinas da sala tinham sido
substituídas por outras, vermelhas e com
tema natalino. Ela fez um esforço
enorme para não demonstrar o
constrangimento, mas seus nervos
ficaram abalados e seu desapontamento,
indisfarçável. Ela pediu licença e foi ao
banheiro. Era a coisa certa a fazer
naquele momento: uma retirada
estratégica. Ao afastar-se, ouviu quando
Eirik, tentando amenizar o clima, falou
para a mãe que o cheiro da comida
estava muito bom.
— Fiz um dos seus jantares
preferido: Kjøttkake — respondeu
Therese.
— Almôndegas! Obrigado, mamãe.
— Eirik — disse Therese —, hoje
eu vi um cachorro tão assustador na casa
da minha vizinha...
As vozes foram abafadas quando
Elisa se fechou no banheiro. Ela deu
uma risadinha ao parar em frente ao
espelho. Olhou as enormes olheiras e os
lábios parecidos com uma lixa pálida.
Riu, porque se lembrou de uma
blogueira famosa que escrevia textos
divertidos e sempre repetia que toda
manhã acordava com olheiras de panda.
Mas a aparência pouco lhe importava
naquele momento. Deu de ombros, como
se estivesse conversando com uma
amiga íntima. Que droga! Aquilo parecia
um insulto por parte da sogra, ela queria
irritá-la. Mas quando a sogra não queria
irritá-la?
Elisa fingiu tremer de frio e riu de si
mesma. Talvez, com o tempo e com
muita sabedoria, ela conseguiria driblar
aquelas situações. Afinal, convivera
anos com o autoritarismo da tia Eleonor
e tirava de letra todos os possíveis
conflitos. Muito bem, precisava ir jantar.
Pegou um pente da gaveta e passou
pelos longos cabelos negros. Lavou o
rosto com água morna e enxugou-o com
a toalha bordada em duplo E, pendurada
no suporte acima do lavabo. O efeito
traumático que parecia ter dominado a
mente de Elisa se rompeu e ela
conseguiu arrancar um sorriso do rosto.
Agora sairia do banheiro decidida a não
comentar sobre a atitude da sogra. De
que adiantaria? Nada mudaria. Então,
era melhor engolir a raiva e chegar à
mesa do jantar sorridente e vitoriosa.
Foi o que ela fez.
*
Depois do jantar Elisa não precisou
lavar uma colher. Therese deixou a
cozinha impecável antes de ir embora.
Eirik a levou de carro. Quando o esposo
chegou a casa, Elisa já estava aflita para
perguntar se poderiam enterrar o
arminho, ainda naquela noite; afinal, o
quintal da casa tinha iluminação
suficiente. Chocada com a resposta que
ouviu do esposo, quis confirmar com os
olhos arregalados: — Você o quê? Jogou
fora?
— Aquela coisa já estava
congelada. Sem contar que sujou de
sangue o meu carro.
— Coisa? Seu carro?
— Elisa, por favor, não faça drama
por pouco. Que eu me recorde, tem um
BMW novinho lá na garagem e, se não
me engano, ele é todo seu.
— Onde você jogou o Leo?
— Não faço a mínima ideia. Estava
escuro e esqueci — Eirik disse com os
dentes cerrados de raiva.
— Você vai procurar o lugar em que
o jogou, e eu vou dar uma sepultura pro
meu Arminho.
— Não vai não.
— Então é assim, Eirik. Quanta
transformação em menos de um ano de
casamento, hein. Nossa, parece que me
casei com outro homem.
— Você que é infantil, Elisa, nem
parece uma médica cirurgiã.
— Ah, tá, a culpa é minha agora?
Elisa saiu bufando da sala rumo ao
quarto de dormir. Pegou a mala de cima
do guarda-roupas e começou
freneticamente a jogar suas roupas
dentro dela. Entre uma peça e outra de
roupa, falava com a voz entrecortada de
raiva: — Quer ser egoísta, então que
viva sozinho. Eu tô caindo fora. Chega.
Eirik entrou no quarto e a viu
ensandecida arrumando a mala e falando
português. Ele sabia que quando a
esposa falava português, a coisa
caminhava para algo de sério a grave.
— É isso mesmo que você quer
fazer: fugir?
— Não — disse Elisa secamente. —
Você sabe que não. O casamento é uma
instituição sagrada para mim e minha
família, mas não posso aceitar o que fez
passando por cima dos meus
sentimentos.
— Quer dizer então que nosso
casamento vai terminar por causa de um
bichinho anônimo e congelado?
— Não, Eirik Leiv, vamos terminar
pela sua atitude egoísta de não entender
meus sentimentos mesmo conhecendo
meu passado, das perdas terríveis que
tive.
— Eu também perdi meu pai, Elisa.
— Você não tinha cinco anos quando
isso aconteceu, e sua mãe está bem viva.
— Não se julga a dor do outro. Dor
é dor e pronto.
— E o que você está fazendo
comigo? Respeitando a minha dor? Ah,
não preciso ser humilhada desse jeito
não. Tenho para onde voltar. Você não
me achou na pista, nem numa lata de
lixo.
Com jeito sarcástico ele respondeu:
— Ah, achei, sim: na Avenida Atlântica,
e gritando mais que sirene de
ambulância.
— O senhor entendeu o que eu quis
dizer. Não é hora para piadas.
— E se eu buscar o Leonardo da
Vinci, você é capaz de me perdoar?
— Você me falou que não fazia ideia
de onde tinha jogado o pobre animal.
— Eu menti, Elisa.
— Ah! Então agora descubro que
meu esposo, aliás ex, além de egoísta é
mentiroso?
— Verdade. Você tem razão: além de
egoísta sou um grande mentiroso. Perdoa
ou não perdoa?
— Você me vira como pedras de
gelo num copo de bebida e ainda
acredita num perdão rápido e indolor?
Não! Agora não. Perdão precisa de
tempo. Não sou hipócrita.
Eirik saiu do quarto batendo a porta.
Elisa fechou a mala e se jogou na cama.
Parecia que uma linha de trem
passava naquele momento pela casa,
soltando muita fuligem no quarto onde
Elisa estava deitada, sufocando-a.
Elisa sentia-se fraca. Tremia.
Pensava sem parar por que não contara a
Eirik sobre a gravidez. Com certeza ele
a impediria de ir embora. No fundo ela
queria ficar. Queria entender o porquê
do esposo tratá-la daquele jeito. Frio e
inacessível, às vezes, e outras tantas,
gentil e afetuoso. Tinha certeza de que
ele a amava. Ela também o amava. Claro
que o amava. Contudo, o nível de
compatibilidade entre os dois estava
baixo, anêmico, com a resistência quase
se rompendo.
Ela, que já tinha a segurança
emocional comprometida com o medo,
desde menina, e que precisou se
reerguer várias vezes para encarar a
vida, não podia se equilibrar ao lado de
um homem que desprezasse seus valores
e se negasse a olhar com ternura para
seus sentimentos, mesmo os que ela não
conseguia explicar o motivo, como, por
exemplo, sentir compaixão por um
animal que foi atropelado e querer dar-
lhe uma sepultura. Seria muito pedir
isso?, indagou-se esmurrando a cama.
Nisso, uma ânsia muito forte a fez
encolher em posição fetal, e em seguida
um jato quente jorrou de sua boca.
— Droga, droga, vomitei em cima
da cama. Vou pegar uma toalha no
banheiro para limpar essa sujeira,
aproveito e arranco aquelas cortinas do
tempo dos vikings da minha sogra. Eu
tenho o direito de decorar minha própria
casa. Ah, tenho!
Já no corredor de entrada Elisa
ouviu um barulho estranho, como alguém
respirando afobado, e parecia vir da
porta de entrada. Seu sangue gelou. Ela
foi pisando pé ante pé até ficar próxima
da porta do banheiro. Pensou em pegar a
arma na parede do corredor. Ouviu
passos. Não teve dúvidas: pegou o rifle
de caça e, mesmo sem nunca ter usado
um na vida, caso fosse um ladrão,
poderia impor medo. Aquela ideia lhe
soou meio falsa: nunca tinha ouvido
falar que na Noruega tivesse ladrão de
casas. Se bem que a sogra tinha
mencionado uns ciganos romenos... pelo
menos ela tinha entendido isso. Arriscou
chamar pelo esposo: — Eirik?
Nenhuma resposta.
— Eirik?
Um vulto negro saltou bem na sua
frente. Elisa deu um grito de horror que
pareceu atravessar a cidade inteira. Um
pavor medonho apoderou-se dela. Quem
não ficaria em pânico com um semi-
monstro daquele, de olhos famintos,
pronto para atacar o jantar?
Tremendo dos pés à cabeça, ela
tentou puxar o gatilho. Claro que a arma
estava descarregada, mas naquela hora
quem poderia pensar num detalhe,
mesmo de tamanha importância,
daquele?
Elisa encarou os olhos amarelos de
um ouro brilhante do animal,
mergulhados num vermelho vivo quase
sangrando da esclerótica; a boca aberta
e gotejante mostrando sua arma mais
poderosa: os dentes. O lobo de pelos
negros e lustrosos demonstrava que
queria comida, e a carne fresca –
representada pelo pescoço de Elisa –
estava bem ali na sua frente. Bastava
uma bobeada dela, e pluft, o lobo
selvagem e assustadiço, com um bote,
acabaria com sua vida. Elisa usou uma
tática conhecida na medicina: manter a
calma no momento em que a calma já
fugiu das pernas. Respirou tão suave
como um monge budista, sem tirar os
olhos do bicho. Foi se afastando bem
devagar. Num golpe que poderia dar
certo ou errado, atirou a arma contra o
animal, para ganhar tempo. O lobo
assustou-se e recuou. Elisa aproveitou
para entrar no banheiro e, mesmo quase
sem sentir as mãos, conseguiu fechar a
porta.
Respirou apressada e várias vezes
seguidas. Ouviu um uivo estrondoso da
fera perigosa, do outro lado da porta,
depois nada mais. Nenhum estalido
orgânico do piso de madeira, nem
arranhaduras na porta. Nada.
— E agora? Se Eirik aparecer e
entrar sem perceber o lobo, este poderá
feri-lo ou até matá-lo. Que enrascada!
Elisa olhou para a janela. Estudou a
geometria. Seu corpo passaria pelo
espaço sem dificuldade. Abriu-a com
cuidado. Pensou em desistir. E se o
animal resolvesse sair na mesma hora
para o lado de fora da casa? Se ela
tivesse conseguido entrar no quarto, não
teria nenhum problema; da janela ela
chamaria o esposo e o avisaria do
perigo. Mas no banheiro não havia como
fazer isso, e ela teria de pular para o
lado de fora.
— Droga, que situação terrível.
Parece um treinamento militar de
resistência para conseguir viver na
Noruega.
Aquele momento era tudo ou nada.
Elisa tinha que decidir. Pular janelas
não era a sua especialidade. Além disso,
crescera um pouco isolada dos grupos
da escola que praticavam ecoturismo ou
esportes radicais, e foi por esse motivo
que ela se tornou impopular. Seu
interesse maior era por livros, artes e
poesia. Enquanto os colegas subiam e
desciam montanhas, atravessavam
trilhas e mais trilhas no meio de selvas,
tomavam água de alguma foz, Elisa, do
seu confortável quarto de dormir,
riscava mais um título de livro da sua
longa lista de leitura.
Elisa pulou e caiu de mau jeito no
duro piso de paralelepípedos do lado de
fora. Sentiu uma dor aguda no pé direito
que praticamente sustentou a queda.
Usava apenas um moletom branco da
Nike e pantufas nos pés. Uma chuva fina
e gelada caía melancólica do céu
escuro, e o gelo já estava todo derretido.
Melhor assim, pensou Elisa, pois a
temperatura não estava negativa. Andou
devagar, pelo receio do lobo e pela dor
lancinante que sentia no tornozelo.
Esgueirando-se pela beirada da casa e
atenta a qualquer movimento suspeito do
lobo, pegou a pá para retirada de neve,
que ficava encostada perto da escada, na
entrada da porta. Se a fera voltasse ela
tinha com o que se defender, pensou com
inocência. Nada viu pela fresta da porta
entreaberta. Fechou-a com cuidado e
deu um leve solavanco para travá-la.
Assim o lobo ficaria preso dentro da
casa e ela estaria a salvo. Correu para a
frente da garagem, no exato momento em
que o automóvel de Eirik estacionava.
“Ainda bem!”, murmurou baixinho.
Eirik abaixou o vidro da janela e
perguntou: — O que houve?
Elisa fez a volta no carro, abriu a
porta do carona e entrou. Não sabia
dizer se tremia de frio ou medo.
Acreditava que dos dois.
— O que aconteceu com você,
Elisa? Sua calça está manchada de
sangue?
Elisa olhou no meio de suas pernas,
o vermelho vivo de um sonho
interrompido, e disparou a chorar.
*
Os bombeiros foram chamados para
ajudar a capturar o lobo, embora
desconfiassem daquele acontecimento.
Nunca viram um lobo conforme o
descrito por Elisa atacar moradores ou
animais naquela região. Um dos
policiais já tinha estado em uma
operação de ataque de lobo, mas aquilo
acontecera na Lapônia. Um filhote tinha
se desgarrado da mãe, causando um
pequeno alvoroço num povoado
esquecido no meio das montanhas. Não
por conta do filhote, mas da mãe que
saiu à procura do bebê. Parece que
nunca o encontrou.
Procuraram por todos os arredores
da casa, depois de evidentemente
entrarem na residência dos Myklebust e
nada encontrarem. No pátio, a água da
chuva já tinha lavado qualquer pista,
caso houvesse uma. Nenhum sinal do
lobo negro e misterioso. Aconselharam
Eirik Leiv a levar Elisa ao Pronto-
Socorro para fazer a curetagem e cuidar
do tornozelo que parecia sofrer um surto
de elefantíase, de tão inchado.
Desconfiaram que essa história de lobo
poderia ser uma crise de desordem
psicológica pelo aborto espontâneo, mas
nada comentaram com Eirik nem Elisa,
apenas entre eles.
*
Elisa passaria a noite no hospital,
dividindo o quarto no oitavo andar com
mais três senhoras. Uma delas, sedada,
dormia. Outra lia uma revista com a
cortina azul-royal do seu quadrado
fechada. Outra, que se apresentou como
Fru Solheim, tentou puxar conversa, mas
diante de uma Elisa não muito a fim de
papo, decidiu não deixar a cordinha da
emergência no lugar. Aquele barulho
irritante não fez efeito nos nervos de
Elisa, que parecia imergir numa bruma
suave – efeito da droga calmante que
recebeu, ainda no Pronto-Atendimento.
Parecia que seus medos estavam longe.
Bem longe. Seus olhos ficaram pesados
e não demorou, dormiu.
Um lugar lúgubre, gelado e caiado.
Elisa usava uma camisola vitoriana,
branca e esvoaçante, que não retinha em
nada o calor do seu corpo, e não
demoraria muito tempo para ela
congelar no meio da neve. Seus pés
miúdos calçavam botas na altura do
joelho, forradas de pelo e pele de algum
animal que Elisa não saberia identificar
no meio daquela corrida, embora não a
impedissem de sentir as extremidades
dos dedos geladas e duras.
Que loucura, pensava: camisola e
botas de neve.
Ela precisava correr e muito, para
chegar com segurança na cabana feita de
toras escuras, onde um fogo vivo e
constante aquecia, no fogão feito de
tijolos, a panela de risgrøt – arroz doce
– que com certeza seus amigos haviam
feito para o jantar. Num piscar de olhos
ela se viu perseguida por um monstro
negro de olhos como duas bolas de sol e
dentes mais afiados que uma faca de
desossar renas. A cada passo de Elisa o
monstro dava dois, e ela já podia até
sentir o calor saindo das narinas da fera
em sua nuca. De todos os lados se
podiam ouvir vozes, gritos, gemidos,
tilintar de sinos, rufar de tambores,
cantos estranhos e guturais, mas nada se
via. Elisa corria, mas em câmera lenta.
Não demorou a sentir uma patada em
suas costas. Sua camisola alva rasgou-se
de cima a baixo e a pele bronzeada,
ainda com marcas de biquíni do último
verão, verteu sangue quente. A neve
ficou salpicada de vermelho vivo. Elisa
urrava de dor, sem perceber que o lobo
parara para lamber o sangue da neve. A
cabana não deveria estar longe dali.
— Corra, Elisa, corra — dizia sem
parar para si.
Um anjo resplandecente bem que
poderia descer naquela cena de
perseguição e salvá-la, afinal ela
acreditava que eles existiam e tinham
poder para salvar os humanos – assim
os pensamentos de Elisa seguiam com
ela naquela batalha sem muita esperança
de sair viva. Nada de anjo. Nada de
resgate celestial. Num piscar de olhos
três seres horrendos de nariz e orelhas
enormes saltaram à sua frente segurando
a panela de risgrøt ainda saindo fumaça,
de tão quente. O cheiro de canela que
emanava de dentro da panela veio direto
em seu nariz congelado e de certa forma
a acalmou de tamanha agitação.
— Coma o risgrøt, Elisa, coma! —
disseram os Trolls em uníssono.
Quando Elisa abriu a boca para
receber a colher grossa talhada em
madeira com uma porção do mingau
revigorante dos amigos Trolls, ela
enxergou uma maçã. Vermelha brilhante
como uma groselha madura, que uma
mão fina, delicada e alva segurava. A
dona da mão era uma mulher de cabelos
loiros e na altura do quadril, trançados
com a simetria de um cacho de trigo que
dava a ela a aparência elegante de uma
deusa.
— Coma a maçã, Elisa, e a
eternidade se derramará sobre sua alma
— dizia a mulher.
Os Trolls diziam em coro:
— Não acredite nela, Elisa, coma o
mingau; você precisa se aquecer. Você
vai precisar de muito calor. Muito calor
— repetiam.
Ao perceber que Elisa abria a boca
para receber o arroz doce com canela, a
mulher eclodiu num grito que fez com
que as montanhas ao redor
chacoalhassem todo o gelo acumulado.
Ninguém sobreviveria àquela avalanche.
Ninguém. Seriam sepultados vivos.
Talvez tenha acontecido isso.
— Acorda, Elisa. Acorda —
chamava a enfermeira.
Sons incompreensíveis saíam da
garganta de Elisa, ainda sonolenta pelo
efeito dos calmantes. Sua camisola azul
com o slogan do hospital estava
ensopada de suor.
— Uhmm... — resmungava Elisa
enquanto virava a cabeça de um lado
para o outro sobre o travesseiro, a nuca
quente e dolorida.
— Você teve um pesadelo, Elisa.
Fru Solheim nos chamou. Ela ficou
assustada com seus gritos angustiantes.
Fru Solheim, atenta e curiosa, a
espiava com seus grandes olhos celestes
enterrados no rosto enrugado como um
balão que perdeu o ar, mas avivado por
cabelos de algodão, enquanto meneava
afirmativamente com a cabeça ao que a
enfermeira falava. Elisa não se deu
conta da cena que causara. Nem podia.
Febril e ainda imersa nos efeitos
psicológicos do sonho, além de bastante
sonolenta, virou-se para o lado e
dormiu. Seus cabelos negros estavam
desgrenhados e opacos e sua pele pálida
lembraria um defunto fresco, não fossem
as faces rosadas provocadas pela febre.
A enfermeira cobriu seus pés que
estavam para fora do edredom. Desligou
a luz e saiu do quarto.
*
O dia amanhecia. A enfermeira do
plantão matutino abriu a cortina
vermelha com listras azuis. Lá fora, mal
dava para avistar os telhados das casas
a oeste de Førde mesmo polvilhados de
flocos de neve e com a brancura
refletindo a luz dos postes. O céu triste
derrubava mais gelo torvelinhando pelo
vento que sibilava. Um gato da mesma
cor do céu correu para fora de uma das
casas e, demonstrando inteligência
felina, rapidamente voltou para dentro –
pois o clima estava alfinetando a carne.
A enfermeira se aproximou da cama
de Elisa e perguntou se ela queria
risgrøt como café da manhã. Elisa ainda
não tinha despertado totalmente e
esfregava os olhos como se o sono
estivesse grudado neles. Seu estômago
embrulhou ao ouvir a palavra risgrøt.
Queria ter ficado no sonho.
Soterrada no meio da neve. Ali todos os
seus problemas estariam enterrados com
ela. A morte resolveria tudo. O sono,
quem sabe. Afinal, dormir é morrer por
algum tempo, com direito a retornar. O
estado de vigília trazia a realidade e,
com ela, angústia e sofrimento. Dormir,
então, poderia ser em parte uma boa
solução, um tipo de morte reversível,
pensava Elisa.
— Não, obrigada — respondeu com
os olhos virados pela ânsia ao ouvir a
palavra risgrøt.
— Nada mesmo? Nem uma fatia de
pão, um copo de leite?
— Nada.
— Você perdeu muito sangue, Elisa,
e precisa se alimentar.
— Se puder, quero uma maçã.
Somente uma maçã.
Eirik chegou ao quarto na hora em
que a enfermeira colocou a fruta em
cima da nattbord, mesa de cabeceira, ao
lado de Elisa.
Seu olhar expressava ternura
misturada com arrependimento. Agora
ele entendia. Essas coisas de mulher
quando está grávida: desejos e manias
estranhas. A mãe tinha falado nisso.
Algumas mulheres desejam comer terra.
Outras, cacos de vidro. Claro que não
chegava a tanto, mas uma metáfora muito
boa para o exagero feminino nessa fase
de gestação: Elisa tinha cismado com
uma sepultura para o arminho. Ele tinha
percebido nos últimos dias a esposa um
pouco mais irritada, com manias
anormais de querer especular tudo.
Deveria ter tido sensibilidade para
desconfiar que a esposa na verdade
passava pela transformação dos
hormônios. Agora só restava lamentar.
— Eu não tive sorte — disse Elisa.
— Não pense nisso agora, procure
descansar, meu amor — disse Eirik
docemente.
— Não invento nada. Aquele
maldito lobo de quem falo existiu. Não
fosse assim, eu não estaria aqui.
Eirik nada respondeu. No fundo, ele
não acreditava muito naquela história de
lobo.
Elisa pegou a maçã e pediu ao
esposo: — Por favor, jogue isso no lixo.
Dessa vez, ele fez o que a esposa
pedia. Antes, perguntou: — Seu pé está
doendo ou já passou a dor?
— Dói um pouco, se tento mexer.
— Foi apenas uma luxação, logo
melhora.
Depois de jogar a maçã, Eirik
retornou para perto da cama, sentando-
se na poltrona velha e dura ao lado da
cama. Elisa, meio que cortando as
palavras, começou a dizer: — Estou me
sentindo seca e decapitada, tal qual um
bacalhau salgado pendurado num
mercado de peixes, como nas fotos das
revistas de pesca. Se as pessoas que me
invejaram quando me casei com o rei do
salmão norueguês, num castelo
medieval, no coração da Toscana,
pudessem me ver agora, deitada nesta
cama de hospital, na certa não
desejariam estar no meu lugar.
Poderíamos agora estar tomando aquele
vinho que compramos juntos naquela
vinícola perto do castelo e prometemos
que o faríamos para comemorar a
notícia da gravidez do nosso primeiro
filho ou filha. Eu estraguei tudo. Você
também ajudou a estragar tudo.
Eirik interrompeu: — Você é médica
e sabe que álcool não combina com
gravidez, então não tomaria o vinho.
Pronto, não sofra ainda mais por isso.
Houve silêncio.
— Quem supervaloriza o mal o
transforma num gigante. Seguimos daqui
para frente e vamos, por favor, aprender
com os erros. Esqueça o que passou.
Meu amor, eu preciso de você e prometo
cuidá-la com o melhor que puder.
— Tenho tido sonhos carregados de
simbolismo. Não sei o que significam.
Estou com medo, Eirik. Tem alguma
coisa errada comigo.
— Bobagem. Esqueça isso.
— Estou assustada. Parece um
aviso.
— Não precisa ter medo, meu amor.
Estarei ao seu lado.
Mesmo confortando Elisa com
palavras, Eirik trazia no rosto um ar de
incredulidade. Não acreditava na
história do lobo, e sonhos para ele não
tinham nenhuma conexão com a
realidade. Apenas fantasia criada pela
mente. Mera bobagem.
*
A ideia de mover um paciente de
andar, ainda mais com o pé torcido, e
para uma ala que causaria mais dor
emocional a este, só poderia ter vindo
de um ser sem sentimento, pensou Elisa
ao ouvir a enfermeira informando-a que
a deslocaria para o andar da
maternidade. Precisava ser examinada
na cama ginecológica, e a única que
existia num consultório do oitavo andar
precisava de manutenção, segundo a
enfermeira. Ela sabia que muitos
profissionais se tornavam endurecidos
pela rotina e não faziam isso por
maldade e sim de forma mecânica. O
andar dos partos, bebês e grávidas à
espera da hora de dar à luz não poderia
ser o lugar menos apropriado para uma
mulher que acabou de sofrer um aborto.
Elisa sentia-se como um corpo enterrado
vivo no chão frio do inverno da
Noruega, a cada choro de bebê recém-
nascido que vinha ao encontro de seu
ouvido, ou que passava nos braços de
alguma jordmor, parteira, faminto e
desejoso do leite da mãe. Nenhum
daqueles bebezinhos seria deixado no
colo de Elisa naquele momento. Ela
imaginava como seria o rostinho do seu
bebê se sua hora tivesse chegado. Não
seria naquele dia, claro que não, mas
oito meses se passariam rápido e teria
seu pequeno anjo junto dela a mexer a
cabecinha à procura do peito para
mamar. Agora tudo estava perdido.
Elisa não queria ser consolada.
Poderia ter outros bebês, mas aquele ela
nunca saberia se seria menino ou menina
e jamais o alimentaria. Nunca saberia se
o cabelo seria negro como o da mãe ou
loiro igual ao do pai. Ou a cor dos
olhos: seriam verdes ou azuis?
Seus pensamentos foram mais longe
e ela imaginou o embrião na vida pré-
uterina e os pequenos chutes com o
pezinho ainda informe dentro do líquido
amniótico. Uma vidinha perdida, mas
mesmo assim ela seria capaz de amá-la
e guardá-la em suas lembranças por toda
a vida.
A consulta estava no fim quando
voltou a si pelo barulho da impressora.
A receita balançava no ar pelas mãos do
Dr. Emil. Com o olhar distante e a
postura quase de um cirurgião medieval,
informou-a de que no piso térreo tinha
uma farmácia do lado ocidental, quando
se pega o elevador.
Elisa estava com a aparência de uma
modelo de anúncio de serviços fúnebres
– só faltava a melodia suave e triste ao
fundo para deixar o clima bem epost
mortem – quando Eirik veio buscá-la no
consultório do doutor sem sentimento e a
encontrou na cadeira de rodas. Entregou
a ela a muleta emprestada por Therese,
que pertencera ao falecido marido. Elisa
agradeceu a gentileza da sogra e aceitou
a ajuda para se levantar e se mover.
*
A farmácia estava lotada. Eirik
pegou a senha 77 e sentou-se ao lado de
Elisa para esperar a vez. Depois de
quinze minutos, quando o painel chamou
o número 76, uma moça alta, de olhos
amendoados e cabelos castanhos muito
claros e ondulados nas pontas, chegou e
assumiu o caixa especial para quem não
podia ficar de pé. Era a vez de Elisa e
Eirik.
Elisa leu o nome no crachá:
Liudmila.
Esse rosto não me é estranho,
pensou. Percebeu que a atendente
parecia reconhecer seu rosto também.
— O que houve contigo? —
perguntou Liudmila.
— Perdi um bebê. Foi aborto
espontâneo. E também torci o pé.
— Sinto muito — disse Liudmila,
soltando um espirro atrás do outro.
— Acho que se resfriou — disse
Elisa.
— Nem fale, cheguei de férias há
poucos dias, nem posso adoecer.
Elisa entregou o cartão do banco
com o pernsonalnumeret – número da
identidade.
— Estou me recordando do seu
semblante, Elisa. Você não foi quase
atropelada por um caminhão, um tempo
atrás, na Rua Hafstad, numa manhã de
nevasca?
— Como sabe meu nome?
Liudmila ergueu o cartão do banco
no ar e disse: — Está escrito aqui.
— Claro. Estou mesmo passada com
tudo o que houve e não percebi esse
detalhe. Sim, eu fui salva por uma
pessoa.
— Ah, eu fui a pessoa que puxou
pelo seu braço.
— Foi você, então? Liudmila, sou
grata pela sua atitude e quero retribuir.
— Podemos tomar um café, quando
você melhorar do pé, claro. Tenho me
sentido muito solitária.
— Você não tem família aqui? —
interessou-se Elisa.
— Não, sou de São Petersburgo.
Elisa já tinha percebido, ao ler o
nome no crachá, que se tratava de um
nome incomum na Noruega. Tinha lido
nos livros da escola de norueguês, em
que um dos personagens dos diálogos
das lições se chamava Liudmila, um
nome russo.
— Tem uma cafeteria que eu
adoro...fica próxima do hospital —
sugeriu Elisa.
Liudmila puxou um cartão da gaveta
com seu número de telefone celular e
entregou para Elisa.
Quando Elisa saía da farmácia,
quase esbarrou em Nina, que entrava
com o semblante expressando dor.
— Elisa! — espantou-se Nina.
— Nina, há quanto tempo! Você não
apareceu mais na escola.
— Tive cá pobremais com a saúde
do esposo.
— Que pena, Nina, mas agora ele
está bem?
— Ah, sim, está a trabaiar.
— Que bom! E você, o que foi com
o braço?
— Um cão preto lá di casa, me fez
essa disfeita.
— Tenho que ir, Nina, a gente se
encontra por aí.
— Tá bein, Elisa, até a ver...
Elisa se despediu e segurou no braço
de Eirik, já se sentindo fraca.
*
Ao avistar a fumaça da lareira
quando chegou no pátio da casa, Elisa
sentiu alívio e não raiva, como sentira
antes, ao saber que a sogra já cuidava de
tudo por ali. O jantar deveria estar
pronto e não era nada mal ter alguém
para ajudar nas rotinas da casa. Therese
estava sentada à mesa da sala de jantar.
— Elisa! — A voz delicada de
Therese foi ao encontro do ponto mais
fraco de Elisa: a carência materna. —
Olhe, Elisa — disse a sogra, arrumando
uns vidrinhos sobre a mesa — são óleos
essenciais que sempre encomendo a uma
amiga que viaja todo ano para a
Córsega, a ilha francesa. — E,
levantando um deles, disse
encorajadoramente: — esse é
immortelle, o óleo essencial mais
cobiçado do mundo, com uma química
poderosa para tratar seu tornozelo. Eu
garanto que em uma semana você já está
esquiando.
Eirik iniciou a tradução em inglês,
mas Elisa o cortou, dizendo que entendia
o que a sogra falava. E agradeceu: —
Oh, que gentileza da sua parte, Therese.
Muito obrigada.
A sensação de magnitude que Elisa
teve por entender e se comunicar com a
sogra era indescritível. Depois que
Therese saiu da mesa para aquecer o
jantar, na cozinha, ela deu um jeito de
perguntar, baixinho, ao esposo que fim
levara o arminho e a caixa de madeira.
Eirik disse que o arminho já tinha uma
sepultura no quintal da casa e que a
caixa, infelizmente, a mãe encontrara no
carro e a confiscara. Elisa não ficou
chateada por perder a caixa desde que
seu animal estivesse descansando num
lugar digno, como prometera a ele.
“Sei que fiquei pendurado
naquela
árvore fustigada pelo vento,
Lá balancei por nove longas
noites,
Ferido pela minha própria
lâmina.
Sacrificado a Odin
....
Até que vi as runas;
com um grito ensurdecedor
as peguei
E, então, tão fraco estava
que caí,
que caí,
Ganhei bem-estar. E
sabedoria também.
Uma palavra e depois a
seguinte
conduziram-me à terceira.
De um feito para outro
feito.”
— Trecho do poema do
Sacrifício de Odin para
obter conhecimento –
Origem mitológica das
runas
Førde – Noruega – 23 de dezembro
de 2008.
Os olhos verdes de Elisa pareciam
injetados no rosto bem cavado, com
maçãs rosadas bem definidas. Ela se
olhava no reflexo do vidro da janela da
sala de televisão, onde aguardava
completar a chamada para a casa dos
tios-padrinhos, no Rio de Janeiro, via
Skype. Mesmo sendo quase meio-dia,
ela ainda usava pijamas e um roupão
felpudo de algodão branco que cheirava
a amaciante de lavanda.
O clima do lado de fora era
desanimador: escuro, frio e chuvoso.
Elisa tentou chamar mais uma vez,
tinham combinado de se falar naquele
horário, embora no Brasil ainda não
fossem nem 7 horas da manhã. Ela e o
esposo passariam o Natal na casa de
Therese, onde tinham combinado de
chegar à uma da tarde, por esse motivo
Elisa combinara com os tios de telefonar
tão cedo. Se bem que tia Eleonor sempre
saía cedinho para a imobiliária e tio
Roger dificilmente ficava em casa pela
manhã.
Inquieta, andou de um lado para o
outro na sala. Como a sogra prometera,
o resultado com o tal óleo essencial foi
um sucesso, e Elisa já podia até esquiar.
O tornozelo não a incomodava mais,
embora o aborto ainda quase a
enlouquecesse de tristeza. Não bastasse,
o isolamento em casa por causa das
férias natalinas das aulas de norueguês
agravava a dor emocional. Elisa queria
fazer amigos, mas tinha receio de sofrer
novas decepções depois da traição da
melhor amiga com seu namorado, no Rio
de Janeiro. Apesar de ter consciência de
seus atributos físicos – sempre fora alvo
de olhares de admiração por onde
passava – e de sua mente privilegiada
para aprender, sua autoestima sofrera
abalos. Sem a presença dos pais, em boa
parte da infância, não desenvolveu
satisfatoriamente o traquejo social, e os
relacionamentos se constituíam uma
sucessão de desastres. Evitava festas de
aniversário, churrascos com colegas de
sala e acampamentos da escola, sempre
com as mesmas respostas prontas:
preciso estudar. Assim, ela vivia
fechada para o mundo, convivendo
praticamente apenas com a tia Eleonor e
o tio Roger. Toda vez que alguém
perguntava como ela encontrara o
esposo, Elisa mesmo se admirava ao
responder que haviam se conhecido num
acidente com seu cachorro e tudo
aconteceu muito rápido.
— Só pode ser um anjo em função
temporária de cupido, no Rio de janeiro,
que nos uniu. Só pode — dizia.
Estava arredia em procurar
Liudmila, embora tivesse a consciência
de que uma amiga naquele momento
seria de boa valia. A Noruega podia ser
um lugar fantástico para se viver, mas a
falta de ir ao teatro, cinema, shoppings
center movimentados e passear à
tardinha com Marlon nas calçadas
portuguesas de Copacabana, trazia quase
uma tonelada de peso sobre o peito
frágil de Elisa. E, claro, a sufocava.
Do outro lado da tela do notebook,
apareceu a imagem de tia Eleonor, ainda
com cara de sono, trazendo um brilho
novo ao rosto de Elisa. Tocada pela
proximidade do Natal, estava mais
sensível que o normal e as lágrimas logo
romperam. Não demorou e tio Roger
mostrou, também, o rosto amassado na
tela, já declamando uma poesia. Elisa
limpou a face molhada com a palma da
mão e esfregou-a na beira do roupão.
Respirou fundo e, ao tentar falar, saíram
apenas soluços indecifráveis.
— O céu da Noruega é sempre
triste e o ar gelado demais. As estrelas
se escondem de medo do clima ou
porque há muito já congelaram — disse
tio Roger, enquanto Elisa já urrava de
tanto chorar. E continuou: mas você
pode dar uma ajudinha, Elisa. Tricote
cachecóis para a constelação inteira,
menina! Aqueça esse inverno, garota!
— Por Deus, tio, você sabe que eu
não consigo mais confiar em amigas.
— Bem — disse tio Roger
balançando a cabeça — isso aconteceu
aqui no Brasil, aí na Noruega pode ser
diferente; e a tal menina de que você
falou, não é russa?
Elisa limpava o rosto com a manga
do roupão e quase não conseguia
conversar com os tios. Mesmo que as
palavras de incentivo estivessem saindo
da boca do tio, a quem ela muito amava,
não se mostrava nem um pouco disposta
a entrar no assunto de cura e libertação,
ainda mais próximo do Natal, quando
esse tipo de atitude é corriqueiro e, no
ponto de vista de Elisa, forçado. Pediu
desculpas e disse que voltaria a
telefonar depois do natal, pois
passariam os dias de festa na casa da
sogra, onde não teria internet, e seria até
melhor.
Prometeu pensar nos conselhos do
tio. Despediu-se com afeto e
desconectou o Skype.
Mattias Larsen bocejava de sono.
Embora tivesse dormido um bom pedaço
da noite, foi despertado de forma súbita
pelo barulho do vento que varria a
superfície do Mar do Norte e batia
impiedoso contra as paredes do barco.
Um trovão eclodiu, e o estrondo parecia
tremer tudo por ali. Sentou-se na cama
da sua cabine privada, no alojamento da
tripulação, no Brønnbåt, e seu coração
pulsava no mesmo ritmo do vento norte
do lado de fora. Os olhos avelã no rosto
bronzeado estavam turbulentos,
conforme seu estado de espírito. Sua
verdadeira personalidade saltava para
fora, furiosa como um lobo faminto, das
tundras lapoas, sempre que ele se sentia
coagido. E mais ainda por ter perdido a
caixa de freixo que, interligada com
textos e figuras do Codex Upsaliensis, o
Códice de Uppsala, ao ser decifrados
pela sua vasta experiência em kennings
escáldicos e a linguagem do nórdico
antigo: fornordiska em sueco, nørront
em norueguês e dinamarquês e
fornnorræna no islandês, o conduziriam
ao lendário Tesouro de Iduna.
Tudo levava a crer que as dicas de
onde o tesouro fora escondido, o
possível mapa, foram elaboradas com a
ajuda da Rainha Cristina da Suécia, no
século XVII, pois ela se deixava possuir
por um verdadeiro fascínio em escrever
cartas carregadas de simbologias e
códigos e as manter em secreto.
Inclusive se envolveu numa execução
que causou escândalo na França, numa
cidade papal, em outubro de 1657,
quando autorizou a morte de Gian
Rinaldo Monaldeschi, seu mestre de
cavalaria, por ter sido desleal e lido
suas correspondências durante dois
meses. Tal ato o classificou como tendo
cometido alta traição à rainha Cristina, e
mesmo o acusado implorando por
misericórdia, não fez o coração da
rainha se comover.
A rainha Cristina sempre foi
conhecida por ser esperta e com
inteligência acima da média, tornando-
se especialista em história clássica e
filosofia. E foi uma das poucas mulheres
– entre elas a princesa Isabel, da
Boêmia – a trocar cartas com o filósofo
René Descartes. Ela chegou a se culpar
terrivelmente pela morte do amigo, em
11 de fevereiro de 1650, quando esteve
hospedado na fria Suécia como seu
convidado e professor, vindo a adquirir
pneumonia, que o levou à morte dez dias
depois. Quando seu corpo foi enterrado
num cemitério pagão, na Adolf
Fredrikskyrkan, em Estocolmo, por ser
católico num país de protestantes, a
rainha Cristina muito se entristeceu, mas
nada pôde fazer para impedir tal ato.
Uma das cartas da rainha Cristina
iniciava com a tese de Descartes: A
dúvida é o primeiro passo para se
chegar ao conhecimento. A carta fora
encontrada dentro do Diário de Magnus
Gabriel de La Gardie, seu favorito na
corte sueca, na ocasião da restauração
do Varnhems Kloster – o Convento de
Varnhem – na histórica província de
Vastergätland, na Suécia. Magnus
Gabriel tinha um amor tão grande pela
propriedade, que esta se transformou em
museu da sua família, no século XVII.
Foi ali que seu corpo foi sepultado
depois da morte.
O convento também foi incendiado
mais duas vezes, uma delas pelas tropas
dinamarquesas durante a Guerra dos
Sete Anos, entre 1756-1763.
Entre 1911 e 1923, o convento
sofreu mais duas reformas, sendo que
numa delas o diário de Magnus Gabriel
foi encontrado em meio às ruínas, dentro
de uma caixa de madeira de freixo.
Dentro das folhas do diário havia uma
carta em pergaminho assinada por
Alexandra Maria – o nome escolhido
pela rainha Cristina como nome de
batismo no catolicismo – em
homenagem, segundo ela mesmo
escreveu, a Alexandre, o Grande, a
quem a rainha Cristina admirava. Essa
carta insinuava um possível tesouro
intitulado: O tesouro de Iduna.
Numa das passagens da carta havia
uma referência a Gylfe, um rei
mitológico nórdico. Falava da visita de
Gylfe aos deuses (Aesir), indagando
sobre o começo do mundo, sobre o
cavalo Sleipnir, entre outros. Mattias
sabia que aquela citação se referia à
primeira parte da Edda em prosa, de
Snorri Sturluson – o Gylfaginning – que
trata da criação e da destruição do
mundo dos deuses nórdicos e muitos
outros aspectos da mitologia nórdica. A
palavra Sleipnir estava grafada de
forma diferente e aquilo chamou a
atenção de Mattias. Ele registrou que a
palavra tinha oito letras, fazendo uma
anotação mental desse detalhe.
Como a carta estava carregada de
Kennings escáldicos, figuras de
linguagem, os restauradores não a
puderam entender, mas eram conscientes
de que tudo o que fora encontrado
deveria ser encaminhado às autoridades
locais do convento – a ordem
cisterciense, uma ordem monástica
católica reformada, que não se
interessou muito pelos objetos-, que
consideravam hereges, pois estava clara
a referência à deusa Iduna, aos deuses
nórdicos Odin e Thor, tendo sido
confeccionada com mensagens rúnicas
lembrando muito as pedras rúnicas
espalhadas por toda Suécia e restante da
Escandinávia. Tudo, porém, parecia ser
um grande mistério. De todo modo, nem
com o Tratado de Paz de Augsburgo,
nem o recente Tratado de Versalhes
poderia ter livrado do fogo aquele
material histórico.
Mas o destino poupou aqueles
objetos que sorrateiramente foram parar
na mochila de um menino muito curioso
que acompanhava o pai no trabalho de
transportar os entulhos de dentro das
ruínas para fora. Ninguém suspeitou dele
na época e, por não haver provas do
documento encontrado, o caso morreu
ali mesmo. Deve ter sido até um grande
alívio para os cistercienses se livrarem
daquele achado pagão, como eles o
chamaram.
Mais tarde esse menino, por se
dedicar em extremo à leitura da
mitologia, deixaria a fé protestante e se
tornaria sacerdote da crença da Lapônia,
num vilarejo (templo) clandestino e não
cristão. Durante anos ele estudou o
conteúdo daquela carta e uma parte do
diário, porém sem sucesso. Apenas
descobriu que os códigos na carta
referiam-se a um tesouro muito valioso,
e as pistas do esconderijo estariam em
desenhos de um manuscrito escáldico. O
sacerdote não tinha conhecimento de que
a Rainha Cristina, assinada como
Alexandra Maria, se referia ao Codex
Upsaliensis, doado à Universidade de
Uppsala, na Suécia, pelo próprio
Magnus Gabriel de La Gardie, o esposo
de Maria Eufrosina, prima da rainha
Cristina, e o favorecido do suposto
Tesouro de Iduna.
O diário de Magnus Gabriel de La
Gardie, com a carta da Rainha Cristina,
foi passando de pai para filho há
algumas gerações, sempre com a
promessa de não deixar de procurar o
tal tesouro. Assim, o diário entrou para
os pertences de uma geração que não
acreditava muito naquela história
contada pelos antigos. Continuaram com
o templo, porém os objetos, o diário, a
carta e o cofre de freixo foram postos
meio que de lado, até que o neto do
sacerdote que herdou o suposto tesouro
conheceu o professor de mitologia
Mattias Larsen e confiou-lhe o tal
segredo de familia. Mattias pôde
descobrir através das mensagens dos
kennings escáldicos escritos na carta
que havia, sim, o tal tesouro escondido.
No diário, Magnus Gabriel de La Gardie
apenas se referia a figuras do Codex
Upsaliensis e inscrições rúnicas na
caixa de freixo, que ele chamava em
códigos por Cofre de Iduna.
— Pobre sacerdote! — sussurou
Mattias ao se lembrar daquele
acontecimento.
Mattias Larsen acreditava que já
tinha perdido tempo demais e não queria
demorar outro tanto para pôr as mãos
naquela fortuna incalculável, segundo
ele imaginava. Tirou o Codex
Upsaliensis da gaveta chaveada da
mesinha de cabeceira e o segurou firme
com a mão esquerda. Com a mão direita
golpeou o ar várias vezes, enquanto
palavras sujas saíam apressadas de sua
garganta seca e com placas amarelas,
que o fazia lembrar que seus gânglios
linfáticos estavam inflamados – a
terrível amigdalite o atormentava nos
meses frios desde os cinco anos de
idade, quando ajudava os pais a
conduzir as renas em meio ao deserto de
neve, na Lapônia Norueguesa.
Lá fora os pontos de luzes dos arcos
da borda das gaiolas do viveiro de
salmão, na fazenda marinha de Lofoten,
norte da Noruega, lampejavam na
escuridão, mas na sua mente tudo estava
tomado de trevas, derivadas do pavor
que rondava suas certezas.
Não posso dar bobeira com esse
Códex em meu poder, pensou, receoso,
é um risco grande e desnecessário.
Afinal, eu só preciso de algumas partes.
Vou passar no scanner e depois tirar
fotocópia. Ainda bem que eu tenho toda
a estrutura de que preciso no barco, e o
melhor, sem testemunhas. Amanhã
despacho o original, sem remetente,
claro, de volta para a Biblioteca da
Universidade de Uppssala. A polícia
sueca não deve demorar e pode
perfeitamente vir ao meu encalço,
afinal sou um professor credenciado e
devo estar na lista de suspeitos. Mas eu
precisava da numeração exata das
páginas, não podia fazer isso na
Biblioteca da Universidade, então fui
obrigado a furtá-lo. Agora que se dane;
se a polícia vier atrás de mim, eu vou
encará-la. Afinal, eu não sou um
covarde!
Excitava-o a ideia de que dentro de
algumas horas estaria longe daquela
rotina que o atormentava; aliás, todo
emprego o atormentava. Sua maior
ambição era nunca mais trabalhar de
empregado e viajar o mundo num iate
luxuoso com porta-carros e, claro um
Porsche à disposição para ostentar em
terra firme. Ele se jugava merecedor
desse luxo todo. Mas enquanto não
pusesse as mãos no seu tesouro, teria de
suportar aquela vida medíocre
trabalhando em barcos de pesca, como
parte do seu plano, já que a profissão de
professor o limitava – além de ter ficado
comprometida após a visita ao
Trolltunga, a língua do Trolls; afinal, a
escola inteira testemunhara sua tentativa
frustrada de suicídio. Pelo menos ele
gostava e muito de barcos. Enquanto
isso, teria de suportar a esposa com seu
pesado sotaque estrangeiro falando o
quanto amava a cultura norueguesa e a
tradição do natal na Noruega. Sem
contar que a russa, a quem ele chamava
de serva o incomodaria com seguidos
telefonemas melodramáticos relatando
em detalhes a dificuldade de abrir mão
das festas de fim de ano ao lado dele e
ter de viajar à Dinamarca e enfrentar a
família numa mesa cheia de sorrisos
falsos, menos o dela, claro. E mais uma
vez daria a ela dados de realidade,
provocando-lhe uma explosão de
palavras de xingamentos.
Depois de ir à Igreja Evangélica
Luterana da Noruega, como todo bom
nórdico o faz uma vez ao ano, mais por
desencargo de consciência e por
insistência dos mais velhos que pela fé
em si, voltaria faminto para casa e
aguardaria o belo banquete natalino
preparado pelo pai e a esposa:
Pinnekjøtt, carne de cordeiro ou porco
seca e salgada, com puré de colza e
ervilhas, costela suína assada, linguiça
fervida na água, acompanhados com
batatas cozidas com a casca e aquavita.
A melhor parte, em sua opinião, era
abrir os pacotes de presente que sempre
ficavam debaixo do pinheiro silvestre
colhido na fazenda de um tio, dois dias
antes, e enfeitado como árvore de natal.
Teria folga na última semana do ano e
nada poderia fazer naquele clima de
tormenta constante, típico de fim de ano,
no oeste da Noruega; logo, seu maior
prazer seria a culinária nórdica, a
companhia do seu bicho de estimação e
bons cochilos depois do jantar.
“Faça algo de útil, Mattias, não há o
que fazer a essa hora da madrugada.
Volte a dormir, seu tolo”, falou enquanto
andava de um lado para o outro sem
parar.
Mattias Larsen não tinha medo de
tempestades, mas tinha pavor de que
alguém, mesmo a serva, viesse a
descobrir o verdadeiro motivo do furto
da caixa de freixo do templo pagão da
aldeia lapoa. Ela, pelo que tudo
indicava, parecia mesmo crer na
mitologia nórdica e nas maçãs douradas
da eterna juventude. Pelo menos ficara
impressionada com o Lago Sagrado e
suas águas ferventes. Fazia parte do
plano.
A intenção de Mattias nunca fora
repartir seu tesouro com ninguém e
muito menos com ela. A grande ambição
que sedimentava o seu coração, como
flocos de neve que caíam do lado de
fora do barco, o cegava, e ele estava
disposto a tirar quem quer que fosse do
seu caminho, para pôr as mãos naquele
tesouro, custasse o que custasse.
— Esqueça — disse baixinho e com
o tom carregado de raiva —, não
conseguirei decifrar os kennings sem o
Cofre de Iduna. Aquela maldita
brasileira deve ter escondido, e muito
bem, a caixa que surrupiou do armário,
no dia do batismo do barco. Eu tenho
vontade de enfiar na garganta dela
aquela touca horrorosa de lã com
etiqueta Made in Brazil, que deixou
cair no piso da embarcação, até vê-la
sufocar. E, por que não? Seria bem
pouco para o início de uma tortura. Era
o que ela merecia por atrapalhar meus
planos. Se fosse tão simples como
falar... O pior é que, ainda por cima, é
casada com esse idiota que me paga
salário e tenho que ter a maior cautela
para não despertar suspeitas e pôr tudo a
perder; afinal, eu preciso desse
emprego, desse barco e de toda a
tecnologia que ele me dispõe. O que
mais me intriga é que a serva nada
encontrou na casa da brasileira, na noite
em que esteve lá, com o Freki. Só se ela
escondeu a caixa no banheiro. Só me
faltava essa agora.
Naustdal – Noruega – 23 de
dezembro de 2008.
Assim que Elisa e Eirik chegaram à
casa de Therese, sentaram-se sem
demora à mesa para uma pequena
refeição em família. Em seguida, a sogra
avisou que queria uma ajuda extra para
decorar o pinheiro de natal, no dia
seguinte. Elisa estava acostumada com
os pinheiros feitos de plásticos e que tio
Roger sempre decorava com bolas
coloridas de vidro, logo no início de
novembro. Na Noruega a tradição era
pinheiro in natura, que a maioria dos
noruegueses buscava em algum bosque
próximo. Quem não estivesse disposto a
longas caminhadas, como eles, poderia
comprá-los de alguns fazendeiros que
vendiam no centro da cidade, durante
aquela semana. Foram ao centro de
Førde, no dia anterior, para comprá-lo e
agora estava na garagem descansando,
como manda o costume nórdico, porque
a árvore só seria montada e enfeitada no
dia 24 de dezembro – seguindo a
tradição. Era o primeiro natal de Elisa
na Noruega, e Therese queria ensinar-
lhe toda a tradição nórdica natalina.
Então, a chamou para acompanha-la até
ao sótão da casa para pegar a caixa com
os enfeites e já deixá-la na sala para
facilitar.
— Eirik Leiv, você não quer nos
ajudar?
— Não agora, mamãe. Estou moído.
Eirik pegou o jornal para ler e
descansar um pouco na poltrona
reclinável com descanso para os pés.
Elisa adorou a ideia e a seguiu.
Aproveitaria o momento para dar uma
espiada lá em cima, na esperança, quem
sabe, de encontrar o cofre de madeira
que a sogra tinha confiscado. Ela
colocava todas as tralhas lá. E se Elisa
pedisse a caixa com jeitinho, a sogra
poderia até ceder – assim ela
acreditava. Mas tinha tanta coisa
naquele sótão que era impossível achar
até mesmo uma girafa pintada de cor-de-
rosa.
No meio daquela bagunça toda,
Elisa encontrou a primeira bicicleta de
Eirik, da marca Caloi, na cor vermelha,
até com o papel da etiqueta todo
corroído pelo tempo, grudado no cano
central, e desmontada dentro de uma
caixa de papelão. Tinha vários
brinquedos de quando ele ainda era um
bebê, inclusive mordedores de plástico
da Fisher-Price e várias sacolas com
roupas infantis tricotadas pela própria
Therese.
— Quanta coisa antiga — disse
Elisa, empolgada.
Nisso, um uivo fez Elisa correr para
a mansarda e espiar do lado de fora.
Não conseguia perceber de onde vinha
aquele barulho tão familiar, apenas viu
um gato correndo para atravessar o
quintal da vizinha.
— Parece o uivo do lobo que tentou
me atacar em casa, na noite em que
voltamos do batismo do Brønnbåt —
disse para a sogra.
— Que nada, Elisa, deve ser o
cachorro do filho do nosso vizinho
querendo pegar algum gato fujão. Eu o
vi uma única vez, e estava tão escuro,
mas eu o achei assustador, com aqueles
olhos amarelos de fome. O pobrezinho
vive trancafiado durante o dia todo e
nem sei se alimentam direito o bicho —
disse Therese — mas Eirik falou que ele
é bem tratado e tem uma pessoa que o
leva para passear, mas somente à noite.
Elisa ficou curiosa para saber mais
sobre o animal. Primeiro, porque amava
cachorros e, segundo, parecia
reconhecer aquele uivo agudo e
assustador. Therese continuou: — Ele, o
filho do meu vizinho, foi adotado ainda
bebê.
— Eu não sabia que na Escandinávia
as mães davam bebês para adoção —
disse Elisa.
— O menino foi adotado em Quito,
no Equador, e vivia numa aldeia de
índios — respondeu Therese. — Parece
que foi um daqueles casos de
infanticídio em tribos indígenas, e um
grupo de cristãos o resgatou. Não se
sabe direito o que houve. Eles nunca
abriram o acontecido.
— Será que fala o castelhano?
— Nenhuma palavra. E pelo jeito
não gosta da origem latina — explicou
Therese.
— Ah — retrucou Elisa. — Sempre
fica um pouco de revolta nesses casos,
entendo. Eu também fui adotada, mas no
meu caso meus pais faleceram, e foram
meus tios quem me criaram.
— Desculpe perguntar, mas foi
acidente?
— Não. Meu pai foi diagnosticado
com câncer de pulmão. Quando foi
colocado na Unidade de Tratamento
Intensivo pela terceira vez, a equipe
médica decidiu tirar dele a assistência
para respirar, porque não tinham mais o
que fazer. Minha mãe não aguentou a
notícia e sofreu um ataque cardíaco no
dia seguinte, permanecendo sedada por
três dias. Mas não resistiu a um novo
ataque, dessa vez fulminante. Os
aparelhos respiratórios que mantinham
meu pai vivo foram desligados no
mesmo dia. Ambos foram sepultados
juntos, numa sexta-feira santa. Até hoje
eu não suporto quando chega essa época
do ano. É a primeira vez que eu toco
nesse assunto em muitos anos. Dói
muito. Eu tinha apenas cinco anos
quando fiquei órfã.
Houve um breve silêncio. Therese
ficou sem palavras. Claro que ela sabia
que Elisa fora criada pelos tios
padrinhos, mas não sobre o tipo de
morte dos pais dela. Eirik nunca dera
muitos detalhes da vida privada de Elisa
– preservando em si uma característica
dos noruegueses: a de ser discretos
quanto à vida privada deles e dos
outros. Então, para quebrar aquele
clima, Therese continuou a falar dos
vizinhos: — A esposa do meu vizinho, o
velho Øystein, chamava-se Ragnhild.
Nascida e criada na Lapônia
norueguesa, chamava a atenção de todos
pela beleza física, embora tivesse um
temperamento melancólico, com forte
tendência à depressão. Quando se casou
com Øystein, não se adaptou a viver em
Naustdal, longe da família dela. Então
se mudaram para lá, forçando o esposo a
viver numa cultura que não era a dele.
Ele a defendia dizendo que aqui também
não era a cultura dela e, como a amava
sobremaneira, cedeu aos caprichos dela.
Não conseguindo engravidar, passou a
mostrar uma indiferença perversa com o
esposo. Decidiram viajar para a
América do Sul, em busca de um bebê
para adoção. Quando o menino já tinha
uns três anos e meio de idade, ela
engravidou, mas sofreu um aborto
espontâneo aos quase três meses.
Demonstrou, para horror de todos, uma
histeria tão exacerbada que foi
considerada louca ao depositar o feto
num vidro com álcool e o colocar, sem
nenhum senso de orientação, na base do
toucador de seu quarto de dormir.
Forçou a família a partilhar consigo uma
vida dedicada ao extremo sofrimento,
como que para impedir que a alegria se
aproximasse dela. Os móveis da casa
passaram a ser decorados com panos
escuros, e as janelas foram tapadas para
que não pudesse entrar a claridade. Pai
e filho sofreram terrivelmente ao assistir
a loucura tomando posse da mente de
Ragnhild. Pouco antes de completar seis
anos que tinham adotado o menino,
Ragnhild faleceu depois de meses
internada numa casa de repouso em
Karasjök, na Noruega. Com esse triste
acontecimento, pai e filho voltaram a
viver em Naustdal, até para que se
livrassem daquela macabra experiência
que os forçou a ficar juntos de Ragnhild
durante quase três anos, convivendo com
sua loucura e debilitação crescentes,
sem que nada pudessem fazer. Quando o
rapaz terminou o Videregående skoler, o
ensino médio, em Førde, quis voltar a
morar no Norte, onde fez história e
geografia e se especializou em mitologia
nórdica.
— Que história terrível, sogra!
— Terrível mesmo; eu sei o que esse
coitado passou.
— Pobre família — disse Elisa com
o coração cheio de pesar.
— A esposa do rapaz é estrangeira.
Casaram-se há pouco menos de um ano.
E o rapaz continua morando na
Lapônia?
— Não. Ele trabalha no Brønnbåt da
RLM Sea Food.
— Sério? Que bacana! Funcionário
de Eirik, então?
— Exatamente, Elisa. O pai dele
pediu emprego para o filho, que era
professor pela Universidade de
Uppsala, na Suécia, mas perdeu o
emprego. Parece que o contrato de
trabalho dele não foi renovado depois
do verão do ano passado. Ele não quis
comentar o motivo, mas tudo indica que
o rapaz tem problemas de humor, uma
coisa assim.
— Deve ser depressão, sogra.
— Não tenho certeza se foi por esse
motivo, só sei que ele ficou ainda mais
desolado em se mudar para longe do
povo Sami, onde ele se sentia mais
próximo da mãe. O que o consola,
segundo o pai, é que ele gosta
sobremaneira de barcos de pesca. Todos
os anos, no encerramento do ano letivo,
viajava a Lofoten, para o trabalho de
verão. Enquanto a maioria dos colegas
queriam servir mesas nos restaurantes,
juntos com os vizinhos suecos, ele
queria trabalhar nos barcos de pesca.
Foi aspirante a Marinejeger, um tipo de
SEAL Americano, na Marinha Real da
Noruega, e parece que se deu muito bem
no curso de mergulho. Eirik achou
interessante esse conhecimento náutico
do rapaz e de grande utilidade para a
RLM, sem contar que ele pode trabalhar
dentro e fora do Brønnbåt. Eirik sempre
teve dificuldades em encontrar um bom
mergulhador e está bem satisfeito com a
atuação do filho do velho Øystein.
— Que bom que Eirik deu
oportunidade ao rapaz, sogra.
— Ah, sim, eu intercedi por ele, em
nome do pai dele. O velho Øystein e eu
fizemos a konfirmasjon, a crisma, no
mesmo dia e na mesma igreja, aqui em
Naustdal. E para o povo norueguês esse
laço de amizade é muito importante.
Ainda mais numa comuna tão pequena
como essa aqui.
— Pelo jeito os noruegueses também
consideram muito uma indicação de
trabalho — concluiu Elisa.
— Se a pessoa tem capacidade, por
que não empregar? — disse Therese.
— Isso é verdade, sogra. E a
propósito, por que ele não seguiu
carreira na Marinha?
— Essa parte não sei, Elisa. Nem
tudo a gente pode saber, não é mesmo?
— Ainda mais quando se trata de
cidadãos noruegueses — disse Elisa
após um sorriso sarcástico.
— Você já pode trabalhar como
médica no hospital, Elisa, pois já
entende e fala muito bem o norueguês —
disse Therese.
— Eu me dediquei muito a estudar
nesses meses de inverno, trancafiada
dentro de casa, e conto com a facilidade
de que sou rápida para aprender.
Obrigada pelo comentário.
Elisa sorriu. Embora não tivesse
encontrado o cofre de madeira, um
elogio de Therese – ainda mais em
relação ao idioma que ela tanto queria
aprender – era a primeira coisa boa de
fato que ela ouvia naqueles últimos
meses.
Naustdal – Noruega – 24 de
dezembro de 2008.
Mattias estava parado na porta da
casa do pai, com uma mão no bolso do
casaco e outra segurando a mochila de
pano com traços regionais da Lapônia
bordados à mão e uma pequena bandeira
Sami no bolso da frente. Ele era
fascinado por esse tipo de arte, tendo
sido inclusive uma das matérias
favoritas em seu curso de
especialização. Não especificamente
sobre desenhos de agulhas em tecidos,
mas sobre a história dos ancestrais
humanos em desenhos e figuras
representativas, em que características
regionais contavam histórias ou
revelavam segredos milenares, fossem
em pedras, couro, tecido, madeira ou
outras estruturas.
Como especialista nessa área já
tinha sido contratado, no fim de 1999,
pelo Estado norueguês na Lapônia, para
decifrar um crime envolvendo um
tambor sagrado de rituais ancestrais que,
segundo a crença, tinha o poder de se
comunicar com os mortos, encontrado
próximo à cena de um crime. Por
intermédio de inscrições em Norrønt,
misturadas com figuras mitológicas
sobre sacrifícios humanos, descobriram-
se vários assassinatos em nome da fé.
Pela virada do milênio acreditava-se em
energia astrológica rara, propícia a
sacrifícios humanos. Mattias auxiliou a
polícia nórdica a chegar a revelações
surpreendentes. O sucesso da descoberta
de uma seita maligna e suas verdadeiras
origens estava bem distante da cultura
Sami, e ajudou a capturar um psicopata
que aterrorizava os vilarejos criadores
de renas na divisa com a Suécia. Mattias
teve orgulho desse trabalho ao
desmistificar várias teorias erradas
sobre os ancestrais de sua mãe, por
quem ele nutria sentimentos
ambivalentes de amor e ódio ao mesmo
tempo Mattias tornou-se naquele ano um
tipo de ídolo no meio dos Samis e
seguidores e simpatizantes da mitologia
nórdica. Com o passar dos anos, seu
nome perdeu-se entre tantos outros
nomes, como tudo na história dos
acontecimentos abordados com ênfase
por um momento pela mídia. Entretanto,
a importância daquele feito foi
levantada, numa de suas aulas, por um
aluno fanático por revistas sobre
mitologia viking, que encontrou a foto de
Mattias estampada na capa da Revista
Mitologia Nórdica e História daquele
ano. Aos poucos, ganhou a confiança de
Mattias para abrir um segredo que seu
avô sempre contava, no qual entretanto
ninguém depositava muita veracidade.
Envolvia o lendário Tesouro de Iduna, e
a saga da queda de Magnus Gabriel de
La Gardie, no século XVII, o queridinho
da rainha Cristina da Suécia, além de
esposo de Maria Eufrosina, que era
prima e irmã adotiva da Rainha Cristina.
Maria Eufrosina era irmã legítima de
Carlos X Gustavo, que subiu ao trono
após a Rainha Cristina abdicar e fazer
dele seu sucessor, uma vez que não tinha
inclinação para o casamento e morreria
sem herdeiro por vontade própria.
*
Quando soube por Øystein, seu pai
adotivo, de sua ascendência indígena,
Mattias passou a ter curiosidade por
plantas medicinais, em especial as que
eram usadas por indígenas em pontas de
flechas. Não chegou a catalogá-las, mas
ele estudou com entusiasmo plantas da
região montanhosa do hemisfério norte.
Encontrou nas montanhas norueguesas
uma flor azul chamada Acônito, tão
venenosa que, se alguém mal-
intencionado colocasse as raízes de tal
planta em um poço de abastecimento de
água de um vilarejo, mataria todos
daquele lugar. Seu nome em latim,
Aconitum, vem de uma palavra grega
que significa “sem luta”, por causa de
sua ação rápida e natureza mortal.
Deveria ser manuseada com luvas, uma
vez que a toxina poderia também ser
absorvida através da pele. O detalhe é
que não deixava nenhum vestígio no
corpo da pessoa que ingerisse. Essa
informação ficou registrada na mente
maligna de Mattias, que fez bom uso
dela quando quis se livrar do seu aluno
Dennis, que lhe confiou o segredo do
Tesouro de Iduna. Dennis seria um
grande empecilho no caminho ambicioso
de Mattias. Depois ele se livraria do
avô do menino, o velho Gunnar. Pensou
em eliminar os dois de uma só vez, mas
o velho conhecia muito de plantas e
poderia suspeitar da trama de Mattias.
Aconteceu assim: Na Escandinávia é
comum existirem cabanas no meio da
natureza selvagem, onde não há ninguém
para vistoriá-las. Ao se ter acesso a
uma, deixa-se o valor da diária numa
caixa tipo de correio, servindo-se de
tudo o que a cabana oferece: roupa de
cama, cobertores e utensílios para
cozinhar. Mattias, que desfrutava da
confiança de Dennis, o convenceu a
acamparem naquele local na época do
inverno. Seria o local ideal para
trocarem ideia a respeito do plano para
iniciar investigações a respeito do mapa
do Tesouro de Iduna, sem que o velho
Gunnar desconfiasse. Mesmo ciente de
que era uma região com riscos de
avalanches e de difícil acesso, Dennis
aceitou a ideia. Combinaram para o mês
seguinte. Mattias, que não queria que
Dennis revelasse a sua companhia
naquele fim de semana, bolou um plano
audacioso para que a polícia se
confundisse caso encontrasse alguma
digital sua na cabana ou, quem sabe,
gotas de suor ou fio de cabelo. Duas
semanas antes, ele se hospedou na
mesma cabana, fazendo questão de
fotografar tudo e registrar sua estada ali.
Levou sua mulher para ficar tudo com
cara de normalidade: o típico fim de
semana de casal que quer paz para
desfrutar da companhia um do outro.
Mattias já sabia que, para descodificar
aquele segredo da Caixa de Freixo,
somente esta não seria suficiente para
uma conclusão do local exato do
tesouro. Sem o Códex seria quase
impossível. Mattias omitiu do aluno esse
detalhe, e ainda o fez jurar que não
envolveria Gunnar, seu avô. Dennis
gostava de tomar chá. Isso facilitaria e
muito o plano diabólico de Mattias. A
planta contém toxina em todas as suas
partes, mas a raiz é que é fatal. Com a
raiz, Mattias faria o chá.
*
Pegou o telefone e enviou mensagem
com pedido de socorro e o local onde
Dennis se encontrava, fazendo-se passar
por ele: Não estou conseguindo voltar...
Me ajudem, por favor... Sei que fiz
merda em vir sozinho a este lugar
afastado, mas agora é tarde.
Não havia limite para a ambição de
Mattias Larsen. Não levou o telefone
celular; não seria tão idiota – isso
rastrearia sua passagem pelo local.
Quando à morte de seu aluno, após ser
noticiada pela televisão e imprensa, ele
ainda fez uma grande dramatização em
público se culpando pelo acontecido,
pois tinha indicado a cabana para o
aluno. Quando o velho sacerdote foi
encontrado morto no Templo onde
trabalhava, havia uma carta escrita por
ele assumindo se sentir culpado pela
morte do neto, em que dizia que o
remorso não lhe permitia mais viver.
Sem emoção alguma, ao se lembrar
de como suas ideias tinham se
entrelaçado tão perfeitamente no plano
de eliminar neto e avô quase ao mesmo
tempo, Mattias sorria de puro prazer.
*
Passado o efeito daquela dose extra
de adrenalina, os olhos de Mattias
estavam fixos ao chão, como alguém que
recebeu uma sentença de morte e
estivesse diante do seu carrasco. Seu
estado mental dava sinal de cansaço.
Do lado de dentro da porta de
entrada, os uivos insistentes de Freki
que, já desconfiado de sua chegada,
ficara inquieto. O clima natalino estava
por todos os lados. Todas as casas
tinham um candelabro de sete pontas –
que lembra a menorá do povo judeu –
chamada de syvarmet-lysestake, em
norueguês, no beiral da janela. Alguns
pinheiros nos quintais nevados foram
envoltos em pisca-piscas, e uma ou
outra casa enrolara nas vigas de
sustentação das varandas, festões verdes
e vermelhos. O céu mandava flocos de
gelo por toda parte. Mattias, ao ficar
parado ali, na escada, já podia ser
confundido com um boneco de neve.
Sem paciência para enfrentar o
feriado natalino com a família e os
empobrecidos fios narrativos da mulher,
ele não queria dar muitas explicações
sobre seu trabalho no Brønnbåt,
especialmente à esposa que, embora o
esperasse com waffles, pepperkaker
(biscoitos de pimenta), diversos
biscoitos natalinos e bolo de chocolate,
com certeza o aborreceria com várias
perguntas prontas escritas num papel.
Abriu a porta com cuidado e, mal
pendurou a mochila de pano no suporte
do cabideiro na entrada da casa, recebeu
um pulo certeiro de Freki que, de tão
forte, foi parar no chão.
— Agora chega de babas e de uivos,
teremos alguns dias juntos — disse
Mattias Larsen enquanto passava os
dedos nos pelos negros de Freki e já
sentia o cheiro gostoso vindo da
cozinha.
Sentou-se no piso gelado do hall e
tirou o casaco, certificando-se de que o
celular estava no bolso da camisa.
Freki, ao seu lado, cabeceava em seu
abdômen e grunhia, exigindo carinho.
— Bom dia, meu amor — disse a
esposa, limpando as mãos de farinha no
avental vermelho com estampa de Papai
Noel.
O seu grau de receptividade com a
esposa foi quase zero.
— Bom dia a todos – disse Mattias
lançando um olhar pressionado para o
pai, que já estava de pé ao seu lado.
— Como está, tudo bem? –
questionou o pai.
— Com a maldita garganta doendo,
como sempre no inverno — respondeu
Mattias.
— Tenho cá umas pastilhas —
respondeu a esposa.
— Não estou doente, nada que um
bom Swedish snus, tabaco sueco sem
fumaça, não dê jeito.
Antes de ouvir qualquer crítica
costumeira sobre o quanto esse tabaco
deixava os dentes pretos e nojentos,
Mattias levantou-se rápido. Pediu
licença. Foi ao banheiro, afinal qualquer
coisa servia para fugir daquela cena de
chegada e início de interrogatório.
Abaixou a tampa da privada e
sentou-se. Tirou o celular do bolso da
camisa. Discou um número e cochichou:
— Sou eu. Está tudo bem por aí? Ontem
mesmo quis falar, mas você não me
deixou completar a frase e desligou,
mulher impulsiva! Eu avisei que vinha
para cá, e não tenho culpa se seus pais
moram na Dinamarca. Está bem, juro
que não te chateio mais. Feliz Natal.
Tenho que desligar. Tchau.
Após encerrar aquela conversa,
lembrou-se de que estava no bolso com
o recibo da postagem do Codex
Upsaliensis que tinha despachado no dia
anterior para a Universidade de
Uppsala, na Suécia. Tivera a cautela de
fazer isso do correio de uma aldeia
piscatória dos arredores da base da
fazenda de salmão, em Lofoten, onde
trabalhava naquela semana. E por ser um
lugar pacato não dispunha de câmeras de
segurança, assim, ele não levantaria
qualquer tipo de suspeita caso a polícia
resolvesse investigar quem teria postado
naquele dia. Respirou aliviado, rasgou o
recibo em pedacinhos dentro da privada
e deu descarga.
Menos um problema, murmurou para
si mesmo.
Os galhos das árvores pareciam
pender todo o frio da cidade. Dezembro
na Noruega é de arder os ossos,
praguejou Elisa, que se sentia vergada e
torta como os galhos pesados de neve do
lado de fora da casa. A ceia de natal
tinha sido preparada com todo o zelo
pelas mãos de Therese, e Elisa tinha se
encantando com os costumes nórdicos,
mas toda aquela energia de cores e
cheiros a remetia para uma infância
triste, sem a mãe e o pai – e ninguém
poderia substituí-los. Ninguém. Nem
mesmo os tios padrinhos.
Elisa tivera mais um daqueles
pesadelos que a atormentavam, desde o
dia da primeira nevasca na Noruega.
Dessa vez foi algo sereno, que não a
assustou. Ela entrava num lugar parecido
com um templo e cheirava ervas fortes.
No meio de uma fumaça branca e
espessa aparecia um velho xamã. Não
necessariamente um ser aterrorizante e
enrugado com miçangas costuradas na
pele do rosto, muito menos pintado de
espirais em cores tribais, como nos
filmes de Hollywood e jogos de
videogame. Tratava-se de um homem
que vestia uma estola sacerdotal em
algodão da cor da terra e um cordão
franciscano da mesma cor amarrado à
cintura. Elisa vestia um traje cerimonial
branco. Era só do que ela conseguia se
lembrar.
Elisa olhou o relógio. Ainda é natal,
observou. Não está tão tarde. Ainda dá
tempo de cumprimentos, concluiu.
Pegou o cartão com o telefone de
Liudmila que ela guardara na bolsa de
mão e arriscou uma chamada. Sabia que
o rompimento de uma amizade no
passado não poderia erguer um muro tão
alto daquele jeito dentro dela. Mesmo
consciente de que sua presença física a
destacava dos demais, esse detalhe não
a ajudava em nada em relação à
autoconfiança nada elevada, que
nivelava sua inteligência social na
escala dos “muito pobres”. Tudo isso
ela sabia há tempos, mas não achava
justo erguer um muro tão alto. Elisa
precisava esquecer aquela traição do
passado, da melhor amiga. Só não sabia
quando isso aconteceria.
A voz de Liudmila estava apagada e
melancólica, dava para notar até mesmo
num breve alô.
— Oi, Liudmila, é Elisa, lembra-se
de mim?
As mãos de Elisa tremiam e sua voz
dava indícios de “eu vou falhar”. Sua
sorte foi quando latidos repercutiram ao
fundo da ligação. Então ela arriscou
quebrar o gelo:
— Que bom que você tem aí um
cachorro.
— Eu trouxe a Tinka — respondeu
Liudmila, já um pouco mais animada.
Elisa pôde, então, relaxar o maxilar.
E assim a conversa fluiu naturalmente,
ao sentir-se envolvida por um poder
inacreditável. Após ter mergulhado os
pés na temida estrada escura do
isolamento, enfim percebia luzes
sinalizando o caminho. Estava prestes a
se entregar novamente a uma jornada
acompanhada de uma amiga. Desejou
que todos os anjos de sua coleção
dissessem amém.
Combinaram um café num
restaurante do lado do rio que corta a
cidade de Førde, assim que Liudmila
voltasse da casa da mãe, em
Copenhague.
Um rio representa um bom início de
boas-vindas, raciocinou Elisa. Afinal,
rios precisam de pontes e não de
muros. E eu vou atravessá-las todas.
Ah, vou!
Lofoten – Noruega – março de
2009.
Mattias estava um pouco febril, com
os gânglios linfáticos novamente
inflamados. Ele pensava que dessa vez
não conseguiria tratá-los somente com
pastilhas e antibióticos, mas quem sabe
com a retirada das amígdalas. Já tinha
deixado na cabine de comando o
sjukemelding (licença por doença) ao
encarregado da base reprodutora de
salmão, em Lofoten, onde ele estava
lotado aquela semana. Ficaria de
repouso durante os três dias que a lei do
trabalhador norueguês lhe garantia.
Pensou que poderia adiantar e muito as
pesquisas sobre a caça ao Tesouro de
Iduna, estudando os desenhos do Códex
e os versos escritos em nórdico antigo.
Depois emendaria o feriado da Páscoa.
Ganharia tempo para se dedicar ainda
mais. Havia investido bons anos de
espera naquela busca, e ficar uns meses
a mais não abalariam seus nervos,
embora ele se esforçasse muito para
manter a ansiedade baixa. Ao seu lado
uma pilha de livros, alguns seus e outros
emprestados, e uma revista no topo da
pilha: a Revista Mitologia Nórdica e
História. Devido à proximidade com a
Páscoa, saíra uma matéria sobre a
origem do símbolo do coelho contada
por uma ilustração da deusa Iduna.
Mattias passou os olhos pela
matéria, que conhecia tão bem, pois fora
ele mesmo quem a escreveu anos atrás.
Todo ano a revista republicava a
mesmíssima coisa. Vá entender o que
esses editores pensam. Se bem que não
existe nenhuma novidade, pensou
debochando. Mas soltou um sorriso
sarcástico quando se lembrou das
coroas norueguesas que ganhara para
autorizar a matéria. Melhor pra mim,
concluiu.
Voltou a se concentrar num livro
sobre Kennings, emprestado da
Biblioteca Nacional, em Oslo,
encomendado pela Biblioteca de
Lofoten. Sem um profundo conhecimento
das histórias mitológicas nórdicas fica
impossível compreendê-los. Tanto que
Snorri Sturluson compôs a Edda em
prosa, como importante fonte desse
conhecimento, já que os escaldos –
skalds, os chamados poetas da era
viking – o faziam apenas de forma oral,
narrando fatos e acontecimentos pelos
Bardos, de boca em boca, e de geração
a geração.
A Edda em prosa veio compilar
essas narrativas num manuscrito e
tornou-se referência para os poetas da
época. A rainha Cristina da Suécia
adorava esses enigmas, daí a
desconfiança de que foi ela mesma quem
elaborou o mapa do suposto tesouro, O
Tesouro de Iduna.
Mattias lia um verso típico de
kennings de Kuhn, Hans (1893). The
rímur-poet and his audience. Saga-
Book 23:6. que citava um verso do skald
do século X – Eyvindr skáldaspillir – e
se tornou referência de estudos de
kennings para o mundo todo. O poema
no qual ele compara a ganância do rei
Haroldo II da Dinamarca com a
generosidade do seu antecessor Haakon,
o Bom:
Bárum Ullr, of alla
ímunlauks, á hauka fjöllum
Fyrisvalla fræ Hákonar ævi; nú
hefr fólkstríðir Fróða fáglýjaðra
þýja meldr í móður holdi mellu
dolgs of folginn
Tradução em prosa:
*
Mattias Larsen não estava a passeio
em Estocolmo. Teria entrevista com a
polícia sueca em Uppsala no dia
seguinte, mas preferiu se hospedar na
capital, poucos minutos dali.
Ele já previa que tipo de abordagem
eles fariam. Como professor
credenciado na Universidade de
Uppsala e com acesso especial à
Biblioteca da Universidade, claro que
eles viriam atrás dele. Desde que
recebeu a intimação para a entrevista
percebeu a grande burrada que tinha
feito. Poderia ter solicitado as fotos do
Códex pela internet, mas somente trinta
por cento do total, e ele não queria
correr o risco de deixar algum detalhe
para trás. Magnus Gabriel De la Gardie,
o provável colaborador do mapa do
Tesouro de Iduna o teve nas mãos, antes
de doá-lo à Universidade. Mattias
queria examinar com calma o material
original, e o fez com êxito. Então, esse
remorso por ter furtado o manuscrito ele
já tinha resolvido. Agora o que ele mais
se lamentava era ter despachado o
envelope do Códex usando um correio
norueguês.
De que adiantaria ter selado as
digitais com cola especial importada,
como um agente em missões especiais
em centros de inteligência, se agora
sentia um fuzil apontado para ele como
se estivesse na mira de um Sniper do
Exército Norte-Americano? Pelo menos
nos filmes de Hollywood eles não
erravam o alvo.
Mattias se alimentava desses
pensamentos que tinham o poder de tirar
sua tranquilidade. A polícia sueca o
pegaria, com certeza. São espertos. Não
dormem em serviço. Afinal, são suecos,
ele pensava. E eu serei trancafiado
numa penitenciária, quem sabe com
caloteiros do sistema previdenciário ou
consumidores de haxixe, e, claro, teria
mais sofrimento mental que físico
porque perderia mais tempo para pôr as
mãos no tesouro, ou talvez, nunca mais
tivesse a oportunidade de fazê-lo. Sem
contar a especulação da mídia em cima
desse caso. Droga!, berrou.
— Vou perder tudo. E isso é culpa
daquela maldita brasileira que me
colocou para fora da rota. Atrapalhou
todo meu plano, e agora ela deve
morrer. Vai morrer por pura estupidez.
Você faz ideia dos danos que me
causou, dona Elisa? — ele gritou,
enraivecido, e depois se pôs novamente
a murmurar: — Não era esse meu plano:
matar a esposa do meu patrão e nora da
melhor amiga do meu velho pai, mas foi
ela quem se colocou no meu caminho.
Agora, vai pagar caro por atrasar minha
vida. A essa altura eu já poderia estar
em águas caribenhas, ou em alguma
costa tropical vivendo a vida que
mereço. Você vai morrer por isso, sua
latina intrometida. Ah, vai. Antes,
porém, eu preciso recuperar aquela
caixa; afinal, ela custou a vida do avô
do meu melhor aluno e a dele. Pobre
homem! Pobre menino! Essa mania que
adolescentes têm de confiar cegamente
nos professores. Se bem que ele
passaria, de qualquer forma, a perna no
avô dele. Ou não estava escrito na cara
daquele infeliz que o que ele mais
intencionava era meter a mão naquele
ouro todo? Claro que sim. Veio com um
papo morno de desejar tecer uma
aliança pelos meus serviços em decifrar
os kennings da carta da Rainha Cristina
ao seu queridinho chanceler; afinal, sou
historiador e mitólogo renomado na
Escandinávia. Mas ninguém faz aliança
para dividir um tesouro daqueles. Não
com os descendentes Vikings. Claro que
depois que eu encontrasse o lugar exato
do verdadeiro esconderijo, ele me
mandaria para Helgardh, onde eu
mandei, primeiro ele, depois, o avô
dele. E mandarei um por um para lá.
Matarei todo aquele que ousar
atravessar o meu caminho até que não
sobre ninguém para matar.
— Eu deveria ter confiscado aquele
diário das mãos do velho sacerdote,
embora gravá-lo na memória tenha sido
mais prudente. Levantaria suspeitas
desnecessárias e, afinal, pouco
revelava. Apenas indicava parte do
mistério: uma chave secreta e de
arquitetura bem tramada; as três figuras
do Códex unidas à informação do Cofre
de Iduna. Pareço patinar sempre nessa
teoria e ela já está me dando nos nervos.
Fiz tudo certinho como o sacerdote
orientou, antes de morrer. Banhei a caixa
nas águas termais sulfurosas de O Lago
Sagrado, para a pintura feita por ele, a
fim de encobrir as inscrições talhadas
dissolverem naturalmente. Ele tinha o
cofre, mas não o Códex. Eu tenho o
Códex e não o cofre. E tudo parece
contribuir para o tesouro ficar naquele
esconderijo por mais quatro séculos.
Maldição. Que droga!
Førde – Noruega – início de junho
de 2009.
O verão chegava tímido, e a
primavera parecia não desejar partir
naquele ano de 2009, ao trazer consigo o
vento nórdico gelado, até que aos
poucos este recuou para um frio suave
com tardes de sol ralo, mas agradável.
Das tulipas no quintal da casa se viam
apenas os pequeninos talos verdes se
erguendo numa lentidão que agoniava
Elisa. As flores certamente chegariam
no alto do verão, fenômeno que mesmo
quem não fosse expert em jardinagem
saberia disso. Elisa aproveitava da
companhia de Tinka, enquanto Liudmila
participava de um mutirão tradicional na
Noruega – dugnad, em norueguês – em
parceria com os vizinhos de bairro. Esse
tipo de ajuda comunitária se fazia com a
limpeza e arrumação dos jardins, a troca
de areia das caixas dos parquinhos
infantis, a capina da grama nos
arredores das casas e calçadas, o
replantio de flores e pintura nova em
áreas comuns dos bairros. Tudo isso
para deixar a área comum toda arrumada
e bonita para os meses quentes que se
aproximavam e a comunidade poder
desfrutar de um ambiente mais
agradável.
Liudmila foi a responsável por
oferecer café e bolo para todos naquele
ano, mas ela preferiu preparar waffles,
que era o que sabia fazer. Tinka não
tinha com quem ficar e Elisa se ofereceu
para cuidar dela. Afinal, Liudmila tinha
se revelado uma amiga com quem podia
contar. Ajudou Elisa a encontrar
trabalho como médica no Hospital de
Førde e sempre se mostrava uma pessoa
interessada no bem-estar da amiga,
embora como todo ser normal, vez ou
outra, mudava de humor. Liudmila
recomendou que Elisa ficasse de olho
bem aberto com Tinka, pois um jardim
podia conter plantas tóxicas ou mesmo
fertilizantes e adubos e causar possíveis
problemas de saúde no animal. Elisa já
tinha dado uma boa conferida ao redor,
com o objetivo de identificar plantas e
áreas de risco, incluindo as tulipas que
poderiam intoxicar, caso Tinka as
ingerisse, mas os seus brotos ainda
estavam muito pequenos. Ela tivera o
cuidado de isolar a área onde se
encontravam os canteiros com pequenos
caixotes de madeira.
Therese compartilhava o trabalho
com o velho Øystein, seu vizinho, no
ritual de defumar salmão, na cabana ao
fundo do jardim, construída pelo esposo
com toras de coníferas, comuns nos
abundantes bosques da Escandinávia. A
cabana pintada de marrom escuro
ostentava, acima do batente da porta,
quatro galhadas de alces.
Defumar salmão ao final da
primavera era um costume da família
Myklebust há muitos anos e, naquele ano
em específico, Therese ficou sozinha.
Sem o esposo e Eirik, que viajava para
Bergen, ela solicitou a ajuda do amigo e
vizinho. Diante dos protestos da mãe,
Eirik prometera chegar a tempo para o
jantar ao ar livre. Therese ajeitava tudo,
para dar boas-vindas ao verão nórdico.
O cheiro da serragem queimada corria
por todo o jardim, levado pela fumaça
densa. O velho Øystein, que vestia uma
blusa de manga curta e exibia tórax e
músculos ainda bem definidos apesar da
idade, saiu do lado de fora da cabana
esfregando os olhos que queimavam
pelo ardor. Therese já tinha pendurada
as dez peças de salmão que ela mesma
limpou e preparou, usando uma faca com
lâmina longa e fina para separar a carne
do esqueleto e retirar a pele. Depois de
pendurá-los em ganchos próprios na
viga do teto, acima da fogueira
defumatória dentro da cabana, saiu para
o jardim a fim de arrumar a mesa para o
jantar às cinco horas da tarde, como
previsto.
Tinka cavoucava por tudo ali em
volta e, vez ou outra, aproximava-se de
Elisa, alisando-se em seu avental de
algodão em cor natural e com estampa
de pequenos girassóis amarelos envoltos
em folhas verdes.
Elisa usava galochas coloridas e
manchadas de barro respingado,
provocado pela água abundante que ela
jogava com o regador sobre a terra.
Therese resmungava ao longe que ela
afogaria as plantas, e que a cachorra
acabaria por destruir o jardim, mas
Elisa não dava ouvidos aos resmungos
da sogra e aproveitava a umidade para
cavoucar a terra, retirando o selo rígido
da superfície decorrente das chuvas e
deixando-a mais fofa. A terra úmida,
revirada, parecia desejar ansiosamente
pelos raios de sol que não demorariam a
chegar. Já passava das quatro e meia da
tarde quando Tinka ficou ainda mais
inquieta. Latia e cavoucava. Cavoucava,
depois latia sem parar. Elisa foi ver o
que tanto a incomodava e percebeu que
a cachorra parecia desenterrar alguma
coisa e foi correndo impedi-la; afinal ali
era o local onde Eirik apontara que tinha
enterrado o arminho. Elisa tinha enfiado
uma estaca no local com o nome Léo,
que formou a partir de letras de madeira
compradas na livraria.
— Não, Tinka, deixe o arminho em
paz!
Com uma determinação canina,
Tinka abocanhou o pacote de plástico
preto, mesmo ganhando muitas palavras
de advertência de Elisa. Sem se
importar com as broncas, a cachorra
saiu arrastando o saco pelo quintal.
Elisa tentou impedi-la. Em vão. O
pacote já se encontrava todo mordido e
rasgado quando ela conseguiu finalmente
tirá-lo da boca de Tinka.
— Meu Deus, não acredito —
exclamou Elisa, perplexa.
O carro de Eirik tinha acabado de
estacionar enquanto Therese corria para
perto de Elisa para ver o que Tinka
havia desenterrado. Elisa ficou imóvel
apalpando o saco plástico e tentando
escondê-lo de Therese, mas não teve
jeito. A sogra tirou-o das mãos dela e,
com uma curiosidade quase infantil,
remexia no pacote para libertar de vez o
objeto que lá se encontrava.
— O que essa caixa estava fazendo
enterrada no quintal de casa?
Elisa, que já estava saindo dali,
virou a cabeça e respondeu, desolada:
— Pergunte para o seu filho. Ele deve
saber, pois foi ele quem a enterrou.
Liudmila havia chegado no momento
em que Eirik estacionava o carro, um
pouco depois do tempo previsto, por
conta da abordagem policial que fazia
batida bem na esquina de seu bairro.
Alguns estrangeiros foram pegos
dirigindo sem habilitação, e a Statens
Vegvesen, Departamento Nacional de
Trânsito, estava atenta a todo tipo de
combate para a direção ilegal no Reino
da Noruega.
Elisa estava ao lado da sogra, que
diante da caixa de freixo
desembrulhada, a contemplava,
perplexa. Nunca a tinha visto em posse
de Rolf Leif, mas se o objeto fora
encontrado num barco que pertenceu ao
falecido marido, com certeza teria de
ficar em seu domínio. Elisa acenou de
leve para a amiga e foi a passos leves
em direção a ela. Nisso Eirik Leiv se
aproximou. Quis pará-las para saber o
que estava acontecendo, mas Elisa
desviou o olhar ao esposo e mostrou-lhe
um semblante de pura indignação. Eirik
Leiv a pegou pelo braço.
Um profundo silêncio caiu sobre
todos. Os olhos de Elisa vertiam
pesadas lágrimas.
Quebrando o silêncio Eirik Leiv
quis saber: — O que houve que você
está chorando?
Elisa devolveu outra pergunta, quase
sem conseguir pronunciar a frase
completa, demonstrando emoção na voz:
— Por quê, Eirik Leiv?
— Por que o quê? Não estou
entendendo — respondeu o esposo.
— Dê uma olhada na mão da sua
mãe — respondeu Elisa com raiva na
voz, a mão direita apoiada sobre o
ombro de Liudmila.
Tinka já rodeava Liudmila e ladrava
com a cabeça erguida, insinuando que
queria subir no colo dela.
— Lamento — respondeu Eirik Leiv
— mas por ora não estamos em
ambiente propício para explicações.
Elisa olhou por cima do ombro de
Liudmila e fez uma cara de desprezo
para o esposo.
— Dê-nos um minuto, Liudmila —
disse Eirik Leif. — Pode ser?
Liudmila olhou para Eirik, relutante
em deixá-los ali, mas Elisa disse que
tudo bem para a amiga, que saiu de perto
deles segurando Tinka nos braços, após
um aceno com a cabeça para Elisa em
sinal de consentimento.
Elisa limpou os olhos com a beira
do avental. Eirik iniciou a explicação.
Ao longe Therese chamava para o jantar
que já estava servido à mesa.
— Vamos jantar, Elisa — disse
Eirik, virando-se de costas.
Elisa levantou a cabeça para
procurar Liudmila e quando a avistou
próxima à caixa do correio, bradou para
que ela voltasse para sentar-se com eles
para o jantar.
Elisa nunca se sentiu tão sem chão
como naquela tarde.
“Um homem que
luta por moedas é
leal apenas à sua
carteira.”
— George R. R.
Martin
Final de julho de 2009.
Elisa soltou o cabelo, que estava
preso num coque desarrumado no alto da
cabeça. Colocou a presilha prateada,
comprada em São Petersburgo, em cima
da mesa de vidro da sala. Tinha acabado
de chegar do plantão médico. Os últimos
raios de sol entravam pela janela e
batiam no vidro transparente da
prateleira onde repousava sua coleção
de anjos. Os reflexos circulavam no teto
com implicações em círculos. Elisa
abriu um sorriso forçado. Havia tristeza
em seus olhos. Passava das dez e meia
da noite e ainda tinha sol na Noruega.
Lembrou-se do Brasil.
Levantou o olhar cansado para as
janelas. O vento balançava os galhos de
bétulas do quintal da casa e a fazia
lembrar do episódio da caixa de
madeira. Isso lhe causava uma baixa
tremenda de energia. Ainda estava um
pouco ressentida com o marido. Não
conseguia entender aquela atitude, por
mais que ele explicasse que foi o melhor
a fazer.
O que a deixava ainda mais chateada
é que nem sequer tinha desconfiado
daquela trama do Eirik. Elisa queria
empurrar aquela chateação para o mais
longe possível da mente. Afundou-se no
sofá e apoiou os pés na mesinha do
centro. Precisava daquele momento de
relaxamento. Até riu baixinho de tudo,
tentando imaginar o que se passava pela
cabeça de Eirik ao enterrar a caixa de
freixo no lugar do arminho.
Seu corpo estava mais leve agora.
Não valia a pena pôr mais pilha naquele
caso, já encerrado. De qualquer forma a
caixa não ficara com ela mesmo.
O sol pareceu mudar de posição e
um facho de luz bateu no olho de Elisa,
que sentiu, num estalo, uma mistura de
estranheza e frio percorrer seu corpo, ali
jogado no sofá da sala. Não podia ser
queda de temperatura, afinal o calor do
verão nórdico inundava a sala. Seria
algum tipo de pressentimento? Desejou,
naquele brevíssimo momento, telefonar
para os tios-padrinhos no Rio de
Janeiro.
Bobagem. Provavelmente eles não
estarão em casa agora, pensou.
Lembrou-se, também, de Therese.
Estava preocupada com a saúde da
sogra. Ela vinha reclamando de dor no
braço havia uns três dias. Para um
cardíaco isso não é nada animador.
Elisa já tinha marcado horário com um
especialista e se comprometeu com
Eirik em levá-la para a consulta.
A treze quilômetros dali, Therese
descansava também no sofá da sala de
sua casa. Levantou-se e foi até a janela.
Olhou a rua, vazia e silenciosa. Fechou
as cortinas de crochê que ela mesmo
trançara nas agulhas anos atrás. Ainda
estava claro lá fora, afinal, era alto
verão. Deu passos lentos e pegou o
Jornal de Notícias Nacionais de cima
da mesa de madeira do centro da sala,
onde tinha uma pilha deles. Eram poucos
minutos passados das onze horas da
noite e normalmente ela já estaria
dormindo há mais de uma hora naquele
horário.
— Tenho que falar ao meu médico
para rever a dosagem dos meus
remédios de pressão alta. Agora deu
para o coração disparar do nada —
falou para si enquanto arrumava os
óculos de aros escuros e abria o jornal
na página cinco:
A Universidade de Uppsala,
em Uppsala, na Suécia, recebeu
pelo correio um envelope
anônimo postado no dia 23 de
dezembro, e dentro dele o Codex
Upsaliensis, o Códice de
Uppsala, que tinha sido furtado
no início do mês.
Idunna, na Mitologia
nórdica, era a guardiã das
maçãs que forneciam juventude
e vida eterna aos deuses
nórdicos (originalmente
mortais). Ela era jovem, cheia
de vida, deusa da aurora
luminosa, fertilidade,
renascimento e regeneração.
Idunna gostava muito de
crianças e, para encantá-las
com seus poderes, transformou
um pássaro em coelho, seu
animal favorito. As crianças
ficaram muito felizes porque
podiam brincar com tão fofo e
amável animal. Mas, com o
tempo, o coelho parecia
descontente e deixava
transparecer que queria voltar a
ser o que era antes: um pássaro.
Tentava cantar e não conseguia.
Voar, então, não podia. O coelho
se tornou um animal triste.
Vendo a tristeza do animal, as
crianças também ficaram
aborrecidas e foram pedir à
deusa que transformasse o
coelho novamente em pássaro.
Iduna, porém só conseguia
receber forças especiais para
essas mágicas na primavera
nórdica, ou seja, na Páscoa.
Explicou a elas que seus poderes
só aumentavam nessa época e
por isso precisava esperar.
Quando a primavera chegou, ela
transformou o coelho novamente
em pássaro. De tão feliz por ter
voltado ao seu estado original,
ele a presenteou com seus
ovinhos. Em menção ao erro que
tinha cometido ao interferir na
natureza das coisas, Idunna
desenhou um coelho na Lua e,
até os dias de hoje, quando a
Lua está cheia é possível ver
esse desenho em sua superfície,
para que jamais outra deusa ou
deus cometa o mesmo erro que
ela cometeu. Idunna passou a
ser chamada, desde então, de
Ostara, que em inglês ficou
sendo Easter, e em alemão
Ostern, que quer dizer Páscoa.
O coelho, os ovos e a maçã se
tornaram seus símbolos de
fertilidade.
Ao lado da matéria foi publicada a
foto da Lua com o desenho do coelho,
que Elisa achou interessante. Pensou em
reparar melhor na próxima lua cheia.
Fechou a revista e a colocou de volta ao
lugar onde estava. Queria revisar sua
tese de mestrado na pausa noturna. O
relógio na parede marcava 21h50.
Elisa assumiu o plantão médico
durante todo o feriado na Ala Hospitalar
de Psiquiatria do Hospital Universitário
de Førde, onde trabalhava havia alguns
meses. Não teria muito o que fazer.
Apenas três pacientes internados e
sedados, que as enfermeiras dariam
conta, uma vez que Elisa já tinha
passado a visita das 21 horas. Tudo
tranquilo.
Elisa pegou, de dentro da gaveta de
sua mesa de trabalho, a caneta de ponta
esferográfica com a marca de um
laboratório de ansiolíticos na diagonal,
e aproveitou para guardar ali o cartão
do presente que ganhara de Liudmila
naquela tarde. Leu em voz alta: Um anjo
russo para iluminar, ainda mais, quem
já é feita de luz.
Ela tocou o cachecol que ganhara de
presente da esposa de um paciente
também ali guardado. Acendeu a
luminária nova de anjo, tirou o
estetoscópio do pescoço e o colocou ao
lado do otoscópio, perto do computador.
Depois, ao tentar destacar o título da
dissertação, percebeu que a caneta
estava com a tinta seca e a jogou no lixo,
onde o papel com desenhos da Catedral
Ortodoxa de Santo Isaac, de São
Petersburgo, na Rússia, que envolvera o
pacote do presente, disputava lugar com
o papel cinza-chumbo descartável do
forro da cama de exame clínico.
Procurou outra caneta ou lápis, mas nada
encontrou.
— Droga, vou ter que usar minha
caneta-herança, pelo menos hoje.
Elisa se referia à caneta Montblanc
Writers Edition Liev Tolstói, numa
edição especial em homenagem ao
escritor russo. De edição limitada, a
caneta é toda referência aos fatos que
marcaram a vida do escritor, inclusive
as cores azul e prata – alusivas à capa
de seus primeiros livros.
Tio Roger ficou fascinado pela
caneta artesanal requintada que estava
mais para relíquia que para instrumento
de escrita. O detalhe da malequita que
adornava o cone e fazia menção à lenda
da vara verde emocionou o tio de Elisa,
que não teve dúvidas em convencer tia
Eleonor sobre o presente de formatura
de Elisa.
A lenda da vara verde foi um
segredo que Nikolai, irmão de Tolstoy,
contou a este, garantindo que poderia
acabar de vez com as guerras e os
sofrimentos do mundo. Assim, todos os
homens poderiam ser felizes. Disse ao
irmão que escrevera o segredo em uma
vara verde, e a enterrado em Yasnaya
Polyana, sua amada propriedade.
Tolstoy nunca esqueceu dessa história,
acompanhando-a pelo resto de sua vida.
E ainda pediu para ser enterrado em
Yasnaya Polyana, no mesmo lugar onde
a vara verde presumidamente fora
enterrada. Simples como ele foi a vida
toda, ainda pediu, antes de morrer, que
depositassem seu corpo num caixão de
madeira. Assim, o martelado da base da
caneta lembra sua vida camponesa.
O consultório não era de uso
exclusivo de Elisa, mas cada médico
tinha o direito a uma porta do armário
para uso particular. Como ela passava a
maior parte do dia no Hospital, preferiu
deixar sua pequena herança, a caneta
Liev Tolstói, trancada no armário,
dentro da caixa de poesia. Vinte e nove
anos de vida tinham lhe ensinado que
não existe prazer maior do que ter
aquilo que mais se ama próximo de si.
Nada mais que isso.
Elisa pegou a chave de dentro do
bolso do jaleco. Rodou-a na fechadura.
Abriu a porta do armário. Segurou a
caixa nas mãos, pegou a caneta,
devolveu a caixa no lugar e retornou
para sua mesa de trabalho.
Enquanto alisava a barriga, ainda
sem evidência da gravidez de dois
meses, Elisa ergueu as sobrancelhas
bem definidas e seus olhos verdes de
aurora boreal ficaram ainda mais
brilhantes do que a luz do Norte no alto
inverno glacial. Respirou fundo e fez
uma cara de desagrado, intuindo que um
enjoo estava a caminho. Soltou os
cabelos, presos num coque displicente, e
ligou a luz da luminária de anjo.
Liudmila acertou no presente. Adorei,
pensou Elisa, tentando se distrair
daquele incômodo. Abriu um sorriso de
leve ao lembrar que sua melhor amiga
parecia mais um anjo que gente. Abriu o
livro de pesquisa com o título em inglês
Diagnostic and Statistical Manual for
Mental Disorders 4th edition, e anotou,
com uma caligrafia grande e letras
arredondadas – mais legível, impossível
– na primeira folha de sua tese: Ômega-
3 no combate à depressão e melhoria
no efeito dos Antidepressivos: Sua
mesa, que ficava de frente a uma grande
janela com vidros suados pela
temperatura fria do lado externo e verão
tropical do lado interno, e impecável
arrumação, ainda rescendia a lustra-
móveis de lavanda, que ela trouxe do
Brasil. Com o odor um pouco forte,
Elisa sentiu novamente um leve enjoo.
Abriu uma fresta na janela para receber
a lufada de ar fresco.
Quem sabe um copo d’água também
não me faça bem, ponderou.
A cozinha ficava no final do
corredor, a uns cinquenta passos do
consultório. Quando Elisa se levantava
para sair, o seu telefone celular tocou:
— Hallô — atendeu. — Sim, vou passar
a noite de plantão. Não está tarde para
você? Tá bom, vou esperar. Tchau.
Desligou o telefone, colocou o
aparelho em cima da mesa de trabalho e
foi até a cozinha com passos lentos e
despreocupados, tentando afastar o
pressentimento ruim de estar sendo
observada. Meneou a cabeça; afinal, o
hospital listava como um dos lugares
mais seguros para se trabalhar, na
Noruega. Pegou um copo com água e se
sentou numa poltrona velha com o
estofado marrom-chocolate um pouco
puído. Respirou fundo para tentar aliviar
o incômodo do enjoo, que se tornava
mais forte e, dessa vez, seguido de
náusea. Sentindo-se um pouco melhor,
voltou ao consultório. Já de pé em frente
à porta, reparou que ela não estava
como a deixara, entreaberta, para não
ranger e travar como de costume.
Alguém deveria ter passado por ali e
fechado, mas com o feriado, aquela área
estava semivazia.
Bem, deve ser impressão, pensou.
Elisa abriu a porta e entrou no
consultório. Levou o primeiro golpe.
Urrou. Sentiu a cabeça quase explodir.
Ziguezagueou e se apoiou no encosto da
cadeira giratória. Viu tudo rodar envolto
em uma luz branca. Ao segundo golpe,
ela ainda se mantinha de pé enquanto um
líquido quente descia pelas suas coxas.
Ao terceiro golpe, Elisa caiu de joelhos,
no chão. Virou-se do lado. Ainda pôde
perceber, como na cena de um pesadelo,
a porta do armário balançar acima da
sua cabeça. Gemeu. Passou a mão pelo
nariz, coberto por sangue vivo. Gemeu
uma segunda vez e perdeu os sentidos.
Um canto entrecortado e gutural se
espalhou pelo consultório, numa
linguagem não usada por aquelas
bandas. O canto joïk. O canto dos velhos
xamãs.
Naquele momento, o ranger da porta
acabou com a cantoria e a luminária do
anjo russo espatifou-se no chão. O
relógio na parede marcava 22h10.
“Quem me dera
um mapa de
tesouro
que me leve a um
velho baú
cheio de mapas do
tesouro.”
— Paulo Leminski
Aeroporto Flesland – Bergen –
alguns dias depois...
Dezoito horas em trânsito. Eleonor
estava incrédula de que aquele
sacrifício todo tivesse acabado. Isso
porque viajara do Rio de Janeiro a
Amsterdã, antes de pegar a conexão para
a Noruega, de primeira classe. Imaginou
como se sentiria se tivesse vindo
espremida num banco de classe
econômica. Mas o voo fora tranquilo, e
ela estava agradecida de pisar em terra
firme e ter vindo com Marlon junto com
ela, na cabine. Usar a primeira classe
foi a única maneira de trazer Marlon
junto de si. Tinha pavor só em pensar
que ele poderia morrer congelado, caso
fosse despachado, embora garantissem
que ligariam o ar-condicionado na parte
dos pets. Melhor não arriscar, decidiu.
Estava de certa forma aliviada de Eirik
ter insistido para ela trazer o cachorro
de Elisa. Não fosse isso, já estaria na
Noruega no dia seguinte que soubera do
atentado à sobrinha, embora Eirik
tivesse demorado três dias para avisá-
los. Eleonor, no início, tinha relutado à
ideia de ter um cachorro no apartamento,
no Rio de Janeiro. Em certos momentos
fora até dura demais com Elisa e Roger,
mas com o tempo Marlon passou a fazer
parte da rotina da casa e conquistou a
simpatia e o coração da tia de Elisa.
Eleonor o amava como a um filho.
Seu coração estava apertado só em
pensar que Elisa não resistiria. Pedia a
Deus em preces a todo minuto que
livrasse a sua menina da morte. A sua
querida Elisa, a quem ela considerava
filha. Ainda não conseguia entender por
que Roger não tinha viajado com ela.
Sempre pareceu que Elisa era mais
ligada a ele emocionalmente. E alegar
medo de avião lhe soou como uma
desculpa tão superficial. Eleonor não
queria pensar nas esquisitices do
esposo; não bastasse a dor que passava,
uma chateação a mais não resolveria.
Desceu a escada do avião e deu com
a pista molhada pela chuva típica da
primavera, que caía com flocos de gelo
do céu escuro.
Eleonor, no auge dos seus cinquenta
e dois anos, corpo esbelto e musculatura
definida, de olhos negros ansiosos
destacados num rosto aristocrático, com
sua habitual elegância, vestia paletó de
tweed na cor sólida castor e camisa de
alfaiataria feita sob medida em wrinkle
free – daqueles tecidos que não
amassam – de algodão creme,
quadriculada em diversas cores de tom
pastel, e colarinho alto com dois botões,
que ela considerou o modelo mais
fechado para proteger o pescoço.
Mesmo com o cachecol, uma peça de
pashmina pura, o vento gelado poderia
incomodá-la e trazer, quem sabe, uma
dor de garganta desnecessária para
aquele momento. Eleonor só estava
habituada com o frio de Campos de
Jordão, onde passava parte de suas
férias num chalé singelo e aconchegante
com uma vista incrível para as
montanhas, e que lhe foi indicado por
uma colega da imobiliária, a qual tinha
parceria na Grande São Paulo. Inclusive
essa mesma colega a pegara no amigo
secreto do último natal e a presenteara
com o cachecol feito da lã das cabras da
região de Caxemira, entre a Índia e o
Paquistão. Ela jurou que não sacrificava
os animais, pois tinha estado no ato da
tosa, em viagem para a região, e
acompanhou todo o processo. Eleonor
fiou-se no testemunho da amiga e por
isso usava com orgulho o seu aparato
envolto no pescoço, como se fosse uma
joia.
Marlon gemia baixinho, todo
encolhido dentro da caixa da marca
Sherpa Bag, que seguia todas as
especificações da IATA (International
Air Transport Association), cujo selo a
empresa aérea exigia.
Um vento gelado deu as boas-
vindas, batendo no rosto de Eleonor
como um tapa bem dado. Ela apertou os
lábios em protesto, tirou o cachecol e
cobriu a caixa de Marlon, que
demonstrava não gostar nadinha daquele
vento. Devia ser tão congelante porque
ainda tinha neve nos picos das
montanhas – embora com o tempo ruim,
deu para notar na chegada a Bergen,
quando o voo baixou das nuvens para a
aterrisagem.
Meus ossos jamais se
acostumariam com esse frio, pensou.
Entrou no ônibus da companhia
aérea e seguiu para o saguão do
aeroporto, onde passaria pela imigração
e alfândega e, com certeza, pela vistoria
em Marlon. Tinha providenciado toda a
documentação exigida, bem como as
vacinas; só não tinha completado o
tratamento com praziquantel, um
medicamento contra tênia (Echinococcus
multiloculares), por falta de tempo
hábil. O processo inteiro demoraria
mais ou menos cinco meses, embora um
amigo veterinário tivesse documentado
todo o tratamento no passaporte de
Marlon. Não foi o correto, mas o
necessário a fazer; afinal Elisa não
poderia esperar todo esse tempo.
Eleonor pediu, inclusive, para aplicar
nele o soro subcutâneo com vitaminas
que seriam absorvidas lentamente ao
longo da viagem; assim ele se manteria
hidratado e não baixaria a imunidade
com o estresse e a brusca mudança de
temperatura ao chegar na Noruega. Todo
o cuidado fora tomado e, agora, somente
cruzar os dedos e esperar que tudo desse
certo.
— Que Deus nos ajude — Eleonor
disse para Marlon.
Ao chegar à alfândega apresentou os
documentos exigidos: carteira de
vacinação com o laudo da sorologia
antirrábica com anticorpos acima de 0,5
UI/ml; certificado de saúde emitido pelo
veterinário há menos de 72 horas;
requerimento para fiscalização de
animais de Companhia; endereço da
estada na Noruega, e o CZI, Certificado
Zoos sanitário Internacional, o
documento que comprovaria que Marlon
tinha todas as condições sanitárias
exigidas para o trânsito internacional até
a Noruega.
Deu tudo certo.
*
Quando atravessou a porta de vidro
da saída, Eirik a esperava com um
ramalhete de lírios laranja. Eleonor
suspirou:
— Que amor! — disse, não
desprezando a gentileza mesmo com
todos os sintomas do desencanto devido
à grande tristeza do momento. Elisa teve
sorte ao se casar com Eirik, concluiu
sem nenhuma dúvida.
Eleonor pediu a Eirik que dirigisse
direto para o Hospital. Depois refletiu
que um banho seria necessário, afinal
estaria adentrando numa Unidade de
Terapia Intensiva. Ficou admirada
quando Eirik lhe disse que poderia
tomar um banho no próprio hospital, no
quarto em que ele estava hospedado, no
hotel do hospital. Depois da visita à
Elisa poderiam seguir ao Hotel em que
ela ficaria, no centro da cidade de
Bergen. Um dos poucos que aceitavam
bichos de estimação.
Lofoten-Noruega - final de abril de
2010.
Mattias sorria. Tinha conseguido o
que queria: a caixa de freixo, o Cofre de
Iduna estava em suas mãos. Ali, na sua
cabine particular, ele poderia fazer
todas as pesquisas que ansiava havia
tanto tempo. Os tripulantes mantinham-
se dispersos para qualquer outro assunto
que não fosse a esposa brasileira do
patrão, que estava entre a vida e a
morte, na Unidade de Terapia Intensiva
de algum hospital em Bergen. Não
conseguiam entender como Liudmila, a
melhor amiga de Elisa, poderia ser tão
falsa a ponto de planejar a morte da
amiga, era esse o comentário de todos.
Pega em flagrante por Eirik, que a
reconheceu quando abriu a porta do
consultório e ainda pôde vê-la, na janela
do consultório, no ato da fuga. E depois,
as digitais de Liudmila estavam
marcadas na luminária do Anjo Russo.
Bem, isso era problema da polícia, dizia
Mattias, que não se importava nem um
pouco com a prisão da russa. Naquele
momento, sentia-se somente como um
grande caçador de tesouro. Quem sabe
um Ali Babá, um Indiana Jones ou um
viking do século XXI.
Mattias olhou nos seus pés depois de
tirar suas botas Caterpillar e fez uma
cara de desagrado. Isso porque o cheiro
estava terrível. Fedia. Precisava urgente
de um banho. A ansiedade, porém, o
dominava. Queria logo retomar as
pesquisas. Fora dada a largada para a
corrida ao Tesouro de Iduna, e Mattias
não via a hora de pôr as mãos naquela
fortuna de valor incalculável. Ele, que
sempre se mostrou ambicioso a ponto de
desejar seu rosto impresso em notas de
dinheiro ou selo de correio, sorria com
a grandiosidade de um magnata.
Encontrar um tesouro é sempre o
produto de muita paciência — aspirou e
expirou profundamente, estufando o
peito como um pombo. — Eu soube
esperar — gargalhava, embora seu
corpo ainda carregasse bastante tensão
provocada pelos últimos
acontecimentos. Afinal, quase fora pego.
Tinha sido por pouco...
Considerava tamanha sorte a
farmacêutica ter aparecido por lá. Coisa
do destino. Mattias se considerava um
grande sortudo e ria de prazer.
Foi até o armário chaveado onde
guardava as fotocópias ampliadas dos
desenhos da Edda em Prosa. Seria mais
fácil observar os detalhes, e ele com
certeza precisaria. Se bem que ele
também tinha uma boa lupa. Pegou as
fotocópias enquanto falava para si
mesmo. Tinha esse costume de falar
sozinho. Porém refletiu: — As paredes
podem ter ouvidos — disse com uma
voz engraçada. Depois riu de si. — Mas
é muda. Com certeza. Ou teria dado com
a língua nos dentes sobre o esconderijo
de outros tesouros tão procurados no
mundo.
Lembrou-se que nas suas
curiosidades sobre caça ao tesouro tinha
encontrado em uma revista norte-
americana uma matéria sobre os cinco
tesouros mais procurados do mundo: o
Tesouro do fundo do Lago Guatavita, o
carregamento perdido do Nuestra
Señora de Atocha, as relíquias
familiares da Virgínia, o tesouro de
Lima, O tesouro da Noite Triste. Em
nenhum lugar ou lista, porém, tinha
referência ao Tesouro de Iduna. Que
alívio, pensou. Depois, riu novamente.
Pegou o mapa do Norte Europeu,
datado do século XVII, e um mapa atual
e colou com fita adesiva bem acima da
mesa. Lembrava o Geógrafo, do famoso
quadro do holandês Jonhanes Vermeer.
Só que com mais tecnologia ao redor da
mesa.
O Cofre de Iduna era uma
verdadeira obra de arte. Não foi à toa
que a brasileira se interessou pela peça.
Ornado na tampa por trançados de uma
árvore, ramos, folhagens, uma águia, um
sol de oito pontas, lembrando uma Rosa
dos Ventos, esculpido em alto relevo
sobre um fundo de monstros
serpentiformes.
Nas laterais mantinham a mesma
superfície esculpida em alto relevo, com
a imagem de Odin montado no cavalo
Sleipnir entrando em Valhalla, o palácio
de Odin, pós-morte.
O cavalo mágico de oito pernas,
presente de Loki, o deus da Trapaça, foi
para se desculpar dos seus maus feitos
e, de acordo com a mitologia nórdica,
resultante do cruzamento de Loki, que se
transformou em égua branca para atrair
o Svadilfari, o cavalo do gigante
Hrimthurs, que o ajudava a construir o
muro ao redor de Asgard (uma espécie
de Olimpo Nórdico).
O gigante disfarçado de cavaleiro e
construtor trocaria a obra do muro pela
mão de Idun, a deusa da Juventude e
guardiã do pomar sagrado das maçãs da
eterna juventude. Graças a estas os
deuses mantinham-se sempre jovens e
saudáveis.
Na caixa havia também outros temas
familiares da iconografia nórdica e três
palavras escandinavas. A primeira era
vik – o masculino de viking – que no
sueco antigo significa baía. Uma
expedição guerreira feita pelo mar com
vikings, os homens que participavam
dessa atividade.
A segunda palavra era vår, uma
palavra escandinava que designava um
grupo de soldados comerciantes ligados
por um juramento, os våringar ou
varegues. Os varegues foram a
designação dada aos vikings suecos, que
se tornaram parceiros dos eslavos.
Inclusive, a pedido deles, se
estabeleceram no continente eslavo para
proteger as mercadorias dos ataques do
povo daquela região. Assim, os
varegues foram chamados de ruotsi –
nome dado pelos antigos finlandeses à
Suécia. Logo após, nas proximidades de
Novgorod, os suecos fundaram a
dinastia do rus, que significa, ruivo,
numa interpretação mais contemporânea.
Assim, os suecos deram o nome à
Rússia. O ano de 988, com o batismo do
grão-duque Vladimir de Kiev, marcou o
nascimento da Rússia.
A terceira palavra em nórdico antigo
era Balðr, Balder, que, segundo a
mitologia nórdica, era filho de Odin.
Segundo alguns historiadores, remetia
também à comunicação com a palavra
bælte, uma palavra em dinamarquês que
significava faixa – naquele século se
referia ao atual Mar Báltico.
Essas palavras, para Mattias,
pareciam traçar uma rota. Ele pegou o
mapa antigo e o mapa atual e olhou
novamente. O Mar Báltico, circuncidado
pela Península Escandinava e a costa da
Polônia, Estônia, Letônia, Lituânia,
Rússia e Finlândia, parecia fazer
sentido, pois Magnus Gabriel de La
Gardie tinha nascido em Reval, na atual
Tallinn, Estônia, e tinha sido governador
da Letônia. Aquelas regiões se
comunicavam bem como provável local
do esconderijo do tesouro.
Mattias suspeitava que havia
chegado perto do alvo. Sorriu,
entusiasta, ao olhar para o mapa. O
espaço no mapa entre a Suécia e a
Finlândia, formado pelo Golfo da
Finlândia, criava uma figura que remetia
à lembrança de um homem com o braço
estendido e a mão apontando para São
Petersburgo, na Rússia. Ele se
aproximou e disse em voz alta: — Seria
a figura de algum deus nórdico? A rota
dos varegues pelo Mar Báltico teria
algum significado quanto à localização
do mapa? O velho sacerdote acreditava
que poderia estar escondido nessa
região, pois ele encontrou no papel da
carta uma minúscula partícula de âmbar.
Desde a pré-história, as regiões
banhadas pelo Mar Báltico, como a
atual Lituânia, a Letônia e Estônia, são
as principais fontes de âmbar. Acredita-
se que o material foi utilizado desde a
Idade da Pedra, às vezes na forma como
ele saiu dos dutos e dos receptáculos
das árvores feridas. O sacertode, porém,
pediu para analisar o material
encontrado num laboratório na Suécia, e
a cavidade estava oca. Se tivesse sido
encontrado no seu interior algum
organismo, mesmo minúsculo, como
restos de insetos, crustáceos, anelídeos,
na exudação fluídica que cristalizou,
quem sabe apontaria alguma região
especifica.
Mattias tinha muitas informações,
mas não conseguia chegar a uma
conclusão, e isso lhe trazia um desgaste
emocional que exacerbava seus
sentidos. Vociferou: — Isso tudo me soa
a alguma trapaça de Loki, o deus da
mentira e da vigarice, mas eu tenho a
coragem de Thor e vou esmiuçar esse
empecilho com meu Mjölnir, ah vou!
Mattias olhou novamente as
inscrições na caixa de freixo: a árvore
de Freixo que, segundo os hennings,
representava o Cofre de Iduna; a águia,
representando o ouro; e o sol com oito
pontas, que lembrava a rosa dos ventos.
Poderia ser um sinal. Ponderou,
pensativo: — Claro que esse sol de oito
pontas desenhado debaixo do braço de
Odin montado em Sleipnir significa a
localização do tesouro.
Ele já tinha descodificado esse
símbolo, antes. Mattias pegou o livro de
geografia da época em que lecionava, e
leu em voz alta: — “A coordenada
geográfica desde a Grécia antiga, onde
foi concebida, visava facilitar a
localização de qualquer ponto na esfera
terrestre, a partir do cruzamento entre
um paralelo e um meridiano”.
Raciocinou ainda em voz alta: —
Peraí. Paralelo e meridiano me lembram
algo: o Sistema de Coordenadas
Cartesianas! “Penso, logo existo”.
Agora ficou claro! Quem fez o mapa do
Tesouro de Iduna foi o gênio matemático
René Descartes. Sim, inclusive além do
Cálculo e da Geometria Analítica, os
estudos de Descartes permitiram o
desenvolvimento da Cartografia, ciência
responsável pelos aspectos matemáticos
ligados à construção de mapas. Como eu
não pensei nisso antes; afinal, ele foi
amigo da Rainha Cristina e seus últimos
dias foram em Estocolmo, na Suécia,
onde Cristina o tinha como professor.
Agora entendo por que o tesouro nunca
foi encontrado: René morreu em pouco
mais de uma semana, ao contrair
pneumonia. E o segredo do mapa foi
com ele para o túmulo. Só pode ser isso.
A rainha deve ter pedido a ele para
elaborar o mapa, a fim de entregá-lo a
La Gardie. O que eles não esperavam é
que o matemático morreria num curto
prazo de dias. Por isso o tesouro não foi
descoberto até hoje. Com Descartes, o
segredo foi sepultado com ele.
Mas quem enterrou o Tesouro de
Iduna? O próprio Descartes ou a Rainha
Cristina? Era sabido que a Rainha
Cristina não se dava muito bem com o
estadista do governo sueco na época,
Axel Oxenstierna, que questionava as
suas ideias e filosofia de vida, e este
não simpatizava com Gabriel de La
Gardie. Qualquer movimento, tanto da
Rainha Cristina como de La Gardie
poderia atrair a curiosidade de
Oxenstierna. Logo, a Rainha Cristina,
obstinada como só ela conseguia ser na
época para uma mulher, bem poderia ter
deixado o tesouro enterrado a ter que
revelar para seu aparente desafeto. Se
ela foi capaz de abdicar ao trono para
seguir sua ideologia de vida, poderia
facilmente abrir mão de um tesouro para
não o entregar a quem não desejasse. Ou
quem sabe tenha pedido ao amigo
Descartes fazer isso por ela e elaborar
um mapa, e seria até um tipo de diversão
para ela ao observar seu queridinho La
Gardie batendo a cabeça para
decodificar tanto segredo. Depois da
queda de La Gardie, quando ele ficou
arruinado financeiramente, por que não
foi atrás do tesouro? Seria por que o
deslocamento da rainha, que deveria
saber o local do tesouro, daria margens
para muita especulação? Seria mais
prudente outra pessoa ter feito o serviço
por ela. O fato é que existem muitas
questões e poucas respostas.
Mattias pensou e falou para si: —
Não posso esquecer que René Descartes
foi o autor da famosa frase: “A dúvida é
o primeiro passo para se chegar ao
conhecimento”. Há muitas dúvidas
envolvendo esse tesouro. Agora, um fato
curioso é que o número oito aparece
com frequência nos desenhos; vejamos:
Oito patas do cavalo mágico Sleipnir,
que também tem oito letras. Oito pontas
do sol. Oito pontas no chapéu de Odin,
na figura do códex, e que tem desenhada
a mesma figura na caixa de freixo.
Havia uma gravura, mas estava tão
gasta pelo tempo que precisaria de sua
lupa para saber o que significava. Foi o
que Mattias fez, ao olhar a imagem com
cuidado. Parecia um número e uma letra.
7h.
Ele se sentia iluminado por tão
reveladora mensagem. O mesmo número
que aparecia na figura do Códex.
Mattias estava relutante em usar a
internet para suas pesquisas. Não queria
deixar nenhuma pista registrada em
memória eletrônica. Gostava de usar
livros impressos, mas naquele momento
a agilidade que a internet poderia lhe
oferecer não era nada desprezível.
Tomou a decisão de, assim que
encontrasse o tesouro, destruir o laptop.
Então, com toda a determinação o abriu
e iniciou as pesquisas sobre René
Descartes, para saber mais um pouco
sobre seu método cartesiano. A
especialidade de Mattias estava bem
longe da matemática.
Jogou no Google a palavra
Descartes e logo apareceram vários
sites e blogs falando sobre o autor
francês de Discours de la Méthode (O
Discurso do Método), publicado em
1637.
Mattias não teve dúvidas de que fora
mesmo o matemático a planejar o mapa
do Tesouro de Iduna, quando viu que na
folha de rosto da primeira edição do
Discurso do método tinha impressa uma
ilustração de um homem cavando o solo
com uma pá, como se estivesse
enterrando um tesouro. Suspirou e disse:
— Sampo! (o tesouro) Em seu
entusiasmo, não se atentou que o ano de
1637 estava havia uma década anterior
ao encontro de Descartes com a rainha
Cristina. Mas o detalhe nada tinha de
relevante. E concluiu: — Agora posso
traçar rumos mais claros. Não me resta
dúvida de que foi René Descartes quem
elaborou o mapa do Tesouro de Iduna.
Com certeza ele usou a matemática para
traçar o local.
Mattias achou interessante fazer uso
dos quatro passos do Discurso do
Método para raciocinar, conforme
aconselhava o autor do método.
Primeiro: receber informações,
examinando a racionalidade. Segundo:
analisar tudo o que se agrupou. Terceiro:
sintetizar isso tudo, ou seja, resumir e
chegar a uma conclusão. Quarto e final:
enumerar e revisar minuciosamente as
conclusões.
Como professor, já estava
acostumado a usar o Power Point para
fazer aulas. Abriu o programa e iniciou
agrupando os dados que tinha em mãos.
Colou o mapa do Norte da Europa
atual e o mapa do século XVII um ao
lado do outro.
Ao lado, a figura em que aparecia
Odin montado no cavalo mágico
Sleipnir, chegando a Valhalla. Odin, com
apenas um olho, a cabeça virada para a
parte traseira do animal – o mesmo
desenho presente na Caixa de Freixo.
Mattias achou que a figura no mapa
formando o Mar Báltico, entre a
Península Escandinava, a Europa
continental, e as Ilhas Dinamarquesas
lembrava os mesmos contornos de Odin
montado no cavalo mágico Sleipnir.
Mattias fez um contorno com lápis
num papel de seda, considerando que a
cabeça de Sleipnir seria desenhada
pelos contornos de Skagerrak, um
estreito que fica ao Sul da Noruega e
contorna o Norte e Nordeste da
Dinamarca, unindo o Kattegat, a Sul e o
Mar do Norte, a Oeste. De fato o
desenho tinha muita semelhança com os
traços do mapa.
Depois de chegar a essa conclusão,
observou que o número 7I hh tinha o h
circulado e isso o fez lembrar de uma
casa do tabuleiro de xadrez.
— Claro — disse para si — o
Sistema de Coordenadas Cartesianas de
René Descartes se comunica bem com
um tabuleiro de xadrez, e 7h se trata de
uma casa desse tabuleiro. O tabuleiro
possui 8 lados e 64 quadrados, em que
Y seria representado pelos números de 1
a 8, e X pelas letras de a a h. Mais uma
vez o número oito aparecia.
Oito em nórdico tem várias escritas.
No norueguês, åtte; no sueco, åtta; no
dinamarquês, otte. Mattias pesquisou
todos esses nomes no Google com
referência ao ano de 1650, ano de
confecção do mapa do tesouro, e
conseguiu encontrar uma localização.
Tratava-se de um pequeno arquipélado
de oito ilhas, sete delas minúsculas e
uma ao centro. Esse arquipélado ficava
nas águas do Mar Báltico, entre
Estocolmo e Estônia. A maior ilha tinha
apenas 48 quilômetros de norte a sul,
por 28 quilômetros de leste a oeste, e a
forma geográfica lembrava um
hexágono, mas sem contorno oblogo, ou
seja, o meio não tinha inclinação ao
centro. Seu interior elevado se fazia
coroado pelo Snaeffel, que significava
“montanha de neve” – segundo muitos
historiadores, um nome dado pelos
vikings. Uma grande planície costeira
estendia-se para o norte, e uma faixa
costeira relativamente infértil envolvia
toda a ilha. Parte representativa de seu
território é impróprio para a agricultura,
pecuária e habitação, motivo pelo qual a
ilha é deserta.
Agora parecia fazer sentido o
número oito ter aparecido algumas vezes
repetido. Mattias jogou no Google Maps
o nome da ilha para observar melhor a
geometria da ilha. Copiou e colou no seu
Power Point. Percebeu que a ilha tinha
forma hexagonal bem parecida com a
geografia da França, onde René nasceu.
Avançou mais a pesquisa e descobriu o
novo nome da ilha: Ängel, em sueco; em
português, Anjo. Conforme os relatos
históricos, a história de Ängel está
intimamente ligada à Suécia e às suas
disputas na região com a Rússia e a
Finlândia. Anjo fez parte do reino da
Suécia até a guerra de 1808-1809,
quando a Suécia foi forçada a entregá-la
à Rússia. O nome passou a ser Anjo dos
Russos, ou apenas Anjo Russo.
Quando o império russo começou a
desmembrar-se em 1917, esse impasse
foi levado à apreciação do recém
constituído Conselho da Liga das
Nações, que apresentou uma proposta
para tentar devolver o Ängel à Suécia.
Foi garantida à Rússia a soberania sobre
Ängel sob a condição da preservação da
ilha. Devido ao seu solo infértil, a ilha
sempre foi desabitada e decidiu-se que
seria uma zona desmilitarizada e neutra,
de modo a evitar que alguma vez viesse
a constituir uma ameaça bélica para a
Suécia. A proposta aprovada ficou
conhecida então como o “Acto sobre a
Autonomia de O Anjo”, que, em 1993,
passou oficialmente a ser chamado de O
Anjo Russo. Mattias reuniu toda a
informação que tinha em mãos e chegou
à conclusão de que a caça ao tesouro
que já exigira dele muito mais tempo do
que jamais se dedicara a outra coisa na
vida, todo o dinheiro que ele poderia ter
poupado para a investida à caça ao
tesouro, e toda a obstinação de pôr as
mãos naquela fortuna, tinha chegado
finalmente ao seu ponto nevrálgico.
Encontrava-se numa ilha nas águas do
Mar Báltico.
Agora ele só tinha que saber em que
ponto da ilha o tesouro estava enterrado,
pois esta parecia ser pequena, mas não
pretendia sair cavoucando para todos os
lados, não.
*
Mattias já tinha chegado à conclusão
de que aquele 7h se tratava de uma casa
no jogo de xadrez. Copiou e colou no
Power Point o tabuleiro de xadrez sobre
a geografia da ilha. No tabuleiro
quadrado com 64 casas, a posição 7h
ficaria a nordeste, à flor da água da ilha.
Mas a forma da ilha não era quadrada e,
sim, hexagonal. Mattias pesquisou na
internet novamente. Descobriu o
tabuleiro de xadrez hexagonal. Tinha
sido inventado séculos depois da morte
de René Descartes, mas com certeza este
sabia que seria totalmente possível essa
jogada. Na certa Descartes já previa
esse tipo de jogo bem antes de
Wladyslaw Glinski, em 1936.
No tabuleiro hexagonal, com 91
casas, muito popular no Leste Europeu e
com maior adesão na Polônia, o 7h se
desloca para NNE na rosa dos ventos,
sendo a norte-nordeste, o que fazia uma
diferença considerável quando se trata
de abrir buracos na terra ou na rocha.
Essa descoberta para Mattias foi tão
confiável quanto Thor confiava no seu
martelo mágico, o Mjölnir; e os lídios,
nas moedas de Creso, na Grécia Antiga.
Bergen – Noruega – maio de 2010.
Com Marlon em seus braços,
Eleonor estava diante da cama de Elisa,
no hospital, ao lado de uma enfermeira.
Eirik acompanhava-as. Aquela não era
primeira visita de Marlon a Elisa.
Estiveram lá algumas vezes. Elisa não
reagira. Embora Eleonor tivesse notado,
na vez anterior, que ela tentara mexer a
mão. Mas estavam todos com muita
esperança de que ela voltasse à
consciência e saísse daquela UTI, onde
se encontrava hospitalizada por mais de
vinte dias, e talvez tenha sido um
momento da mais genuína vontade que a
fez gestar aquele movimento, pensou.
O Hospital em Bergen tinha
autorizado a Pet Terapia – o carinho dos
animais de estimação com seus donos.
Análise comparativa de estudos com
grupos de pacientes sob o tratamento da
Pet Terapia mostrava resultados
animadores. Em alguns casos, os
cachorros pertenciam à empresa
especializada nesse tipo de tratamento;
em outros, eram os animais de estimação
do próprio paciente. Alguns exageravam
dizendo que fazia até efeito analgésico.
Elisa recebia a visita de Marlon todos
os dias. Os médicos admitiram tal
tratamento, pois já não viam mais
recursos na medicina alopática. Em
outras palavras, o médico intensivista
deixara bem claro: somente um milagre.
— Parece um anjo — disse Eleonor
com a voz embargada, ao olhar Elisa
deitada ali.
Eirik nada respondeu, apenas
observou Eleonor movendo-se para o
lado da cama para deixar Marlon em
contato físico com Elisa. Sua expressão
demonstrava uma ligeira irritação ou
desagrado, mas em nenhum momento
demonstrou nem com palavras nem
gestos, mesmo duvidando que aquilo
teria resultado positivo. Naquele
momento ele só queria manter um bom
pensamento para atrair boas energias
para sua amada esposa. Resolveu
quebrar o silêncio: — Vamos fazer uma
breve oração? — disse em norueguês.
Eleonor não entendeu nada do que
Eirik falava, mas quando ele juntou as
mãos em sinal de prece, respondeu: —
Sim, vamos rezar um Pai Nosso. — E
assim fizeram. Cada um na sua língua-
mãe. — O importante é a fé — Eleonor
concluiu.
Após a oração, Eleonor aproximou
Marlon de Elisa. Se ele pudesse falar,
diria: “Ei, levanta daí, Elisa, vamos
brincar no quintal”. Seus olhos caninos
expressavam ternura e gratidão, mas
estavam entristecidos. Claro que ele
sabia o que estava acontecendo. Os
cachorros têm esse dom. Têm sua
própria língua, seu jeito de dizer coisas
quando esfregam sua pelagem nas
pessoas e olham com aqueles olhinhos
piedosos e choramingam baixinho.
Marlon esticava o pescoço e espiava
Elisa com seus olhos redondos e de cor
indefinida. Depois farejava o ar e
abrigava a cabeça nas dobras do braço
de Elisa, que já tinha sido afastado do
corpo para esse fim. Eleonor o mantinha
em suas mãos para evitar que ele
batesse as patinhas no peito de Elisa.
— Bom menino — dizia Eleonor
quase sussurrando — é muito importante
o que está fazendo pela sua querida
Elisa.
Eirik testemunhava tudo aquilo com
certo espanto. A fria elegância da
fisionomia de Eleonor que ele conhecera
no Rio de janeiro estava agora tão
mudada. Ao lado da sobrinha, dava o
melhor de si, fazendo-o acreditar que
tudo acabaria bem. De certa forma
custava a pensar que Eleonor fosse tia
de Elisa; ele sempre a enxergara como
mãe. Eirik estava com o coração
partido.
Nisso entrou a enfermeira-chefe das
UTIs. Disse alguma coisa que Eirik
julgou não ter entendido direito. Não
podia ser verdade o que ele tinha
acabado de ouvir.
— O quê? — repetiu com
incredulidade na voz.
A enfermeira explicou novamente.
— Não vou aceitar isso! —
exclamou ele. — Não vou aceitar! Vocês
estão fora da lei.
— Pode ter certeza que não, Sr.
Eirik.
— Vocês sabem quanto eu pago de
imposto a este país, sabem? Daria para
manter este hospital por meses ou, quem
sabe, anos. Tenho certeza de que tudo
isso é por causa dos custos. Vocês só
pensam em dinheiro — gritou.
— O senhor precisa entender as
orientações do médico, não há mais o
que fazer. Nem a Pet Terapia está
resolvendo; ela não reage.
— Não é a esposa desse médico
monstro que está deitada nessa cama.
Não é sua filha. Por isso diz isso.
Recuso-me a assassinar minha esposa.
— Não é assassinato, Sr. Leiv. É
coerência! — exclamou a enfermeira.
— E o que é então? Eutanásia? E
Elisa, como médica, jamais concordaria
com tamanha maldade.
O transtorno com a notícia do
desligamento dos aparelhos que
mantinham Elisa respirando baniu seus
bons modos e Eirik não usou de
palavras educadas nem de tom refinado
para rebater sua fúria.
Eleonor não dizia nada, mas seu
silêncio dizia tudo. Sabia que algo de
muito grave estava acontecendo, mas
não entendia o norueguês. Tornou-se
uma testemunha petrificada de toda
aquela cena medonha. Rezava baixinho,
com Marlon apertado no peito, até que
este disparou a latir, como se dissesse:
“Parem com essa gritaria”. Eleonor saiu
do quarto levando Marlon e falou em
inglês para Eirik que queria voltar para
o hotel.
A enfermeira pediu que fossem à
salinha que ficava no final corredor
daquele andar para conversarem. Eirik
estava fora de si. Precisava se acalmar.
A notícia de desligar os aparelhos que
mantinham Elisa respirando o
atormentou. Acostumada com esse tipo
de atitude dos familiares e cônjuges dos
pacientes, a enfermeira já previa tal
cena. E a salinha ao lado também servia
para esse propósito.
Eirik fez um apelo: — Dê-nos três
dias, por favor. Três dias, eu peço.
A enfermeira fez que não com a
cabeça.
Desesperado, Eirik se jogou aos pés
da enfermeira e suplicou: — Eu pagarei
do meu bolso esse tempo. Por favor, não
desliguem o aparelho antes de setenta e
duas horas, por favor.
Eleonor, presenciando aquela cena
medonha, se pôs a chorar. Outras
enfermeiras da ala se aproximaram para
saber o que estava acontecendo. No
meio de tudo aquilo o médico
responsável por Elisa apareceu. Olhou
para Eirik ajoelhado no chão da salinha,
chorando e suplicando. Solitário, inútil
e completamente desamparado. Aquele
homem tão importante do ramo do
salmão que estampava a capa de
revistas e jornais importantes da
Noruega nada podia fazer para trazer de
volta a sua esposa. O médico se
aproximou e colocou a mão sobre o
ombro de Eirik, dizendo: — Devido à
grave natureza desse caso estou disposto
a falar com o diretor do hospital e fazer
uma concessão. Manteremos Elisa no
respirador por mais trinta horas, é o
máximo que posso garantir de momento,
mas o diretor clínico decidirá.
Eirik não respondia palavras. Sabia
que trinta horas não eram nada. Se em
três semanas ela não reagira, como
poderia reagir em apenas trinta horas?
— Quanto custa para que Elisa
continue?
— Não se trata de dinheiro, Sr.
Eirik.
— Se trata do quê, então — exigiu
saber.
— Não há mais nada o que fazer.
— Se não há mais nada a fazer,
então nada faremos. Deixe como está,
por favor. Eu me comprometo a pagar
cada centavo das despesas. Se eu perder
minha esposa, nada mais me fará
sentido.
O médico se calou. Depois repetiu o
que já tinha combinado: — Trinta horas,
Sr. Eirik e voltaremos a falar. Tente se
acalmar.
Eirik ficou ali ajoelhado, olhando o
médico se distanciar e sumir pelo
corredor do hospital. Ficou se
perguntando se ele pelo menos tinha
família, se tinha sentimentos. Não podia
ser tão frio daquele jeito.
Sentada no canto da sala e sem
entender nenhuma palavra encontrava-se
Eleonor com Marlon no colo. As
lágrimas brotavam e seu coração estava
moído. Podia claramente compreender a
gravidade do que acontecia, claro, e
tinha certeza de que se tratava do
desligamento dos aparelhos de Elisa.
Porém nada perguntou. Ficou meio que
paralisada. Passaram-se alguns minutos.
Eirik continuava ali prostrado e
chorando. Eleonor afastou a cadeira e
foi até ele. Abraçou-o e chorou junto.
Tem horas que só as lágrimas resolvem.
Lágrimas são as orações mais sinceras –
alguém já escreveu isso em algum livro.
— Foi um dia longo, Eirik, vamos
voltar ao hotel. Você precisa descansar.
Depois não há nada aqui nesta salinha.
As visitas já foram encerradas. Pelo
menos você toma um banho e relaxa um
pouco. Depois podemos voltar e esperar
as 30 horas. O que se pode fazer, meu
Deus? A enfermeira já tem seu telefone
celular. Se precisar telefonar, com
certeza elas o farão. E eu já anotei o
telefone do hotel e deixei no posto de
enfermagem.
— Não estou cansado. Nem tenho
vontade de banho. Tenho combustível de
alta octanagem para queimar. Não quero
arredar o pé daqui.
— Então vamos tomar um café no
restaurante do hospital, no piso térreo.
Depois você volta; eu preciso retornar
ao hotel. Marlon não pode ficar aqui
depois da Pet Terapia.
Eirik concordou com a cabeça e se
levantou do chão. O seu telefone tocou.
Era Roger querendo notícias de Elisa.
Ele telefona o tempo todo. Deve ser
remorso, pensava Eleonor. Eirik passou
o telefone para Eleonor, e os dois
saíram em direção à cafeteria.
Lofoten - Noruega - final de maio
de 2010.
Mattias pediu Permisjon – a
permissão para se ausentar por seis
semanas da base salmoeira em Lofoten –
mesmo com a ausência de Eirik e toda a
situação triste que pairava sobre a RLM
Seafood, em razão do ocorrido com
Elisa e sua iminente morte, como todos
já comentavam. Com recurso poupado
para aquele fim, Mattias se sentia pronto
para sua partida.
Ele tinha intenção de alugar um
barco de pequeno porte na Suécia, mas
sabia da sua ambição pelo mundo
náutico. Havia muito tempo mantinha
hábitos de fantasiar o futuro como um
magnata a viver num iate de luxo,
navegando pelas águas de paraísos
tropicais ou mediterrâneos. Não podia
sentir maior prazer ao imaginar-se em
frente a um pôr do sol deslumbrante nas
águas do mar Egeu, brindando a boa
vida em uma jacuzzi do flybridge com
uma taça de champanhe bem ao estilo
“eu quero, eu posso, eu desfruto”. Logo,
ele sabia que sua ambição não o
deixaria alugar um barco qualquer para
a caçada ao tesouro que lhe prometia
essa vida de estrela de cinema.
Tinha em mãos a carta de
autorização da marinha russa para
navegar nas cercanias da ilha e
desembarcar por um período não
superior a quarenta e oito horas, graças
à ajuda de sua amiga russa e seus
parentes oficiais de alta patente nas
Forças Armadas da Rússia. Afinal,
quem suspeitaria de um inofensivo
mergulhador? E bem que os russos até
gostavam da ideia de um norueguês
imerso em águas com grande quantidade
de esterco de porco dinamarquês. O
Báltico não era o mesmo há anos, riam
os russos.
*
Em todos os anos, desde que se
tornara obstinado pelo Tesouro de Iduna,
Mattias acumulou de aparelhos
detectores de metais a dinheiro para seu
sustento no período da caça. Depois que
descobriu sobre o Tesouro de Iduna, sua
vida passou a se resumir a revistas de
exploração de tesouros e seus modernos
aparelhos, alguns computadorizados, e
inclusive sondas de mergulho.
Mattias não tinha intenção de
registrar sua passagem por aquela região
e decidiu fazer todo o percurso até à
Suécia via trem e ônibus com bilhetes
comprados em dinheiro. Seria possível
partir de Narvik, norte norueguês, para a
Suécia com linha direta para Estocolmo.
Os trens ofereciam cabine com banheiro
privativo, e ele poderia descansar na
viagem. Da Suécia alugaria um barco
com seu passaporte falso e partiria para
a ilha Anjo Russo descendo as águas do
Mar Báltico. Seu plano parecia perfeito.
Hospital de Bergen - Bergen -
Noruega - maio de 2010.
Quando chegaram à cafeteria,
Eleonor pediu um café puro para Eirik e
um chocolate quente para ela. Nenhum
dos dois parecia se sentir à vontade
diante de tudo o que tinha acontecido.
Apenas permaneciam em silêncio. Os
rostos fechados como um botão de flor
congelado e que jamais se abriria
naquela sepultura de gelo.
— Trinta horas! — disse Eirik quase
gemendo e com ar tresloucado.
— Eirik? — Eleonor tinha os olhos
cheios de lágrimas. Com Marlon no colo
e o ajeitando com a mão esquerda, tocou
a mão dele com a sua, direita. — Vai dar
tudo certo. Tenha fé. Deus é grande,
Eirik.
— Eles vão desligar o aparelho que
mantém minha Elisa respirando. Eles
irão matá-la. Eu não posso deixar isso
acontecer. Eu não posso deixar essa
barbárie.
— Calma. Eu tenho certeza que eles
não irão fazer isso. Estão apenas
preparando seu espírito caso ela venha
partir, e isso nós dois sabemos que
poderá acontecer a qualquer hora,
mesmo antes das trinta horas estipulada.
Eirik gemeu e engoliu um soluço
dolorido. Eleonor tentava se manter
firme, mas não sabia até que ponto. Seu
emocional estava chegando ao limite
suportável. Ela desejava chorar, gritar e
pedir socorro a sabe-se lá quem.
— Oh, céus! — murmurou Eleonor
com dor, muita dor na voz.
Marlon tornou-se irrequieto. Saltou
do colo de Eleonor e foi em direção à
porta da saída para o pátio externo.
Eirik aconselhou-a a deixar que ele
saísse para fora. Além de dar um pouco
de alívio com seus insistentes grunhidos,
quem sabe precisasse urinar.
Não existia naquele momento
nenhuma palavra que fosse
tranquilizadora. Eleonor pensou em falar
sobre a infância de Elisa, mas afastou a
ideia, pois poderia agravar mais ainda o
que agravado estava. Tudo parecia doer
ainda mais. Ficaram em silêncio por
longos minutos. Tomaram suas bebidas e
serviram-se de mais silêncio.
Eleonor pediu licença e foi ao
banheiro lavar o rosto, que não podia
suportar tantas lágrimas e escorrer de
nariz, o que já marcara sua pele de
vermelho.
Quando voltou do banheiro com a
face um pouco mais renovada, perguntou
a Eirik se desejava voltar à UTI e
indagou sobre Marlon. Eirik respondeu
para não se preocupar, que Marlon não
se perderia no pátio. Voltaria em breve.
Nisso o telefone celular de Eirik
tocou. Eleonor deu um suspiro de
cansaço já imaginando que seria Roger
atrás de notícias. Eirik olhou o número e
suas mãos começaram a tremer. O
número do telefone direto da UTI. Não
conseguia apertar a tecla verde para
receber aquela notícia. Não. Ele não
atenderia. Percebendo a reação dele
pela cor pálida do rosto, que se misturou
à ausência de cor dos lábios trêmulos,
olhos injetados, então Eleonor pediu que
Eirik lhe passasse o telefone. Assim o
fez e saiu pelo pátio em convulsões de
choro. Queria gritar. Sumir dali. Não
podia ter acontecido aquilo com a
mulher que ele tanto amava. Naquele
momento de dor e desconsolo ele
praguejou o nome de Liudmila: —
Maldita. Se fez de amiga. Criamos uma
cobra dentro da nossa casa. Você vai
pagar caro, sua russa maldita. Você não
perde por esperar.
Enquanto falava desordenadamente e
lutava contra as emoções, Eleonor se
aproximou e chamou-o com energia na
voz: — Eirik!
— Por favor, não me diga nada.
Peço-te por Elisa, não precisa mais
gastar munição comigo, já estou morto.
— Eirik! — repetiu Eleonor o nome
dele mais umas três vezes para que Eirik
finalmente olhasse para ela. Seus olhos
estavam incrédulos, arregalados e secos.
Ela se aproximou dele e, segurando
com firmeza suas mãos, disse: — Eles
não mais desligarão os aparelhos em
trinta horas. Eles acabaram de desligar.
Eirik olhou incrédulo para Eleonor
e, soltando suas mãos, deu um soco
violento no ar e berrou a todo pulmão:
— Canalhas! Canalhas!
— Elisa não precisará de aparelhos,
Eirik. Não precisará. Entenda, eu estou
aqui há alguns minutos tentando contar a
você, mas não me deixa falar. Agora
olhe para mim —ordenou Eleonor.
— Eu não quero saber de nada. Por
favor, não me obrigue a isso.
Eirik limpava o rosto com a manga
da camisa, que já estava ensopada.
Ainda soluçava do choro explodido há
pouco. Uma corrente de ar bateu em seu
rosto, e ele se encolheu pelo frio
daquela fresca. Como uma criança
mimada que não quer ouvir os apelos
dos pais, ele tapou os ouvidos com as
mãos e falava repetidamente: “Não
quero ouvir... Não quero ouvir”.
Eleonor tirou suas mãos do ouvido e
disse energicamente: — Elisa acordou!
— E-E-Elisa... o quê?
— O que você ouviu, meu querido
Eirik. Elisa acordou do coma e está
viva.
— Você tem certeza?
— Foi o que entendi perfeitamente.
Os dois se entreolharam e saíram
andando, apressados, como se tivessem
combinado antes o ritmo imposto aos
pés, rumo à UTI.
Suécia - final de maio de 2010.
Mattias não resistiu e gastou mais do
que podia para alugar um barco Spirit
Ferretti 50 Millenium ano 2002, barco
completo da grife italiana conhecida
como a Ferrari do Mar, equipado com
dois motores Volvo D12 de 700 hp, três
cabines, cabine de marinheiro, acesso
ao flybridge pela cabine e pela escada
de popa, painel eletrônico, gerador
Kohler de 16kva, GPS, radar, sonar,
farol de milha elétrico, carregador de
bateria, guincho de proa e fogão
elétricos, TV, DVD, som home theater,
banheiro e ducha com boiler (água
quente), frigobar e suporte de bote em
inox. A cozinha era equipada para o
preparo de alimentos e dispunha até
mesmo de taças de cristais.
A ilha era desabitada e
desmilitarizada. Com o solo
improdutivo e o clima inóspito, não
havia interesse de investidores na ilha e
tampouco do governo russo em
colonizá-la. Havia, inclusive, uma velha
lenda contada pelos corsários dos
séculos passados, que atravessaram por
aquelas rotas e que todos acreditavam e
deveria ter sido inventada pelo autor do
mapa do tesouro para que marinheiros
ou piratas não se aproximassem do
suposto local do esconderijo do tesouro.
A crença dizia que as navegações
que passassem por aquele arquipélago
não teriam futuro garantido. Muitos não
voltaram para contar. Isso porque a
figura de uma noiva fantasma, salpicada
de sangue, aparecia numa reluzente
visão sob a luz da lua. Ela tinha sido
assassinada pelo noivo a bordo de um
navio que passava por aquela cercania e
jogada naquela ilha. Isso trouxera
maldição àquele lugar. Esse conto foi
relatado com tanta frequência que os
viajantes evitavam passar por aquela
rota. A maldição era que os tripulantes
enlouqueciam, como os marujos gregos,
ao ouvirem o canto das sereias. Outros
acreditavam numa versão em que a
figura branca seria Loki, o deus da
Trapaça e da Maldade, metamorfoseado
de falcão num voo para Jötunheim, a
Terra dos Gigantes. E por onde Loki
passava, a encrenca estava garantida.
Ninguém se arriscaria e enfrentar o
malfeitor de todos os malfeitores.
O arquipélago ficou conhecido como
Anjo por ter a circunferência de oito
ilhas, sendo uma maior no centro, de
forma hexagonal, que lembrava
vagamente a figura de um anjo.
Førde - Noruega - junho de 2010.
A vida parece ter caprichos
misteriosos, enigmas que jamais iremos
decifrar. Elisa tinha acordado de um
estado profundo de coma – o conhecido
quase-morte. Os médicos consideraram
um milagre não ter tido uma hemiplegia,
paralisia parcial. Quando acordou,
Marlon estava em seus braços. Uma
fidelidade inconfundível, todos
repetiam. Foi despertada como uma
cinderela por um príncipe de três patas,
Marlon tinha perdido uma perna no
acidente no Rio de Janeiro, como a
mídia se referia ao acontecido. Elisa
ficou muda por três dias. Nenhuma
palavra. Depois que voltou a falar, não
saía nada em português ou inglês,
somente o norueguês. Falava como
nativa. Causou estranheza porque passou
a pedir cigarros. Sempre tivera pavor de
nicotina. Eirik não questionou aquela
estranheza. Queria que a esposa não se
aborrecesse. Aquilo haveria de passar
com o tempo. Aquelas maneiras que não
lhe eram comuns deveriam caracterizar
um tipo de ressaca pós-coma.
Elisa mal recebeu alta hospitalar, e a
polícia norueguesa, como aves marinhas
famintas num oceano sem perspectiva de
peixe, a procurou para os
interrogatórios. Elisa repetia sobre o
que se lembrava, mas parecia ainda
imersa em águas profundas, os
pensamentos turvos, como a água
daquele imenso mar. Ela custava a puxar
algum fôlego para subir às margens das
recordações e espiar o que lá tinha
ficado. Tudo tão distante. Não podia
saber até onde era real ou imaginário.
Com toda desenvoltura no Nynorsk,
o novo norueguês, ela desabou a falar:
— Quando voltei da cozinha, nem
bem firmei os pés no consultório e fui
atingida. Não tive tempo de olhar quem
tinha me acertado a nuca. Mas, quando
enfim olhei, só deu tempo de, num
relance, ver uma luz branca, forte e
brilhante que subia e descia e vinha de
todas as direções direto para minha íris,
e aquilo me cegava. E, novamente,
alguém me golpeava na nuca. Aos
tropeços tentei me segurar na cadeira
para ver quem me agredia daquela
maneira. Ouvia somente sons, como de
uma música estranha. Senti uma dor
lancinante na cabeça. Entrei em pânico.
Ainda tive o pensamento no bebezinho
que estava no meu ventre. Tentei pedir
ajuda, mas o que fiz foi cair no chão e
ficar ali. Imóvel, sangrando e com a
vista escura. O medo de morrer se
tornou menor que o de perder meu bebê.
Aquilo não poderia ser verdade. Não
podia. Senti o sangue descendo do útero
e escorrendo pela minha coxa. Um pavor
gigantesco me espremeu o peito e, então,
desmaiei.
Pausa. Limpou os olhos com grossas
lágrimas. Não podia se lembrar de mais
nada. Nem mesmo dos verões felizes ao
lado de Liudmila, em que colhiam bagas
e cogumelos nas montanhas. Nem da
caixa de freixo. De nada mais ela se
lembrava. Nem mesmo da caneta Mont
Blanc que encontraram caída no chão do
consultório, no dia do atentado, ela
conseguia se lembrar.
— Você não se lembra mesmo de
mais nada, Elisa? — indagou o policial
enquanto segurava uma caneca de café
de alumínio, comprada num posto de
gasolina.
— Eu tento. Eu quero. Eu me
esforço, mas nada consigo. Só consigo
me recordar dessa passagem que lhes
falei porque foram as imagens que eu
via o tempo todo enquanto viajava pelo
mundo do desconhecido no quase-morte.
Encontrei-me com dois bebês nos
braços de uma mulher loira, de cabelos
trançados com a simetria do trigo. Eles
pareciam sorrir para mim. Quando eu
me aproximava, eles sumiam. Mas isso
foi lá onde estive. Não aqui. Isso foi lá
no outro andar da vida.
Elisa pediu cigarro.
— Não temos cigarro — disse o
policial.
— Então, eu preciso ir.
Silêncio. Fim da primeira entrevista.
Mar Báltico - maio de 2010.
Na névoa branca de granizo e gelo, a
Spirit Ferretti deslizava sobre as águas
do Mar Báltico, enquanto Mattias, um
pouco desorientado, praguejava como
todo marinheiro.
Ajustou o GPS e relaxou, afinal o
mar Báltico para ele não passava de
uma tira de água. Freki dormia ao lado
da serva, na cabine. Relutara em trazê-la
e ter de revelar o seu segredo, mas
repensou e concluiu que ela estaria
melhor ao seu lado do que na mira da
polícia. Então, meio a contragosto abriu
o segredo do possível tesouro.
Havia alguns dias que Lyubov,
chamada Luba, tinha alugado um
pequeno quarto na periferia de
Copenhagen, onde se refugiou. Tinha
levado Freki consigo. Nina, por sua vez,
ficou aliviada por ter se livrado do
cachorro do esposo, com o qual ela
pouco simpatizava. Nina, dona de um
temperamento dócil, parecia não ligar
muito para a amizade de Mattias e Luba,
se fiando na condição de professor e
aluna.
Mattias tinha receio de que Liudmila
já tivesse revelado à polícia sobre sua
irmã, Luba. Isso poderia atrapalhar seus
planos e ele não podia arriscar; melhor
ficar com sua assistente sob as vistas.
Não queria se preocupar com essa
questão naquele momento. Primeiro
queria encontrar o tesouro e depois
resolveria o que fazer com a serva – que
se revelava cada vez menos serviente.
Uma irritação tomou conta dos
nervos de Mattias ao imaginar a ilha
tomada por um lamaçal misturado com
flocos de gelo, o que dificultaria e
bastante seu trabalho. Se pelo menos
Freki fosse um cachorro farejador, como
os que farejam trufas sob o solo na
Toscana, seria de muita utilidade. Mas
sendo um lobo, Freki só farejaria carne
fresca. A ilha, pelo que Mattias
estudara, se tratava de solo infértil e
estaria desabitada, mas ele achava
impossível que por ali não corresse
nenhum animal pequeno que Freki não
pudesse abater para jantar. Mattias tinha
comprado alimento suficiente para uns
três ou quatro dias, e deixara alguma
coisa na geladeira do barco, mas tinha
receio de precisar ficar na ilha por mais
tempo, apesar da permissão por apenas
dois dias. Mas quem lá iria se dar ao
trabalho de se abalar para a ilha a fim
de averiguar sua estada por alguns dias
a mais? Não era o momento para pensar
em nada daquilo. Só não poderia
esquecer que Freki tinha instinto
selvagem e a fome não combinava nada
com esse importante detalhe.
*
A claridade da manhã descortinava o
breu da alta madrugada. Mattias divisou
o escolho da ilha, que não estava tão
longe.
— Lá está ela — disse em um
frêmito de frenesi.
Nada se assemelhava a uma ilha
mágica celta coberta pelas brumas e
tampouco algum mago Merlin viera
recebê-los, como nos filmes a que
Mattias assistia quando pequeno.
Apontou confiante para o alvo.
Contornou o barco para o norte-
nordeste. O quadrado que ele havia
marcado em seu mapa seria naquela
encosta.
Førde - julho de 2010.
— Está na hora da gente ter uma
conversa, Elisa — interpelou Liudmila a
uma esquiva Elisa. — Eu sei que
palavras podem perder o sentido quando
ações cruéis nos machucaram. Eu fui tão
vítima tanto quanto você, embora os
golpes tenham ferido minha esperança e
minha alma. E quem lá se preocupa com
elas? Não estou dizendo que ferimentos
físicos são menos ou mais importantes.
Elisa interrompeu: — Eu fui ferida
de morte, Liudmila. Duas vezes —
desabafou Elisa, com uma expressão
facial denunciando o incômodo em estar
ali, o olhar perdido como se tivesse
voltado há pouco de um outro mundo.
De fato, voltara.
— E eu estou morta, Elisa. Ser
ignorada por você e por Eirik, da forma
como tenho sido, mesmo após o tribunal
me julgar inocente, mata qualquer ser
com um pouco de sentimento. Sei que
nossa viagem pode ser ruim e as
estradas podem ser perigosas, pequenas,
estreitas, malconservadas ou largas,
seguras e confortáveis, não importa. Em
algum momento um pôr do sol nos
surpreende no final de alguma delas. Ele
não se altera com a condição das
estradas que viajamos. Ele está lá para
todos. Assim eu acredito que é a justiça.
E se estou aqui, hoje, é porque acredito
no direito de me expressar. Nem que
seja a última coisa que faça na minha
vida.
Liudmila encarava os olhos esquivos
de Elisa. Depois prosseguiu em meio às
baforadas que a amiga soltava a cada
tragada no cigarro.
— Não sei se você se lembra dessa
frase de seu tio Roger, que me disse
várias vezes: “Nosso peito pode até ser
uma gaiola de ossos, mas o coração
sempre será a porta que estará aberta
para libertar os pássaros aflitos para o
voo. Porque não há gaiola que prenda
um pássaro desejoso de liberdade,
quando se tem uma porta tão belamente
escancarada”.
Estou aqui com o coração aberto
para contar a minha história, porque até
mesmo o sofrimento nos pode ser útil.
Mesmo não se lembrando de mim, da
nossa amizade, é importante que eu
conte a você um pouco de mim. Os
pássaros do meu peito estão aflitos para
bater asas e alçar voo. Só assim eu terei
a paz de que preciso.
Mesmo sem nenhuma resposta ou
expressão de incentivo por parte de
Elisa, Liudmila começou a falar: —
Desde muito pequena eu espiava da
minha janela do quarto de dormir o
horizonte, lá ao longe. Quem poderia
viver atrás daquela linha em um espaço
tão azul? Seria uma terra melhor para se
viver? Um povo mais feliz dos que
viviam onde eu me encontrava? Seriam
mais sorridentes, mais amados, e quem
sabe saberiam amar até mais... Tudo era
uma questão de me mover e descobrir.
A inquietude me levou aos livros
para descobrir mundos, e esses mundos
me fascinaram. Eu queria pertencer a
eles. O que existia ao dobrar a esquina
eu já sabia; queria saber o que existia ao
ultrapassar a linha que sumia diante dos
meus olhos. Aquele brilho todo, aquele
azul que lembrava o céu e a liberdade
das aves selvagens. Aquilo tudo
representava esperança. Eu queria viver
em outro lugar. Criar meu próprio
caminho e meu próprio destino. Mas o
passado é atrevido e nos persegue. Ele
não fica onde o deixamos. Ele nos
acompanha ao longe, sempre em
derredor da nossa felicidade, esperando
como lobo faminto uma brecha para
atacar.
À noite acordo com a voz da minha
mãe: “Filhinha, por favor, nunca se volte
contra sua irmã. Ela é doente, mas é sua
irmã. Vocês foram tudo que sobraram do
seu pai. Ele esteve em Tchernóbil.
Salvou muitas vidas. Seu pai foi um
herói”.
Minha mãe me mostrava, repetidas
vezes ao ano, as medalhas e estrelinhas
que meu pai tinha recebido. Ela até
enquadrou os diplomas e as cartas de
agradecimento do presidente do partido.
— Eu penso sempre em Roentgen.
Em radiação. Em átomos. Parece que
isso tudo sempre estará grudado em mim
como uma segunda pele.
Nunca desejei ver, nem por
fotografia, a cidade de Pripyat, na
Ucrânia, antiga União Soviética, onde
ficava o reator que explodiu. Segundo
minha mãe me conta, a cidade ficou
desolada e abandonada, como ficou a
vida de quem lá viveu e nos vilarejos ao
redor. Eu nunca conseguia olhar para as
fotos. Um cemitério que já teve vida.
Hoje serve apenas para turista curioso e
radical visitar e tirar fotos para exibir
nas redes sociais. Mas as fotos não
podem conter tanta dor do que foi
Tchernóbil para quem viveu lá e
precisou perder tudo para sobreviver.
Perder não coisas que dinheiro pode
comprar, mas perder o mais importante:
o pai, a mãe, os irmãos, o marido, os
vizinhos, os cachorros, os gatos, os
coelhos, as hortas, o
bosque...tudo...tudo...
— Eirik me disse que seus pais
moravam na Dinamarca — interrompeu
Elisa.
— Minha mãe nasceu em
Leningrado, a atual São Petersburgo, e
meu pai em Moscou, mas viviam em
Minsk, na Bielorrússia, onde meu pai
servia. Ela trabalhava como
farmacêutica e meu pai era militar.
Tinham se casado havia poucos dias. No
dia 26 de abril de 1986 estavam em lua
de mel, em Moscou. Reservaram um
hotel pomposo, perto da Praça
Vermelha, ao lado do Kremlin. Estavam
felizes. Eles se amavam tanto, como nos
filmes se amam. Tinham planos para o
futuro e queriam muitos filhos. Um
telefonema da base militar na manhã
seguinte, o dia 27 de abril, acabou com
a alegria de meus pais. Ele teria que se
apresentar imediatamente para ajudar
nas ordens de evacuação das aldeias
vizinhas do reator que tinha explodido.
Disseram que tinha sido somente um
incêndio. O espírito patriótico do meu
pai não o levou a pensar em nada,
apenas em obedecer. Minha mãe já tinha
estudado sobre radiação na faculdade.
Leu muito sobre os Hibakusha, nome
pelo qual são conhecidos os
sobreviventes das explosões atômicas
em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, na
Segunda Guerra Mundial. Sabia dos
malefícios que Roentgen poderia causar
na saúde e impedir de a pessoa ter
filhos. Minha mãe teve uma crise de
choro. Meu pai não podia desobedecer
ao seu general. Seria considerado
traidor e desertor e morreria de
qualquer maneira. O inferno, naqueles
dias, fazia a festa.
Pouco tempo depois, um carro preto,
que todos chamavam de corvo, parou em
frente ao hotel e levou meu pai. Minha
mãe, ainda muito assustada, foi para a
casa do meu avô, em São Petersburgo.
Antes, porém, saiu pelas ruas, de
farmácia em farmácia, como uma louca à
procura de pílulas de iodeto de potássio.
Não se achava tão fácil em Moscou;
imagine em Minsk, na Bielorrússia,
onde moravam.
Eliminar ou impedir a contaminação
com o estrôncio e o césio se tratava de
vida ou morte, e todos queriam aquelas
pílulas mágicas; assim, o valor se tornou
rapidamente um abuso. Os que sabiam e
estavam conscientes, claro. Embora a
grande maioria não se dava conta do que
tinha acabado de acontecer. E
debochavam dizendo: “Ah, está tão
longe, está lá na Ucrânia. Que o vento
toque para a Bielorrússia. Que se
danem!” Esqueceram que radiação corre
pior que notícia ruim e não escolhe lugar
para entrar, mesmo sem convite.
Quando meu pai retornou depois de
uma semana, foi direto para a casa do
meu avô, em São Petersburgo. Minha
mãe me contou que ele cheirava a vodca
e estava muito pálido. Diziam que a
bebida também era boa para combater a
radiação. Minha mãe o fez tomar as
pílulas de iodeto de potássio e pediu
que fossem ao primeiro laboratório de
fertilização in vitro para colher o
esperma do meu pai. Foi o que fizeram.
O médico, que praticamente foi
subornado pela minha mãe, colheu o
óvulo dela e fez a fertilização de quatro
embriões. Congelou para esperar todo
aquele alvoroço passar. Minha mãe tinha
medo de engravidar naquela
circunstância. Se não fosse
farmacêutica, jamais teria tido aquela
ideia e a precaução de esperar. E meu
avô gastou todas suas economias e parte
da herança da minha vó para ajudar
minha mãe. Pouco tempo depois,
apareceu um caroço no pescoço do meu
pai do tamanho de uma baga de uva.
Cresceu rápido. Virou um caroço de
abacate. Câncer na tireoide. Tantos
outros liquidadores que ajudaram no
local da explosão já estavam com
leucemia. Os que não morreram dias
depois se arrastavam pelos hospitais em
busca de ajuda. Meu pai foi sepultado
como um ET, no Panteão de Chernóbil,
onde só existem heróis sem glória.
Minha mãe sofre até hoje com tudo isso.
— E onde você e sua irmã entram
nessa história? Se são consideradas
gêmeas, como a polícia me disse, por
que nasceram com alguns anos de
diferença? — perguntou Elisa
secamente.
— Por causa de uma palavra
chamada zigosidade. Ela designa a
condição genética do ou dos zigotos dos
quais gêmeos emergem, que se refere à
similaridade ou dissimilaridade do
ADN dos gêmeos. Gêmeos idênticos são
monozigóticos: desenvolvem-se de um
zigoto (um ovo fertilizado que se
desenvolve em dois embriões) e gêmeos
fraternos são dizigóticos: desenvolvem-
se separadamente de dois zigotos (dois
ovos fertilizados). Segundo a teoria
médica, para explicar o que houve, foi
que foram fertilizados quatro embriões.
O médico implantou dois e apenas um se
desenvolveu. Foi quando eu nasci. Os
outros dois óvulos ficaram congelados
no laboratório. Minha mãe conheceu
outro homem e se casou com ele. Um
dinamarquês. Ele queria outro filho ou
filha. Tentaram durante dois anos, mas
minha mãe não engravidava. Ela o
convenceu a usar o embrião que estava
congelado na Rússia.
Ele achou aquilo tudo uma loucura
tamanha. Foi contra, algum tempo.
Discutiram. Minha mãe se sentiu
desconfortável com a atitude dele. Pediu
o divórcio. Voltou para a Rússia. E
obstinada com os embriões que ainda
estavam lá guardados, ela os implantou.
Até porque não tinha mais condições de
manter os pagamentos com o
laboratório, para a hospedagem. Um
deles, o que se desenvolveu, se tratava
do ovo fertilizado que se desenvolveu
em dois embriões. Um deles fui eu e o
outro, minha irmã, anos depois.
— Isso é loucura — questionou
Elisa.
— Minha querida amiga, se
Chernóbil produziu galinhas de três
cabeças, raposas calvas, crianças sem
pelo algum no corpo, câncer por toda
parte, a medicina produzir duas meninas
gêmeas nascidas em tempos diferentes
não é nenhum mistério ou caso para se
espantar. Queira Deus que todas as
mulheres daquela geração tivessem tido
a ideia de minha mãe e investido as
economias para congelar seus embriões.
Muitos soldados e voluntários que
trabalharam como liquidadores ou
ajudaram na evacuação das aldeias
nunca mais puderam ter filhos. Sem
contar os bombeiros que ajudaram a
apagar o incêndio do reator, esses
morreram quase de imediato. Alguns,
como meus pais, tinham acabado de se
casar. Os disparos de fuzil daquela
guerra se chamava Roentgen –
irradiação. E minha irmã foi o último
milagre daquele inferno na terra. Seu
nome em russo significa amor: Lyubov, a
Luba da mamãe. Sempre poupada ao
extremo em tudo, durante a vida, porque
minha mãe via nela a última lembrança
viva do meu pai.
— E por que vocês cresceram na
Dinamarca? — questionou novamente
Elisa.
— Valdemar, o dinamarquês com
quem minha mãe fora casada, não
suportou a separação. Foi atrás da minha
mãe e pediu para que ela voltasse.
Registrou minha irmã como filha
legítima, e a mim ele adotou. Aquilo
representava nossa oportunidade de ter
um futuro melhor. Meu avô já estava
velho e minha mãe não tinha irmãos.
Ficaria sozinha no mundo muito breve.
Assim, voltamos para a Dinamarca,
onde minha irmã nasceu. E o resto da
história você já sabe. Ela cresceu com a
ideia fixa de que deveria se passar por
mim. Fez isso a vida toda depois que
ficamos com a mesma estrutura
corporal. Ela tinha transtorno
psicológico: Herança de Chernóbil.
Se eu não tivesse entrado no
departamento de remédios controlados
naquela noite, estaria apodrecendo na
prisão em Bergen. Nem mesmo minha
mãe moveria um dedo para me ajudar.
Ela sempre defendeu a Luba. E depois,
quem acreditaria numa história dessa
magnitude?
— Difícil — concordou Elisa. — E
o hospital confirmou que, na hora do
ataque, você estava dentro da farmácia.
A entrada e saída do seu crachá
eletrônico certificou isso.
— Sim, eu estava dentro da farmácia
procurando meu telefone celular. A sorte
foi que me lembrei que tinha estado na
parte de remédios controlados naquela
tarde. E lá só se entra com a senha e o
crachá. A tecnologia a favor da verdade.
— E o esquecimento —
complementou Elisa.
— A motivação da minha irmã para
atacá-la deve ter sido pelo extremo
ciúme que ela sempre sentiu de mim.
Deve ter odiado você quando soube que
éramos melhor amiga uma da outra. Ela
sempre viveu à minha sombra tentando
de tudo para me prejudicar. No calor de
nossas brigas ela me chamava de
matrioska: aquelas bonecas russas de
muitas faces. Ela, sim, tinha muitas
caras, não eu. Nunca pensei que fosse
tão cruel a ponto de me pôr na cadeia.
— E a polícia não conseguiu
encontrá-la? — perguntou Elisa.
— Não — respondeu Liudmila. —
Ela desapareceu. Tinha apenas uma
amiga, em Førde. Uma africana a quem
ela ajudava a cuidar de um cachorro. Só
isso que sei dela. Eu sentia medo de me
aproximar de minha irmã. Já sabia do
veneno que ela carregava nas veias. Só
não sabia até que ponto ela podia usá-lo
contra mim. Melhor deixá-la de lado.
Foi o que fiz.
Anjo Russo - final de maio de 2010.
Mattias já tinha pesquisado a
topografia da ilha. Era pequena e sem
vegetação arbórea, com acidentes
geográficos naturais, porque estava
desabitada. Mattias não era especialista
em biomas, mas acreditava que aquela
ilha se tratava da mistura de estepe e
tundra com vegetação herbácea rasteira,
urzes, liquens e musgos por toda parte,
tal tapete que se estendia entre muitos e
muitos pequenos arbustos de mirtilo e
outras plantas de folhas aciculares, em
forma de agulha, que ele, naquele
momento de ansiedade, não fazia a
mínima ideia do que seria. Talvez da
família das coníferas, pensava ele.
Com o fim da primavera e o gelo
praticamente quase todo derretido, a
vegetação já mesclava para um verde
vivo. A ilha poderia ser desabitada de
gente. Não de vida. Ao longe esquilos
corriam competindo com lebres
selvagens, arminhos, algumas espécies
de pássaros, grous a grasnar como
cornetas, sem contar as aves marinhas
que cortavam o ar com seus gritos
insistentes em busca de comida.
Mattias tinha em memória a zona a
ser explorada e, para seu alívio, notou a
área relativamente plana, de norte a sul,
quebrada por alguns poucos e pequenos
relevos demarcados com precisão.
Na bagagem trazia um detector de
mina e outros equipamentos leves e mais
modernos para perscrutar a profundeza
da terra. Ferramentas essenciais de
cavação, farolete, cordas com pequenos
guinchos, água e comida liofilizadas
compradas na Suécia, para consumo em
acampamentos, além de biscoitos,
chocolates, uma garrafa de champanhe
que ficou no frigobar gelando, e água
potável, pois não sabia se encontraria
água doce na ilha. Freki também tinha
sua pequena porção de carne, mas
Mattias tinha esperança dele se arranjar
na ilha caçando a própria comida.
As mochilas enormes, com todo o
equipamento, foram levadas ao local,
em duas viagens, com a ajuda de Luba.
Ali nas cercanias ergueram uma barraca
estilo militar, com sacos de dormir, para
o pernoite.
Mesmo nunca tendo se movido para
uma ilha deserta a desenterrar um
tesouro, parecia que Mattias tinha algo
dentro dele que o direcionava. Tinha
sangue índio, não podia esquecer.
Posicionou-se a norte-nordeste da ilha,
como já tinham revelado os enigmas de
Descartes, e iniciou o trabalho. Picareta
às mãos, golpeou inúmeras vezes a terra
por onde o alarme do detector de metais
tinha apitado.
Depois de muito cavar, encontrou um
fosso formado naturalmente, numa
depressão da pedra. Estava vazio. O que
fez o alarme apitar deveria ter sido algo
muito pequeno, envolto em terra
pegajosa, que Mattias não pôde divisar.
— Droga — praguejou, mas não
parou de cavar.
— Isso parece uma matrioska —
opinou Luba.
— Matrioska é a tua cara. Cala-te!
— ordenou Fredrik Uma leve neblina
começou a cair na ilha. O coração de
Mattias disparou quando o detector de
metais apitou, a alguns metros daquele
fosso falso. Cavou uns quarenta
centímetros e encontrou a ponta de uma
caneta tinteiro que parecia de ouro,
provavelmente de René Descartes ou de
quem enterrara o tesouro. Enxergou
naquilo uma forte evidência de que a
riqueza poderia mesmo ter sido
enterrada ali. Não podia desistir. Aliás,
essa palavra estava apontada para ele
como a ira de um gigante de Jotunheimen
aos deuses de Asgard.
Passou mais de cinco horas cavando
no local indicado em suas pesquisas.
Ficou com a mão arranhada pelas urzes
que cobriam aquele solo. Não sentia
fome, nem sede, a não ser as que o
impulsionavam em direção ao seu
objetivo.
— Espero que o tesouro não esteja
lacrado e sepultado com a ajuda do
tempo, debaixo dessas pedras. Será que
se usasse pólvora para pequenas
explosões, facilitaria? Como poderia
explodir isso tudo? — confabulava
Mattias, com Luba sempre por perto.
— Não seja tolo — retrucou Luba.
— Pode atrair azar.
Mattias não se deu o trabalho de
responder.
Chegou até a passar pela sua cabeça
que o tesouro poderia estar próximo a
Snaeffel, o ponto mais elevado da ilha.
Quem sabe encravada na montanha teria
a entrada de uma caverna, mas esta se
localizava no interior da ilha e,
conforme ele calculara e interpretara as
pistas, não fazia sentido. Assim, investiu
mais dois dias em novas escavações
quando sentiu, em algum momento, que a
picareta tinha batido em alguma coisa de
metal.
— Achei! — berrou a todo pulmão.
Investiu com redobrado ânimo sua
picareta contra aquele alvo. Luba se
aproximou e ficou espiando. Freki
estava longe, garantindo a comida dele.
Mattias ia agora batendo aos poucos,
para evitar partir sabe-se lá o que
poderia encontrar debaixo daquela terra
misturada a pedras.
O sobe e desce da picareta
prosseguiu por mais de vinte minutos,
enquanto a chuva fina lavava o sal do
suor que escorria pela face de Mattias e
descia pela sua espinha. A roupa,
própria para chuva, estava retendo muito
calor do seu corpo. Tirou a jaqueta e a
atirou ao longe. Prosseguiu. Abriu um
buraco por onde dava para passar a mão
e parte do braço. Investiu mais algum
esforço ali e eis que avistou algo escuro
escondido naquele borrão.
— Ajude aqui — ordenou à Luba.
Mattias estendeu sua faca para que
ela cortasse a vegetação ao redor.
Nada poderia poupar os braços
revestidos de músculos bem trabalhados
de Mattias com aquele árduo trabalho.
Passou-lhe novamente pela mente a
ideia de usar explosivo, mas isso estava
fora do seu plano. Seria um barulho
inútil e perigoso. Luba tinha razão:
poderia atrair empecilhos que não
seriam bem-vindos naquele momento.
Então o sobe e desce da picareta
reiniciou o vaivém. Algo duríssimo
aflorava. Metal contra metal. O Cofre de
Iduna, imaginou.
Uma hora escavando e investindo
contra aquele torrão duro que mais
parecia uma rocha. Pelo buraco aberto
não saíram mais que minhocas. Nada de
serpentes venenosas como nos contos
germânicos.
Estavam havia três dias na ilha e em
nenhum deles apareceu noiva alguma
com o vestido salpicado de sangue.
Tampouco Loki metamorfoseado de
falcão.
Mentiras de marinheiros.
Mattias estava eufórico para se
apossar daquela riqueza secular. Se ela
existisse de fato, aqueles minutos o
revelariam. Ansioso, puxou o ar nos
pulmões. Ao se abaixar para pegar
aquela que seria a materialização de seu
esforço por anos a fio, uma tontura
repentina lhe turvou as vistas e ele caiu
de lado. Pensou logo que seria um
infarto. Não podia ser. Não naquele
momento, desejou.
Lupa serviu-lhe um pouco de água
numa garrafa própria. Molhou um pano
que trazia numa sacola de mercado e
limpou-lhe a testa. Freki, que já tinha
retornado havia poucos minutos, ficou
ao seu lado lambendo-lhe a cara.
— Agora não, Freki.
Não adiantou pedir porque o animal
não poupou a saliva.
A euforia, misturada com o
desespero de pôr logo as mãos no
tesouro, causara aquela vertigem.
Excesso de adrenalina. Depois de uns
minutos recobrou o ânimo. Levantou-se
aos poucos com ajuda de Luba e se pôs
a afastar a terra que cobria o resto
daquela arca com uma pequena pá de
aço, do tamanho das usadas por
crianças, na praia. Ele imaginava que
seria uma arca, pois era o que parecia.
Pediu que Luba clareasse com o farolete
e ela o fez. Sim, parecia um baú
revestido de material escuro, similar a
ferro ou aço.
— Vamos cortar um galho e fazer
uma alavanca — sugeriu Luba.
— Esses arbustos não dão conta de
nos oferecer um galho firme. Pegue a pá
com um cabo maior de ferro, que é mais
preciso.
Luba veio com a pá e se puseram a
fazer um tipo de alavanca para subir a
arca pesada. Enfincaram a pá o mais
profundo para pegar a base da arca e a
extraíram com alguma dificuldade. Um
baú que seria perfeitamente desprezado
por um mineiro se dele não tivesse
notícia de tesouro. Mattias limpou a
superfície do baú com a mão direita, no
qual não se podia ver nenhum brasão,
escudo ou artíficie de algum artista da
época. Pegou pelas correntes grossas
que envolviam e cruzavam todo o baú,
até que enxergou na suposta frente da
arca um grande cadeado. Foi isso que
encontraram, e Mattias já não sentia o
chão, nem o ar, nada. Queria dançar com
aquela arca nos braços. Claro que quem
enterrara aquele baú não o enterraria
sem nada dentro. Algum tesouro de fato
deveria estar ali, pensou. A tarde já caía
alta e a ilha parecia morrer com as
sombras que surgiam no horizonte.
Mattias engatou cordas no baú para
arrastá-lo até a superfície da ilha, onde
o barco alugado estava atracado. Pelo
peso da arca deveria ter uma riqueza
incalculável ali dentro, imaginava. Não
tinha trazido ferramentas o suficiente
para quebrar aquele cadeado.
Acreditava que teria de ter o apoio de
uma bigorna.
Nenhum problema, pensou. Farei
isso quando chegar no barco. Lá tenho
outros meios, concluiu.
Depois de empacotar tudo e juntar
todos os resíduos para não deixar lixo
na ilha, partiram.
Ao chegar no barco, Mattias o
manuseou para que a popa chegasse o
mais próximo da margem, a fim de que a
linha de flutuação ficasse coberta, mas
que não fosse tão dificultoso de levar a
arca para dentro. Assim a colocaram
com todo custo, puxando por cordas na
plataforma da popa, a parte traseira do
barco. Mattias foi à cabine do
marinheiro onde sabia que tinha um
martelo e uma bigorna para quebrar
aquele cadeado. Ao fitar o mar à sua
frente, avistou ao longe o que parecia
um navio de patrulha. Não dava para
saber a que nação pertencia, mas pelo
jeito deveria ser algum barco da Frota
do Báltico, a frota da marinha russa com
sede em Kaliningrado.
— Não é possível... Se eles fizerem
a abordagem, estarei perdido. Eles
levarão o tesouro embora.
Mattias pensou e repensou por
minutos. Desatracou o barco e entrou
mar adentro. Prosseguiu mais de mil
metros e parou a embarcação para
simular que se tratava de exploração de
mergulho, apenas. Com a ajuda de Luba
empurrou a arca para dentro do mar.
Jogaram também as ferramentas que
usaram no trabalho do resgate do
tesouro. Apenas a aparelhagem de
mergulho ficou a bordo.
O Nanuchka-III [PGG] aparelhou ao
longe o Spirit Ferreti pelo estibordo, o
costado direito do barco.
Mattias foi tomado pela angústia ao
avistar os fuzileiros navais, mas estes
não pareciam preocupados com um
barco particular. Claro que tinham visto
a bandeira da Suécia e já deveriam ter
rastreado a bordo que se tratava de
barco alugado para passeio. Mattias não
pensara nesse detalhe na hora em que
avistou o barco militar de patrulha.
Claro que os barcos alugados possuíam
sensor para rastreamento. Sentiu-se
estúpido.
Para seu alívio, a tripulação do
Nanuchka-III não deveria estar atenta à
imagem de sonar do leito do mar e não
percebeu a arca que afundava nas águas.
Seguiu rumo ao sul. Mattias respirou
aliviado.
Assim que o navio ganhou
velocidade e se tornou um pontinho ao
longe, Mattias paramentou-se com a
roupa de mergulho e uma corda e buscou
a arca no fundo do mar. Com a ajuda de
Luba e do suporte de ferro da popa,
subiram a arca e a depositaram
novamente no mesmo lugar.
Com o apoio de uma bigorna, usando
um pé de cabra e uma marreta, Mattias
conseguiu quebrar e abrir o cadeado.
Dentro da pesada arca havia muitas
bolas de ferro. Mattias se sentiu traído
pelo destino. Abriu as mãos espalmadas
em cada face do rosto, escancarando os
olhos e a boca de tal maneira que
parecia ter escapulido dos quadros de
Edvard Munch.
— Vamos olhar direito — disse
Luba.
Mattias pouco chorava na vida, mas
naquele momento sentiu seus olhos
lacrimejarem e uma dor se apossar da
alma.
— Perdi meu tempo e todas as
minhas economias — sussurrou.
Førde - Noruega - agosto de 2010.
Elisa já sentia o tédio e a sensação
de claustrofobia se apoderar dela depois
que tia Eleonor voltou para o Rio de
Janeiro, naquela semana. Foi uma ajuda
preciosa tê-la por perto naquele
período. Caminhar juntas e passear com
Marlon. Tomar café nas tardes de chuva.
Tudo bem que tentaram se entender em
inglês, enquanto Elisa balbuciava uma e
outra palavra de português num sotaque
carregado, arrancando risos de
assombro da tia. Pena que ela teve de
retornar ao Brasil. Marlon ficou, e essa
era a parte boa para ela.
Elisa abriu a porta da geladeira e
espiou lá dentro. Constatou que
precisava urgentemente abastecer esse
armário gelado. Lembrou-se também que
precisava ir à farmácia buscar o
medicamento que ainda precisava tomar.
Eirik a levou ao shopping, no centro
de Førde, onde tinha uma farmácia em
frente ao supermercado que adorava.
Sempre cheirava a pão doce saindo do
forno. Atravessou a porta de vidro
automático que dava para o corredor da
entrada, pelo estacionamento, e Marlon
já correu em disparada para dentro do
shopping. Ela foi em direção da
farmácia, assim depois não precisaria
carregar as sacolas de mercado para lá e
para cá, sem necessidade.
O movimento estava grande naquele
horário e Elisa chegou até mesmo a
esbarrar em uma senhora apressada que
quase esmagou Marlon havia bem
pouco.
Alguém a chamou.
— Elisa? — Era Nina, parada na
porta de entrada da farmácia. — Tudo
bein? — perguntou em português.
— Olhe, eu sinto muito, mas não
entendo o que você fala — respondeu
Elisa em norueguês, notando que Nina a
olhava com espanto.
Elas ficaram de pé por alguns
instantes, olhando uma para a outra, até
Nina perceber que parecia se tratar de
uma outra Elisa, não aquela que ela
conhecera no curso de norueguês. O
constrangimento pela falta de
reconhecimento fez seus lábios
tremerem, mas Nina ainda arriscou
perguntar em norueguês:
— Sou a Nina, você não se lembra
de mim?
— Não — sorriu Elisa, com o olhar
confirmando aquele não.
A essa altura, Nina já podia
imaginar que alguma coisa tivesse
acontecido e arriscou falar:
— Eu soube do que aconteceu com
você. Sinto muito. A gente se conhecia,
mas pelo jeito você não se lembra mais.
— Esqueci de muita coisa.
Desculpe. Fale-me um pouco de você.
— Então, sou Francisca, mas me
chamam de Nina. Sou angolana, mas
cresci na França. Casei-me há uns anos
com um norueguês e vivo em Naustdal
com meu sogro, que aliás não está nada
bem de saúde. Meu esposo é funcionário
da RLM Seafood e vive mais no mar do
que em casa. Eu não ligo. Assim posso
estudar com mais tranquilidade. Iniciei o
curso de enfermagem depois que concluí
o curso de norueguês.
— Sabe, Nina — interrompeu Elisa,
com ar meditativo, enquanto o som de
pessoas passando quase encobria sua
voz — você não imagina o que
significou para mim o ataque que sofri.
Quero que saiba que não me recordo de
você e isso não é pessoal. Eu perdi
parte das minhas lembranças.
Sinceramente quero pedir desculpas.
Agora eu preciso ir.
— Não tem problema. Desejo
melhoras — respondeu Nina.
Elisa não queria trazer toda a
história de volta e tampouco desejava
que as pessoas a olhassem com pena por
causa do ocorrido com ela. Despediu-se
de Nina e entrou na farmácia. Marlon se
distraía no corredor fuçando por tudo.
Mar Báltico - junho de 2010.
Mattias ordenou que Luba não
mexesse na caixa. Pensou em prosseguir
viagem e, no meio do caminho, se atirar
ao mar. Seria uma morte digna. Assim
evitaria voltar para sua vida comum
como um derrotado.
— Vamos ver se tem alguma coisa
nessa caixa além de pedras — insistiu
Luba.
Mattias consentiu que ela retirasse
aquelas pedras de ferro. Deveria pesar
cada uma não mais que cinco ou sete
quilos. Havia pelo menos umas dez
delas ali na superfície. Luba foi
retirando, uma a uma, e já quase no meio
daquela fileira notou que abaixo
brilhava algo. Gritou para Mattias, que
não demorou a inclinar a cabeça na
direção dela. Seus olhos tristes e
lacrimejantes mal podiam crer no que
viam. Saltou de onde estava, perto do
timão, e encarou uma caixa dourada que
parecia ser toda feita de ouro puro. Ao
contrário da arca, o cofre tinha apenas
uma fechadura, que se abriu sem muito
esforço. Mattias se sentia pleno de
deleite. Agora só restava celebrar a vida
do jeito que ele sempre sonhara, com a
irresistível vontade de provar o que o
dinheiro podia comprar.
Ao abrir o Cofre de Iduna a primeira
coisa com que se deparou foram três
maçãs de tamanho normal feitas em ouro
e que pareciam um porta-joias.
Ao abrir a maçã, encontrou em seu
interior várias pedras de diamantes.
— Que maravilha! — exclamou. —
e seus olhos cintilaram mais que as
pedras.
Em uma das maçãs encontrava-se um
colar de ouro com camafeu da imagem
da Rainha Cristina. A caixa, em ouro, se
fazia de trabalhados dos mais diversos.
Na tampa, um desenho em alto-relevo
que sugeria ser Claves regni caelorum,
as chaves do céu, cruzadas. Uma de
prata e outra de ouro; Mattias sabia que
se tratava do símbolo das chaves do céu
entregues a São Pedro, segundo a Igreja
Católica, e representa o Vaticano.
Mattias estava embasbacado: —
Epifania!
A última peça do quebra-cabeça
tinha sido encontrada. Agora tudo se
encaixava. O Vaticano, que tinha
interesse na conversão da Rainha
Cristina da Suécia, foi quem a
presenteou com esse tesouro. Ela, que
jamais aceitaria presente por sua
conversão, repassou o direito a seu
preferido na Corte, o Conde Gabriel de
La Gardie.
Mattias estava tão entusiasmado que
foi ao frigobar pegar o champanhe para
brindar o tão esperado momento.
Enquanto ele se ausentou, Luba pegou
cinco dos diamantes e os engoliu.
Mattias não tinha contado os diamantes e
nem perceberia que cinco deles estavam
faltando. E como ela o conhecia, sabia
que ele não repartiria o tesouro com ela.
Melhor me garantir, pensou. Mattias
chegou com o champanhe e duas taças
de cristal para o brinde. Estava ansioso
para chegar ao continente e ir em busca
do judeu comerciante de pedras
preciosas, a quem venderia alguns
diamantes e iniciaria sua nova vida.
Depois de meia garrafa do
espumante, Mattias começou a divagar.
Estava preocupado em como burlaria o
fisco norueguês com sua fortuna. Várias
ideias corriam pela sua cabeça como
nuvens apressadas. Pensou, inclusive,
em se tornar escritor e comprar os
próprios livros, como leu num romance
americano. Assim subiria para a lista
dos best-sellers e, com um pouco de
marketing, poderia se tornar um
milionário do ramo da literatura. Ele já
escrevia para revistas. E poderia,
inclusive, contratar um ghost-writer.
Quem não toparia o negócio por um
punhado de dólares? Depois poderia se
tornar popular como certo milionário
inglês, na década de 90, que teve a ideia
de esconder um tesouro com alguns
milhões de dólares em alguma montanha
na Cornualha, na Inglaterra. Feito isso,
escreveu um livro com vários códigos e
pistas para o local do tesouro. Se até
hoje o tesouro não foi encontrado,
poderia sinalizar um blefe. Ele bem
poderia copiar a ideia e nada perderia,
ganharia apenas reputação internacional
e milhares de livros vendidos.
Todos esses pensamentos corriam
leves pela sua mente até ele perceber
que Luba não estava ali, na cabine do
marinheiro, com ele. Chamou-a pelo
nome umas duas vezes, mas não ouvia
nenhuma resposta. Deixou o barco no
piloto automático e foi procurá-la nas
outras cabines. Encontrou-a caída no
chão, perto da cama, com os olhos
revirando e a boca cheia de espuma.
— O que houve com você?
Luba nada respondia. Apenas se
contorcia de um lado a outro segurando
o estômago. Suava frio e sua pele estava
arroxeada.
— O que se passa? — perguntou
novamente.
Balbuciando e com uma vocalização
ruidosa, ela conseguiu contar que tinha
engolido alguns diamantes.
— Sua louca. Será que não sabe que
isso ficou debaixo da terra anos a fio?
Séculos por assim dizer. Podem estar
contaminados ou até mesmo ter algum
tipo de veneno, nunca se sabe. E outra:
esses diamantes podem ter causado
cortes no seu estômago! Vou preparar
uma salmoura para você pôr para fora
isso tudo.
Mattias não teve tempo. Envolta em
um suor frio e com os olhos
esbugalhados de horror, Luba soltou um
grito lancinante, como se uma lâmina a
atravessasse. Aos poucos seus olhos
foram se fechando e seu semblante
sumindo no meio daquela palidez com
toques lilás da pele. Suas mãos
relaxaram e caíram do lado. Luba estava
morta.
Mattias não sabia exatamente o que
fazer. Mas de uma coisa ele tinha
certeza: não perderia aqueles diamantes
por nada no mundo. Enquanto Freki
rodeava o corpo de Luba, Mattias pegou
o lençol que forrava a cama. Com a
ajuda do pano, ele puxou Luba para a
popa do barco. Ele não poderia ter
problemas, mais do que já tivera, com
sua assistente. Teria de se livrar dela o
mais rápido possível. Tudo aquilo lhe
soava como uma situação absurda, mas
ao mesmo tempo sentia um alívio muito
grande pelo destino ter feito o trabalho
por ele. A prova física que ele tanto
temia acabava de ser eliminada. Luba
vestia uma bata indiana na cor branca,
que ia à altura da coxa. Mattias se
aproximou do corpo daquela que o
acompanhara em suas manobras para
chegar até o tesouro de Iduna. Com a
frieza de um cirurgião medieval,
afundou a faca no abdômen ainda quente
da moça, na altura do estômago. Puxou o
cabo num só movimento até o umbigo. O
sangue verteu e isso não o incomodou.
Encontrar os diamantes não foi difícil.
Mattias já estava habituado a tirar ovas
do salmão, mas naquele momento ele
poderia garantir que se tratava do ventre
de um esturjão que escondia o mais
valioso caviar.
Depois de recuperar os diamantes
Mattias encheu o ventre de Luba com as
pedras da arca e a lançou ao mar. Junto
com o laptop que ele fez se tornar quase
em pó.
O Báltico tornou-se o sarcófago do
segredo mais temido de Mattias.
E a única testemunha, Freki, poderia
até ter língua, mas como Mattias dizia,
ele não sabia falar.
Rio de Janeiro – outubro de 2011.
Elisa usava um vestido branco de
algodão, solto e leve, e sandálias
confortáveis nos pés. Eirik já tinha se
habituado ao costume brasileiro de
andar pela calçada em Copacabana sem
a camisa. Seu peito musculoso e
dourado chamava atenção das cariocas,
mas Elisa as encarava como se dissesse:
Esse aqui já é meu.
O termômetro das ruas marcava 25
graus naquele dia morno de outono, no
Rio de Janeiro. A paisagem nada
lembrava a Noruega, que nessa mesma
estação recebe nuances de cores quentes
como o laranja e amarelo-ouro, e a
paisagem se assemelha aos quadros
dourados de Gustav Klint.
Elisa seguia com Marlon e Tinka ao
lado de seus filhotes, Cacao, Laila e
Thor correndo à frente, enquanto Eirik
empurrava o carrinho com os gêmeos
Eirik Rolf Leiv e Eleonor Therese.
A família estava completa.
Elisa, que tinha amamentado os
filhos havia pouco, teria pelo menos
duas horas para caminhar pela orla
marítima e fazer o que mais amava na
vida: curtir sua família. A brisa do mar
estava uma delícia, e ela não podia
querer outra vida.
Ela creditava equivocadamente à
maternidade o fim de seus pesadelos,
além de se sentir feliz e confiante com a
apropriação plena do idioma norueguês.
Como nem tudo é perfeito, reaprender
português estava sendo um sacrifício.
Até Eirik falava melhor do que ela, o
que era motivo para muitas risadas entre
eles.
Noruega – junho de 2010.
Mattias estava de volta a sua casa
por causa de um telefonema urgente de
Nina, assim que ele pisou em terra
firme, na Suécia, para entregar o barco
alugado. Seu pai não estava nada bem e
havia sido internado. Os médicos não
garantiam mais que um mês de vida.
Antes, passou na relojoaria de um
judeu que ele sabia que comprava
diamantes, e vendeu alguns deles para
fazer um caixa provisório. O
comerciante não se deu ao trabalho de
especular onde ele tinha encontrado
tamanha riqueza, mas ficou calado
porque já estava comprando as pedras
por um bom preço. Claro que de bobo o
judeu não tinha nada e desconfiava que
se tratava de algum tesouro encontrado.
Aproveitou e alertou Mattias sobre o tal
veneno dos tesouros – prática comum há
alguns séculos para evitar roubo de
pedras.
— Nada que uma boa limpeza não
dê jeito — orientou o judeu.
Mattias foi recebido num ambiente
hostil. Nina já dava sinais de cansaço
daquela vida que levava. Para amenizar
as muitas reclamações da esposa, ele se
propôs a ficar um pouco na companhia
do pai, para que ela pudesse descansar
em casa.
Mattias tinha confiança plena em
Nina. Um pouco ingênua, ele acreditava.
Com esse pensamento sobre a esposa,
ele sentia total segurança de manter um
quarto particular na casa do pai, mas por
precaução permanecia trancado.
Foi munido desse pensamento que
ele confiou ali a guarda do seu tesouro.
Depois de alguns telefonemas e
nenhuma resposta de Nina, Mattias
resolveu ir até a casa do pai para saber
se tinha acontecido algo com a esposa.
Ao chegar à casa, deparou-se apenas
com Freki, que o encarou com olhos
lupinos que demonstravam desespero de
fome.
Mattias chamou por Nina, mas não
houve resposta. Então, ele foi até a área
de serviço para alimentar Freki. Ele não
conseguia acreditar no que viu escrito
num papel sulfite grudado na parede
com fita adesiva:
Surpresa!
Franziu a testa, sem entender que
brincadeira de mau gosto era aquela.
Apavorado, foi até o quarto para pegar
sua caixa de tesouro, sempre seguido
pelo faminto Freki. Suando frio, tentou
se acalmar. Calma, Mattias, calma.
Primeiro, alimente Freki. Depois você
dá cabo daquela estrangeira.
Retornou à área de serviço e abriu o
armário. Não encontrou vestígios do
saco com a ração do lobo. Na porta, do
lado de dentro, havia outro cartaz, como
que a justificar o primeiro: