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CAPÍTULO 19

Luca Luvizotto
Coisas que eu gostaria de dizer (mas não vou)
Entrada #0017
24.04.23

Querido Ted Mosby,


vai se foder.

Você disse que nada de bom acontece depois das 2 horas da


manhã, então estou aqui para te provar o contrário.

Às 02:02, uma mensagem e um convite. Um coração é disparado.

Às 02:07, nossos olhares se cruzam. Meu sorriso ganha vida.

Às 02:28, seus dedos encontram os meus. O toque me acalma.

Às 02:44, escuto o som da sua risada. Essa rua é sem saída.

Às 02:51, minha boca deseja a sua. Sua boca na minha.

Em algum momento das 03:00, perco a noção do tempo.

Pela próxima hora, o que sinto, nunca senti.

E no seu abraço encontro uma certeza.

Você me desmonta por inteiro.

E, pela primeira vez, quero ser desmontado.

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Luca Luvizotto
Coisas que eu gostaria de dizer (mas não vou)
Entrada #0018
25.04.23

Sinto medo, e sinto muito.

Ontem à noite, acreditei que as coisas poderiam dar certo.

Sabe quando você olha para alguém e todos os seus problemas se


transformam em bolhas de sabão frágeis pelo ar, e ao menor
sinal de um toque, eles desaparecem completamente?

Você faz isso comigo.

E então, com o gosto do seu beijo, todas as minhas perguntas


se tornam um enorme "e daí?". E daí que ninguém sabe sobre
mim? E daí que você vai embora em duas semanas? E daí que
trabalhamos no mesmo lugar e, e daí que minha cabeça está uma
zona?

É verdade que, quando digo algo estúpido e te faço sorrir,


nada disso importa. Nada.

Mas também é verdade que, longe de você, o peso de tudo me


engole aos poucos até não sobrar mais nada. E então, a única
verdade que resta é a que eu não quero te ver ir embora,
porque não suporto mais perder quem me importa. Não quero
explicar o que sou ou o que sinto para todas essas pessoas,
porque ainda não sou capaz de explicar isso nem para mim
mesmo.

E não estou pronto para descobrir a resposta para a grande


questão que me assombra: até que ponto eu posso me envolver
com alguém sem transformar a vida dessa pessoa em um inferno?

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Acho que os comentários naquela foto deixaram isso muito
claro.

Não é justo eu te arrastar para o meu mundo.

A distância vai ser difícil, mas talvez seja melhor. Para nós
dois.

Por favor, querido, eu queria muito que você entendesse.

"I've got more hope of killing war


Or seeing sound
Than I've got of keeping you around,
Of keeping you around
[...]
I wish I could make it easy
I'm still a broken machine, babe"1
Keeping You Around - Nothing But Thieves

1
Eu tenho mais esperança em acabar com a guerra/ Ou em enxergar o som/
Do que eu tenho em te manter por perto/ Em te manter por perto [...] Eu
gostaria de poder tornar isso mais fácil/ Eu ainda sou uma máquina quebrada,
amor

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Luca Luvizotto
Coisas que eu gostaria de dizer (mas não vou)
Entrada #0019
28.04.23

Definitivamente não estou na minha melhor semana.


A real é que estou surtando, porque lidar com tudo isso tem
sido muito mais difícil do que eu imaginei.

Amanhã é meu último dia pra finalizar as músicas que a


gravadora pediu e eu mal consigo raciocinar, porque o Julian
continua me mandando mensagens, mesmo sem nenhuma resposta.

Qualquer um teria desistido de mim no segundo dia. Por que


você não desistiu? E por que eu sinto que isso só me fez
gostar de você ainda mais?

Cara, por que você é assim? Sério. Como eu sinto sua falta.

E algo me diz que te ver no recital depois de amanhã vai


acabar comigo, mas eu simplesmente não me importo.

Eu só queria saber como você está, por onde tem andado. Que
tipo de coisa tem feito você rir e qual foi a última coisa que
você experimentou que fez seus olhos brilharem.

Mas não. Não posso começar tudo de novo.


Porque não existe final feliz nessa história.

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Luca Luvizotto
Coisas que eu gostaria de dizer (mas não vou)
Entrada #0020
29.04.23

Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.


Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota.

Estou fodendo com tudo.

Ah, estou exagerando? Foda-se. Ninguém vai ler essa merda.

Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.


Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.
Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.

Idiota. Idiota. Idio

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Luca Luvizotto
Coisas que eu gostaria de dizer (mas não vou)
Entrada #0021
30.04.23

Acabei de pedir demissão. Não posso mais fazer isso.

O rosto do Julian estava machucado. Eu só queria abraçar ele


na frente de todo mundo. Merda.

Eu sabia.
Eu sabia que ver ele de novo faria isso comigo.

As coisas estão insuportáveis. Achei que a situação era


reversível. Eu sempre consigo controlar o que sinto. Por que
agora seria diferente?

Porra. Me desculpe. O tempo que perdemos é culpa minha.

Estou segurando meu celular com nossa conversa aberta.


Eu te escrevi uma mensagem, mas nós dois sabemos que não vou
enviar.

Eu deveria ir dormir.
Sim. Amanhã é um dia importante.

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Luca Luvizotto
Coisas que eu gostaria de dizer (mas não vou)
Entrada #0022
01.05.23

Vamos lá.

Hoje cedo contei para Olga que estava saindo da escola antes
do combinado por causa de uma pessoa. Uma pessoa que eu
gostava muito e que também estava trabalhando lá.

Mesmo com o Julian indo embora em duas semanas, não sei se


seria uma boa ideia ficarmos nos encontrando pelos corredores
da Anima & Suono, independente do que aconteça. A Olga não é
fã de relacionamentos no ambiente de trabalho, isso é muito
óbvio desde sempre, principalmente depois do Greg.

Ela não perguntou quem era, e eu também não ia dizer. Não


agora. Eu nem saberia como contar isso pra ela.

“Então, Olga. É o Julian. Você está mais surpresa por ser


literalmente a única pessoa que vai embora desse lugar ou por
ser um menino? Ah, sim. Pois é. Eu descobri que sinto atração
por meninos… Deveríamos falar sobre isso ou fingir que nada
aconteceu e continuarmos nossas vidas?”

Parece perfeitamente… desastroso.

Mesmo sabendo que eu já iria sair de qualquer forma mês que


vem se tudo der certo com a gravadora, ela ainda ficou um
pouco triste. Eu entendo, eu também fiquei.

Vou sentir falta do seu mau humor matinal e de consertar todas


as confusões que o Greg me arranjava. Ele está tão ferrado sem
mim.

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Vou sentir falta dos meus alunos gritando coisas que nem eu
entendia e dos abraços apertados da Sofia que mal davam a
volta nos meus ombros. Essa menina tem um futuro tão brilhante
quanto sua presilha de glitter da Barbie.

E vou sentir falta de todos aqueles corredores e salas que me


acolheram e foram casa para mim quando minha própria casa não
passava de um pesadelo sem fim.

Mas tudo são ciclos, e eu não poderia estar mais ansioso para
conquistar o meu maior sonho. Mal consigo acreditar onde estou
sentado nesse exato momento e o que fiz para chegar até aqui.

Se eu pudesse conversar com o Julian agora, eu com certeza

— Luca? Estou interrompendo algo importante ou podemos entrar?


— o diretor da gravadora me chama da porta da sala, espiando o diário
sobre minha perna.
Sorrio em um gesto descontraído, fechando o diário com a caneta
entre as páginas.
— Podemos. Só preciso de um minuto. Para guardar… isso.
Abro a bolsa, organizando tudo antes de acompanhar Marco para
dentro da sala de reunião. Ele indica uma cadeira para eu me sentar e me
entrega uma pilha de papéis junto a uma xícara de café. Respiro fundo,
ansioso com o que ele tem para me dizer.
— O grande momento chegou. Vamos fazer acontecer — ele começa,
se apoiando sobre a mesa de mogno. — Seu álbum será produzido.
Meu coração trava. Levanto os olhos dos papéis para ele.
— É sério? Isso é um contrato?
— Seríssimo. Adoramos tudo que você enviou.
Seguro o contrato nas mãos, em êxtase. Queria me levantar e sair
gritando pelos corredores, mas só sorrio e aceno para Marco em
agradecimento.

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— Não sei nem o que dizer. Isso é um sonho para mim.
— Eu imagino. E isso é só o começo. Ainda temos a sua turnê para
discutir.
— A minha… — Começo a rir. — Desculpe, como é que é?
— Sim. Fizemos uma pesquisa de mercado e, com a popularidade que
você vem ganhando nas últimas semanas, uma turnê é uma possibilidade
palpável. — Ele desliza uma caneta pela mesa na minha direção. — Mas
podemos falar sobre isso outro dia, com mais calma. Vamos aos termos do
contrato?
Passo os olhos pelo texto, lendo tudo com a maior concentração
possível, mas empolgado demais para ter alguma concentração.
— Resumidamente, nosso contrato terá duração de dois anos. Vamos
financiar a gravação do álbum e cuidar da distribuição digital e física,
além dos materiais de divulgação. A gravadora será proprietária dos
direitos autorais. Você não precisa se preocupar com nada além de dar
entrevistas e receber a sua porcentagem. Além de, claro, continuar
fazendo um bom trabalho na hora de compor. — Marco mexe nas páginas
à sua frente. — Os valores estão citados na página 4. Você pode rubricar
todas as páginas e assinar na última, assim que estiver pronto.
Balanço a cabeça e levo alguns minutos para ler as doze páginas do
contrato, deixando minha assinatura com confiança no final. Ele me
explica os próximos passos para iniciarmos as gravações e quais músicas
estão mais propícias a se tornarem singles e então nos levantamos e
trocamos um aperto de mão firme.
— Estou ansioso para trabalharmos juntos, Luca. A equipe toda está.
Essa semana te envio o cronograma do estúdio. Tenho certeza que o
álbum será um sucesso.
— Muito obrigado — respondo, sem parar de sorrir. — Também
estou ansioso.
Marco volta para sua cadeira e eu caminho em direção a porta,
sentindo minhas pernas trêmulas e meu peito se enchendo de orgulho.
Não sei nem para quem eu deveria ligar primeiro para dar a notícia.
Queria poder contar para todo mundo ao mesmo tempo.

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Quando estou prestes a sair, Marco me chama de novo. Me viro para
ele, já na batente da porta.
— Luca, só mais uma coisinha. Tenho certeza que não deve ser nada
demais, até porque sabemos como a internet funciona, mas na semana
passada vi alguns comentários a respeito de um suposto relacionamento
entre você e um outro rapaz. — Ele me analisa por alguns segundos. — De
novo, tenho certeza que não deve ser nada além de fãs e suas teorias da
conspiração, mas preciso deixar claro que esse tipo de coisa não irá fazer
bem para sua imagem e carreira. É uma linha que não podemos cruzar,
estamos claros?
Congelo, sentindo todo o meu orgulho escorrer por um ralo bem
abaixo dos meus pés.
Não digo nada, então Marco levanta as sobrancelhas.
— Que bom que estamos na mesma página. Boa semana, Luca. Até
mais.
— Até… mais — respondo, virando as costas e indo em direção a
saída.
Assim que respiro o ar fresco do lado de fora, paro por um momento,
tentando processar o que exatamente acabou de acontecer, mas não chego
a lugar algum. Não consigo pensar. Não sei o que estou sentindo.
Quer dizer, eu deveria estar feliz, mas parece que quando finalmente
consigo algo que sempre quis, o resto se afasta do meu alcance. Agora vou
ter que escolher entre minha carreira e o Julian, como se as coisas entre
nós já não estivessem complicadas o suficiente?
Atravesso a rua em direção ao carro.
Preciso falar com alguém. Sobre tudo. Sobre mim, sobre o Julian,
sobre a gravadora. Pego meu celular, abrindo meu grupo com o Thomas e
a Victoria. Não sei se já estou pronto para essa conversa. Mas também não
sei se um dia estarei.

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TRÊS ESPIÃS DEMAIS

Luca Luvizotto
Preciso muito falar com vocês
Tão livres daqui a uma hora?
16:19

Thomas Esposito
aaaaaah uma semana dps lembrou
que tem amigos né desgraçado???
patifaria
16:22

Luca Luvizotto
Vai se foder
É urgente
E vou explicar tudo
Sim ou não?
16:24

Vic sua amiga + perfeita


Tá tudo bem, migo?
Eu tô sim, só vou terminar de ajudar
meu pai aqui no restaurante e posso sair
16:26

Thomas Esposito
grosso, rude, frio, insensível!!
pra vc sempre to livre
mas quero seu tiramisu <3
16:27

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Luca Luvizotto
Vou pensar no seu caso
Lá em casa, então, 17:30
Obrigado, lindos
16:28

Entro no carro e coloco a chave na ignição, segurando o volante com


os olhos fixos à minha frente. Jogo a cabeça no encosto, ligando o carro e
dirigindo até o Parco Del Gianicolo, porque a única coisa que eu preciso
mais do que conversar com alguém é correr até não sentir mais minhas
pernas e ter cada gota de energia drenada do meu corpo.
Estaciono na entrada do parque e subo o capuz do moletom por conta
da garoa. Com o fone no ouvido, coloco minha playlist para tocar no
aleatório e dou uma risada debochada quando, entre tantas opções, o que
começa a tocar é Selfless do The Strokes.
Começo correndo devagar para aquecer o corpo, dando duas voltas
na pista menor. Quando sinto o suor se formando no meu rosto e o calor
subindo pelos calcanhares, acelero o ritmo e corro o mais rápido que
consigo. Uma, duas, quatro, dez voltas. Perco as contas.
Minha panturrilha queima e a sensação alivia a pressão na minha
cabeça. Estou ofegante o suficiente para saber que está na hora de parar,
então diminuo o passo para a última volta antes de ir pra casa. Jogo o
cabelo úmido para trás, enchendo os pulmões com o ar que cheira a
grama cortada e lavanda.
Esse cheiro. Ele sempre ajuda.
Meu celular vibra algumas vezes no bolso. Paro de andar assim que
vejo que é uma mensagem do Julian.

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Julian Moretti
luca, eu sei q vc não me deve porra nenhuma
mas só me responde uma coisa
vc se arrependeu daquela noite?
17:17

Encaro as palavras entre meus dedos e meu peito se aperta quando


leio a última frase. Nem passou pela minha cabeça a possibilidade dele
achar que eu estaria arrependido de algo, porque isso seria absurdo.
Começo a digitar, mas apago quando ele envia mais uma mensagem.

Julian Moretti
não vou mentir que fiquei bem triste
quando fiquei sabendo que vc saiu da escola
enfim, fui eu que pedi pra vc ficar longe ne
não precisava ter levado tão a serio assim
:(
17:18

Uma avalanche de sentimentos me atinge com força e, quase como


um reflexo, enfio o celular no bolso e continuo caminhando em passos
largos para a saída, como se não tivesse acabado de ler o que li.
Quando alcanço o carro, estou inquieto. Ele poderia ter dito qualquer
coisa, mas não suporto a ideia dele achar que me arrependi.
Pego o celular mais uma vez para responder.

Luca Luvizotto
Julian, eu não me arrependi de nada
Por favor, nem pense nisso
Nem por um segundo
Mais tarde a gente conversa, tudo bem?
17:20

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Dirijo por mais alguns minutos até o meu apartamento, ansioso para
ver o Thomas e a Vic, mas apreensivo com o rumo dessa conversa. Sei que
eles sempre estarão do meu lado, mas ainda assim… por algum motivo,
meu estômago não para de se contorcer.
Tomo um banho rápido e vou até a cozinha. Confiro o celular, mas o
Julian não respondeu mais nada. Me sinto aliviado.
Tiro o conhaque da prateleira de bebidas e o café do armário. Coloco
a água para ferver enquanto separo os outros ingredientes do tiramisù. A
campainha toca e, antes mesmo de abrir, já sei que é a Victoria, porque o
Thomas apertaria a campainha no mínimo três vezes.
Abro a porta e Vic me entrega uma garrafa de Prosecco. Não é a
solução para todos os meus problemas, mas acho que resolve 95% deles.
— Obrigado. Tenho me sentido tão mal. Você não faz ideia.
— Ei, vem cá — ela diz, me apertando em um abraço. — Sentimos sua
falta essa semana, sabia?
Aperto ela de volta, com todos os meus pensamentos subindo pela
minha garganta em um nó doloroso. Eu prometi para mim mesmo que
não iria parecer abatido na frente deles, mas agora percebo que é
inevitável e, principalmente, inútil.
Me esforço para segurar, mas uma lágrima escapa do meu olho. Tento
limpar o rosto antes que ela perceba, mas ela se afasta, parando de frente
pra mim.
— Ai, Luca. Não aguento te ver assim. Você está me deixando
preocupada. O que está acontecendo?
— Meio que não é nada demais — explico. Mais uma lágrima. — Só
não estou lidando muito bem com tudo que vem acontecendo.
Thomas aparece no corredor antes que eu possa fechar a porta. Sem
dizer nada, ele me dá um abraço e um beijo na testa, limpando minha
bochecha úmida com seu polegar de uma forma que só ele é capaz de
fazer parecer tão espontâneo e nada constrangedor.
— Nós vamos para a cozinha. Você vai terminar aquele tiramisù que
tenho certeza que você começou e contar tudo que se passa na sua

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cabeça. Nós vamos te ouvir, te dar apoio e uma bronca, se necessário —
ele diz, dando um tapinha no meu rosto. — E se você se isolar mais uma
maldita vez que seja, eu juro que venho até aqui e quebro um macarrão
cru na sua frente.
Solto uma risada.
— Você não ousaria.
— Ah, eu ousaria, sim. E ainda jogaria ketchup na sua pizza.
— Tá legal. Já chega. Isso é considerado crime — respondo. Thomas
dá de ombros.
A chaleira apita com a água fervendo na cozinha, então preparo o
balcão para coar o café enquanto Vic tira os biscoitos champanhe que
deixei no forno hoje cedo.
— Como você está? Conseguiu finalizar as músicas novas? — ele
pergunta, se sentando em uma banqueta.
Troco um olhar rápido com a Victoria e forço um sorriso fraco, me
virando para ele.
— Sim, eu terminei. Na verdade, acabei de sair de uma reunião com a
gravadora.
— E o que eles disseram? — Vic pergunta, ansiosa. Thomas coloca a
mão no peito, arregalando os olhos.
— Eles assinaram comigo. Vão produzir meu álbum.
— MENTIRA! — ela grita com um sorriso largo.
— PORRA, EU SABIA! — Thomas se levanta, me espremendo entre
seus braços. — Eu falei que você ia conseguir!
— Luca, isso é incrível!
Os dois comemoram extasiados, até perceberem que não pareço tão
alegre assim. Misturo o conhaque com o café passado, molhando os
biscoitos nele com cuidado.
— Eu sei que eu deveria estar feliz. E, no fundo, eu estou. Era o que eu
mais queria. Sonhei muito com esse dia — começo, dando uma pausa para
um suspiro. Thomas rouba um dos biscoitos e eu dou um tapa na sua mão.
— Mas tem outras coisas nessa história que vocês precisam saber.
Eles me encaram preocupados, então continuo:

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— Tem uma pessoa que eu… queria poder ter algo com… Porque eu
me sinto… Eu gosto muito dela.
Os dois se entreolham, sem entender onde quero chegar.
— Você está apaixonado, Luca? — Vic pergunta, levantando uma
sobrancelha.
— Eu… Não sei se… Talvez, mas…
— Não acredito. Você? Apaixonado? Luca Luvizotto? Você? — Thomas
solta com ironia.
Reviro os olhos.
— Primeiro, eu não disse isso em nenhum momento. Segundo, qual
seria o problema?
— Você tá literalmente gaguejando pra formular uma frase, lindo —
Vic diz. — E não tem absolutamente nenhum problema. Só é um pouco
surpreendente.
Thomas concorda com a cabeça.
— Eu mesmo não me lembro da última vez que você sentiu algo por
alguém. Victoria, consegue lembrar?
— Bom, teve a Bianca uns três anos atrás? Mas meio que não
aconteceu nada?
— É, acho que ela não conta. Ele não tinha gaguejado assim pra falar
dela.
Esfrego os olhos, impaciente.
— Terminaram? — pergunto. — Enfim. Isso é foda, porque eu não
queria… Ou melhor, eu não esperava…
— Por que é foda? Eu sei que pode parecer assustador se envolver
com alguém, mas você precisa se permitir um pouquinho, Luca —
Thomas diz. — Você não pode passar o resto da vida evitando
relacionamentos só porque…
— Não é uma garota — interrompo.
Thomas parece confuso. Vic estreita os olhos para mim.
— Como assim, não é uma garota? É uma mulher mais velha? Você
está apaixonado por uma coroa? — Thomas pergunta com uma risada.
Vic continua imóvel.

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— Porra, não — digo.
Silêncio.
Começo a distribuir o creme em cima dos biscoitos molhados.
— É… um cara.
Thomas fica de boca aberta. Victoria se senta ao lado dele.
— Luca — ele diz lentamente. — Somos amigos há anos e eu tenho
um respeito enorme por você. Mas se você estiver apaixonado por mim…
Largo a espátula no balcão, batendo as mãos na perna.
— Caralho, Thomas. Não é você. Qual o seu problema?
Ele respira fundo, aliviado.
— Ufa. Nossa, cara. Que susto.
Victoria começa a rir.
— É o Julian? — ela pergunta com um sorriso acolhedor.
Mordo o lábio, levando a travessa do tiramisù para a geladeira sem
responder.
— O Julian? — Thomas pergunta mais para si mesmo do que para
mim. — Ele é muito bonito. E engraçado. Gosto dele.
Sorrio para os dois.
— É, eu sei.
— Ai, amigo. — Vic se aproxima para me dar um abraço. — Estou
muito feliz e orgulhosa por você ter se aberto com a gente sobre isso.
— Eu estava nervoso. — Começo a rir. — Não sabia como vocês
reagiriam.
— Que besteira. A gente só quer te ver feliz. Mas você não pode ficar
se isolando sempre que estiver passando por um momento complicado —
Thomas diz.
— Desculpe. Eu não estava nos meus melhores dias. Foi… Está sendo
muito confuso.
— A gente não está aqui só pelos seus dias bons. Estamos pelos ruins
também. Amigos servem pra isso — Vic continua. — Mas, e aí, como vocês
dois estão?
— Nada bem, pra ser sincero. Eu fiquei com medo de machucar ele e
estraguei tudo. — Balanço a cabeça. — Agora eu percebi como machuquei

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ele de qualquer forma e isso tá acabando comigo, porque ele vai embora
em duas semanas e… ao mesmo tempo que me questiono se vale a pena
tentarmos algo mesmo sabendo que uma despedida vai doer muito, eu
fico pensando em como ter me afastado só fez eu perder mais dias longe
dele, porque eu achava que estava fazendo um grande favor para nós dois
ao tentar evitar um sofrimento maior no futuro.
Victoria comprime os lábios, com aquela cara que ela só faz quando
está se preparando para me dar um choque de realidade.
— Luca, eu entendo seu raciocínio. Mas você, em algum momento,
falou com ele sobre isso? Perguntou como ele se sentia e deixou ele ter o
poder de escolha, em vez de assumir o que seria melhor pra ele? — ela
pergunta, segurando minha mão. Fecho os olhos, pensando em como eu
pude ser tão estúpido. — Eu não quero que você se sinta culpado. Você já
está lidando com muita coisa e eu só consigo imaginar o quanto tudo isso
foi difícil pra você. Mas você precisa se abrir mais para as pessoas. Falar o
que se passa aí dentro. — Ela dá um toque na minha testa. — Porque
ninguém vai poder te ajudar se você se fechar em um casulo, meu anjo.
Engulo em seco.
— Certo. Sim. Agora eu enxergo isso.
— Você gosta muito dele, não gosta? — Thomas pergunta, colocando
a mão no meu ombro. Concordo com um aceno. — É claro que você gosta,
cara. Dá pra ver no seus olhos. Olha, eu acho que você devia ir com tudo. E
que se foda o resto. Se ele vai embora ou não, não importa. Vocês vão dar
um jeito. Estamos no século vinte!
— Vinte e um — eu e Vic falamos ao mesmo tempo.
— Que seja, estão conseguindo fazer até o Harry Styles cantar em
italiano por aí com inteligência artificial. Vocês vão tirar isso de letra. O
que exatamente te impede?
Jogo a cabeça para trás, pensativo.
— Eu ser uma figura pública. Ter que lidar com todos os comentários
que vão fazer sobre isso. Precisar me explicar para pessoas que nem
conheço. Expor o Julian a todo esse caos. Contar para a Olga sobre nós. E,
por último, onde eu queria chegar com toda essa conversa: não poder

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assumir um relacionamento com ele porque a gravadora deixou bem claro
na reunião de hoje que isso não pode acontecer.
Os dois me encaram, perplexos.
— Luca, como assim? Isso é tão fodido — Thomas diz. — Por isso que
você… Porra.
— Pois é. E o diretor só me falou isso depois que assinei o contrato.
— Meu Deus. Isso é ridículo. O que eles fariam se você fosse contra?
— Victoria pergunta.
— Eu sinceramente prefiro não ter conhecimento. Vocês sabem como
a indústria do entretenimento funciona. Eu posso não ter mais nenhuma
chance em lugar nenhum, ainda mais agora que estou começando a minha
carreira. Eles me têm sob controle.
Thomas leva as mãos à boca.
— Que merda de situação. Sinto muito, cara. Nossa. Estou me
sentindo péssimo. Você não merece passar por isso. Acho que vou chorar.
— Thomas.
— Você é tão incrível e quando finalmente conhece outra pessoa
incrível, vocês… Nossa. Eu não posso… — Ele começa a lacrimejar. — E
você lidou com tudo isso sozinho esse tempo todo.
— Thomas, tá tudo bem. Você sabe que já passei por coisas piores e
sobrevivi.
— Porra, sim. — Sua voz sobe uma oitava. — Exatamente. Você não
merece mais sofrer. Que merda de mundo é esse em que vivemos?
Victoria abraça ele e trocamos um sorriso reconfortante.
— Um pouco de tiramisù vai fazer você se sentir melhor? —
pergunto.
— Você ainda fez o tiramisù pra mim mesmo carregando todo esse
peso nos ombros. Nossa. Eu sou um monstro.
— Na verdade, eu não fiz pra você. Pode ficar tranquilo. — Dou uma
piscada para ele.
Sua expressão se transforma. Victoria arqueia as sobrancelhas.
— E ainda diz que não está apaixonado? — ela pergunta.

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— Você vai falar com ele? Vai pedir desculpas? Vocês vão ficar bem?
Nosso grupo vai voltar a ser incrível de novo?
— Eu preciso falar com ele — digo. — Não sei se vamos ficar bem,
mas preciso falar tudo o que está na minha cabeça. E aí, como a Vic disse,
cabe a ele decidir o que vai fazer com isso.
— Vocês poderiam manter um relacionamento secreto. Várias
celebridades fazem isso. Ninguém precisa saber e você evita toda a dor de
cabeça — Victoria sugere.
— Bom, eu não sou uma celebridade, mas…
— Ainda — Thomas me interrompe.
— Tá. Mas não é todo mundo que se sente confortável com isso. E
vocês estão assumindo que ele quer ter algo comigo, em primeiro lugar.
— Querido, quem não quer ter algo com você é louco. — Thomas se
vira para Victoria. — Sem ofensas, porque vocês não combinavam. — Ele
faz uma careta. — É claro que ele te quer. Imagina não querer um gostoso
desse.
Tento jogar um pouco do creme que sobrou na tigela da pia no rosto
dele, mas acaba voando no cabelo da Vic. Começamos a rir enquanto ela
tenta roubar a tigela da minha mão para me sujar também.
Com creme espalhado entre mãos e narizes, dou um beijo na cabeça
dos dois, apertando um em cada braço.
— Obrigado por terem vindo. As coisas não parecem tão ruins
quando tenho vocês do meu lado.
— Eu detesto ficar de fora da sua vida — Victoria responde. — A
gente te ama muito, Luca. Agora vai atrás do seu homem.
— E nos mantenha atualizados, por favor. Eu e a Emilly estaremos na
torcida lá em casa, porque você sabe que preciso contar tudo pra ela, né?
Somos um casal de fofoqueiros que compartilham o mesmo neurônio.
— Se é que ela já não sabe — digo, levando eles até a porta da sala. —
Talvez a Lana já tenha contado.
— Impossível. — Ele balança a cabeça com convicção, mas parece
duvidar de si mesmo subitamente. — Será? Mas se ela…

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— Tchau, Thomas. — Abro a porta e indico o corredor do prédio. —
Se resolva com a sua amada, porque preciso me resolver com o meu. Amo
vocês. Se cuidem.
— Boa sorte, gatinho. Espero que dê tudo certo — Victoria diz, se
virando para as escadas.
Dou um último aceno para os dois e fecho a porta, soltando um
suspiro para a sala vazia. Pego meu celular para escrever uma mensagem.

Luca Luvizotto
Oi, Julian
Tá em casa? Posso passar aí?
18:43

Vou para a cozinha e separo uma caixa para colocar o tiramisù.


Vinte e dois minutos depois, estou batendo na porta do apartamento
dele. Jogo o cabelo para trás, arrumando a bagunça que o vento fez antes
dele atender.
Seguro as duas tulipas brancas que comprei no caminho para cá e
agora me pergunto se deveria ter comprado uma só ou um buquê inteiro.
Não queria parecer demais. Mas agora estou com medo em parecer de
menos. Bom, acho que o que vale é a intenção.
Após um espaço de tempo que parece uma eternidade, ele abre a
porta e me encara com aqueles olhos de avelã.
— Oi, Luca.
— Julian, oi. — Estico as mãos com a embalagem que preparei e as
duas flores brancas. — Eu… trouxe isso pra você. Acho que é uma boa
forma de começar o meu pedido de desculpas.
Seus olhos descem do meu rosto para minhas mãos e um sorriso
muito sutil se forma nos seus lábios.
— Sei. E o que seria isso, exatamente?
— O meu tiramisù. O melhor de Roma, lembra?

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