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Eu não sou seu robô

- de Raul Franco

Mylla Carrey é uma cantora pop muito famosa. Ela tem 25 anos e começou a fazer
sucesso com 18. Ela está em um momento da carreira onde se vê cansada e
perdida. Como se todo aquele sonho que ela tinha de ver as suas canções tocar as
pessoas esbarrassem em uma realidade cruel de controle e cerceamento de sua
liberdade. Ela está só em sua casa em plena quarentena. O seu empresário liga de
Goiânia no intuito de convencê-la a fazer uma live especial para os fãs. Só que ela
está mesmo decidida a dar uma virada na sua vida e fazer aquilo que o seu coração
manda. Ela fala com seu empresário, enquanto anda pela casa, segurando um copo
com bastante gelo. Pela casa, podemos ver alguns instrumentos espalhados pela
sala, detalhes de quadros com fotos suas da infância, sorrindo, feliz.

MYLLA - Eu tô cansada, Sérgio. Eu tô com dificuldade de fazer as coisas nessa


quarentena, você entende isso?
SÉRGIO - Eu entendo, Mylla, mas você deveria fazer uma live. O teu público quer
ver isso.
MYLLA - Não tô com saco. Já disse.
SÉRGIO - Você pode fazer uma coisa simples. Pega um violão e toca aqueles hits
que você fez em outro formato.
MYLLA - Eu não pego no violão esse tempo todo, Sérgio. Até sentei ao piano pra
tentar ver aquela canção que eu levei uns três meses pra ajeitar. Consegui?
Não! Então, entendi que eu tenho que me respeitar.
SÉRGIO - Mylla, presta atenção, você é uma estrela. As pessoas querem ver você,
estar próximas de você. Elas te amam.
MYLLA - Será, Sérgio? Às vezes, penso nisso. Será que elas me amam ou amam a
imagem que elas têm de mim? Durante um tempo eu fui isso que consomem
por aí nas minhas redes sociais, em notas sobre mim que nem sempre são
verdadeiras… Eu mesmo me olho… como naquele clipe onde sou a mulher
mais bem resolvida sexualmente do planeta… e, confesso, que me vejo tão
pouco naquele brilho todo pop e fluorescente. Será que essa sou eu, Sérgio?
SÉRGIO - Olha aqui, eu como teu agente, teu empresário eu só quero que o público
continue conectado com você. Isso é importante para que você permaneça
nesse imaginário coletivo. Que as pessoas continuem achando que você é
essa potência.
MYLLA - Continuem achando? E eu sou?
SÉRGIO - Não é?
MYLLA - Sou, Sérgio? Antes dessa porra toda de quarentena eu já te dizia que eu
andava cansada da imagem que as pessoas têm de mim. Cansada do que eu
virei, sei lá. Cansada dessa superficialidade, artificialidade… perversidade do
mundo pop. Todo mundo dentro de um formato, de um padrão. Dentro de uma
fôrma. E eu coube tão bem, né? Foi bom ter virado a coqueluche do momento,
como minha tia diz. Mas agora… eu pergunto: Quem é a Mylla de verdade?
Quem é?
SÉRGIO - Você tá confusa, é isso. Pode ter a ver com esse momento da
quarentena. Vai passar… mas você precisa produzir, criar algo legal que as
pessoas vão gostar.
MYLLA - Porra, Sérgio, tá difícil de entender: Já disse que eu já me sentia estafada
antes da quarentena. Essas questões já estavam na minha cabeça. Esse
momento só aflorou isso tudo. E eu tô pensando, eu tô querendo revolucionar
tudo…
SÉRGIO - Faça uma canção disso tudo.
MYLLA - Não é canção, Sérgio! É minha vida. Entendeu? Minha vida!!! Será que eu
ainda posso ter uma coisa minha e intransponível?
SÉRGIO - Foda que fiquei preso aqui em Goiânia, senão eu estaria aí com você e a
gente tentaria ver uma forma de trabalhar a tua carreira e nessa confusão
toda.
MYLLA - Trabalhar minha carreira ou me doutrinar? Aliás, é o que você e minha tia
adoram fazer.
SÉRGIO - Mylla, não é nada disso. A gente pensa o melhor pra você.
MYLLA - É disso que eu tô cansada. Por que vocês tem que pensar o melhor pra
mim? Será que eu não posso saber o que é melhor pra mim?
SÉRGIO - Agora, por exemplo, você deve estar estressada. Então, você pode dar
uma descansada e amanhã a gente conversa e vê o que podemos fazer.
MYLLA - Não é amanhã, Sérgio, que eu vou melhorar. Quero esse tempo pra mim.
Ficar sozinha. Sumir do mapa. Quem gostar mesmo de mim, vai entender que
eu só estou precisando disso.
SÉRGIO - Olha, daqui a pouco o Rui Salles vai disparar notas dizendo que você
está acabada.
MYLLA - Foda-se o Rui Salles! O jornalismo que esse cara faz nem pode ser
chamado de jornalismo. Ele é chantagista, opressor e tóxico. Isso! Esse cara é
tóxico. E eu já fui uma inocente pra deixar ele me abalar. Mas agora não. Que
ele fale o que ele quiser.
SÉRGIO - Eu só quero te proteger desses caras que perdem tempo com essas
invenções sobre artistas pra ganhar espaço em notas de redes sociais.
MYLLA - Você não precisa me proteger de nada. Eu já sou bem grandinha.
SÉRGIO - Mylla, se você quiser eu dou meu jeito e vou até você, pego um avião e
chego nessa semana no Rio.
MYLLA - Não quero. Tá bom como está. Só assim eu posso ficar comigo mesma,
sendo humana e me permitindo não fazer nada. Não preciso ser produtiva
porque querem que eu seja produtiva. Não quero ser marionete de ninguém.
Quero ser eu mesma. A Camila Cardoso. Não a Camila que as pessoas
acham que conhecem. A Camila deixou de ser Camila para virar a Mylla
Carrey, a estrela criada por um Universo que eu nem sei mais se faço parte.
Elas querem a Mylla Carrey.
SÉRGIO - Mylla, vou ter que resolver um negócio aqui. Tem uma live daquela banda
que te disse de Araruama que eu quero produzir.
MYLLA - Isso, Sérgio, vá lá. Invente a nova coqueluche para esse momento. Tipo,
batize a banda de Quarentenóides Blues e ganhe muito dinheiro como o
grande empresário que você é. Afinal, “a música não importa. O importante é a
renda”.
SÉRGIO - Voltamos a nos falar, tá?
MYLLA - Como o senhor quiser!
SÉRGIO - Descanse.
MYLLA - É tudo que eu mais quero. Descansar.
SÉRGIO - Você tem tomado os remédios?
MYLLA - Um pouco.
SÉRGIO - Um pouco? Não deixe de tomar. Pode ser que isso esteja afetando o teu
humor.
MYLLA - Boa noite, Sérgio. Está bom por hoje.
SÉRGIO - Ok. Até amanhã.
MYLLA - Até algum dia.
SÉRGIO - Beijos.

Mylla desliga. E faz uma cara de quem está mesmo de saco cheio. Encosta-se em
uma poltrona. Pega um pote com comprimidos. Olha atentamente para ele. Abre o
pote e o vira sobre uma mesa. Começa a cantar a canção Unknown Caller, do U2.
Enquanto canta pega comprimido por comprimido e joga no ar. Depois acaba
jogando todos no chão. Olha pela janela. Suspira fundo. Olha para o celular. E
desconfia que isso tá sendo filmado. E caminha até ele. Olha perto da lente e põe o
dedo na câmera. Fim.

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