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REiNE L A U R E N T I N

Doutor em Letras, Doutor em Teologia,


Professor da Universidade Católica de Angers,
Membro da Pontifícia Academia Mariana Internacional de Roma

BREVE TRATADO
DE TEOLOGIA MARIANA
Traduzido da 4* edição francesa,
ampliada, revista e atualizada,

por

ROSE MARIE MURARO

EDITORA VOZES LI MI T ADA


PETRÓPOLIS, RJ
1965

JO SÊ M O REIRA DA SILVA
Título do original francês:
Court Traité de Thcotogie Mariale
P. Lethielleux, Editeur, Paris.

I M P R I M A T U R
P O R COMISSÃO E S P E C IA L DO EXMO. E REVM O. SR.
DOM M A N U EL P E D R O DA CU N H A C IN T R A ,
B IS P O D E P E T R Ó P O L IS . /
F R E I W A L T E R W A R N K E , O .F .M .
P E T R Ó P O L IS , 25-9-1964.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS


ADVERTÊNCI A
A exposição que segue dirige-se a um grande público: a
todos os que possuam, seja a cultura da inteligência, seja esta
vivência das realidades da fé que, em matéria de teologia, supre
com grande vantagem os recursos culturais. Para os espíritos
mais curiosos, para os teólogos que acaso utilizarem estas pá­
ginas, as notas proporcionarão, além da documentação, algu­
mas precisões técnicas. Elas não ocupam no edifício a posição
de um “andar térreo” (como se diz às vêzes), mas de um sub­
solo onde não penetrarão senão aquêles que quiserem experi­
mentar a solidez das fundações. De forma alguma são elas ne­
cessárias à leitura. Entretanto, aconselhamos vivamente ao leitor
que consulte as passagens da Escritura citadas no decorrer do
volume. Jamais freqiientaremos suficientemente a Bíblia.
Em vista das próximas edições, o autor acolhería de bom
grado qualquer sugestão. Especialmente, se êste ensaio parecer
muito difícil, uma fórmula simplificada poderia entrar em cogi­
tação. Com efeito, qual seria a nossa intenção, senão a de di­
fundir o mais largamente possível um conhecimento autêntico da
Virgem Maria?
APRESENTAÇÃO

O Autor da presente obra. lançada agora em versão portu­


guesa pela Editora Vozes, desfruta de renome internacional no
campo da Teologia. Além de Doutor em Letras e em Teologia,
é membro da Pontifícia Academia Mariana Internacional, Vice-
Presidente da Sociétè Française d’Études Mariales e teólogo ofi­
cial do Concilio Vaticano II.
Desde o inicio de sua carreira de estudioso, concentrou a
sua atenção sôbre os problemas da Teologia e do culto maria-
nos. Já a sua tese doutorai em letras pela Sorbona versou sôbre
um tema especificamente marial: o conceito de sacerdócio da
Virgem (Marie, 1'Église et le Saccrdoce. Essai sur le déve-
loppement d’une idée religieuse, Paris 1952). O segundo volume
desta obra, intitulado Marie, l'Église et le Sacerdoce, Étude
théologique (Paris 1953) foi a sua tese de láurea em Teolo­
gia, apresentada no Instituto Católico de Paris.
Nos dois volumes citados, o Cônego Laurentin patenteia
todos os seus dotes de estilista e teólogo, sobremodo no cam­
po da Teologia positiva, que exige diligência e perseverança
na pesquisa, aguçado senso critico e notável capacidade de
síntese.
A êstes dois volumes fundamentais haveria que acrescen­
tar um sem-número de artigos de índole estritameníe teológica
ou de alta vulgarização, publicados em diversas Revistas, es­
pecialmente em Étndes Mariales (Bulletin de la Société Fran­
çaise d’Études Mariales) e La Vie Spirituelle. De maior fôlego
são as obras; Strnctare et Thêologie de Luc l-Il (Paris 1957)
e diversos volumes acerca da história e do sentido das apari­
ções de Lourdes.
O Conrt Traité de Thêologie Mariale, que a Editora Vozes
entrega agora ao público de língua portuguesa, constitui como
que a súmula mariana de Laurentin, o resultado de suas diu-
turnas pesquisas e canseiras neste setor da Teologia. Cremos
poder asseverar que êste ensaio se constitui em uma das ten­
tativas mais felizes de síntese das conquistas da Teologia marial
8 Breve Tratado de Teologia Mariana

dêste século. O seu mérito precípuo reside em haver esboçado


as linhas e os contornos gerais de uma Mariologia que não só
satisfaça aos postulados da imensa plêiade de devotos maria-
nos, mas tome igualmente em conta as justas exigências do
teólogo crítico, que manifesta a sua devoção marial no rigor
com que pesa as suas premissas e conclusões. E’ êste último
elemento, tão dominante em todos os ensaios teológicos de
Laurentin, que o distingue de tantos outros mariólogos, cuja
preocupação quase exclusiva se resume em tecer elogios — fun­
dados ou não, pouco importa — e “decantar as glórias de
Maria”.
Terá o Autor conseguido proporcionar uma síntese sob to­
dos os aspectos ideal do elemento místico e do elemento cri­
tico, cuja amálgama é de todo indispensável a uma Teologia
e uma piedade marianas autênticas? Cremos que o próprio Au­
tor não teria dificuldades em admitir o caráter de ensaio que
reveste o seu Tratado. A obra foi escrita como um ensaio, e
como tal pede ser lida e interpretada. Ao leitor pouco familia­
rizado com os múltiplos problemas da Mariologia contemporâ­
nea é oportuno lembrar que tudo quanto Laurentin aqui afirma
está dentro da ortodoxia católica. Por outra parte, trairia a in­
tenção do Autor, extremamente aberto à legítima liberdade de
pensamento existente na Igreja, quem pensasse que as suas ex­
posições fecham a porta a opções outras que não as que se
encontram neste livro. A Teologia marial, mais do que qual­
quer outro setor, está ainda em plena fase de elaboração e não
é lícito ao teólogo e ao crente transformar hipóteses em certe­
zas, opiniões teológicas cm verdades dogmáticas.
Em uma de suas obras, o insigne Pe. R. Garrigou-Lagran-
ge, O .P ., escreve o seguinte: “O teólogo, em um primeiro pe­
ríodo de sua vid a.. . está inclinado a um sentimento de pie­
dade e de admiração pela Virgem; em um segundo período,
dando-se conta de certas dificuldades e de certas reticências
de outros, torna-se menos categórico; em um terceiro período
enfim, se tiver o tempo de aprofundar o estudo, do ponto de
vista positivo e especulativo, recai nas afirmações que fêz no
primeiro período, agora com pleno conhecimento de cau sa...
Nesta etapa, o teólogo afirma isto e aquilo, não só porque é
belo e corresponde ao que pensa a maioria, mas porque cor­
responde à verdade” (La Mère dn Sauveur et notre vie spiri-
tnelle, Lyon 1941, VII).
Apresentação 9

Nessas três pinceladas Garrigou-Lagrange sintetiza admi­


ravelmente o itinerário de quem se aventura a perscrutar o mis­
tério de Maria; itinerário composto de três etapas: prevalên­
cia do espírito devoto, prevalência do espirito crítico, síntese
harmoniosa entre um e outro. Não resta dúvida que Laurentin
superou definitivamente o primeiro estágio. Que a presente
obra ajude os leitores a superar também a segunda etapa e a
atingir a terceira, eis os votos que nos permitimos formular ao
nosso ilustre colega e aos que o lerem!
Frei Guilherme Baraúna, O . F . M .
IN T R O D U Ç Ã O G E R A L

A definição do dogma da Assunção, em 1950, colocou em


primeiro plano a questão da mariologia. Tôda a imprensa, a
partir das revistas teológicas de tôdas as confissões até os jor­
nais vespertinos, multiplicou-se em comentários, desde os mais
razoáveis, até os mais estapafúrdios. O ano mariano de 1954
e o Centenário de Lourdes (1958) fizeram aumentar ainda mais
o interêsse.
Muitos acolheram estas manifestações espontâneamente e
com fervor. Outros mostraram alguma inquietação. O problema
marial, em que jamais haviam refletido, entrava em pauta ines­
peradamente. Mil perguntas surgiam. Uma vez que a fé tem
a Deus por objeto, e uma vez que até então nenhum santo fôra
objeto de definições, por que êsse lugar dado no dogma a uma
simples criatura? Dado o “silêncio da Escritura” a seu respei­
to, como pôde ela adquirir tal importância? Em que medida o
extraordinário desenvolvimento da doutrina mariana tem sua ori­
gem na Revelação ou no subconsciente que a psicanálise estu­
da? No impulso que leva até Maria, qual é o papel da fé e
qual o do sentimento? Se eliminarmos as escórias tão difun­
didas em certa literatura de edificação, o que sobrará do Mis­
tério de Maria?
Os que faziam mais ou menos confusamente tôdas essas
perguntas e muitas outras pressentiam que não se tratava de
dar a cada uma delas uma resposta improvisada, mas de adqui­
rir uma visão de conjunto a partir da qual tôdas se resolve­
ríam, assim como, possuindo o plano de uma cidade, qualquer
um pode achar seu itinerário. Responder a êsse desejo por
uma exposição breve e objetiva, eis o escopo dêste Breve Trata­
do de Teologia Mariana.

A Virgem e o tempo
Se a palavra Tratado significasse dedução abstrata, arran­
jo em fórmulas rígidas, tal nome conviría muito mal ao pro­
pósito do presente estudo. Ficaria em dissonância com a pala-
12 Breve Tratado de Teologia Mariana

vra mariana. Com efeito, o mistério de Afaria não tem a lógica


de um teorema, mas a de um destino livre, entregue às orien­
tações algumas vêzes desconcertantes do Espírito. O traço, se­
não o mais profundo, talvez o mais característico dêste destino
e da doutrina que tenta exprimi-lo, parece ser o tempo: a lei
da duração e do progresso. Um tratado que, por excesso de
lógica, se afastasse dêsse elemento de base, deixaria escapar,
senão o essencial, ao menos algo do essencial.

Nosso itinerário
Duração, progresso: foi segundo essa lei que Afaria, pouco
a pouco, se foi tornando conhecida na Igreja. Quase ausente
da mensagem primitiva, ausente da catequese, enquanto esteve
sôbre a terra, no meio da Igreja, foi, no sentido mais óbvio
da palavra, “descoberta” a partir dessa presença inicial.
Duração, progresso: é também segundo esta lei, ou me­
lhor, foi primeiramente por essa lei que Afaria viveu. Sua vida
é progressão: da obscuridade da fé à luz da visão beatífica;
da gratuidade do dom original ao cúmulo de méritos com que
deixou esta terra; da receptividade inicial às derradeiras con-
seqiiências de sua missão maternal; da plenitude de graça pes­
soal e secreta do primeiro instante à plenitude social e mani­
festa que Ela irradia hoje do alto do céu.
E’ esta dupla progressão que iremos seguir: veremos pri­
meiro como a Igreja, pouco a pouco, foi tomando consciência
do mistério de Afaria, depois, entrando no âmago dêsse mis­
tério, contemplaremos o desenvolvimento do seu destino, da
Imaculada Conceição à Assunção e à Parusia.
PARTE I

DESENVOLVIMENTO DA DOUTRINA MARIANA


INTRODUÇÃO DA PRIMEIRA PARTE

A doutrina mariana se desenvolve na Igreja, seguindo uma


curva característica: não de crescimento continuo, mas de cresci­
mento ritmado. Ao seguirmos seus progressos, pensamos ime­
diatamente no movimento da maré montante. Como as ondas se
erguem, culminam, rebentam e depois retrocedem, até que a se­
guinte leve mais adiante seu impulso, assim cada período des­
cobre algum traço oculto da fisionomia da Virgem, descobre-o
com entusiasmo, e às vêzes com algum excesso, e, muitas ve­
zes, não sem luta. Depois, tudo volta à calma. As novas aqui­
sições vão-se decantando no silêncio. O desenvolvimento do
dogma mariano faz pensar ainda em outra comparação, mais
vital, desta vez: O crescimento de uma árvore, com a suces­
são de eclosões primaveris e os repousos invernais. Três séries
de fatos manifestam êsse ritmo alternando a quantidade dos es­
critos, sua qualidade, e a aparição de conceitos e fórmu­
las novas.
Assim, o desenvolvimento da doutrina mariana divide-se na­
turalmente em seis etapas:
1. Tempo da Revelação consignada na Escritura.
2. Idade patrística até o Concilio de Éfeso (431).
3. De Éfeso até a Reforma Gregoriana (cêrca de 1050).
4. Do fim do século XI até o fim do Concilio de Tren-
to (1563).
5. Séculos XVII e XVI11.
6. Séculos XIX e XX.
No limiar dêsse desenvolvimento, importa situar uma etapa
preliminar: aquela em que a silenciosa presença da Virgem ain­
da não é objeto de nenhum ensinamento.
Etapa preliminar: presença e silêncio
Partamos da situação de Pentecostes: nesse dia, a Igreja
se manifesta visivelmente. Começa a pregação apostólica; ela-
bora-se a primeira catequese cristã, sob a moção do Espírito
Santo. Pedro fala, e Maria está presente (At 1,14).
16 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

Ela lá está com os apóstolos, as santas mulheres e os pa­


rentes de Jesus, perdida num grupo de cêrca de cento e vinte
pessoas reunidas no Cenáculo. Não se encontra entre os doze
testemunhas oficiais (At 1,22; cf. 13), ministros da palavra
(Lc 1,2), que ocupam o primeiro plano (At 1,21-22; 2,14; cf.
32), mas sim, entre as cem outras pessoas. Pedro fala (2,17),
mas não fala dela.
Êsse silêncio não é esquecimento nem acaso. Êle se origi­
na do programa da catequese cristã, nitidamente delimitado por
Pedro, antes do dia de Pentecostes: “Jesus... desde o batismo
de João atê a Ascensão’' (At 1,22). A êsse programa o primeiro
dos apóstolos permanecerá fiel durante tôda a sua pregação,
como demonstram seus discursos conservados nos Atos (2,17-
36; 10,36-43) e o Evangelho de Marcos, que fixa (talvez, de­
senvolvendo-a um pouco) a última fase de sua catequese oral.
E’ precisamente durante o período assim delimitado — o tempo
da vida pública — que Maria ficou, salvo em raros momentos,
separada de Jesus.
Muito provavelmente, é depois da metade do século 1 que
a narração do nascimento e da infância, onde Maria ocupa tão
grande destaque, é acrescentada, à guisa de prólogo, à cate­
quese cristã. E' no fim dêsse século com o Evangelho de João
(2,1-12 e 19,25-27) que os dois episódios da vida pública, em
que Maria desempenha um papel positivo, assumem seu lugar
na trama evangélica. Sem dúvida, êsses primeiros dados sôbre
a Mãe de Jesus foram introduzidos na catequese primitiva para
enfrentar as heresias de tipo doceta, que tendiam a imaginar um
Cristo fantasmagórico, que tivesse aparecido de repente ou des­
cido do céu adulto, qual nôvo Adão. Recordar que Êle havia
nascido, que tinha uma mãe, era afirmar que Êle pertencia ver-
dadeiramente à raça humana.
Mas, como quer que seja, durante um tempo, cuja duração
precisa nos escapa, a Mãe de Jesus existe e vive na igreja,
sem que explicitamente se fale dela. Sua intercessão e sua ora­
ção existem, mas permanecem ocultas. Ela parece não conhecer
o alcance de sua influência, e ninguém ao seu redor o sabe.
Ela é um órgão vivo do Corpo de Cristo, mas não é objeto de
ensino. Como certos sacramentos, Ela é uma realidade na vida
da Igreja, antes de ser objeto de dogma. Pouco a pouco, esta
realidade, obscuramente experimentada na comunhão dos San­
tos, vai encontrando sua fórmula explícita. Explicando mais
Introdução da Primeira Parte 17

amplamente o mistério de Cristo, ir-se-âo descobrindo as atri­


buições de Maria. O primeiro conjunto de fórmulas, que a Tra­
dição posterior não fará mais que inventariar e elucidar, apa­
rece progressivamente, na proporção em que se vão elaboran­
do os Evangelhos.

Antigo Testamento
Entretanto, antes dêsse “silêncio inicial” que preludia os
primeiros escritos do Nôvo Testamento, Deus já havia falado.
Não conviria, neste caso, elaborar um capítulo relativo aos tex­
tos marianos do Antigo Testamento? Renunciamos a isto por
causa da extrema discrição desses textos. Que o Espírito Santo
haja esboçado o papel da Mãe de Deus no plano da Salvação,
parece-nos, hoje, claro. Mas, se olharmos êsses textos segundo
o método histórico — colocando-nos do ponto de vista do au­
tor inspirado e de seus contemporâneos — permaneceremos em
uma espessa neblina. As profecias marianas do Antigo Testa­
mento apresentam-se como indícios fugitivos, que só revelam
seu pleno significado muito mais tarde: elas não constituem
uma descrição do futuro, mas uma porta entreaberta para um
porvir ainda enigmático. Antes da vinda de Cristo, não se sa­
bería responder à pergunta: Quae est ista? Quem é esta? (Cânt
3,6; 6,9), nem mesmo dar a êsse singular uma consistência
firme. A mulher, cujo lugar foi esboçado no Reino messiânico,
— perguntava-se — em que medida era ela a coletividade (a
Igreja) ou uma mulher extraordinária, a mãe do Messias, ou
mesmo, se não seriam várias? Como teria sido difícil respon­
der a essas questões, ou até mesmo propô-las, antes do apa­
recimento da Virgem! Mas, assim que Ela veio, podia-se dizer:
tratava-se dela. E’, pois, com os Evangelistas que descobrire­
mos retrospectivamente o alcance mariano efetivo dos textos do
Antigo Testamento, principalmente Gn 3,15; Is 7,14; Miq 5,12.
Tomar êsse partido não é negar que Deus tenha previsto
de longe a Virgem Maria, que a tenha preparado, que Êle te­
nha, mesmo, esboçado, alguns traços de sua fisionomia; mas
sim, é querer considerá-los sob a luz, sem a qual êles não nos
revelariam seu sentido. E’ libertar a exposição de muitas com­
plicações, reconhecer quanto estava latente no Antigo Testamen­
to o que se tornou patente no Nôvo. *

* Na última hora decidi-me a consagrar a esta questão uma nota


anexa. Ver pp. 177-184.
Breve Tratado — 2
PRIMEIRO PERÍODO

MARIA NAS ESCRITURAS 1

As primeiras formulações do papel de Maria, a elaboração


fundamental à qual não se acrescentará nada que seja substan­
cialmente nôvo, estão contidas no Nôvo Testamento, cuja reda­
ção se fêz durante cêrca de meio século, para finalizar perto
do ano 90, com o Evangelho de São João. A Mãe de Jesus
ocupa ai um lugar materialmente pouco importante, mas pro­
fundamente significativo. E’ necessário que nos detenhamos com
atenção especial nestes dados de base, que são a própria pa­
lavra de Deus.
Gálatas 4,5
A Virgem aparece incidentalmente na Epístola aos Gaia­
tas. Êste testemunho talvez seja o mais antigo que tenha che­
gado até nós.: Em sua maneira de ser, muito densa, êle repre­
senta o primeiro extrato da mensagem do Nôvo Testamento:
“Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu
Filho nascido de uma mulher, sujeito à lei, para resgatar os
que à lei estão sujeitos e fazer de nós filhos adotivos” (Gál
4,4-5; cf. Rom 1,3).
Repararam os leitores na estrutura da frase? Quatro idéias
ai se correspondem duas a duas, num corte harmonioso:

Nascido de uma mulher para fazer de nós filhos adotivos

Sujeito à lei para resgatar os que à lei estão sujeitos

’ Bibliografia sôbre Maria e as Escrituras no fim dêste volume.


5 Ela foi composta ou em 48-49, durante a viagem a Antioquia, ou
entre 53 e 58, durante a viagem a Éfeso. Cf. E. Osty, Les Êpitres de
St. Paul, Paris Siloé, 1945, p. 11; S. Lyonnet, Les Êpitres aux Galates
et aux Romains, Paris, Cerf, 1953, estima a segunda hipótese mais
provável.
2*
20 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

E’ tentador prolongar um dos eixos desta dupla concepção.


Uns são atraídos pelo eixo vertical: a relação niullier-lei não é
para Maria um título de glória (Gál 3,15-4,7; cf. Rom 2,21-
4,25;7). Outros se fixam sôbre o eixo horizontal: “Nascido de
uma m ulher... para fazer de nós filh o s...” e, por menos que
vejam nisso uma alusão à “mulher” do Gn 3,20 (Eva, “Mãe
dos Vivos”), orientarão seu comentário em direção à mater­
nidade espiritual. Ambas as aproximações (mulher e lei, nasci­
mento humano do Filho de Deus e filiação adotiva dos cristãos)
estão fundadas no texto. O primeiro responde ao tema paulino
da humilhação do Filho de Deus, à Sua “kenose”, à “condição
de escravo” (Filip 2,7) que Ele aceitou por nós. A segunda
aproximação afirma que esta humilhação, êsse rebaixamento,
foi o meio escolhido para a salvação. Dito isto, não ousaría­
mos frisar a analogia entre a mulher e a lei (como o fazem
certos detratores de Maria). As realidades objetivas (esta pes­
soa que se tornou Mãe do Deus-Salvador e êste código abstra­
to) são por demais diversas. Não ousaríamos, igualmente, fri­
sar a segunda aproximação: nada permite supor que São Paulo
atribua um papel pessoal a Maria na filiação adotiva. O que
êle nos diz reduz-se ao seguinte: uma mulher assegurou a en­
trada do Crislo na raça humana, “quando chegou a plenitude
dos tempos”. Quem é esta mulher? Qual é o seu nome? Será
ela um simples instrumento material ou um instrumento privi­
legiado? Podemos levantar, de fora, referências e reflexões para
fazer êsse texto “falar”. Mas não se pode tirá-lo, sem ajuda
exterior, de seu laconismo.

Marcos
Os dois únicos textos de Marcos sôbre “a Mãe” de Jesus
(3,31-35; 6,1-6) têm o mesmo caráter ocasional. Têm, ainda
mais, uma feição negativa. Num dêles, Jesus recusa a intro­
missão de Sua família em Seu ministério e afirma que Sua
verdadeira família são Seus discípulos:
Havia uma multidão sentada em redor de Jesus e alguém
Lhe disse: “Olha, aí fora estão tua mãe e teus irmãos que te
procuram”. Êle lhes respondeu: “Quem é minha mãe e quem
são meus irmãos?” E deixando cair Seu olhar sôbre os que
O rodeavam: "Vêde", disse Êle, “minha mãe e meus irmãos; pois
aquête que faz a vontade de Deus é para mim irmão, irmã e
mãe” (Mc 3,31-35; Mt 12,46-50; Lc 8,19-21).
I. Maria nas Escrituras 21

No outro, Seus compatriotas recusam-se a crer n'ÊIe pre­


cisamente por ser apenas “o carpinteiro, filho de Maria” (Mc
6,1-6). O conhecimento de Jesus segundo os sentidos impede o
conhecimento segundo o espirito.
Êstes textos fecham um caminho: aquele que teria outor­
gado a Maria uma grandeza segundo a carne, tal como a
concebia a mãe dos filhos de Zebedeu (Afc 10,37). Eles nos
impedem de exaltar a maternidade de Afaria, abstração feita
dos dons da graça que a ela estão ligados, e que o resto do
Nôvo Testamento nos fará descobrir.
* * *

Devemos êstes desdobramentos aos outros três evangelis­


tas. Entre 50 e 70, Afateus e, em seguida, Lucas, nos falam do
papel de Maria no mistério da Encarnação. Por volta do ano
90, João, ao fim de suas meditações, abre uma perspectiva sô­
bre a atuação da Virgem no mistério da Redenção. Esta pri­
meira explicitação está concretamente ligada á presença viva
de Afaria na Igreja primitiva. Lucas bem parece ter recebido
d’Éle aquilo que êle dizia no evangelho da Infância: refere-se
por duas vêzes às recordações que Ela guardava em Seu co­
ração (Lc 2,19 e 51). Quanto a João, o Senhor, ao morrer,
confia-lhe Sua Afãe (19,27). Êle aprendeu, por experiência fi­
lial, aquilo que nos deixa entrever do mistério de Afaria.
Os textos que iremos examinar são breves e seria fácil
transcrevê-los, mas se prestarmos atenção aos laços que os
unem entre si e àqueles que os remetem ao Velho Testamento,
sua profundidade aparece. Não somente se confirmam como, às
vêzes, se multiplicam uns pelos outros. São, relativamente a
essas profecias misteriosas — notadameníe: Gn 3,15; Is 7,14 «a
e Miq 5,2 — como o desenvolvimento musical que dá sentido
a um prelúdio enigmático. São entre si como os registros su­
perpostos de uma cantata de Bach, cujas melodias próprias não
adquirem todo o seu pleno valor, senão associadas às demais.
Particularmente notável, neste sentido, é a harmonia entre Lu­
cas e João.
Mateus
O primeiro evangelista nos dá a chave da profecia de
Is 7,14:
Eis que a jovem (hã‘a!mãh) concebe, dá á luz um Filho e Lhe
dá o nome de Emanuel.
22 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana
O texto era misterioso, ambíguo. Frequentemente alguns se dão ao
trabalho de descobrir nêle a concepção virginal. Mas não lemos ali
a palavra hebraica befúlãh que significa formalmente virgem, e sim
■almãh, que quer dizer môça núbil e não expressamente virgem (Gn
24,43; êx 2,8; SI 68,26; Cânt 1,3.6.8 e sobretudo, Prov 30,19). Pode
dizer-se ao menos: esta jovem recebe a missão de dar um nome a Seu
Filho (Lc 1,31). Ela exerce, assim, um direito que pertence, em geral,
ao pai. Será, então, que não existe um pai? Com efeito, a mãe de
Ismael (Gn 16,8) e a de Sansão (Jz 13,24) exercem êste papel, sem
que por isto a figura dos pais seja minimizada (Gn 16,15).
Todavia, o oráculo não se desfaz. Èle apresenta prelúdios mes­
siânicos difíceis de esclarecer: coloração escatológica do contexto ime­
diato, proporções transcendentes do Emanuel no contexto posterior
(Is 9,1-6; 11,1-9).
Ainda que o oráculo vise de imediato o nascimento de Ezequias,
o que é provável, prevê, em última instância, o Messias e Sua Mãe.
Dois séculos antes do Cristo, os Setenta põem em relevo esta visão
escatológica; fazem desaparecer a ambigüidade do texto. A jovem
(‘almãh) passa a ser formalmente virgem (bctúlãh). O enigmático pre­
sente profético (participio hebreu) torna-se futuro. “Eis que a jovem
concebe” muda-se em: “eis que a Virgem conceberá". Esta dupla va­
lorização do alcance do texto revelará apenas uma fase do pensamento
judeu? Cada vez mais se compreende que é necessário ir mais longe.
Segundo a convicção de diversos Padres da Igreja, parece que esta
tradução dos Setenta e os desdobramentos que ela fêz surgir foram
realizados sob o sôpro da inspiração.
Mateus, que cita esta versão, não deixa de reconhecer em
Maria “a Virgem” misteriosa. A realidade dos fatos permite-
lhe precisar: trata-se de uma concepção virginal que tem por
origem o Espirito Santo (Mt 1,18 e 21; cf. Is 11,2), com ex­
clusão de qualquer intervenção carnal (1,18 e 25). A criança
que nasce assim na família de David é o Salvador de Israel.
Foi assim o nascimento de Jesus Cristo: Maria, Sua Mãe,
casada com José, ficou grávida por obra do Espirito Santo, antes
de coabiíar com seu marido. José, Seu esposo, homem justo, não
desejando difamá-la, resolveu repudiá-la secretamente. Já havia
tomado tal deliberação quando o anjo do Senhor lhe apareceu
em sonhos e disse: “José, filho de David, não temas conservar
contigo Maria, tua esposa, pois o Ser que n’Ela foi gerado veio
do Espirito Santo. Ela dará à luz um Filho e tu Lhe darás o nome
de Jesus, porque será Êle quem salvará Seu povo dos pecados".
Tudo isto ocorreu para que se cumprisse o que o Senhor disse
pelo profeta: “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um
Filho e se Lhe dará o nome de Emanuel”, o qual significa —
Deus conosco (Mt 1,18-23).
“Deus-conosco” — estas palavras, que no texto de lsaias
não tinham senão um sentido indeterminado, e podiam ser inter­
pretadas como indicando uma assistência divina (Is 8,8 e 10),
começam a revelar aqui o sentido que a Igreja lhes reconhece
hoje: a divindade do Messias. Neste sentido pleno, se opera
a junção de duas grandes correntes de textos que percorrem
I. Maria nas Escrituras 23

todo o Antigo Testamento: uma que elevava o Messias até ter


atributos divinos, e outra que descrevia a descida de uma hi-
póstase de Deus (o Verbo, a Sabedoria) entre os homens. ’
Lucas
Passando de Mateus a Lucas, chocam-nos as diferenças.
A escolha dos episódios é completamente diferente: Em Mateus
1-2: visita dos magos, massacre dos inocentes, fuga para o
Egito. Em Lucas 1-2: anunciação, visitação, apresentação e reen­
contro no Templo. O primeiro parece estar apegado aos pre­
lúdios universalistas: visitantes vindos do Oriente; fuga de Je­
sus para um país estrangeiro. O segundo concentrou-se sôbre
as relações de Cristo com Israel, Jerusalém, a Lei e o Templo.
Diferenças também quanto às duas genealogias. Retenhamos
apenas um ponto: Mateus apraz-se em mencionar as mulheres
estrangeiras que abrem uma perspectiva para além de Israel.
Lucas procurou a explicação universalista pelo alto: para além
de Abraão remonta a Adão e a Deus, seu Criador. Assim, li­
gado à criação do primeiro homem, o mistério do nascimento
virginal revela melhor seu sentido e seu alcance. E’ o despon­
tar da nova criação anunciada pelos profetas.
Além dessas diferenças que nos chocam à primeira vista,
descobrimos nos dois evangelhos da infância os mesmos da­
dos essenciais: nascimento em Belém, infância em Nazaré, o
nome de Jesus imposto pelo anjo (Mt 1,21; Lc 1,31), con-
1 O movimento ascendente que tende para a divinização do Mes­
sias procede de 2 Sam 7,12-17, e de Is 9,5-6, cf.' SI 2,45 (Vulg. 44);
72 (Vulg. 71); 110 (Vulg. 109).
O movimento descendente das hipóstases aparece em Prov 8; Ecli
24 (cf. 1,1-10); Sab 7,15-30. A Sabedoria, saida da bôca de Deus,
se compraz em habitar entre os homens. Dan 7,13-14, se une a es­
ta linha.
A junção dos dois movimentos se manifesta particularmente, se
seguirmos no Antigo Testamento a evolução da noção de realeza: no
ponto de partida, ao tempo de Samuel, há oposição e contradição entre
a realeza de Javé, fundamento do regime teocrático, e a realeza con­
ferida a um homem (I Sam 8,6-19). Mas pouco a pouco, Javé, Rei de
Israel, (Nm 23,21; Dt 33,5; Is 6,1-12; Miq 2,13; Sof 3,15) e o Messias,
Filho de David, (2 Sam 7,12-17) tendem a se confundir. Seguimos êste
movimento em Is 9,6, e nos SI 2,44,109, citados no inicio desta nota;
cf. 72 (Vulg. 71). O ponto de Junção mais notável no Antigo Testa­
mento é sem dúvida Dan 7,13-Í4, onde o “Filho do homem” aparece
sôbre as nuvens do céu, e parece exercer as funções reais da Sabe­
doria (Prov 8,15-16; Sab 8,1). No fim, temos o Evangelho da Anun­
ciação, onde o Filho prometido a Maria realiza, melhor que em todos
os textos precedentes, os traços do descendente de David, e de Javé,
rei transcendente.
24 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

cepção virginal por obra do Espírito Santo (Mt 1,18-20 e Lc


1,35). Embora José não tenha exercido nenhuma interferência
(Alt 1,18 e 25; Lc 1,34,35), resta o liame genealógico que une
Jesus a David (Mt 1,16; Lc 3,23): para os antigos a descen­
dência é mais um assunto jurídico e moral do que biológico
(e é isto que explica as divergências entre as duas genealogias
do Cristo). Enfim, um e outro evangelista refere-se às gran­
des profecias dinásticas: 2 Sam 7,14 (o herdeiro prometido a
David), Is 7,14 (a Virgem que concebe) e Miq 5,2: Aquela que­
dará à luz na cidade de David (Mt 2,5-7 e Lc 2,14).
O que nos interessa é o que Lucas traz de nôvo com re­
lação à Mãe de Jesus. Aqui a diferença-chave é a seguinte:
Mateus apresenta o nascimento do ponto de vista de José, che­
fe da Sagrada Família e testemunha do mistério do nascimen­
to virginal. E' êle que nós vemos agir, refletir, debater-se com
Deus e com os homens. Maria vem em segundo plano. Teria
Ela tido, neste mistério, uma atividade consciente e pessoal?
O primeiro evangelho não nos permite sabê-lo. Lucas, ao con­
trário, coloca-se do ponto de vista de Maria. E’ Ela quem
ocupa o centro da narração, a qual provém, ao menos em
parte, das lembranças que Ela conservava em Seu coração
(2,19 e 51).
Ficamos sabendo, assim, a origem primeira do mistério —
a Anunciação do anjo Gabriel. Conhecemos, também, as rea­
ções de Maria (1,29 e 34), Suas atividades (1,39-56), Sua
súplica (1,38.46-54), Sua atitude em relação a Deus. O Evan­
gelista insiste sôbre sua fé, igual à nossa, por Sua condição
obscura (1,29; 2,50); embora sem desfalecimento, em contraste
veemente com a de Zacarias, como ressalta da comparação dês-
ses dois textos paralelos:
O anjo a Zacarias em Lc 1,20 Isabel a Maria em Lc 1,45; cf. 38
Serás mudo, Feliz de ti
porque não creste, que creste,
em minhas palavras, pois as palavras do Senhor
que se cumprirão. se cumprirão.
Descobrimos, enfim, que a virgindade de Maria era objeto
de propósito deliberado. Ao anjo que Lhe anuncia uma feliz
maternidade, Ela objeta: “Como sucederá isto, pois que não
conheço homem?” (Lc 1,34). Surpreendente resposta da parte
de uma “noiva”, numa época em que os esponsais já compor-
I. Maria nas Escrituras 25

tavam todos os direitos do casamento. * A menos que se tôrça


o sentido do texto, é forçoso reconhecer a seguinte significa­
ção: AAaria, inspirada por Deus, havia decidido não conhecer
homem, no sentido bíblico desta expressão1 (cf. Gn 4,1; 17,25;
19,5.6; 38,26, etc.).
A fisionomia espiritual de Maria se resume no contraste
de sua humilde situação humana, e sua grandeza segundo a

* E’ preciso, talvez, dizer mais. No início do relato da Anuncia­


ção, Lucas apresenta a Virgem como uma parthcnos emnêsteuménê.
Traduzimos geralmeníe Virgem noiva. Ora, em Lucas 2,5, a mesma
palavra (emnêsteuménê) significa certamente casada: Seria lógico uni­
ficar as duas traduções como o fêz a Vulgata que emprega nos dois
casos a palavra dcsposada. Os tradutores ficam embaraçados: Osty e a
maior parte traduzem noiva para o primeiro texto, esposa para o se­
gundo. Lagrange traduz noiva para os dois (o que admira um pouco
em 2,5). H. Diepen (em Ons Geloof 28. 1946, pp. 146-167) traduz
casada nos dois casos. D. Frangipane,C. Lattey, F. Ceuppens (ver
R. Laurentin, Lc 1-2, Paris, 1957, p. 105, nota 3) retomaram esta so­
lução que parece a mais provável. Nesta hipótese, o primeiro versículo
da narração da Anunciação (do qual nos perguntamos desde São Ber­
nardo se êle é banal, como parece ser a situação da camponesa da
üaliléia, ou solene, como o parecem insinuar a colocação e o tom)
enunciaria de modo surpreendente o dado desconcertante que domina
tôda a narração: o mistério da Virgem-casada. Desde o inicio o enigma
seria exposto em referência a Is 7,14 (que parece apresentar diversos
contactos com Lucas 1,26-31):
Lucas 1,26 e 31 Is 7,14
O an jo ... foi enviado a uma Virgem Eis que a Virgem
. . . "Eis que conceberás concebeu
em teu ventre
e darás à luz um Filho e deu à luz um Filho
e tu Lhe darás o nome e ela Lhe dá o nome
de Jesus". de Emanuel.
Lucas 1,34 (“Como isto se fará, pois não conheço nenhum ho­
mem?”), nos faria penetrar o coração do enigma: o propósito de
virgindade, formulado por Maria, e sem dúvida conhecido e aceito
por Seu espôso (ver R. Laurentin, Lucas 1-2, Paris, Gabalda, 1957,
pp. 175-189).
* Que o sentido de Lucas 1,34, seja bem um propósito de vir­
gindade, numerosos autores protestantes e racionalistas dão disto um
testemunho tanto mais impressionante porser suspeito. Eles eliminam
o v. 34 do texto primitivo precisamente porque êste propósito lhes
parece incompatível com 1,26 onde Maria é apresentada como noiva
ou casada. (Assim por exemplo, Harnack em Zeit. ncut. Wiss. 2, 1901,
53-57, e H. Sahlin, Das Messias, Uppsala, 1945).
Autores, mesmo católicos, têm, todavia, tentado esquivar-se desta
interpretação por três caminhos.
a) Para uns, Maria compreende que sua concepção é iminente, e
responde: “como se fará isto, poisneste momento preciso em que
tu me falas, eu não conheço nenhum homem no sentido bíblico desta
palavra, ou dito de outro modo, eu não realizei o ato necessário à
procriação”. Esta explicação é apoiada na autoridade de Cajetan. (Ela
26 Parte i: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

graça, contraste que é, em realidade, harmoniosa aliança, da


qual ela própria tem consciência muito lúcida. Situa-se no tér­
mino da linhagem dos “pobres”, dos “humildes”, que são, se­
gundo a Escritura, a porção escolhida de Israel. O Senhor a
contemplou em sua pobreza e, parece, exatamente por causa
dessa pobreza (1,48), ela é o protótipo dêsses pobres que o
Senhor se compraz em exaltar (1,52). E' êsse o tema de todo
o Magnificot.'

é sustentada por Haugg, citado no fim desta nota, e H. Féret, Messia-


nisme et Annontiation, em Prêtre et Apôtre, 29, 1947, pp. 37-38). Mas
é infinitamente mais óbvio reconhecer no presente “eu não conheço"
um valor de estado e não de momento. Um exemplo para ilustrar
êstes dois têrmos abstratos: se alguém a quem se oferece um cigarro
responder “eu não fumo”, compreenderemos que isto significa “eu nun­
ca fumo” e não “eu não vou fumar neste momento”.
b) Para outros, Maria compreendería que, segundo o aviso do
anjo, a concepção já está realizada, como no anúncio feito a Agar, de
acordo com Gn 16,11: “Eis que tu concebeste" (Haugg, ibid., pp. 56-
59; H. Sahlin, Das Messias, pp. 104-113). Mas o texto de Lucas de­
monstra bem o futuro.
c) Segundo J. P. Audet (UAnnoncc faite à Marie, em Rev. Bibl.,
63, 1956, pp. 365-372), o texto enunciaria não um propósito de virgin­
dade, mas, bem ao contrário, um propósito de casamento. Maria sa­
bendo por Is 7,14 que a mãe do Messias devia ser virgem oporia ao
anjo esta objeção: “como se fará isto, pois então (= para ser mãe do
Messias) eu não deveria conhecer homem, e, entretanto, eu estou pro­
metida a José?" A demonstração de Audet é engenhosa e brilhante;
êle traduz “epei" (normalmente: pois que) por pois que então, invo­
cando o alcance desta palavra em I Cor 5,10; 7,14; 15,29; Heb 9,26
e 10,2 — e "ou gltinõscõ" (normalmente: eu não conheço) por eu não
deveria conhecer. Mas esta interpretação cria dupla dificuldade. I" Ela
estende demasiadamente os limites da elasticidade da gramática. 29 Ela
introduz pressupostos exteriores aos dados do texto.
Bibliografia: D. Haugg, Das erstc biblische Maricnwort, Stuttgart,
1938 (que endossa a segunda opinião). F. Ceuppens, De mariologia
bíblica, Roma, 1948, pp. 73-78; R. Laurentin, Lucas 1-2, Paris, 1957,
pp. 175-178. Duas monografias bem documentadas acabam de ser con­
sagradas à questão do voto da virgindade de Maria: B. Brodman, OFM,
Mariens Jungfrautichkeit nach Lc 1,34 in der Auseinandcrsetzung von
hcute, em Antonianum, 30 (1955), pp. 27-44 (ponto de vista exegé-
tico), e B. Laurent, Critiques et mystiques devant lc voeu de virginité,
em Rer. d’asc. myst., 31 (1955), pp. 225-248. (Estudo do conjunto
com investigação sôbre os dados tradicionais).
* As palavras gregas tapéinosis (Lucas 1,48) e tapeinós (1,52) não
são traduzíveis: baixeza, humilhação, pobreza, humildade, dizem_ os tra­
dutores. A raiz semítica não deixa dúvida, ‘ãnãiv pobre, 'anãwâh ou
‘õní, pobreza: estas duas palavras têm uma história. No principio, elas
significavam somente a indigência (Lcv 19,10; 23,22; Dt 15,11; 24,12;
Is 10,2; ler 22,16, etc.), e sua exploração pelos ricos, aos quais a Lei
impõe um freio (Ê.v 22,20-24; Dt 24,12-17; Lev 19,20; 23,22). — Pouco
a pouco a palavra se carrega de um sentido religioso muito profundo,
sobretudo nos Salmos (sem dúvida, porque Deus se compraz em reve-
I. Maria nas Escrituras 27

Esta exaltação de Maria pela vontade gratuita de Deus é


um dos Ieitmotivs, de Lucas 1. O Anjo Gabriel A saúda com
o nome de kecharitõménê (1,28). Esta palavra é intraduzivei,
o que nos obriga a recorrer a uma perífrase: “aquela que é
objeto do favor de Deus”. O particípio do passado perfeito
do grego insinua que se trata de um favor estável, definitivo.
E, principalmente, essa denominação lhe é dada do alto, é o
verdadeiro nome de Maria diante de Deus. O “Objeto-do-favor”
por antonomásia, diriam os manuais de retórica, ou, mais sim­
plesmente, por excelência. **
Êste primeiro elogio repercute ao longo de tôda a narra­
ção da Anunciação e da Visitação: O Senhor está com ela
(1,28); o Espírito Santo virá sôbre ela (1,35). Grandes coisas
são realizadas nela (1,49), graças à sua fé (1,45), e por isso
(é ela própria que o entrevê), “tôdas as gerações” a “chama­
rão bem-aventurada” (1,48). Haverá outro personagem bíblico
que tenha merecido sem restrições elogios tão fortes?
Por pouco, e se não fôsse um texto inspirado, seriamos
tentados a achar o cristocentrismo em xeque. Em Lc 1,35, o
anjo diz a Maria: “O Espírito Santo virá sôbre ti, e a virtude*01

lar-se aos pobres, aos humildes, aos oprimidos, mais que aos ricos
e aos poderosos). E' na classe dos “pobres” que se procura a ascen­
são religiosa de Israel; sua piedade e sua oração, sua espera e sua
esperança.
No Evangelho de Lucas, Maria está situada nesta linha. Nela se
realiza o triunfo espiritual dos humildes, e a satisfação de suas espe­
ranças. Jesus se dá como o modelo da humildade do coração (Alt 11,29)
e proclama bem-aventurados os que a compreendem (Lc 6,20). Sabe­
mos com que profundeza experimental êste segredo evangélico foi re-
descoberto por Santa Teresa do Menino Jesus, cuja palavra bem co­
nhecemos: “Sim, eu compreendí a humildade do coração” (Novíssima
Verba, 30, setembro, ed. Lisieux, 1926, p. 193).
Na primeira edição dêste Breve Tratado, assinalamos o interesse
que haveria em estudar “os progressos desta noção de pobreza atra­
vés do Antigo Testamento, seu coroamento na Virgem do Magnificat
e no Cristo, e seu valor para nossa vida". Êste programa estava sendo
realizado na hora em que o propusemos: o leitor lerá com proveito
A. Gelin, Les Pauvres de Yawch, Paris, Cerf, 15 dezembro 1953. O
capitulo VI, pp. 121-133, é consagrado a Maria.
01 Por que não traduzir simplesmente: cheia de graça? E’ por preo­
cupação de exatidão filológica. Sem dúvida, o texto inspirado sugere
a idéia de plenitude, mas de maneira discreta e não explícita. Por
outro lado, êle toma a graça, não pelo lado de seu efeito (o que tende
a significar a expressão cheia de graça), mas pelo lado da causa: a
benevolência de Deus. No versículo 30, o anjo Gabriel comenta: “Achas­
te graça (chárin) diante de Deus". Dizendo “gratia plena”, a Vulgata
representa, pois, uma interpretação dogmaticamente válida, mas é mais
uma transposição que uma tradução.
28 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

do Altíssimo te cobrirá”. Não seria mais normal dizer, com


ls 11,2, que o Espirito Santo viria sôbre o Emanuel, antes que
sôbre sua mãe? Em Lc 1,42, Isabel proclama a bênção de Ma­
ria, antes que a de seu filho, e acrescenta: “De onde me vem
a honra que a mãe de meu Senhor me visite? Pois, desde o
momento em que tua saudação chegou aos meus ouvidos, a
criança saltou de a le g ria ...” Mas a honra que lhe cabe não
é antes da parte da visita do Senhor que da de sua mãe? E
não é à ação do Filho antes que à voz de Maria que convinha
relacionar o beneficio da Visitação? Essa ênfase de Maria é
surpreendente, e deve fazer refletir aquêles que receiam ofender
a Cristo exaltando sua mãe. Todavia, ela não justifica os que
minimizem o cristocentrismo. Pois está sempre bem claro que
Cristo é o centro de tôda esta perspectiva. Êle é “a Glória do
povo de Israel” (2,32) e, antes de Maria, sua mãe em Israel,
lugar de sua residência e sinal, através do qual, ainda oculto,
se manifesta.
A continuação do Evangelho não minimizaria êsse elogio
inicial? Um dia Jesus falava:
e uma mulher, elevando a voz no meio da multidão, lhe disse:
“Feliz o ventre que te carregou e os seios que te amamentaram”.
Mas Êle respondeu: “Felizes, antes, os que escutam a palavra
de Deus e a guardam" (11,27-28).
Segundo alguns intérpretes, as palavras de Jesus contra­
diríam as da mulher. Seria preciso compreender: “Felizes os
que têm fé e não aquela que gerou”. Não foi assim que Lu­
cas compreendeu essas palavras, êle que, por duas vêzes, tes­
temunha que Maria é bem-aventurada (1,45) e bem-aventurada
para sempre (1,48), precisamente por causa de sua fé: “Feliz
aquela que creu”, diz Isabel (1,45), e Maria acrescenta: “To­
das as gerações me chamarão bem-aventurada” (1,48). Além
disto, êle apresenta Maria como a primeira que “ouviu” a pa­
lavra de Deus (1,28-38) e a guardou em seu coração (1,19
e 51). Impõe-se, portanto, a conclusão: Jesus não se faz de­
trator de sua m ãe1; Lc 11,28, como Mc 3,31-35, afasta uma
concepção material de sua glória, e põe em evidência o seu
fundamento religioso: a fé de Maria e, mais profundamente,
: Compare-se Lucas 11,29 com Lucas 18,18. Ao jovem que O cha­
ma “Bom Mestre”, Jesus responde: “Por que me chamas de bom? Só
Deus é bom!” Por estas palavras, Êle não nega que seja Deus, nem
que seja bom, mas deseja elevar o interlocutor acima de sua perspecti­
va apenas exterior e carnal. Êle procede da mesma maneira com a mu­
lher que declara Maria feliz por tê-lo gerado.
1. Maria nas Escrituras 29

o desígnio de Deus que colocou nela tòda a sua complacência


(1,28-30) e realizou nela grandes coisas (1,49).
Em suma, os dois primeiros capítulos de Lucas nos con­
duzem ao nosso ponto de partida. São como um maravilhoso
comentário das expressões indecisas de São Paulo:
nascido de uma mulher,
sujeito à lei.
Nascido de urna mulher, é a narração da Anunciação da
Natividade (Lc 1,28-2,20). Sujeito à lei, é a Circuncisão (2,21)
e a Purificação (1,22-39), a ida a Jerusalém, “segundo o cos­
tume”, para a festa de Páscoa (Lc 2,40-51). E se esta sujei­
ção é um “rebaixamento” para o Deus transcendente, não é hu­
milhação, mas glória, devido àquilo que é a razão de sua
submissão. Que “luz” (Lc 2,32) para os servidores do Templo,
quando Jesus obedece à lei! Que graça, quando êle se aproxima
de alguém, desde a hora de sua concepção (Lc 1,41-45; 2,8-20
e 25-38; 47). A lei à qual Ele se submete (Lc 2,22-24,27,39;
cf. 42) e da qual Êle é o Senhor, não a vem abolir, mas aper­
feiçoar (cf. Mt 5,17). Quanto mais não veio Êle para cumu­
lar de honra a mulher que escolheu por mãe! Eis o que nos
ensina o Evangelho de Lucas. À luz que nos fornece o compa­
nheiro de Paulo, aprendemos retrospectivamente como é pre­
ciso compreender o texto esquemático de Gál 4,4: a mulher
de quem Jesus nasceu é uma mulher escolhida. Ela se benefi­
ciou em primeiro lugar de tôda a graça e alegria que nos trouxe
o rebaixamento do Filho de Deus.
Gostaríamos de comentar passo por passo a mensagem tna-
riana de Lc 1-2. Sua densidade iguala à dos textos joanéicos.
Em outras passagens, Lucas mostra que possui talento; mas
nestes dois capítulos — talvez ajudado por outra fonte ou por
alguma luz especial do alto — atinge a genialidade. E, como
todo texto genial, êste não se deixa esgotar pelos comentários.
Examinemos apenas o Evangelho da Anunciação (1,26-38) e,
como a riqueza desta breve passagem supera o que poderia­
mos dizer dela, limitemo-nos a lhe proporcionar sua elucida­
ção bíblica. Fato impressionante, êste texto é um verdadeiro
tecido de alusões escriturísticas. Como por exemplo as pala­
vras do anjo a respeito da concepção miraculosa: “Nada é
impossível a Deus” (1,37) são uma retomada literal das pa­
lavras do anjo do Gn 18,14 a Sara, referentes à sua concepção
igualmente milagrosa. Por que esta contextura escriturística? O
exame do Magnificat nos coloca no caminho da resposta. Cada
30 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

membro de frase dêsse cântico é o eco de alguma passagem


da Bíblia, como o indica o quadro adiante p. 107. Nêle vemos
Maria tão compenetrada da Palavra de Deus, que ela se faz
seu eco sonoro. Desta forma, não nos espantemos se Deus lhe
responde da mesma forma. À Virgem, que se nutre das Es­
crituras, o Anjo fala a linguagem das Escrituras. E, para quem
ignorar essa linguagem, a mensagem permanecerá fechada. Pro­
curemos, pois, encontrar suas principais chaves.
O Evangelho da Anunciação compõe-se de três partes. Pri­
meiro, a apresentação da Boa-Nova (1,28-29); depois, duas sé­
ries de precisões: uma concernente à origem humana do Mes­
sias (30-33); e a outra, mais velada, à sua origem divina
(34-36).
I. A primeira parte proclama, de inicio, a alegria messiâ­
nica: alegra-te! Com efeito, a primeira palavra do anjo
(“chaire”) não corresponde à saudação ordinária desejando paz
(o “shalom” hebreu, equivalente ao nosso bom-dia). E’ o eco
dos anúncios de alegria messiânica, dirigidos pelos profetas à
filha de Sião: Zac 9,9; Joel 2,21-27; e, principalmente, Sofo-
nias 3,14-17. O motivo da alegria escatológica assim proclama­
da era que o Senhor iria voltar para o meio de Israel, ou, para
traduzir em seu sentido etimológico, a expressão beqirbêk aqui
empregada “nas entranhas” de Israel. O anúncio do anjo faz
eco ao de Sofonias, mas, desta vez, para uma realização
imediata.
Anúncio de Sofonias a Israel Anúncio do anjo a Maria
(3,14-17) (Lc 1,28-33)
Alegra-te (chaire) Alegra-te (chaire),
Filha de S ião... cheia de graça,
O rei de Israel, ]avé O Senhor *
Está em ti (beqirbêk) está contigo.. .
Não temas, Sião Não temas, Maria,
favé, Teu Deus eis que
Está em teu seio (beqirbêk) Conceberás em teu seio
e gerarás um filho,
e lhe imporás o nome de
como um valente Salvador (yôsía‘) “favé Salvador" *. . . Êle reinará. ..
* O Senhor (’ãdõni) era a palavra empregada pelos Israelitas para
substituir o nome de Javé, tão freqüentemente escrito na Bíblia, a par­
tir do momento em que se torna regra não mais o pronunciar (donde
o uso dos massoretas que vocalizavam o nome de Javé com as vogais
da palavra Adonai). Em Lucas 1,29, o Senhor equivale portanto estri­
tamente a Javé que se lê na passagem paralela de Sofonias 1,14.
’ Os nomes de muitos dos personagens da Bíblia têm uma signi­
ficação (cf. Gn 4,1,25; 21,6; ls 7,14; Osêias 1,4 e 7, etc.). O de Jesus
significa Salvador, como o diz claramente Mateus 1,21: “Tu Lhe da-
1. Maria nas Escrituras 31

Ficamos confusos diante da pedagogia desta primeira re­


velação da Encarnação. Ela não se faz elaborando materialmen­
te os conceitos de molde a aplicar a Escritura antiga ao acon­
tecimento nôvo. Assim, o acontecimento elucidado pela Escritura,
revela sua dimensão divina, e a Escritura, atualizada no acon­
tecimento nôvo. Assim, o acontecimento elucidado pela Escritura
memos, passo por passo, as linhas paralelas dos dois textos,
e de sua comparação, veremos despontar a luz. A alegria anun­
ciada pelo anjo é a alegria messiânica de Sofonias; “Maria”
que recebe o anúncio é a “Filha de Sião”, Ela resume Israel
nessa hora decisiva. A presença do Senhor no seio de Israel
será para ela conceição e geração. As palavras de Sofonias,
enfim, parecem supor que o filho dela deve ser “Javé-Salvador”,
no pleno sentido etimológico do nome entendido pelo anjo. Duas
promessas, aparentemente divergentes, aqui convergem: o reino
do próprio Javé e o do Messias, Filho de David.
Com êste anúncio, Maria ficou perturbada (Lc 1,29). Com­
preende-se por quê, evidentemente. Sua perturbação não vem
do temor pusilânime ao qual algumas vêzes a reduziram. Vem,
entretanto, do choque dêste encontro com Deus, que abala as
naturezas mais fortes. Vem da irrupção da alegria messiânica,
dessa afirmação enorme, incrível, que o anjo insinua com pala­
vras veladas e que seria, em linguagem plena: “A salvação já
chegou. Tu vais ser a mãe do Messias, o nôvo Israel, onde
Deus vai residir”.
O anjo esclarecerá esta dupla afirmação: messianidade e
divindade.
2. Precisa, em primeiro lugar, a ascendência humana do
Afessias retomando os têrmos da profecia messiânica fundamen­
tal: o oráculo de Natã a David.
Anúncio de Natã a David Anúncio de Gabriel a Maria
(2 Sam 7,12-16) (Lc 1,32-33)
(Modificamos a ordem dos versículos,
a fim de pôr em confronto os elemen­
tos paralelos).
12. Eu farei grande após ti Êle será grande (raiz)
tua posteridade,
aquêle que sairá de tuas entranhas
e firmarei sua realeza.
Serei para Êle um Pai,

rás o nome de Jesus (yêsúa' = lavé — Salvador), porque Êle salvará


(yó$ia‘) seu povo dos pecados”. R. Laurentin, Traces (fallusions ètymo-
logiques en Luc 1-2, em Bíblica, 37 (1956), 435-456; 38 (1957), 1-23.
32 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana
E Ele será para mim um Filho. c será chamado Filho do Altíssimo.
O Senhor Deus lhe dará
16b. Teu trono será firmado para o trono de David, seu pai.
sempre,
16a. Tua casa e teu reino file reinara
serão para sempre assegurados para sempre
diante de Ti,
Cf. 13. Eu firmarei para sempre sôbre a casa de Jacob
o trono do seu reino. e seu reino não terá fim.
3. A última perícopa (resposta cio anjo a Afaria) precisa
a origem divina do Messias, como a segunda havia precisado
sua origem humana:
O Espirito Santo virá sôbre ti, e a Virtude do Altíssimo te
cobrirá com sua sombra. Eis por que o Santo, que nascerá de
ti, será chamado Filho de Deus (Lc 1,35).
O alcance dêsse título de Filho de Deus sobressai de uma
aproximação retrospectiva com as outras passagens, onde êle é
solenemente conferido a Jesus: a manifestação do Pai no Ba­
tismo (Lc 3,22) e na Transfiguração (Lc 9,35), a confissão
de Cesarcia (Mt 16,16) e os testemunhos decisivos que Cristo
pagará com sua vida (Mc 14,61). Maria podia penetrar-lhe o
sentido à luz do Antigo Testamento. A sombra divina designa­
da pela palavra característica episkiásei evocava a nuvem que
manifestava a presença de Javé. Esta nuvem se havia manifes­
tado pela primeira vez, por ocasião da instituição do culto mo­
saico. Ela tinha coberto com sua sombra a arca da Aliança,
enquanto a Glória de Deus, isto é, o próprio Deus, a invadia
internamente. Maria, por sua vez, vai ser o objeto dessa dupla
manifestação: presença do alto, sinal de transcendência, e pre­
sença interior do Senhor de glória. E’ o que parece insinuar a
aproximação dos dois textos.
£x 40,35 Lc 1,35
A nuvem A virtude do Altíssimo
cobriu com sua sombra Te cobrirá com sua sombra.
o tabernáculo,
e a Glória de Javé Eis por que Aquele que nascerá
encheu a morada. de ti
será chamado Santo, Filho de
Deus.
O tema será retomado no fim do Evangelho da Infância.
Simeão saudará a Jesus, ao entrar no templo, como Glória de
Israel (Lc 2,32), titulo divino. A glória de Javé, que havia
abandonado o templo, privado da Arca da Aliança, se apossa
de nôvo dêle, quando Maria aí aparece trazendo Jesus. E’ por
isto que Simeão pode morrer (Lc 2,26-29). Completaram-se os
I. Maria nas Escrituras 33

tempos. Assim, a idéia insinuada no inicio da mensagem retorna,


no fim, através de uma imagem mais litúrgica. Maria, que o
paralelo com Sofonias designava como a Filha de Sião escato-
lógica, lugar da residência de Javé, é aqui designada como a
nova Arca da Aliança, onde se realiza esta Presença. A con­
tinuação do Evangelho de Lucas testemunha ainda no mesmo
sentido, estabelecendo outros confrontos.10 Quando, em nossa
segunda parte, tentarmos penetrar o mistério da maternidade di­
vina, não encontraremos nada de mais profundo para exprimi-lo.
Muitas vêzes se perguntou se Ataria percebeu a divindade
de Cristo por ocasião da anunciação. Sim, dizem os teólogos,
apoiados sôbre duas razões de conveniência. Mas os exegetas
objetam que o Evangelho da Infância contradiz a essas razões.*2

Encontramos duas outras alusões à dupla identificação: Jesus


= Javé (esta já insinuada em Lucas 1,17, onde o Cristo e o Salvador
Deus são virtualmente identificados) e Maria = Arca da Aliança, no
relato da Visitação. 1) A redação dêste episódio (1,39-45 e 56) se
desenrola em paralelo estreito com 2 Samuel 6,1-14: a história do trans­
porte da arca da aliança (exatamente antes da grande profecia messiâ­
nica 7,1-17 à qual Lucas 1,32-33, fêz alusão). Os acontecimentos, a atmos­
fera, os termos empregados para exprimi-los se correspondem estreita-
mente: subida da Arca (2 Sam 6,5) e elevação de Maria (Lucas 1,39),
gritos de alegria do povo e grito de Isabel, cxultação de David e de
João Batista. As expressões se correspondem com uma evidência, por
momentos, surpreendente:
2 Sam 6 Lc 1
0 Como a arca de meu Senhor 43 Como a Mãe de meu Senlior
(= Javé) vem a mim?
vem ao meu encontro?
11 A arca de Javé ficou 56 Maria ficou
Irês meses cêrca de três meses
na casa em casa dela (= Isabel)
Em suma, nesta narrativa maravilhosamente hábil, a imagem da
arca aparece em filigrana através da pessoa de Maria, e entrevemos
por uma diagonal de tipologia, que o Senhor, do qual Ela é a Mãe, não
é outro senão o Senhor que residia na arca.
2) Uma outra alusão é inserida na narração. Dentre as palavras
de Isabel, Lucas retém, por sua significação profunda, esta reprodução
do elogio outrora dirigido a Judite:
Judite 13,18-19 (Vulgata 23-24) Lucas 1,42
Tu és bendita. .. Tu és bendita
entre tôdas as mulheres entre as mulheres
e bendito e bendito é
o Senhor Deus o fruto de teu ventre
Recolocando-nos no contexto da época, dificilmente vemos, como
Deus teria podido revelar (e Lucas expressar) melhor, ou de outra
forma, que a maternidade de Maria se referia ao Deus transcendente.
Èstes e outros paralelismos, o gênero literário no qual êles estão im­
plícitos são estudados em R. Laurentin, Structure et Théologie de Luc
1-2, Paris, 1957, pp. 43-116.
Rreve Tratado — 3
54 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Atariana

As alusões escriturísticas que se inscrevem em filigranas ao lon­


go do texto de Lc 1-2 nos conduzem para além desta objeção.
Essas filigranas implicam, com efeito, as duas seguintes afirma­
ções: a mensagem da Anunciação significa, por um jôgo de
alusões combinadas nas Escrituras, a identificação de Jesus com
o próprio Javé. " A Virgem, instruída nas Escrituras, era capaz
de compreender essas alusões. Assim, longe de se oporem (como
o poderíam pensar alguns exegetas um tanto empolgados por
posições de combate anti-racionaiistas), Escritura e razão teo­
lógica convergem para êsse ponto. O exame atento do texto
inspirado nos coloca acima das objeções exegéticas superfi­
ciais e das construções teológicas gratuitas, levando-nos a en­
tender sob que aspecto preciso Afaria recebeu a revelação do
mistério da Encarnação. Não iremos pensar que ela tenha igno­
rado tudo, e que Deus tenha agido por surpresa. Afas não ima­
ginemos, também, que ela tenha recebido por ciência infusa
“todo o tratado sôbre a Encarnação”, como já li em um autor
piedoso. Afaria não teve sob seus olhos o aparelho escolástico
evocado por esta expressão, nem mesmo sob sua forma abrupta,
as fórmulas pelas quais tentamos explicitar as insinuações da
Escritura. Não, Afaria permaneceu pobre na ordem dos con­
ceitos e da cultura humana. Seu conhecimento de Jesus perma­
neceu obscuro, envolto, cercado de dificuldades. E disto um
episódio nos dá prova. Quando Afaria reencontra Jesus no Tem­
plo, após três dias, exclama:
— Ateu filho, por que nos fizeste isto? Eis que teu pai e
eu te procurávantos ansiosos. Èle lhes respondeu:
— E por que me procttráveis? Não sabieis que preciso estar
na Casa de Afeu Pai? (isto é: no Templo).
Atas êles não compreenderam a palavra que Èle acabava
de dizer-lhes (Lc 2,48-50).
Não, o conhecimento que Afaria havia recebido não era tal
que lhe permitisse compreender tudo imediatamente, principal­
mente no contexto desta provação desconcertante. Primeiro, ela

“ Não entro aqui nas distinções que os técnicos desejariam encon­


trar. Em que medida estas alusões à divindade de Cristo foram con­
fiadas a Ataria no dia da Anunciação? Em que medida são elas da
autoria do evangelista? Em que medidas teriam elas sido compreen­
didas por Ataria? Estas perguntas ultrapassariam os limites de um
tratado que se propõe ser curto e atento. Elas não podem ser trata­
das senão em dependência de problemas, os quais aqui passamos por
alto: gênero literário e modo de redação do Evangelho da infância.
Os que desejarem aprofundar a questão, se reportarão a R. Laurentin,
Struciure et théologie de Luc 1-2, Paris, 1957, Anexo 1. Quarid Marie
eut-elle connaissance de Ia divinitc de son Fils? pp. 165-175.
1. Maria nas Escrituras 35

ficou perturbada por esta longa procura; depois Jesus usa aqui,
pela primeira vez, de um dos procedimentos mais ricos a longo
prazo, mas, à primeira vista, dos mais desconcertantes do seu
ensino (Jo 2,19-21; 4,32-34; Mc 8,14; etc.): Èle retoma em sua
resposta os termos empregados na pergunta, mas em sentido
completomente diferente, um sentido totalmente espiritual. “Teu
pai”, dizia Maria, falando de José, o pai adotivo. Jesus res­
ponde falando de seu Pai Celeste: Que enigma! A exegese re­
flete ainda sôbre êsse texto, após dezenove séculos... Não
nos espantemos, pois, que Maria não tenha compreendido na
h o ra ... Em suma, não menosprezemos as luzes que ela havia
recebido. Mas não esqueçamos, também, as sombras. Seu co­
nhecimento era menos explicito do que o nosso (mais real do
que nocional). Mas, iluminada pelo Espírito Santo, ela deve ter
atingido em conjunto, mais intensamente do que nós, o essen­
cial, e adorado melhor a Cristo do que nunca o conseguire­
mos adorar.
Antes de deixar o Evangelho de Lucas, examinemos um
último texto: a profecia de Simeão: “Uma espada traspassa-
rá tua alma” (2,35). Essa espada é, segundo o contexto, a re­
percussão em Afaria das contradições que seu Filho suportará
e o anúncio velado de sua “co-paixão” dolorosa. Desta “co-
paixão” Lucas não tornará a falar. Não mencionará mais que
os outros sinóticos, senão a presença de Afaria no Calvário.
Mas não nos admiremos. E' de seu hábito agrupar em um só
texto o que concerne a um personagem, e conduzir com êle
suas palavras, salvo quando antecipa os acontecimentos. Assim
faz êle, por exemplo, com João Batista (3,19-20). E do mes­
mo modo com Afaria. A profecia de Simeão lhe dá a oportuni­
dade de sugerir que Maria participou na Paixão dolorosa do
Salvador. O episódio do reencontro (2,46-48), com seus três
dias, em que Afaria, ansiosa, procura Jesus, nessa Jerusalém
onde mais tarde Êle passará três dias no túmulo, prolonga esta
sugestão.
João
Esta associação de Afaria à Paixão do Salvador é mais
manifesta no Evangelho de João. O interesse que demonstra
pela Mãe de Jesus é, entre outros, um dos traços que o apro-

Jo 2 é um texto difícil. O nó do problema é o seguinte. Desde


que a fórmula: “Que há entre ti e mim?” é sempre empregada na
Bíblia para repelir ou recusar (Jz 11,12; 2 Sam 16,10; 19,23; 1 Reis
36 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

ximam ao de Lucas, num parentesco que parece explicável pela


influência recíproca: de João sôbre Lucas por tradição oral, de
Lucas sôbre João por escrito. Com relação à Virgem, esta afi­
nidade se revelaria desde o prólogo, se com o P. Braun ” , e
segundo os testemunhos impressionantes de diversos Santos Pa­
dres, adotarmos a leitura seguinte:
A todos os que O receberam, Êle (= o Verbo) deu o po­
der de se tornarem filhos de Deus: àqueles que crêem no no­
me de quem não nasceu do sangue, nem do desejo da carne,
nem do desejo do homem, mas de Deus. E o Verbo se fêz carne
e estabeleceu Seu Tabernãculo ( eskénõsen ) entre nós (Jo 1,12-14;
cf. Apoc 21,3).
Tratar-se-ia, portanto, da geração virginal do Cristo; e as
últimas palavras sôbre o Verbo, que “estabeleceu Seu Taberná-
cuio” 14 entre nós, voltariam a aproximar-se da alusão pela qual

17,18; 2 Reis 3,13; 9,18; 25,21; Os 14,1; Jer 2,18; Miq 1,24 e 5,7;
Lc 4,34 e 8,28), como é que Jesus depois de ter mostrado sua inten­
ção de não-atender, executa, todavia, o pedido de Maria? Por que
afirma Êle que Sua hora não é chegada, uma vez que nesta hora
Êle vai mostrar Sua glória? (Jo 2,11). Estas dificuldades e algumas
outras se ajustam estreitamente, e não existe solução que satisfaça
plenamente em todos os pontos, a despeito dos trabalhos notáveis
de F. M. Braun, La Mire des fidèles, 1953, e de M. E. Boismard, Du
baptême à Cana, Paris, 1956. O primeiro parece duro demais na se­
paração significada por Jesus: é mister levar cm conta Jo 2,12 (não
citado por Braun). Hesitqmos diante da solução (por demais?) enge­
nhosa do segundo que prjopõe a tradução interrogativa: "Então minha
hora ainda não é chegada?” Tenho-me esforçado em permanecer aquém
das questões controversas, e em me ater a cinco dados sólidos: 1’ Je­
sus realiza o milagre a pedido de Maria. 2o Maria compreendeu que
Êle iria atendê-lo, donde Sua palavra aos servidores. 3o Êste milagre
é de grande importância: êle é a primeira manifestação da glória de
Jesus (Jo 2,11; cf. 1,14) e fundamenta a fé de Seus discípulos. (E’
sempre em ligação com os discípulos que João apresenta Maria. Ver
também Jo 19,25-27 e Apoc 12,17: “Os que possuem o testemunho de
Jesus”). 4* Há um relato de inclusão entre Jo 2,1-13 e 19,25-27. 59 As
bodas têm segundo João uma significação escatológica.
Bibliografia. Encontrar-se-á no fim dêste volume: Bibliografia,
n9 9, rubrica geral Nôvo Testamento (Gãchter e Galot), e rubrica João.
” Pp. 33-46. Cf. M. E. Boismard, Prologne de Saint Jean, Paris,
Cerf, 1953, p. 14. Esta leitura permanece discutida.
“ eskénõsen. Esta palavra que traduzimos ordinariamente por_ ha­
bitou (ou morou) diz mais alguma coisa. A raiz implica uma alusão à
skcné, isto é, à tenda, ao tabernãculo, onde Deus residia desde a Alian­
ça ( ê x 40,34-35; cf. 25,8; 26, etc.). João expõe claramente êste matiz
no Apoc 21,3: “Eis o tabernãculo (skénê) de Deus com os homens,
e Êle habitará ( skenõsei) com êles”. Notaremos que neste texto (e,
parece, em Apoc 11,19; 12,1: dois versículos estreitamente ligados)
o tabernãculo é também uma mulher:
Vi descer do céu, de perto de Deus, a Cidade Santa, a nova Jeru­
salém, vestida como "recém-casada ornada p ara seu esposo”, e ouvi
I. Maria nas Escrituras 37

Lucas nos fêz ver em Maria o nôvo Tabernãculo onde Deus


estabeleceu sua morada.
Tudo isto sugere entre o Evangelho Mariano de Lucas e
o de João o laço seguinte. O quarto evangelista, que evitou re­
petir o conteúdo essencial dos sinóticos e propôs-se completá-
los, teria mencionado com uma alusão o que Lucas ensina sôbre
o papel da Virgem na Encarnação ’* (um pouco como êle men­
ciona com alusões veladas a instituição da Eucaristia na Ceia),
e teria aprofundado o ponto que Lucas tinha tão resumidamente
assinalado: o papel de Maria na Redenção.
Entretanto, qualquer que seja o laço existente entre os dois
evangelistas, examinemos agora os dois textos principais que
indicam a natureza dêste papel: um nos fala da presença de
Maria nas bodas de Caná (2,1-15), e o outro, da sua presen-
uma forte voz que dizia: "Eis o “tabernáculo" de Deus com os ho­
mens" (21,2-3).
O Santuário de Deus no céu foi aberto c a arca “de sua Aliança”
apareceu. . . e apareceu no céu um grande sinal, “uma mulher" ves­
tida do so l... Ela estava grávida (11,19-12,1).
11 O final do prólogo parece referir-se estreitamente ao Evange­
lho da infância: os mesmos temas, os mesmos termos:
João 1 Lucas 1-2
0 Precursor: João Batista
6 Houve um homem 1,5-25 e 57-58
enviado de Deus cujo nome era
João
7 Êle veio como testemunha cf. 1,44 e 76-80
Para ser testemunho da luz cf. 1,78; 2,32
a fim de que todos cressem cf. 1,17; 77-78
por ê le...
Rejeição de Jesus em Belém
9 (Aquêle que era) 2,32
a verdadeira luz. . .
11 veio aos seus 2,3-4
e os seus não o receberam 2,7
Nascimento virginal
12 Aos que crêem no nome daquele 1,34-35
13 que não nasceu do sangue, nem
do desejo da carne, nem do de­
sejo do homem,
mas de Deus
u E o Verbo se fêz carne 1,35; cf. 1,39-46 explicados supra,
e Êle plantou Sua tenda en- nota 10, em referência a 2 Sam 6.
tre n ó s...
Filiação divina e graça de Jesus
e nós vimos Sua glória 2,32
Filho único do Pai 1,32 e 35
cheio de graça e de verdade. 2,52
38 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

ça no Calvário (19,25-27): dois textos muito breves, mas cheios


de intenções que se esclarecem, se prestarmos atenção às suas
semelhanças e à sua colocação no conjunto do Evangelho de
S. João.
Suas semelhanças: um e outro se referem ao papel de Ma­
ria na hora de Jesus, esta “hora” que, em todo o decurso do
Evangelho, visa em última instância a Cruz gloriosa e salvífica.
Em ambos, o evangelista A designa como a Mãe de Jesus, mas
Jesus Lhe diz: Mulher. Este confronto nada tem de banal; pois,
segundo o costume semítico, tal apelativo não era daqueles que
um filho usava para interpelar sua mãe. Esta pista marcada
por outros paralelismos sôbre os quais devemos passar, conduz
ao Gn 3,15: a promessa feita a Eva após a queda:
Ponho inimizade entre ti e a mulher, entre a tua posteri­
dade e a posteridade dela. Esta te atacará na cabeça e tu a ata­
carás no calcanhar.
Por um conjunto de afirmações convergentes, João nos leva
a ver em Maria o homólogo de Eva '** na nova criação que
inaugura a vinda do Verbo. Ela é a mulher por excelência,
associada ao nôvo Adão, e a “Mãe dos vivos" (Gn 3,20; cf.
Jo 19,27).
Não menos notável é o lugar que João dá a êstes dois tex­
tos mariais. Eles enquadram o ministério de Jesus. Um se situa
por ocasião do primeiro milagre de Jesus, aquele que inaugura
Sua vida pública e faz nascer a fé de seus discípulos (2,11); o
outro, na “hora" em que “tudo está consumado” (19,22 e 30).
E’ o processo semítico da inclusão cujo emprêgo não deixa
dúvida quanto à importância que João atribui à Mãe de Jesus.
Percebemos, agora, a arquitetura dêstes textos: duas colu­
nas mestras (Jo 2 e 19,26-27) que repousam sôbre o mesmo
substrato bíblico: Gn 3,15 e 20. Como compreender-lhe o sen­
tido misterioso? O episódio de Caná pode desconcertar:
Estando o vinho prestes a faltar, a Mãe de Jesus Lhe diz:
“Eles não têm mais vinho”. Jesus Lhe diz: “Mulher, que tenho
eu contigo? Minha hora ainda não é chegada" (Jo 2,1-2).*18

’5* Cf. A.-M. Dubarle, Les Fondements bibliques du titre marial


de Nouvelle Eve, cm Recherches de Sciences Religieuscs, 39 (1951) =
Mélanges Jules Lebreton, t. I, pp. 49-64.
18 Teriamos de falar de uma inclusão reforçada, se o prólogo,
como parece, fizesse alusão ao nascimento virginal. Não somente a vida
pública do Cristo, mas todo o Evangelho seria enquadrado nos tex­
tos que mencionam o papel de Maria.
I. Maria nas Escrituras 39

Estas palavras de Jesus (e isto é uma nova analogia entre


João e Lucas) vêm acrescentar-se àquelas que Êle dirigiu à
Sua Mãe quando, após uma breve antecipação de seu ministé­
rio, Ela O reencontra: “Por que me procurais? Não sabeis que
mr e necessário cuidar dos negócios de meu Pai?” (Lc 2,49).
Elas significam a separação do Filho e da Mãe durante o mi­
nistério do Salvador. Separação sem rigidez: Maria acompanha­
rá o Filho com os discípulos a Cafarnaum (Jo 2,12). Separa­
ção provisória: Maria, que esteve com Jesus nos mistérios da
infância, O reencontrará no mistério do sofrimento, quando a
Itora fôr chegada (Jo 19,25-27). Separação frutuosa, de que
Jesus dará a sua Mãe um penhor: Êle realiza a seu pedido o
milagre inaugural de sua carreira messiânica.
E’ mister prestar atenção ao cenário em que se realiza
esta inauguração. João viu na festa e no casamento de Caná
um símbolo não somente da festa eucarística, mas das núpcias
escatológicas de Deus e da humanidade, que a Eucaristia signi­
fica e prepara. ” Lembremo-nos da importância que o quarto
evangelista deu a estas núpcias eternas no fim do Apocalipse
(19,7-8; 21,2,9). O casamento terreno de Caná, onde Jesus
inaugura Seu ministério, é apresentado como a figura e o pe­
nhor das bodas celestes que serão a consumação dêsse minis­
tério. A intercessão eficaz da Mãe de Jesus em Caná é o sinal
e o prelúdio de Sua intercessão no céu.
Separada de Seu Filho durante a vida pública, Maria O
reencontra no Calvário, e Jesus ao morrer Lhe confia mais ex­
plicitamente Sua missão:
Perto da Cruz de Jesus, estavam Sua Mãe, a irmã dc Sua
Mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria Madalena. Vendo Sua
Mãe e perto d'Ela o discípulo que Êle amava, Jesus disse a Sua
Mãe: “Mulher, eis aí Teu filho". Em seguida disse ao discípu­
lo: “Eis Tua Mãe". E, desde êsse momento, o discípulo A rece­
beu em sua casa (Jo 19,25-27).
Não minimizemos o alcance de um texto ao qual o Evan­
gelista dá tal relevo. Muitos não vêem no que êle relata mais
que um ato privado. Jesus teria confiado Sua Mãe a João

” Cf. O. Cullmann, Les Sacrements dans 1'Evangile johannique, Pa­


ris, Presses Universitaires 1951, pp. 36-41. Sôbre o laço entre a Eu­
caristia e as bodas escatológicas, ver também Lc 22,16.
40 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

para que êle A recolhesse em seu abandono. Talvez não seja


necessário abandonar êste sentido de base: aqui, como frequen­
temente no Evangelho de João, o sentido profundo se faz cla­
ro através de uma realidade bem concreta (Cristo pão da vida,
através da multiplicação dos pães, Cristo luz do mundo, atra­
vés da cura dos cegos, etc.). Mas o texto nos convida a não
permanecermos neste sentido material. As palavras: Eis tua mãe
precedem às palavras: Eis teu filho. João é o primeiro a ser
confiado a Maria; e é mais espantoso ainda que a mãe de João
lá esteja, ao pé da Cruz. ” Em suma, nesta narração solene,
onde cada trecho parece escolhido em função da realização de
uma profecia, os versículos 25-27 não abrem um parêntese,
onde João, perdendo de vista a perspectiva da salvação, nos fa­
ria confidência de seus assuntos de família. Este episódio, como
os outros, interessa à Redenção, e se relaciona com o cumpri­
mento das Escrituras. E’ seguramente Gn 3 que está em sua
base. Gn 3,15 sem dúvida, onde a “mulher” e sua “descendên­
cia” estão tão estreitamente implicadas na luta, cujo enrêdo é
a Salvação, porém, mais precisamente Gn 3,20, onde Adão im­
põe à “mulher” o nome e a função de “Mãe dos Vivos”. E'
isto que Maria vem a ser pela palavra de Cristo nesta hora,
neste “jardim” (19,41), renovação do jardim da queda (Gn
3,24), onde começa a nova criação (isto é, a ordem da graça).
Na pessoa do discípulo bem-amado, Ela se torna Mãe de to­
dos os discípulos do Salvador. E esta nova maternidade, que
Ela contrai e tem a forma de uma troca, na hora em que Seu
Filho morre, recebe uma surpreendente luz destas palavras de
Eva no Gn 4,25:
Deus me deu unia outra descendência em lugar de Abel, de­
pois que Caim o m atou...

’* Os teólogos fixaram-se sôbre êste sentido sob o efeito das preo­


cupações polêmicas e tiraram de Jo 19,26-27, um argumento contra os
negadores da virgindade “post partum”: Se Jesus tem o dever de
confiar Maria a São João, é porque ela não tinha outros filhos para
A acolher.
” C. Lavergne, OP, Sinopse des quatre Evangiles, Paris, Lecoffre,
1945, n* 293, p. 240, em nota. A interpretação espiritual de Jo 19,25
não teve senão dois representantes antes do século XII: Orígenes, mor­
to em 254, e Jorge de Nicomedia (fim do séc. IX). Ver abaixo, nota
76). Os outros autores citados nesta nota e na seguinte não utilizam
Jo 19,25-27. E' no Ocidente com Anselmo de Lucca, falecido em 1086,
e Ruperto de Deutz que esta interpretação terá êxito (abaixo, nota
108; cf. notas 73 a 77).
I. Maria nas Escrituras 41

O ensinamento mariano do Evangelho de João esclarece


retrospectivamente o texto misterioso do Apocalipse 12, que é
como uma encruzilhada de todos os caminhos bíblicos que con­
duzem à Virgem. O texto é o seguinte:
1. Um sinal grandioso apareceu no céu: é uma mulher; o sol
a envolve; a lua está sob Seus pés e doze estréias coroam-lhe
a cabeça. 2. Ela está grávida e grita em dores do parto. 3. Em
seguida, um segundo sinal apareceu no céu: um enorme dragão,
vermelho como o fogo, com sete cabeças e dez chifres... 4. Pa­
rando diante da mulher prestes a dar á luz, estava pronto para
devorar seu filho assim que nascesse. 5. A mulher deu ao mundo
um filho varão, aquele que deve conduzir tôdas as Nações com
um cetro de ferro (SI 2,9). 6. E o menino foi levado para perto
de Deus e Seu trono, enquanto a mulher fugia para o deserto,
onde Deus Lhe preparou um lugar para que Ela aí fôsse ali­
mentada durante mil e duzentos dias, etc.
Em seguida, Miguel e seus anjos expulsam do céu “o gran­
de Dragão, a antiga serpente, aquele que chamamos o diabo
e satanás. Atirado sôbre a Terra com seus anjos, êle ai conti­
nua sua luta:
13. Vendo-se atirado sôbre a terra, o dragão se lança em
perseguição da mulher, a mãe do filho varão. 14. Mas Ela re­
cebeu as duas asas da grande águia (Dt 32,11) para voar ao
deserto, até o refúgio onde, longe da serpente, deve ser alimen­
tada um tempo e dois tempos e a metade de um tempo (Dan
7,25). 15. Êste vomita então de sua goela um rio de água atrás
da mulher para a arrastar em suas ondas. 16. Mas a terra veio
em socorro da mulher: abrindo a bôea, engoliu o rio vomitado
pela goela do dragão. 17. Então, furioso de despeito contra a
mulher, êle se foi dali guerrear, contra o resto de sua descen­
dência, os que observam os mandamentos e dão testemunho
de Jesus.
Confessemos, logo de início, que êste texto é obscuro. O
gênero profético mistura aqui os acontecimentos e as perspecti­
vas. A ordem da narração não é estabelecida segundo a cro­
nologia, mas segundo a tipologia. Confessemos também que a
interpretação mariana é discutida. Cremos, entretanto, poder re­
ter em suas grandes linhas a exegese do P. Braun, recentemente
confirmada pelos estudos de Le Frois, Cerfaux e Dubarle. ” Eis,
do ponto de vista mariano, as conclusões mestras:30
30 F. M. Braun, La Mère des fidèles, 1953, cap. V, pp. 133-176.
Bernard J. Le Frois, The woman clothed with the sun, Roma, Orbis
Catholicus, 1954; L. Cerfaux, La Vision de ta femme et du dragon de
1'Apocalypse, em Eph. Theol. Lov. 31 (1955), 21-34; A.-M. Dubarle,
La femme couronnèe d’ètoiles, em Mélanges A. Robert, Paris, Bloud,
1957, pp. 512-517. Os estudos posteriores de Feuillet, Lyonnet, Prigent,
Serão citados abaixo, na bibliografia, p. 196.
42 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

Apocalipse 12 visa ao mesmo tempo Maria e a Igreja. João


descreve uma sob os traços que convêm à outra. O processo
é usual e assinala uma relação tipológica entre as duas reali­
dades. (Pensemos, por exemplo, em João 6: O pão da vida é
ao mesmo tempo o maná, a fé e o sacramento da Eucaristia).
Aqui, João se reencontra uma vez mais com Lucas: êle designa
a Virgem como a realização escatológica de Israel: a Fillta de
Sião dando nascimento ao Salvador.
O inicio da passagem faz eco à grande profecia de lsaias
7,14, reproduzida por Miquéias 5,1-2. Como a Almali de lsaias,
a mulher do Apocalipse é um sinal (scméion). Mas ela apa­
rece aqui em seu triunfo; a “lua sob seus pés” parece indicar
que foi elevada acima das vicissitudes das quais o astro cam-
biante é o símbolo. Conto no Evangelho de S. João (com o
qual êste texto apresenta muitos contactos), Maria é chamada,
com insistência, a mulher (versículos 1,4,12,13-17). Ela aparece
simultâneamente como a Mãe de Cristo11 e como a Mãe dos
discípulos do Cristo: êstes são denominados Sua descendência
(Apoc 12,17). Encontramos aqui um eco do Gênese 3,14-15.
Em ambos os textos, a serpente (Apoc 12,9 e 14) está em
guerra contra a mulher e sua descendência:
Gênese 3,14-15 Apocalipse 12,9,13,17
Deus diz à serpente... A antiga serpente, o diabo, ou sa­
"Porei uma inimizade entre ti tanás como ê chamado... se lan­
e a mulher, çou em perseguição da mulher.
Mas ela recebeu as duas asas da
águia para voar ao deserto... lon­
ge da serpente.
Entre tua descendência Então, furiosa de despeito contra
e a descendência dela". a mulher, ela foi guerrear con­
tra o resto de sua descendência:
os que observam os mandamentos
e dão o testemunho.
A esta comparação entre o Gênese 3 e o Apocalipse 12,
poderiamos ajuntar uma outra: as dores do parto (Gn 3,16;
Apoc 12,2). Èste trecho afastou durante séculos a interpreta­
ção mariana da passagem: êle não conviria ao nascimento vir­
ginal. Mas a dificuldade se dissipa se o aproximamos de dois
outros textos joanéicos.

** Apoc 1,4-6,12-13. A citação do SI 2,9 (o mais claramente mes­


siânico, talvez, de todos os salmos) em Apoc 12,5, nos assegura que
"o filho varão” é aqui Cristo.
I. Maria nas Escrituras 43

Em Apocalipse 5,6, Cristo aparece no céu sob a forma de


um cordeiro imolado (cf. Jo 19,36). As dores da mulher, que
aparece igualmente no céu, no Apocalipse 12,2, se asseme­
lham à imolação do Cordeiro celeste.
Somos assim remetidos, não à passagem do nascimento em
Belém, mas às palavras de Cristo na Cruz: “Filho, eis aí tua
mãe” (Jo 19,25). Trata-se da maternidade espiritual de Ma­
ria, e da co-paixão pela qual Maria participou das dores do
Cordeiro imolado. João 19 e Apocalipse 12 correspondem-se,
pois, estreitamente. Nos dois textos, a maternidade de Maria
com relação aos discípulos é colocada num contexto doloroso
(Jo 19,25; Apoc 12,17). No Evangelho, a cena se passa na
Terra. No Apocalipse, no céu. A imolação de Cristo, e as do­
res da mãe se prolongam no céu. Pois João, que vê a Glória
na Paixão, continua a ver a Paixão na Glória.15
Será preciso ver neste texto uma revelação explicita da
glorificação corpórea de Maria? A liturgia, acolhendo uma tra­
dição antiga, mas divulgada (cujo primeiro testemunho é Epi-
fânio, pouco antes do ano 377) utiliza êste texto. Ele fornece,
efetivamente, uma expressão sugestiva dêste mistério. Esta mãe
que aparece no céu, acima das vicissitudes cíclicas do tempo
(12,1), esta mulher elevada sôbre as asas da grande águia
(12,14), êste “lugar preparado por Deus” (12,6), onde o P.
Braun reconhece o céu igualmente designado em Jo 14,2: tôdas
estas expressões são próprias para sugerir êste mistério. E a
liturgia não pede mais nada: ela reconhece em Apocalipse 12
a imagem bíblica da Assunção. Mas sôbre o terreno da estrita
exegese nada mais difícil que pesar o valor destas sugestões.
Já que se trata não mais de contemplar o dogma da Assunção,
e sim de o estabelecer sôbre bases rigorosas, será prudente
imitar a reserva de Pio XII: Se o Papa fêz uso dêste texto na
” L. Cerfaux, art. citado em Epli. thcol. Lov. 31 (1955), p. 31,
desenvolve uma outra explicação: “Um autor antigo, falando em lin­
guagem bíblica e poética de um nascimento (virginal ou n ã o ...), em­
pregará as fórmulas normais. De uma mulher prestes a dar à luz uma
criança, êle dirá simplesmente: uma mulher que dá ao mundo um fi­
lho”. Ao propor esta interpretação, Cerfaux não exclui a do P. Braun.
Mais frágil do ponto de vista exegético, esta última se apóia na tra­
dição. A interpretação mariana do Apoc 12 não foi desenvolvida se­
não a partir do momento em que os autores procuraram a explicação
moral das dores do parto. Antes, êste trecho fazia excluir o sentido
mariano do conjunto da passagem. Enfim, a verificação objetiva in re
é perfeitamente satisfatória. Não se exclui que êsse seja o sentido
exegético. Em qualquer hipótese, a tradição favorece pelo menos um
sentido pleno.
44 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

nova ntissa da Assunção, se êle o menciona na Bula Munifi-


centissimus entre as figuras invocadas pelos escolásticos, não
fêz delas fundamento de sua definição dogmática. Os progres­
sos da exegese tratam de descobrir ai, entretanto, uma alusão
à Imaculada Conceição.

Conclusão

No século XVI, protestantes e católicos estiveram facil­


mente de acordo em falar do “silêncio da Escritura” sôbre
a Virgem, e isto foi o pretexto, para uns, de renunciarem a
tôda a mariologia, e para outros, de desenvolver perigosamente
uma mariologia para-escriturística. Importa dissipar êste “slo­
gan” tenaz e pernicioso que perde terreno, porque, pouco de­
pois, os protestantes reencontram Maria pela Escritura, enquan­
to os católicos a reencontram na Escritura.51 Certamente, a Vir­
gem tem na Biblia um lugar discreto. Ela aí é representada
tôda em função de Cristo e não por si mesma. Mas sua impor­
tância consiste precisamente na estreiteza de seus laços com
Cristo que nos descrevem tantos trechos convergentes.

L. Cerfaux, em Eph. theol. Lov. 31 (1955), pp. 32-33. Coro­


lário intitulado: La femme revêtue de soleil et Vlmmaculêe Concepcion.
Maria aparece em Apoc 12 como “predestinada a ser o próprio inicio
da Igreja, e por isso mesmo, possuindo antes de todos os santos...
a santidade e . . . a perfeição imaculada do mundo nascente”. Conclusão
análoga de A.-M. Dubarle, art. citado, nota 20, p. 33: “Antes mesmo
do comêço dos ataques do dragão, a mulher aparece rodeada de uma
grande glória resplandecente. Como a nova Jerusalém, ela é um ser
celeste, ainda que sujeita às provações da vida terrestre. E’ a predes­
tinação da Virgem que podemos ver expressa de maneira plástica na
descrição luminosa do início. Entretanto, esta dignidade real não im­
pede o sofrimento e a contradição...”
,s Assim, o anglicano Hoskyns (citado na nota seguinte) trouxe
à luz, antes do P. Braun, os temas de Maria, nova Eva e mãe dos
vivos, contidos em Jo 2 e 19. O protestante F. Quiévreux (La materni-
te spirituelle de Ia mère de Jesus dans saint Jcan, no Supplément de la
Vie Spirituelle, 5, 1952, n9 20, pp. 101-134) descobriu pelos caminhos
da gematria as idéias emitidas pelo P. Braun sôbre a “maternidade
espiritual” de Maria segundo São João. Com relação a Lucas, o pro­
testante americano A. C. Hebert (La Vierge Marie, filie de Sion, em La
Vie Spirituelle, 85, 1951, pp. 127-140), retomando (e aperfeiçoando)
as idéias do protestante sueco H. Sahlin (que êle cita à p. 127), re-
descobre o que S. Lyonnet (chaire kecharitomènê), na Bíblica, 20,
1939, pp. 131-141) dizia dos contactos de Lucas com as profecias sôbre
a Filha de Sião. Êle leva, mais longe que seu antecessor católico, a
conseqüência teológica desta descoberta: segundo S. Lucas, a Virgem
Afaria, “Filha de Sião”, é a personalização concreta de Israel. (E’ em
1954, que S. Lyonnet deslindou esta última idéia. Conferência publicada
em Ami du Clergè, 66, 1956, pp. 33-48).
I. Maria nas Escrituras 45

Se quisermos levantar o balanço dos dados marianos das


Escrituras é preciso distinguir dois planos: primeiro um centro
de dados firmes e precisos; depois, um círculo de sugestões.
1. Maria é santa, virgem, mãe do Salvador. Única entre
todos os Santos, Ela está presente em todos os momentos de
importância fundamental na história da salvação: não somente
no princípio (Lc 1 e 2) e no fim (Jo 19,27) da vida de Cristo
(nos mistérios da Encarnação e da morte redentora), mas na
inauguração de Seu ministério (Jo 2) e no nascimento da Igre­
ja (At 1,14). Presença discreta, na maior parte das vezes, si­
lenciosa, animada pelo ideal de uma fé pura, e de um amor
pronto a compreender e a servir aos desejos de Deus e dos
homens (Lc 1,38,39,46-56; Jo 2,3).
2. Esta presença revela seu sentido total, se prestarmos
atenção à viva relação desses textos entre si, e com o resto da
Bíblia: melhor ainda, se o recolocarmos nos grandes quadros
e correntes da teologia bíblica onde êles se situam. Maria apa­
rece no término da história do povo eleito como o homólogo
de Abraão: Ela se apossa, pela fé, da promessa que êle havia
recebido na fé. Ela é o ponto culminante onde o povo eleito
dá nascimento a seu Deus e se torna a Igreja. Se alargarmos
a perspectiva da história de Israel à história cósmica, segundo
as insinuações de João e de Lucas, se compreendermos que
Cristo inaugura uma nova criação, Maria aparece no início da
Salvação, como uma restauração de E va” : Ela acolhe a pro-5

5‘ Sôbre o tema da nova criação em Lucas, ver as sugestões de


A. Feuillet, Marie et Ia nouvelle Crcation, em La Vie Spirituelle, 81 (1949),
467-478, e J. Sclimitt, Revue des Sciences rei., 24 (1950), p. 371. Lucas
fazia remontar a genealogia do Cristo a Adão: êle pôde prever a teo­
ria paulina do nòvo Adão; não é inverossimel que, apresentando
o diálogo de Maria com o anjo Gabriel, êle tenha pensado no de Eva
com a serpente. Mas se os teólogos têm o direito de desenvolver após
os Padres da Igreja estas sugestões objetivamente válidas, o exegeta
deve permanecer prudente.
Sôbre os contactos de João com Gn 1-3, ver E. Hoskyns, Gênesis
1-3 and St. john's Gospel no Journal of theological studies, 31 (1920),
pp. 210-218. O autor aí mostra como desde “No Princípio” (jo 1,1,
paralelo à Gn 1,1) até as cenas finais do “jardim” (19,41) quê pare­
cem implicar numa alusão ao jardim do pecado original, passando par­
ticularmente pelo contacto que temos visto entre jo 2,1-2; 19,25-27 e
Gn 3,15,19, o quarto evangelista compraz-se em sugerir contactos entre
a primeira criação e a vinda do Cristo, que é a restauração dela:
nova criação em que João insinuou principalmente o papel do Espírito
(Gn 1,1 e Jo 19,30).
Ver também o estudo de A.-M. Dubarle (citado acima, nota 15).
46 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

inessa de vida onde a primeira mulher havia acolhido a palavra


de morte e se torna (perto da nova árvore da vida) a “mãe
dos vivos”.
Esboço rico, mas indeciso. O Espirito Santo não manifes­
ta todos os seus traços; mas é próprio da arte não detalhar
materialmente todos os traços de uma fisionomia. A Igreja com­
preenderá progressivamente o pleno sentido destes esboços
elípticos.
SEGUNDO PERÍODO

DO EVANGELHO DE SÃO JOÃO AO CONCÍLIO DE ÉFESO


(90-431)

A época escrituristica é seguida de um período complexo,


cujo têrmo podemos assinalar no ano 431: o ano do Concilio
de Éfeso, no Oriente, ano que sucede á morte de Santo Agos­
tinho no Ocidente.
Notemos bem, êste “segundo período” não deveria ser co­
locado no mesmo pé de igualdade com o precedente. Durante
o primeiro, Deus falou. As palavras que Éle pronunciou e os
atos que realizou foram coligidos em escritos, fora de qualquer
comparação, cujo autor principal é o Espírito Santo (com tôda
a verdade, e não por piedosa metáfora). No fim deste primeiro
período, a Revelação está terminada. Certamente, o que divulga
a tradição viva ultrapassa o que foi escrito. Mas de agora em
diante, a Igreja está de posse de seu Tesouro (Mt 13,52). Nada
se lhe acrescentará mais do exterior. Ela não poderá inventar,
mas apenas inventariar; esclarecer também, e fazer frutificar.
Tarefa inesgotável, fecunda em descobertas, e, por vêzes, em
surpresas. Tal como o adulto que reencontra com espanto entre
seus brinquedos de criança um livro, uma imagem, cuja impor­
tância vital não havia percebido. Ou antes (já que se trata
de coisas vivas), assim reencontramos nós, por obra de algum
reencontro favorável, a lembrança de um acontecimento que ha­
víamos vivido, sem ter prestado atenção, conservado sem pensar
nêle, e de repente, nós nêle descobrimos com surpresa a sua
juventude e o valor não suspeitado. As lembranças vivem na
memória dos indivíduos e dos povos uma vida silenciosa, du­
rante a qual se distingue seu verdadeiro valor. Não evoquemos
aqui a “madalena” de Proust, por causa da vacuidade dos obje­
tos aos quais se prende, em suas obras, a vida da lembrança,
mas a memória que lreneu guardara do ensinamento de São
48 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

Policarpo. Mais ainda, evoquemos a palavra de Jesus: “O Es­


pírito S anto... 'Vos relembrará tudo o que vos tenho dito”
(Jo 14,25; cf. 14,20). Na memória da Igreja, a Revelação ama­
durece e se transfigura, e, no interior desta Revelação, de ma­
neira particularmente notável, a fisionomia de Maria, Mãe
de Jesus.
Durante o período que vai da morte de João ao Concilio
de Éfeso, faz-se luz progressivamente sôbre sua maternidade
divina, sua virgindade integral, sua santidade. Esta ilumina­
ção se completa em três fases: calma e silêncio (90-190), he­
sitações penosas (190-373), tempos das soluções harmoniosas
(373-431). No fim dêste período, serão levantados dois proble­
mas novos que deveríam comunicar à nossa época uma atuali­
dade especial.

1. Maturação Silenciosa.
Explicitação da antítese Eva-Maria
Após o período escriturístico, assistimos a uma espécie de
regressão. Na literatura cristã do século II (na medida em que
é conhecida), a Virgem ocupa um lugar ínfimo. Os textos são
raros; mais não fazem que repetir, de maneira obscura, o que
Mateus e Lucas tinham dito de modo nítido: Maria é mãe de
Jesus; Ela concebeu virginalmente. Os dados escriturísticos são
como que reduzidos à sua expressão mais simples, e uma parte
de sua riqueza permanece encoberta. A fisionomia da Virgem
parece sem contorno, meio apagada.
Um ponto, entretanto, começa a se desenvolver pelo fim
dêste século tão reservado. O paralelo de Maria com Eva, su­
gerido por João e Lucas, torna-se explicito em dois autores:
São Justino (f 163) o inaugura ocasionalmente” , e Ireneu
( t cêrca de 202) lhe dá uma estrutura teológica. ” 10
10 Dialogue avec Tryphon, 100, 4, 6, ed. G. Archambault (coleção
Hemmer e Lejay), t. 2, Paris, 1909, pp. 122-124 (PG 6, 709C-7I2A):
“Se Cristo se fêz homem por interferência da Virgem, foi para que, do
mesmo modo como a desobediência instigada pela serpente teve seu
comêço, da mesma forma também tivesse um fim. Com efeito, virgem
era Eva e não deflorada, quando acolheu em seu seio a palavra que
lhe vinha da serpente e gerou a desobediência e a morte. Ao inverso,
a Virgem concebeu fé e alegria, quando o anjo Gabriel lhe anunciou
a boa-nova (evaggctizomcnou) que o Espírito do Senhor viria sôbre ela,
e que o poder do Altíssimo a cobriría com sua sombra, de modo que o
Ser santo nascido dela seria Filho de Deus (Lc 1,35); ela respondeu:
“Seja feito em mim segundo tua palavra" (Lc 1,38).
3‘ Dentre as numerosas monografias escritas sôbre a teologia ma­
riana de S. Ireneu, assinalaremos sobretudo: G. Jouassard, Le “premier-
II. De S. João ao Concilio de Éfeso 49

Êste tema tem dupla importância: para o desenvolvimento


doutrinário, e, mais ainda, para a integração de Maria na his­
tória da Salvação. Êle não será objeto de discussão, como os
que nós vamos estudar em seguida, mas de meditações eminen­
temente positivas. O pensamento dos Padres, mais intuitivo que
dedutivo, mais simbólico que lógico, progride, não em forma de
silogismo, mas confrontando fatos e símbolos portadores da
verdade. Entre Eva e Maria, êles distinguem um paralelo de
situação e uma oposição de compromisso. Paralelo de situação:
em ambos os casos, uma mulher, uma virgem, pratica um ato
moral que acarreta a salvação de toda a humanidade. Oposi­
ção de compromisso: Eva duvida de Deus e desobedece, en­
quanto que Maria crê e obedece. O resultado é, de um lado,
o pecado e a morte; de outro, a Salvação e a Vida.
Ireneu dá ao tema esboçado por São Justino um relêvo sur­
preendente. O paralelo Eva-Maria não tem para êle um efeito
literário, nem uma espécie de improvisação brilhante, mas é
uma peça integrante da teologia. Tudo parte desta idéia-mestra:
o plano salvííico de Deus não é um reparo nem um “conser­
to” da obra primitiva e sim a retomada pelo princípio, a rege­
neração pela cabeça: — recapitulação no Cristo. Nesta res­
tauração radical, cada um dos elementos viciados desde a que­
da está novamente recuperado, de sorte que o mal atado desde
as origens se encontra desatado por um circuito inverso (re-
circulatio); o Cristo assume o papel de Adão; a Cruz, o da
árvore do pecado. Neste conjunto, Afaria representa Eva, vive
um papel de primeiro plano, que aparece quase necessário à
lógica do plano divino. Ireneu está tão penetrado por esta ne­
cessidade, que após ter enunciado as grandes linhas do plano
de Deus, subordina a êle o papel de Maria por um consequen-
ter, tão audacioso, tão desconcertante, que os tradutores o su­
primem frequentemente. 31

né de la Vierge" cliez saint Irénce et saint Hippolyte, em Rech. sc.


ret. 12 (1932), 509-532, e 13 (1933), 25-37; J. Garçon, La mariologie
de saint Irénce, Lyon, Imprimerie Paquet, 1932 (Bibliografia dos estu­
dos anteriores, p. 3); B. Przbylsky, De Mariologia Saneti Irenaei Lugdn-
nensis, Rome, 1937; Noel F. Moholy, OFM, Saint Irenaeus, the Fatlier
of mariology, em Studia Mariana, t. 7. First franciscan national Con-
gress, 1950, Burlington. Wisconsin, 1952, pp. 129-187; G. Jouassard,
La Théologie Mariale de Saint Irénée, em les Actes du Vlle. Congrès
Marial National: L’Immaculèe Conception, Lyon, 1954, pp. 265-276.
” Adversus haereses III, c. 22 da ed. Massuet, PG 7, 958-960,
ed Sagnard, Sources Chrétiennes 34, Lyon-Paris, 1952, pp. 378-382
(onde o consequcnter é impropriamente traduzido por: em estreita co-
Breve Tratado — 4
50 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana
Em conscqiiência... encontramos Maria, virgem obediente...
Eva, ainda virgem, fêz-se desobediente e tornou-se para si e
para todo o gênero humano causa da morte. Afaria, virgem obe­
diente, torna-se para si e para todo o gênero humano causa da
salvação... De Maria a Eva há reprodução do mesmo circuito...
(recirculatio). Pois não há outra maneira de desligar o que foi
ligado, se não forem retomados em sentido inverso os entrelaços
da ligadura... Eis por que Lucas, começando sua genealogia
a partir do Senhor, vai remontar até Adão ’,m, manifestando que
(o verdadeiro movimento da geração) vai, não de seus ances­
trais até Êle, mas d’Èle até êles, segundo a regeneração no Evan­
gelho da vida. E é assim que a desobediência de Eva foi desa­
tada pela obediência de Maria: pois o que a virgem Eva ligou
pela incredulidade, Maria desligou pela fé.
Compreendemos que êste paralelo não é uma simples con­
frontação horizontal entre a narrativa da queda e a da Anun­
ciação. Um meio-têrmo liga êstes dois elementos: o pensamento
de Deus; Deus retomou e restaurou em Maria o projeto esbo­
çado em Eva. Mas Êle também o retomou e restaurou na Igre­
ja. Os dois contrastes Eva-Maria, Eva-lgreja, conduzirão, assim,
a um encontro cheio de harmonia entre Maria e a Igreja, se­
gundo o esquema seguinte3*:

nexão). Neste texto, surpreenderemos o pensamento de Ireneu na fon­


te: jorrando de sua teologia da recapitulaiio e da recirculatio.
Textos posteriores:
1) Haer. V, 19, 1; PG 7, 1175A-1176A, ed. Harvey, II, 375-376:
"Qucmadmodum adstrictum est morli genus humanam per virginem, sal-
vatur per virginem. . . ”
2) Epideixis, n9 33, PG 12 (1919), pp. 685 (texto armênio e trad.
inglêsa) e 772-773 (trad. francesa). Tradução retificada proposta por
M. M. L. Froidevaux, em Rech. de sc. rei. 39 (1951) = Mélanges Lebre-
lon. t. I, p. 372: “Foi por meio de uma virgem desobediente que o ho­
mem foi atingido, caiu e morreu; assim também, è pela Virgem, que
obedeceu à palavra de Deus, que o homem, revigorado pela vida, de nôvo
descobre a vida... Era justo e necessário que Adão fôsse restaurado
no Cristo, a fim de que o mortal fôsse absorvido totalmente pela imor­
talidade, e que Eva fôsse restaurada em Maria, a fim de que uma Vir­
gem se tornasse a advogada de uma virgem, apagasse e suprimisse
a desobediência de uma virgem por sua obediência de Virgem".
Estes textos foram estudados por G. Jouassard, em Études Maria-
les 12 (1954), pp. 37-40. (Os textos sôbre Gn 3,15, têm uma linha in­
dependente, oriunda de um outro encadeamento de idéias. São estuda­
dos no mesmo volume pp. 93-97).
Enquanto que Mt (1,1-16) enumera as gerações descendo de
Abraão a Cristo, Lc (3,23-38) remonta de Cristo a "Adão que foi de
Deus”. O que sugere a Ireneu que, segundo a genealogia da graça,
Adão depende de Cristo.
3* Sôbre os paralelos Eva-Maria e Maria-lgreja, ver abaixo Bi­
bliografia, p. 201.
II. De S. João ao Concilio de Êfeso 51

4 Eva _
/
Maria V' / / Igreja
Na sua origem, os dois ramos divergentes do paralelo são
bem diferenciados: Maria acolhendo a saudação, retoma o pa­
pel de Eva por ocasião do pecado; a Igreja tirada do lado do
nôvo Adão (Gn 2,21, paralelo a Jo 19,34) retoma seu papel
de antes e depois do pecado: auxiliar (Gn 2,18) e esposa de
Adão, e por êle “mãe dos vivos" (Gn 3,20).
E’ lenta e progressivamente que reencontramos em Maria
todos os aspectos do papel de Eva, a começar por esta quali­
dade de “mãe dos vivos”, que Epifânio descobrirá por volta
de 377, para finalizar pela qualidade de associada a Cristo:
“auxiliar semelhante a Êle” (Gn 2,18), que não aparecerá an­
tes do século XIII (abaixo nota 116a). No término dêste pro­
cesso, a Igreja ficará sistemàticamente subordinada a Maria.
Mas deixemos estas antecipações, e voltemos ao nosso sé­
culo II para concluir: graças a Justino e Ireneu, êste período,
aliás estagnado, traz sua contribuição ao desenvolvimento do
dogma mariano: uma linha mestra se distingue e ao redor dela
se fará uma parte importante do progresso doutrinário. A signi­
ficação de Maria no plano da salvação já está definida: a Vir­
gem tem um papel feminino e inaugural, análogo ao de Eva.
Em Ireneu, esta linha se afirma com um vigor que não será
jamais excedido. Estender-se-ão as bases da analogia. E’ difí­
cil crer que alguém o tenha jamais expressado de modo mais
denso ou profundo.

2. Maternidade divina, virgindade, santidade.


O tempo das hesitações (190-373)
Após esta fase de semi-silêncio, ao fim da qual se eleva
a grande voz isolada de Ireneu, assistimos a um conjunto de
esforços penosos e mesclados de fracassos. Quatro pontos são
objeto desta primeira reflexão teológica: o titulo de mãe de
Deus (theotókos), a virgindade de Maria após o nascimento,
e no próprio nascimento de Jesus ( Virginitas post parlam et
virginitas in partu), enfim, a santidade de Maria. ”

Tudo o que segue depende do excelente estudo de G. Jouassard,


Marie à travers la Patristique, maternité divine, virgirtité, sainteté, en
Maria, t. 1, 1949, pp. 59-157.
■t*
52 Parte i: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

1. O primeiro ciado se deduz insensivelmente e sem difi­


culdades. A partir do Concilio de Nicéia (325), o titulo de Mãe
de Deus é abundantemente atestado. ,0 Apenas se começará a
discuti-lo sèriamente, quando êle já estiver universalmente di­
fundido. Antes de o pôr de nôvo em dúvida, o próprio Nes-
tório parece havê-lo empregado em sua pregação. Um século
de posse tranquila e explícita precedeu, pois, a controvérsia
que surgiu em 430.
Os outros três pontos, ao contrário, se deduzem na con­
tradição.
2. A virgindade perpétua de Maria (virginitas posi par-
tum) foi ignorada por Tertuliano e, com êle, por alguns auto­
res, dos quais o último conhecido é Bonoso, condenado por vol­
ta de 392. 101
3. A tese da integridade virginal de Maria e seu parto
(virginiías in partu) criou paralelamente dificuldades e deixou
pelo menos hesitante São Jerônimo, aliás, intrépido defensor
da virgindade perpétua. "
4. A santidade de Maria se deduz de modo mais laborioso
ainda. Longa é a lista daqueles que não acham dificuldade em
encontrar alguma falta de fé em Maria ou outro pecado, so­
bretudo entre os gregos: Orígenes, Basílio, Gregório de Na-
zianzo, João Crisóstomo (com particular insistência) e o pró­
prio Cirilo. ”
Sôbre os dois últimos pontos, Ambrósio e Agostinho fun­
damentam de modo definitivo a crença no Ocidente; mais len­
tamente e sem grande controvérsia, o Oriente chegará breve à
mesma convicção. Após Êfeso, os últimos sinais de êrro e in­
decisão desaparecem rapidamente.
Estas dificuldades, estas oposições, escandalizarão, à pri­
meira vista, certos leitores. Não convém ocultá-los, pois a ver­
dade não se nutriría de falsos aspectos, e sua integridade exige
a aceitação leal de todos os fatos. Falta interpretá-los. Por
que estas tentativas e êstes equívocos? Podemos dar-lhes duas
razões: uma negativa e especial; outra positiva e geral.
10 Sôbre as origens do título Thcotókos, ver nota anexa 2, abai­
xo, p. 188.
*’ G. Jouassard, em Maria, t. 1, pp. 100, 105-108.
" Ibid., pp. 108-113.
51 G. Jouassard, Saintctc de Marie chez les Pères, em Builetin dc Ia
Sociétè française d'ètudes marialcs, 5 (1047), pp. 11-13, e Ulnterprèia-
tion par Sainl Cyrille d' Alcxandrie de Ia scène de Marie aax pieds de
la croix, cm Virgo Irnmaculata, Roma, Academia Mariana, vol. 4, 1955,
pp. 28-47.
[I. De S. João ao Concilio de Éfeso 53

Em primeiro lugar, era bom que a Virgem ficasse oculta


durante algum tempo, para que o mundo cristão rompesse com
a contaminação dos cultos das deusas-mães. Tal perigo não era
quimérico. Em 377, quando o culto mariano estava em seus iní­
cios, Epifânio ” teve de repreender em termos enérgicos as
“coliridianas” de mulheres que haviam improvisado uma liturgia
calcada em costumes pagãos, com sacerdotisas que ofereciam a
Afaria sacrifícios de pães (denominados collyrida).
Em segundo lugar, Deus quis deixar ao trabalho da inte­
ligência humana a descoberta de certos aspectos da verdade,
cujos princípios suficientes revelou. Assim Êle evitou que o ho­
mem experimentasse êste tédio que o invade diante de verda­
des preestabelecidas, e lhe permitiu provar o sabor próprio das
verdades arduamente conquistadas. Dêsse modo Êle o elevou,
ainda aqui, a um papel de associado (1 Cor 3,9) que não é um
papel vão. Mas ao conceder tal lugar à iniciativa humana, Deus
consentiu dúvidas e fracassos, que são contingências inevitáveis
da liberdade criada.
Poderiamos ilustrar, por uma comparação, o processo des­
tes desfalecimeníos. Quando encontramos, num monumento an­
tigo, um afresco oculto sob algum revestimento, os primeiros
golpes de buril dados nestes revestimentos ferem, às vezes, a
imagem subjacente. Absorvido em seu trabalho de restauração,
o descobridor não se apercebe logo da destruição que faz. Qual­
quer coisa assim se produziu nos séculos III e IV e se repro­
duzirá cada vez que se cogitar de um nôvo traço na fisionomia
da Virgem. Preocupados por algum outro objeto, os pregado­
res em busca de exemplos nítidos, os controversistas impelidos
pelo ardor de suas refutações, reencontram nesta ocasião a Mãe
do Senhor, e por não se deterem n’E!a, inquietos por outra
coisa, ignoram um ou outro de seus privilégios ainda não ex­
plicitados. Felizmente êstes erros momentâneos, êstes erros ma­
teriais, ao contrário dos prejuízos sofridos pelo painel acima
descrito, são reparáveis, pois estamos numa ordem de realida­
des vitais e espirituais: a verdade revelada traz em si mesma
seu princípio de regeneração.
Entremos mais diretamente no mecanismo destas hesita­
ções. Elas se explicam ordinariamente pela dificuldade em con­
ciliar entre si dois aspectos complementares do mistério cristão,
cuja verdade não se deixa reduzir a uma simplicidade geomé­
“ Panarion, haer., 79; PG 42, 740C-756A; GCS, 37 = Epiphane,
3, pp. 475-484.
54 Parte 1: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

trica. No ponto de partida, a Virgem é objeto de uma idéia


vaga e de uma experiência espiritual confusa. Uma questão
nova aparece, por ocasião de uma analogia conceituai ou sob
a pressão contínua de um grande movimento de idéias. Fre­
quentemente o autor, surpreso e desprevenido, lança alguma
fórmula apressada. Êle respondeu em função de suas preocupa­
ções do momento; e qualquer outro aspecto do dogma, no qual
êle não pôde pensar, fica prejudicado. A consciência cristã rea­
ge. Uma controvérsia se desencadeia. Hesita-se, reflete-se, apai-
xona-se. Às respostas parciais e opostas sucede mais ou menos
rapidamente a resposta total, a resposta verdadeira. Ela satis­
faz às exigências legítimas dos dois partidos e se integra har­
moniosamente no conjunto da doutrina cristã.
Defrontamo-nos aqui com o desenvolvimento dogmático e
sua complexidade, e, ao mesmo tempo, nos precavemos contra
certas atitudes simplistas. O exame escrupuloso dos fatos im­
pede-nos de classificar precipitadamente como “erros” e “ver­
dades” as opiniões emitidas, antes do total domínio de cons­
ciência de um problema, e, mais ainda, de separar seus pro­
tagonistas em “amigos” e “inimigos” da Virgem. A verdade da
qual provém cada fase do desenvolvimento dogmático se apre­
senta menos como o oposto de um êrro do que como um justo
meio entre dois erros ou (mais exatamente, e para eliminar a
idéia de compromisso que sugere a expressão “justo meio”)
como a linha divisória em que se encontram duas versões da
verdade, quer dizer, dois aspectos parciais e complementares
que constituem a integridade da mesma.

3. Solução progressiva
Estas observações aclaram o sentido dos conflitos que sus­
citaram na Igreja, do fim século 111 a 431, as quatro grandes
questões marianas enumeradas acima. Examinemo-las em par­
ticular:
1. A virgindade perpétua de Maria (virginitas post par-
tum) encontrou sua justa expressão entre dois desvios. Era um
êrro grave propô-la como um corolário das teses maniquéias
sôbre a perversidade intrínseca do matrimônio. Adversário dos
maniqueus (e sentindo o ranço de suas idéias nos promotores
do ascetismo), Helvidio, impelido por seu zêlo, desejou tirar de
seus adversários até êste pretêxto. ’s Fazendo fogo com tôda
“ Sôbre esta inclusão do maniqueismo na questão da virginda­
de, cf. G. Jouassard, Marie dans Ia Patristique, p. 106, nota 24, p. 108, etc.
II. De S. João ao Concilio de Êfeso 55

espécie de lenha, como acontece no ardor da polêmica, agarra


precipitadamente os textos evangélicos onde se trata dos ir­
mãos3" do Senhor (na realidade, segundo a linguagem da Pa­
lestina, seus primos) e propõe Maria como modelo integral das
mães de famílias numerosas. Quem tinha razão? Nem os ma-
niqueus, nem seus adversários dissolutos. O fato da virgindade
de Maria devia ser resguardado de qualquer motivo errôneo.
Foi o que a consciência cristã percebeu ràpidamente com Je-
rônimo, Ambrósio e Agostinho. *31*
2. A questão da Virgindade de Maria no nascimento de
Cristo (virginitas in partu) se encontrava em situação mais de­
licada ainda. Os mais inclinados a propor esta doutrina eram
os docetas para quem o corpo de Cristo era apenas aparência.
Muito cedo, cristalizada na crença popular ” , ela ia levantando
dúvidas. Na violência de sua luta contra o docetismo, Tertu-
liano e S. Jerônimo (na primeira parte de sua carreira) in­
sistem com um realismo exagerado sôbre o caráter normal do
nascimento de Cristo, e se entregam a sórdidas descrições. As
duas exigências da fé: maternidade integral, física e corporal,
virgindade integral, física e corporal, não eram de modo algum
fáceis de conciliar. Aqui ainda foi necessário desembaraçá-las
de falsos princípios com os quais alguns as haviam comprome­
tido, o que fêz S. Anibrósio.3’ Eis em resumo o que êle com­
preendeu: o nascimento de Cristo não foi fantasia, mas reali­
dade; não foi comum, mas miraculoso. Êle traçou cuidadosa­
mente a linha divisória entre o natural e o que é sobrenatural

” Sôbre esta questão ver o artigo Frères du Stignear, Dictionnai-


re apologétiquc de Ia Foi cathoFique, t. II, col. 131-148. Esta interpre­
tação é cada vez mais admitida pelos protestantes (ver, por exemplo,
G. Schmied, Ma croyance en Marie, no Dialogue sur Ia Vierge, Lyon,
Vitte, 1951, pp. 20-24).
31 G. Jouassard, em Maria, I, 108-111.
33 Ibid., p. 82; cf. pp. 109-112; J. C. Plumpe, ‘‘Some littlc known
early witnesses to Mary’s "Virginitas in partu", em “Theological Stu-
dies”, 9 (1948), 567-577, conscienciosamente estudou o testemunho de
inúmeros apócrifos, arrolados desde o fim do século 1 à metade do
século II, segundo calcula êle. Mas, que sabemos nós do texto primi­
tivo destas multiformes narrativas das quais não possuímos senão tar­
dias reações?
Com relação à apreciação do valor destes testemunhos, ver o que
se dirá abaixo (nota 60) a propósito dos apócrifos assuncionistas. Ver
ainda a nota-anexa 2, acrescentada à última hora.
•’* Ver o excelente estudo de J. Htihn, Das Gcheimnis der Jungfrau-
Mutter Maria nach dem Kirchenvater Amlirosius, Wiirzburg, Ecliter-
Verlag, 1954, pp. 110-126.
56 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

neste nascimento. 10 Ao se encarnar, Deus não aboliu a carne,


mas lhe trouxe o penhor de sua renovação escatológica. Assim
Maria se encontrou livre da servidão expressa na Gn 3,16 (“tu
darás à luz na dor”) e sua virgindade permanece intacta. O
alcance desta descoberta é a justa percepção do que é a “nova
criação” prometida pelos profetas, e o “nôvo nascimento” que
a inaugura: O nascimento de Cristo é a réplica e a manifes­
tação do nascimento eterno, o modelo e o penhor do nascimen­
to batismal; êle participa da condição destes dois nascimentos,
dos quais é o sinal cósmico.
3. Com relação à santidade de Maria, a oposição mais com­
plexa, e menos clara, foi resolvida sem grande controvérsia.
Poderiamos esquematizar as coisas assim: de uma parte, uma
descoberta progressiva da santidade da Virgem (estreitamente
ligada à da sua Virgindade); de outra, tuna tendência a subli­
nhar, em face da suficiência hipócrita de certos ascetas, que
Cristo é “o único santo" e os homens, todos pecadores. Que
tentação para os pregadores de encontrar na Mãe do Senhor,
em pessoa, o exemplo dessa fragilidade universal que êles gos­
tariam de incutir no seu auditório. Muitos sucumbiram, e utili­
zando as Escrituras com essa leviandade que é às vêzes pró­
pria dos pregadores, acreditaram encontrar n’Ela vanglória, dú­
vida ou presunção. “ O exemplo era niíido, mas o choque feriu
a delicadeza e a própria fé do povo cristão. A intenção dêstes
pregadores era boa, e seus princípios excelentes quanto ao
essencial: Cristo é o único santo por Si mesmo, o único me-
tafisicamente impecável; só Êle não tinha necessidade de Re­
denção. Mas êles desviaram-se ao confundir Maria com o resto
da humanidade. Pouco a pouco a luz da verdade foi dissipan­
do êstes erros.
4. E’ sôbre o titulo de Tlieolókos que se levanta a oposi­
ção teológica mais caracterizada. Quando, após mais de um sé­
culo de tranqüila posse, a Igreja se propôs refletir sôbre esta*41
*• De Inc. Dom. Sacr., 54; PL 16, S35 AB: “M ulta... in Eodern
(= in Christo) et secundam naluram invenies et ultra naturam. Secun­
dam conditionem etenim corporis, in utcro fuit, natas est, lactatas est,
in praesepio collocatus, sed supra conditionem Virgo concepit, virgo
generavit ut crederes quia Deus erat qui novabat naturam et homo
erat qui secundum naturam nascebatur ex homine”.
41 O principal texto invocado foi Lc 2,35. Vimos na espada pre­
dita por Simeão o aviso de uma dúvida na alma de Maria por oca­
sião da Paixão. Ver os estudos de G. Jouassard, Lc problème cie lu
saintelé de AIarie chez les Pèrcs. em Êfudes Mariales (1947), pp. 13-
31, e monografia sôbre São Cirilo de Alexandria, em Virgo Immacula-
ta. vol. 4, 1955, pp. 28-47.
II. De S. João ao Concilio de Êfeso 57

fórmula, foi necessário encontrar a interpretação correta entre


dois erros opostos. O êrro, contra o qual Nestório investiu, te-
ria feito da Virgem a mãe de Cristo em sua divindade, inter­
pretação tanto mais ameaçadora, quanto a mitologia deixava
flutuar nas imaginações a lembrança de uma “mãe dos deu­
ses”. 0 outro êrro, o dos nestorianos, proscrevia o título e des­
conhecia a verdade que êle continha: negar que a Mãe de Cris­
to fôsse a Mãe de Deus era negar que Cristo fôsse Deus. O
justo meio consistia em admitir que a Virgem é Mãe de Deus
por haver gerado, segundo a humanidade, um Filho, que é pes­
soalmente Deus: o que é pôsto em plena luz pelo Concilio de
Éfeso. "
Compreendemos a acuidade de todos êstes debates cujo
complexo desenvolvimento simplificamos talvez demais. Se cie
um lado a sã reação contra os cultos pagãos criou um clima
desfavorável à valorização das grandezas de Maria, por outro,
os mais decididos a levar avante alguns dêstes privilégios foram
os menos sensíveis à sua controvérsia dogmática: os maniqueus,
depreciadores do casamento, eram mais predispostos que os
outros a defender a virgindade de Maria após o parto; os do-
cetas, negadores da realidade do corpo de Cristo, defendiam
sua virgindade in pariu; os pelagianos, campeões abusivos dos
poderes naturais do homem com relação ao bem, davam re­
levo à sua perfeita santidade; e os espíritos ainda seduzidos
pelos cultos pagãos estimavam o título de Theotókos. Não que­
remos dizer que os heréticos foram os promotores dos privilégios
de Maria. Êles foram talvez os espantalhos que mantiveram
os outros afastados dêles, pois seus princípios errôneos (ou
suas afirmações explícitas) lançavam sôbre os atributos de Ma­
ria uma luz falsa. Não era fácil discernir entre estas caricaturas
e as primeiras afirmações autênticas dos privilégios de Maria.
Os que perseguiam o êrro sob tôdas as suas formas eram tentados
a considerá-los em bloco como ramos da árvore ruim que era
necessário dcsenraizar. Por pouco que retornemos à atmosfera
dessas controvérsias, hoje superadas, compreendemos que mê-
dos, que suspeitas entravavam o esclarecimento da doutrina ma­
riana. Os verdadeiros servidores da Igreja não foram tanto
os que atribuíram à Virgem novos títulos de glória, e acrescen-

” Sôbre o detalhe da controvérsia, ver O. Jouassard, em Maria,


I, 122-136. Cf. Nilus a sancto Brocardo, OCD, De Maternitate divi­
n a ... Ncstorii Constantinopolitani ei Cyrilli Alexandrini sententia, Ro­
ma, 1944.
58 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

taram, como dizemos às vêzes, “novos florões à sua coroa”,


e sim os que A situaram em sua verdadeira luz. Não foram
os espíritos limitados, mas os grandes espíritos, que souberam
manter distância, acolher todos os aspectos da verdade, e con­
ciliar cada nôvo privilégio mariano com a controvérsia, sem a
qual teria caido para o lado da heresia; a virgindade post par-
tum com a grandeza do casamento, a virgindade in partu com
a realidade da Encarnação, a santidade de Maria com sua qua­
lidade de redimida, o têrmo divino de Sua maternidade com a
humildade do fundamento: uma geração corporal igual à dos
outros homens, salvo os privilégios da virgindade. Desenvolvi­
dos sem referência a estas verdades complementares, êstes
dogmas teriam corrido o risco de tornar a forma de uma gnose
estranha ao corpo da doutrina cristã.
4. Dois problemas novos
Dêste processo, encontraremos duas ilustrações ao fim do
período que nos ocupa. Duas novas questões ai são levantadas:
a Assunção, pouco antes de 377, e a Imaculada Conceição,
em 430.
Posição do problema da Assunção (377)
Santo Epifânio, bispo de Salamina, foi o primeiro a le­
vantar a questão sôbre o fim do destino terrestre de Maria. Êle
o fêz de modo completamente ocasional, na famosa carta aos
cristãos da Arábia que inseriu em seu Panarion em 377. " Coisa
curiosa, êste testemunho perfeitamente informado das menores
tradições palestinenses não encontrou nenhum elemento de res­
posta. Ele não sabia nem mesmo se Maria havia morrido ou
não. Compreendeu somente que Seu fim foi digno d'E!a e en-
treviu que devia ter implicado em algum prodígio. Mas na falta
absoluta de dados, preferiu imitar o silêncio dos livros sacros:
não encontramos ai, com efeito,
nem a morte de Maria, nem se Ela morreu, nem se Ela foi ou não
sepultada... A escritura guardou completo silêncio por causa da
grandeza do prodígio, para não chocar com espanto excessivo
o espirito dos homens. Por mim, não ouso falar nisso. Guardo-o
em meu pensamento e tne calo (ibid.).
E após ter mostrado que Lucas 2,35 levaria a pensar que
Maria teria morrido como mártir, e Apoc 12-14, ao contrário,
que Ela teria sido levada viva para o céu, Epifânio continua:
° Panar., hacr., 78. ns. 10-11; PG 42, col. 716 AD; GCS, 37
(= Epifânio, 3), pp. 461-462.
II. De S. João ao Concilio de Éfeso 59
E' possivel que isto não tenha acontecido com Maria. Eu
não o afirmo, entretanto, de modo absoluto, e não digo que
Ela permaneça imortal. Não digo, da mesma forma, que Ela
seja mortal. A Escritura, com efeito, se eleva acima do espi­
rito humano e deixou êste ponto impreciso por respeito a esta
Virgem incomparável, a fim de cortar logo todo pensamento
baixo e carnal a seu respeito. Está Ela morta? Nós o ignora­
mos (ibid.).
Esta questão claramente proposta não despertou de impro­
viso grande curiosidade. Quanto sabemos, ficou sem eco du­
rante êste período. Esperemos o que acontecerá depois; mas
que nos seja permitido tirar esta lição: sempre a mesma. Ain­
da aqui, os verdadeiros servidores da fé não foram os autores
dos apócrifos, que responderam logo com palpites imaginosos e
gratuitos, mas antes o sensato Epifânio que tratou o problema
com um senso doutrinário muito agudo, e, mais tarde, os teó­
logos, que passaram as narrativas legendárias da dormitio pelo
crivo dos critérios dogmáticos.

Posição do problema da Imaculada Conceição (429)


Exatamente ao fim de nosso período deduz-se a mesma li­
ção, de modo mais nítido, em outro terreno. No decurso do
gigantesco conflito que opõe S. Agostinho aos pelagianos, duas
escaramuças erguem, com uma nova acuidade, o problema da
santidade de Maria.
1. Não podemos estender-nos aqui sôbre o teor da doutrina
pelagiana: ela reagia contra o pessimismo maniqueu por um
otimismo excessivo sôbre as capacidades da natureza humana,
cm detrimento do necessário papel da graça. Durante a pri­
meira fase dessa controvérsia, Pelágio levantou contra S. Agos­
tinho o caso da Virgem “que é necessário reconhecer sem peca­
dos”. Ninguém havia expresso até aqui uma fórmula tão per­
feita da santidade de Maria. E poderia haver tentação, numa
controvérsia tão ardente, de recusar a tese do herege. S. Agos­
tinho resolve a dificuldade de modo genial. Aceita a afirmação
de seu adversário, mas lhe dá outro sentido: esta santidade é
uma exceção e tem por principio a graça de Deus, não apenas
o livre arbítrio. "
“ Encontramos a exposição da objeção de Pelágio sôbre a Virgem
(quam dicit “sine peccato confiterí necesse esse pietati") e a resposta
de Santo Agostinho: (“ . . . Maria de qna propter honorem Domini, nullam
prorsus, cuiti de peccatis apitar liaberi voto quaestionem) em De natnra
et gratia, 42; CSEL, 60, 263-264; PI. 44, 267. Cf. G. Jouassard, em
Maria. I, 115.
60 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

2. Juliano de Eclarto levou o conflito a um ponto mais de­


licado: não mais a ausência de pecados atuais, mas a do pe­
cado original. Este pelagiano foi assim o primeiro a negar ex­
pressamente que a Virgem tenha sofrido a submissão do pecado
original: “Pela condição original”, que lhe atribuís, “tu entre­
gas Maria em pessoa ao demônio!” objetava êle.41 Aqui o
Bispo de Hipona não revelou a mesma mestria do conflito pre­
cedente. Achou uma saída num texto equivoco, onde podemos
bem perceber, gradualmente, o encaminhamento das duas exi­
gências da tradição, mas onde todos os autores posteriores ve­
rão, durante séculos, a negação do privilégio da Imaculada
Conceição. *'
Aqui, como em muitos outros casos, o aparente defensor
da Virgem (Juliano) é um herético. Propõe um atributo verda­
deiro sob uma luz falsa: a Imaculada Conceição não é para
êle um privilégio único, nem mesmo um efeito particular da
graça divina, mas a herança comum do conjunto dos cristãos.
Agostinho tinha razão de lhe opor o domínio universal do peca­
do original e a necessidade da graça para vencer o pecado.
Ao afirmar o caráter único do privilégio mariano, e o caráter
de preservação pela graça que é sua própria essência, a defi­
nição dogmática da Imaculada Conceição estará infinitamente
mais próxima de Agostinho que de seu adversário.
Entretanto, por ter sido apresentada de modo prematuro e
caricatural pelos heréticos, e ter sofrido por isto mesmo opo­
sição de S. Agostinho,, a idéia da conceição sem mancha de
Maria será, durante séculos, suspeita, no Ocidente. Assim os
latinos, até aqui na vanguarda do progresso mariano, tomam
a retaguarda aos gregos, entre os quais o desenvolvimento con­
tinuará harmoniosamente até os séculos VIII e IX.

Reencontraremos uma concepção pelagianizante da santidade de Ma­


ria em certos bizantinos do século XIV, notadamente Nicolau Cabasilas
e Demétrio Crisoloras, que chega a dizer que Ela “adquiriu” . . . uma
“beleza maior” que a do primeiro homem, “não por graça, mas por
seus próprios esforços”. Texto inédito, Escoriai. 164, foi. 76, citado
por A. Wenger, La nouvelle Êvc dans Ia Théologie byzaniine, em
Éludes Mariales 12 (1955), p. 56.
° Citado por Agostinho, Opus imperlectum adversas lulianam, 4,
122; PL 45, 1417: “Ta ipsain Mariam diabolo, nascendi conditione
transcríbis".
** “Non transcribimus diabolo Mariam conditione nascendi, sed ideo:
guia ipsa conditio solvitur gratia renascendi", ibid., 1419. Encontraremos
as indicações essenciais sôbre êste texto e sua história no artigo citado
de G. Jotiassard, Maria, I, 116-121.
TERCEIRO PERÍODO

, DO C0NCÍL50 DE ÉFESO À REFORMA GREGORIANA


(431-1050)
O fato básico dêste terceiro período é o desenvolvimento
das festas litúrgicas de Maria. Oriundas das bases dogmáticas,
elas serão o elemento vivificante da reflexão teológica e, assim,
suscitarão o primeiro advento de uma literatura propriamente
mariana. E’ no Oriente que tudo se inicia.
1. No Oriente
Origens das festas marianas
Quando e como aparecem as primeiras festas? A resposta
que poderemos dar a esta questão deixar-nos-á com a mesma
insatisfação, apesar dos progressos realizados nestes últimos
anos. Com efeito, êsses movimentos litúrgicos fazem-se durante
os séculos, progressivamente, sem marcos ou acontecimentos que
permitam datar-lhes precisamente as origens.
Um conjunto de fatos, entretanto, se impõe. Em Constan-
tinopla, uma “memória da Virgem" é celebrada a 26 de dezem­
bro, desde antes do Concilio de Éfeso, há pouco tempo, sem
dúvida. “ Nas outras sés nada temos de certo antes do ano
431. Em Jerusalém, no século V, celebra-se “o dia de iMaria
Theotókos”, a 15 de agosto. " Em Antioquia, uma “memória”
da Virgem é atestada em janeiro, após 411, mas antes de
548. ° No Egito, cêrca do ano 500, festeja-se, a 16 de janeiro,
“o dia de Santa Maria”. 50 Este movimento procede de inicia­
tivas não combinadas entre si, como o atesta a diversidade
das datas e dos nomes designados à celebração. Existe, ao me­
nos, um ponto comum. Salvo em Jerusalém, a festa se situa
em dezembro ou janeiro, nas proximidades do Natal. Maria entra
na liturgia como um satélite do Mistério da Encarnação.
*’ Dom B. Capelle, Le témoignage de la lilurgie em Êtudes Maria­
les (1949) = Assomptions, II, pp. 42-45.
“ Ibid., pp. 37-41.
“ Ibid., pp. 45-46.
“ Ibid., pp. 47-48.
62 Parte 1: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

A partir do final do século VI, desenvolve-se uni ciclo de


festas marianas: Conceição a 9 de dezembro", Natividade em
8 de setembro", Apresentação a 21 de novembro” , Dormição
ou Assunção a 15 de agosto, segundo a data do dies natalis,
celebrado desde o século V em Jerusalém. " Quanto à Anun­
ciação, fixada nove meses antes do Natal, pertence essencial-
cialmente ao ciclo cristológico. “
Em suma, a primeira festa mariana aparece no século V,
em dependência do Natal, salvo em Jerusalém. A partir do fim
do século seguinte, começa uma eclosão de festas particulares.
Nelas o mistério de Maria é colocado num relêvo mais pessoal.
Tudo isto se vai processando insensivelmente e sem choque
nos moldes de um processo mais antigo. A partir do século II,

" Fim do século VII - inicio do século VIII. Sua data foi fixada
nove meses antes da festa (mais remotamente estabelecida) da Nati­
vidade de Maria. M. Jugie, L’lmmaeulèe Conceplion, Roma 1952, pp. 135-
145. Ver também o estudo de C. A. Bouman, em E. D. 0 ’Connor, The
Dogma of lhe Immaculate Conception, Notre-Dame, University Press,
pp. 116-161.
11 Esta festa existia “em meados do século VI", pois Romanos Me-
lódio consagra um cântico a esta solenidade. M. Jugie, Ulmmaculèc
Conception, Roma 1952, p. 135. Cf. DACL, 10, 2038.
" Esta festa é confirmada a partir do século VII. H. Leclercq, Pré-
sentation em DACL, 14, 1729-1731. Passou ao Ocidente em 1372, data
em que Gregório XI a adota por sugestão de um enviado do rei de
Chipre à Côrte Papal de Avinhão.
** Estudado abaixo. E’ difícil datar exatamente as origens, pois
que ela parece provir da evolução de uma festa mariana de objetivo
mais geral: “O dia (dies natalis) da Theotókos", celebrado a 15 de
agosto desde o século V em Jerusalém, como vemos pela observação
(acima, nota 48). Encontramo-la de maneira explicita a partir do fim
do século VI.
Uma outra festa mariana existe em Constantinopla antes dos mea­
dos do século VI: a deposição das vestes da Virgem nas Blachernas.
A celebração desta relíquia está em relação com o objeto da festa da
Assunção: reverenciam-se as vestes na falta do corpo que a terra não
fôra digna de guardar, como o atesta a história eutimíaca que poderia
remontar aos meados do século VI. A. Wenger, 1’Assomplion, Paris
1954, pp. 11-139 e 293-312, renovou inteiramente o estudo desta questão.
" Robin Fletcher sustentou em Oxford, em 1954, uma tese sôbre
as origens da festa da Anunciação; êle calcula que remonta à metade
do século VI. A tese (200 páginas datilografadas) ainda está inédita.
Um capitulo foi divulgado em Byzant. Zcitschr., 51 (1958), pp. 53-64.
Não nomeio aqui a festa de Hypapante (2 de fevereiro), muito mais
antiga, pois no Oriente não tem caráter mariano: seu objeto é o “en­
contro” do Cristo com “Simeão e Ana". Em Constantinopla em 602, ela
erã celebrada á 14 de fevereiro. H. Higgins, Note on lhe Purificalion,
em Archiv. /. Liturgienwiss., 2 (1952), 81-83.
II!. Do Concilio de Êfeso à Reforma Gregoriana 63

havia-se começado a celebrar o aniversário dos mártires. “ Mais


tarde, estenderam-se estas comemorações a alguns grandes as­
cetas. Rezava-se a Maria desde o século IV e, talvez mesmo,
desde o século 111 (se o Sub tuum remonta a tal data). Era
muito natural que estas orações tomassem também forma litúr-
gica: o que se fêz com o impulso vivo da piedade comunitá­
ria, sob a direção dos bispos.
Seria difícil exagerar a importância destas instituições. Cer­
tamente, elas não são fontes objetivas da Revelação, como bem
lembrou Pio XII. Mas são o lugar privilegiado onde nos torna­
mos conscientes dos fatos revelados. Desde que se celebre uma
festa, é mister elaborar fórmulas de oração e pregar cada ano
sôbre o objetivo dela. O pensamento teológico recebe nessa oca­
sião um estimulo considerável. A inteligência exercer-se-á não
na abstração alheia à vida, que espreita os intelectuais de gabi­
nete, ainda que teólogos, mas no coração de uma festa da co­
munidade. Este clima favorece novos progressos, negativos e
positivos. A precipitação com a qual certos doutores do período
precedente haviam estendido à Theotókos as sórdidas maneiras
de ser ou agir, comuns aos homens pecadores, não é mais
possível. Os últimos fragmentos do êrro se esvaem à ardente
iuz das celebrações litúrgicas, como a neblina matinal ao raiar
do sol. Os últimos privilégios de Maria: Assunção, santidade
original, mediação esclarecem-se progressivamente.

Assunção

Relembremos os dados do período precedente. Epifânio ha­


via formulado, pouco antes do ano 377, a pergunta: como ter­
minou a vida terrestre de Maria? Esta pergunta não parecia
ter encontrado eco. Era demasiadamente avançada para as preo­
cupações da época. Esta situação muda, quando se começa a
celebrar uma festa da Virgem: então, um vivo movimento de
interesse se delineia. E’ fácil compreender por quê. A festa de
um santo era normalmente no dia de sua morte: seu dies na­
talis. Também a festa da Theotókos será considerada espon­
taneamente como o dia comemorativo de sua partida dêste

“ Sôbre a origem das festas dos mártires, ver, por exemplo,


M. Righetti, Manuale di storia liturgica, Milão, Ancora 1946, t. 2, c. 9,
ns. 172-174, pp. 268-272. Já em Smirna celebrava-se o aniversário da
morte de S. Policarpo, t 155, por uma reunião eucaristica.
64 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

mundo. " Adivinha-se a curiosidade dos fiéis c o embaraço dos


pregadores: como se passou isto?s*
Êste problema, cuja importância não cessa de crescer, foi
explicado de dois modos bem diferentes: fabulação e razão
teológica.
1. Como é de esperar, é a imaginação, faculdade mais rá­
pida e menos controlada, que dispara em primeiro lugar. A
partir do fim do século V começam a circular piedosas nar­
rativas destinadas a satisfazer a curiosidade popular que cada
um fantasia à sua maneira. Imaginam-se, de início, os funerais
da Virgem e daí se vai para além da morte. Dois tipos de his­
tórias são elaborados. O primeiro, do pseudo-João, relata uma
assunção do corpo sem reunião à alma: os despojos repousam
incorruptos sob a árvore da vida até o dia do julgamento. O
segundo revela intuições mais válidas, apesar da gratuidade e
da extravagância dos detalhes. Apresenta assim o desenrolar dos
acontecimentos: grande excitação domina a Igreja no momento
em que o fim de Maria se aproxima. Ela é avisada do alto
a êste respeito. Os apóstolos, miraculosamente reunidos, rivali-
zam-se em discursos. Cristo vem receber a alma de Sua mãe
(a iconografia bizantina representa esta alma sob a forma de
uma criancinha envolta em faixas); depois o corpo da Theo-
tókos, gloriosamente ressuscitado, reúne-se à sua alma no céu. **

51 E’ assim que as coisas se passam na Palestina. E esta região


exerce em muitos sentidos um papel de comando no triplo domínio:
litúrgico (é ai que a celebração mariana de 15 de agosto é mais re­
motamente confirmada), teológico (é ai que estão os documentos dou­
trinários mais antigos: homílias de Theotéknos e talvez de Modesto de
Jerusalém), arqueológico (túmulo da Virgem).
3* Encontramos os traços desta hesitação na diversidade dos nomes
dados à festa: Assunção (análêpsis) com Theotéknos (provàvelmente,
segunda metade do século VI, cf. abaixo, nota 62), Passagem (metás-
lasis, Transitus) com outros, Dormição (koimlsis) que triunfará no
Oriente no século VIII. A. Wenger, L‘Assomplion. Paris 1954, pp. 100-
103. A mesma hesitação nas narrativas dos apócrifos, files dão relevo
à morte. Sôbre a Assunção corpórea, são breves e silenciosos. Assim,
por exemplo, João de Tessalonica (início do século VII) mutila o apó­
crifo que lhe serve de fonte para tudo o que concerne à Ressurreição.
*• A. Wenger, L'Assomplion, Paris 1954 (pp. 15-96 e 209-2621 re­
novou inteiramente a questão dos apócrifos, file descobriu e edhou
(pp. 209-242) a fonte até aquela data ignorada de João de Tessalonica
(t pouco antes de 649), que remonta ao fim do século V ou início do
século VI, e, graças a esta descoberta, pôde reconstituir a filiação dos
inumeráveis apócrifos, tanto no Oriente como no Ocidente. (Estas des­
cobertas confirmaram as posições tomadas por G. Jouassard, em Études
Mariales, 6, 1948, pp. 103-104).
III. Do Concilio de Éfeso à Reforma Gregoriana 65

2. As reações foram assaz diversas. Os mais crédulos, sem


mais reflexão, se deixam impressionar pelo brilho da bela his­
tória. Outros levam ao desprezo essas narrativas sem estabili­
dade (por vêzes até contraditórias) e desprovidas de autorida­
de. Os melhores teólogos prosseguem — não sem hesitações —
um duplo trabalho: eliminam ou colocam em segundo plano o
que é inquietante ou gratuito; estabelecem sôbre bases teológicas
verdadeiras o que pode existir de válido entre as piedosas ima­
ginações dos apócrifos **:
eo Sôbre o valor dos apócrifos, tem-se discutido muito. Está bem
claro que não são o veículo de uma tradição apostólica explicita. Que
serão, então? fábulas gratuitas ou tomada de consciência, por via intui­
tiva e sob forma mítica, postulados implícitos da Revelação?
A resposta depende do valor que se dá à faculdade imaginativa.
A moda racionalista que se agravou desde Descartes fazia subestimar êste
valor. Hoje em dia, em virtude de uma reação justificada, embora por
vêzes excessiva, descobre-se que tal faculdade (cujo exercício está li­
gado à inteligência) pode atingir o real (e talvez o supra-reai): os
“mitos” que ela elabora, contêm às vêzes, no seio da fabulação, uma
verdade profunda.
Os apócrifos da Dormição estão para o pensamento teológico sôbre
a Assunção como os mitos da tragédia grega para o pensamento filo­
sófico antigo: a expressão de uma inspiração válida sôbre as aparên­
cias de conto; esta expressão primeira é confusa e diluída, mesclada
de elementos heterogêneos. Por isso, necessita, pelo menos, de uma
depuração critica.
Haveria perigo em propor esta analogia com os mitos trágicos,
se não a precisássemos aqui em duas observações importantes:
l*l2*9 A faculdade de imaginação que mencionamos aqui não é ima­
ginação em estado puro; porém imaginação que se exerce sob a mo­
ção da inteligência. (O animal desprovido de inteligência é capaz de
reter imagens, mas incapaz de fabulação, e portanto, de tôda imagi­
nação criadora).
29 Diverso é o ponto de aplicação das faculdades humanas no desen­
volvimento do pensamento grego e no da teologia assuncionista. Trágicos
e filósofos gregos exprimiram essencialmente os elementos humanos sob
luz humana. A concepção do destino, explicado por via imaginária no
mito de Édipo, e por via racional, no pensamento dos estóicos, corres­
pondia a pressuposto subjacente do helenismo. Autores de apócrifos e
teólogos procuram explicitar um objeto mais alto sob uma luz mais
alta. De um lado, o objeto oculto e pré-formado não é um pensamento
humano, mas o pensamento divino condensado na Revelação. De outro
lado, o exercício de sua imaginação é aclarado não somente pela in­
teligência, mas pelo sentido da fé que o Espírito Santo sustenta e des­
perta com ligeiras advertências. Atas tal exercício é muito desigual.
Se, por um momento, êle se eleva muito, até atingir as realidades
ocultas, implícitas nos dados da fé, frequentemente perde-se em fan­
tasias estéreis, senão de mau gôsto: o fruto das moções passageiras
do Espírito Santo encontra-se, dêsse modo, misturado à extravagância
da “louca da casa” (essa louca capaz de gênio). Assim, não convém
reabilitar a imaginação (mesmo intelectualizada) ao ponto de igualar
seu exercício ao do intelecto — e “a fortiori”, de colocá-la mais acima,
na linha do supra-realismo.
Breve Tratado — 5
66 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana
“Convinha, diz por exemplo Tlieotéknos ” , que o corpo teo-
fórico, receptáculo de Deus, divinizado, incorruptível, iluminado pela
luz divina, fôsse elevado em glória com a alma agradável a Deus".
O esforço teológico, assim começado no século VI ” , co­
nhece uma época de ouro no século VIII, com Germano de
Constantinopla (f cêrca de 733) ” , André de Creta (f 740) ” ,
Cosmas Vestitor ” e sobretudo S. João Dâmasceno. “ Busca-se
com serenidade, sem disputa e sem precipitação, bem como sem
pedantismo, na atmosfera litúrgica da festa de 15 de agosto,
sob orientação do Espírito Santo, a fé que procura explicitar-se.
Imaculada Conceição
Mais harmoniosa, mais reservada ainda em sua evolução foi
a explicitação do dogma da santidade original de Afaria. A des­
coberta fêz-se, mais uma vez, devido a uma celebração litúr­
gica. No fim do século VII, surge a festa da Conceição.” Suas
” Tlieotéknos de Livias, Homélie snr 1'Assomption (análêpsis) de
Ia sainte Thcotôkos, n' 9, editado por A. Wenger, L’Assomption. 1954,
p. 277.
" A Homilia de Teotéknos se situa entre 500 e 650 e mais pro­
vavelmente antes de 600. E-’ sem dúvida a peça teológica mais antiga
que possuímos sôbre a Assunção. Mesmo que se suponha autêntico —
o que constitui problema — o Encomium in Dormit., atribuído a Mo­
desto de Jerusalém, t 634 (PG, 86b, 3277-3312), teria pouca chance
de ser anterior. A. Wenger, L’Assomption, Paris 1955, pp. 103-104.
” Três Homílias deste autor sôbre a “Dormitio” estão editadas em
PG 98, 340-372. Uma monografia, para dizer a verdade, um pouco
sumária, lhe foi dedicada por E. Perniola, La Mariologia de San Ger­
mano, Roma, ed. Padre Monti, 1954. Um inédito foi depois publicado
por V. Grumel na Rev. ét. Byzant., 16 (1958), pp. 183-205.
” Três Homílias dêste autor sôbre a "Dormitio” foram editadas em
PG 97, 1045-1109. Bibliografia própria em R. Laurentin, Marie, 1’Êglise
et le Sacerdocc, Paris 1953, pp. 24-25, nota 24.
” Provavelmente na metade do século VIII. Uma tradução latina
de suas quatro Homílias (feita em Reichenau no século X), foi a única
conservada. Estudo e edição por A. Wenger, L’Assomption, Paris 1954,
pp. 140-184 e 313-362.
•• S. João Damasceno morreu em data incerta (J. M. Hoeck, em
Or. ehr. Per., 17, 1951, p. 5, nota 1 e G. Garitte, em Museon, 67, 1954,
73-75 mostraram que a data estabelecida por Vailhé, Êchos d'Or„ 9,
1906, 28-30, está baseada numa confusão). Provavelmente se deu an­
tes de 753.
Suas três Homílias sôbre a “Dormitio" foram editadas em PG
96, 700-761 (tradução francesa parcial por G. Hesbert, L'Assomption,
Paris, Pfon, 1952, 55-7S).
Principais monografias sôbre a Mariologia dêste autor: V. A.
Mitchel, The Mariology of St John Damascenc, Turnhout, 1930, in-8" de
221 pp.; C. Chevalier, La Mariologie de saint jcan Damascèné, Roma,
Pont. Inst. Oricnt., 1936; V. Grumel, La Mariologie de saint ]ean Da-
mascène, em Êchos d'Orient., 40 (1937), pp. 318-346. Sôbre a questão da
autenticidade, ver primeira edição do Conrt Traitc, pp. 170-171.
” Sôbre tudo isso, conferir M. Jugie, LTmmaculée Conception. Ro­
ma 1952, pp. 135-141.
III. Do Concilio de Êfeso à Reforma Gregoriana 67

origens são bem modestas. O Evangelho de Lucas narrava o


anúncio do nascimento do Precursor (1,5-25) e do nascimento
de Jesus (1,26-38). Êstes dois mistérios se tornaram, cada qual,
objeto de uma festa. Por analogia, os cristãos apreciavam ce­
lebrar uma terceira anunciação, a de Maria, sugerida pelos apó­
crifos (cujas narrativas fornecem, ainda aqui, não tanto a
substância doutrinária, mas a centelha em que se iluminará a
reflexão teológica). Como denominar esta nova festa? Hesi­
tou-se, ao inicio, entre três títulos: Anunciação (euaggelismòn)
da Conceição da Santa Theotókos (ou: de Joaquim e Ana),
Conceição de Ana (o que correría o risco de sugerir deplorà-
velmente que se festejava a conceição ativa de SanfAna), Con­
ceição de Maria. E’ o último nome que triunfa. “ Puseram-se,
então, a celebrar por liturgia e predicas a conceição de Maria:
“santíssima” e “puríssima”. Para exprimir esta dupla noção, a
língua grega dispunha de maravilhosa gama de epiíetos. O
dogma da Imaculada Conceição começa a despontar, dentre tais
elogios, ainda de maneira indecisa. De um lado, a pureza ini­
cial de Maria não é confrontada com a universalidade da Re­
denção por Cristo. De outro, a linguagem poética dos pregado­
res bizantinos é tão generosa, que mal podemos distinguir as
afetações oratórias das afirmações dogmáticas. Quando cele­
bravam a conceição de João Batista, certos homiletas, levados
pelo impulso de sua piedade e eloquência, não se privavam de
declará-la santa, divina e gloriosa. *' Por isso se poderia re­
cusar o valor estritamente probatório das primeiras afirmações
da conceição imaculada de Maria. Mas, recuando um pouco,
veremos que nossos autores não punham no mesmo pé a con­
ceição do Precursor e da Theotókos. Tal diferenciação confir-
mar-se-á progressivamente. Se atentarmos para as primeiras eta­
pas dêste progresso à luz do têrmo que possuímos hoje, ve­
remos que êste lirismo, trazido pelo sôpro do Espírito Santo,
visava e atingia, realmente, uma verdade ainda velada na dou­
trina implícita das fontes.
Intercessão, mediação, maternidade espiritual
Quanto à mediação, ela não está ligada a nenhuma festa
particular. O desenvolvimento desta doutrina coincide com o
desenvolvimento do culto de Maria. Já durante o período pre­
cedente, haviam começado a invocá-LA: o Snb tuum (século
•* Pp. 137-140.
•’ Ibid., p. 139.
5*
68 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

IV ou fim do século III) talvez seja testemunho mais antigo


dêste costume. A partir de Éfeso, descobrimos as verdadeiras
proporções do papel de Afaria com relação aos homens. Um
dos discursos pronunciados nesse Concilio invoca-a, não mais
como santa particular, mas como santa universal, cujas prer­
rogativas cobrem as da Igreja em seu todo'0:
Nós vos saudamos, Ataria, Mãe de Deus,
Tesouro venerável do mundo inteiro,
Luz jamais extinta...
Templo jamais destruído, que abrigais Aquele que não pode
ser contido, Mãe e Virgem...
Por vós a Trindade é santificada,
Por vós a Cruz é venerada no mundo inteiro,
Por vós o céu se alegra.
Por vós os anjos e arcanjos se rejubilam,
Por vós os demônios são expulsos,
Por vós o diabo tentador é precipitado do céu,
Por vós a criatura decaída é elevada ao céu,
Por vós o mundo inteiro, prêsa da idolatria, é reconduzido ao co­
nhecimento da verdade,
Por vós o santo batismo advém aos que crêem.
Por vós o óleo da alegria.
Por vós as Igrejas são fundadas no mundo inteiro,
Por vós os povos são conduzidos à conversão.
Desde o século IV fizeram-se orações aos mártires como
veículos de uma mediação:1, não ao lado da de Cristo, mas
dentro do mistério de Cristo. Descobre-se que Afaria é a pri­
meira nesta ordem, cujo resultado é a intercessão. O primeiro
testemunho de data e de autenticidade certas, emana de André
de Creta (f 740), que dirige a Afaria estas duas invocações:
Desde que nos deixaste para ir a Deus, nós ganhamos uma
medianeira ( mesitin, s. 3 sôbre a Dormição, PG 97, 365 C).
De todos os pecadores verdadeiramente boa mediação!
(mesitèia, s. sôbre a Anunciação, ibid., 322 B).
Assim, do mesmo modo que as festas de Maria haviam sido
introduzidas após as dos santos, sua mediação foi descoberta
no prolongamento da dos santos.*8
’ • Hom. 4, Ephesi in Nestorium habita quando septem ad sanctam
Mariam descenderunt, 4; PG 77, 992 BC: Homilia pronunciada em no­
vembro de 431, após a partida de Cirilo, por um autor desconhecido,
ed. E. Schwartz, Acta Coneiliorum Oecumenicorum, t. 1, vol. 1, fase.
8, p. 104.
” Assim por exemplo Gregório de Nazianzo fala da “divinização
da qual os mártires são mediadores (mesitéuousi); Oratio XI ad Gre-
gorium Nyssen., 5; PG 35, 837, c. E o comentário de Nicetas ibid.,
col. 838, nota 12.
III. Do Concilio de Éfeso á Reforma Gregoriana (59

Por outro lado, o titulo de Atedianeira se introduziu, mais


remotamente, talvez, sob a aparência de outra idéia: o papel de
intermediária que Maria exerce entre Deus e os homens no dia
da Encarnação. Aqui, ainda, o mais antigo dos testemunhos de
data certa é o de André de Creta:
Ela exerce mediação (mesitéuei) entre a sublimidade de Deus
e a abjeção da carne e se torna Mãe do Criador (s. I sôbre a
Natividade de Maria, PG 97, 808 C).
Todavia, mesmo neste sentido, o título não Lhe é exclu­
sivo. Certos escritos de Efrém e André de Creta, pessoalmente,
reconhecem também em Gabriel, mensageiro da Anunciação, um
papel de “mediador”. A origem e a história desta noção, por­
tanto, são mais complexas e menos homogêneas do que se
imagina geralmente. ”
Progressivamente, também, a Virgem, Mãe de Cristo, e por
isso mesmo “Mãe da Salvação” ” , “Mãe da Economia” ” , “Mãe
do A\istério” ” , é considerada concretamente como mãe dos ho­
mens. ” E compreender-se-á pouco a pouco que tal situação
” Sôbre a mediação de Gabriel e sôbre os dois aspectos da me­
diação de Maria (no mistério da Anunciação, e em sua atividade co­
tidiana com respeito aos homens) encontraremos numerosos textos em
R. Laurentin, Marie, 1'Église et le Saeerdocc, Paris 1953, I, pp. 52-54,
no prelo, uma monografia em preparo sôbre o assunto.
” hê métêr tês sótérias, Severiano de Gábala, t após 408, Orat.
6 de niundi crcatione, n’ 10; PG 56, 498.
11 Teódoto d'Ancira, f pouco depois de 446, ten metera tes
oikonomias, Hom. 4, PG 77, 1393 G; cf. 1351-1352.
!1 tiktousa mystcrion, Proclo de Constantinopla, f 446, Orat. 13,
19; PG 65, 729 B. No mesmo sentido de Epífânio (Panarion, 78, 18;
PG 42, 728 C; GCS, Epifánio, 3, 468) vê em Maria a verdadeira “mãe
dos vivos” (significada “em enigma” em Gn 3,19). Êste título lhe é
dado, porque Ela "gerou a Vida”, isto é, o Cristo "para o mundo”.
1* No período precedente (além dos dados longínquos para a
doutrina da maternidade espiritual, que G. Jotiassard assinala em S. Ire-
neu, em Nouvclle Revue Mariale, 1955, nv 7, pp. 217-232), já encon­
tramos dois textos onde Ataria era claramente considerada como Mãe
dos que cumprem e vivem o Evangelho: Orígenes, t 253-254, In Johannis
Evangelium, praef., n’ 6; PG 14, 34 AB, ed. Preuschen; GCS, 4,
pp. 8-9; "As primicias de tôdas as Escrituras são os Evangelhos e as
primícias dos Evangelhos são o Evangelho que João nos transmitiu.
O sentido deste Evangelho não poderia ser compreendido por ninguém,
se êle não houvesse repousado sôbre o peito de Jesus e não tivesse
recebido de Jesus a Maria, por m ã e ...” (sôbre o sentido limitado dêste
texto, ver H. Holstein, em Êtudcs Mariates, 9, 1951, pp. 21-22).
São Nilo, t cerca de 430 (Epistol., lib. I, 266; PG 77, 179 D: "Mãe
de todos os que vivem de modo evangélico”.
Estes textos significam, não que Maria exerça uma atividade ma­
terna pela qual os cristãos compreendem e vivem o Evangelho, mas
que os que o compreendem e vivem se identificam com o Cristo, e po-
70 Parte i : Desenvolvimento da Doutrina Mariana

implica de sua parte em sentimentos maternais e numa inter-


cessão em favor de Seus filhos. "
Em resumo, durante êste importante período, reconhecida
a maternidade divina de Aáaria, começa-se a pensar no início
e no fim de seu destino para descobrir a santidade de Sua
conceição e de Sua assunção: mistérios de incorruptibilidade.
Lentamente e sem choque, depreende-se o caráter materno e a
dem ser chamados, em virtude desta identificação mística, Filhos de
Maria. Numa palavra, para se ter idéia destes textos, não é Maria que
age como Mãe, mas os cristãos que (por graça recebida) agem de
modo que Ela se torne sua Mãe.
2° A mesma idéia vigora e se estende nos apócrifos da Dormição.
No mais antigo, o Apócrifo R (fim do século V e inicio do VI) edita­
do pelo P. Wenger, L’Assomption, 1954, João denomina Maria "mi­
nha irmã que se tornou a Mãe dos doze ramos” (= os doze apósto­
los; § 16, p. 220); “minha mãe e minha irmã” (§ 21, p. 222); “Maria,
nossa mãe” (§ 27, p. 227). Mais adiante, os apóstolos abordam-n’A e
Lhe dizem: “Maria, nossa irmã, mãe de todos os que estão salvos"
(§ 28, p. 227). Estas fórmulas são reproduzidas em diversas formas
pelos apócrifos posteriores. Ainda aqui, o sentido é que os discípulos
do Cristo, na medida em que se identificam com Êle, são filhos de
Maria. Por isso certos apócrifos, retomando os textos anteriores, vol­
tam à fórmula “Mãe do Senhor" (A. Wenger, ibid., p. 42). Theotéknos
(cêrca do fim do século VI) explica: “Mãe de todos, pois o Filho único
chamou de irmãos a Seus próprios discípulos” (Encomium in Ass„
n’ 9, 7b, p. 276, 9). O pseudo-Pedro da Sicilia (provavelmente no
século XI, Historia manich., 29; PG 104, 1284) é um simples eco de
tais fórmulas. Numa palavra, os apócrifos viam em Maria (ainda viva
na terra) a mãe dos discípulos, e com mais ênfase, de São João. Pen­
sariam èles em Jo 19,25-27? Faltam-nos dados para afirmá-lo com
segurança.
3” Jorge de Nicomedia faz uma etapa ao comentar explicitamente
neste sentido a palavra de Jesus em Jo 19,26: “Eis teu Filho": “Tens
junto a ti o amigo que repousou em meu peito... ocupa meu lugar,
ficando com êle e com todos os que lhe estão à volta. Eu te confio
também, através dèle, o resto de meus discípulos... sê para êles o
que a mãe é por natureza”, S. in S. Atariam assistentem Cruci, PG 100,
1476 CD; cf. 1477 B: “Agora faço-A como Mãe, (e) guia ( hõs tekoúsan,
kathêgoumênen) não somente de ti, mas do resto dos discípulos ( tón
to ip ó n ... mathêtôn; cf. Apoc 12,17) e desejo soberanamente que Ela
seja honrada com a dignidade de M ãe... embora eu vos tenha proi­
bido de dar a quem quer que seja o nome de pai sôbre a terra, desejo
que Lhe deis o nome de Mãe”. E' difícil medir o alcance dêste texto.
A maternidade de Maria se estende, através de João, aos outros discí­
pulos. Quem é o visado? Os discípulos reunidos no cenáculo e o papel
que Maria exercerá a seu respeito durante Sua vida terrestre após a
partida do Cristo, segundo a perspectiva dos apócrifos assuncionistas?
ou todos os discípulos do Cristo através dos séculos e a missão uni­
versal que Maria exerce a seu respeito como Mãe dos homens? E’ di­
fícil decidir, pois êste texto, franco e sugestivo, permanece bastan­
te obscuro.
” E’ Germano de Constantinopla, f 733, quem, pela primeira vez,
quanto sabemos, entende a maternidade de Maria como o desempenho
de um papel que envolve sentimentos maternos. Os textos até aqui co-
III. Do Concilio de Éfeso á Reforma Gregoriana 71

atitude mediadora de sua intercessão. Compreendemos progres-


sivamente o valor universal e o primeiro plano que A distin­
guem dos santos.

2. No Ocidente
Entre os latinos, o progresso se faz mais lentamente, na
trilha do Oriente.
As festas
Entre o fim do V e meados do século VII, se inicia ou se
esboça uma festa mariana. A forma e a data variam segundo
os lugares: último domingo do Advento, quarta e sexta-feira
que se chamarão logo das “quatro têmporas”, 18 de dezembro
(oitava antes do Natal), 1“ de janeiro (oitava depois do Na­
tal), e até, talvez, 18 de janeiro. Estas datas são significati­
vas: qualquer que seja a forma, as primeiras celebrações ma-
rianas estão estritamente ligadas à festa do nascimento de
Cristo. Elas põem em relevo o papel da Virgem-mãe neste mis­
tério (ver abaixo anexo 4, pp. 190-192).
Pouco depois, quatro festas marianas importadas do Orien­
te são introduzidas em Roma. Primeiro “a Hypapante” (2 de
nhecidos, não foram até êste ponto. O teknopcnthó. S. I in Dormit..
PG 98, 348 C, parece dever ser traduzido por “aflita por teu Filho"
referindo-se á Paixão, de preferência á aflita por teus filhos. Quanto
ao texto de Ep. 2, PG 98, 162 A, onde Maria intercede como mãe
(métrikós) o contexto (Mêtéra autoú kyriõs hypárchousa) c textos pa­
ralelos (por exemplo, hom. 9, ihid., 381 A) provam que é mister com­
preender como Mac DO SENHOR como em Monstra te esse matrcm.
cujo sentido é: Mostra que és a mãe DE JESUS, poderosa sòbre o
coração dêle. Na llomilia sobre o parto em Constantinopla, editado por
V. Grumel, em Rev. et byz., 16 (1958), pp. 198 e 205, Germano dá um
passo ao dizer: “Sua Mãe está cheia de solicitude maternal por nós
e nos concede Sua benevolência, Sua proteção nos perigos”.
O pensamento de João, o üeômetra, (2' metade do século X) é
mais firme. Para êle, Maria é: “Não somente a Mãe de Deus, mas
nossa mãe comum... pois ela tem por todos os homens uma ajeição
e um p e n d o r... Mãe de todos... tomando êstes em seus braços..."
(S. in S. Mariam Ass., nv 59, ed. A. Wenger, L'Assomption, Paris
1954, p. 406); “mãe de todos e de cada um, amando-nos mais do que
poderiamos dizer” ( 0’ 67, p. 411). E faz êste apêlo à Sua intercessão:
“Tu és nossa ntãe, obtém-nos o perdão” (nv 70, p. 414). Os dois temas,
intercessão e maternidade espiritual, até aqui independentes, encon­
tram-se afinal.
Vimos na nota precedente as dúvidas oriundas do texto de Jorge
de Nicomedia. Quanto ao pseudo-Efrém, Precatio S, em Opera, Graece,
ed. Assemani, III, 543 C: “Como mãe (hóspêr meter) tu não cessas
de nos ser favorável”, nada prova que êle seja anterior a João, o
Geòmetra.
72 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

fevereiro), em seguida, cêrca do ano 650, a Dormição ou As­


sunção (15 de agosto), um pouco mais tarde a Anunciação (25
de março), enfim, pouco antes do fim do século VII, a Na­
tividade de Maria (8 de setembro). ’* A primeira e a terceira
eram formalmente festas do Senhor; sua orientação mariana se
acentua. “A Anunciação do Senhor” torna-se “A Anunciação de
jYfaria” ; a “Hypapante” : “Purificação de Maria” ; as duas ou­
tras eram formalmente festas marianas. A Dormição, que tem
0 caráter de um dies natalis, é a festa de base. Ela significa
desde logo uma orientação no sentido de assunção corpórea:
a oração Venerando insinua que a Mãe de Deus “não pôde ser
retida pelos laços da morte”. '*
Assunção, Conceição, Mediação
A explicação teológica desenrola-se paralelamente à do
Oriente, mas numa atmosfera mais racional e menos inflamada.
Os três pontos cujo desenvolvimento observamos entre os
bizantinos: Assunção corpórea, Imaculada Conceição e Media­
ção, permanecem aqui estacionários.
No início do século IX, um autor desconhecido (cujo tra­
balho largamente difundido sob o nome de São Jerônimo " terá,
durante mais de três séculos, uma grande autoridade), repele
por inteiro o testemunho dos apócrifos, e tem como suspeita a
A questão da instauração destas quatro festas em Roma foi in­
teiramente renovada por A. Chavasse, Le Sacramentairc Gélasien, Pa­
ris, Desclée, 1958, pp. 375-402. Até essa data pensávamos que as qua­
tro festas haviam sido introduzidas ao mesmo tempo, e alguns pensa­
vam até que pela imposição repentina de um decreto pontifício. O
importante texto do Papa Sérgio (687-701), em que julgávamos ver
um decreto desta espécie, apenas estendeu às outras três festas a pro­
cissão que estava ligada à festa de 2 de fevereiro. Eis o texto básico,
conservado no Liber pontificalis (1, 376): “Conslituit autcm ut diebus
Adnuntiationis Domini. Dormilionis et Nativitatis Sanctae Dei Genitricis
Sempcriiue Virginis Mariae ac Sancti Simeonis qaod Ypapanti Graeci
appelant, letania exeat a sancto Hadriano, et ad Sanctam Mariam popu-
lus occnrrat".
"Veneranda nobis Domine Iwiits est diei jestivitas in qua sancta
Dei Genitrix nwrtem subiit temporalem, ncc tamen mortis nexibus deprimi
potuit, quae Filium tuum Domimtm nostrum de se genuit incarnatum”.
Ver os estudos de B. Capelle, Témoignagc de Ia Liiurgie, em Études
Mariales, 7 (1949), pp. 48-51, e Mort et Assomption de ta Vierge daris
1'oraison Veneranda, em Epliem. Litnrg., 66 (1952), pp. 241-251. Cf.
Marianum, 15 (1953), 256-259.
*u A carta Cogitis me ( = Ep. 9 ad Pautam, et Eustochium de As-
sumptione, publicada entre as obras de São Jerônimo), PL 30, 122 C-
142 D. Razões sérias têm feito atribuir esta obra a Pascásio Radberto,
1 865. Nestes últimos anos, três autores a puseram de nôvo em dú­
vida independentemente uns dos outros: J. R. Geiselmann (Die betende
III. Do Concilio de Éfeso ã Reforma Gregoriana 73

Assunção que êles propunham sob forma fantasiosa: para êle,


a festa de 15 de agosto tinha somente por objeto a glorificação
da alma da Virgem. A autoridade do pseudo-Jerônimo, que será
utilizada na liturgia, prejudicará o progresso da crença na As­
sunção até o inicio do período seguinte, quando a autoridade
do pseudo-Agostinho" a eclipsará.
Com relação à Imaculada Conceição, o texto de S. Agos­
tinho, estudado mais acima **3, e as idéias inexatas sôbre o mo­
do de transmissão do pecado original, bloqueiam qualquer ex­
plicitação da crença. Nenhuma festa litúrgica chama ainda a
atenção para êste mistério.
Quanto à mediação*3, à maternidade espiritual“ , e mesmo

Kirche and das Dogma vom der Leiblichc aufnahme Mariens, em Geist
and Leben, 24, 1951, 366-367, empregava argumentos de crítica inter­
na. A. Wenger havia superado as dificuldades da crítica externa: a
confrontação do ms. Lyon 628, que parecia datar dos primeiros anos
do século IX, com Paris 14302, fazia pensar que a peça fôsse anterior
ao inicio da carreira de Radberto. Dom C. Charlier, que explorava a
mesma pista desde longos anos, desenvolvia conclusões análogas ( Alcuin,
Florus et 1’apocryphe hiéronymicn “Cogitis m c ..." , em Sladia patristica,
t. I. TUU, 63, 1957, pp. 70-81). H. Barre, La lettre du pseudo-Jérôme
est-elle antêrieurc à Paschase Radbcrt?, em Rev. Bénéd., 68 (1958),
pp. 203-226, reproduziu tôda a questão com novas informações. Con­
cluiu (p. 224): “Longe de dever ser novamente posta em dúvida e de
ficar comprometida, a atribuição a Pascásio Radberto nada perde com
isso. Ela continua baseada em argumentos sólidos, contra os quais não
se levantaram ainda objeções válidas”. Aqui me pronuncio pela última
vez sôbre a questão.
*’ De Ass., PL 40, 1141-114S. Autor desconhecido aparecido em
meados da época anselmiana, fim do século XI - inicio do XII. Cf.
Court Traité, 1* ed., p. 130.
*3 P. 60, nota 46.
“ Em meados do século IX, o titulo de mediadora passa do Orien­
te ao Ocidente graças a Paulo Diácono que traduziu do grego para
o latim uma Vida de Teólilo, onde se encontra tal título (edição J.
, Bollandus, Acta Sanctorum, Veneza, S. Colet, 1725, 4 de fevereiro, t. I.
Februarii, p. 486; edição R. Petsch, em Theophilus, Heidelberg, Winter,
1908, II Abteil, 2 Band, pp. 7, 29-35). Pelo que me consta, êste empre­
go é único no século IX; um caso apenas igualmente no século X,
três no XI, e bruscamente, mais de cinquenta no XII. Enquanto se
aguarda a publicação de minha Histoire du titre de médiatriee, que
as sobrecargas do ano mariano, em seguida ao do centenário de Lour-
des me obrigaram a adiar, ver Marie, 1’Êglise et Ic Sacerdoce, 1953,
t. I, pp. 52-55 (sôbre as origens do titulo no Oriente), e t. II, pp. 76-
77, nota 54 (sôbre as origens no Ocidente).
“ Detenhamo-nos nesta questão. A maternidade de Maria relativa
aos homens tem sido esporadicamente expressa a partir do século V,
mas num sentido mediato. Para Santo Agostinho, t 430, Maria é mãe
dos membros ( mater membrornm) desde que é mãe do chefe (capi tis
m ater). Para São Crisólogo, t 450, Ela é mater viventium, pois que
gerou o Cristo, que é a Vida (s. 140, de Ann., PL 52, 576 B; cf. s. 64,
74 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

à cooperação de Maria no sacrifício do Calvário ” , sentimos


um impulso neste sentido na época carolingia; mas êstes dados
fugazes não se desenvolvem.

3. Século X

O século X, pelo que o conhecemos, parece um periodo


estacionário. No Oriente, a sacra eloquência começa a desvalo­
rizar-se. No Ocidente, a curta renascença carolingia cessou sem

380 A; s. 74, 409 AB; s. 99, 479 A). Para Ambrósio Autperto, Maria
é “Mãe dos eleitos", porque Ela “gerou o Irmão dêles", o Cristo (matcr
elcctorum quac fratrem genuit eorum, s. in Purij., 7, PL 89, 1297 BC);
mas, uma nova idéia aqui surge, fugidia, de que o autor parece apro­
veitar o caráter inusitado: a maternidade é considerada como a adoção
de uma atitude e de cuidados maternos de Maria com relação aos Seus
filhos: “Ela considera como Seus filhos”, os que estão incorporados ao
Cristo (filios depulat quos gratia consociat, ib.), Ela os engloba na
afeição maternal que tem pelo Cristo, e intercede por êles junto a êle
(cum suis intercessionibus... et materno affectu... id facit). E' num
sentido mais indeterminado que Autperto denomina Maria matcr gentium
(s. de Ass., 5 = Ps.-Agostinho, s. 208, PL 39, 2131) em referência im­
plícita a Gn 17,4, onde Abraão é chamado patcr gcntium. Usa esta
expressão, de um autor anterior (Pseudo-Ildefonso, sermo “Scientes
frates", fim do século VII-inicio do século VIII, PL 96, 271 A = 30,
144: Pseudo-Jerônimo = PL 57; 866 C: Pseudo-Máximo); no século
XIII, ela passou para as Ladainhas marianas venezianas, G. Meersseman,
em Freiburg, Zeitschr. fiir phil: and theol., I (1954), p. 153. Anotamos
também um belo texto de São Leandro de Sevilha ( t 600 ou 601) De
Institui. Virginum, onde Maria é chamada "Mãe das virgens” (“mater
et dux virginum", PL 72, 878 C) porque Ela as “gerou pelo seu exem­
plo”, (exemplo suo genuit, 877 D).
“ Sem audácias de fórmulas, Milon de Saint-Amand, t 871, abre
um caminho mais fecundo. Êle começa a entrever o alcance do papel
de Maria no Calvário (De Sobrietate, 11, V, 12-18, em Monumento Ger-
maniae, Poctac medii aevi, III, p. 645):
Tu portas paradisi aperis quas clauserat Eva
Letiferum vetita dum carpii ab arbore maluni
Scd crucis in ramis pomo pendente salubri
Progenito de carne tua, tu planctibus instans,
Gaudia quis ( — quibus) mundo veniunt iam clave recepta
Ducis adoptivos ad cacli culmina natos.
Traduzamos o essencial:
Tu abres as portas do paraíso; Eva os havia fechado ao colher da
árvore proibida o mal da morte. Mas tu, enquanto dos braços da cruz
pendia o fruto de Salvação, o filho de tua carne, o assistente de tuas
lágrimas pelas quais a alegria veio ao mundo, tu conduzias os filhos
adotivos ao mais alto do céu (do qual tu) reencontraste a chave.
III. Do Concilio de Éfeso à Reforma Gregoriana 75

ter cumprido suas promessas.**" Tudo parece em decadência.


Entretanto, não exageremos. Neste século em que as mudanças
são demoradas, a atividade entravada, onde o historiador en­
contra um alimento espiritual tão raro e difícil de atingir, a
vida continua: No Oriente João, o Geõmetra, dá testemunho
de uma reflexão original (acima nota 77). No Ocidente, os
germes de uma renovação preparam-se, esporadicamente, nos
mosteiros. No fim do século, na abadia de Reichenau, é tra­
duzida uma coleção de homílias bizantinas ** que preparam um
esboço da crença assuncionista; encontramos pela primeira vez,
isoladamente, os títulos de “Mãe de Misericórdia” *’, e Red-*98

"** A época carolingia é um período de renascença ou de decadên­


cia mariana? Em um artigo que traz uma nova e notável documenta­
ção, E. Sabhe (Le culte marial et Ia genèse de Ia sculpture médiêvale,
em Revae belge d'archèo!ogie el d"nistoire de ía rt, 20, 1951, 101-125)
sustentou com clareza: Decadência. E' necessário registrar os fatos apon­
tados pelo autor. Mas seu julgamento exige um esclarecimento. O pe­
ríodo carolingio não se distingue por uma efervescência de sensibili­
dade. Êle consagrou poucas igrejas novas à Virgem, mas elaborou li­
turgia e preces com relação a Ela. A doutrina mariana está sempre bem
representada por Paulo Diácono, t após 785 (PL 95, 1565 D - 1574 A).
Alcuino, t 804 (por quem foi criada a Missa da Virgem aos Sábados),
Walafrido Strabon, t 849, Radberto, t v. 865 (e a famosa carta Cogitis
me), Ratramno, Rabano Mauro, t 856, Hincmar, t 882, Milon de Saint-
Amand, f 784 (ver nota precedente) e a Escola de Auxerre redescoberta
pelo P. Barré (ver entre os textos editados PL 9, 1200 B-1205 B; 96,
272-277; 118, 765-770: textos compilados sob diversos nomes). Sem dú­
vida, nenluim dêsses autores compete com a originalidade de Autperto
(morto em 784 no limiar do período carolingio), que deve alguma coisa
aos autores mais conhecidos do século VII (Caurt Trailé, I* ed., pp. 125
e 129). Pelo menos os autores carolingios são testemunhos de uma re­
flexão séria e equilibrada, e, por vêzes, original. Sua piedade mariana
que não é afetiva, terna ou exaltada, é sólida, sóbria, tradicional. A
recente e séria monografia de Leo Scheffczyk, Das Maricngeheimnis
im Frdmmigkeit and Lehre der Korolingerzéit (E rfnrter theologischc
studien, 5, St. Benno Verlag), confirma estas conclusões.
“ Codex Augiensis, LXXX: estudado por A. Wenger, L’Assomplion,
Paris 1954, pp. 148-172. O manuscrito contém nove hontilias gregas
do século VII sôbre a Dormição: duas de André de Creta (= PG 97,
1045-1072 e 1089-1109), quatro de Cosmas Vestitor (editadas por A;
Wenger, ibid., pp. 337-362), uma de Germano de Constantinopla (= PG
98, 340-353), e duas de João Damasceno (= PG 96, 700-753).
*’ João de Salerno ( Vila de Sancti Odonis. escrita cêrca de 945,
lib. 2, n" 20, PL 133, 724 AB) narra que a Virgem apareceu a Odon de
Cluny, t 942, e lhe disse: “Ego sum matcr misericordiac". Cêrca de
1025, o monge Siro conta que São Maiolo obteve a cura de um cego
suplicando a Maria, “mãe de misericórdia". Vila Sancti Maioli, lib. 2,
n’ 12, PL 137, 760 C. Êste titulo figura num sermão de São Fulherto
de Chartres, t 1029, s. 4, PL 141, 323 C. Hesitamos a respeito do al­
cance que os autores dão a êste titulo: “Mãe misericordiosa para com
seus filhos” ou “mãe do Cristo que é Misericórdia”? O contexto em
que se trata de uma ação direta de Maria estaria pendendo para o se-
76 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

emptrix**: título ousado e de que o autor não se deu conta


de todo naquele tempo. Pouco se refletia, então, e êste nome
não seria para êle senão um modo de dizer, abreviando “Mãe
do Redentor”. Tal titulo abusivo, que a teologia eliminará mais
tarde, representa, entretanto, as primeiras etapas para uma re­
flexão posterior. Estas raras inovações são apenas fugidias cen­
telhas na noite do século X. Uma vez mais, verificamos êste
ritmo alternado de progresso e de decadência, de fervor e de
silêncio, de primavera e de inverno que nos tem chocado des­
de o inicio.

gundo sentido. Portanto, São Pedro Damião, t 1072, (s. 46 in Nativ.


B. M., PL 144, 761 B) que insiste ainda na intercessão de Maria, acres­
centa um IPSIUS que significa claramente que, sob o nome de Mise­
ricórdia, êle designa a pessoa do Cristo, cuja mãe é Maria: “Rogamus
te clementíssima, ipsius pietatis et Misericordiae (= Christi) Mater,
u t ... tuae intercessionis auxilium habere mereamur in caelis”. Ver,
pois, s. 44. PL 144, 740 AD, do mesmo autor, no qual Maria é miseri­
cordiosa, e depositária do "tesouro das misericórdias de Deus”. Em
suma, apoiavam-se na idéia de que Maria nos deu Aquele que é a
Misericórdia, para descobrir insensivelmente, a partir daquele momen­
to, Sua maternal misericórdia para com seus outros filhos.
“ “Sancta Redemptrix rnundi, ora pro nobis”. Ladainha dos San­
tos, transposta para um saltério de origem francesa, conservado na ca­
tedral de Salisbury, ms. 180, foi. 171 vb, editado por F. E. Warren,
Un monumcnt inédite dc la liturgie celtique, em Revue Celiique, 9 (1888),
pp. 88-96. Um testemunho no século XI; outro, no século XIV.
Nos séculos XV e XVI, o título se propaga. Começam a surpreen­
der por sua audácia, à medida que se reflete mais sôbre cooperação
imediata de Maria na Redenção. -Sente-se, então, a necessidade de subli­
nhar o caráter associado e dependente do papel da Virgem e se acrescen­
ta para isso um sufixo: redemptrix torna-se conredemptrix (ou co-
redemptrix ): O Cristo não é co-redentor, mas Redentor. Maria não é
redentora, mas eo-redcntora. Êste último titulo suplantará, então pro­
gressivamente, o titulo antigo. E’ de notar, todavia, a extrema reserva
do magistério pontifício a seu respeito. Somente Pio X e Pio XI o em­
pregaram em contextos de menos importância. Sôbre tôda esta história,
ver R. Laurentin, Le titre de Co-rédemptricc, Étude historique, Paris,
Lethielleux, e Roma, Marianum, 1951.
O P. G. Meersseman, que acaba de empreender uma tão admi­
rável série de pesquisas sôbre a idade-média mariana e as influências
do Oriente no Ocidente, Der Hymnos Akathistos im Abcndland. em
Spicilegium Fribnrgense, Freiburg (Suíça), Universitãtsverlag, 1958, ex­
plicou-nos as causas que suscitaram êste primeiro emprêgo do titulo de
Redemptrix: trata-se da transposição mariana de uma série de invoca­
ções cristológicas, que figuram no início das ladainhas.
QUARTO PERÍODO

DA REFORMA GREGORIANA AO CONCiLIO DE TRENTO


(1050-1563)

De Santo Agostinho até cêrca do fim do século XI, a Teo­


logia mariana dos latinos havia permanecido estacionária, en­
quanto a dos gregos progredia. Tal situação irá sofrer uma
reviravolta. Sem dúvida, os orientais dos séculos XIII e XIV
esboçam sínteses originais e repensam até, algumas vêzes, sua
tradição com os meios oferecidos pela Escolástica ocidental; mas
a queda de Bizâncio (1453) porá fim a tais promessas. Certa­
mente, durante êste período e os seguintes, a devoção e a re-
fiexão marianas dos Gregos continuam vivas, mas tendem a se
extinguir. E isto irá tão longe, que os Gregos ficarão desarvo-
rados, quando os latinos formularem, à sua maneira, a Ima­
culada Conceição, que êles haviam sido os primeiros a expri­
mir. Do ponto de vista do progresso, que nos interessa aqui,
nada mais teremos a dizer dos orientais: Antes de deixá-los,
façamos-lhes, porém, justiça: os latinos do inicio dêste perío­
do lhes devem a parte decisiva de sua inspiração.
*’ As importações de doutrinas e práticas marianas do Oriente ao
Ocidente mereceríam um estudo aprofundado. Reunamos (na ordem cro­
nológica) alguns dados originais. Oxalá chamem a atenção para êste
problema, cuja importância histórica e ecumênica merecería um traba­
lho de equipe!
1) Em épocas mais antigas, diversos apócrifos foram importados
pelo Ocidente, onde provocaram variadas reações. Para os apócrifos
da infância, ver E. Amann, Lc Protévangile de Jacques et se.s- remaniements
latins, Paris, Letouzey, 1910. Para os apócrifos assuncionistas, ver o
estudo nôvo e preciso de A. Wenger, L'Assomption, Paris 1954, pp. 17-
96, 144, 209-270. Ver a êste respeito o apêndice 2, pp. 185 ss.
2) No fim do século VII, quatro festas marianas são importadas
para Roma (acima, nota 78).
3) Em data difícil de determinar (século IX ou pouco após) três
homílias marianas: duas de Proclos, t 446, e uma de Antípater de
Bostra, t após 451, são substituídas nas lições latinas, até aquela época
usadas para a festa da Assunção: antigas homílias, de caráter geral, em
que a glorificação corpórea não era visada (A. Wenger, L‘Assomption,
pp. 141-144).
4) Na época carolíngia, o titulo de Medianeira, promovido pelos
orientais, e mais tarde no fim do século VII ao inicio do VIII, é intro-
78 Parte !: Desenvolvimento da Doutrina Afariana

Quando começa a renascença mariana ocidental? Nada mais


difícil do que datar o início de um fenômeno vital. Encontra­
mos algumas pistas — ainda bem fugazes — em Fulberto de
Chartres ( t 1031) ,0, Odilon de Cluny ( t 1049).” O movimen­
to se acentua com São Pedro Damião ( t 1072) ” , e Gottschalk
de Umburgo (f 1095) toma impulso perto do fim do sé­
culo XI com Santo Anselmo de Cantuária (f 1109)” , e atin­
ge, repentinamente, proporções consideráveis durante a primei­
ra metade do século XII, quando surge São Bernardo ( t 1153). ”
Precisemos alguns pontos importantes.*567
duzido no Ocidente, onde Paulo Diácono traduz em latim a Vida de
Teófilo. Ver acima, nota 83. O hino acatista é traduzido para o latim
por volta de 800. G. Meersseman, Der Hymnos Akathistas im Abendland,
Freiburg 1958. O Sub tuum passa ao Ocidente, PL 78, 799 D 8.
5) No fim do século X, um conjunto de homílias assuncionistas é
traduzido na abadia de Reichenau (acima, nota 86).
6) No fim do século XI (perto de 1060), a festa da Conceição,
instituída no Oriente por volta do fim do século VII, passa à Irlanda,
de onde se difundirá pelo continente, a partir do segundo quartel do
século XII (abaixo, nota 96).
7) No século XII, o mosteiro de Heiligenkreuz 11 esforça-se por
suprir o silêncio dos "homens ilustres” do Ocidente sôbre a Assunção,
citando testemunhos orientais: Pseudo-Dionisio (= PG 3, 681); Ger­
mano de Constantinopla (PG 98, 357 AB), História eutimíaca (PG
747-752) eCosmas Vestitor (H. Barré, em Êtudes Moriales, 8, 1950,
p. 88, e A. Wenger, L’Assomption, Paris 1954, p. 176, que edita a
versão latina das homílias de Cosmas).
,0 Sua obra mariana é constituída dos Sermons 3-5, editados em
PL 141, 319 B - 325 C. O s. 6, ibid., 325-331, é duvidoso. O s. 9, ibid.,
336 C-340 A, não é autêntico é remonta ao século VII. Fulbert inau­
gura uma nova interpretação do Gn 3,15: Ipsa conteret caput tuum
significa a vitória de Afaria sôbre a concupiscência (PL 141, 320, D -
321 A). R. Laurentin, LTnterpréiation de Gen. 3 J 5 duns ta Tradition
em Êtudes Mariales, 12 (1954), pp. 102-105 e 125, n’ 74.
” Sermons, 1, 3, 4, 12, PL 142, 991-1088 (os s. 13 e 14 são to­
mados de autores anteriores (Court Traité, 1' edição, p. 144).
” Sermons, PL 144, 505-924 (muitos sermões de Nicolau de Clair-
vaux — cujos ns. 11, 23, 40, 43, 60 concernentes a Afaria — estão
anexados a esta coleção cf. Court Traité, 1" edição, pp. 144-145) e
Hinos 44, 61, 65, PL 144, 933 C-939 C e 940-941 A (os outros não
são autênticos, ibid.).
" Ed. G. Dreves, Godescalcus Lintpurgensis . . . Leipzig, Reiland 1897.
’* PL 158-159. A melhor monografia é de J. Bruder, The Mariology
oj Saint Anselm of Cantcrbury, Dayton, 1939. (Bibliografia mais deta­
lhada e inventário das peças apócrifas na primeira edição do Court
Traité. pp. 146-148).
” Aguardando a edição critica das obras de São Bernardo por Dom
J. Leclercq (atualmente no prelo), consultaremos PL 182-184. Com rela­
ção às questões de autenticidade, ver a primeira edição do Court Traité,
pp. 152-154 (acrescentar que 184, 1013-1022, parecem autênticos, mas
redigidos por um secretário, segundo trabalhos inéditos de Dom J.
Leclercq). Os textos marianos de São Bernardo foram cômodamente
reunidos e traduzidos por P. Aubron, UOeuvre Mariale de Saint Ber-
IV. Da Reforma Gregoriana ao Concilio de Trento 79
Imaculada Conceição, Assunção, Alediação

A festa da “Conceição”, instituída pelos gregos por volta


do fim do século VII, havia permanecido longo tempo ignora­
da pelos latinos. Ela aparece, enfim, na Inglaterra, cerca do ano
1060; e desaparece quase que imediatamente, na época da con­
quista normanda (1066), sem haver deixado traços apreciáveis;
em seguida, renasce por volta de 1127-1128, em bases mais
sólidas, passa à Normandia e, de lá, a tôda a Europa ***, não
sem graves controvérsias, tendo em São Bernardo o principal
opositor. O objeto da festa, bastante indeterminado, no início,
precisar-se-á não sem esforço. ”

nard, Paris, Cerf, 1935 (que relembra a numeração de Migne) e P. Ber-


nard, Saint Bemard et Notrc Dante, Paris, Desclée de Brouwer, 1953.
Bibliografia sôbre São Bernardo na primeira edição de Court Traité,
p. 152. O estudo essencial é o de H. Barre, Saint Bernard, Docteur
marial, em Analeda saeri ord. cist., 9 (1953), 92-113. A teologia ma­
riana de São Bernardo tem grandes méritos: é sóbria, profunda, tra­
dicional, espiritual. Mas é preciso dizer claramente, ela tem no conjun­
to de sua obra uma parte limitada (êle pregou na festa da Assunção,
sem dizer uma palavra sôbre a Virgem: PL 184, 1001 C-1010 A).
Êle não traz nenhum tema nôvo de alguma importância. São Bernar­
do foi tão incrédulo a respeito das inovações, que se opôs à Imacula­
da Conceição (Ep. 174, PL 182, 333-336; cf. s. 2 in Ass., n" 8, PL
183, 420 D) e guardou silêncio sôbre a Assunção corpórea. Apesar dis­
so, devemos-lhe páginas memoráveis. Foi principalmente por êle que
as conquistas dos séculos Xl-Xll assumiram sua forma quase definitiva
e triunfaram no Ocidente.
*• No artigo Immaculéc Conception (aliás notável) do DTC, 7, 978,
989, X. Le Bachelet julgou ter encontrado as origens da festa da Con­
ceição na Irlanda, por volta do ano 900. Esta afirmação não resistiu
á crítica. Os estudos fundamentais sôbre as origens da festa são: A.
W. Burridge, LTmmaculée Conception dans la Théologic Mariale de
1'Angleterre du Moyen Age, em Revue d’Histoire ecclèsiastique, 32
(1936), pp. 570-597. P. Grosjean, La prétendue fite de la Conception
dans les Êglises Céltiques, em Analeda Bollandiana, 61, 1943, 91-95.
A. M. Cecchim, L’lmmacolata nella liturgia occidentale anteriorc al se-
colo XIII, em Marianurn, 5 (1943), pp. 58-114.
Foi a introdução da festa da Conceição que fêz surgir o pro­
blema teológico da Imaculada Conceição. No inicio, as circunstâncias
favoreceram aos pregadores. A situação permanece complexa ainda no
século XII.
Havia os adversários da festa: em primeiro plano, São Bernardo
(.Ep. 174, PL 182, 332-226) e Pedro de Celle (Ep. 171 e 173, PL 202,
613-632).
Havia os simpatizantes: eram a imensa maioria, mas não susten­
tavam, nem por isso, a Imaculada Conceição: suas posições eram di­
versas e confusas.
Uns celebravam apenas as primicias da futura Mãe de Deus (assim
os dois anônimos publicados por H. Barré, em Sc. eccles., 10, 1958,
353-359). O Anônimo de Paris (B. N. ms. lat. 5347, foi. 200 V, ibid.,
so Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

Na época carolíngia, havia surgido o pseudo-Jerônimo. En­


trara em luta contra os apócrifos, eni que se baseavam os
adeptos da Assunção corpórea. Sua autoridade falsa devia blo­
quear, durante cêrca de três séculos, qualquer desenvolvimento
da crença. No limiar do século XII, a situação muda. Um de
Assumptione, atribuído a Santo Agostinho, difunde-se rapida­
mente, sustentando firmemente esta doutrina. Tratava-se de uma
obra de data recente, composta no fim do século XI, nos meios
ansehnianos. ’* O falso Agostinho eclipsa rapidamente o falso
Jerônimo. Mais que a seu falso passaporte, êle deveu êste fato
a seus méritos doutrinários. Fazia justiça plena às críticas di­
rigidas contra os apócrifos, fundava em bases teológicas sérias
a Assunção corpórea, e abordava com acuidade surpreendente,
para a época, os problemas levantados pelo desenvolvimento
dogmático. **
p. 352) não dava o nome de conceição senão à santificação de Maria
no seio de sua mãe.
Outros sustentavam a santidade original de Maria, mas em senti­
dos muito diferentes. Uns faziam partir sua santidade do momento
da conceição, outros, da conceição espiritual, quer dizer, da infusão
da alma que marcou o inicio da existência pessoal de Maria.
As explicações diferiam mais ainda; algumas eram medíocres. O
Pseudo-Comestor e o Anônimo de Heiligenkreuz recorriam à estranha
hipótese de uma “vena pura” : uma partícula do corpo de Adão per­
maneceu a salvo do pecado e teria sido transmitida de geração a ge­
ração até dar nascimento a Maria.
Todos se debatem com uma problemática grandemente dificultada
pela idéia agostiniana de que a causa de transmissão do pecado ori­
ginal é a impureza da libido colocada em tôda geração humana. Uns
tentavam explicar como o ato dos pais de Maria ficou isento de libido.
Outros, como o efeito desta libido havia sido neutralizado por Deus,
quer porque Êle lhe tenha impedido o efeito (Eadmer), quer porque
tenha destruído tal efeito imediatamente (Osbert de Clare) ou então
por ocasião da animação do feto. A verdade é que o problema estava
mal situado. O ato gerador não é maculado de pecado; e não é êste
ato que mancha a natureza, mas a natureza humana transmitida que
é maculada. Não seria surpreendente, portanto, que houvesse necessidade
do tempo para se sair desta confusão e de outras mais.
E’ impressionante seguir os esforços da fé, procurando sua ex­
pressão num campo tão nôvo, em meio a noções ainda mal definidas
e enredadas de tôda sorte de confusões (o pecado original, sua trans­
missão, concepção e animação). Tanto mais notável é o êxito de Eadmer,
que, no meio de tantas dificuldades, concorda objetivamente com a
idéia de que Maria tenha sido preservada do pecado por graça espe­
cial de Deus.
a‘ PL 40, 1141-1148. Numerosas hipóteses têm sido emitidas sôbre
a identidade do autor (cf. 1* edição do Court Traité, p. 130). Ado­
tamos aqui as conclusões de H. Barré.
*• Recordemos principalmente a célebre reflexão metodológica: “Fe­
cunda e s t... veritatis auctoritas et dum diligenter discutitur. de se gig-
nere quod ipsa est cognoscitur" . PL 40, 1143; cf. 1144: “Sunt etiam
IV. Da Reforma Gregoriana ao Concilio de Trento 81

Enfim, a partir do fim do século XI, e sobretudo no ini­


cio do século XII, vemos difundir-se em tôda parte o título de
medianeira *°°, até então excepcional no Ocidente.
Mudança de perspectiva
Mais que nos pormenores de idéias e instituições novas
numerosas então, esta breve exposição deve procurar discernir
a intuição mestra que as suscita.
Verificação básica: no fim do século XI, a teologia ma-
riana estendeu seus horizontes. Antes, limitava-se a considerar
Maria nos mistérios do nascimento de Cristo. Seu papel no
Calvário e na vida atual da Igreja permanecia na obscurida­
de. *1003 Tais limites vão romper-se.
1. Em primeiro lugar, a atenção, que se concentrava no
papel de Maria na Encarnação, estende-se a Seu papel no sa­
crifício do Calvário. Sem dúvida, não se esperou o século XII
para reconhecer que Maria havia tomado parte na salvação do
mundo. Mas, além de duas ou três insinuações indecisas, não
quaedam quae quamvis ex toto omissa sint (= deixadas em silêncio
pela Escritura) vera tamen ratione creduntur, ad quod ipsa convenientia
rei quemadmodum dux et praevia creditur".
100 Acima, nota 83.
‘01 Essa mudança foi excelentemente descrita por H. Coathalem,
S .J., Lc paraHclisme entre Ia Sainte Vierge et l'Église clans Ia tradition
latinc jusqu’à Ia jin dn XII siècle, Roma 1954, Analecta Gregoriana,
vol. 74: edição de uma tese sustentada na Universidade Gregoriana,
em 1939.
101 Não se terminou de investigar as descobertas e novidades ma-
rianas do século XII. O P. Barre assinalava recentemente que a pri­
meira oração ao Coração de Maria aparecia então (Une prière d'Eckbcrt
de Schonau au saint Cocar de Marie, em Ephcmcrídes mariolicac, 2,
1952, pp. 409-423. Eckbert foi abade de Schonau de 1166 a 1184). O
P. G. Meersseman ( Êtudes sur les anciennes confrêries dominieaines,
em Archivum Fratrum Praedicatornm, 22, 1952, pp. 5-176) assinala a
aparição e a multiplicação rápida das congregações marianas, etc.
101 Como sempre que algo de nôvo aparece, encontramos suas ori­
gens longínquas nos mais geniais autores antigos. Foi assim que San­
to Ambrósio comentou (por três vêzes, pouco mais ou menos nos mes­
mos têrmos reservados e preocupados, principalmente com a transcen­
dência do Redentor) a presença de Maria no Calvário (in Lc. 10, PL
15, 1837-1838; de inst. virg., c. 5, Pl. 16, 318; Ep. 63 ad VercelL. ns.
109-110, PL 16, 1218 BC). Com relação ao papel que Maria exerce do
alto do céu na vida atual da Igreja, os textos anteriores aos séculos
XI-XII oferecem fontes mais numerosas.
Compreende-se que o movimento dos séculos XI-XII não constitui
revolução e novidade absolutas (seria, então, uma heresia). Mas di­
versos pontos que não haviam sido focalizados senão de modo hesi­
tante, velado, esporádico, são objeto de consideração firme, distinta,
sistemática e ganham o primeiro plano das preocupações.
Breve Tratado — G
82 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

se considerava tal papel além do nascimento de Cristo. A par­


tir do século XII, a presença de Maria ao Gólgota capta a aten­
ção e revela riquezas até aquele momento despercebidas. Des­
cobre-se sua co-paixão ,0‘, Sua união ativa à oblação de Seu
Filho o alcance eclesial de Sua fé durante o triduum mor-
tis. “ * Compreende-se, enfim, o alcance da palavra de Cristo
ao morrer (Jo 19,26): “Eis tua Mãe”. Até então, em parte de­
vido a razões polêmicas, só se Lhe havia dado uma importância
apenas material e familiar, pelo menos no Ocidente. '*’ Com-
,0‘ São Pedro Damião, t 1072, é a primeira testemunha conhecida
do tema da Co-paixão de Maria no Calvário. Mas êle não lhe ex­
plica o alcance teológico. Limita-se a comentar esta breve paráfrase de
Lc 2,35: Uma espada traspassará tua alma. “Ac si diceret: dum Filius
tuus senserit passionem in corpore, te etiam transfiget gladius com-
passionis in mente". S. 46, in Nativ. B. Aí., 1, PL 144, 748 A. Êste
tema foi estudado por H. Barré. Le Planctus Mariae , em Rev. asc.
myst., 28 (1952), 244-246. Recordemos o texto precursor de Milon de
Saint-Amand citado acima, nota 85.
“ * Com relação à oblação feita por Maria no Calvário, é Arnaud
de Bonneval quem abre o caminho em seu De laiulibus Virginis, PL
189, 1727 A: “Unam holocaustum ambo ( = Christus et Maria ) pariter
offerebant". Sôbre os textos de Arnaud, ver R. Laurentin, Maric, l'Église
et le Sacerdoce, Paris 1953, t. 1, pp. 145-153. Arnaud, influenciado por
um texto restritivo de Santo Ambrósio (PL 16, 1218 BC), cujos ter­
mos tomou, alargou os limites ambrosianos no desenvolvimento das
sugestões de São Bernardo (Sermon des douze étoiles, PL 183, 429 D
e 437 C-483 A; s. in Nativ. ibid., 441 CD) e chega, assim, a perspecti­
vas extraordinàriamente ricas e densas. Com relação à oblação feita
por Maria quando da apresentação de Jesus no Templo, o primeiro é
provavelmente São Bernardo (R. Laurentin, ibid., pp. 132-182). Po­
dería ser a mais original inovaçãodo Abade de Clairvaux, que, sem
dúvida, ultrapassa Autperto, o qual é por êle utilizado (pp. 140-143).
Mas encontrei depois dois textos que poderíam ser anteriores, sem que
isto seja seguro: Geoffroy de Vendôme, 1132, s. 7 de Purif., PL 157,
262 D, e Abelardo, Hymne 38 in Purif., in II Noct. ad Vesp., PL 178,
1793 A (composto ao Paráclito, portanto entre 1225 e 1236), cujos
termos são em parte idênticos aos de São Bernardo.
O tema de que a fé de Maria foi a únicaque permaneceu viva du­
rante a morte do Cristo (tal como o último cirio do Oficio das Tre­
vas) é atestado pela primeira vez, quanto sabemos, por Odon d'Ourscamp,
t 1171, Questiones (escritas cêrca de 1160), 11, 56, edição J. B. Pitra,
Analecta novíssima spicilegii Solesmensis, t. 2, typ. Tusculanis, 1878,
p. 53: " . . . Maria Magdalena... passione turbata hanc fidem (= na
divindade do Cristo) amisit, etiam cum discipulis; cuius infidelitalis
matrem Domini solam immunem credimus”. Sôbre a considerável ex­
pansão dêste tema durante a Idade Média e suas transformações na
Renascença, ver Y. Congar, Incidence Êcclésiologique d’un thòme de
dévotion mariale, em Mélanges de Science rei., 7 (1950), 271-277. Dossiê
completado por H. Barré, em Êfudes Mariales, 9 (1951), pp. 83-84, e
R. Laurentin, Marie, 1'Êglise et le Sacerdoce, Paris 1953, t. I, pp. 138-139.
,0' Para o Oriente, assinalamos os testemunhos isolados de Orige-
nes e de Jorge de Nicomedia (acima, nota 76), testemunho de impor­
tância ainda pequena.
IV. Da Reforma Gregoriana ao Concilio de Trento 83

preendeu-se que Maria foi, assim, estabelecida mãe dos ho­


mens. Pouco a pouco, ganha luz a idéia de que Ela coope­
rou, a Seu modo, com o sacrifício do Calvário. ,0”
2. Um segundo alargamento de perspectiva se processa, en­
tretanto. Antes dêste nosso período, o papel de Afaria na vida
da Igreja aparecia menos como papel cotidiano e ativo (os
cuidados de uma mãe a respeito de seus filhos) do que como
a perenidade do papel que Ela havia tido no Afistério da En­
carnação. Quando se dizia que havia “destruído tôdas as
heresias”, não se cogitava da intervenção atual que Ela teria
exercido do alto do céu, mas desejava-se falar da irradiação
do dogma da maternidade divina: esta verdade, em que se en­
contravam implicadas de modo incontestável a humanidade de
Cristo e Sua divindade, trazia em si o meio de confundir tô­
das as heresias. Quando A reconheceríam como mãe dos ho­
mens, o que se visava essencialmente não era o exercício con­
creto de sua atividade materna com relação a cada um, mas
a entrada dos cristãos no mistério da Encarnação: é em vir­
tude de sua identificação com o Salvador que os fiéis conside­
ravam Maria como sua Mãe. Sem dúvida, entreviam-se atrativos
fugazes da nova perspectiva; sobretudo, por volta do período
carolíngio, com Autperto, Alcuino e Radberto’"; contudo, êles

Aqui os principais são Anselmo de Lucca, t 1086, Oratio, I,


ed. A. Wilmart, em Rev. asc. myst., 19 (1938), p. 53, linha 98-104
(Jesus disse: “Ecce mater tua, ut tanto pietatis affectu pro omnibus
recte credentibus mater gloriosa intercederei... et adoptatos in filios...
custodiret”), e Ruperto de Deutz, f 1135, Com. in loannem, 13, PL 169,
789 C - 790 C, cf. G. Duelos, La Vierge Marie dans Vhistoire dn salut,
selon Rupert de Deutz, tese datilografada, Roma. Gregoriana, 1953,
pp. 91-102. Por que esta explicação é tão tardia? Encontraremos sua
razão acima, nota 18: o verdadeiro sentido do versículo estava enco­
berto pelo uso abusivo que dêle se fazia contra os adversários da vir­
gindade post partum.
Todos os elementos do problema já foram mencionados aci­
ma, nota 105, em Arnaud de Bonneval. Será preciso muito tempo para
encontrar paralelo de tamanha densidade.
” * L. Brou, Marie, destructrice de toutes les hérèsies, em Ephemc-
rides Liturgicae, 62 (1948), pp. 321-353 e 65 (1951), pp. 28-33.
"* Autperto, citado acima, nota 84. Alcuino, Inscriptio, n* 86, PL
101, 749 B, dirige-se assim a Maria: “Dies nostros precibus rege sem-
per et ubique”. Radberto, Carta Cogitis me, 3, PL 30, 124 C. Cf. Ra-
bano Mauro, ln Natali s. Mariae, PL 110, 55 A, e Paulo Diácono, In
Assumptione, I, PL 95, 1569 C.

84 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

eram esporádicos e indecisos. E’ por volta do fim do sé­


culo XI (e sobretudo, por ocasião da renovação da teologia
assuncionista) que se insiste na atividade cotidiana e múltipla
que Maria exerce do alto do céu. Nesta perspectiva, Ela não
será mais apenas o tipo e tnodêlo da Igreja; Ela será sua rai­
nha, Mãe e Medianeira colluni Ecclesiae, segundo a ex­
pressão que surge com Hermann de Tournai (1137). São
Bernardo coIoca-A “entre Cristo e a Igreja”. "*
Qual é a significação desta mudança?
Eia corresponde antes de tudo a uma nova maneira de sen­
tir a duração religiosa. Meditando sôbre a vida de Cristo, os
Padres não experimentavam o sentimento de distância no tem­
po. Êles estavam penetrados da perenidade de seus mistérios.
O tempo da Igreja lhes parecia uma gravitação à volta do mis­
tério intemporal: o cicio litúrgico é surpreendente expressão
disso. Progressivamente (e aqui o século XIII marcará uma eta­
pa considerável), prestar-se-á mais atenção à consistência pró­
pria do cosmos e do tempo. Mergulhar-se-á nêle e, assim, a vida
mística será considerada não mais como uma entrada no mis­
tério eterno, e sim, como uma descida cotidiana do mistério*12

J,’“ Um exemplo: citamos mais acima (nota 84) um texto de Am-


brósio Autperto, no qual a maternidade espiritual de Maria toma a
forma concreta da “Intercessão” e da “afeição maternal”. Mas como
Autperto apresenta èstes fatos? Menos como uma ação exercida do alto
do céu no tempo da Igreja do que como a não-ccssação da atividade
exercida por Maria no dia da Purificação, enquanto “oferecia” Jesus
a Simeão: "non desinit... offerre quem genuit, Redemptorcm electis
uniri facit”. Simples matiz, sem dúvida, pois Autperto é, dentre todos
os autores antigos, aquèle que mais claramentc esboçou as descober­
tas que deviam eclodir no século XII; matiz importante, todavia, do
ponto de vista histórico.
E’ no fim do século XI (e sobretudo no século XII), com São Pe­
dro Damião, Santo Anselmo ( O ral . 52, PL 15S, 95G AB-957 A) e seus
discípulos: Eadmer, llermann de Tournai, Guilherme de Malmesbury,
que a maternidade de Maria relativa aos homens toma progressivamente
seu relêvo concreto e sua localização celeste. E' no século XIII que
êste ponto se torna o assunto de um capítulo especial c objeto de estudo
“ex-professo" com Ricardo de Saint-Laurent, Lc laudibus, VI, 1, § 11 e
12, Albcrti M ag n i... opera, ed. Borgnet, t. 36, p. 327, o Pseudo-Al-
berto, q. 145. Ultrum ei conveniat esse matrem omniiim, ibid., t. 37,
pp. 204-206; cf. H. Barré, em Études Mariales, 9 (1951), 77-80.
1.1 Sôbre èstes temas, ver H. Barré, Études Mariales, 9 (1951),
94-99.
1.1 De Incarnatione, 8, PL 180, 29 D -30 A.
111 In Dom. infra Assump., 5, PL 183, 432 A. Maria é para êle o
aqueduto que canaliza tôdas as graças (sermo de aquaeduclu, PL 183,
437-448: de cuja imagem êle parece ser o inventor).
IV. Da Reforma Gregoriana ao Concilio de Trento 85

para dentro da duração instável dêste mundo, que se trata de


modelar à imagem de Deus; menos como uma volta à fonte do que
como a captação da origem. Procurar-se-á o contacto com Cristo,
menos através de comemoração do que pela elevação do olhar
para o alto. Daí a importância crescente da representação do
céu na arte medieval, e mais tarde, êste exagero de olhares
revirados para o alto que se tornam um dos piores purgantes
do academismo devoto.
A mudança dos eixos espaciais e temporais do mundo re­
ligioso é acompanhada de uma outra, mais conhecida e que
bastará lembrar: o ponto de vista do objeto se substitui em
todos os setores pelo ponto de vista do sujeito: a pessoa se
impõe no contexto objetivo onde se situa.
Esta dupla mudança de perspectiva ultrapassa muito o caso
de Afaria. Ela corresponde a uma reviravolta na civilização.
A título de ilustração, constatamos uma evolução análoga na
ordem sacramental: a presença pessoal de Cristo, que perma­
necia velada no mistério eucaristico, passa a primeiro plano.
Do mesmo modo, a pessoa de Maria, que também permanecera
velada no mistério objetivo da Igreja, manifesta-se. Na Eu­
caristia, via-se, sobretudo, o retorno ao Sacrifício Redentor por
meio da comemoração eficaz; ver-se-á, agora, mais, a presen­
ça na terra do Cristo celeste e a “reprodução” de Seu sacri­
fício. Assim, também, atingir-se-á Ataria, menos no mistério da
Anunciação do que no exercício celeste e atual de Seu po­
der real.
Vê-se que tais mudanças de perspectiva renovam a refle­
xão teológica e abrem numerosas pistas. Mas elas têm seu pe­
rigo. Sem dúvida, a nova perspectiva corresponde a um aspecto
válido dos dados da fé. Entretanto, o perigo começa, quando
o ponto de vista moderno, após se impor harmoniosamente den­
tro do antigo, que é o fundamental, tende a suplantá-lo, a es­
quecê-lo. O século XII e uma grande parte do XIII mantêm o
equilíbrio, em parte graças ao contacto vivo com os Padres.
Em seguida, esta fecunda tensão se relaxa, em beneficio da
nova perspectiva. O ponto de vista antigo tende a transfor-
mar-se em patrimônio arqueológico.
Certamente, os objetos de fé permanecem os mesmos, mas
tende-se a considerá-los sob um ângulo mais estreito. Perde-se
de vista a perenidade do mistério, para se ficar absorvido 11 a
mobilidade do tempo; esquece-se o ponto de vista do objeto
religioso, para se ficar absorvido na atenção esterilizante ao
HO Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

sujeito: inflexão que se torna dramática na Renascença. A teo­


logia mariana dirige-se para uma exaltação pessoal da rainha
do céu, abstração feita de Seu lugar na Igreja. Todos se preo­
cupam com o desenvolvimento de sua atividade em relação aos
seus clientes, com a sucessão de Seus milagres, mais que com
Seu papel na história da Salvação. Vejamos ràpidamente as
etapas desta decadência.
O século XIII, armado do mais lúcido e possante dos instru­
mentos filosóficos, pôs em ordem em muitos domínios as des­
cobertas extraordinárias do século XII. As relativas à mariolo-
gia foram as menos favorecidas.
A síntese mais notável da época e que maior influência
exerceu, o grande Mariale super missus est até agora atri­
buído a Santo Alberto Magno, manifesta os primeiros sintomas
da decadência. Esta obra é a primeira que relaciona tôda a
mariologia com um princípio único: mas, simultâneamente, ela
tende a transformá-la num sistema fechado. O princípio de
sintese é por demais estreito. E’ a onicontinência da graça ma­
riana: Sua “plenitude” incluiría tudo o que Deus repartiu de
dons entre tôdas as criaturas. E o autor chegou até a ver em
Maria (não sem correções) tudo o que nela nem se pode en­
contrar: Maria possuiría a universalidade dos conhecimentos hu­
manos, as propriedades dos anjos e a graça dos sete sacra­
mentos: inclusive a penitência que Ela efetivamente teria re­
cebido, e a ordem, cuja graça Ela possuiría eminentemente,
bem como sua dignidade e seus podêres! 1,0 Sejamos justos,
a obra tem grandes méritos. Um sentido agudo da transcen­
dência de Cristo equilibra, em grande parte, êste inventário
desmesurado das riquezas da alma de Maria. Sua associação
ao Salvador é deduzida em fórmulas novas e surpreendentes:
Ela é a associada de Cristo (socia Cliristi) e, segundo uma
expressão reproduzida do Gn 2,21, “Sua auxiliar semelhante a
Êle” (adiutorium simile sibi) : o paralelo Eva-Maria se enri­
quece com um último traço (até aqui negligenciado), que o

B. Alberti M agni... Opera, ed. Borgnet, Paris, Vivès, t. 37,


1898, pp. 1-362 (éd. Jamy, 20, 1-156).
*“ Sôbre tal perspectiva, cf. R. Laurentin, Marie, 1’Égtise et le
Saccrdoce, Paris 1953, pp. 183-194. Ao escrever êste capítulo, eu acre­
ditava ainda como todo mundo que Santo Alberto havia sido o autor,
e guardava um certo arrependimento da severidade que me dominava,
naquele momento, para com um Doutor da Igreja.
IV. Da Reforma Gregoriana ao Concilio de Trento 87

arremata. Com tudo isto, o Mariale marcou época. Hoje em


dia, estamos à vontade para colocar em seu verdadeiro lugar
as grandezas e as fraquezas desta obra que antigamente era
elevada ao pináculo — amparada, como estava, pelo patrocí­
nio de um Doutor da Igreja. Dois pesquisadores acabam de
descobrir separadamente, e sem estarem combinados, que a sua
atribuição a Santo Alberto é inadmissível. O verdadeiro au­
tor se situa por volta da metade do século XIII, e permanece
desconhecido. Esta descoberta produziu entre os especialistas
tanta surpresa como, entre os anglicistas, a tese que arrancava
de Shakespeare a paternidade de suas obras — com a diferença
de que, aqui, a conclusão, embora inesperada, não é oriunda
de engenhosa fantasia, mas aquisição irrefutável.

"•* Hermann de Tournai, t 1137, havia aplicado a Maria Vadiuto-


rium simile sibi do Gn 2,18 (De Incarriatione, 11, PL 80, 36 B), mas
êle parece ter pensado em auxiliar do Pai, ao invés de auxiliar de Cris­
to. O Pseudo-Alberto parece, então, ser o iniciador dêste último tema.
Por que êste elemento do paralelo Eva-Maria foi o último a ser
explorado?
1) Êste título, ligado ao episódio da extração de Eva "ex latere
Adam” (Gn 2,18-20) era considerado como um atributo especifico da
Igreja.
2) Ambrósio havia estabelecido uma barreira impressionante nos
três textos em que colocou o problema do papel de Maria aos pés
da Cruz: “Iesus non egebat adiutore ad Redemptionem omnium", Ep.
63, n9 110, PL 16, 12, 18 C, e In Luc., lib. X, n9 132, PL 15, 1837 C.
Cf. De inst. Virg., c. 7, n9 49: “Sed Christi Passio adiutorio non eguit".
Entre os gregos, não encontrei aplicação do Gn 2,18 a Maria antes
de Cabasilas, t após 1396. Maria ainda é dada ai não como auxiliar
de Cristo, mas como auxiliar de Deus: “Eva foi uma auxiliar ( boèthòs,
Gn 2,18) para Adão. Só Maria auxiliou (eboèthcsen) Deus na mani­
festação de Sua bondade". Hom. in Nativ. PO 19, 482, linha 2-27.
A. Fries, CSSR, Die unter dem Namen des Albertus Schrijten,
Münster, Aschendorff, 1954 (Beitrãge XXXVII, 4) situa o Mariale cêrca
do fim do século XIII. B. Korosak, OFM, Mariologia Sancti Alberti
Magni eiusque, coaequalium, Romae, Academia Mariana, 1954 ( Biblio­
teca mariana medii aevi, 8), situa o Mariale antes de São Boaventura.
F. Pelster, Zwci Untersuchungen, em Scholaslik, 30, 1955, 388-401) a
quem devemos uma sábia tomada de posição, sôbre as divergências
de detalhe dos estudos citados do século XIII (R. Laurentin, Que reste-t-il
de l'oeuvre mariale d'Albert le Grand?, em Vie Spirituelle, supl., 1936,
n9 38, pp. 348-360).
As numerosas monografias consagradas à “Mariologia" de Alber­
to, o Grande (Bibliografia em J. B. Carol, De Corredcmptione, Roma
1951, p. 164, nota 21), estão superadas. Ver, daqui em diante, A. Fries,
Die Gedanken des Heiligen, Albertus Magnus über die Gottesmutter, em
Thomistische Studien, VII Band, Fribourg (Suíça), Paulusverlag, 1959.
&s Parte I: Desenvolvimento lia Doutrina Mariana

Melhor que o pseudo-Alberto, com seu princípio de oni-


continência, Santo Tom ás” * deduziría o princípio de uma sín­
tese pelos aprofundamentos que faz na doutrina da maternida­
de divina; mas não chegou a fazer esta sintese. E, dificilmente,
poderia fazê-la, uma vez que seu pensamento permanece en­
travado pela herança das dificuldades relativas à Imaculada Con­
ceição que êle não conseguiu resolver.
Sem fazer uma sintese, Duns Scotus lança contra estas
dificuldades uma corrente que irá longe. Quando começou a
ensinar em Paris, nos últimos anos do século XIII, a Imacula­
da Conceição era universalmente ignorada pelos teólogos. 130 Por
isso êle não poderia propô-la senão como opinião, por receio
de censura. Mas sua argumentação contornou a situação e seus
sucessores não fizeram mais do que medir o valor das razões
que êle trouxe. Este reconhecimento foi rápido. Em 1439, os
teólogos reunidos em Basiléia chegaram finalmente a um acôr-*S .

"* G. Roschini, La mariologia di San Tommaso, Roma, Belardetti,


1950, dá uma boa bibliografia dos trabalhos consagrados à mariolo­
gia do Doutor Angélico, pp. 25-33. Publiquei alguns complementos em
Bulletin Thomiste, 8 (1947-1953), p. 1091, nota 1.
Quase todo o ano algum autor propõe uma nova tentativa de fazer
S. Tomás um imaculista ignorado. A propósito do mais importante des­
ses ensaios, J. A. Robilliard explicou por que esta tentativa era inútil,
Rev. des sc. phil. et théol., 39 (1955), pp. 464-465. Não encontramos
na obra do Doutor Angélico os princípios a partir dos quais esta ver­
dade possa ser estabelecida e explicada profundamente.
” • C. Balic, OFM, Ioannis Duns Scoti, Doctoris Mariani theologiae
marianac dementa, Sibenik, Kacic, 1933 (= BibUotheca mariana medii
aevi, ir' 2) e loanncs Duns Scotus, Doctor Immaculatae Conceptionis,
Romae, Academia Mariana, 1954.
Em oposição ao titulo do volume precedente, G. Roschini, Duns
Scoto e 1'lmmacolata, Roma, Marianum, 1955, apresentou, com erudição
e habilidade, todos os argumentos capazes de diminuir a importância
histórica de Scotus. Uma gigantesca polêmica seguiu-se, cujo inicio,
relatei em La Vie Spirituelle, Stipl., novembro 1955, n9 35, pp. 467-170,
481. G. Besutti, Bibliografia mariana , 1952-1957, Roma 1959, pp. 67-69,
ns. 1286-1322.
A importância de Scotus permanece considerável. Seu principal mé­
rito é o de haver assumido e sondado novamente a objeção maior.
Uma concepção sem pecado atenta contra a Redenção universal, dizia-
se comumente. Ao contrário, responde Scotus, a perfeição do Redentor
requer que ále tenha preservado (e não somente purificado) do pe­
cado a mais santa das criaturas.
Sóbre a ignorância geral da idéia, no século XIII, e a expan­
são da tese imaculista a partir de Duns Scotus e Ware, ver F. de Gui­
marães, OFM Cap., La doctrine des théologiens sur 1'lmmaculèe Con-
reption, de 1250 a 1350, em Êtudes Francisc., 3 (1952), pp. 181-204;
4 (1954), pp. 23-52, 167-188. Sôbre a expansão das idéias na Espanha,
A. Brana Arrese, OFM, De Immaculata Conceptione B. V. Mariae se­
cundam tlieologos hispanos saectili XIV, Roma, Academia Mariana, 1950.
IV. Da Reforma Gregoriana ao Concilio de Trento S9

do para definir esta verdade como dogma de fé. A defini­


ção, em boa e devida forma, não teve seu efeito, porque o Con­
cilio havia cortado sua comunhão com Roma; mas o consensus
que a fêz promulgar (e que não vamos encontrar no Concilio
de Trento) é significativo.
Esta difusão da crença imaculista não nos devia fazer so­
brestimar esse período. Nêle assistimos à difusão e à afirma­
ção das idéias lançadas por Duns Scotus, mais do que a um
progresso teológico propriamente dito. Após o início do século
XV, não há mais grande coisa a assinalar, exceto as importantes
decisões de Sixto IV, que adota oficialmente em Roma a festa
da Conceição e protege a doutrina imaculista contra os violen­
tos ataques de Bandelli. Neste momento, a fase de calma
expansão terminou. O debate entra na fase aguda, belicosa, da
qual não se sairá antes do século XIX.
Além dos raros traços positivos que acabamos de assina­
lar, o século XV é uma época medíocre. Os homens repetem
mais do que pensam. O aparelhamento filosófico complica-se
e se esclerosa. O nominalismo predomina. A teologia desinte-
gra-se. Fugindo a um intelcctualismo ressecado, muitos procuram
a vida no plano da imaginação e do sentimento. Durante esta
decadência, o entusiasmo popular pela Virgem não enfraque­
ceu; entretanto, cada vez mais, êle se nutre de alimentos fal­
sos, milagres de encomenda, “slogans” equívocos e conversas
inconsistentes.

Sôbre o Concilio de Basiléia, ver H. Ameri, OFAÍ, Doctrina thco-


logorum de Immaculata B. V. Conceptione tcmpore concilii Basileensis.
Roma, Academia Mariana, 1954.
1,1 Sôbre o primeiro compromisso do papado com respeito à Ima­
culada Conceição, ver a excelente monografia de C. Sericoli, Immaculata
B. M. Virginis Conceptio iuxta Xysti IV Conslilutiones, Roma, Acade­
mia Mariana, 1945. Ao defender a “Conceição imaculada" contra os
ataques de Bandelli e de seus satélites que semeavam inquietação ao
declarar esta opinião herética, o papa não atingia o fundo do debate.
Êle proibia mesmo aos imaculistas (de cuja crença êle participava,
como o insinuava imperceptivelmente) de declarar herética ou pecami­
nosa a opinião maculista. As duas teses adversárias tinham o mesmo
regulamento jurídico: proibição de condenar a tese oposta. Podemos
admirar-nos desta discreção, mas no estado de confusão em que as pai­
xões tinham começado o debate, não teria sido prudente tomar partido.
A luz total não chega senão com a paz.
A Igreja, então, pôde definir-se. Mas foram necessários mais de
três séculos à Santa Sé para chegar a êste resultado.
00 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

A evolução artística manifesta êste deslize: do mistério para


o naturalismo e do naturalismo ao artifício. No século XIII,
substituem-se as majestosas virgens romanas, trono impassível
da Sabedoria encarnada por um nôvo tipo de virgens, gra­
ciosas e sorridentes: elas mostram mais o sorriso do que o
filho, que, do Seu lugar central passa para o lado. A veste só­
bria e hierática foi substituída pelos enfeites mais femininos,
cujos panos e pregas se complicam. Pouco a pouco, cai-se no
maneirismo e no cabotinismo. No século XV, a Virgem da Apre­
sentação, até aquela data de pé, se ajoelha, e a Virgem do Cal­
vário desfalece em desmaio. Os sermões comentam Suas lágri­
mas, Seus gemidos e Suas fraquezas: esquecem de comentar
Sua fôrça e Sua cooperação na obra da Salvação.
Atingiu-se o fundo desta miséria, quando começou a crise
protestante. O autor mariano no apogeu é, então, Bernardino
de Busti, cujo Mariale, editado pela primeira vez em 1496, me­
receu numerosíssimas edições. Bem se pode imaginar a de­
cadência do período que consagrou a reputação desta compila­
ção cujas idéias, às vêzes excelentes, são muitas vêzes mer­
gulhadas num caudal de opiniões fanáticas ou inconsistentes.
Uma depuração se impunha. Aqui, como em muitos outros
domínios, uma vez realizadas as eliminações indispensáveis, ia-
se acabar no vazio, tendo a teologia nominalista eliminado as
bases indispensáveis da doutrina. O protestantismo que havia
voltado à situação de Éfeso, limitando a mariologia a três pon­
tos: Maria santa, virgem {“ante partum") e mãe de Deus, eli­
minou, algumas vêzes, até êstes pontos fundamentais. As difi-,
culdades superadas há tanto tempo, sôbre as quais haviam tro­
peçado os Tertulianos e Crisóstomos, recebem a devida con­
sideração pelos reformadores. O Concilio de Trento termina (em

Vicrges romancs d'Auvcrgne, n* XXV da revista Le Point, 5


(1943). Artigos de E. Male, E. Bréhier, M. Gromaire e foto do dou­
tor G. Cany.
154 F. Cucchi, OFM (La mediazione universale negli scritti di Ber­
nardino de Busti, Milano, Ancora, 1943) piedosamente escolheu o que
há de melhor dêste autor.
138 Sôbre os protestantes e a mariologia, ver abaixo, bibliogra­
fia n* 14a.
IV. Da Reforma Gregoriana ao Concilio cie Trento 91

1563) sem ter tratado da questão mariana que permanece


numa situação bastante deficitária.
Não toca senão de leve e ocasionalmente; cf. Denzinger, 792
(a propósito do pecado original), 986 (a propósito das imagens e re­
líquias dos santos).
A mais recente monografia sôbre esta questão, Bruno Korosak,
OFM, Doclrina de Immaculata B. M. Mariae Conccptione apud auctores
ordinis minorum qui Concilio Tridentino inlerfuertint, Roma, Acade­
mia Mariana, 1958, dá, na página 1, nota 2, uma lista dos numerosos
estudos consagrados a êste ponto particular. Notar que as manobras
ocultas dos “maculistas” porfiam em fazer desaparecer da maior parte
das edições antigas (Paris 1546 e 1550, Anvers 1546 e 1556) a cláu­
sula relativa à Imaculada Conceição.
QUINTO PERÍODO

DOS ÚLTIMOS ANOS DO SÉCULO XVI


AO FIM DO XVIII

O entusiasmo ressurge durante os últimos anos do século


XVI. Êste renascimento mariano parte dos países não atingidos
pela Reforma: a Itália e, sobretudo, a Espanha, ainda no apo­
geu de sua glória, dão a nota dominante em todos os domí­
nios, da mística à teologia, e da literatura à moda. Seus pro­
tagonistas são os primeiros grandes teólogos da Companhia de
Jesus; na Espanha: Salmerón (f 1585)"', Suárez que ela­
bora em 1590 a primeira mariologia sistemática; depois Salazar,
que, em 1618, lança as primeiras grandes obras sôbrc a Ima­
culada Conceição e a primeira exposição ex-professo sôbre a
parte de Maria na Redenção’” ; na Alemanha, São Pedro Ca-
nísio e Belarmino, na Itália. Começa um grande período.
O movimento mariano expande-se ràpidamente de 1619 a 1630;
atinge seu ponto alto de 1630 a 1650’” ; depois, lentamente,
se enfraquece como que esgotado por um crescimento demasia-
Cf. M. Andrés, La Compasión según Salmerón, em Estúdios
Maria nos, 5 (1946), pp. 358-388.
"* J. A. de Aldama, SJ, Pièté ct syslème dans Ia Mariologie da
Docteur Eximius, em Maria, II, 975-990. (Bibliografia dos trabalhos pre­
cedentes sôbre a mariologia de Suárez, p. 990).
Sôbre êste autor e sua considerável influência ver R. Lauren-
tin, Marie, 1’Êglise et le Saccrdoce, 1953, t. 1, pp. 232-304, e O. Ca­
sado, Mariologia clúsica cspanola, Madrid 1958.
110 Seu De Maria Virgine incomparabili teve cinco edições: quatro
de 1577 a 1584: a quinta em J. Bourassé, Suntnia Aurea, Tours 1862,
t. 8, 613 a 9, 408.
1,1 Deixou alguns sermões: os de Lovânia foram publicados em
Colônia, enquanto era ainda vivo (apud P. Henningium), 1626; os de
Roma acabam de ser editados por S. Tromp (Sancti R o b erti... opera
oratoria posthuma, Roma, Gregoriana, 1942, t. I, II, VI e VII). As
monografias sôbre esta mariologia foram arroladas por G. Besutti, Bi­
bliografia mariana, 1950, ns. 146 e 147.
Qual é o lugar daquela que se convecionou chamar Escola
Francesa, dentro dêste conjunto? O considerável interesse que se deu
a êste setor do pensamento religioso, fêz crescer freqüentemente (ou
pelo menos, situar mal) sua importância. Para muitos, os represen­
tantes da ‘‘Escola Francesa” são os mariologistas mais em vista, do
V. Dos últimos anos do séc. XVI ao fim do XVIII 93

damente rápido. Desperta em algumas controvérsias: em tor­


no dos "Avis salutaires”, de 1673 a 1678 em tôrno de Ma­
ria cTÁgreda no fim do século XVII e começo do século XVIII '**,
em tôrno do “voto sanguinário” entre 1714 e 1764 conse­
gue certa glória com alguns grandes autores como: São João

século XVII. Não é assim que historicamente as coisas se apresentam:


1) A Escola berulliana não é um elemento de cúpula do movimento
mariano; mas uma corrente limitada e discreta, onde se afirma, do
ponto de vista teológico, uma nota cristocêntrica, clássica e tradicional,
em contacto com a doutrina dos Padres da Igreja; e do ponto de
vista prático, um esforço de penetração e unidade.
2) Há, talvez, poucos setores onde o nome da Escola Francesa
revela melhor seu caráter artificial do que na mariologia. Que dife­
rença entre a sobriedade de Bérulle e a proliferação mística de Olier,
que equilibra de modo tão original os impulsos de uma viva afeti-
vidade (onde os psicanalistas teriam muito que pescar em águas turvas)
e as retificações da razão e do Espirito Santo, que marcam passo. Outro
paradoxo: a semelhança da doutrina mariana de Saint-Cyran com a de
Bérulle. Em sua correspondência, êles exprimiram muitas vèzes sua co­
munhão de idéias no assunto; e é curioso constatar que, dos dois au­
tores, Bérulle é o mais sóbrio, e o mais reservado a respeito da me­
diação mariana, talvez porque em sua inquietação teocêntrica êle não
quisesse correr o risco de enfraquecer o alcance da expressão paulina:
iiniis mediator.
3) A corrente mariana berulliana, que não ocupa no século XVII
uma posição de primeiro plano, mantém sua importância, uma vez que
ela sobrevive. Seu classicismo a preservou do envelhecimento; sua espi­
ritualidade passou ãs instituições vigentes, enquanto muitas outras Es­
colas ou tentativas caíram no domínio da arqueologia.
Sôbre êste aspecto, ver R. Laurentin, Le titre de corédernptricc,
Paris, Lethielleux, 1951, sobretudo pp. 17-22, e Marie, 1'Eglisc et le
Sacerdoce, 1953, t. I, pp. 258-30-1.
” * Sôbre a grande controvérsia que suscitou a brochura de A.
Widenfeld, Avis salutaires de Ia Bienhcureuse Vierge Marie à ses dévots
indiscrets, ver a excelente monografia de P. Hoffer, La dévotion à Marie
dans le dèclin du XVII siècle. Autour du jansénisme et ses avis salutaires,
Paris, Cerf, 1938.
La mística ciudad de Marie d’Agreda, f 1665, apareceu em 1670.
A controvérsia se desenrolou entre 1696 e 1750. Cf. R. Laurentin, Le
titre de Corédemptrice, pp. 58-59, e J. B. Carol, De Corrcdemptione,
Roma 1950, pp. 346-347, 354, 374.
O objeto da controvérsia foi o voto que faziam certos defen­
sores da Imaculada Conceição de defender esta doutrina “até o san­
gue”. Muratori (sob o pseudônimo de Lamindus Printanius) declarou
êste voto condenável, porque só se deve sacrificar a vida pela fé e não
por opiniões. Encontraremos um resumo da controvérsia que se seguiu
em DTC, VII, 1180-1185. Recentemente uma tese renovou inteiramente
êste difícil assunto: Julien Stricher, CSSR, Le voeu de sang en faveur
de Vlmmaculée Conccption, no prelo em Roma. Academia Mariana. O
autor passou vinte anos reunindo a bibliografia completa do assunto
(impressos e manuscritos) e a elucidar o intricado dos pseudônimos que
parecia inextricável. Assim, uma das mais impenetráveis complicações
da história da mariologia se encontra esclarecida.
94 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

Eudes (f 1680) Orignion de Montfort ( t 1716) depois


Santo Afonso de Ligório que publicou em 1750 suas Glorie
di Mario e desaparece finalmente no silêncio por mais de meio
século (1780-1830).
Os inícios do período assim delimitado, caracterizam-se
por uma mudança de inspiração e uma explosão de entusias­
mo. E’ chocante o contraste entre os três primeiros quartéis do
século XVI e o início do século XVII. De um lado, algumas
obras curtas, fracas e absorvidas por inquietantes polêmicas;
de outro, uma literatura stiperabundante, dominada pelas preo­
cupações construtivas, a ponto de esquecer a existência dos
protestantes. O século XVI estava restrito à tarefa negativa de
conservar e defender uma herança reduzida ao mínimo; o XVII
é guiado pela inquietação, por vêzes excessiva, de promover
as novas glórias de Maria e de implantar as novas formas de
devoção. Em suma, o fim do século XVI e o início do XVU
são para o domínio mariano o que uma nova primavera é para
a natureza. O que parecia morto retorna à vida: uma vida
abundante, exuberante, cujas inumeráveis manifestações escapam
à enumeração.
Se desejarmos referir estas atividades ao seu objeto teo­
lógico central, não há que hesitar muito: é a Imaculada Con­
ceição. Esta crença, entravada pelas grandes dificuldades teo­
lógicas e pela oposição de autoridades tão consideráveis, como
São Bernardo e Santo Tomás de Aquino, suspeita nos meios
romanos influentes, fixará o essencial das preocupações e dos
trabalhos mariológicos do século XVU. Centenas de obras en-
1,1 Êle concluiu, um niês antes de sua morte, a obra de sua vida:
l.e Coetir admirable de Ia Mèrc de Üieu, que foi editada no ano se­
guinte (1681). Bibliografia sôbre esta ntariologia em R. Laurentin, Marie,
1'Église et le Sacerdoce, 1953, p. 290, nota 9.
Seu Traitè de la vraic dèvotion, descoberto em 1842, após mais
de um século de obscuridade, viu o êxito conhecido e foi objeto, cada
ano, de numerosos trabalhos especializados. Ver, por exemplo, G.
Besutti, Bibliografia mariana, 1 (1950), ns. 149-152, 244, 245, 729, 730,
745, 752, 762, 2 (1951), n' 1103, 3 (1959), ns. 1008-1020, 3808-3840.
*’* A obra fundamental sôbre êste autor continua sendo a de C.
Dillenschneider, La mariologie de saint Alphonse, 2 vol., Paris, Vrin,
1931 e 1934.
**• E’ a maior tiragem dentre tôdas as obras marianas de todos
os tempos, cêrca de um milheiro de edições, desde 1750.
Entre essas, o voto de escravidão à Santa Virgem, que parece
vir da Espanha, onde encontramos, no fim do século XVI, confrarias de
escravos da Virgem. Proibida por Roma no inicio do século XVII, esta
devoção renasce em 1842 com a descoberta do Tratado da verdadeira
devoção à Sstna. Virgem. Pode-se, assim, adivinhar todos os problemas
disciplinares e históricos que se levantam nesse domínio.
V. Dos últimos anos do séc. XVI ao fim do XVIII 95

tão se consagram a esta questão. Uns preparam catálogos de


testemunhos favoráveis a esta doutrina; outros argumentam; ou­
tros disputam. Trabalho enorme, desigual, freqüentemente do­
minado pelas preocupações polêmicas. Dificilmente podemos, ho­
je em dia, fazer uma idéia da violência das paixões que foram,
então, desencadeadas, pró e contra a “piedosa crença”.
Esta violência explica a reserva da Santa Sé, cujo cuidado
principal foi o de restabelecer a paz, condição para a luz. Nada
era mais difícil. De um lado, os maculistas, pouco numerosos,
mas colocados em postos de comando, tentavam obter, por meios
sub-repticios, a condenação de seus adversários. Os imaculis-
tas, à frente dos quais se encontravam os príncipes cristãos,
não eram menos ativos. Os reis da Espanha enviavam solenes
embaixadas encarregadas de obter uma definição, a qualquer pre­
ço. As decisões mais formais, destinadas a por fim às discór­
dias, mal eram formuladas, e já as utilizavam os maculistas,
como arma de perseguição e os imaculistas como uma triun­
fal confirmação de seu ponto de vista. Assim, arrastada em
todos os sentidos, a barca de Pedro deveria ter soçobrado vinte
vêzes na incoerência. Com a ajuda do Espirito Santo, porém,
aconteceu o contrário. Malgrado a sucessão de papas, cujas
tendências pessoais eram diversas, as decisões do Supremo Ma­
gistério traçam uma linha firme e coerente, cuja estabilidade
se manifesta no movimento das lutas cheias de alternativas,
que se desenrolam mais abaixo. Estas decisões de caráter disci­
plinar, onde se esboça lenta e progressivamente uma orientação
As duas Bulas Sanclissimus, de Paulo V, 12 de setembro de
IG17 (Bullarium Romanum, ed. Cocquelines, vol. 5, pars. 4, pp. 234-235;
cf. Bourassé, 7, 209) e de Gregório XV, 2 de junho de 1622 (Bullarium
Romanum, ed. Cocquelines, vol. 5, pars. 5, pp. 45-66; cf. Bourassé, 7,
220-222), permitiam ensinar a doutrina da Imaculada Conceição, com a
condição de não atacar a tese contrária; a segunda impunha o uso da
palavra “conceição” para designar a festa de 8 de dezembro (que alguns
chamavam ainda santificação de Maria). Êstes decretos, por si favorá­
veis à conceição imaculada, tornaram-se, nas mãos dos mestres do Sa­
cro Palácio uma arma terrível contra os adeptos desta doutrina. Por
um lado, era difícil expor a tese imaculista sem dar azo à censura de
ataque ã tese contrária. Por outro, os maculistas pretendiam que o
decreto de 1622 fôsse dirigido menos contra o nome de santificação do
que contra a aposição do qualificativo imaculada à palavra conceição.
O "decreto de 1644” (elaborado em condições bastante estranhas pela
Inquisição, mas não confirmado pelo Papa) deu forma a esta inter­
pretação. Êle proibia falar da Imaculada Conceição da Virgem e or­
denava que se mantivesse a expressão conceição da Virgem Imaculada.
Foi aplicado com rigor até o pontificado de Alexandre VII. Sôbre éste
decreto ver DTC, 7, 1174, e o estudo muito mais completo citado no
fim da nota 143.
96 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

doutrinária, realizam uma tríplice tarefa: restabelecem a paz,


reduzem ao silêncio os adversários e preparam os caminhos
para a definição de 1854.
A etapa mais marcante foi a Bula Sollicitudo, promulga­
da a 8 de dezembro de 1661 por Alexandre VII. Sem condenar
a opinião contrária (que continuava sendo proibido atacar),
o papa declara aí, positivamente, a simpatia da Santa Sé pela
Imaculada Conceição; precisava os termos teológicos desta cren­
ça e proibia atacá-la sob qualquer forma ou pretexto que fos­
se. Durante meio século ainda, a atividade cada vez mais
oculta dos “maculistas” prenderá a respiração dos adeptos da
“piedosa crença”. Mas êles não são mais que um pequeno
conciliábulo, que perde terreno cada ano. Os tomistas, que ha­
viam feito guerra aos adeptos da Imaculada Conceição em no­
me de S. Tomás, fazem agora uma viravolta completa: empe­
nham-se doravante com recursos engenhosos para fazer dêste
santo um imaculista desconhecido. Em meados do século XVIII,
após as últimas escaramuças e controvérsias, estão todos fati-

1,1 Eis as grandes etapas a êste respeito:


1) Desde Sixto IV, cujas decisões haviam sido renovadas com
pormenores sem importância por Pio V, as duas opiniões tinham o mes­
mo estatuto jurídico. Elas estavam autorizadas a exprimir-se, mas era
proibido declarar a tese adversária herética ou mesmo errônea (cf.
acima, nota 122).
2) Paulo V renova as mesmas injunções pela Constituição Regis
pacifici, a 6 de julho de 1616. A 12 de setembro de 1617, rompe discre­
tamente o equilíbrio entre as duas opiniões. Pela Bula Sanctissimus,
proibe expor a tese maculista nos atos públicos; êle precisa, entre­
tanto, que não julga tal opinião prejudicial e proíbe atacá-la, de qual­
quer maneira.
3) A 24 de maio de 1622, Gregório XV estende a proibição de seu
predecessor aos atos privados com a mesma cláusula. Privada de to­
dos os meios de expressão, a tese é, assim, condenada a uma lenta
agonia. Apenas os dominicanos permanecem autorizados (por indulto de
28 de julho de 1622) a expor esta opinião “entre si e não com outros”.
Sôbre tudo isto, eu ine permito remeter a R. Laurentin, Lc magisfire
et lc dcveloppement du dogme de Vlntmaculêc Conccption, em Virgo
Immaculata, Roma, Academia Mariana, t. 2, pp. 1-98.
“ * A 8 de dezembro de 1661, Bullarium Tnurinensc, t. 16, 789.
Denzinger, 1100. Cf. abaixo, 2* parte, nota 9. As origens da Bula obti­
da em longa luta pela ação de uma embaixada do rei da Espanha, e os
estágios preparatórios do seu texto são agora conhecidos graças à
notável monografia de Constâncio Uutiérrez, SJ, Espana por cl dogma
de la lmmaculada. La ambajada a Roma de 1659 y la Bula “Sollicitudo"
de Alejandro VII, Miscetlanea Comillas, 24, 1955, in-8ç de 480 pp. Es­
tudo (pp. 14-76) e documentos (pp. 76-180).
V. Dos últimos anos do séc. XVI ao fim do XVIII 07

gados; o terreno está coberto de tal lastro de obras de au­


toridades reais ou fictícias, de distinções úteis ou estapafúr­
dias, de exposições divergentes do mistério, que nêle nos per­
demos. Êste gigantesco trabalho não havia sido inútil. Era,
entretanto, necessário que êle fôsse decantado. Como após
dias de vã busca e inextricáveis reflexões, o sábio encontra, às
vêzes, em seu sono a solução que lhe fugia, assim também,
ao termo de um período estéril (1751-1851), a Igreja dedu­
zirá definitivamente a solução pela qual se resolverão tantas diver­
gências e complicações.

Somente os jesuítas escreveram mais de trezentas obras sôbre


a questão entre 1600 e 1800 (cf. C. Sommervogel, Biblioteca mariana
da Companhia de Jesus, Paris, Picard, 1885, pp. 47-79).
’** Um esforço de organização foi realizado por M. A. Gravois,
Recoleto franciscano, De ortu et progressu culhis ac festi Immacutati
conceptus..., Lucae, Riccome, 1742; 2* edição (emendatior), em 1762.
Reedição em Botirassé, 8, 289-458, e B. Plazza, SJ, Causa Immacutatae
Conceptionis, Panorini, F. Valenza, 1747. Mas há muito que expurgar,
desses autores, principalmente o primeiro.

Breve Tríitndo - - 7
SEXTO PERÍODO

SÉCULOS XIX E XX

O século XIX apresenta, do ponto de vista mariano, uma


fisionomia singular. Começa na mais extrema miséria. Durante
os trinta primeiros anos, a raridade e a mediocridade da lite­
ratura mariana desceram a um grau jamais atingido, mesmo no
século XVI.
A renascença mariana, que sobrevêm então, toma formas
surpreendentes. Começa em 1830 por uma aparição, a primeira
de uma longa série, característica deste século. A Virgem con­
fia a Catarina Labouré o projeto da medalha milagrosa, que
é como o sinal de um grande movimento de piedade e conver­
sões. A efígie parece dar todo o programa mariano do sé­
culo: Imaculada Conceição e Mediação.
Inaugurado por uma aparição, o periodo continua em 1854
por uma definição. Pio IX fêz da Imaculada Conceição um
dogma de fé. A sentença infalível sobrevêm, antes que a teo­
logia tenha manifestado os sinais de renascença; o esforço dos
séculos XVII e XVIII parece então esquecido e o do século
XIX se reduz a pouca coisa. Pio IX consultou com tacto o sen­
timento da Igreja, a tradição viva do episcopado: mas o tra­
balho de preparação realizado pelos teólogos não foi levado
muito longe. Encontramos apenas uma obra teológica de síntese
que, se não representa um método rigoroso, é um trabalho de
grande envergadura. E seu autor C. Passaglia "* (que iniciou
Scheeben na mariologia) termina na oposição política à
Santa Sé.
Cf. DTC, VII, 1195-1200.
"* Cf. artigo Passaglia, cm DTC, XI, 2207-2210. Mais lúcidos, po­
rém menos amplos cpie a obra de Passaglia são os livros de J. Perrone,
De Immacalato Conceptu. An dogmático decreto dcfiniri possit? Avenio-
ne, 1848 (numerosas edições em diversos lugares), e sobretudo o opús­
culo de Dom P. Guéranger, Mêmoirc sur Ia qucstion de iTmmaculce Con-
eeption, Paris, Lecoffre, 1850, in-8v de 147 pp. (muito arejadas). Quanto
ao livro de Mons. J. B. Malou, Utmmacidée Conccption comme dogme
de foi, (sem dúvida a melhor obra do século sôbre a questão) apare­
ceu após a definirão, em Bruxelas, Gromaere, 1857.
VI. Séculos XIX e XX 99

Numa palavra, neste período desconcertante, onde a Igreja


é enfraquecida e ameaçada, em que os recursos humanos lhe
faltam em tantas ocasiões, tudo vem do alto, e a deficiência
das realizações caricatura, frequentemente, a qualidade e a inspi­
ração. Um fluxo carismático precede a renascença doutrinária
e literária. O inicio do século se caracterizava pela ausência
de obras niarianas. Daí passamos, repentinamente, por volta de
1840, a uma proliferação ainda mais aflitiva. Luis Veuillot ca­
racterizava assim esta literatura, cuja abundância é apenas o
menor defeito:
"Dentre a imensa quantidade de volumes que ela produz cada
ano, a custo encontramos alguns que não deixam de todo a de­
sejar: declamações mal feitas e frias, textos mal colecionados,
lições sem doutrinas, sem amor, frequentemente sem gramática.
Surpreendenio-nos de que o zelo que fêz ler estas pobrezas inspi­
re tão mal os que as escrevem". ’*’
Todo o drama religioso do século XIX está nisso. E' uma
época em que a piedade ardente e autêntica em seus impulsos
se nutre de uma literatura falsificada e de uma arte deplorável.
Pouco a pouco, porém, a situação melhora. Após a obra
de Mons. Malou sôbre a Imaculada Conceição, na Bélgica
(1857), Newman'*0 propõe em 1866 uma mariologia recondu­
zida às fontes e expurgada de tôda a escória. Em 1882, Schee-
ben lança um ensaio mais profundo, que, após meio século
de obscuridade, conhecerá um considerável esplendor. Como
Newman, Scheeben freqüentou as fontes patristicas, mas se dei­
xou levar mais pelo aspecto do desenvolvimento dogmático. Um
L. Veuillot, MélangCs, 2* série, Paris, Gaume, 1860, t. 5,
605-606.
Bibliografia sóbre êste autor em R. Laurentin, Marie, 1’Êglise
et le Sacerdoce, 1953, p. 397, nota 31. Acrescentar aí F. Davis, Newman
and Our Lady, em Clcrgy Review, XXXIV (1950), pp. 369-379. A obra
ile base é F. J. Friedel, The Mariology uf Cardinal New mana, Nova
Yorque, Benziger, 1928 (tese sustentada na Universidade de Friburgo
na Suíça).
111 A mariologia de Scheeben é inserida no IIP tomo de sua
Dogmatik, Freiburg, Ilerder, 1882, § 274-282 c; cf. 229-231 e 240 ab.
Reedição de Carl Feckes, Katholische Dogmatik, ibid., 1955, V, 1,
pp. 243-266, 335-359, e sobretudo, V, 2, pp. 306-499. Assinalamos a
tradução inglesa de T. L. M. J. Geukers, Mariology, Londres, Herder,
1948, 2 volumes, e a tradução da adaptação de G. Feckes, por A.
Kerkvoorde, publicada sob o titulo Aí. /. Scheeben, La M ire Virginale
du Sauveur, Paris, Desclée de Brouvver, 1954.
Apresentação desta mariologia por C. Feckes, Al. ]. Scheeben, Thco-
logien de la mariologie moderne, em Maria, III, 553-57! (Bibliografia,
pp. 570-571). Ver também o excelente estudo de J. Galot, em Èludes
mariales, 14 (1956), pp. 49-66.
100 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

duplo cuidado domina todo seu empreendimento: estabelecer em


sua ordem e unidade os diversos aspectos do mistério maria-
no, e o que é mais singular, situar a mariologia em seu devido
lugar no conjunto da teologia, entre o Tratado de Cristo e o da
Igreja: aí integrá-la organicamente. Esta palavra repete-se sem
cessar em sua obra. Dêsse modo, a teologia mariana perde a
aparência de empreendimento gratuito que mostrara tantas ve­
zes e reencontra sua autêntica significação.
E’ nas pegadas de Scheeben que nasce, a partir de 1925,
sobretudo, o movimento da “mariologia científica” : devemos-
lhe a fórmula e o exemplo. ‘SI O tema privilegiado dessa cor­
rente é a mediação mariana, considerada em suas duas fases:
participação na obra fundamental da Redenção, participação na
distribuição dos frutos desta mesma Redenção. Foi o Cardeal
Mercier que lançou a corrente de estudos especializados rela­
tivos a esta questão. Iniciado em 1913, e recomeçado no fim
da guerra, êste movimento obscuro no início, não cessa de ex­
pandir, principalmente a partir de 1926. ***
Entretanto, de 1940 a 1950, êste primeiro centro de inte-
rêsse, sem diminuir, é eclipsado por um outro: a Assunção.
Chocante é a diferença entre a quantidade e a qualidade dos
trabalhos que prepararam, respectivamente, a Bula de Pio IX so­
bre a Imaculada Conceição em 1854, e a de Pio XII sôbre a
Assunção em 1950. E se lermos sucessivamente êstes dois do­
cumentos, mediremos o que o rigor histórico e a precisão teo­
lógica ganharam em um século.
Que rumos toma atualmente a teologia mariana? No meio
da proliferação dos trabalhos e das tendências que se manifes­
tam hoje em dia, podemos hesitar. À medida que a Assunção
sai da atualidade, a co-redenção tende a voltar a um lugar de
primeiro plano. Mas a posição do problema alargou-se singu­
larmente. Procura-se situá-lo num conjunto que lhe manifeste
o sentido. O trabalho considerável que prossegue, hoje, mais

l5! Referências em R. Laurentin, Marie, 1’Êglise ct le Sacerdoce,


1953, p. 390, nota 17 (fim).
R. Laurentin, Institutions du Cardinal Mercier, em La Vie Spi-
rituelle, 84 (1951), pp. 518-522. Os principais escritos marianos do Car­
deal Mercier foram compilados por A. Demoulin, Cardinal Mercier. La
Vierge Marie, Pages choisies, in-85 de 124 pp., esgotado, Liège 1947.
” * G. Besutti, Bibliografia Mariana, 1950, ns. 5, 268 a 493. Assi­
nalamos sobretudo os trabalhos de M. Jugie, C. Balic, da sociedade
francesa de Êtudes Mariales, e de A. Wenger, citados abaixo na Bi­
bliografia.
VI. Séculos XIX e XX 101
que nunca, é dominado pela busca de um eixo e de um prin­
cípio de síntese. Qual seria êste princípio?
1. A maternidade divina, dizem uns, pois é a razão de ser
de todos os privilégios de Maria. Alguns chegam até a dedu­
zir tudo do único fato de ter ela gerado a Cristo. Mas a maior
parte sente a necessidade de expandir êste principio, onde não
poderiamos reencontrar tôda a mariologia, se o reduzíssemos à
sua expressão mais simples. Uns procedem por meio de abstra­
ção e falam num resumo audacioso da “maternidade total” de
Maria, que retine Cristo e os cristãos. ,s‘ Outros adotam uma
perspectiva vital e personalista: insistem sôbre a necessidade de
tomar a maternidade de Maria de modo concreto, como a apre­
senta a Escritura: Maria é a mãe do Salvador, comprometida
por sua própria maternidade na obra da salvação. Para além
do estrito conceito de maternidade (definido pela geração úni­
ca), êles recorrem ao conceito de “maternidade integral” : quer
dizer, a maternidade com o cortejo de graças que fazem de
Maria a digna mãe de Deus. '** E’ a solução tradicional.
2. Um segundo grupo, representado principalmente pela
Bélgica, julga poder encontrar um princípio mais radical. A ma­
ternidade divina seria apenas um momento particular da asso­
ciação de Maria a Cristo. Esta solução tem igualmente uma

Clara apresentação tias teorias tios dois primeiros grupos por


Roschini ( Mariologia , I, 324-337), teorias mais recentes por C. Dillen-
schneider (Lc príncipe prcmier d'une théotogie Mariale organique, Pa­
ris, Alsatia, 1955). Referências detalhadas no fim do presente volu­
me, Bibliografia, n" 9.
“ * M. J. Nicolas, Le concept integral de maternite divine, São Ma-
ximino, ed. Revue Tliomiste, 1937, in-89 de 80 pp. Êste estudo traz um
conjunto de considerações novas e definitivas que fazem dêle, sem dú­
vida, a peça mestra da teologia mariana do período entre as duas guer­
ras. Aorientação que descrevemos aqui é fundamental. O que há de
mais valioso nas outras perspectivas nos parece dever ser integrado
àquela. Tal será o sentido da conclusão do presente volume.
Tal é o ponto de vista desenvolvido por J. Thomas; não o fa­
ríamos mais claramente — Qtielle est Ia meilleure structure interne d‘un
traitè de mariologie, em Journècs sacerdotales mariales, I (1951),
pp. 113-116. Êle propõe "substituir... o principio dado habitualmente
(maternidade divina, significando que Maria é Mãe do Redentor, como
tal) por um outro mais essencial (o da união necessária ao Cristo
mediador)”. Do fato de terem sido estas considerações expostas perante
a sociedade mariológica belga, e publicadas no volume que reuniu tais
trabalhos de equipe, podemos concluir que elas foram aceitas unâni­
memente na Bélgica? Não parece, pois Mons. Lebon, no mesmo volu­
me, relaciona os privilégios de Maria com a maternidade divina (pp. 22-
23). J. Thomas havia já exposto sua tese (que se inspira nas idéias
de Mons. Lebon sôbre a co-mediação mariana) em seu artigo: Notrc
102 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

forma abstrata: Maria, associada perfeita de Cristo, participa


de tôdas as suas funções e privilégios (ibid.); e uma forma
mais concreta e personalista: Maria é a nova Eva; Ela ocupa,
ao lado do nôvo Adão, o lugar da primeira mulher ao lado
do primeiro homem.
3. Do grupo germânico, impregnado das fontes patrísticas,
surge um terceiro grupo de tentativas, sugestivas e muito vi­
zinhas umas das outras, a despeito de suas terminologias dife­
rentes. A idéia fundamental pode ser resumida assim: Para ter
a chave do problema ntariano, é mister situar Maria na posição
de criatura pura diante do Deus Salvador1" : nesta perspecti­
va, seu papel será definido de diversas maneiras. Para O.
Semmelroth, ela é essencialmente o protótipo da Igreja e a
representante da humanidade, para outros. 1,1 E para outros
ainda, Ela representa na Igreja o máximo da graça com que

Dame des prctrCs, na Rente diocêsaine de Tournai, I (1946), p. 272:


“a maternidade divina não é, acima de tudo, senão um elemento desta
associação.. . ”
,J* L. Billot, De Verbo Incarnato, Rontae 1927, d. 7, p. 386: “De
virgine mater generaliter tenendum est quod in ordine reparationis euni
locum tenet Eva in ordine perditionis". S. Alameda, El primer principio
niariolôgico según los Padres, em Est. Mar., 3 (1944), pp. 163-186.
M. M. Kostcr havia divulgado esta idéia com um relêvo exces­
sivo em seus livros: Die Magd der Herrn, Limburg, Lahn-Verlag, 1947,
et Unus Mcdiator, ibid., 1950. A. Adam, Neomonopbysitismus, em Theol.
Quartalschr., 129 (1949), pp. 254-255; C. Dillenschneider, Le mystère
de Ia co-rèdcmption. Paris, Vrin, 1951, pp. 27-61; Y. Congar, Le Christ.
Marie et l’Êglise, Paris, Desclée de Bromver, 1952, criticaram a “ten­
dência monofisita” desses ensaios. Levado por sua intuição, o autor
tendia efetivamente a diminuir a plenitude humana do Cristo para acen­
tuar a utilidade do papel de Maria, pessoa humana, como representante
dos homens no Calvário. Na última edição de sua primeira obra ( Die
M a g d ..., ed. 1954), Kõster corrigiu plenamente o que podia haver ai
de excessivo, em seu ponto de vista. Não tentos mais nenhum direito
de lhe fazer qualquer critica neste assunto.
1,0 Urbild der Kische, Würzburg, Echter Verlag, 1949.
E' muito significativo que a sociedade marial alemã tenha consa­
grado seus primeiros anos de estudos ao exame desta questão: “Tem Ma­
ria na história da salvação a posição de representante da humanidade?"
Os importantes estudos (sobretudo históricos) realizados sôbre êste
tema foram compilados num volume intitulado: Die heilgeschichtliclie
Stellvertretnng der Menscheit durch Maria, Paderborn, Schõnongh, 1954.
Pretendem fornecer uma documentação objetiva e não uma conclusão
prematura.
VI. Séculos XIX e XX 103
Deus pode favorecer a criatura ou o apogeu da Redenção
que Èle possa conceder a uma filha de Adão.
Através de tudo isto, uma única questão, no fundo, é le­
vantada: Qual o sentido do papel de Maria na história da Sal­
vação? E é definitivamente esta questão que domina na atua­
lidade. O cuidado de “demonstrar” a mediação mariana não
tem, no século XX, a importância que tinha no século XVII, o
de “demonstrar” a Imaculada Conceição. Procura-se menos pro­
var uma tese do que situar o papel da Virgem no conjunto do
mistério cristão; êste conjunto de esforços por uma mariologia
funcional causa a eliminação de muitas excrescências factícias.
Compreende-se desde logo o lugar de primeiro plano que
ocupa uma questão completamente nova: Maria e a Igreja.
Scheeben, que a havia apresentado por primeiro com alguma
amplitude, permanecerá longo tempo sem repercussão. A par­
tir de 1926, e em parte sob sua influência, duas tendências
complementares se manifestam: o movimento eclesiológico tende
a colocar o problema mariano sob nova luz, e os mariólogos
a ver Maria numa perspectiva eclesiológica. Nos dois sentidos,
o volume dos trabalhos não cessou de crescer, até tornar-se
esmagador nestes últimos anos. Não há que lastimar. Este es­
forço renovado com o espírito da mariologia patrística, sem re­
nunciar às aquisições legítimas, cujo pleno sentido ajuda a des­
cobrir, restitui à mariologia um fator de equilíbrio que frequen­
temente perdera no decurso dos últimos séculos.

A. Miiller, Um die Grundlagen der Mariologie, em Divus Thomas


( Freib.), 29 (1951), pp. 385-401. O autor faz da plenitude da graça
um principio de síntese à luz da idéia patrística: Maria concebeu o
Verbo em Seu coração pela fé antes de concebê-lo em Seu corpo. Con­
ceber Deus não somente em espirito, por ato de fé, mas em sua carne,
correspondería ao supremo grau da fé dirigida pela caridade. Há nisso
uma visão sugestiva, mais do que um principio de sistematização.
"* K. Raliner, Le príncipe fondamental de Ia llicologie mariale, em
Recli. de sc. rei., 42 (1954), pp. 481-522.
“ * Cf. R. Laurentin, Marie el ÍÉglise, em La Vie Spirituelle, 86
(1952), pp. 295-304 (apresentação dos principais trabalhos recentes sôbre
êste assunto), e Bibliographie critique sur Marie et 1'Êglise, em Bullctin de
Ia Sociélé française d'Études marialcs, 9 (1951), pp. 145-152. Já em
1953, foi necessário fazer um aditamento a esta bibliografia, ibid., II,
pp. 170-171. Depois, o ritmo dos trabalhos sôbre o assunto se manteve.
Ver, no fim do presente volume, bibliografia, n“ 18.
CONCLUSÃO

Seguimos a descoberta progressiva de Maria pela Igreja;


e o progresso é inegável. Esta exposição suscita, agora, um
problema teológico: como conciliar êste progresso com o fata
de que a Revelação está encerrada com a morte do último
apóstolo?
Um estudo ex-professo desta questão considerável não pode
ter lugar no quadro de um “breve tratado”. Algumas observa­
ções serão suficientes para afastar os equivocos e indicar o sen­
tido da solução.
Numa palavra, há progresso na identidade: desenvolvimen­
to e não evolução.
Desde o fim do século 1, Deus não enviou novos dados
objetivos, mas a Igreja adquiriu uma consciência mais precisa
do depósito recebido. Tôda “descoberta” posterior ao tempo
da Revelação é pois relativa; é algo de acidental e não essencial: é
aproximação de premissas complementares, explicações de ques­
tões latentes, melhor percepção de dados recebidos (Lc 1,26-54;
Jo 19,25-27), melhor apreciação de convergências ignoradas. O
fundo, todavia, permanece imutável. O progresso consiste não
numa nova mensagem de Deus, mas numa compreensão mais
precisa desta mensagem. Em cada grande época, o nascimento
de uma nova perspectiva, a promoção de novos meios de co­
nhecimento esclarecem os pontos obscuros. Mas, por mais que
descubramos, a coisa permanece a mesma: assim como uma fi­
sionomia que sai da penumbra em direção à luz.
Nós captamos, agora, o processo dêste progresso. Pelo tra­
balho da inteligência, a verdade revelada se explicita. Pela ação
da graça, as almas captam melhor, através dos símbolos, a
realidade, que é o termo de sua fé.
Sôbre êste ponto fundamental para a compreensão do desen­
volvimento dogmático, ver os grandes textos de S. Tomás, Summa Theol.,
IIa Mae q. 1, a. 2, ad 2: “A fé se determina não por simples enunciados,,
mas por realidades”. Cf. Ia llae, q. 13, a. I.
106 Parte I: Desenvolvimento da Doutrina Mariana

A êste labor humano, têm-se misturado, aqui ou acolá,


erros acidentais. Alguns se desviaram cm seu raciocínio. Ou­
tros tomaram por luz do Espirito uma fosforescência de sua
própria imaginação. Êstes enganos — que julgamos bom reve­
lar — têm sido sempre obra de indivíduos e de grupos, jamais
obra da Igreja, cuja fé permanece pura. Nos momentos cie de­
cadência, o progresso pôde deter-se, mas nunca esta fé cessou
de viver. Nos períodos mais vazios que temos evocado —
períodos no decurso dos quais se realiza a útil decantação de
tudo que é excessivo ou adventicio — a crença da Igreja per­
manece em sua viva integridade, imperturbàvelmente celebrada
na liturgia.
Enfim, o Magistério assistido pelo Espírito Santo, vela pela
permanência da doutrina e seu laborioso desenvolvimento. Len­
ta e pacientemente, com discrição eficaz, êle deteve ou deixou
morrer por si mesmas as iniciativas infelizes, encorajou e fi­
nalmente consagrou o que era a explicitação autêntica da pró­
pria Revelação. Foi após séculos de espera e esforço progres­
sivo que a Santa Sé veio a definir as verdades (por muito tempo
escondidas) relativas ao princípio e ao fim do destino de Ma­
ria: Sua Imaculada Conceição e Sua Assunção.'*’
Êstes privilégios não são fruto de nova mensagem de Deus.
Mas, percebendo as relações da Virgem com Cristo e a Igreja,
integrando a linha dos privilégios que a Escritura nos revela,
captando de nôvo as oscilações de milhares de raios de verdade
contidos na Revelação primitiva, a Igreja percebeu, cada vez
mais claramente, êstes pontos luminosos que ela pressentia des­
de a origem. A Revelação é uni tesouro oculto do qual o teó­
logo instruído no mistério do Reino, tira sem cessar “coisas
antigas e novas” (Mt 13,52). Em matéria dogmática, estas coi­
sas novas não são senão a eterna e esplendorosa juventude da
Palavra de Deus.

Não julguemos a vida pela quantidade da literatura. Assim, no


maior vazio do século XVI, encontramos a piedade mariana de S. João
da Cruz, solidamente atestada em sua discrição: a grande obra dèste
doutor nos deixa apenas algumas linhas sôbre a Mãe do Salvador:
poucos enunciados, mas como sente a realidade do mistério de Maria!
Sôbre o desenvolvimento do dogma mariano, ver bibliogra­
fia, n’ 7.
Paralelos do “Magnificat” com o Antigo Testamento

Magnificat Antigo Testamento


L ucas 1,46-55 S e g u n d o a versão grega d o s S e te n ta
44 M in h ’a lm a exalta o Senhor M in h ’a lm a se glorifica no Senhor. SI 34
(33). 3.
*x e meu espirito estrem ece E strem e ç o de alegria
de alegria cm D eus em D eus m eu S a lvador. Hab 3.18.
m eu Salvador. cl. C ântico de A na: I Sam 2.1.

** porque Êk p ô s o s ollios ... Digna-te de p ô r os olhos


na p o b reza na p o b reza
de sua serva. Sim. desde de tua serv a .
I Sam 1,11.
agora tôdns as gerações Tôdas as nações
me cham arão b e m -a v en tu ra d a cham arão b em -a ven tu ra d a
a terra dc Israel. Mal 3,12; cf Qn 30,13.
** Pois o Altíssimo f ê : p o r m im tile fe z p o r ti ( = Israel)
ra n d es coisas, g ra n d es co isa s. Dt 10,21.
anlo è o S eu n om e S a n to è o S e u nom e. SI III (112), 9; cf.
I Sam 2.2.
ío E su a m isericó rd ia (se estende) A m isericó rd ia do Senhor
de gernção a geração (se estende) de época a época
sô b re os que O tem em . S ô b re o s q u e o tem em . SI 102 (103). 17.
11 Cie demonstrou a força Tu e s m a g a r á s . . . os o rg ulhosos e com teu
de Seu braço: braço possante
D isp erso u os homens d isp ersa rá s teus inimigos. SI 88 ( 89). 11.
de coração o rg u lh o so .
** D errubou O Senhor derruba
os poderosos de seus tro n o s os tro n o s dos p rín cip es...
e elevou ns h u m ildes. e coloca os h u m ildes em seu lugar. Kcll
10,14-15 (segundo LXX); cf. I Sam 2,0-8.
s* Sacio u de bens os fa m in to s S a cio u de b en s a alma faminta. SI 100
E deixou o s ricos dc mãos vazias. (107), 9.
Os ricos tém fome e mendigam. SI 33
(34). I I; cf. I Sam 2.5.
44 A p o d ero u -se de Israel seu servo, Tu. Israel, meu serv o , dc quem cu mc
lem b ra n d o -se délc em sua m iseri­ apoderei. Is 41.8.10.
córdia. Cie se lem brou de S u a m isericórdia. SI
97 (98). 3.
Tu farás m isericó rd ia a Abraão
11 (A ss im com o h a via falado a n o s­ como prometeste a n o ssos Pais. Miq 7.20.
so s P a is ) á descendência de Abraão
a Abraão e sua d e scen d ên cia p ara para sem p re. 2 Par 20; cf. 1 Sam 2.10.
sem p re.

A linha geral do Magnificat c inspirada no cântico de Ana por


ocasião do nascimento de Samuel (1 Sam 2,1-10): mesma ocasião, mes­
mo tema teológico (troca de situação entre ricos e pobres), muitos
termos comuns. Em todo caso, para a maioria dos versículos, encon­
tramos em outras partes da Bíblia, analogias mais literárias. Os pa­
ralelos dos versículos 48 e 40 são no sentido de identificação de iMaria
a Israel, como sugerem outras passagens de l.c 1-2.
SEG U N D A PARTE

DESENVOLVIMENTO 1)0 DESTINO DE MARIA


IN T R O D U Ç Ã O À S E G U N D A P A R T E

No limiar desta segunda parte, há dois caminhos à esco­


lha. Podemos adotar a ordem cronológica: seguir o destino de
Maria do começo ao fim. Podemos, também, adotar uma ordem
lógica: instalar-nos de imediato no pensamento de Deus, que
capta cada ser na unidade, discernir nèle o traço fundamental
da criatura “bendita entre tôdas as mulheres”, e dai deduzir o
resto como de um primeiro princípio.
Conveniências e inconveniências do método dedutivo
Tal método é sedutor. Corresponde à nossa necessidade de
unidade e de simplicidade. Melhor ainda, ao louvável desejo de
perscrutar, o mais perto possível, os desígnios de Deus. Infe-
lizmente, porém, êsse método tem seus perigos.
Parte do plano divino; isto é possível, pois que Deus no-lo
revelou. Entretanto, Deus nos revelou êste plano, não em Si
mesmo, e em sua integridade, mas por enunciados fragmentá­
rios, enigmàticamente e não com evidência: nós o captamos de
baixo, através de suas conseqiiências, e Êle, do alto, pelo inex­
primível principio que se identifica com a simplicidade de Seu
Ser. Certamente, temos que tentar aproximar-nos da unidade do
pensamento de Deus, mas permaneceremos sempre longe dêsse
objetivo.
Mais precisamente, um projeto dedutivo implicaria numa
dupla tarefa: escolher o principio de síntese, e em seguida, de­
senvolver suas conseqiiências.
1. A primeira etapa não se apresenta sem dificuldades. Qual
é a intenção fundamental de Deus a respeito de Maria? Esco-
lhê-l’A como mãe e cumulá-l’A de graças? Associar uma cria­
tura à Sua obra saivífica total? Realizar as mais altas possi­
bilidades da Redenção? Exaltar, ao lado do Deus feito homem,
todos os recursos da graça que oferece a feminilidade? Dar à
Igreja, nova Eva, um protótipo perfeito '? Estas são questões
sobre as quais se discute. Cada uma das fórmulas propostas

1 Sôbre estas diversas teorias, ver acima, pp. 101-103.


112 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

constitui um esclarecimento interessante e descobre alguns as­


pectos da unidade do desígnio divino. Não será prematuro fa­
zer nossa escolha de modo definitivo, nessa fase ainda inaca­
bada do desenvolvimento doutrinário? Por nos restringirmos a
um dos princípios propostos, não correriamos o risco de em­
pobrecer o pensamento de Deus como empobreceriamos a luz,
se nos fixássemos apenas numa das côres obtidas pela refra-
ção da luz?
2. Suponhamos nossa escolha decidida. Um segundo pro­
blema surgirá ainda mais árduo: como ordenar nossa dedu­
ção? Já nos é difícil deduzir a ordem lógica de um propósito
humano pouco rico e complexo, quanto mais incapazes nos sen­
tiremos ante os desígnios divinos? Certamente, há uma lógica
no plano divino. Mas nos ultrapassa e nos surpreende mais de
uma vez: entre todos os filhos de lsaí (1 Sam 16,1-13), Javé
prefere o mais jovem, no qual ninguém pensava. Na escolha de
Seus apóstolos, por que êstes pescadores (Mc 1,19-20) ou, pior,
por que êste cobrador de impostos (Mc 2,13)? Por que Pau­
lo, o perseguidor (1 Cor 15,9-10)? E por que Sua primeira
aparição se dirigiu a Madalena, a pecadora, antes que a outros
que pareciam mais indicados? Para tudo isto, podemos segu­
ramente encontrar razões posteriores; ou melhor: discernir ai
uma lógica divina que supera a nossa frágil lógica humana.
Mas, nada permitiría prever o que Deus iria decidir, e sempre
é impossível deduzi-lo estritamente. Nestas matérias, somos fre-
qiientemente vítimas de ilusão retrospectiva, que dá impressão
de necessidade aos mais imprevisíveis acontecimentos. O mais
fortuito êxito, na guerra como no bacharelado, adquire depois
tôdas as aparências do mérito e do valor inconfundível. Outro
risco: deduzindo os privilégios de Maria de modo demasiada­
mente rigoroso, arriscar-nos-iamos a velar duas faces importan­
tes da verdade: a gratuidade do plano divino que parece, por
vêzes, se comprazer em desconcertar nossa lógica humana, e a
maravilhosa liberdade com que Maria correspondeu à graça di­
vina em cada instante de sua vida. Por fim, destruiriamos a
perspectiva personalista tão importante, desde que se trata de
Afaria. Confundiriamos Sua pessoa numa personificação abstra­
t a 3: a maternidade em si, o “consortium Christi Redempto-
ris”, “a essência do mistério da Igreja” (das Wesengelieimnis
3 Èste perigo de abstração foi bem expressado por Ida Friederike
Gorres, Nocturnen, Tagebuch uncl Aufzeichnitngen, Frankfurt am Mein,
1949, pp. 132-133.
Introdução 113

der Kirche), a feminilidade transcendente: “o eterno feminino”


no sentido nobre da palavra. Reduziriamos à dedução lógica
de uma essência o despontar da mais concreta das existências.1
Depois de nos tornar conscientes do perigo não ilusório
de um racionalismo teológico, contra o qual a Igreja tem, por
vêzes, reagido, guardemo-nos de menosprezar o preço da razão
teológica, à qual esta mesma Igreja confere um tão grande va­
lor. Renunciaríamos simplesmente à Teologia, se renunciásse­
mos a esclarecer as admiráveis conveniências que manifesta o
destino de Maria. Estas conveniências dispõem-se entre si de
modo tão harmonioso que, por vêzes, nos darão a impressão
de necessidade: impressão em parte fundada, uma vez que a
mais bela obra de Deus traz, seguramente, mais do que qual­
quer outra, o sêlo da unidade e da simplicidade, e porque Ma­
ria é, entre tôdas as simples criaturas, aquela que foi a mais
fiei ao plano de Deus: Ela não colocou nesse plano os desvios
e as excrescências que deformam o destino dos outros homens.
Entretanto, êste destino não alcança o rigor do destino de Cris­
to. O Tratado que consagramos à Virgem não poderia adotar
uma fórmula lógica tão necessária quanto ao da Encarnação.

3 “Há uma parte demasiado grande de apreciação moral dos valo­


res que se atraem uns aos outros na teologia mariana, para que o
último critério não apareça ai como um modo de sentir ou avaliar mais
do que como uma evidência intelectual”. M. |. Nicolas, Essai de synthèsc
Mariale. em Maria, 1, p. 709; cf. p. 740: “E’ bem verdade que na teo­
logia mariana nada é urgido por uma necessidade metafísica nas leis
da natureza ou nos dogmas essenciais da Encarnação c da Redenção.
Ou, melhor, se há uma necessidade, esta é hipotética. Ela supõe certo
impulso da parte de D eus..." Compreendemos isto pelas citações: pelo
fato de mostrarmos os perigos de uma ordem lógica e preferirmos a
ordem cronológica do desenvolvimento, nós não condenamos toda sín­
tese de tipo dedutivo. A do P. Nicolas, citada acima, denuncia muito
bem o escolho de “converter em necessidade lógica o que é pura gra­
ça”, e sabe equilibrar a dedução das conveniências e o sentimento da
gratuidade. Poderiamos aconselhar a leitura desta outra sintese, cuja
perspectiva completaria harmoniosamente esta nossa.
Para que não se taxe de anti-intelectualismo as notas acima (que
apenas se opõem a um racionalismo ilusório), citamos ainda o duplo
testemunho de dois outros tomistas, de quem ninguém pensará em sus­
peitar, no assunto: “Em Maria, tudo é gratuito. Ela é obra-prima da
bondade de Deus. O teólogo deve, então, respeitar a discrição do Es­
pírito Santo, conformar-se escrupulosamente com o que afirmam a Es­
critura e a Tradição. A lógica intervém menos aqui do que em outros
trabalhos, no do Cristo, por exemplo. Na maior parte das vêzes, não
há laços necessários entre as divinas prerrogativas de Maria". Th.
Philippe, OP, La théologie Mariale, caderno policopiado na Universida­
de Lavai de Québec, p. 18, citado e aprovado por F. M. Braun, OP,
La Mère de Jesus, na Revue Thomiste, 51 (1951), p. 39, nota I.
Breve Tratado — 8
114 li Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

Escolha de posição
Neste conjunto de razões bem pesadas, renunciaremos a
adotar um plano dedutivo, não por princípio, mas por receio
de prejudicar conscientemente, de deformar o mistério de Maria
por uma opção prematura, ou de empobrecê-lo por redução a
um princípio demasiadamente estreito. Aproximar-nos-emos dês-
te mistério pela via mais objetiva, e menos discutível. Seguire­
mos a ordem da vida de Maria, o desenvolvimento progressivo
de seu destino, não somente da Conceição à Assunção —
perspectiva tão estreita que não levaria suficientemente em con­
sideração a integração de Maria na história da Salvação —
mas das preparações do Antigo Testamento à Parusia, onde a
Igreja irá reunir-se a ela em sua glorificação integral. *
Ao adotar esta decisão, não renunciaremos, entretanto, a
descobrir os dois elementos de valor com os quais se relacio­
na o método dedutivo: o centro do destino de Maria e as con­
veniências que nêle manifestam a unidade orgânica. Todavia,
faremos da determinação dêste centro, ao redor do qual tudo
se organiza, um ponto de chegada e não de partida. Quanto
a essas conveniências, que vão até nos darem a impressão de
necessidade, tentaremos apreciar seu valor exato: trata-se, em
qualquer hipótese, não de uma necessidade geométrica que per­
mitiría uma dedução linear, mas dêste gênero de necessidade
que percebemos na ordem da arte ou do amor. Numa obra-
prima, no encontro profundo de dois destinos, tudo parece ne­
cessário e, entretanto, tudo é soberanamente livre e gratuito.
A necessidade que esta obra-prima, que êste amor impõem não
é redutível a uma fórmula; apresenta-se como um conjunto
harmonioso de notas, cujo inventário nunca terminamos. Não
se deixam elas deduzir a partir de um princípio simples, mas
são distinguíveis indefinidamente num conjunto, do qual nada
poderiamos mudar. Assim acontece com alguns versos de Racine,
com a Pietà d’Avignon, com êsse olhar que um casal unido

* Quanto à predestinação de Maria, ela comanda, seguramente, tudo,


mas não poderia constituir um “capitulo", neste plano fundado sobre
a história da salvação, pois a predestinação não é um momento dêsse
desenvolvimento temporal; ela não está apenas antes do inicio do des­
tino de Maria, mas antes e durante, coexistente a cada instante do
tempo, cujo livre desenrolar ela suscita intemporalmente. E’, na con­
clusão, ao determinar o essencial, que tentaremos aproximar-nos, por
meio da abstração, da simplicidade dêste plano eterno que, em Deus,
não é um esquema, mas uma representação total, una e concreta, ao
mesmo tempo. v
Introdução 115

lança sobre seu passado. Assim é, no mais alto grau, com o


destino de Maria, que é a obra-prima de Deus, o fruto do mais
alto Amor que Êle tenha concedido a uma pessoa criada.
A Virgem e o tempo
O partido adotado — que alguns julgarão talvez tímido —
comporta uma vantagem muito positiva. Seguir a ordem cro­
nológica é pôr às claras um fator significativo do destino de
Maria: o tempo. A importância dêste fator sairá de uma du­
pla comparação, com o destino de Cristo e com o dos santos.
1. São Lucas dizia de Jesus menino que êle “crescia em
idade e cm graça” (2,52). Houve, pois, um crescimento não
apenas físico, mas espiritual de Cristo. Mas êste crescimento
é acidental. Quanto ao essencial, Cristo é Deus desde o pri­
meiro instante, e, nesta ordem, não há crescimento possível,
contràriamente ao que imaginaram certos heréticos do tipo
adopcianista. Além desta posse substancial da divindade pela
união hipostática, Jesus tem, desde o primeiro instante, a posse
de Deus pela inteligência que é a visão beatífica: Êle não é so­
mente Deus, mas Se conhece como Deus. Assim, Êle não é como
nós, um peregrino da fé obscura, a caminho da luz da eterni­
dade. Êle possui, quanto ao essencial, a perfeição de Seu des­
tino pessoal s: embora esteja no tempo, Sua personalidade e
Seu conhecimento transcendem a ordem do tempo. Não Lhe
resta possibilidade de crescimento senão na superfície: segundo
os aspectos secundários e acidentais de Sua vida.
Maria, ao contrário, viveu integralmente a condição de pe­
regrina ', que é a de todos os outros homens. A lei do cresci­
mento é, pois, essencial a Seu ser e ao Seu conhecimento: Ela
se tornou Mãe de Deus, viveu na fé, antes de encontrar a vi­
são beatífica, no fim de seu destino terreno. A carreira de Cristo
foi a descida de uma pessoa eterna para o tempo. A de Afaria
é, como a nossa, escalada progressiva do tempo rumo à eter­
nidade: Ela vai do dom gratuito aos méritos, e dos méritos
a novos dons.

5 Durante sua vida terrestre, o Cristo é, ao mesmo tempo itine­


rante, quanto à glorificação (por exemplo Fil 2,7-11) e chegado ao
término, quanto à visão: “Non solum erat comprehensor, sed ctiam
viator", S. Tomás de Aquino, Stimma Theologica, III, q. 7, a. 8.
” Em francês o termo: “voyagère" empregado neste sentido por Pas­
cal (citando Arnauld, em Provinciales, 16), caiu em desuso, “entretan­
to ... não deveria ser substituída... por “voyageuse" segundo a adver­
tência de E. Littré, Dictionnnire, IV, 2548 bc.
116 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

2. E isto nos conduz à nossa segunda comparação: O tem­


po tem mais importância no destino de Maria do que nos dos
outros santos. Antes de tudo, Ela soube melhor que todos os
outros santos “aproveitar o tempo” (como diz São Paulo, Ef
5,16; Col 4,5). Não só Ela o aproveitou melhor subjetivamente,
mas objetivamente Ela foi capaz de maiores progressos. S. To­
más ' observa, com efeito, que o crescimento na graça segue
uma lei de aceleração que relembra, na ordem espiritual, a
queda dos corpos no vácuo: quanto mais uma alma se aproxi­
ma de Deus, tanto mais depressa Ele a atrai; quanto mais ela
é elevada em graça, tanto mais rápida é a sua ascensão. Assim,
o crescimento de Maria, partindo de uma santidade que ultra­
passa desde o inicio a de todos os Santos, vem a ser o mais
vertiginoso que jamais houve. Ela não conheceu os progressos
negativos que são a eliminação do pecado (êstes progressos
tão pouco em harmonia com o tempo, porque implicam em cho­
ques e são o resgate de uma regressão), mas o progresso po­
sitivo por excelência, que é a aproximação de Deus e o apro­
fundamento do amor. Enfim, ainda que o destino de cada homem
oscile entre a nostalgia da lembrança e a impaciência do futu­
ro, Maria soube viver no nível do tempo, “adaptar-se” à du­
ração, colocar todo o passado a serviço do futuro numa espe­
rança sem desfalecimento. Além disso, Ela tem o privilégio de
pertencer a todas as fases do tempo da graça que são em núme­
ro de três: antes de Cristo, durante a vida de Cristo sôbre a
terra, e após Cristo. Ela nasceu e cresceu no Antigo Testamen­
to; depois, Sua vida cobre tôda a duração da vida de Seu
Filho e se prolonga durante o alvorecer da Igreja. Não ape­
nas participa dessas três fases, mas também parece ter rece­
bido a missão de ser a “transição” de uma à outra (o que A
harmoniza à própria essência do tempo). E’ por Ela que, no
dia da Encarnação, Israel dá nascimento a Cristo; nós A vere­
mos exercer um papel de ligação análoga entre a morte de
Cristo e o nascimento da Igreja. Enfim, por Sua Assunção, Ela
antecipa a Parusia; é o liame entre a condição atual e terres­
tre da Igreja e a condição futura, celeste e ressuscitada, para a
qual a Igreja caminha.

' In Ep. ad Hebr., 10,28, ed. Vivès, 21, 67 b. Esta idéia é um dos
principais motivos das obras espirituais do P. R. Garrigou-Lagrange.
Sôbre a aplicação mariana, ver sua Mariotogie, Paris, Cerf, 2' ed. 1948,
pp. 84-88.
Introdução 117

Sigamos, pois, o desenvolvimento cio destino de Maria. Ve­


jamos como Sua vida, Sua missão, Seu ser desabrocham à ma­
neira de uma flor, cujas belezas, no início ocultas, se desco­
brem progressivamente. Nesta progressão, podemos distinguir,
em função do que acabamos de dizer, as fases seguintes:
1. Antes da Anunciação: Maria, coroamento de Israel.
2. Maria no início da vida de Cristo: Sua cooperação na
Encarnação.
3. Maria no fim da vida de Cristo: Sua cooperação na
Redenção.
4. Da morte de Cristo à Dormição: Maria, laço entre o
tempo de Cristo e o da Igreja.
õ. Assunção: Maria, “imagem escatoiôgica da Igreja”. ’
6. Parusia: onde a Igreja se une a Maria no triunfo inte­
gral da Ressurreição.

* Tiramos esta expressão de P. L. Bouyer, Lc culle de Ia Mère


de Dicu, Chevetogne 1950, p. 33.

v
PRIMEIRA ETAPA

ANTES DA ANUNCIAÇÃO.
MARIA, COROAMENTO DE ISRAEL
Importa, de inicio, situar o lugar de AAaria na história da
salvação. Esta história anterior a Cristo é o cenário fechado de
dois movimentos opostos. De um lado, a humanidade é arras­
tada pela dialética do pecado; de outro, as intervenções gra­
tuitas de Deus a conduzem ã Vitória, que será Cristo. A de-
pravação venceu até Abraão; depois, as intervenções de Deus
se tornam cada vez mais eficazes, mas em linhas cada vez
mais restritas, e numa ordem cada vez mais espiritual. Deus
escolheu a família de Abraão, cm seguida, Jacob, de preferên­
cia a Esaú; depois, enquanto os sonhos de grandeza política e
de prosperidade de Israel fracassam, a Graça se concentra pro­
gressivamente numa elite, obscura segundo a carne: “os po­
bres”, os “humildes”, que são o “resto” espiritual do povo
eleito, e finalmente sôbre a flor de Israel, a Virgem Maria.
Reparação, preparação: assim poderiamos resumir os dois
aspectos desta escalada da humanidade em direção ao seu Sal­
vador, dois aspectos estreitamente ligados, um negativo e ou­
tro positivo. Deus purifica pouco a pouco uma linhagem esco­
lhida, a fim de que Cristo nasça sem compromisso com o pe­
cado; nela suscita uma fé cada vez mais perfeita, mais explícita,
a fim de que Sua vinda divina seja a resposta a um desejo,
a uma espera, a uma esperança do homem, que ela seja não
uma espécie de intrusão por surpresa ou violência, mas uma
obra de liberdade e de amor.
Assim, portanto, de Abraão a Maria, um duplo progresso
se realiza: na ordem da pureza moral e na ordem da fé. 1) No
primeiro ponto de vista, é grande a distância do primeiro an­
cestral à Flor de Israel. O comportamento do pai dos crentes
revela-se rude e às vêzes chocante. A Virgem começa pela pu­
reza mais perfeita. Com Abraão, que a Escritura compara a um
“rochedo”, no qual Deus “talhou” a figura de Seu povo (Is
51,1-2), inicia-se, de algum modo, a idade de pedra da salva­
I. Antes da Anunciação 1li»

ção. Nela tudo é vigor e rudeza. Com Maria, chegamos a uma


idade de ouro, em que tôda a perfeição é realizada. 2) No se­
gundo ponto de vista, é uma semelhança profunda, e não mais
um contraste que se impõe: tudo começa pela fé e tudo ter­
mina pela fé. No início, a fé incondicional do povo eleito na
Promessa; no fim, a fé incondicional da Mãe de Deus na rea­
lização da Promessa. E, entretanto, ainda aqui a evolução é
considerável. No princípio, uma fé elementar, que permanece
dependente de uma promessa de prosperidade material; no fim,
uma fé espiritualizada, enriquecida pelo longo desenvolvimento
da Revelação: a mensagem da Anunciação constitui sua eta­
pa decisiva.
Aprofundemos êste duplo mistério: o da Imaculada Con­
ceição, coroamento transcendente da longa reparação moral rea­
lizada por Deus em Israel; o da fé de Maria, coroamento ho­
mogêneo da longa preparação para a vinda do Messias.
1. A Imaculada Conceição
O destino de Maria começa por uma ação gratuita de Deus,
uma ação singular que, sem nenhum mérito de sua parte, afas­
ta dela todo o pecado, e todo traço, por mais leve que seja,
do pecado. Pio IX definiu tal privilégio nestes têrmos:
No primeiro instante de Sua conceição, pela graça e pelo pri­
vilégio de Deus Todo-Poderoso, e em consideração aos méritos de
Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, a Virgem Maria foi
preservada e isenta de tôda mancha do pecado original.*
’ Eis os dois textos em paralelo:
ALEXANDRE VII P lü IX
Bula Sollicitudo, 8 de dezembro Bula Incffabilis, 8 de dezembro
de 1661 de 1854
Btillarium Taurinense 16, 789 Acta Pii IX, Ia, 616
(Denzinger 1100) (Denzinger 1651)
VETUS EST Christi fidelium DEF1NIMUS
e rg a ... beatissimam Matrem
PIETAS SENTIENTIUM doctrinam quae tenet
eius ANIMAM beatissimam Virginem MAR1AM
in primo instanti in primo instanti
creationis et infusionis in corpus suae conceptionis
fuisse speciali Dei fuisse singulari omnipotentis Dei
gratia et privilegio gratia et privilegio
intuito meritorum Icsu Cliristi intuitu meritorum lesa Christi
eius F1LII Salvatoris humani generis
humani generis Redemptoris ab OMNI originatis culpae labe
a macula peccati originatis praeservatam immunem
praeservatam immunem. esse a Qeo_ REVELATAM.
Colocamos em itálico os têrmos idênticos, em maiusculas as três
diferenças importantes: I) Alexandre VII aprova a doutrina da preser-
120 11 Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

Esta fórmula dogmática — cujos têrmos foram intencio­


nalmente tirados da Bula Solliciludo de Alexandre Vil ’ — con­
cilia e consagra as duas exigências tradicionais, aparentemente
contraditórias, que deram lugar a tantos conflitos: 1. Maria é
absolutamente isenta, desde o início, de tôda mancha do peca­
do original. 2. Entretanto, esta filha de Adão foi salva por Jesus
Cristo. A dificuldade de ajustamento dessas duas exigências era
da ordem do tempo: Como Maria, concebida segundo as leis
ordinárias, não havia incorrido, por um instante que fôsse, no
pecado da raça — à qual Ela pertencia? Como podia Ela ser
salva anles que Cristo resgatasse o mundo? Estas duas difi­
culdades são resolvidas em duas palavras: preservação, pre­
visão: a Virgem foi preservada do pecado original, em previsão
dos méritos de Jesus Cristo; assim foi Ela mais perfeitamente
resgatada que qualquer outro: sublimiori modo redempta. *10
Neste admirável texto, de precisão e de concisão, o papa
se ateve à mais correta doutrina. Estabeleceu deliberadamente
sua definição aquém de tôdas as questões particulares e con­
trovérsias de escolas. Uma delas, entretanto, está equivalente­
mente resolvida: Maria foi isenta da tendência para o mal
(concupiscentia) que, sem ser falta (culpa), é mancha (ma­
cula), deixada pelo pecado original. Outros pontos dão ainda
lugar a discussões, por vêzes inextricáveis. Penso, em particular,
na famosa questão do debitum, objeto de uma controvérsia
apaixonada. " Teria Maria incorrido numa “dívida de pecado”
(debitum pcccati)? Esta questão parece corresponder, em gran­
de parte, a um vocabulário infeliz e a um falso problema, pois,
em principio, a resposta é simples: De um lado, é bastante
claro que Maria, como filha de Adão, tem uma divida... de
reconhecimento para com Deus que, por sua gratuita preven­

vação original como uma crença piedosa (pietas sentientium); Pio IX


definiu que ela é doutrina revelada. 2) Pio IX suprime as distinções
relativas â alma e ao corpo, e transporta o privilégio à pessoa de Ma­
ria. 3) Pio IX exclui mais radicalmente tôda mancha do pecado.
10 Bula Ineffabilis, ibid., p. 605.
" Cêrca de uma centena de artigos tem sido consagrada a esta
questão em 1954-1955. Limitemo-nos a remeter os leitores ás judiciosas
notas de G. Philips, Quelques réflexions stir les prêsupposês dit “ de­
bitam pcccati" de Ia Sainte Vicrge, em Ephem. mar. (1955), pp. 87-94.
Cf. também Publications mariologiques, em Ephem. Theol. lov., 31
(1955), p. 112: “0 problema... nem mesmo é inteligível para aque­
les que, como os orientais, não raciocinam em têrmos de lei geral e de
exceção... A importância dada a esta controvérsia nos parece ultra­
passada. Ela nos faz correr o risco de obscurecer... as linhas mes­
tras da exposição doutrinária”.
I. Antes da Anunciação 121
ção, a subtrai ao pecado universal da raça da qual Ela é oriun­
da. De outro lado, esta divida de modo algum constitui má­
cula ou sombra sôbre sua luminosa pureza. Se eu impeço uma
criança de cair num atoleiro, poder-se-á dizer que ela esteja
suja só pelo fato de que ali deveria ter caido sem a minha
intervenção?
Neste início do destino de Ataria, tudo é gratuito da parte
de Deus. E’ no primeiro instante que é cumulada: antes de
haver podido executar algum ato meritório. Atas a gratuidade
dêste dom que procede (por antecipação) unicamente dos mé­
ritos do Homem-Deus não nos deve fazer ignorar o laço dêste
mistério com tôda a preparação anterior. Primeiro, Deus cuida
de não alterar aqui a continuidade da biologia, essencial à uni­
dade da raça humana ou mesmo o processo ordinário para a
geração humana. A esta continuidade perfeita na ordem da car­
ne corresponde uma continuidade imperfeita, na ordem da gra­
ça. Ao consagrar aos pais da Virgem, os únicos entre os perso­
nagens do Antigo Testamento, duas festas litúrgicas solenes e
universais, a Igreja entende que nêles a longa purificação mo­
ral do Antigo Testamento havia atingido o pináculo: faltava
ainda a liberação dos laços do pecado original. E’ esta última
etapa que Deus realiza “no primeiro instante da conceição”
de Maria.
Na forma abstrata da definição dogmática, da qual tôdas as
palavras são pesadas para impedir interpretações inadmissíveis,
importa atingir o coração do mistério. E’ um mistério de amor.
Êste amor havia sido revelado de longe; Deus o havia decla­
rado a Seu povo, no Antigo Testamento. Este povo era para
Êie uma esposa bem-amada, diziam com fôrça crescente os tex­
tos proféticos: Os 2; Jer 31,17-22; Is 54,4-8; 71,10-11; Cân­
tico. Mas estas declarações de amor causavam um paradoxo
desconcertante. Israel era uma esposa “adúltera”. Havia-se
prostituído aos falsos deuses. Oséias traduzia êste fato com um
realismo enérgico (Os 2; cf. Ez 16). Ora, Deus iria receber
esta esposa desonrada, não como uma culpada perdoada, mas
como uma noiva tôda jovem e sem mancha. Seria isto possí­
vel? Não, de acôrdo com os meios humanos. E, entretanto, a
promessa paradoxal se realiza em Maria: não sòmente Deus a
cumula de graças, mas desde a origem A preserva de tôda a má­
cula. Assim se verifica plenamente em Sua pessoa a palavra
122 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

de Deus a Seu povo (Cânt 4,7) que poderia parecer figura


poética: “Tu és tôda bela, e não há mancha em ti" .”
O amor divino que, ao contrário do nosso, não depende de
seu objeto, mas o cria, e aqui se expande livremente. Mesmo
no seio do mundo envelhecido, êle retoma a criação em sua
fonte. Fêz de Maria a mais amável, a mais atraente das cria­
turas: n'Ela Deus poderá, sem comprometer-se com o pecado,
estabelecer sua morada.

O velho argumento tirado do Cânt 4,7 a favor da Imaculada


Conceição ganha valor de nôvo, se presumirmos com A. Robert (Cân­
tico dos Cânticos, curso policopiado do Instituto Católico de Paris,
1947-1948) que o Cântico é o resultado da Teologia paleotestamentária
das relações entre Javé e Israel.
No ponto de partida (Os 2), o povo de Deus é apresentado como
uma esposa adúltera. Javé anuncia, entretanto, que irá aceitá-la nova­
mente como noiva. A chave dêste paradoxo já está no grande tema
lançado por Isaías: Deus é capaz de recuperar de nôvo as coisas no­
vas, Êle fará nos últimos tempos uma nova criação. No apogeu desta
série de textos sôbre os esponsais de Javé e de Israel, o Cântico canta
a renovação total das relações de Javé e Israel. Nenhuma alusão mais
ao adultério. A esposa infiel torna-se pura e simplesmente “sem má­
cula". Onde esta profecia se realiza, senão na Igreja e, antes de tudo,
na raiz, na pessoa de Maria, que é o ponto de transição onde Israel
maculado se torna Israel nôvo, sem mancha nem rugas?
Conheço bem a objeção que M. Robert em pessoa endereçou con­
tra a aplicação mariana do Cântico: “Êle celebra o amor misericordio­
s o . . . que nós ofendemos. As expressões do Cântico não se podem apli­
car à Santíssima Virgem nem no sentido literal — por mais pleno que
seja — nem mesmo no sentido típico, mas somente no sentido acomo-
dativo, isolando-as da idéia central que as anima” (A. Robert, em Maria,
I, p. 33). O argumento seria eficaz se o Cântico falasse expressamente
do pecado de Israel e da misericórdia que lhe é feita. Mas precisa­
mente — e M. Robert o reconhece do modo mais formal — as faltas
de Israel “são tão completamente perdoadas que nenhuma menção ex­
plicita lhe é feita (ib id .)”. Sem dúvida, o escritor inspirado não com­
preendeu como Deus realizaria esta volta à pureza originária. Mas a
declaração aparentemente hiperbólica, do rei Javé a Israel: “Não há
mancha em ti” não se fêz ao pé da letra, mas nesta nova criação que
começa com a Imaculada Conceição de Maria. Desde que êste sentido
se verifica objetivamente, desde que êle foi reconhecido (ainda que
com modalidades deficientes) por uma abundante tradição, o teólogo
teria fundamento para ver ai, com razão, um “sentido pleno" ou ultra-
sentido correspondente a um designio de Deus, autor principal da
Escritura.
Podemos dizer a mesma coisa do texto de Jer 31,22, eliminado por
A. Robert (ibid., pp. 24-26). Nêle, afinal, sua exegese é excelente, mas
lhe ignora o alcance. Esta mulher que “vivia à volta” de falsos deu­
ses e que, convertida, dirige-se a Javé, é Israel. Mas em quem esta
conversão total e sem divisão é plenamente realizada, senão em Maria
e na Igreja? Numa palavra, estas profecias têm alcance mariano, desde
que com Lucas se veja em Maria a Filha de Sião escatológica, momen­
to privilegiado em que Israel se transforma na u va criatura : --m d.i-
xar de ser Israel.
I. Antes da Anunciação 123

2. A perfeição de Israel em marcha para a salvação


Êste fluxo de graça livre e franco eleva a Maria para Deus
num imenso impulso de fé e de amor. Segundo a lei pela qual
as criaturas mais cumuladas de Deus são também as mais se­
dentas d’Êle, a sêde de Maria a respeito do Altíssimo ultrapassa
em intensidade qualquer outro desejo que tenha existido ou vá
existir. Assim chegada à sua perfeição, a expectativa de Israel
recebe sua resposta. Para bem compreender o alcance desta
resposta (o Anúncio da Encarnação, que será objeto do capí­
tulo seguinte), importa assinalar um outro aspecto do mistério
da Imaculada. Até aqui, tivemos em vista o mistério com rela­
ção a Deus. E’ necessário observar a situação que êle confere
a Maria na humanidade.
Por sua total santidade, que renova a régia santidade de
nossos primeiros pais, Maria se eleva acima de todos os ho­
mens; única, perfeitamente agradável a Deus, por todo o Seu
ser como por todos os Seus atos, ela é a primeira das criaturas,
a rainha da criação. Esta situação régia a afasta do resto dos
homens? Seria um grave êrro pensar assim. E’ exatamente o
contrário. Esta rainha viveu humildemente no mundo dos po­
bres. Rainha na ordem espiritual, isenta do pecado que isola
e separa, cumulada de graça que desabrocha e une, Ela é a
mais humilde serva ao mesmo tempo que a mais elevada rai­
nha: a mais humilde serva porque é a mais elevada rainha.
Tocamos aqui num aspecto importante do desígnio de Deus:
Êle criou o homem — num ponto que jamais compreenderemos
bastante — sob a lei da Unidade (cf. At 17,26; Col 3,15, etc.)
e da solidariedade. Êle confiou a cada criatura uma responsa­
bilidade, na medida de seus dons. Quanto mais Êle eleva os
homens, mais os chama a servir, de sorte que o maior seja “o
servidor" e “o primeiro... o escravo de todos” (Mc 10,43-45).
Assim, o Cristo-Cabeça, o “Primeiro” por excelência (Apoc 1,17),
é também “o Servidor” por excelência (Is 53), vindo “não
para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45 e Mt 20,28; cf.
Jo 13,12-18 e Lc 12,37). Êle é o supremo responsável pela hu­
manidade, o Salvador universal retomando em sua pessoa as
responsabilidades traídas pelo primeiro chefe, Adão. Maria, a
primeira das simples criaturas é, após Êle, a serva por exce­
lência, a mais responsável dos homens: esta responsabilidade to­
mará, progressivamente, a forma de uma maternidade espiritual
universal, cujo espirito Ela teve muito cedo. Abraão, primeiro
beneficiário dos dons de Deus na origem do plano de Restau­
124 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

ração, compreendeu depressa que era responsável pelos homens.


Diante de Sodoma e Gomorra, as cidades estrangeiras, êle se
sente já “pai das nações” (cf. Gn 17,4 e 5): empenha-se numa
audaciosa intercessão (cf. Gn 18,17-33). Maria não lhe podia
ser inferior. Antes da vinda de Cristo, Ela é a suprema inter­
cessão. No mundo que necessitava do Redentor, a primeira das
resgatadas, a suprema resgatada, começa Sua vocação de advo­
gada. Ela é, na cúpula da humanidade, a representante, a fia-
dora, a responsável, que tomará posse da Salvação: serva dos
homens no próprio impulso que A fêz “serva” de Deus
(Lc 1,38).
A Igreja compraz-se em distinguir diversos momentos da
vida da Virgem antes da Anunciação: a Natividade, primeira
aparição visível daquela em quem a Salvação será dada; a
Apresentação, primeira expressão visível de seu impulso para
Deus. A\as todos estes momentos não são senão manifestações
de um único mistério onde podemos distinguir três aspectos:
o dom divino, a resposta de Maria a Deus e Sua intercessão
pelo mundo. Este mistério fêz d’Ela, em certo sentido, o vér-
lice da humanidade. Esta expressão sintética corresponde, en­
tretanto, a duas restrições importantes. De um lado, Maria não
é senão vértice provisório da humanidade. O verdadeiro vér­
tice é o único Chefe, é Cristo, a quem Ela é destinada a aco­
lher. De outro lado, se Ela é o vértice de Israel, é apenas na
ordem espiritual e interior. Ela não tem lugar algum na hierar­
quia sacerdotal, no ensino e no culto públicos: funções reserva­
das aos homens. Não será Ela, mas João Batista quem prepa­
rará oficialmente a vinda do Messias. Sua missão, conforme
sua condição de mulher, é oculta, tôda de riqueza intima: aco­
lhida, frutificação e irradiação da graça divina.
SEGUNDA ETAPA

MARIA NA ENCARNAÇÃO.
A MATERNIDADE DIVINA
O momento crucial c!o destino de Maria, o clímax de tudo
o que precede e o fundamento de tudo o que se segue, é a
Anunciação: a Virgem adquire ai uma grandeza de uma nova
ordem. Torna-se Mãe de Deus. O mistério desafia qualquer ex­
posição linear. Sua riqueza não se deixa encerrar numa simples
visão. Sua lógica é a de uma obra-prima e não a de uma de­
dução. Para descrevê-la, é necessário recorrer a sucessivas
perspectivas cuja recomposição deixa entrever, além do que po­
demos conceber, esta lógica e esta riqueza. Estudaremos, então,
sucessivamente, a razão fundamental dêste privilégio, a santida­
de com que Deus a envolve, sua essência e suas harmonias
principais.
A maternidade de Maria, meio da Encarnação
Para compreender a significação da maternidade divina, é
preciso ultrapassar a pessoa de Maria. Com efeito, se Deus Se
encarna, não é antes de tudo para glorificar a mais amada de
Suas criaturas, é “propter nos homines et propter nostram sa­
ltitem”. A maternidade divina é, de inicio, o meio pelo qual
realiza o mistério da Salvação. 13
Por que Deus quis tal meio? Por que o Verbo preferiu
nascer de uma mulher (Gál 4,4), ao invés de descer do céu
com um corpo formado pela mão de Deus, como o primeiro
Adão (Gn 2,7)? E’ que èle queria ser o autêntico rebento (Is
11,1) da raça que iria salvar; queria salvá-la do interior, não
pelo socorro vindo de cima, mas por uma salvação tirada de
Si mesmo; Ele desejava socorrê-la, não como um estrangeiro,
mas como um irmão, também perfeitamente homem, da raça
dos homens a resgatar, e perfeitamente Deus, da raça do Deus
11 A salvação é ao mesmo tempo o bem dos homens salvos (fim
próximo) e a glória de Deus (fim último). Esta glória é subentendida
no propter nos homines que não deve ser tomada como uma negação
do teocentrismo.
126 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

ofendido, logo, um mediador perfeito, reunindo em Sua pessoa


os dois partidos a conciliar.
A missão fundamental de Maria é, pois, de unir o Salva­
dor à raça humana. Esta consideração' afasta as ilusões às
quais os mariólogos são, às vêzes, muito inclinados, e que
desfiguram o plano salvador. Afaria é menos o fim que o meio
da Encarnação. Sem dúvida, Ela é a primeira das criaturas.
Mas Aquele que “não veio chamar os justos mas os pecadores”
(Afc 2,17), e deixa as ovelhas fiéis para procurar a desgarrada
(Mt 18,12), não veio primeiro para alegria da imaculada, mas
para a Salvação do mundo.
Querería isto dizer que Maria foi um meio sem importân­
cia, um simples meio, como o pão empregado na missa para
ser transformado no corpo de Cristo? Assim pensariam muitos
protestantes, e os teólogos católicos dizem, às vêzes, que Deus
teria podido realizar as coisas assim.
Esta hipótese tem, logo de início, o defeito de encarar o
Poder divino com abstração de Sua sabedoria e Seu Amor. Pa­
rece muito temerário imaginar que êste Deus, que respeita tan­
to a liberdade humana, teria podido encarnar-se de surpresa;
que êste Deus, que Se desvela com tanto amor para com as
pessoas humanas (Jo 15,15), teria podido tratar a mais pró­
xima d'£!e como um simples meio; que êste Deus, cuja pre­
sença é transformante, teria podido viver na intimidade de Sua
mãe sem a transformar; enfim, que Aquêle que estabeleceu o
preceito “honrarás teu pai e tua mãe” teria podido deixar sem
honra Aquela que O gerou. A hipótese em que a Afãe do Homem-
Deus seria estranha à obra da graça parece responder menos
a um outro plano possível, que à idéia falaz de um outro Deus
que não o que conhecemos.
Alaternidade santa
Qualquer que seja a hipótese a êste respeito, basta consi­
derar os fatos para ver que a maternidade divina foi pene­
trada pela graça de modo bastante singular. Afaria é bem-aven­
turada, não apenas porque Deus realizou n'Ela “grandes coi­
sas” (Lc 1,49), mas “porque Ela acreditou” (Lc 1,44). Do lado
de Deus que propõe e intervém miraculosamente (Lc 1,28.35),
do lado da Virgem, que se abre à Sua mensagem e à Sua ação
(1,38), o acontecimento inaugural da Redenção é integralmente
puro, integralmente religioso. Examinemos estas duas faces, hu­
II. Maria na Encarnação 127

mana e divina, ascendente e descendente, da Santidade da


Anunciação.
. . . santa por parte de Maria
1. Aquela a quem Deus dirige Sua mensagem é santa: Ela
é a “kecharitõménê” (Lc 1,28), o objeto de tôdas as compla-
cências divinas; e nós sabemos que Deus levou estas compla-
cências até preservá-la do pecado original e a Lhe conferir a
plenitude da graça. Seu estado é santo: Ela é virgem (Mt 1,18,23;
Lc 1,27), e a virgindade voluntária e votiva (Lc 1,34) realiza
muito precisamente o conceito de santidade, pois que Ela é
separação relativa às criaturas, em vista de pertencer total­
mente, de corpo e alma, a Deus. Enfim, o ato pelo qual Ma­
ria se abre à ação divina é santo. E’ um ato de fé, de obediên­
cia e de humildade (Lc 1,38; cf. 1,45).
Se considerarmos o fato da Anunciação sob êste ângulo,
seremos tentados a ver na maternidade de Maria o fruto nor­
mal de sua perfeita santidade. Perceberemos, com efeito, entre
a perfeição de Maria antes dêste dia e a que Ela adquire na­
quele dia, uma espécie de continuidade que os Padres da Igreja
gostavam de exprimir por fórmulas desconcertantes como estas:
“Aáaria concebeu antes em Seu espirito do que em Seu cor­
po” " ou ainda “Ela concebeu a carne de Cristo pela fé”. ” Que
quer isso dizer? Primeiro, que a maternidade divina é prepara­
da pela fé de Maria, que ela é proposta à Sua fé, que ela se
realiza em virtude de um acontecimento que é um ato de fé.
Em seguida, êste ato de fé, de fé perfeita, alcançado pela ca­
ridade, é meritório: Maria merece Sua maternidade não, certa­
mente, por um mérito de justiça (de condigno), fundado na
igualdade entre a obra realizada e a recompensa, mas por um
mérito de conveniência (de congruo), baseado na delicadeza e
amizade. Reconhecemos aqui o desígnio de Deus, que se com­
praz em fazer não apenas desejar, mas merecer, aos homens,
os mais gratuitos de Seus dons. Há mais. A maternidade de
Maria não é apenas uma consequência e como que uma recom­
pensa de Sua fé, mas ela parece ser Seu reflexo e o sinal rea­
lizado. Com efeito, entre o ato espiritual, pelo qual a virgem
aceita a Encarnação, e o ato físico, pelo qual gera o Salvador,*29
“ “Fide plena, et Christum prius mente cjuam ventre eoncipicns. .
Santo Agostinho, scrmo 215, n. 4. PL 38, 1074. Cf. São Leão, s. I, in
Nativ., C. I. PL 54, 191 B: “Prius mente quam eorpore.. etc.
“ “Christi carnem fide concipit". Santo Agostinho, Contra Faustum,
29, 4, PL 42, 490.
128 li Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

há estreitas semelhanças, estreitas correlações. Um e outro têm


o mesmo objeto: o Verbo Encarnado. Um e outro merecem o
nome de “Conceição”, pois a palavra conceber designa mais o
ato da inteligência do que o da geração. E aí há mais do que
um jôgo de palavras: alguma coisa que vem da natureza da
fé. Como a conceição, a fé, no plano espiritual, é uma acolhida
fecunda de uma semente da vida. Ao receber a Palavra, di­
zem os Padres, todo cristão “concebe a Deus em seu coração”. “
Nesta perspectiva, a fé supõe uma espécie de maternidade di­
vina, espiritual; e a maternidade divina física de Maria apa­
rece como a irradiação de Sua fé na sua carne. Chegou-se mes­
mo quase ao extremo de afirmar que o grau supremo e por
definição único da fé, exigiría, como frutificação co-natural, a
Encarnação.
Evitemos os extremismos. Cairiamos num êrro inverso da­
quele que afastamos há pouco. Falsa era a idéia de uma en­
carnação realizada de surprêsa numa mãe deixada à margem
da graça.
Falsa, a idéia de uma santidade tal que a maternidade di­
vina Lhe seria devida por justiça, pois nenhuma santidade po­
dia igualar êste dom da ordem hipostática. Entre a santidade
de Maria e Sua maternidade, há, então, continuidade ou des-
continuidade? Aqui, como na ordem da moderna física, não po­
deriamos resolver a alternativa pela eliminação de um dos têr-
mos. Eles são correlativos: as afirmações dos Padres põem às
claras uma continuidade relativa entre a fé de Maria na En­
carnação e a realização, n’Ela, dêste Mistério; mas sob outra
relação, há descontinuidade; a Encarnação fôra vertiginosamen­
te preparada. Ela não rompe com o que a precede. Mas a pro­
posição e a realização dêste mistério estão além do que podia
resultar de um supremo grau de fé e de graça. A Anunciação
foi, tanto no plano do espírito quanto no da carne, um dom
gratuito, imprevisível, ainda ao mais penetrante dos anjos.

. . . santa por parte de Deas


2. Examinemos, então, o aspecto divino e transcendente da
santidade da Anunciação. Este mistério não é o simples resul-

’* “Quod miramini in carne Mariae, agite in penetratibns animae.


Qui corde credit ad iastitiam concepit Christum; qui ore confitetur ad
salutem, parit Christum". S. Agostinho, Sermn 191, 4, PL 38, 1011.
Cf. Sermo 189, 3, PL 38, 100G, etc.
II. Maria na Encarnação 129

lado de um processo ascendente, como a flor que desabrocha


no cimo da haste (Is 11,1). E’ também, e sobretudo, uma pos­
sessão gratuita e sem precedente de Deus em Maria, e, por aí,
no mundo: é o Espirito Santo que age (Lc 1,35; Mt 1,20).
E nós sabemos pela Bíblia que a ação de Deus tem por objeto
a santidade. Êle agiu do aito, introduzindo uma ruptura no curso
natural das leis biológicas, e uma mutação inaudita igualmente
na ordem da graça. Aqui nada. exprime melhor do que o texto
inspirado.
O Espirito Santo virá sôbre ti e a virtude do Altíssimo te
cobrirá coin sua sombra. Eis por que o Santo que nascerá em
ti será chamado Filho de Deus.
E’ a réplica da vinda de Javé à arca da aliança, paciente­
mente construída pela mão do homem, quando ela se tornou
a morada do Deus da Santidade.
A nuvem cobriu com sua sombra o Tabernáculo e a glória
de Deus encheu a morada ( ê x 40,35).
Em ambos os casos, Deus veio do alto, e encheu com Sua
Presença de glória um lugar escolhido entre todos. Mas em
Maria, nova arca da aliança, é um nôvo modo de presença que
se realiza, de outra ordem: não mais apenas da ordem da ação,
mas na do Ser. Deus em pessoa assume a realidade física e
substancial de um nôvo ser humano. Daí em diante, “a pleni­
tude de Deus” habita “corporalmente” neste mundo (Col 2,9;
cf. Jo 1,14). E, ao mesmo tempo, eis Maria, templo vivo em
que Deus toma corpo, “repleta da glória de Deus” (cf. êx
40,35), num sentido bem mais profundo que o antigo taber­
náculo. Ei-I’A, irradiante de uma nova santidade, na medida
d’Aquêle que n’Ela reside, numa íntima transfusão de sangue
e de graça. Êste nôvo estado de santidade, que ultrapassa de
muito tudo o que Maria conheceu até ali, toma para Ela a mais
humana, a mais concreta das significações. Eis realizados, na
unidade, os dois impulsos mais íntimos de Seu coração: Seu
desejo de mulher aspirando à maternidade, e Seu desejo de
santa, aspirando a ser tôda para Deus, nesta forma total de
consagração que é a virgindade. Estas duas aspirações, incom­
patíveis segundo a ordem da natureza, o Espírito as realiza
na unidade, para além mesmo do que Ela podia razoavelmente
desejar, além mesmo do que Ela podia conceber.
Breve Trnt.ido —9
130 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria
Alaternidade divina"

Esta última consideração nos faz chegar a uma nova etapa.


Dc inicio, encaramos a maternidade de Maria como meio da
Encarnação. Acabamos de ver quanto esta maternidade é santa,
pelo lado de Deus que a dá, e do lado de Maria que a recebe.
Afas esta maternidade não 6 apenas santa, ela é divina e é esta
dimensão fundamental que nos é mister agora explorar.
Maternidade divina: êste epíteto pode ser compreendido em
três sentidos, segundo a causalidade exemplar, eficiente e fi­
nal. Esta maternidade tem Deus por modelo, por princípio e
por têrmo. E’ o terceiro sentido que é fundamental, pois é o
único que permite dizer que Maria è mãe de Deus. Entretanto,
os dois outros são verdadeiros e não são indiferentes. Tam­
bém nós nos elevaremos progressivamente do primeiro ao últi­
mo desses três sentidos.
1. A maternidade da Virgem poderia, de início, ser cha­
mada divina, porque foi conformada ao modelo da paternidade
divina. Deus fêz da filiação humana do Verbo a imagem de
Sua filiação divina. Cumulou Afaria de uma santidade sem má­
cula, à semelhança do Pai. Desejou que a geração temporal
do Verbo fôsse virginal segundo o modêlo da geração eterna.
Relembremos aqui, ainda, o que os Padres nos dizem do pa­
pel da fé dc Afaria na Encarnação: Sua maternidade asseme­
lha-se à paternidade celeste no sentido de que é o fruto da fé,
quer dizer, de um ato espiritual, de um ato santo. Esta har­
monia vai muito longe. Apreendemos o mistério da primeira
processão trinitária sob dois conceitos: concepção de um Verbo
(por analogia com o ato de inteligência humana) e geração de
um Filho. Assim também, a ação de Afaria na Encarnação é
concepção espiritual pela fé, antes de ser geração fisica pelo
corpo. Guardemo-nos, entretanto, de forçar esta relação até à
confusão. A analogia permanece remota. Enquanto que a dua­
lidade conceituai (ato intelectual — ato gerador) é apenas re­
lativa à nossa maneira de conceber, quando se trata da Trin­
dade, ela é real, quando se cogita de Afaria. O Pai celeste
realiza um único ato que compreendemos sob duas modalidades
complementares, e Afaria realiza dois atos de ordem diferente,
embora vitalmente ligados: um em Seu espírito e outro em
Sua carne. O ponto mais preciso da analogia não está, pois, no
"C=

" Indicações bibliográficas sóbre a maternidade divina, no fim des­


ta obra; Bibliografia, n* 11.
II. Maria na Encarnação 131

ato gerador, mas no que dêle resulta: a geração eterna e a


geração temporal têm o mesmo fim. O Filho do Pai Eterno
e o Filho de Maria não são dois Filhos, mas um único e mesmo
Filho: a segunda pessoa da Santíssima Trindade. E c esta
semelhança fundamental que comanda tôdas as outras; coloca a
maternidade divina na órbita da paternidade divina, como um
misterioso satélite.
2. Divina, segundo Sua semelhança ao arquétipo trinitário,
a maternidade de Maria o é ainda em sua causa: Maria con­
cebe “do Espírito Santo” (Mt 1,18;20). Na Virgem, que havia
renunciado a “conhecer homem” (Lc 1,34), para pertencer ape­
nas a Deus, Deus supre, de modo, evidentemente, todo espiritual
e transcendente, o papel que cabe ao varão nas outras gera­
ções humanas. E é êste caráter espiritual e transcendente que
a fórmula decididamente rica dos Padres sublinha: “Maria con­
cebeu o Verbo pela fé”. Como o batizado renasce, “não da
carne, nem da vontade do homem”, mas “da fé e do Espirito
Santo”, assim Cristo, exemplar da nossa adoção, nasce em Ata­
ria (Jo 1,13).
3. Divina em seu princípio, a maternidade de Maria é tam­
bém divina em seu fim. A Santíssima Virgem não é apenas mãe
à imagem de Deus, e mãe por Deus; Ela é também, e sobre­
tudo, Mãe de Deus. E as outras modalidades divinas de Sua
maternidade são ordenadas para esta: se Deus intervém, se
conforma a maternidade de Maria ao modelo da Paternidade
divina, é a fim de fazê-la digna de Deus, Seu Filho. Êste liame
foi profundamente percebido pelos Padres, que dizem sob di­
versas formas: uma geração virginal, uma geração que tem por
principio a intervenção do próprio Deus, não podia ter por
objeto senão a Deus, e a maternidade divina não podia ser
senão virginal. ” Percebemos nisso, ainda, uma das conveniên­
cias profundas, cuja necessidade merece, num grau paralelo,
o nome de gratuidade, como dissemos mais acima.
De modo que Maria é Mãe dc Deus no sentido deduzido
por São Cirilo: não Mãe da divindade, mas, pela geração hu­
mana, verdadeiramente mãe de um Filho que é Deus; não mãe
de um homem que se uniria a Deus, mas de um homem que,
desde o instante de Sua conceição, é pessoalmente Deus. Se

'* Êste ponto de vista patristico foi esclarecido por J. B. Terrien,


SJ, La Mère de Dicu, Paris, Lethielleux, 1900, I, VI, c. III, § 3, t. II,
pp. 153-164. Cf. também, J. M. Bover, em Estúdios Marianos, 8 (1949),
pp. 185-231.
132 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

Jesus não recebeu de Sua mãe Sua personalidade divina, eter­


na e preexistente, isto não restringe o privilégio de Maria a
uma semimaternidade? Absolutamente, pois as outras mães não
conferem também aos seus filhos a alma e a personalidade, e,
entretanto, são verdadeiramente mães: não apenas mães da car­
ne que elas formam, mas também mães da pessoa humana,
criada por Deus, que subsiste nesta carne. Assim, também, Ma­
ria não é mãe só da carne de Jesus; Ela é mãe da pessoa que
subsiste nesta carne, e esta pessoa é divina. Ela não é apenas
mãe do corpo de Jesus; Ela é mãe de Jesus que é Deus. '**
'** O principio filosófico adotado aqui é que, no caso da espécie
humana, a maternidade se refere à pessoa. O sentido psicológico e “per­
sonalista” dêste princípio é evidente. Vale a pena mostrar as suas ba­
ses objetivas.
O princípio fundamental é que tôda relação fundada sôbre uma
ação se aplica, com pleno direito (como sendo essa própria ação), no
ser concreto, no sujeito existente, visado ou modificado pela ação.
Se curamos ou transportamos alguém, é propriamente sua pessoa que
é curada ou transportada, e não teria nenhum sentido o fato de ima­
ginar que a ação possa ser exercida sem atingir a pessoa à qual ela
confere uma determinação.
Esta verdade, que tôda ação concernente a uma pessoa se refere
a esta pessoa, se realiza segundo uma acepção mais alta, quando se
trata de uma ação cujo termo mesmo é a ordem substancial. Assim
é na geração. O que é gerado é, pois, de pleno direito e sempre, um
sujeito substancial da existência, e, tratando-se do sujeito de uma na­
tureza racional, de uma pessoa.
Objetar-se-á: “A causalidade própria dos pais é de ordem mate­
rial: êles dispõem da matéria viva, Deus só cria a alma. Êles são
causas eficientes da matéria, e Deus, causa da forma, onde reside o
princípio de substância”. Esta objeção não seria suficiente para pôr
em discussão os princípios enunciados acima. Entretanto, aceitando esta
consideração, seriamos tentados a dizer que os pais são simples agen­
tes biológicos da formação de um corpo, ao qual Deus comunicaria
uma alma por acréscimo. A dignidade da paternidade e da maternidade
seria extrinseca: os espiritos de hoje em dia são demasiadamente ten­
tados por esta perspectiva dualista.
E’ mister, pois, responder: causa material e causa formal são re­
ciprocas. Agindo por causalidade dispositiva, os pais exercem uma cau­
salidade com respeito à forma, por meio desta disposição que êles de­
senvolvem. O efeito próprio de sua ação é matéria viva e, como tal,
não isenta de forma. Muito mais, sua ação exige estritamente, segundo
a ordem estabelecida por Deus, a infusão de uma forma que não seja
limitada à estrita realização das funções biológicas, mas seja uma alma
espiritual e imortal à semelhança da dos pais. Na suposição impossível
de que Deus não cria uma alma para a matéria corpórea_ assim dispos­
ta, não haveria geração propriamente dita, mas geração equivoca e
monstruosidade, no sentido chocante do têrmo (veremos, nota 23, que
não há geração, senão onde há semelhança de natureza entre gerador
e gerado).
Um estudo mais desenvolvido deveria dar precisão a êstes dois pon­
tos: 1) O fim atingido pela ação dos pais (a pessoa total da criança)
ultrapassa o têrmo produzido (matéria viva). 2) A causalidade eficiente
II. Maria na Encarnação i:w
Relação única
E’ esta relação pessoal com Deus que é o essencial da
maternidade divina; coloca Maria acima das outras criaturas.
Com efeito, esta relação é a mais profunda dentre as que po­
deríam existir entre uma pessoa e Deus. Certamente, ela per­
manece infinitamente longe das relações trinitárias, que são
substancialmente divinas. Òbviamente, ela é menos profunda que
a relação da humanidade de Jesus para com o Verbo que A
assume: esta relação que o faz subsistir como Deus. ” Mas ela
é a relação mais digna e compatível com uma personalidade
criada, a mais estreita, que une uma pessoa divina a uma
pessoa humana: e é isto que faz de Maria a mais digna e a
mais perfeita das puras criaturas.
Relação transformante
Tentemos compreender o que permite em Maria esta rela­
ção única. Sublinho “em Maria”. Com efeito, ela não está ape­
nas relacionada com Deus, mas ontològicamente transformada:
mais digna, mais perfeita depois do que antes. A Escritura
insinua algo desta transformação. O anjo disse a Maria: “O
Espírito Santo virá sôbre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá
com sua sombra”. A forma gramatical sugere que a ação de
Deus se refere a Maria. Dito de outro modo, esta ação não
se refere â conceição miraculosa apenas, mas também (e com
muita propriedade) àquela que concebe. Vimos que Maria era
então o objeto de uma ação análoga àquela que se realizou
dos pais na linha da matéria e a de Deus que cria a forma devida a esta
matéria convergem na disposição último que é ao mesmo tempo o último
acabamento doprocesso ascendente da causalidade dispositiva e o pri­
meiro efeito da infusão da forma. E' ai que a ação progressiva dos pais
e a ação instantânea de Deus atingem, sob duas relações diferentes, o
composto humano inteiro, que é o nôvo indivíduo humano pessoal que
vem ã existência.
O fato de que o Verbo de Deus preexistia à natureza humana,
que Êle assume, não muda nada dos princípios gerais. O fim da ge­
ração de Maria é o sujeito concreto, ao qual pertence a natureza
humana vinda à existência por êste ato. A maternidade de Maria se
refere, então, de pleno direito, à pessoa divina do Verbo Encarnado.
” Não me arriscarei a desenvolver aqui uma outra comparação
que seduziu por sua sutileza diversos autores espanhóis do século XVII,
aquela entre a relação de Maria, de uma parte, e das espécies euca-
risticas de outra, com a pessoa do Cristo. Notemos apenas que, como
a união hipostática, a relação eucaristica supõe, da parte do elemento
natural, a ausência de todo suposto criado. Após a consagração, não
ficam senão as espécies do pão: não mais uma substância criada, mas
puro sinal da presença do corpo do Verbo Encarnado (estas espécies
são um quo e não um quod, diriam os metafísicos).
134 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

na arca da aliança, quando Deus veio residir nela ( ê x 40,35):


por meio de uma consagração operada diretamente por Deus.
Mas são grandes as diferenças entre a arca e Maria: de um
lado, consagração de morada material; de outro, consagração
de morada viva, não mais simples consagração objetiva, mas
consagração recebida conscientemente, realizada interiormente,
desabrochada na vida da graça. A ação do Espírito deve ter
tido por efeito assimilar (de conaturalizar), tanto quanto pos­
sível, Aquela que já era por excelência “objeto do favor de
Deus” (Lc 1,28) à Pessoa divina de quem eia se tornou mãe.
Maria deve ter recebido, pois, esta bênção, análoga àquela do
“Santo”, que se tornou Seu Filho, à qual faz alusão esta outra
palavra da Escritura:
Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto de teu ventre (Lc 1,42).
Para precisar o alcance ontológico desta ação transforman-
te, desta bênção que conforma singularmente Maria a Cristo,
é necessário entrarmos por caminhos mais metafísicos. Procedere­
mos, sucessivamente, a duas análises, cujas conclusões se com­
plementam. Abordaremos, de início, a graça da maternidade di­
vina pelo alto, a partir do que há de mais formal: a relação
real com uma pessoa divina, e veremos.o que supõe tal relação.
Abordaremos esta graça partindo de baixo, desde o que há de
mais material: a estrutura natural da maternidade, e tentaremos
discernir o que convém a uma mãe, cujo filho é Deus, em vir­
tude do princípio de que Deus não destrói a natureza quando
a eleva, mas a transfigura sem a alterar. Dito de outra forma
— colocaremos sucessivamente as duas questões seguintes: que
realidade singular de graça supõe esta relação singular para
com Deus? Que dons de graça convêm a uma mãe, cuja ma­
ternidade tem por objeto uma pessoa divina?
a. O que supõe a relação de mãe de Deus
Dissemos que, no dia da Anunciação, Maria se tornou Mãe de Deus
rcalmcnte, enibora por um aspecto corpóreo: desde então, o Verbo de
Deus tem uma mãe segundo a ordem temporal. Guardemo-nos de tirar
dai consequências ruinosas para a transcendência divina. Não ima­
ginemos que esta relação real introduza na Trindade alguma modifica­
ção ou complemento intrínseco. A metafísica e a Escritura nos ensi­
nam que Deus é imutável. Tôda relação nova a seu respeito é, pois,
nova do lado da criatura, e não do lado d’Êle. Apliquemos esta lei
fundamental à união hipostática de Cristo e diremos: a relação tão
real da natureza humana ao Verbo que a assume tem seu fundamento
real nesta humanidade, de sorte que a pessoa do Verbo não sofre qual.-
11. Maria na Encarnação 135
quer mudança. Assim, a Encarnação realiza a elevação ontológica da
natureza humana sem degradar nem alterar em nada o Ser imutável
de Deus. De onde, a pergunta: desde que a novidade de tòda relação
real da criatura para com Deus afeta, não a Deus, mas só a criatura,
que mudança se produz em Maria, quando Ela contrai esta relação
real de mãe de Deus? Em outras palavras: uma vez que tòda ação
de Deus sõbre um ser corresponde nêle a uma marca, que marca pro­
duzirá em Maria a ação de Deus que a toma por mãe?
Certos teólogos a afirmam demais na resposta. Da simples análise
desta relação, creem poder deduzir estrita e necessariamente todos os
privilégios de Maria (privilégios daquela que é a pura-relação-de-Deus).
Confundindo a analogia entre a maturidade divina e a união hipostá-
tica, alguns chegam até a dizer que a maternidade divina santifica for-
maimente a Maria, com abstração da graça santificante. No extremo
oposto, para um Tertuliano, para certos protestantes, para os nomi-
nalistas em geral, esta relação fundada nas realidades corpóreas da
carne não incluiría nada na ordem da graça. Uma justa apreciação
das coisas exige mais detalhes. Limitemo-nos a uma verificação fun­
damental.
A maternidade divina é uma relação real, permanente e especial.
Sob pena de não se verificarem êstes traços, deve ter (além do fun­
damento passageiro que é a geração) um fundamento real, permanente
e especial. Este fundamento, que nada pode destruir (pois, após haver
gerado o Filho de Deus, Maria não podia cessar de ser Sua mãe),
é, evidentemente, distinto da graça santificante que, por sua natureza,
pode ser perdida. Sob êste aspecto, ela é análoga ao caráter e mais
especialmente ao caráter batismal. Esta analogia de estrutura nos ajuda
a compreender a qualidade ontológica que corresponde à relação real
de Mãe de Deus.
Esclarecimento comparativo: maternidade divina e caráter
A maternidade divina é mais que a graça? Eis uma das mais clás­
sicas perguntas em mariologia. E é, essencialmente, uma pergunta fal­
sa. Começa confrontando termos demasiadamente diferentes para que
a comparação seja frutuosa; em seguida, o que é mais grave, ela opõe
objetos correlatos. Em biologia seria absurdo perguntar se é melhor
possuir uma função sem órgão, ou o órgão sem a função, pois o ór­
gão existe para a função e a função é impossível sem órgão. E’ por
isto que, se desejamos instituir uma comparação útil na ordem da ana­
tomia e da fisiologia espiritual, é necessário compreender diferentemen­
te seus têrinos e pôr em paralelo maternidade divina e caráter, de um
lado, graça de Maria e graça dos batizados, de outro, ou para con­
cretizar por uma disposição geométrica esta comparação:
Plenitude da graça graça santificante
Maternidade divina caráter batismal
O bom fundamento da comparação se recomenda sob múltiplos
aspectos. O caráter é o fundamento mais radical de nossa relação com
Cristo. E’ indelével (nenhum pecado pode destrui-lo). Faz entrar na
familia eclesial e, por ela, na família de Deus. Acarreta como seu com­
plemento vital normal a graça santificante, que termina esta relação
familiar e nos permite vivê-la dignamente. E’ claro que a maternidade
136 Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria
divina comporta todos êstes traços: é o fundamento mais radical, pelo
qual Maria é posta em relação com Cristo. E' indelével (supondo hi-
potèticamente que a Mãe de Deus tivesse desmerecido ser Mãe de Deus,
teria permanecido Mãe de Deus, pois nem Sua qualidade de Mãe, nem
a divindade de Seu Filho teriam sido abolidas). A maternidade de Ata­
ria constitui um elo de família com Deus. Enfim, exige um complemento
da graça que Lhe permita viver dignamente Sua vida de Mãe de Deus.
Logo, a maternidade divina, como o caráter, não é simples relação
com respeito a Deus (esse ad), mas supõe e determina uma realidade
ontológica (esse in); ela estrutura fundamentalmente a condição sobre­
natural de Maria e admite um crescimento na ordem vital.
Sem dúvida, esta analogia, como tôda analogia, tem seus limites,
cuja consciência é preciso guardar, sob pena de cair em confusão:
a maternidade divina procede de uma operação da ordem da nature­
za; o caráter batismal, de uma operação da ordem ritual. A materni­
dade divina é por essência, mesmo, uma relação familiar com Deus.
O caráter implica em tal relação, mas não basta por si mesmo para
constitui-la completamente.10
Também, o principal fruto desta comparação é o de nos fazer com­
preender concretamente, por meio de contraste, as diferenças que sur­
gem das analogias mencionadas:
a) Caráter e maternidade divina perfazem duas relações de sentido
inverso: a primeira imita a relação do Filho ao Pai, pois o batizado
é constituído filho de Deus; a segunda imita a do Pai ao Filho, porque
Maria é mãe de Deus: sob êste aspecto, a relação tem qualquer coisa
de paradoxal e desconcertante.11
!0 Precisemos: O ato gerador de Maria basta (de sua parte) para
fundamentar seu titulo de Mãe de Deus. O título é justificado, com
abstenção feita dos dons da graça que A fazem a digna Afãe de Deus,
desde que o filho que Ela gera é Deus. Ao contrário, a impressão do
caráter, à qual se limita o resultado infalível do rito batismal, não é
suficiente, por si só, para conferir o título de filho de Deus. Êste ti­
tulo só é formalmente realizado, quando o caráter é completado pela
graça que o acompanha normalmente. Com efeito, a geração implica
em semelhança de natureza; ora, é a graça que nos faz ‘‘participantes
da natureza divina” (1 Ped 1,4). O caráter não é senão o princípio ra­
dical incoativo de nossa filiação divina. A filiação que êle confere é
ainda da ordem do símbolo (res et sacramentam). Ela se torna real
apenas pela graça (res). Numa palavra: 1') Nós não somos verda­
deiramente filhos de Deus apenas pela consagração do caráter; Maria,
porém, é verdadeira e propriamente Mãe de Deus pelo único fato de
ter gerado um Filho de Deus. 2’) O caráter não nos faz filhos de Deus
tão propriamente quanto a maternidade virginal de Maria fêz de Afaria
a Afãe de Deus. Tudo isto nos leva a detalhar nossa comparação e a
precisar-lhe o ponto de aplicação. O caráter especifica nossa vocação
e orienta nossa graça como vocação e graça de filhos de Deus. Assim
também a maternidade de Afaria especifica Sua vocação e orienta Sua
graça como vocação e graça de Mãe de Deus.
51 Certamente, na ordem da divindade, a paternidade não é supe­
rior à filiação, mas na ordem criada, não ocorre o mesmo. Nesta or­
dem, os pais são superiores aos filhos, e Jesus deu testemunho desta
lei de modo desconcertante: por Sua submissão durante Sua infância
(Lc 2,51). Não concluamos dai uma superioridade real de Afaria sòbre
II. Maria na Encarnação 137
b) Por isso, as duas relações não estão no mesmo plano; os ba­
tizados tornam-se filhos de Deus em dependência do mistério da En­
carnação; a maternidade divina está intrinsecamente ligada à realiza­
ção deste mistério fundamental, sem o que êle não seria o que é. Em
outros têrmos: o caráter configura os batizados ao Filho de Deus feito
homem segundo Sua divindade. Maria, porém, o configurou à nossa hu­
manidade; o caráter nos integrou na raça de Deus, mas a maternidade
divina integrou a Deus na raça humana. E esta humanização de Deus
condiciona a divinização do homem.
c) Consideremos, agora, o fundamento das duas relações: a ma­
ternidade divina se funda numa geração propriamente dita (embora tem­
poral e relativa à carne); o caráter batismal inclui uma adoção. Temos
de uma parte uma geração que dá nascimento a um nôvo ser humano:
o efeito é da ordem substancial21; de outra, uma regeneração que afeta
um ser humano preexistente; o efeito é da ordem puramente acidental.
d) Passemos, enfim, às conseqiiências vitais da maternidade divi­
na e do caráter batismal: estes dons fundamentais originam a graça,
mas não com a mesma necessidade, nem com o mesmo grau. A mater­
nidade divina a exige em plenitude e de modo moralmente infalível;
o caráter batismal, segundo uma medida e de maneira falivel (pois o
estado do batizado pode ser obstáculo á graça). Poderiamos acrescentar
que a maternidade divina requer a graça por antecipação, desde o pri­
meiro instante da vida de Maria. Para o caráter, há no máximo a an­
tecipação restrita do batismo de desejo.
e) Um último traço esclarecedor, ainda que acessório, merece ser exa­
minado: segundo S. Tomás, o caráter supõe um estatuto eclesial da
fé: a fé está fundada (condita) no Batismo, fortificada (roborata) na
Confirmação e dotada de poder comunicativo com o sacramento da*2
Seu Filho! Mas afirmemos com segurança que, por Sua qualidade de
Mãe de Deus, Ela se elevou a uma dignidade superior à dos batizados,
que são filhos de Deus.
Notemos que a relação materna, contraída por Maria no dia da
Encarnação, se acrescenta à relação filial que Lhe foi conferida desde
o inicio de Sua existência. Antes de ser mãe do Verbo encarnado, Ela
era filha do Pai, porque a Imaculada Conceição implica, para com Deus,
uma relação análoga e superior em seus efeitos àquela que confere
o Batismo.
22 “Generationis motus in quantum terminatur ad substantiam est in
genere subslantiae, reductive tamen", diz o adágio escolástico. Atingi­
mos aqui um nó de questões complexas. O têrmo: produzido pela ge­
ração virginal é a natureza humana concreta do Salvador (Maria é
Sua causa perfectiva, quanto ao corpo vivo, dispositiva, quanto à alma
imortal). O têrmo: atingido (têrmo de referência) é a pessoa do Ver­
bo: êste têrmo é evidentemente extrinseco para o agente, mas êle
é atingido por êle, pelo fato de que a maternidade de Maria está in­
trinsecamente ordenada a êste têrmo extrinseco. Em suma, a materni­
dade divina é correlata à união hipostática e podemos falar, neste
sentido, de certa dependência de Maria da ordem hipostática. Sôbre
o sentido desta expressão, da qual às vêzes se abusou, e que significa
que a maternidade divina termina intrinsecamente na pessoa do Verbo
Encarnado, ver M. J. Nicolas, L'appartenance de ta Mère de Dieu à
1’ordre hypostatique, em Bulletin de Ia Saciété française d'Études Ma-
riales, 3 (1937), pp. 147-194.
138 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria
Ordem (jides communicanda). Poderiamos precisar: a fé recebe no Ba­
tismo o estatuto fundamental de sua existência; torna-se militante e
missionária pela Confirmação, sacramento do testemunho; fundadora e
estruturante (traço que se aperfeiçoa no magistério) com o sacramento
da Ordem. E’ bem claro que a fé da Theotókos possui um estatuto irre­
dutível a estes três. Ela tem também algo de fundadora, mais radical­
mente que a fé da hierarquia. A maternidade divina foi proposta à •
fé de Maria, “bem-aventurada por ter acreditado” (Lc 1,44; cf. 1,38
e 11,28); Ela foi a primeira que aderiu, em nome da humanidade, ao
mistério fundamental da salvação e, pela vontade de Deus, esta fé fun­
dadora condicionou, ao menos de algum modo, a realização dêste mis­
tério, e assim, a passagem das figuras à Realidade, das promessas ao
Dom por excelência, do Antigo Testamento ao Nôvo. A fé de Maria
foi a primeira adesão ao Cristo vivo, que tomou n'Ela Sua Vida hu­
mana. Esta adesão tem valor ecumênico (em outros têrrnos: universal).
Ela inaugura, com perfeição subjetiva que não será jamais ultrapas­
sada, a fé da Igreja. Ela permanecerá a medida ideal dela, como o
mistério é sua medida normativa, como a visão beatífica é sua medida
transcendente. Sem ter, aqui como alhures, a missão de autoridade vi­
sível e oficial própria da hierarquia, Maria não tem menos por isso o
estatuto supremo na ordem da fé: supremo, pois Cristo transcende
esta ordem; Êle que está colocado na ordem da visão beatifica. Pode­
riamos caracterizar assim êste estatuto: fé primeira e inaugural; fé
perfeita, exemplar, e de alcance universal.
No fim desta confrontação minuciosa, cujo benefício é o
de nos permitir compreender melhor, pelo contraste, a grande­
za e originalidade da maternidade divina, sentimos a necessida­
de de tomar posição. Contemplando a relação única em seu
gênero que manifesta esta expressão; Mãe de Deus, compreen­
demos que esta relação real e permanente implica em Maria
um fundamento real e permanente, uma realidade ontológica, que
6 como o inverso criado desta relação com o Incriado: o sinal
correspondente a êste toque. Vimos que êste dom fundamental
é comparável ao caráter, e superior ao caráter, notadamente
no fato de êle requerer a graça infalivelmente e com plenitude.
b. O que convém a uma mãe cujo Filho é Deus
Para entender mais precisamente o que é “a graça da ma­
ternidade divina” é-nos necessário abordá-la agora por um ou­
tro lado, não mais de cima, pelo lado de Deus, mas por baixo,
a partir de sua estrutura humana concreta: esta maternidade que
Deus coloca na obra da salvação, e ao mesmo tempo transfi­
gura. Deixamos aqui os ásperos caminhos da metafísica de re­
lação, e as confrontações técnicas, para recomeçar com realida­
des mais simples: o que é ser mãe.- Subiremos assim, por um
plano inclinado, ao mistério profundo que nos ocupa: o dos
dons singulares, de que Afaria é objeto, como Afãe de Deus.
II. Maria na Encarnação 139

Elevar-nos-emos, na escala dos sêres, da maternidade animal


à maternidade luimana e à maternidade divina.
Os dois princípios de base que guiarão esta análise são
os seguintes: 1. A maternidade tem por fundamento essencial
a geração, que podemos definir com Aristóteles: origem con­
junta de um ser vivo a partir de outro ser vivo que lhe comu­
nica a vida, à semelhança de sua natureza. Há, sôbre êste pe­
dantismo aparente, muito de luz e de profundidade. S1 2. As
obras de Deus são ordenadas e homogêneas: o Criador ajusta
harmoniosamente os sêres às funções que lhes dá a exercer. Êle
dá a tôda mãe o que convém à sua maternidade: a uma mãe hu­
mana, mais que a uma animal; e mais ainda à mãe de Deus.
1. Entre os animais, a geração fundamenta um laço passa­
geiro. Os metafísicos são levados a dizer que, morta a mãe,
ou morto o filho, o sujeito ou o têrmo da relação, e portanto a
relação real, são destruídos. Uma gata, cujos gatinhos morre­
ram todos, foi mãe: ela não é mais mãe.
A fragilidade desta explicação ontológica se traduz no pia­
no da vida e da fisioiogia animal: a maternidade estabelece
um estado passageiro, limitado ao tempo em que os cuidados
e sentimentos maternos elementares são requeridos em benefi­
cio da prole. Um ano após o nascimento, a mãe gata não di­
fere mais entre seu filhote e outro gato.
2. Entre os homens, reencontramos tôda a biologia da ma­
ternidade animal; mas, no coração, alguma coisa mais. A ge­
ração funda um laço de origem entre pessoas espirituais e imor­
tais. Esta relação c contraída por um aspecto corporal, mas
ultrapassa o corpo. Ela é espiritual e imortal como são as pes­
soas que a contraem. A esta relação inalterável corresponde
SJ O latim expõe melhor a densidade desta definição: Origo viventis
a vivente principio coniunto in similitudincm naturac. Os elementos da
definição são os seguintes: dois sêres vivos — procedendo um do outro
sem intermediário — o primeiro comunicando ao outro uma natureza
semelhante à sua, por uma operação que sai de si para esta assimila­
ção. Êste último ponto, muito importante, permite compreender por que
o Espírito Santo não é o Pai do Cristo ainda que seja o princípio de
Sua geração temporal: Êle não Lhe comunica a semelhança de Sua
natureza divina, mas intervém para que seja formada Sua natureza
humana.
5‘ E’ por um verdadeiro abuso de linguagem que certos metafísi­
cos estendem à maternidade humana o que é verdadeiro na maternida­
de animal: “Uma mãe deixa de ser mãe, desde que o filho morreu”.
Sim, tratando-se de um animal que cessa pura e simplesmente de existir.
Mas se o filho morto é um homem, êle subsiste quanto ao essencial:
a alma subsistente e pessoal, e, por isso também, permanece a relação.
Êste problema exigiría um estudo que foge ao objetivo destas páginas.
140 Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

na alma cia mãe um fundamento permanente, real e objetivo,


cuja natureza é difícil de precisar.11
O plano psicológico está em harmonia com esta realida­
de ontológica. O homem, animal racional, não está reduzido
a seus instintos: recebeu poder de ratificá-los e governar li­
vremente. Assim, a maternidade humana é normalmente o fru­
to de um ato livre, de um consentimento permanente que im­
plica em dupla referência: à pessoa do pai (principio associa­
do da geração), e à pessoa da criança (têrmo da geração).
Certamente, uma mulher pode fisicamente gerar sem tal con­
sentimento; mas isto é uma anomalia aflitiva, correspondente
a um fracasso ou a uma perversão da liberdade. Aquela que
assim gera é mãe de um homem. Não poderiamos dizer que
sua maternidade seja plenamente maternidade humana, pois que
não há verdadeiramente “ato humano": ela é humana pelo
fim, animal pelo modo. Há aí uma desproporção, uma defor­
mação deplorável. Normalmente, então, uma mãe humana com­
promete-se livremente por um duplo consentimento: à pessoa do
pai e à da criança; e êste consentimento é proporcionado ao
duplo objeto. De acordo com o caráter espiritual destas pessoas
(o esposo e o filho) e a perenidade desta relação, êle propor­
ciona um amor espiritual e indestrutível. De fato, êle não está
confinado à utilidade biológica: continua além. E’ mais amplo
que a própria morte. O amor da mãe pelo filho que ela per­
deu tem, mesmo, algo de mais vivo, do que o amor por seus
filhos vivos: a vivacidade de uma ferida e de uma ausência
que não podem ser supridas.
3. Em Ataria, Mãe de Deus, reencontramos (com abstra­
ção feita das modalidades virginais de sua geração) todo o
lado humano das maternidades humanas: mas com alguma coi­
sa mais. Com efeito, não é apenas uma pessoa imortal que Ela
gera, mas uma pessoa divina e preexistente. Disso resulta (sem
alteração da natureza) uma reviravolta prodigiosa. Êste Filho
depende de Sua mãe, como todos os outros filhos, na ordem
da carne; mas na ordem ontológica, Ela é elevada a Êle como
” De que ordem é o fundamento ontológico permanente da mater­
nidade? Em qual categoria classificá-lo? Diante desta pergunta, S. To­
más ficaria embaraçado. Em III Sent., de 8, q. I, art. 5, Solutio, êle
escreve a propósito da paternidade: “Quaedam relationes non innascuntur
ex actionibus secundum quod sunt in actu, sed magis secundum quod
fuerunt; sicut aliquis dicitur pater postquam ex actione est effectus
consecutus; et tales relationes fundantur super id quod in agente ex
actione relinquitur, sive sit dispositio, sive habitas, sive aliquod ius ant
potestas, vel qiiidquid atiud est huiusmodi". „
II. Maria na Encarnação 141

ao Seu Criador. Esta maternidade deságua em um abismo me­


tafísico.
Êste abismo não destrói a psicologia materna de Afaria
com relação à criança nascida de Sua carne. Não introduziu
n’Ela violência nem monstruosidade; mas Deus aprofunda e
transfigura por graça os sentimentos que criou no plano da
natureza, a fim de que Maria seja digna Mãe de Deus.
No plano psicológico, Sua maternidade é por disposição
divina, o fruto de um consentimento (Lc 1,28-30) que ela não
dirige mais às pessoas criadas (o espôso e a criança, como
ocorre com as outras mães), mas a Deus, pois Deus é ao
mesmo tempo início e fim da geração; Êle é seu princípio
associado, pois é pela operação espiritual e transcendente do
Espírito Santo que Maria concebe virginalmente; Êle é seu ter­
mo, pois Aquele que Ela gera na carne é a segunda pessoa da
SS. Trindade. Êste consentimento a Deus — à ação fecundante
de Deus, à vinda de Deus — é um ato teologal. E’ um ato de
fé e de amor, que tem a Deus por princípio e por objeto, como
a geração virginal. Sem êste dom teologal, Maria teria sido,
a respeito de Deus Seu Filho, o equivalente do que na ordem
da natureza é uma mãe degenerada: mãe de um Deus, privada
de sentimentos divinos. A anomalia teria sido tão aflitiva quan­
to aquela da mãe humana privada de sentimentos humanos.
Segundo uma lei da natureza estabelecida por Deus, a mulher
que gera sente vir ao seu coração as forças do amor que faz
dela, não uma máquina de procriar, mas mãe: sua psicologia
se eleva normalmente ao nível da relação pessoal e indestru­
tível que ela contrai. Assim também Deus, de acordo com a
mesma Sabedoria, desejou que, por graça, a mulher da qual
Êle nascería segundo a humanidade, encontrasse em Seu co­
ração as forças adaptadas à sua condição de Afãe de Deus.

A graça da maternidade divina


No fim desta dupla análise, eis-nos preparados para apre­
sentar, em síntese, o que é a graça da maternidade divina. Esta
“graça” (no sentido lato, cm que a palavra significa dom gra­
tuito de Deus) apresenta dois aspectos que são entre si (como
o temos dito) como o caráter e a graça santificante: um dom
da ordem estrutural e um dom da ordem vital que o prolon­
ga. Afais precisamente, Afaria recebe, por ocasião da Encarna­
ção, o que equivale eminentemente a um caráter — e um nôvo
142 li Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

aprofundamento de sua plenitude de graça. Examinemos êstes


dois pontos:
1. Dom de ordem estrutural
No momento em que Cristo Se encarna, Aáaria é a primeira
a Lhe ser misticamente incorporada e contrai uma função so­
cial em relação a Ele: Sua função maternal. E’ a primeira a
receber a marca do Salvador. Mas a configuração que Ela re­
cebe é muito diferente das outras. O caráter batismal configu­
ra-nos ao Cristo Filho de Deus; a Mãe de Deus é antes con­
figurada ao Pai, cujo Filho eterno Ela gera no tempo. Esta
configuração A faz digna de chamar Seu Filho aquele que até
ai era Filho só do Pai. Em outras palavras, a ação divina, que
assinala a sua geração com um sinête de virgindade, marca
também sua pessoa.
2. Dom de ordem vital
Este dom, análogo ao caráter, é completado simultânea­
mente por um dom da ordem vital que torna proporcional o
ser e a atividade de Maria à qualidade nova que contrai. Cer­
tamente, Ela não tem necessidade de receber a graça santifi-
cante que já possui em plenitude. Mas esta graça recebe um
nôvo estatuto e um nôvo aprofundamento.
a) Um nôvo estatuto. Até aqui esta graça, como a dos batiza­
dos, tinha por efeito fazê-l’A dizer do fundo da alma: “Abba,
Pater” (Rom 8,16; Gál 4,7), isto é: “Meu Deus e meu Pai”.
Agora, uma nova graça A leva a dizer, diante d’Aquêle que
Ela traz consigo: “Meu Deus e meu Filho”. Em outras pala­
vras, a graça que Ela recebe, acondiciona-A ao Seu estado de
Mãe de Deus. Ela recebe em Sua pessoa e em Seu organismo
sobrenatural uma conaturalidade nova com Deus, por cujavir­
tude Aquele que Ela gerou não é para Ela um estranho, mas
um Filho: Sua adoração de criatura e seu amor de mãe se
fundem num único movimento de alma. Com tôda ternura, e
com tôda subordinação, Eia tem para êste Deus, que é seu
Filho, sentimentos maternos.
b) Um nôvo aprofundamento, pois a relação que marca tão
visceralmente seu ser, proporciona-Lhe possibilidades sem pre­
cedentes, na ordem da graça — possibilidades que Deus cumu­
la ao mesmo tempo em que as cria. Não se trata apenas de
uma modalidade nova de Sua plenitude de graça (que, de fi-
s
II. Maria na Encarnação 143

liai, se torna materna), mas de uma nova dilatação desta ple­


nitude na medida de sua nova grandeza. Seríamos tentados a
falar de uma recriação do ser de Maria no sentido em que a
Escritura fala do Batismo, como de uma criação nova (Oál
6,15; cf. 2 Cor 5,17). O que não quer dizer que o Batismo des­
trua nossa natureza, nem que êle não traga nada de positivo,
mas que êle a reassume no mais profundo ao Lhe dar uma
atuação e uma finalidade mais radicais. Assim, a recriação de
que se beneficia Maria não altera nem Sua natureza, nem Sua
graça anterior, mas corresponde à nova ação de Deus sôbre Ela
e à nova finalidade para a qual Ela foi destinada como Mãe
de Deus; trata-se de uma transfiguração de Sua graça ante­
rior. E é bem o que se insinua no Evangelho da Anunciação.
Nêle Lucas sugere que começa nessa hora esta nova criação
anunciada pelos profetas: o Espírito de Deus, que presidiu à
primeira criação (Gn 1,2) e devia inaugurar a segunda (Is
11,2), vem repousar sôbre Afaria, em Quem começa o nôvo
mundo (Lc 1,35).
Talvez o leitor tenha ficado deprimido pela falta de pe­
netração do aparelho conceituai usado nestas análises. Para que
os homens atinjam, por alguns momentos, o cume do Everest,
é preciso toneladas de material. Escravidão análoga pesa sôbre
os empreendimentos de nossas débeis inteligências humanas. O
teólogo sente a desproporção entre a simplicidade do mistério
e a complexidade do material conceituai que é preciso movi­
mentar, desde que queira tentar exprimi-lo em têrmos huma­
nos. Aqui mais que alhures, o autor pode preparar a contem­
plação do leitor, mas não supri-la. Oxalá vislumbrasse êle, no
fim de sua laboriosa ascensão, a essência dêste mistério ao mes­
mo tempo desconcertante e límpido. Ele repousa no diálogo
dêste Deus feito homem que diz Àquela que O gerou: minha
mãe, e desta mulher que Lhe pode responder com tôda verda­
de, tôda dignidade e tôda alegria: meu Filho. E’ uma harmo­
niosa coincidência do amor da mais perfeita das mães para
com Seu Filho, da mais santa das mulheres para com Seu Deus.
* * *

Três traços particularmente importantes rematarão nossa


contemplação: a maternidade divina é virginal, social, engaja­
da na obra da salvação. •
1-14 il Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria
Maternidade virginal
E’ importante elucidar um ponto que deve ter inquietado
a mais de um leitor. Ao ler a parte histórica dêste trabalho,
alguns perguntar-se-ão por que foram objeto de diversas refe­
rências, não apenas a concepção virginal (virginitas ante par­
tam), não apenas o fato de que Maria permaneceu virgem após
o nascimento de Jesus ( virginitas post partam), mas sua vir­
gindade mesmo durante o nascimento de Jesus (in parta). E,
entretanto, não se trata de um dêsses piedosos excessos, como
há tantos entre os mariólogos do período moderno. Que a vir­
gindade de Maria não tenha sido alterada, nem na alma nem
no corpo, no nascimento do Salvador, que ela não tenha so­
frido as dores do parto, são dados indiscutíveis há quinze sé­
culos, e mesmo atestado por documentos, que, pelo essencial,
fundamentam nossa fé. " De todos os pontos da doutrina maria-
na, êste é o mais ignorado. O autor da presente síntese sabe

Como vimos na parte histórica, é após uma fase de hesitação,


onde as duas exigências da Revelação (maternidade corpórea real e
integral, virgindade corpórea real e integral) se afirmavam aqui e aco­
lá, de modo freqiientemente unilateral, e exagerado até o êrro, que
o ajustamento se fêz. A partir do fim do século V, não encontramos
mais vozes discordantes. A virgindade in partu é claramente afirmada
pelas diversas liturgias, tanto gregas quanto latinas. (Para a liturgia
romana, ver, por exemplo, a antífona do segundo salmo do 111 Noturno
para os Domingos do Advento “paritura sum regnum qui claustrum
virginitatis meae non violabit”, responsório após a terceira lição do
lç Noturno para o dia da Circuncisão: “peperit sine dolore”).
Assinalemos apenas os principais textos do magistério: Tomo de
Leão a Flaviano, em 449, n° 2, PL 54, 759 A (= Rouêt De Journel,
2182): “Conceptus... est de Spiritu Sancto intra uterum Matris Vir-
ginis quae illum ita salva virginitate edidit quemadmodum salva virgi-
nitate concepit”. Cf. ibid., nv 4, Denzinger, 144: “Nativitas mirabilis”.
Concilio de Latrão em 649, cânon 3, Denzinger, 256: "Si quis
secundum Sanctos Patres non confitetur proprie et secundum veritatem
Dei Genitricem... absque semine concepisse ex Spiritu Sancto et in-
corruptibililer. . . genuisse”.
Concilio de Toledo, Symbolum, Denzinger, 282 (o Concilio retoma
um texto muito conhecido das Ep. 137, C. 2, nv 9, onde S. Agostinho
defende com clareza a integridade corpórea de Maria no parto).
Constituição Cum quorumdam de Paulo IV (7 de agosto 1555)
contra os que negam que a Virgem tenha permanecido “semper in vir­
ginitatis integritate (trata-se da integridade corpórea e não apenas de
virtude m oral). . . ante partum scilicet, in partu et perpetuo post par-
tum”. Denzinger, 993. Esta Constituição foi confirmada por Clemente
VIII, a 3 de fevereiro de 1603.
Pio XII, na Bula Munificentissinuis usa um texto de S. João Da-
masceno, que estabelece a realidade física da Assunção a partir do
milagre físico da integridade virginal: “Oportebat eam quae in partu
illaesam servaverat virginitatem suum corpus, sine ulla corruptione
II. Maria na Encarnação 145

por experiência a dificuldade que pode haver para assimilar


isto, mas também as luzes que traz a acolhida desta verdade.
Por que esta dificuldade? E qual é o sentido desta verdade? Não
podemos fugir a estas duas perguntas, por mais delicado que seja
o assunto.
Um primeiro obstáculo provém de nossa cultura, mais ou menos
marcada pela influência de Platão ou Descartes. Por causa desta in­
fluência idealista, mal acreditamos concretamente na ressurreição do
corpo, e permanecemos pouco sensíveis à moral, embora seduzidos pela
mística. A raiz destas deficiências é uma ignorância mais ou menos
profunda da unidade substancial da alma e do corpo. Segundo as apre­
sentações correntes que têm encontrado acolhida até em certos catecis­
mos, a alma é apresentada num sentido dualista, algo além do corpo,
ao passo que dêle é a forma substancial; o corpo é concebido como
uma veste, ou até mesmo um “andrajo” ou uma prisão da alma; ao
passo que êle é o seu órgão vivo, e transparente, o seu sinal conatu-
ral. Que há de estranhávei, se o corpo parece desprovido de signifi­
cação religiosa, e nos chocamos contra mistérios como a Transfigu­
ração de Cristo ou a virgindade integral de Maria, quando êstes su­
põem uma irradiação das realidades espirituais ao nível do corpo?
Um segundo obstáculo contra o qual se choca, não mais nossa inte­
ligência, mas nossa sensibilidade religiosa, é a extrema grosseria, a
indelicadeza mesmo, com a qual muitos manuais de teologia tratam
esta questão. Herdeiros das descrições ginecológicas dos apócrifos, que
imaginaram aplicar à virgindade de Maria o atestado de uma par­
teira, comprometem-se em precisões tão incômodas quanto estéreis. A
virgindade corpórea, como a Assunção corpórea da Virgem, não são
objetos de tradição histórica. Nenhuma relação foi transmitida, nem
por meio da Escritura, nem por via oral. São mistérios dos quais a
intuição da fé descobre a implicação no conjunto da Revelação; de
onde nossa ignorância sôbrc as modalidades concretas. Como o modo
da Assunção nos escapa, assim também o modo do nascimento virgi­
nal. E há êrro de método em sair da essência do mistério revelado
para penetrar nas precisões fisiológicas que Deus não nos desejou dar.
Renunciemos, pois, a saber tudo e limitemo-nos a êste enunciado
certo: o nascimento do Filho de Deus foi miraculoso como Sua con­
ceição” ; Deus preservou, pois, até em seu corpo, a integridade virgi-
etiam post mortem conservare, etc.”. AAS, 42 (1950), p. 761 (citado
PG 96, 741 B) cf. p. 765 (citação de S. Boaventura).
Omitimos ^iversos textos mais alusivos, duvidosos (PL 207, 1077)
ou que não possuem pràticamente autoridade pontifícia (Denzinger, 314a,
nota 3. Profissão de Nicéforas recebida por Leão III). Se as fórmulas
citadas são discretas como convém ao pudor, e ao conhecimento velado
que temos do mistério, o contexto não deixará dúvidas sõbre o senti­
do e o alcance dos têrmos.
17 A. Mitterer, Dogma and Biotogie der heilige Familie, Viena. Her-
der, 1952,^ abordando esta questão sob um ângulo puramente fisioló­
gico, propôs^ eliminar todo elemento miraculoso ou pré-natural do nasci­
mento do Cristo. A tese é apresentada de modo interrogativo e com
reserva das exigências da tradição que o autor não estudou. Estudo
feito: os dados tradicionais não permitem concordar nem com a con-
Brcvc Tratado — 10
146 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria
nal da mãe. Como isto se deu, a nós permanece oculto: de que modo
exato a onipotência divina se associa à operação das forças vitais naturais
de Maria (que devem ter intervindo para que houvesse autêntica geração
e autêntico parto)? Estas questões continuam perfeitamente misterio­
sas para nós, e seria tão presunçoso quanto desajustado querer resol­
vê-las com precisão cientifica.
Precisemos, antes (e aqui, em compensação, temos um vasto cam­
po de dados positivos), a significação religiosa deste mistério.
Para os Padres é menos um privilégio de Maria que um apaná­
gio do nascimento de Cristo. Há, para êles, três nascimentos do Ver­
bo: Ele nasce do Pai, na eternidade; da Virgem Maria, no tempo; e
em tôda alma cristã, pela fé e pelo Batismo. O segundo nascimento
tem valor de sinal em relação aos outros dois; é a afirmação e a ré­
plica temporal do primeiro, o penhor e o exemplo do último. Deus
também fêz êste nascimento corpóreo participar da condição sobre­
natural e espiritual dos outros dois nascimentos: ao libertar, sob cer­
tas condições, o jugo e o determinismo da carne, esta libertação se
manifesta no início, no milagre da conceição virginal (ex fide et Spi-
ritu Sancto) e no fim, no milagre do nascimento virginal. Nesta rela­
ção, o nascimento miraculoso atesta que Aquêle que nasceu na hu­
manidade é o mesmo que nasceu desde tôda a eternidade. Eia atesta
que a criação decaída foiretomada desde o inicio. Anuncia o triunfo
da Encarnação redentora até na ordem da carne. A êste respeito, é
uma antecipação escatológica: antecipação que se harmoniza bem com
outras que o Evangelho nos descreve mais explicitamente na narrativa
da natividade: a estréia “sinal no céu" (Mt 2,9; cf. 24,29) e a mani­
festação dos anjos: sinal precursor do dia de Javé (Lc 2,10-14; cf.
cf. Mt 24,31). Deus se compraz em manifestar no inicio de Suas obras,
de maneira humilde, restrita e passageira, algo da perfeição e alegria
que elas alcançarão de modo triunfante, universal e permanente, quan­
do — após um período laborioso e cruciante — terminadas no tempo,
elas atingirem o fim.
Secundàriamente, o sinal do nascimento virginal se refere tam­
bém a Maria. Convinha, efetivamente, que Deus conservasse integral­
mente a virgindade d’Aquela que é Seu exemplar. Se Sua virgindade
houvesse sido alterada na ordem corporal, sua essência, sem dúvida,
não se teria deslustrado: mas não seria mais perfeita na ordem do
sinal; Maria já não seria a Virgem por excelência, o ícone da virgin­
dade, e, segundo a perspectiva profunda dos Padres, a imagem per­
feita da fé, que é a alma da virgindade.
Enfim, o milagre do nascimento virginal manifesta a plenitude do
mistério da Imaculada Conceição e é o prelúdio do mistério escatoló-
gico da Assunção. A graça preservadora que isenta Maria do pecado
liberta-a igualmente das principais consequências pessoais, não apenas
na alma (concupiscentia), mas no corpo. Maria, a nova Eva recupe­
rada, não conheceu as penas prometidas ao pecado da primeira Eva
(Gn 3): servidão da libido (3,16b), dores do parto (3,16a) e corrupção
cepção geral da virgindade proposta por Mitterer, segundo critérios
absolutamente biológicos, nem com sua interpretação da virgindade in
partu. R. Laurentin, Lc mystère de la naissance virginale, tiragem es­
pecial, 1955.
II. Maria na Encarnação 1-17
do túmulo (3,19). Se Ela permanece subjugada às servidões exterio­
res do mundo do pecado, onde nasceu (a manjedoura de Belém como
testemunho), é, entretanto, liberta daquelas que as seqüelas do pecado
fazem brotar do interior. O milagre do nascimento virginal corresponde
ao desígnio que se manifestava na conceição virginal e se realizará
na assunção: o triunfo da Redenção que salva e transfigura não ape­
nas as almas, mas também os corpos: é o que os Padres entendiam
através da noção simultâneamente moral e física da incorruptibilidade.
Assim, o mistério da virgindade in pariu, como o da Assunção,
nos relembram verdades ignoradas e, entretanto, essenciais ao mistério
cristão: o corpo é parte integrante do homem; êle é salvo por Cristo,
associado a tôda realização da Salvação, votado a um destino eterno
e, já nesta terra, atingido pela obra da g r a ç a .D e s d e agora êle par­
ticipa da atividade da nova criação, e Deus não deixou de lhe dar, às
vêzes, alguns sinais disto em forma de milagres. O sinal fundamental
é o da Ressurreição de Cristo, penhor da nossa. Outros ainda, mas
acessórios, são esporàdicamente perceptíveis na vida de Cristo, tal como

** Sei da objeção que pode ser levantada: segundo a teologia de


S. Paulo, o Cristo só se livrou da servidão do corpo, a partir da Res­
surreição: é nela que se afirma o Seu triunfo — nosso triunfo —
sôbre a imperfeição da carne. Antes Èle sofreu a lei da humilhação,
a condição de escravo, a kénose. Como o nascimento do Cristo está
antes desta glorificação, ela deve ter sido ordinária.
Esta objeção auxiliar-nos-á a melhor situar o problema. Se não ti­
véssemos outros textos escrituristicos além das Epístolas de S. Paulo,
ela seria decisiva: Paulo que dá freqüentemente às noções um relevo
inesperado, não menciona nenhuma exceção a esta lei de servidão antes
da Ressurreição. Mas o Evangelho manifesta que existem tais exceções
(Lc 4,30; Jo 6,21; 18,6), notadamente, o caminhar sôbre a água, onde
o Cristo se liberta por um momento da servidão ao pêso (Mc 6,45-
49), a transfiguração (Mc 9,1) e, de inicio, o milagre da conceição vir­
ginal (que Paulo deixa de referir em Gál 4,4). Estas exceções têm
o caráter de antecipações escatológicas momentâneas, que não enfra­
quecem a lei paulina, mas a confirmam assim como as exceções con­
firmam a regra.
Pertencia à tradição precisar em que medida exata o Cristo, du­
rante Sua vida terrena, sofreu as servidões do corpo e em que me­
dida Êle nela introduziu os sinais antecipados da nova criação que
vinha instaurar. Esta tradição julgou muito cedo e de modo massiço, que
o nascimento do Cristo (nova nativitas) era miraculoso, como havia
sido Sua conceição. Os Padres ilustravam esta simetria pela citação
de Is 7,14, realçada por Mt 1,22: “Eis que a Virgem conceberá e dará
à luz". “Ela concebeu virginalmente; virginalmente ainda Ela deu à
luz". Lc 2,6 é freqüentemente invocado no mesmo sentido. E’ no fim
de uma viagem fatigante que Maria dá à luz a Jesus: entretanto, Ela
própria O envolve em panos. Êstes textos não fornecem uma prova
escriturística, mas apenas indícios. (Ocorre o mesmo, notemo-lo, com
os dogmas da Imaculada Conceição, da Assunção, senão da virgin­
dade post partum, onde a convergência dos indícios são quase uma
prova). Todos êstes casos envolvem o problema do sentido pleno da
Escritura: êste ultra-sentido, correspondente ao pensamento do autor
principal, que a tradição atinge à luz do conjunto da Revelação, para
além da exegese literal do contexto imediato. Não podemos estender-
nos aqui sôbre êle.
10*
148 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria
a Transfiguração (cf. nota 28). Um desses símbolos secundários é o da
virgindade integral da Mãe de Deus.
Maternidade social
Após estes aspectos pessoais, passemos ao aspecto social da
maternidade divina. Resume-se, por vêzes, nesta fórmula, “inspi­
rada por” Santo Agostinho **: “Mãe da cabeça do Corpo Mís­
tico, Maria é também mãe dos membros”. No momento da Anun­
ciação, esta fórmula não tem ainda todo o seu sentido. Esta
qualidade de mãe dos homens não se realizará senão no Cal­
vário e não se tornará plenamcnte consciente e efetiva, senão
após a Assunção. Em todo caso, Afaria possui já o titulo fun­
damenta! que a introduz em Sua vocação de mãe dos homens.
Do ponto de vista do Corpo Místico, o fato fundamental
que se produz desde a Encarnação repousa neste outro: Afaria
incorpora fisicamente o Verbo à nossa raça; cm troca, Ela se
encontra incorporada a Ele, pela graça. Então, Sua plenitude
de graça que já precedia, pela antecipação dos méritos de Cris­
to, encontra, neste momento do tempo, o contacto com a fonte
da qual ela se alimentava por canais secretos, emanados da
esfera extraterrena.
Assim, no momento em que a Virgem se torna Mãe do
Verbo Encarnado, a Igreja se encontra constituída de modo se­
creto e limitado, mas perfeito em sua essência íntima de corpo
místico. ’* Jesus e Ataria: não se trata somente da sociedade
!l> Para dizer a verdade, Agostinho (de saneia Virginitate, 6, PL
40, 399), cujo texto é freqüentemente citado a contrapelo, estabelece
sobretudo um contraste entre a maternidade física de Maria a respeito
do Cristo e Sua maternidade espiritual a respeito dos membros do
Cristo: "Mater quidem spiritn, non capitis nostri... e.\ qno magis spi-
ritualiter nata est, sed plane membrorum eius”. Encontramos entretan­
to a dedução da maternidade divina para a maternidade espiritual nas
enciclicas dos últimos Papas: Pio X (Enciclica Ad diem Itlum de 2
de fevereiro 1904, Acta Pii X, 1, 152): “An non Christi mater Maria?
Nostra igitur et mater est". Cf. Pio XI: “Madre dcgli uomini perchè
Madre di Dio" (Osservatore Romano, 25 dezembro 1931, n9 300). En­
contraremos tôda a série dos textos pontifícios neste sentido em A.
Baumann, Maria mater nostra spiritualis, Brixen, Weger, 1948, 3 K.,
§ I, pp. 60-65.
Mas esta série é completada por uma outra, onde os Papas nos
ensinam que “Maria Se torna nossa mãe porque nos gerou no Cal­
vário” (Leão XIII, Enciclica Quanquam pluries, de 15 agôsto 1889,
p. 67, e A. Baumann, Maria mater nostra, Brixen, 1948, pp. 22-24).
10 Somos tentados a acrescentar: na pessoa de seus dois primei­
ros membros, a Igreja realiza não apenas sua essência, mas suas notas
principais. Ela é perfeitamente una e santa. E’ virtualmente católica
(pois Maria é a mais universal das puras criaturas); falta-lhe apenas
o catolicismo em ato e o apostolado. Mas devemos fazer uma restrição
II. Maria na Encarnação 149

de um filho com uma mãe, mas do Deus-Salvador e da huma­


nidade salva. E’ a Igreja constituída em germe e de modo ocul­
to, em seus dois membros fundadores: 0 Redentor e a pri­
meira das resgatadas. Todos os homens são chamados a se
incorporarem nesta fundação: e esta incorporação, que nos iden­
tifica com Cristo, implicará numa relação filial, não apenas com
o Pai Celeste, mas com Maria, mãe terrestre do Filho único
de Deus.

Maternidade Soteriológica 11
Esta sociedade para a qual Maria entra com Cristo é uma
sociedade de Salvação. E Maria nela se engaja com conheci­
mento de causa. Consente em se tornar mãe do Menino desti­
nado “a salvar seu povo do pecado”, como significa o nome
de Jesus, anunciado pelo anjo (Lc 1,31; cf. Mt 1,21). E o con­
sentimento, total e incondicional, da “serva do Senhor” (Lc
1,38) não é apenas consentimento, na encarnação do Salvador,
mas em tôda a obra da salvação: a mensagem da Anunciação
o testemunha (1,28-38), assim como o Magnificat (1,54-55).
Desde êste momento, a Mãe de Deus pôde pensar na profecia
pela qual o capítulo 53 de Isaías prevê o doloroso “sacrifício”
do Messias (53,1-5; 7,10) e seu alcance redentor (53,5.6.10.12).
Em todo caso, Simeão Lhe mostra as contradições que Seu
Filho sofrerá “pelo resgate ie um grande número" (Lc 2,34)
e, misteriosamente, Sua parte neste sofrimento: a “espada” que
“traspassará Sua vida” (2,35). Dêste sofrimento, Ela terá logo
uma amostra durante os três dias em que O procurará em Je­
rusalém: os três dias de angústia (2,48), em que o evangelista
viu uma prefiguração do triduum moríis. Assim se apresenta a
etapa seguinte.

importante. Maria verifica em Sua pessoa a realidade ontológica destas


notas, mas secretamente. Não são, então, ainda, as notas (notac),
isto é, as propriedades que farão conhecer a Igreja: esta não tem
ainda seu caráter visível, oficial, institucional e públicamente atestado,
que começará no dia de Pentecostes.
Sotenológico (do grego sõtêr = Salvador) significa que tem
relação com a Salvação.
TERCEIRA ETAPA
MARIA NO SACRIFÍCIO REDENTOR"
Entre a Anunciação e a morte de Jesus se desenrolam dois
períodos em contraste marcante: vida oculta e a vida pública.
Na primeira, Maria vive na intimidade do Filho. Na segunda
está separada d’Ele. E as palavras de Jesus deixam entrever
que esta separação é intencional: quando se trata de Seu mi­
nistério, afasta Sua mãe. Fê-lo pela primeira vez aos doze anos
(esta idade que é como o cimo da infância, seu ponto de equi­
líbrio e a prefiguração da idade adulta), quando inicia no Tem­
plo o exercício de Seu magistério (Lc 2,49); uma segunda vez
em Caná, no inicio da vida pública (Jo 2,4; cf. 7,3-10); ai
Èle volta ao curso de sua pregação (Mc 3,31-35; cf. Lc 11,27-
28): Quando se fala com Ele de sua mãe e seus irmãos, volta
seu olhar para os discípulos (Mc 3,34) e os designa como a
nova família que adotou. Em suma, Jesus vive cada fase de
Sua missão com os que chama a participar dela. À sua vida
oculta, associa uma mulher, Sua Mãe, Maria. À Sua vida pú­
blica, associa homens, Seus apóstolos; e Maria é, então,
afastada.
Mas esta separação é apenas exterior; e não é definitiva.
No dia do sacrifício escondido, cujo alcance litúrgico é velado
sob as aparências de uma morte forçada, as coisas mudam.
Os discípulos fogem. E Maria, após haver aceitado o sacrifí­
cio da separação, reencontra a Jesus, para comungar com o sa­
crifício da Paixão. Ela desempenha, no mistério da Redenção,
um papel análogo àquele que havia tido no mistério oculto da
Encarnação. E’ mister marcar, entretanto, os limites desta
analogia.
Maria associada à Redenção por seu consentimento
Em ambos os mistérios, Sua atividade é um consentimen­
to, onde se comprometem sua fé e seu amor. Na Encarnação,
consentimento na vida: a vida humana que dá a Seu filho. Na
Redenção, consentimento na morte: a morte humana, que “era
" Ver Bibliografia, n" 13, secção consagrada ao problema da par­
ticipação de Maria na Redenção.
III. Maria no Sacrifício Redentor 151

necessário Cristo sofrer” para resgatar o mundo: dois consen­


timentos que são apenas um, pois o primeiro, incondicional e
irrevogável, valia virtualmente para tôda a obra da salvação,
cujo inicio foi a Anunciação.
Mas se a atividade de Maria permanece a mesma, Sua si­
tuação e o alcance de seus atos mudaram. Antes da Encarna­
ção, Maria era o cimo provisório da humanidade, e é “em no­
me da humanidade”, explica S. Tomás” , que Ela deu ao Ver­
bo seu consentimento e Sua carne. Mas depois, seu Filho,
períeitamente homem ao mesmo tempo que perfeitamente Deus,
representa perfeitamente a humanidade. O papel de representan­
te que Maria viveu na Anunciação está ultrapassado.
Que Lhe resta, então? E a que títulos Deus a associou
á obra da Redenção?
Associada à Redenção em nome dos resgatados
I. Primeiro, Seu papel de representante da humanidade
guarda, com total dependência, algum objeto.
Um dos traços marcantes do propósito salvífico de Deus
(estabelecê-lo-emos mais precisamente à p. 164), é que Ele de­
sejou salvar o homem pelo homem e, o que é mais, integrar
o mais possível os homens resgatados na realização da obra da
salvação. E’ a êste desígnio, todo de delicadeza, que corres­
ponde a presença de Maria no Calvário e o papel que Ela
aí vive. Representa, ao lado de Cristo, em tôda subordinação,
os aspectos acessórios da humanidade que Ele não assumiu.
E\ de inicio, a condição de pessoa humana: pois Cristo é uma
pessoa divina; é a fé; pois Cristo estêve desde o primeiro instan­
te na visão beatifica; é a condição de resgatada; e, enfim (tra­
ço que resume simbolicamente os outros): a feminilidade. E' a
todos êstes títulos que Maria representa a associação da Igreja
salva no sacrifício do Salvador.
Guardemo-nos de estabelecer o papel positivo de Maria
em detrimento do de Cristo, como se êstes quatro traços tives-
” Summa Thcol., III, q. XXX, a. I, c: "Exspectabatur consensus
Virginis loco lotius humanac naiurae". Cf. In Sent. III, d. III, a. 2,
quaestiuncula II. Texto reproduzido por Leão XIII, Encfclica Octobri
mensc, 22 de setembro 1891, 4SS 24 (1890-1891), p. 195. Fidentem, 20
setembro 1896, 4SS 29 (1896-1897), p. 206. Pio XII, Encíclica Myslici
Corporis, A/1S 35 (1943), p. 247. Cf. K. Schwerdt, Die Heilsgescnicht-
liche Stetlvertretung der Menschheit durch Maria nach der piipstlichen
Lehrverkündigung, em Die HeilsgeschicMlicbe Stellverlrelung der Mensch­
heit durch Maria. Paderborn, Schoningh, 1954, pp. 1-25 (e os outros
estudos contidos neste volume).
152 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

sem faltado a Cristo e deixado Sua obra insuficiente. Nada


fatiava à perfeição e à eficácia do sacrifício de Cristo. Não
pensemos também que seria necessário a ratificação de uma
pessoa humana para que êste se tornasse o sacrifício da hu­
manidade: Cristo era perfeitamente homem e a ausência de al­
guns traços humanos, não essenciais, assinalados acima, longe
de diminuir em Jesus a qualidade de representante dos homens,
contribuiu para fundá-la. Uma simples pessoa humana não te-
ria podido criar senão uma semelhança moral da humanidade,
só um homem que é pessoalmente Deus poderia recapitulá-ia
metafisicamente, pela raiz criadora. Só um homem que não ti­
nha necessidade de redenção podia ser Redentor.
A presença de Maria no Calvário é então inútil? Muito
menos, pois, por não ser necessário, seu papel não era menos
real. Por não ser o complemento de um déficit, não é menos
efetivo. Na ordem humana, a presença de um delegado a mais
ou a menos não modifica a validade de uma delegação. Entre­
tanto, cada um ai representa um papel, um papel efetivo e real.
Assim Maria vive um papel real, sem ser indispensável à reali­
zação do sacrifício redentor.
Para tomar uma analogia mais formal: no plano sacramen­
tal, o sacerdote basta para a validade do sacrifício, e, entre­
tanto, a participação dos fiéis importa. Aáaria vive no sacrifí­
cio fundamentai um papel análogo ao dos fiéis no sacrifício
da missa. A humanidade representada por Maria aos pés da Cruz
não é uma contribuição necessária, mas aperfeiçoa a harmonia
da Redenção. E’ a êste título que Deus pediu sua participação
ativa: como o consentimento e a carne da Imaculada haviam
sido incorporados ao mistério da Encarnação, seu consentimen­
to e sofrimento são incorporados ao mistério da Redenção.
Associada à Redenção a titulo de sua perfeita santidade
2. Maria representa, então, a cooperação dos resgatados
no sacrifício redentor em sua própria realização. Por que foi
chamada a esta alta função de preferência aos demais? Não é
apenas porque é a primeira das resgatadas: é também e prin­
cipalmente, porque Ela foi mais radicalmente resgatada que os
outros. No sacrifício que constitui a fonte e a base da Reden­
ção, nada de maculado, de embaçado, nenhum traço de pecado
por mais longínquo que fôsse, podia ser misturado. Por esta
razão, a co-paixão de João (igualmente presente aos pés da
Cruz) não podia ser integrada ao sacrifício redentor. Só a coo­
III. Maria no Sacrifício Redentor 153

peração cTAqueia que era isenta de tôda falta, imaculada desde


a origem, podia ser acolhida nos fundamentos da Salvação.
A esta ausência de tôda mancha, é mister acrescentar a per­
feição positiva dos atos de Maria no Calvário, a profundeza de
Sua fé, a intensidade de Seu amor, a grandeza de Seus sofri­
mentos, a intimidade de Sua comunhão com o Salvador. A
transfixão (Lc 2,35) que Ela sentiu em Seu coração de mãe
ao ver o Filho crucificado A fêz entrar em mais estreita comu­
nhão com Êle, do que se Ela tivesse sido crucificada numa cruz
vizinha: Ela, portanto, sofreu ao lado d'Êle; Ela sofreu rí Ele
Seu próprio sofrimento mesmo. E como suas dores eram reflexos
das próprias dores de Cristo no espelho de Sua alma de mãe, assim
também Suas intenções eram o reflexo espiritual das de Cristo.
Associada à Redenção a titulo de mãe
3. Além do qtic resta a Maria por sua função de repre­
sentante dos homens a título de primeira resgatada, além da
perfeição sem mancha de Sua pessoa e de Seus atos, a Virgem
tinha um terceiro titulo para participar do sacrifício redentor:
Sua maternidade divina. Aquele que sofre na Cruz é Seu Filho.
Ele Lhe pertence em certo sentido. Pio X falou dos “direitos
maternos” que Ela sacrificou no Calvário. Não exageremos o
alcance desta fórmula. Não se trata de um direito no estrito
sentido (ius utendi et abutendi), mas destes laços de amor e
de comunhão, desta comunidade moral que prolonga, entre mãe
e filho, a comunidade inicial da carne e do sangue. Ao chamar
Maria ao Calvário, Cristo estende essa comunidade aos sofri­
mentos e aos méritos da Redenção. Ao pé da Cruz, Maria con­
tinua a poder dizer o que tôda mãe pode dizer ao filho: “Êste
é minha carne e meu sangue”. (E Ela o sente cruelmente dian­
te desta carne dilacerada e dêste sangue derramado). Ela pode
acrescentar o que tôda mãe em comunhão profunda com seu
filho pode acrescentar: “O que é teu é meu; e o que é meu
é teu”. E pela graça de Deus esta afirmação recebe sua signi­
ficação suprema: “Teus sofrimentos são meus sofrimentos; tua
obra é minha obra, a Redenção que tu podias adquirir sozinho,
desejaste que ela fôsse minha também".
Eis aqui o cume da obra do Redentor e da associação da
Virgem ao Seu Filho. A transcendência de Cristo não é altera­
da por isto. Todos os títulos de Maria por esta cooperação, de
qualquer modo é d’Êle que Ela os recebe: sua qualidade de
primeira resgatada, de imaculada cheia de graça, de mãe; os
154 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

atos pelos quais Ela penetra tão a fundo na obra da salvação,


são nela, em tôda a sua extensão, a obra da graça de Cristo,
ao mesmo tempo que são seus atos. Maria não se situa, pois,
nem no nível de Cristo, nem no nosso, mas num plano interme­
diário: só Cristo é o Redentor de todos e a começar por Ma­
ria, a primeira resgatada; Maria é apenas co-redentora mere­
cendo pelos outros, secundàriamente, a título de sua amizade
singular com Deus, o que Cristo mereceu por justiça estrita,
em pé de igualdade com Deus. E cada cristão coopera, por
mérito limitado, com a difusão da Redenção. Quando merecer­
mos nossa salvação, devemos todo nosso mérito à graça de Cristo.
Quando a Virgem merece, com e em Cristo, a salvação de todos,
Ela deve todo o seu mérito a esta mesma graça. Estes méri­
tos dos resgatados, longe de diminuírem o poder universal da
Redenção, atestam em supremo grau o poder transformante des­
ta Redenção, que eleva os homens à altura “de auxiliares de
Deus” (1 Cor 3,9). O que Maria disse no Magnificat é mais
verdadeiro do que nunca no Calvário: é o Todo-Poderoso que
Lhe fêz grandes coisas (Lc 1,49).”
Pelos méritos do Calvário, a Mãe de Deus adquire um
nôvo titulo, o de ser mãe dos homens: enquanto Cristo se tor­
na efetivamente seu chefe ao merecer as graças da Redenção,
Ela se torna efetivamente sua mãe ao participar dêste mérito
universal. E’ a hora em que Jesus proclama Sua maternidade:
“Mãe, eis teu filho”.
" Esta apresentação da cooperação da Virgem na Redenção nos
parece integrar as importantes objeções que têm sido emitidas contra
esta doutrina: 1) Cristo é o único mediador. 2) Para que os méritos
da Virgem, já que os de Cristo são plenamente eficazes? 3) A’ coope­
ração da Virgem na Redenção supõe a Redenção já concluída.
Não nos demoraremos nestas objeções, que não deixamos de levar
em conta, mas destaquemos o modo pelo qual tudo o que elas contêm
está incluído na solução apresentada acima. 1) Maria não é mediadora
como o Cristo, mas sob o Cristo, n'Êle e por Êle; Ela participa de
modo dependente de Sua mediação. 2) O mérito da Virgem não é
necessário à Salvação; êle procede da vontade gratuita e tôda de de­
licadeza a nosso respeito, segundo a qual Deus decidiu integrar a obra
da criatura resgatada na Redenção. 3) Os homens cooperam ativamente
na Redenção na medida em que tenham sido prèviamente resgatados
pelo Cristo. Maria, a suprema resgatada, é ainda a suprema coopera-
dora da Redenção. Ela foi resgatada de modo singular, ao mesmo
tempo preventivo (Ela foi preservada e não purificada), antecipado (o
efeito da Redenção A atingiu antecipadamente) e de maneira integral
(Ela foi isenta não apenas de pecado, mas de tôda "mancha de peca­
do”, notadamente da concupiscência, e cumulada desde o primeiro instan­
te pela plenitude da graça). Em consequência, Ela coopera com a Re­
denção de maneira singular: antes de todos os outros e na fonte mesma.
QUARTA ETAPA
DA MORTE DE CRISTO À DORMIÇÃO
Numa exposição tão breve como esta, não nos podemos
deter neste período bastante complexo.
Pela Escritura, sabemos apenas que Maria estava presen­
te no Calvário; estava ainda presente no dia de Pentecostcs
(At 1,14). E tudo o que precede nos permite entrever o al­
cance desta presença. Como na Anunciação, Ela havia feito o
elo entre Israel e Cristo; Ela é, ainda que num sentido menos
forte, o laço entre Cristo e a Igreja.
Mas a significação desta presença tem diversos aspectos
segundo os momentos: durante o triduum mortis, da Ressur­
reição à Ascensão, da Ascensão a Pentecostes; enfim, durante
os primórdios da Igreja.
1. Este período começa por um momento trágico. Durante
três dias, Cristo está morto e Sua oração não é mais desta
terra. Nesta hora em que a humanidade levou ao cúmulo os seus
pecados pelo mais odioso dos crimes, nesta hora em que os
melhores naufragaram na covardia, o sol se escurece, a terra
treme e os mortos ressuscitam como um anúncio terrível do
julgamento (Mt 27,51-54), nesta hora em que a alma de Cristo
deixou a terra só Maria encontra o agrado de Deus neste mun­
do: Ela prolonga a intercessão de Cristo e a viva oblação do
sacrifício redentor. Como antes da Anunciação, Ela havia sido
a aurora, é agora o crepúsculo.
2. Quando Cristo ressuscitou, vivo Sol da justiça desde
então sem poente, o papel de Maria assume o significado nôvo
de não mais prolongar a prece cósmica de Cristo, mas preparar
e acompanhar maternalmente a fundação da Igreja: Ela é, de
modo secreto, mas perfeito, a Igreja, uma vez que esta se de­
finiu pela comunhão com Cristo e pela santidade.
3. Em Pentecostes se desenrola uma ação bem parecida “
com a da Anunciação: o Espírito, que Se havia manifestado se-
” Nos dois casos, é o Espírito que age. Em ambos, Êle forma
Cristo (Cristo em sua individualidade humana na Anunciação, o Cristo
coletivo em Pentecostes); em ambos os casos, esta ação constitutiva
156 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

cretamente para formar o corpo físico de Cristo, Se manifesta


de modo estrondoso para lhe formar o Corpo Místico. Maria
está lá, Ela que, antes dos outros, havia sido vivo membro do
Salvador. Ela não toma parte 1 1 a nova dimensão que a Igreja
adquire então; mas sua oração, que preparou 0 nascimento da
Igreja, permanece como cúpula da oração eclesial. Esta oração
e seu mérito parecem ter sido decisivos, na maravilhosa efi­
cácia das primeiras evangelizações. I5‘
Teria Ela tomado parte na Ceia da noite de Quinta-feira
Santa? Falta-nos base para afirmá-lo. " Mas podemos assegu­
rar que Ela tomou parte na fração do pão na comunidade de
Jerusalém (At 2,42 e 46; cf. 1,14). Ela aparece aí como o mo­
delo e a cúpula da comunhão da Igreja terrestre com 0 Sal­
vador ressuscitado.
do mistério cristológico comanda uma outra que tem por objeto o tes­
temunho. Maria parte apressadamente a irradiar o que recebeu junto à
Mãe do Precursor (Lc 1,39-58); e os apóstolos junto aos gentios (At
2,5-28,31); testemunho privado e limitado num caso, público e universal
(At 1,8) noutro. E’ através destas analogias que compreendemos os mo­
dos divinos de agir do Paráclito, vivo sôpro de Deus: Sua dupla ação
que integra Deus na humanidade, e impele a humanidade, plena de
Deus, a difundir 0 testemunho. E’ sempre assim, onde opera o Espírito.
” * “Ela elevou a Igreja nascente pela fôrça de Sua contemplação
e de Seu amor. Ela lhe foi mais útil que os apóstolos que agiam no
aspecto externo. Maria foi para a Igreja a raiz oculta onde se elabora
a seiva que aparece nas flores e nos frutos". C. Journet, L'Êglise du
Vcrbe Incarnê, Paris, Desclée de Brouwer, 1941, c. III, § 4, 1, p. 120,
em nota.
J* Maria estava em Jerusalém na Sexta-feira Santa (Jo 19,25-27).
E' de presumir-se que Ela aí estivesse na quinta-feira. Mesmo que
participasse da Ceia com aqueles a quem Cristo disse: “Tomai e co­
mei”, não estava, em qualquer hipótese, incluída entre aqueles a quem
se dirigiam as palavras da instituição: “Fazei isso em memória de mim”.
Certos autores antigos: Efrém, João Crisóstomo, Severo de Antio-
quia, João de Tessalonica, Jorge de Nicomedia, Simeão Metafrastes, e,
entre os latinos, Sedúlio, Taciáno e 0 pseudo-Justino sustentaram que
Cristo aparecera a Sua mãe na manhã de Páscoa. Na origem desta “tra­
dição” (com t minúsculo), há uma confusão entre Maria, mãe de Tiago
(que foi, com Maria Madalena, testemunha da primeira aparição), e
Maria, Mãe de Jesus. Sôbre a história dêste tema, ver J. C. Trombelli,
Mariae vita, diss. XL, ed. Bourassé, 2, 210-230. Cyprien Kern, L'appari-
tion chi Christ ressuscite, em Pravoslavnaja mysl' (= o pensamento
ortodoxo), 8 (1951), pp. 86-112. C. Gianelli, Uapparition du Christ res­
suscite à tu Vierge Marie, em Rev. ct. hizant., II (1953), 106-117. P.
Bellet, Testimonios coptos de la aparición de Cristo resucitado a Ia
Virgen, em Est. bibl., 13b (1954), 199-205. Y. Congar, incidence...
d’un th èm e..., em Mél. Sc. rct., 7 (1950), pp. 291-292. L. Di Fonzo,
S. Bonaventurae opinio de prima apparitione Christi resurgentis ad B.
Virginem, em Mar., 3 (1941), fase. 1, 63-69. S. Boaventura é contra a
aparição). Deixamos em silêncio as vãs controvérsias que surgem perio­
dicamente sôbre êste ponto.
QUINTA ETAPA

ASSUNÇÃO DE MARIA.
A VIRGEM, ÍCONE ESCATOLÓGICO DA IGREJA
O “Transitus ftlariae”
E’ mister voltai ao problema da “morte” de Maria. Esta
morte tão singular da qual parece igualmente verdadeiro dizer,
com um primeiro grupo de autores, que “Abaria morreu” ” , e
com outro (muito mais restrito), que “Maria não morreu”. ”
” Não detalharemos êste grupo importante ao qual se filia a quase
totalidade dos autores: seus adversários constituem exceção. Entre os
estudos consagrados à refutação da hipótese imortalista, assinalamos so­
bretudo: Estúdios marianos, 9 (1950). E. Sauras, La Asunción, Valência,
F . E .D .A ., 1950; J. Galot, Le problcme de la mort de Marie, em Nouv.
Rev. Teot., 76 (1954), pp. 1028-1043.
Importante bibliografia concernente à questão da morte foi com­
pilada por G. Besutti, Bibliografia Mariana, Roma, 1950, ns. 286-493
(produção dos anos 1948-1949); 1952, ns. 1172-1454 (1950-1951); 1959,
ns. 2308-2380. Cf. I. Dam, Rassegna bibliográfica suWAssunzione (1950-
1952), em Echi e commcnti delia prodamazione dei domma dalfÀssun-
zione, Roma, Academia Mariana, 1954, pp. 262-268, ns. 1248-1328.
N. B. — C. de Coninck, La pictè du Fils, Québec, Presses Uni-
versitaires Lavai, 1954, tentou conciliar as teses mortalistas e imorta-
listas por uma engenhosa especulação: Maria teria sido glorificada instan­
tâneamente, mas esta glorificação teria implicado a morte: morte sem
corrupção, pois ela coincidiría estritamente com o instante da glorifi­
cação. A ciência e o engenho que o autor põe a serviço desta
sedutora hipótese nada mais fazem do que tornar mais sensível o ca­
ráter desesperador da empresa. Cf. R. Laurentin, Du nouveau sur l’Ãs-
somption, em La Vie Spirituelle, 93 (1955), pp. 185-189.
“ Os principais representantes desta opinião são M. Jugie (so­
bretudo, La mort de la Sairite Vierge et la spèculation théologique, em
Marianum, 4, 1942, pp. 242 ss., e 5, 1943, pp. 115-130. La mort et l’As-
somption, Roma 1946; cf. Maria, 1, 623-626) e de maneira muito mais
decidida T. Gallus (La Madonna immortale, Torino, Marietti, 1952) e
G. Roscliini (cuja exposição mais recente está contida em La Madonna.
Roma, Ferrari, 1954, t. 3, pp. 255-295). A neutralidade da Bula Muni-
ficentissimus na matéria favoreceu a difusão desta opinião (cf. G. Roschi-
ni, em Marianum, 13, 1951, 148-163). Mas as pesquisas iniciadas para en­
contrar testemunhas na tradição têm sido infrutíferas. Ar.tcriormente
à definição do dogma da Imaculada Conceição (1854), não podemos
descobrir senão um adepto firme e bem seguro da imortalidade, autor
anônimo (talvez I. De Camargo, SJ) cujo Tractatus de immortalitate
B.V./ií., escrito pouco após 1707, foi editado por C. Balic, Roma, Aca■■
158 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

Seu fim é cheio de mistério, como já observava Santo Epifâ-


nio. E os gregos usavam fórmulas veladas para exprimir êste
mistério: êles denominavam “sono” (koimesis, dormitio) ou
“passagem” (niehislasis, Iransitus), esta transição pela qual a
Mãe de Deus passa da vida terrestre à vida celeste. ”
De fato, enquanto tôdas as conveniências levam de modo
convergente e sem restrição ao fato da glorificação corporal
antecipada da Santíssima Virgem, as conveniências em favor
da morte são ao mesmo tempo menos numerosas e contraria­
das por outras.
I. Certamente, convinha a Maria conformar-se com Crislo em Suo
morte antes de tomar parte em sua ressurreição, tanto mais que Ela
é o modelo universal de todos os resgatados. Mas não Lhe bastaria
de ser configurada a Êle pela assistência no Calvário, onde “uma
espada de dor lhe traspassou a alma” (Lc 2,35), onde Ela “morreu
em espirito” com Cristo, segundo uma expressão tradicional que re­
monta a Arnaud de Chartres? Se Sua configuração à morte de Cristo
se realizou apenas desta maneira (espiritualmente e não materialmente),
sua relação com Cristo e com a Igreja parecería mais harmoniosa
em muitos sentidos. Com efeito, sob muitos aspectos, Maria se iden­
tifica mais com a Igreja do que com Cristo. Mais precisamente, onde
Ela se diferencia de Cristo é para se assemelhar à Igreja. Desde que
Ela não morreu no Calvário, ao mesmo tempo que Cristo, mas é con­
figurada espiritualmente á Sua morte, como a Igreja o faz pela lei e o
banho da regeneração, pode parecer oportuno que Ela divida também
com a Igreja o privilégio da imortalidade. Pois, para bem interpretar
os textos, parece que a Igreja, no dia da Partisia, não m o r r e r á . Se
ocorre o mesmo com a Theotókos, a lei, segundo a qual Ela antecipa
em Sua pessoa tudo o que a igreja realiza coletivamente após Ela,
desde o início sem mancha até a glorificação corporal, verificar-se-ia
de modo mais perfeito. Revestindo-se Maria da imortalidade, sem per­
der o corpo mortal, seria mais perfeitamente o fcone escatológico da

demia Mariana, 1948. Os imortalistas estão, pois, forçados a invocar:


1) os que, seguindo Epifânio, declaram ignorar se a Virgem morreu
ou não; 2) diversos textos ambíguos ou difíceis de interpretar (à frente
dêles figura o famoso Timóteo); 3) enfim, argumentos de numerosos
autores, cuja adesão à tese mortalista permanece vacilante e contra­
riada, de modo às vêzes muito pronunciado, por sérias objeções contra
a morte.
” Entre os latinos, Gottschalk, t 1095, disse muito bem: " . . . Non
est dignum tuam corporis sotutionem appellare mortem, sed tantam Vir-
ginis dormitionem vel assumptionem". Opuse. 5, sermo de B .M .V ., 13,
ed. G. Dreves, Godescalcus Lintpurgensis. .. Leipzig, Reiland, 1897,
p. 164.
,0 1 Tess 4,17; 1 Cor 15,51; 2 Cor 5,2-4. Cf. F. Prat, Théologic
de Saint Paul, 16* ed., Paris 1927, t. I, pp. 90-92. Cf. L. Cerfaux, Le
Christ dans la théologic de Saint Paul, Paris, Cerf, 1951, pp. 33-46.
V. Assunção de Maria 159

Igreja incorruptível. " A primeira razão apresentada eni favor da morte


está, pois, fortemente contrabalançada.
2. Uma outra razão parece mais eficaz. Como Cristo, Maria não
conheceu o pecado, mas assumiu as penas do pecado, o que Lhe permi­
tiu cooperar mais eficazmente com a redenção do pecado. Nesta linha,
não convinha que Ela assumisse a pena maior: a da morte? O argu­
mento é impressionante. Mas encontra-se paralelamente neutralizado.
Com efeito, segundo a crença firme da Igreja, Maria foi isenta das
principais penas infligidas a Eva: desordem dos instintos ( conctipisccn-
tia ), servidão da libido (Gn 3,16b), dores do parto (Gn 3,16a), como
vimos às pp. 120, 144-148). A imortalidade aperfeiçoaria harmoniosamen­
te esta série de isenções. Sem dúvida, Maria não foi isenta de todos
os sofrimentos introduzidos neste mundo de pecado. Ela sofreu a an­
gústia ante o desapontamento de José (Mt 1,19), a jornada para Be­
lém, a busca vã de alojamento, o desconforto do estábulo (Lc 2,1-7),
a perseguição de Herodes e a fuga para o Egito (Mt 2,13-19), a vida
pobre em Nazaré, a perda de Jesus no Templo (Lc 2,41-50); o pri­
meiro golpe da "espada” de dor predito por Simeão (Lc 2,35), a co-
paixão no Calvário (Jo 19,25-27), enfim, as perseguições contra a Igre­
ja (At 1,14 e 4,1-7; 5,33-42; 12,1-25; cf. Apoc 12). Em suma, se não
carregou o jugo de certos fardos comuns aos outros homens, Maria
sofreu a maior parte dos outros. A lei destas duas séries de verifica­
ções pode ser formulada assim: Ela sofreu as penas provindas de fora
(perseguições, maldades e perversão do mundo, provações, portanto);
mas não as de dentro, ou seja, aquelas que decorrem, para cada um.
" Os adeptos da imortalidade raciocinam às vêzes assim: “Maria
teve todos os privilégios dos santos. Ora, os santos dos últimos dias
terão o privilégio da imortalidade. Então, Maria deve ter este privilégio”.
Êste raciocínio não tem valor, pois há mais grandeza em partici­
par da condição do Cristo que morreu. Um raciocínio do tipo acima
deveria convencer-nos da conveniência de que Maria tenha tido o pri­
vilégio de morrer mártir, como o supõem alguns autores, pois é o fim
mais digno e glorioso.
O argumento que me impressiona — e que, a meu ver, não tem
sido claramente divulgado — parte de outra premissa maior: a tese
da identificação tipológica de Maria e da Igreja. Poderiamos apresen­
tá-lo sob esta forma:
Maria, tipo da Igreja, possui pessoalmente os privilégios que a
Igreja possui coletivamente (a maior é obtida por indução dos dados
da teologia mariana e eclesiástica). Ora, a Igreja é imortal, pois que
no último dia seus membros se revestirão da imortalidade sem se des­
pojarem de seus corpos mortais (1 Cor 15,51-54; 2 Cor 5,2-4. Cf.
I Tess 4,17).
Presume-se, pois, que Maria se revestiu de imortalidade sem se des­
pojar do seu corpo mortal.
A argumentação pode ser ainda reforçada pela seguinte considera­
ção: onde Maria se diferencia do Cristo é para identificar-se com a
Igreja: assim, tal como a Igreja, Ela é feminina, Ela é resgatada, Ela
venceu na fé, etc., enquanto que o Cristo é homem (v ir), Redentor,
e possuiu durante tôda a Sua existência terrestre a visão beatífica. Ora,
Maria não teve, como Cristo, a morte violenta do martírio. Estamos,
pois, inclinados a presumir que Ela Se une aqui à Igreja no privilégio
da imortalidade.
160 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria
da degradação de sua própria natureza. A êste respeito, a solução que
“arrumaria tudo” seria que Nossa Senhora, como Cristo, morresse de
morte violenta. Por isso, Santo Epiíànio e outros com êle, levantavam
a hipótese do martírio. Mas nada confirma tal suposição. Se Deus ti­
vesse querido dar à Sua mãe uma conformidade tão eloqüente à Pai­
xão, não teria Êle deixado entrever alguma coisa a respeito? De que
morreu, então, a Imaculada? Dificilmente se verá por que um excesso
de amor teria feito a separação da alma antes da assunção dêste cor­
po virginal.
3. Todavia, a Tradição afirma comumente que Maria morreu: esta
afirmação é, mesmo, muito mais antiga do que a da Assunção. Resta
pesar o valor desta tradição. Em que medida será ela uma afirmação
de fé? Em que medida será ela extensão irrefletida de uma servidão
comum à humanidade no caso singular de Ataria? Os primeiros auto­
res que afirmaram a morte de Maria não teriam cedido à mesma faci­
lidade que aqueles que Lhe imputaram o pecado? Não procedería esta
afirmação de dois enganos: o crédito concedido aos apócrifos da dor-
mição e a ignorância da Imaculada Conceição? Tal é o argumento que
os imortalistas põem em relêvo para fugirem à tradição. E’ certo que
êstes dois fatores influiram de algum modo. Os apócrifos difundiram
largamente a idéia da morte (que se encontra nèles mais geral e for­
temente afirmada do que a da Ressurreição). Além disso, os teólogos
da Assunção experimentaram muito mais dificuldades, e até hesitações,
para justificar a morte, do que a Assunção” ; alguns confessam ex­
plicitamente seu embaraço neste assunto. Enfim, todos os latinos até
o século XII enquadraram Maria na massa dos homens manchados pelo
pecado original. Êles punham n’Ela uma razão de morte que não
é verdadeira, o que diminui, pelo menos, o pêso de seu testemunho em
favor da morte. Mas uma coisa é constatar a existência dêsses fato­
res, outra coisa afirmar que êles tenham tido um papel determinante.
Um estudo que avaliasse, sem paixão e sob todos os aspectos, o pêso
dos testemunhos tradicionais, seria de primeira importância neste de­
bate. A espera de tal avaliação, a pressuposição deve influir em favor
da afirmação comum da morte."
” Ver, por exemplo, São João Damasceno, Hom. 8, n’ 10, PG 96,
713 D; Hom. 9, n’ 2, 725 C; André de Creta, Orat. 12 in Dormit., PG
97, 1053 C; e Orat. 13, ibid., 1085 B.
" Não hesitaríamos em dar a esta afirmação comum, onde encon­
tramos tão poucas exceções, um valor absoluto, sem um precedente
impressionante. Até o século VIII, entre os gregos, até o século XIII
entre os latinos, ninguém excetuava Afaria da lei comum do pecado
original. Impressionados por esta aparente unanimidade, os teólogos do
século XI11 rejeitaram maciçamente a doutrina da Imaculada Conceição,
lançada no século XII. Entretanto, com Duns Scotus e Guilherme Ware,
esta idéia se impõe.
Sôbre o valor da tradição relativa à morte, assinalamos a mono­
grafia de G. M. Roschini, 11 Pseudo-Dionigi areopagita e Ia morte di
Maria, in-S’ de 72 pp., Rome, Marianum, 1958. A tese sustentada é a
seguinte: Foi a autoridade do pseudo-Dionísio que deu crédito na Igreja
à morte de Maria. Esta tradição vale o que vale o pretendido “testemu­
nho ocular” dêste autor desde os séculos V-VI. Que o pseudo-Dionísio
tenha exercido alguma influência, G. Roschini o demonstrou ampla-
V. Assunção de Maria lti l

Que devemos concluir? Observamos a reserva da Bula


Munificentissimus que se abstém de precisar se a glorificação
de Maria sobreveio no mesmo instante do “fim de seu destino
terrestre”, ou se passou primeiro por uma separação da alma
e do corpo e, portanto, por uma corrupção. " De um lado, a
morte de Maria não é uma verdade de fé definida como é sua
glorificação corporal. De outro lado, é preciso não ceder ao
mente. Mas os exatos limites desta influência escapam: ela é tardia e
nada prova que tenha sido determinante. Até mais amplo estudo, a
tradição quase unânime relativa à morte guarda um valor impressionante.
“ Esta palavra corrupção é inevitável, desde que se fale numa se­
paração da alma e do corpo, pelo menos na teoria tomista. A alma,
com efeito, não é apenas o principio vital do corpo; ela é sua forma
substancial: ela o constitui intrinsecamente. A distinção fundamental deve,
pois, ser estabelecida não entre a alma e o corpo, mas entre a alma
e a matéria que ela enforma. Esta última distinção permanece inatacável
no atual estado das ciências biológicas, enquanto que a de Descartes
não é mais viável. Ela permite medir a diferença freqüentemente igno­
rada entre corpo c cadáver. Um corpo é matéria viva enformada pela
alma. O cadáver é a figura deixada sôbre esta matéria pela alma desa­
parecida, como a impressão deixada pelo pé num solo mole. Não é,
pois, mais um corpo, mas matéria inanimada, dotada de nova forma
e inferior: ou melhor, não se trata de uma forma, mas de uma mul­
tiplicidade de formas, pois o cadáver não tem mais unidade do que
um conjunto de grãos de areia no qual o pé imprimiu sua forma ao
passar. Esta matéria cessou de pertencer à pessoa morta; retorna ao
ciclo da natureza. A morte que é a perda da forma inferior corres­
ponde precisamente á definição filosófica da corrupção (corruptio est
motus quo amittitur forma substantialis). O fato de que a desagrega­
ção do cadáver seja paralizada por certas condições naturais ou por
uma intervenção miraculosa de Deus não impede que haja alienação
desta matéria e que a transformação do corpo em cadáver realize o
conceito de corrupção.
Vejamos o problema que surge. A tradição afirma a incorruptibi­
lidade de Maria. Sentimos, então, alguma dificuldade em falar, a Seu
respeito, de corrupção. Teria Deus abandonado êste corpo, preservado
de modo tão surpreendente em sua virgindade corporal, a uma contin­
gência mais grave? Podemos tentar eliminar esta dificuldade por uma
distinção.
1. Há, de um lado, a noção filosófica de corrupção que acabamos
de definir. O próprio Cristo sofreu, segundo testemunho de S. Tomás
( Quodlibet 3, art. 4, ed. Vivès, t. 15, pp. 400-401). Certamente, Sua
unidade não foi destruída no nível da pessoa. Seu corpo ficou hipos-
táticamente unido ao Verbo (resta, a êste respeito, um divino mis­
tério). Entretanto, no nivel da natureza, foi destruída a unidade. Houve,
diz S. Tomás, usando S. João Damasceno, vera mors, vera corruptio.
2. Há, por outro lado, a noção empírica. A corrupção é, então,
a destruição e a dissolução dos elementos dos quais o corpo é com­
posto. Cristo não sofreu esta decomposição da carne, do organismo.
E’ neste sentido que S. Tomás entende, seguindo S. João Damasceno,
a palavra do Salmo (15-10): “Non dabis sanctum tuum videre cor-
ruptionem”. Assim também, não há objeção absoluta em que Maria te­
nha conhecido a corrupção no primeiro sentido. Mas é certo que Ela
Breve Tratado — II
102 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

encantamento cia tese imortalista, sedutora, mas demasiadamente


frágil no terreno tradicional, para que se possa tê-la sem mais
como objeto de fé, nem mesmo como opinião sólida. Se parece
pouco provável que a morte seja um dia definida, é certo que
a imortalidade não o será jamais. Deus envolveu de mistério o
fim de Sua Santíssima Mãe. Duvido que levantemos todos os
véus desta questão aqui na terra.
Como quer que seja êste problema, que suscita tantas dis­
cussões apaixonadas, a Assunção marca no destino da Virgem
uma última transição, cujo alcance resta examinar.
Últimos desenvolvimentos
Constatação paradoxal: ao entrar na glória, Maria parece
perder alguma coisa. Ao deixar a condição terrestre e passagei­
ra, cessa de poder merecer. Afas êste traço só é negativo na
aparência: se a Mãe de Deus perde esta capacidade, é que Seus
méritos chegaram ao extremo. Todo o resto é positivo.
Antes de tudo, Ela reencontra Seu Filho após uma dupla
separação: a da vida pública e a do tempo que seguiu a morte
na Cruz. Dai por diante, a união de AAãe e Filho é definitiva.
Dai em diante, ela é sem sombra. Maria não O conhece mais
na fé, através dos símbolos terrestres, obscuros e limitados, mas
no face-à-face da divindade.
Conhecimento materno
Nesta visão bem-aventurada, sua maternidade espiritual re­
cebe seu último acabamento. Desde antes da Anunciação, a Vir-

não a sofreu no segundo sentido. O Cristo não permitiu que a carne


de Sua mãe — a Virgo incorrupta — conhecesse a putrefação.
Do ponto de vista metafísico, esta solução a “grosso-modo" dá
lugar a alguma dificuldade. Com efeito, o corpo do Cristo, morto, guar­
da. de certo modo. Sua identidade. Como diz S. Tomás (Summa Theol.,
III, q. 50, a. 5, ad 2), restava idem numero ratione suppositi (ainda
que, pelo fato da morte, não seja mais idem numero ratione speciei):
êle não tinha mais a unidade conferida pela alma, mas aquela que
conservava sua vinculação á pessoa do Verbo. Ao contrário, o cadáver
da Virgem, se Ela morreu, perdeu esta identidade. Tornou-se pura e
simplesmente separado, estranho à pessoa de Maria. Voltou à pura mul­
tiplicidade do ciclo da natureza; nada mais ligava à Mãe de Deus
o resíduo dêste corpo que havia gerado o Filho de Deus; e o funda­
mento da maternidade divina encontrava-se momentâneamente alterado.
Na falta de qualquer dado positivo firme sôbre êste ponto, perguntamo-
nos com perplexidade se Aquele que preservou o corpo de Sua mãe
(o santuário) da mínima defloração permitiu a alienação, a desintegra­
ção real, mesmo não sendo ela aparente, que implica a corrupção
metafísica.
V. Assunção de Maria 163

gem tinha, dizíamos, uma alma materna para com os homens.


Sua graça materna adquirira seus fundamentos na Encarnação,
depois no Calvário, paralelamente à graça capital de Cristo.
Enquanto Cristo, ao se encarnar, se tornava radicalmente Cabeça
dos homens, Maria se tornou radicalmente sua mãe. Enquanto
Êle se tornou formalmente seu chefe, ao lhes merecer a Re­
denção, Maria tornou-se, formalmente, mãe dêles, ao merecer
com Cristo: foi por isto que Cristo escolheu esta hora para
proclamar sua missão materna (Jo 19,25-27). Esta maternida­
de tornou-se efetiva em Pentecostes, quando o regime da gra­
ça entrou em vigor. No céu ela se torna consciente. Antes, Ma­
ria, mergulhada como nós na obscuridade da fé, não conhecia
o poder e o efeito de Sua intercessão. Ela não conhecia, como
Cristo (Jo 10,12), cada uma das ovelhas do rebanho. Agora
conhece todos os Seus filhos. Ela os havia amado em Seu Fi­
lho com amor universal, mas indistinto; na visão beatífica, co-
nhece-os de modo individual e pessoal, com um conhecimento
particularmente ardente e preciso, com um conhecimento mater­
no mais intimo do que o dos demais bem-aventurados.
Um último traço aperfeiçoa o calor e a intimidade dêste
conhecimento: por Seu corpo, ressuscitado como o de Cristo,
Maria mantém para conosco uma co-naturalidade física e uma
capacidade afetiva, das quais os outros santos estão atualmen­
te privados.
Atividade materna da Virgem
A maternidade celeste de Nossa Senhora implica, então,
num conhecimento muito perfeito de seus filhos, perfeito em
seu princípio, porque procede da visão divina, perfeito em sua
integridade, uma vez que a harmonia sensível de todo o conhe­
cimento humano aí encontra sua plena ressonância. Mas ser
mãe não é apenas conhecer, é também agir. Em que consiste
a ação de Maria em favor de seus filhos? E’ uma questão di­
fícil e discutida.
Um ponto é certo: Maria exerce uma intercessão univer­
sal, uma intercessão viva, que procede do amor. A mãe não
conhece os filhos à moda de um sábio, registando friainente os
fenômenos. Seu conhecimento é pleno de intenções, de desejos,
como o do artista para com suas obras, com a diferença de que
as obras são, aqui, pessoas. Estes desejos de Maria, a res­
peito dos filhos, são os próprios desejos de Deus. E é um
antropomorfismo irrisório o de opor a justiça de Deus à miseri-
i*
164 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

córdia maternal da Virgem. A oração misericordiosa da Virgem


é eficaz, porque é a própria expressão do amor do Deus da
misericórdia.
Seria essa oração inútil? Não, pois Deus, cujo poder não
tem necessidade de ninguém, dignou-se fazer da Redenção uma
obra dos homens, por um desígnio todo de delicadeza, de sorte
que a salvação seja tôda e em cada uma de suas etapas, no
plano celeste, como no plano terrestre, trabalho simultâneamen­
te humano e divino: Deus Se fêz homem para salvar os ho­
mens; associou uma mulher à missão salvífica; colocou a Igre­
ja nas mãos de simples homens, os apóstolos e seus sucesso­
res, e se compraz em lhes deixar fazer obras “maiores” que
as suas (Jo 14,12; cf. 4,38). Deus faz cada homem merecer
(de condigno) sua própria salvação, etc. O papel concedido às
intercessões da Virgem e dos santos manifesta o mesmo pro­
pósito de delicadeza a respeito dos homens. Nesta ordem, Ma­
ria ultrapassa os santos, pois em Seu coração, como no de Seu
Filho, o amor divino encontra perfeita ressonância: ressonância
pura, porque Maria é sem pecado; plena, porque Ela é cheia
de graça; sensível e ardente, porque Ela já está glorificada
integralmente, alma e corpo. Enfim, Ataria é mulher, e isto dá
à sua intercessão um caráter insubstituível. Como o coração de
Cristo dá a harmonia viril do amor divino, o de Ataria produz
a harmonia feminina e maternal. Deus se compraz em escutar
êste duplo eco de suas próprias intenções na liberdade huma­
na. E é por isto que Êle dá tanto apreço à intercessão da santa
humanidade de Cristo e da pessoa da Virgem que Lhe está tão
estrita e harmoniosamente ligada.
Como a oração celeste de Cristo, a de Afaria tem então,
pela livre disposição de Deus, eficácia verdadeira e universal.
Qual é o modo desta eficácia? Sem entrar nas discussões
que derivam desta questão, podemos propor algumas precisões
positivas. O amor de Ataria por seus filhos é, como vimos, ple­
no de anseios e intenções que refletem em seu coração de mu-
** Sôbre esta discussão, encontraremos um bom stalus quaestionis
em G. Roschini, Mariologia, 1947, P .I.S . 4, C. 1, a. 2, § 2, pp. 408-
421, a completar por E. Druwé, La Médiation universclle, em Maria,
1, 558-559, e G. Alastruey, Mariologia, Valladolid, Cuesta, t. II, 1941,
P .I. c. III, a. 2, pp. 176-191. As duas teses em questão são causali­
dade física c moral; mas há muitos aspectos diversos: causalidade in­
tencional, dispositiva, instrumental, etc. Assinalamos felizes observações
no artigo de M.-J. Nicolas, Essai de Synthèse Mariale, em Maria, I,
pp. 739-740, assim como em J. Bur, Médiation mariale, Desclée de
Brouwer, 1955.
V. Assunção de Maria 165
I
lher, cumulada de graças, os próprios desejos de Deus. Ela
repete para Deus o que deseja juntamente com file, de certo
modo assim como uma mulher se compraz em contar a seu ma­
rido e êste em ouvir um pensamento caro, um voto secreto de
seu coração. Em que medida atingem esses desejos os homens?
Por sua virtude própria, êles os atingem intencionalmente, quer
dizer, em pensamento, mas não realruente, isto é, em ação, uma
vez que os desejos humanos, por inais ardentes que sejam, não
trazem em si o princípio de sua realização. Só Deus pode rea­
lizar os desejos sobrenaturais de Abaria para Seus filhos.
Seria, então, preciso representar-se uma ação em dois tem­
pos? Como vemos na Bíblia, Betsabé confia seu pedido a Da-
vid, e depois o deixa agir (1 Reis 1), Maria suplicaria, assis­
tindo depois como espectadora ao desenrolar do poder divino.
Esta representação material e terrestre ignora a comunhão es­
piritual e celeste a qual supõe a visão beatífica. E’ mister des­
confiarmos aqui da imaginação; como recusamos dissociar as in­
tenções de AÃaria das de Deus, guardemo-nos de dissociar a
ação de Deus da de Maria. O céu é, com efeito, para Maria,
como para todos os eleitos, mas em mais alto grau, uma comu­
nhão total, uma interioridade total com Deus. Não imagine­
mos, pois, entre Ela e Ele um diálogo de respostas sucessivas,
ou como o jôgo de uma bola que se passa de um para o outro.
Como a intenção de Deus inspira e penetra inteiramente a inter­
cessão de Maria, a virtude de Deus lhe é paralelamente interior.
O poder divino completa esta fragilidade e esta esterilidade que
são próprias dos desejos humanos. Por esta íntima e delicada
fusão, os anseios de Maria atingem seu efeito não apenas de
modo intencional, mas de maneira real, pois o poder de Deus
inspira e penetra Sua oração, e dá aos seus desejos que são,
como todos os desejos, ações incoativas esboçadas, o poder de
atingir o objeto. Não podemos precisar melhor o modo desta
interpenetração, evidentemente muito diferente daquela que exis­
te no caso dos sacramentos; mas parece que convém a uma
mãe atingir assim seus filhos, não apenas em intenção, mas
realmente. E é também difícil explicar, de forma diferente, a
experiência tão surpreendente e comum da “presença mariana”
na alma dos santos. “

" Sôbre esta questão da presença mariat, assinalamos os artigos


de E. Neubert, Uunion mystique à Ia Sainte Vierge, em Vie Spirituc/le,
50 (1937), pp. 15-29, e de Gregório de Jestis Crucificado, OCD, La
166 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

“Mediação”
Talvez os leitores se surpreendam de não terem ouvido fa­
lar em tudo isto até aqui da “mediação” mariana. De fato, não
seria necessário falar explicitamente, se esta questão não hou­
vesse tomado tanta importância. Com efeito, esta palavra poli-
valente na tradição, inclui, de modo freqiientemente equivoco,
diversos aspectos da missão de Maria, sôbre a qual já falamos
em outros termos.
Sua mediação foi, a principio, a pura intercessão de Sua
prece antes da Anunciação; intercessão já materna, pois Maria
melhor do que Débora, merecia ser chamada “mãe em Israel”
(Jz 5,7). N’Ela, a mediação que Israel havia exercido desde
Abraão em favor do mundo pecador (Gn 18,17-23) atingiu
a mais alta eficácia.
Em seguida, foi o papel de elo que Ela exerceu na Encar­
nação: sua santidade foi uma ponte entre o Deus santo e a hu-
acción de Maria en las almas, em Études Mariales, 11 (1951), pp. 255-278.
Encontramos as primeiras expressões da presença marial entre os
pregadores bizantinos: “Assim como permanecestes corporalmente cojn
os do passado, assim viveis conosco em espirito; a poderosa proteção
com a qual nos cobris é um sinal de vossa presença entre nós". São
Germano de Constantinopla (Scrmo I, in Dorm., III, PG 98, 344 D. Cf.
345 A e 345 C). “Que haverá de mais doce do que a Mãe de Deus?
Ela cativa meu espirito, seduz minha língua, penso n’Ela dia e noite".
São João Damasceno, S. 3 in Dormil., 19, PG 97, 752 BC.
“Doce é Sua memória, porém, mais doce Sua presença” (cuius fejix
memória, sed felicior est praesentia), escreve um autor anterior ao fim
do século XII, talvez, Pedro Damião, Liber salntatorius, ms. da Bib.
Nat. 186, ed. J. Leclercq, em Efem. liturg., 72 (1958), p. 303.
Este fenômeno espiritual é freqüente a partir de São Bernardo.
No século XVII encontramo-lo mesmo em Port-Royal, com Marie-Claire
Arnauld, que denomina Maria: “a única via pela qual posso esperar
a misericórdia de Deus” e acrescenta ainda: “Ocupo-me d’Ela a maior
parte do tempo e não vivo senão sob Sua sombra” (Lettre à áf. Singlin,
em Mémoircs potir servir à l'hisloire de Port-Royal, Utrecht 1742, t. III,
p. 471). As maneiras de expressar esta presença são muito diferen­
tes: “Maria não me abandona. Embora não seja visível, sinto Sua
presença e Sua proteção” (Maria-Colette do Sagrado Coração, 1857-
1907, citada por J. J. Navatel, Socar Marie Colette du Sacré Coeur, re-
ligieuse clarisse du monastère de Besançon, Paris, Gigord, p. 208). “Não
A vejo, mas sinto-A como o cavalo sente a mão do cavaleiro que o di­
rige" (Venerável Cestac, citado por P. Bordarrampe, Le Vénérable L. E.
Cestac, Paris, Gigord, 1925, p. 458. Trata-se, essencialmente, não de uma
presença sensível, mas de uma presença da ordem da fé e da caridade:
um reconhecimento da parte universal e ativa que Afaria toma em de­
pendência do Cristo, em nossa salvação. Devemos distinguir cuidadosa­
mente esta presença da Presença criadora de Deus: Deus nos faz
existir na ordem da natureza e na da graça. Sem Sua ação, deixaría­
mos de existir. A presença de Maria nada opera de tão radical; eja
é da ordem do pensamento, da intercessão e duma ação que nos dispõe
a sermos melhores.
V. Assunção de Maria 167

tnanidade pecadora; por Ela o Verbo pôde entrar sem mácula


na raça maculada. E’ neste momento que Maria é mediadora
no sentido mais significativo da palavra, intermediária entre a
corrupção humana e a transcendência divina para a Encarnação
do Filho de Deus.
Quando se fêz homem, o Verbo se tornou “único mediador”
(1 Tim 2,5). Desde então, a mediação de Maria toma uma
significação nova; já não prepara a mediação de Cristo, mas
a acompanha, nela participando centralmente. Afesmo onde sua
mediação parece tomar uma espccie de consistência própria:
quando Ela vive o papel de elo, que nós vimos entre Cristo
e a Igreja, ou melhor, entre a Igreja da terra e a do céu, é
menos mediadora junto ao mediador, do que n'Êle e por Ele.
Tôdas as forças que Ela emprega em sua mediação, são, de
início e integralmente, um dom do “único Mediador”.
Definitivamente, a “mediação universal” de Maria, no sen­
tido que prevalece hoje, não é senão um outro nome de sua
“maternidade universal” a respeito dos homens. Esta última
expressão apresenta uma vantagem quádrupla sôbre a prece­
dente: é mais homogênea, é mais óbvia e pede menos correções
(pois quem fala em Maria mediadora deve tomar cuidado em
não esquecer a afirmação de São Paulo, de que Cristo é o
único mediador (1 Tim 2,5). Ela é mais significativa; expri­
me, com efeito, o fundamento do papel mediador de Maria.
Enfim, esta expressão mais concreta, mais bíblica também (Jo
19,25-27), fala melhor ao coração.
ícone escatológico da Igreja ressuscitada
Além desta ação universal e maternal que Afaria exerce
cotidianamente na Igreja, é mister assinalar um último aspecto
de seu papel, relativo ao futuro e que se refere ao seu pró­
prio ser: uma função da ordem da causalidade exemplar e final,
que Ela exerce a respeito da Igreja, tomada em seu conjunto.
Na Virgem ressuscitada com Cristo, a Igreja, em marcha para
a glorificação, realiza já a perfeição de seu mistério. Neste pri­
meiro membro que não cessou de precedê-la, ela atinge seu
fim, seu repouso e sua plenitude: a presença corporal, sem véu
e sem fim junto do Cristo ressuscitado. Ao definir o dogma da
Assunção, Pio XII desejou propor solenemente para a Igreja,
sacudida pela adversidade e mergulhada na tormenta, um pe­
nhor de esperança.
SEXTA ETAPA

A PARUSIA
Poderiamos parar aqui, mas é da essência da mensagem
cristã voltar nossa atenção para o futuro. Em direção à perfei­
ção e à consumação de todas as coisas que trará o retorno
do Senhor.
Nesta hora (já presente na Eternidade de Deus), as fron­
teiras do mundo terrestre e do mundo celeste serão abolidas.
O mundo corpóreo se transfigura, Deus é tudo em todos. O tem­
po também está abolido para a Igreja. Esta duração fragmen­
tária, ligada ao caminhar dos homens em direção à sua salva­
ção, dá lugar ao ritmo infinitamente simples da eternidade: ritmo
de Deus que reúne tôda a duração e realiza tôda a esperança.
Aqui, a tarefa materna de Maria cessa, mas Seu amor permanece.
Para Ela, no fundo, nada muda. E’ a Igreja que muda,
e apenas por êste fato, sua situação fica também modificada.
Desde a origem, Ela precedeu a Igreja em tôdas as eta­
pas de sua vida e eis que agora a Igreja A encontra. Entre
elas não há mais diferenças na ordem do espaço e do tempo.
A tensão da terra ao céu, e do tempo para a eternidade, está
abolida. No fim da viagem, ei-las perfeitamente reunidas no
espaço e na duração, cuja medida é Deus.
Maria era, dizíamos, o ícone escatológico da Igreja. Ela
agora já não tem tal função, pois o fim está atingido, e isto
não é mais necessário, pois todos participam intrinsecamente da
Ressurreição de Cristo.
Maria era, dizíamos ainda, a realização pessoal da Igreja
dos resgatados; Ela o é ainda, mas as diferenças provisoria­
mente ligadas a esta função desvaneceram-se. A Igreja continua
a ver Maria em Cristo, mas de modo diferente: não mais como
seu futuro, e sim apenas como o ponto mais alto de sua co­
munhão com Cristo. Ela via Maria como uma frota na tempes­
tade vê o primeiro navio que, passando a barra, alcançou o
pôrto. Agora, ela A encontra no fim da viagem. Não há mais
VI. A Parusia 160

nem separação nem distância, e sim, a alegria comum do reen­


contro com Cristo, e êste diálogo entre elas, que não é senão
uma parte da superabundância da ação de graças dêles.
Nesta comunhão, cujo princípio e fim é Cristo, reencontra­
mos a situação de Pentecostes: Maria na Igreja. Esta situação
se realiza não na terra, mas no céu. Na cidade tôda luminosa,
Maria não tem mais motivos, nem mesmo meios de se apagar.
O sacerdócio hierárquico, ordenado para a administração ter­
restre dos meios da graça que pareciam torná-lo mais impor­
tante do que Ela, perdeu sua utilidade: suas funções não têm
mais objeto. O mundo dos sinais e meios da graça passou, só
as realidades permanecem; as grandezas de hierarquias se apa­
gam; e as da santidade, desveladas, brilham em tôda a sua
glória. Na multidão dos resgatados, ordenados desde então por
sua união a Cristo e não mais segundo sua função, Maria tem
o primeiro lugar, sem medida comum com os outros. Ela apa­
rece na pura verdade da situação em que Deus A colocou, numa
ordem de graça e de glória superior à dos outros. Entre o Re­
dentor que a domina do infinito de sua divindade e os outros
resgatados que Ela envolve com seu amor maternal, Ela exulta
na alegria da reunião. Aqui se cumpre o seu Magnificat.
C O N C LU SÃO

1. Moria e a Igreja
Vimos como a lei do tempo e do progresso afeta o destino
de Maria e o conhecimento que a Igreja tem tido d’Ela no de­
curso dos séculos. Resta compreender o laço desses dois desen­
volvimentos. Por um lado, Maria precede a Igreja e por outro,
a Igreja começa a se distinguir de Maria. Precisemos êstes
dois pontos.
1. No percurso de sua missão, a Virgem realiza de ante­
mão tudo o que a Igreja realizará mais tarde. Antes que a
Igreja apareça, Ela é santa e imaculada. Antes da Igreja, Ela
Se une a Cristo, forma com Ele um só corpo, uma só vida,
um só amor; antes da Igreja, Ela comunga com seus sofrimen­
tos e coopera com a Redenção. Antes da Igreja, enfim, Ela c
elevada ao céu, em corpo e alma, junto ao Ressuscitado.
Portanto, tôdas estas antecipações não são estranhas à Igre­
ja, pois Maria já é a Igreja. Poderiamos, então, também, dizer
que em Maria a Igreja começa a ser santa e imaculada, a ser
incorporada a Cristo, a comungar com seus mistérios e a res­
suscitar com Ele. Nesta perspectiva, a Virgem aparece como o
primeiro membro da Igreja, aquele no qual a Igreja realiza da
maneira mais perfeita, e por antecipação, sua essência mais
profunda, a mais inalienável, que é a comunhão com Cristo.
2. Assim confundida com Maria no ponto de partida, a
Igreja deverá aprender pouco a pouco a distinguir-se de Ma­
ria, de certo modo como uma criança aprende a distinguir seu
corpo do corpo de sua mãe, seu sorriso do sorriso de sua mãe.
Na origem, c durante muitos séculos, a figura de Maria e a da
Igreja permanecem de algum modo indistintas. Diante de mui­
tos textos, e de muitas idéias, hesitamos em decidir se se trata
desta ou daquela, ou de uma e outra simultâneamente. E' pou­
co a pouco que a Igreja aprende, no mesmo movimento, a se
conhecer mais distintamente e a conhecer mais distintamente
Maria. Esta Lhe aparece como o ponto em que ela realiza sua
suprema perfeição, como sua idade de ouro, inicial e final: a
172 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Ataria

idade de ouro inicial é aquela em que a Imaculada era para


ela a única Igreja, para acolher Cristo sôbre a (erra ao mesmo
tempo e viver com Êie na caridade; a idade de ouro final é
esta glorificação de corpo e alma para a qual tende a Igreja
militante, e que a Virgem pessoalmente já atingiu. Quanto mais
a Igreja se afasta de sua idade de ouro inicial, mais se apro­
xima da final, que será a Parusia, e melhor ela descobre em
sua origem esta perfeição de santidade, e diante dela esta per­
feição de glória que é o mistério de Maria. Quanto mais ela
sente a experiência de seus limites, de suas imperfeições, de sua
condição laboriosa, melhor reconhece em Afaria seu ideal e seu
modelo, melhor A venera como o ícone de sua realização, me­
lhor descobre, enfim, o valor de sua assistência cotidiana.
Isto nos leva a precisar o elo entre o Trotado da Virgem
Maria e o Tratado da Igreja. Conforme o que foi dito, somos
tentados a defini-lo por uma espécie de equação:
Maria = Ecclesia
Afas esta identificação, em moda hoje em dia, envolve um
paradoxo e pede algum exame. O problema fica nesta alter­
nativa: Maria na Igreja ou a Igreja em Maria? Maria maior
do que a Igreja ou a Igreja maior do que Maria? De onde a
conseqüência metodológica: o tratado De Maria deve ser con­
siderado como uma parte do tratado De Ecclesia, ou inversa­
mente será o tratado da Igreja que se compreende no pre­
cedente?
Em verdade, não é preciso resolver a alternativa, mas insta­
lar-se nela. Há entre a Virgo Maria e a Virgo Ecclesia uma
inclusão recíproca e uma interpenetração onde Scheeben se com-
prazia de ver uma imagem da circumincessão trinitária. Na
Anunciação, no Calvário, a Igreja se esboça e se oculta em
Afaria; a partir de Pentecostes, Afaria fica oculta na Igreja e
humildemente submissa à autoridade dos apóstolos. Há, de um
lado, inclusão de perfeição e de outro, inclusão de estrutura:
inclusão de perfeição, pois a fé de Afaria e sua união a Cristo
já contêm tôda a perfeição que se desenvolverá na Igreja. In­
clusão de estrutura, pois a Virgem está contida na Igreja visí­
vel, onde nada A distingue exteriormente dos outros membros. "
Ver neste sentido o texto de S. Agostinho, Sermo Denis, 25, 7,
ed. G. Morin, Sancti Augustini sermoncs post Maurinos repcrti, Miscella-
nea augustiniana, vol. 1, Roma 1930, p. 163, 3-8: “Sancta Afaria, beata
Maria, sed melior est Ecclesia quam Virgo Maria. Quare? Quia Maria
Conclusão 173

Ela não é o chefe que resume a Igreja: no dia de Pentecostes é


Pedro quem fala e são os apóstolos que batizam. Perdida na
multidão, Maria ora em silêncio.
Se, então, o tratado da Igreja fôsse apenas um tratado
da vida da fé e da caridade, da regeneração espiritual da hu­
manidade pela graça, da interiorização e da irradiação dos dons
do Espírito Santo, se êle considerasse a Igreja apenas em sua
comunhão mística a Cristo, quer dizer, enquanto distinta d’Êle,
recebendo tudo d’ÊIe e vivendo n’Ê!e esta vida que não passa­
rá, êste tratado poderia ser integrado na mariologia, pois a
Igreja não faz senão continuar a comunhão estabelecida no iní­
cio entre Maria e Cristo.
Mas se considerarmos a Igreja em sua hierarquia: em sua
missão oficial de distribuir os meios visíveis da graça, de trans­
mitir com autoridade as palavras e as ordens de Cristo, de
administrar os sacramentos, de representar visivelmente o Cristo
velado até o dia da Parusia, a Virgem não tem aí função es­
pecial. O tratado da Igreja se constrói ao lado e fora da
mariologia.
Em suma, a Igreja, que é essencialmente Jesus Cristo di­
fundido e comunicado, participa de Jesus Cristo de duas ma­
neiras bem distintas. Ela age em Seu nome e vive sua vida.
Ela faz descer do céu os dons divinos e os recebe. Ela exte-
rioriza a ação de Deus ao executar os ritos sacramentais e a
interioriza pela fé. Administra os meios da graça e os faz fru­
tificar. O primeiro aspecto é a representação oficial de Cristo:
resume-se em Pedro e seus sucessores. O segundo é a comu­
nhão mística com Cristo: resume-se em Afaria. Somos, pois,
levados ao seguinte raciocínio: na medida em que a Igreja é
sociedade exterior, terrestre, hierárquica, tendo por ofício ocupar
visivelmente o lugar de Jesus Cristo entre suas duas vindas,
sua noção se desenvolve fora da mariologia; na medida em que
a Igreja é sociedade interior, celeste, espiritual, tendo por ofí­
cio comungar invisivelmente com Cristo, tem sua perfeita rea­
lização em Afaria.
2. Lugar e Unidade do tratado mariano
Êste ajustamento nos leva a fazer um recuo e a examinar
um último problema: o lugar da teologia mariana no conjunto
portio est Ecclesiae, sanctum membrum, excellens membrum, supereminens
membrum, sed tamen totius corporis membrum. Si totius corporis, plus
est profecto corpus quam membrum’'.
174 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

da teologia. A questão é importante, ao fim de um volume


consagrado exclusivamente à Virgem. Com efeito, o risco de tal
empresa é o de fazer uma mariologia fechada, de perder de
vista o lugar e a significação da Virgem na história da Salva­
ção e no conjunto do dogma católico. O perigo é tão grande que
nos perguntamos se não seria melhor fragmentar o tratado da
Virgem, tratado um pouco artificial, e repartir seus elementos
nas diferentes partes da teologia onde encontrariam lugar mais
natural. Estudaríamos, então, a Imaculada Conceição no tratado
do pecado original, a maternidade divina no tratado da Encar­
nação, a parte de Maria na obra salvífica no tratado da Reden­
ção, sua mediação no tratado da Igreja e sua Assunção no tra­
tado dos novíssimos, sem esquecer algumas observações sôbre
sua fé, sua graça, e sua relação aos sacramentos e aos anjos,
nos tratados correspondentes. Para quem tivesse bastante en­
vergadura e tempo de escrever um tratado completo de teolo­
gia, esta solução seria sem dúvida a mais segura e a mais
fecunda; evitaria fazer da mariologia o que dela se faz constan­
temente: “Um ramo artificialmente destacado da teologia
cristã”. **
Mas permanece legitimo (com cuidado para não cair em
cilada), agrupar a doutrina mariana num tratado. O lugar ló­
gico dêste tratado se situaria, então, entre o de Cristo e o da
Igreja, guardando vivo contacto com ambos. Evitaremos, assim,
dois riscos bastante difundidos.
Um consiste em fazer do tratado De Maria uma cópia do
tratado De Cliristo: tentativas não faltam neste sentido. Partin­
do-se da associação total de Maria ao Salvador, se há de con­
ferir a Ela, sistemàticamente, (com algumas modificações ape­
nas) quase todos os privilégios e títulos do Redentor. São
assim levados a deformar o sentido da “posição de Maria na
ordem hipostática” (acima nota 13), de sua mediação, de sua
co-redenção. Estêve-se ao ponto de lhe conferir uma “graça
capital” ou uma espécie de missão para com o Espírito Santo.
E relegam ao último plano tudo o que constitui Sua diferença
com Cristo e a significação própria de seu papel: sua condição
de simples criatura humana, resgatada, vivendo 11 a fé; de nova
“ P. Bonnichon, Pratique de 1’enseignemenl de Ia théologic Mariale,
em Butletiri de Ia Sociétê française d e s e lu d e s mariales, 2 (1936),
pp. 60-62.
" J. Bonnefoy, Le mérite social de Marie, em Alma socia Chrisli,
Roma, Academia Mariana, 1953, t. II, p. 22. Cf. p. 47.
Conclusão 175

Eva ao lado do nôvo Adão; de mulher; numa palavra, dando


a esta qualidade o pleno valor de sinal que ela tem na Escritura.
Ao contrário, todos êstes traços encontram supremo rele­
vo, se construirmos — como foi proposto recentemente “ — uma
mariologia fundada no princípio de que Maria é o tipo da Igre­
ja. Entretanto, êste princípio inclui um segundo risco parecido
com o primeiro: uma identificação excessiva de Maria e da
Igreja, o que nos conduziría a novos equívocos, que, de um
lado, rebaixariam e de outro, deturpariam o papel da Theotó-
kos. “ E’ mister, pois, manter a mariologia numa tensão fecunda
entre a cristologia e a eclesiologia.
O tratado da Virgem completa o de Cristo. Traz à luz
a circunstância fundamental da Encarnação, assim como muitos
aspectos dos desígnios salvificos de Deus. Vemos aí como o
Verbo entrou na raça humana pela cooperação da mulher que
Ele escolheu para mãe, e como Ele associou esta mãe a tôda
a Sua obra, realizando 1 1 ’Ela a mais perfeita participação pas­
siva e ativa da criatura resgatada na Redenção. Dêsse modo,
Maria aparece como a antecipação desta Igreja, que “Cristo
conquistou com seu sangue” e associa à Sua vida divina e
à Sua obra.
Tentemos resumir tudo. O que determina 0 lugar de Maria
entre Cristo e a Igreja está expresso numa palavra: Theotókos,
Afãe de Deus: do Deus feito homem para nos salvar. Como
dissemos, não se trata de um principio do qual tudo se pode
deduzir (como a geometria, a partir de um postulado), mas
de um centro no qual se pode unir tudo. Com efeito, trata-se
de uma relação pessoal que ultrapassa a idéia que dela possa­
mos fazer, e induz um amor cujas invenções são imprevisíveis.
Compreendemos, ao menos, a partir daí, o segrêdo desta parti­
cipação perfeita, livre e racional ao mesmo tempo, que Deus
adota para com Sua Mãe. Todo o resto é preparação, ou desen­
volvimento desta missão fundamental.

O. Semmelroth, Urbild der Kirche, Wiirzburg, Echter Verlag,


1950: um santo notável.
“ Arriscamo-nos a rebaixar êste papel, ao reduzir a cooperação da
Virgem Maria ao da Igreja (cf. C. Dillenschneider, Le mystère de Ia
eo-rèdemption, Paris, Vrin, 1951, pp. 59-61, 87-88). Arriscamo-nos a
deturpá-lo assimilando-o ao da Igreja, considerada como hierarquia vi­
sível, agindo in persona Chrisli (como dissemos no inicio desta
conclusão).
176 II Parte: Desenvolvimento do Destino de Maria

Mãe de Deus, èste título manifesta, ao mesmo tempo, o


laço de Maria e sua diferença, tanto com Cristo como com a
Igreja. Mãe de Deus, Ela não é uma espécie de segundo Cristo
reduzido, mas a mulher que introduziu Deus no mundo e foi,
a êste título, incorporada em Sua obra da salvação. Nesta du­
pla função, Eia precede a Igreja junto a Cristo menino, junto
de Cristo ao morrer, sem tomar parte nas funções hierárqui­
cas, que não são próprias à sua condição de mulher; precede
a Igreja pela altura sem medida de sua relação materna com
o Verbo feito carne e está colocada, numa ordem à parte, entre
Cristo e a Igreja.
ANEXO I

A Virgem no Antigo Testamento

A Virgem no Antigo Testamento: uma questão em plena revisão.


As exigências da Exegese cientifica romperam com a extrema facili­
dade que reinava neste domínio.
Partamos das duas posições extremas. De um lado, o pseudo-Ber-
nardo, autor místico do século XII: “Tôda a Escritura concerne a Ma­
ria”. ' De outro, a Exegese cientifica literal, que se aproxima mais ou
menos do enunciado contrário: o Antigo Testamento nada nos fala
de M aria.5
Esta confrontação nos conduz à chave do problema. A solução de­
pende dos pressupostos filosóficos e teológicos adotados.
Para um exegeta incrédulo, a questão não tem sentido. Se por
acaso êle fixasse nela seu espírito, poderia apenas admitir isto: Maria
de Nazaré saiu da raça e do meio cultural de Israel; dai podemos con­
siderar que êles A tenham “preparado”, esvaziando esta palavra de
todo o alcance finalista.
A questão toma sentido em função dos dois princípios seguintes
que procedem da fé: Deus é o autor da história religiosa de Israel;
ète a conduz p ara um fim que llie dá seu sentido. Êle è mais precisa-
mente o autor das Escrituras inspiradas, cuja aparente diversidade è
orientada para êste mesmo fim que c o Cristo-Salvador.
Compreendamos o alcance concreto dêstes princípios. Uma frase
inacabada permanece enigmática; seu sentido aparece, uma vez pronun­
ciada a última palavra, que lhe dá a chave. Tal série de diligências
parece estranha, sem nexo. Descobrimos-lhe o sentido preciso, quando
apreendemos o objeto que a inspirou. Assim, o Antigo Testamento dei­
xa transparecer sua significação em função do Cristo-Salvador que
o conclui.
0 que é verdadeiro de Cristo estende-se secundáriamente a Maria
e à Igreja, pois elas fazem parte, estreitamente, da obra da salvação
que se agiganta com Cristo. Nesta perspectiva, descobrimos que Ma­
ria é visada de três modos pelo Antigo Testamento.
I. P repa ra ção Moral

Da humanidade corrompida pelo pecado, Deus destaca uma linha­


gem de fé e de santidade, no fim da qual Seu Filho possa nascer da
raça humana sem contaminação do pecado. A ultima etapa dêste pro-
1 S. 3 sur le Salve Regina, PL 184, 1069.
3 Nas obras de exegese científica, católicas ou não, não é muito
freqüentemente tratada a questão se Maria foi objeto de Gn 3,15; Is
7,14, e Miq 5,1-2.
Breve T ratado — 12
178 Anexo I
gresso se fará num circulo privilegiado dos "pobres de Israel". Afaria
ai se enquadra formalmente no Magnificat (Lc 1,48,52). Precisamos isto
na p. 22, nota 6.
11. P r eparação T ip o l ó g ic a

O projeto de Deus sôbre o mundo completa-se segundo a cadência


lenta da duração humana, atrasada, ainda, pela inércia do pecado.
Deus não realiza, logo, a perfeição; fá-lo progressivamente. A cada
estágio da realização do plano (Israel, a Igreja, o Céu), podemos ver
o esbôço e a prefiguração das formas perfeitas, que estarão no fim.
Assim, discernimos, em cada estágio do desenvolvimento de um em­
brião, o estado imperfeito dos órgãos em processo de formação. Nada
mais delicado do que a apreciação destas correspondências. Em última
instância, só a Escritura e a tradição têm autoridade para discernir
as equivalências tipológicas.
No que concerne a Maria, os tipos se situam principalmente em
três linhas.
1. São, de início, as mulheres do Antigo Testamento, notadamente
as que foram favorecidas com nascimentos milagrosos, as que foram
as ancestrais do Messias, as que favoreceram o triunfo e a salvação
de Israel. Ao aplicar, a respeito de Maria, os têrmos que concerniam
a Sara (“nada é impossível a Deus”, Gn 18,14 e Lc 1,37) ou Judite
(Jdt 13,18-19 e Lc 1,42), Lucas colocou os primeiros marcos desta
tipologia.
2. Mas êle aproxima, sobretudo, Maria de Israel, em seu conjunto:
êle A identifica com a Filha de Sião, de Sof 3,14-17 (acima, p. 30),
o que também faz o Apoc 12.
3. Enfim, sendo a Filha de Sião o lugar de residência de Javé,
Lucas viu em Maria a nova arca da aliança, o lugar de residência
escatológica de Javé-Salvador. Por esta relação, êle abre o caminho
à tipologia dos objetos sagrados. Mais tarde, isto será progressiva­
mente explorado até um bizantinismo que não atrai mais adesão. A
arca da aliança e o templo são, nesta linha, as figuras fundamentais.1
111. P r epa ra ção P r o f é t ic a

Maria está significada de antemão não apenas por realidades ho­


mólogas que A prefiguravam, mas por palavras que A anunciavam. To­
camos aqui no ponto mais delicado: aquêle em que será necessário
ser prudente à espera dos progressos da exegese. A dificuldade é que
se trata de textos alusivos, que os contemporâneos deviam compreender
por meias palavras e cujos subentendidos nos escapam hoje em dia;
a reconstituição que se tentou fazer permanece em grande parte em
conjeturas. Se desejamos renunciar, como convém, aos sentidos acomo-
daticios e aos contra-sensos, será preciso freqiientemente reinterpretar,
voltar a uma das rubricas precedentes, ou mesmo eliminar uma quan­
tidade de textos de que a mariologia tem feito uso abusivo.
Em qualquer hipótese, pouco numerosos são os textos que perma­
necem candidatos a esta rubrica “profecias diretas” ou "oráculos" raa-
* Ver acima, 1’ Parte, notas 10 e 14 e R. Laurentin, Structure et
thèologie de Luc 1-2, pp. 151, 159-161, Paris, Gabalda, 1957.
A Virgem no Antigo Testamento 179

rianos. Para aqueles mesmos que conservarmos, o oráculo parece ficar


implícito dentro de uma tipologia da qual emerge como um cume
dominante.
Ao abrigo destas reservas e dos progressos que estas questões
devem promover, duas séries de textos prendem a atenção:
1 Textos escatológicos cuja significação se realiza simultaneamente
.

em Maria e na Igreja
Vimos em que sentido textos como Cânt 4,7, e Jer 31,22 (conve­
nientemente depurados do contra-senso clássico) deviam ser recupera­
dos (acima p. 122, nota 12).
E’ em Maria que se realiza esta perfeita "conversão” para Deus,
anunciada em Jer 31,22.
E’ n’Ela, também, a Filha de Sião imaculada, que se realiza a pa­
lavra de Javé-Rei a Seu povo: “Tu és tôda bela e não há mancha em
ti” (Cânt 4,7).
Há profecia no sentido de que as palavras do oráculo, cujo alcan­
ce é intencionalmente escatológico, encontram em Maria sua mais pre­
cisa realização. Mas esta visão permanece vinculada à tipologia, pois
que há passagem de Israel (visado pelo sentido óbvio dos oráculos)
a Maria e, finalmente, ã Igreja, onde a profecia se realiza, no prolon­
gamento de Maria. Sof 3,14 coloca-se na mesma linha tipológico-pro-
fética. Há ai um campo para explorar.
2. Textos relativos à Mãe do Messias
Há três dêles cuja intenção mariana parece real, embora tênue,
e pode permanecer implicada em uma tipologia, como os precedentes.
Todos os três visam, mais ou menos diretamente, e mais ou menos ex­
plicitamente, o Messias filho de David.
A. Gn 3,15: A posteridade da mulher inimiga da serpente
E’ a maldição da serpente após a queda: Porei inimizade entre
ti e a mulher, entre tua posteridade e sua posteridade; esta te atacará
na cabeça e tu a atacarás no calcanhar.
O texto é rico. Significa em seu conjunto, e sem lhe precisar o
têrmo, a luta que se desenrolará até o fim dos tempos entre a humani­
dade e o demônio. A Vulgata, que interpreta à luz da Revelação poste­
rior, vai duplamente além do texto inspirado ao traduzir: “Ela (a mu­
lher) te esmagará a cabeça". Em hebraico, é a posteridade da mulher
que está em luta com a posteridade da serpente. E é o mesmo verbo
hebreu (shuph ) que significa o ataque próprio a cada um dos dois
partidos. O sentido preciso dêste verbo raro (usado somente no SI
139,11, e Job 9,17) continua difícil de precisar. Em todo caso, não se
diz explicitamente que um dos dois partidos esmagará o outro. Não
podemos deduzi-lo estritamente de suas posições respectivas ( cabeça
e calcanhar). Gn 49,17 no-lo proibe. Com efeito, êste versículo deu
glória a Dan de ser “uma serpente que morde os calcanhares do cava­
lo" e obteve assim a vitória, porque “o cavaleiro caiu na viravolta”.
O contexto de Gn 3,15 dá, entretanto, vantagem ao homem. Deus o
deixa de pé e joga a serpente à terra (3,14). Deus puniu o homem,
mas não o maldisse; permanece, mesmo, em diálogo com êle e manifesta
12*
180 Anexo I
a seu respeito, uma paternal solicitude (3,21). Ao contrário, maldisse
a serpente, sem ouvi-la (3,14) e é contra o tentador, no próprio qua­
dro desta maldição que Gn 3,15 é pronunciado.
Há mais. Na perspectiva do autor inspirado, na própria perspectiva
do documento J (Javista) que êle utilizou, Un 3,15 parece ser dado
como um primeiro esboço das visões messiânicas expressas em Gn
49,10 (“Chilo a quem obedecerão os povos”) e Nm 24,17 (“a estréia
que sairá de Jacob"). A intenção era perceptível antes de Cristo, pois
a tradução dos Setenta compreendeu a posteridade da mulher no sen­
tido de um descendente misterioso: "Êle observará tua cabeça”. E',
antes do sentido literal, a interpretação paulina da posteridade no sen­
tido de um único, que é o Messias (Gál 3,16). ‘
Concluamos: A probidade exegética obriga a renunciar às interpre­
tações teologicamente sedutoras. O texto inspirado não contém a afir­
mação explícita de uma vitória completa, de modo que os têrmos não
se verifiquem senão na Imaculada Conceição. Só há apenas uma possi­
bilidade de esperança de vitória, e insinuação obscura desta longínqua
vitória. Não temos o direito de deduzir da expressão semen mulieris
que se trata formalmente de maternidade virginal, pois esta expressão
é empregada a respeito de mulheres que não são virgens (Gn 16,10;
24,60).
Em que sentido Gn 3,15 visa a Maria? Antes de tudo, Ela está
incluída objetivamente na descendência de Eva, entre os protagonistas
da luta com a serpente. Em seguida, o fato de ter dado relevo à mu­
lher, à sua maternidade, a insinuação messiânica do texto leva a pen­
sar que o autor teve em vista especialmente nesta luta universal o
Descendente messiânico, e a mulher que devia ser sua mãe. Enfim, é
em Maria que se realiza no sentido pleno "a inimizade” entre a mulher
e a serpente. Estas diversas acepções recebem algum vigor de sua
implicação na tipologia Eva-Maria.
B. Is 7,14: A jovem, mãe do Emanuel
Eis, rapidamente, as circunstâncias do oráculo. As tropas sírias
marcham sòbre Jerusalém. O rei Acaz é ameaçado de ser substituído
pelo “filho de Tabel” (Is 7,6). A dinastia davidica está em perigo. Nesta
grave circunstância, o povo consulta os magos (8,11-18); o rei Acaz
imola seu filho (o herdeiro de David) aos falsos deuses (2 Reis 15,16)
e põe sua esperança nas maquinações políticas comprometedoras para
a pureza do Javismo (2 Reis 16,5-9). O profeta Isaías lembra que Javé
é a salvação: se não crerdes, não subsistireis (Is 7,9b). E propõe a
Acaz, em nome de Javé, um sinal que o deixe livre para escolher. Acaz
recusa êste sinal (que o obrigava a mudar seus projetos) sob o pre-
têxto hipócrita de não querer “tentar a Deus”. Isaías lhe responde em
têrmos enérgicos e acrescenta: . . . O Senhor mesmo vos dará um sinal.

* O texto original oferecia uma possibilidade positiva no sentido


desta interpretação. Gramaticalmente foi mais natural pôr no plural o
pronome que representa a posteridade (Gn 15,13; 17,8-9). O singular
poderia levar ao sentido de um único. Mas não é preciso exagerar esta
solução, pois o uso enunciado não tem nada de absoluto (ver em sentido
contrário: Gn 16,10; 17,17; 24,60).
A Virgem no Antigo Testamento 181
Eis que a jovem concebeu e dá à luz um Filho, e Lhe impõe o nome
de Emanuel.
O texto não é fácil de ser interpretado. Segundo as opiniões
de Movinckel, Hammershaimb, Ringgren, reproduzidas e ajustadas á
perspectiva católica por Cazelles % parece tratar-se de um sinal dinás­
tico: o nascimento de um herdeiro na linhagem prometida a David, se­
gundo 2 Sam 7,14. Mas trata-se de um filho de Acaz, que seria Eze-
quias, ou do último descendente da linhagem: o Messias?
Oscilamos entre duas séries de indícios:
Certos dados do contexto ulterior levam a pensar que o sinal é
muito próximo no tempo (“antes que o menino conheça o bem e o mal”
— quer dizer: tenha atingido a idade da razão — “o pais, cujos dois
reis, temes, será devastado”). Por outro lado, a solenidade do oráculo,
sua coloração escatológica bem marcante, o relevo transcendente do
Emanuel em 9,1-5 e 11,1-9, não permitem compreendê-lo no tempo
imediato.
Levando em conta a mentalidade profética e oriental que não se
preocupa com a univocidade, cara ao nosso pedantismo ocidental, mas,
ao contrário, se compraz em entreter uma certa polivalência, não há
lugar para escolher entre as duas soluções acima; o texto implica inten­
cionalmente (como muitos outros textos proféticos, como hoje em dia
os textos claudelianos) uma dupla intenção.
Segundo a intenção próxima, a mais sensível aos contemporâneos,
o sinal parece ser o do nascimento de Ezequias; e êste símbolo já
era um penhor do futuro da dinastia comprometida tanto pelas tramas
inimigas, quanto pela imolação do herdeiro precedente aos falsos deu­
ses. Mas esta realização imediata estava longe de esgotar o conteúdo
do oráculo; o destino de Ezequias foi mesmo falaz, sob certos aspectos;
êle fracassou em sua reforma, depois veio o exílio; daí em diante os
leitores de Isaías 7,14 procuravam a realização da promessa num fu­
turo mais longínquo. Descobriram a segunda e última intenção, a inten­
ção escatológica e messiânica do oráculo. Compreendiam num sentido
mais forte a filiação divina do herdeiro davidico (2 Sam 7,14; SI 2 e
110); entreviam sua transcendência insinuada por Isaías (9,5-6) e que
esta transcendência postulava uma geração virginal. No século II, a
versão dos Setenta que lança para o futuro a espera do Emanuel, de­
nominará íormalmente a virgem aquela que o texto hebreu designava
como a jovem.
C. Miquéias 5,1-4: “Aquela que deve dar à luz"
"Mas tu, (Belém) Éfrata, a menor das tribos de Judá, é de ti que
nascerá Aquêle que deve reinar em Israel; suas origens remontam aos
tempos idos, aos dias antigos. E’ por isto que Javé os abandonará até
o tempo em que houver nascido aquela que dará à luz. Então, o resto
5 H. Cazelles, La Atèrc du Roi-Messie dans 1’Ancien Testamcnt, em
Maria et Ecclesia (1959), pp. 39-56. Encontraremos ai uma bibliogra­
fia: p. 51, nota 46. Assinalamos muito especialmente A. Hammershaimb,
The Immanuel Sign, em Studia Theologica. III, 2 (1949), pp. 124-142;
J. Coppens, La prophidie de 1'Almah, em Ephem. thèot. Lov., 28 (1952),
pp. 648-678, pensa numa "profecia direta” que não teria outro objeto
senão o Messias escatológico.
182 Anexo 1
dos seus irmãos voltarão aos filhos de Israel. Êle se levantará, fará
pastar seu rebanho pelo poder de Javé... E' êle que será a paz”.
Êste texto é claramente contemporâneo ao precedente; são pare­
cidos: “aquela que deve dar à luz” é a “jovem” de Isaias 7,14. Não
há aqui reprodução da insinuação de um nascimento virginal. Mas o
alcance dinástico é mais claramente marcado. Trata-se de um rei-pastor,
saído da tribo de David. Seu nascimento é claramente projetado para
o futuro e, entretanto, as origens dêste rei remontam “aos tempos idos,
aos dias antigos”, êle rege “seu rebanho pelo poder de Javé, pela ma­
jestade de seu nome, êle é P a z ...”
D. O cenário das Irês profecias
Um estudo do cenário histórico traz aos três textos citados um
esclarecimento interessante.
As rainhas mães tinham uma posição importante nas cortes orien­
tais e especialmente em Israel. Seus nomes foram conservados com
distinção nos livros dos Reis (1 Reis 14,21; 15,2.10; 22,42; cf. 53;
2 Reis 9,6; 12,2; 14,2; 15,2.33; 18,2; 22,1; 23,31.36; 24,18). Elas ti­
nham o titulo de gebirah, e se achavam estreitamente ligadas à honra
e à posição do monarca (Jer 13,18; 22,6). E’ importante precisar que
não é a posição de espôsa do rei que contava, mas a da mãe do rei.
Muito significativa a êste respeito é a comparação entre 1 Reis 1,16
e 31,32,19: Betsabé se prosterna diante do rei David, seu esposo, mas
Salomão, seu filho, prosterna-se diante dela e a faz assentar-se à
sua direita.
Nossos textos entrevêem, pois, Maria essencialmente como a Rai­
nha-mãe do Rei escatológico, ligada como tal à honra de seu Reina­
do. Assim, o Antigo Testamento dá à doutrina da realeza de Maria
uma contribuição positiva.
No quadro desta representação, duas outras precisões começaram
a se impor desde o Antigo Testamento:
l9 As civilizações orientais divinizaram seus reis. Foi uma tenta­
ção para os reis de Israel a de reivindicar uma tal prerrogativa. O
Javismo proibia êste caminho; mas o Espírito Santo o deixou aberto
num ponto. O último descendente prometido a David, ao contrário dos
outros, recebería, na realidade, esta transcendência que outros reis rei­
vindicavam por vã pretensão. Desde o oráculo de Natã, é significada
certa filiação divina do herdeiro prometido, que recebe, em seguida,
sua plena dimensão (SI 2,7 e 110,3). O título de “Deus” será, algu­
mas vêzes, dado a êste filho de David (Is 9,5; SI 45,7). Adivinhamos
a grandeza que caberia, no quadro das idéias indicadas mais acima, à
mãe de um tal Rei.
29 Há, talvez, outra coisa. Em nossos três textos, há em diversos
graus apagamento do Pai, relêvo da mãe, e de sua relação com Deus:
nenhuma menção de Adão em Gn 3,15 ("descendência da mulher"), e
se vive um papel em Gn 4,1 e 25, Eva liga a geração a Deus: “recebi
um homem com Javé” : “Deus me deu uma posteridade”. Acaz é parale­
lamente encoberto em Is 7,14 e a versão dos Setenta parece ter-se
firmado sôbre a idéia de que uma virgem (parthénos) conceberá
por Javé.
A Virgem no Antigo Testamento 183
E’ mister, ainda aqui, esclarecer êste conjunto de textos por meios
extrabiblicos? A questão tem fundamento. Materialmente surpreendente
é a semelhança de Is 7,14 com o texto de Ras Shamra, seis séculos
mais antigo: "Eis que uma jovem concebeu um filho” (Poema de Nikkal,
linha 7, G. R. Driver, Canaanite Myths, Edimburg, 1956, p. 125): a jo­
vem parece ser uma deusa-mãe. Ela é qualificada de virgem. No Egito,
certos faraós eram tidos como nascidos da união de sua mãe com um
deus. * Não é difícil que sugestões dêste gênero tenham funcionado no
sentido de fermentar a reflexão, e tenham servido de ponto de partida
para chegar à revelação do nascimento virginal que se devia realizar
pela virtude do Altíssimo. Se tal é o processo, êste não seria um caso
isolado. A comparação entre a narrativa do dilúvio babilônico e a cor­
respondente em Gn 6-8, e, mais precisamente, entre o salmo do sol
egípcio e o Salmo 104, leva a pensar que a Bíblia deve qualquer coisa
ao meio cultural do ambiente. O progresso da Revelação no Antigo Tes­
tamento se fêz em parte por reflexão sôbre os dados do meio extra-
bíblico que foram assumidos.
Não é, portanto, um sincretismo. Muito ao contrário. Os autores
inspirados nada receberam de empréstimo que não tenham ponderada-
mente escolhido e transformado. Nada de comum entre o ambiente do
dilúvio babilônico e do dilúvio bíblico. “Os deuses” desencadearam o
primeiro por motivos sórdidos: seu domínio escapa-lhes em seguida
como aos aprendizes de feiticeiros. Javé, ao contrário, decide por moti­
vos profundos um dilúvio, do qual Êle permanece Senhor. No hino
egípcio ao sol, o sol é deus; no homólogo bíblico, é um astro como
outros, criado por Deus (104,19, em referência à Gn 1,16). Em suma,
em caso de empréstimo, o autor bíblico transforma profundamente os
dados de que parte, à luz objetiva do Javismo, à luz subjetiva que o
Espírito lhe proporciona. As sugestões tiradas dos meios extrabiblicos
são depuradas, reajustadas, reformadas, enriquecidas ao contacto trans-
formante da Revelação já recebida. O Espírito Santo assume a herança
cultural do autor que êle inspira como uma massa que será modelada
de nôvo. Assim, a matéria-prima da reflexão importa menos do que
o trabalho, de que foi objeto. E o resultado definitivo procede do Es­
pirito Santo, mais do que do elemento cultural utilizado, como uma
estátua procede mais da operação do escultor do que da matéria por
êle empregada.
No caso que nos interessa, o meio extrabíblico trazia sugestões
que tinham prestigio. Era a idéia de um Rei-Deus: Vimos que o Es­
pírito Santo excluiu esta idéia quanto ao presente, mas revelou que
ela era o objeto de uma esperança escatológica válida. Era aidéia
conexa de um nascimento real, no qualDeus substituiría o pai. A
transcendência de Javé excluía radicalmente os compromissos carnais
dos deuses egípcios; só um nascimento virginal podia ser objeto dêste
caminho. O Espírito Santo deixou filtrar sôbre êste ponto uma luz
discreta.
Em todo caso, há diversos graus em Gn 3,15, Is 7,14, Miq 5,1-2,
uma antecipação prestigiosa da “jovem”, da rainha "que devia conce­

* Êstes dados extrabiblicos foram reunidos no artigo de H. Cazelles,


citado na nota precedente.
1S4 Anexo I
ber” nos tempos escatológicos o ‘‘filho de David", que seria, também,
misteriosamente, Filho de Deus (2 Sam 7,14; SI 2 e 110).
E s c ô l i o . M a r ia e a S a b ed o r ia

Onde situar a assimilação clássica de Maria ã Sabedoria? Não pa­


rece nem profecia, nem tipologia. A Sabedoria é, em verdade, uma hi-
póstase de Deus, o Verbo, Segunda Pessoa da Trindade. A aplicação a
Maria não nie parece, então, senão uma prestigiosa acomodação: não
a podemos usar senão com restrições: Maria é uma criatura e não uma
hipóstase divina; Ela não tem preexistência real.
Foi a liturgia que fêz a assimilação de Maria à Sabedoria. E’
útil saber por que meio.
Eclesiástico 24,3-21 (In omnibus requiem quaesivi) foi de inicio
utilizado como epístola sobressalente para a festa das Santas Inês c
Águeda, virgens e mártires. O uso é atestado desde o inicio do século
VII, no Comes de Wiirzburg (editado por G. Morin, em Rcv. Bèn.
27, 1910, pp. 41-74). Quando a festa da Assunção foi instaurada em Ro­
ma eni meados do século VII, deu-se-lhe a mesma epístola.
Provérbios 8,22-35 (Dominus possedit m e . . . ) torna-se no século
X a epístola da festa da Natividade de Maria. Aqui não se trata mais
da extensão à Virgem por excelência de um texto em uso para as
virgens. Desejou-se evocar, ao que parece, as origens , no pensamento
de Deus, d’Aque!a cujo nascimento se celebrava.
São conhecidos os desenvolvimentos dêstetema na sofiologia de
Bulgakov. L. Bouyer, Le trône de Ia Sagesse, Paris, Cerf, 1957, assume
judiciosamente o melhor desta orientação.
ANEXO II

A Virgem nos apócrifos da infância

Há dois grupos bem distintos de apócrifos marianos: apócrifos da


infância, cujo principal é o Proto-evangelho de Tiago, e apócrifos da
morte. Falamos destes últimos às pp. 64-67, mas não ousamos dizer ne­
nhuma palavra des primeiros. Por quê? Porque a sua data e o pró­
prio estado do texto original eram até o presente tão problemáticos,
que a única solução prudente era nada dizer.
Antiguidade do “Proto-evangelho de Tiago"
Ora, à última hora, houve uma novidade.
Um texto até agora desconhecido do Proto-evangelho de Tiago
acaba de ser publicado por O. Testuz, Papyrtts Bodmcr V. Nativité
de Marie, Genebra 1958, II. Trata-se de um papiro do século 111 e,
para surpresa dos especialistas, esta cópia, de uma antiguidade ines­
perada, oferece um texto bastante aproximado daquele que nós conhe­
cíamos. E além disto, trata-se do texto longo, inclusive o final, dito
Apocryplmm Zachariac que a critica (Harnack, C. Michel, P. Peeters)
se pôs de acordo em admitir como sendo tio século VI.
A edição Testuz deixa a desejar; ela dá (não sem alguns erros)
o texto do papiro, mas sem se preocupar em confrontá-lo com os nume­
rosos outros textos e versões. A edição critica ainda está por fazer.
Entretanto, não a esperaremos muito: E. de Stricker, S .J., prepara
sua elaboração no momento em que se imprime o presente volume. Ela
surgirá em 1960 sob o título: La forme Ia pias ancienne du protévangile
de Jacques. Reclierches sur le Papyrus Bodmer V, Bruxelas, Coleção
Subsidia hagiographica, editada pelos Bolandistas.
Tratar-se-á de uma edição critica do texto de acordo com três
papiros, numerosos manuscritos (dos quais um palimpsesto do século
IX), e as versões orientais (siriacas, armênias, saidica), entre as quais
é mister destacar a versão georgiana (derivada de outra armênia),
admiravelmente editada por U. üaritte, em Muséon 70 (1957), pp. 233-265.
O P. de Stricker já pode formular esta conclusão (que generosa­
mente me comunicou): "Parece-me razoável admitir que a obra inteira
existia já no fim e, talvez, em meados do século 11”.
Sôbre estas sólidas bases, podemos daqui em diante situar o Proto-
evangelho de Tiago em seu lugar no desenvolvimento do dogma, numa
época sensivelmente contemporânea a Santo ireneu. A certeza desta
antiguidade dá-lhe um nôvo cunho de importância.
Insinuações Teológicas do Proto-evangelho
Ai encontramos a mais antiga expressão, que nos foi conservada,
da santidade de Maria, de sua virgindade post partam, de sua V i r g i n -
186 Anexo II
dade in partu e, talvez mesmo, da Imaculada Conceição, mas sob uma
forma mítica.
A santidade de Maria? O Proto-evangelho concretiza-a por uma
série de processos de ordem ritual que separam totalmente a filha de
Ana do mundo profano. Em seu nascimento, a mãe a coloca em “um
santuário” que organizou logo de inicio “em seu quarto”. De lá (sem
haver jamais “andado sôbre o chão”), ela passa ao Templo, onde re­
cebe "seu alimento da mão de um anjo” : pura assim de tôda mácula
alimentar.
A Virgindade post partum ? O autor a reforça ao sugerir que os
irmãos de Jesus são filhos de José, nascidos de um primeiro matrimônio.
A Virgindade in partu? Toma a forma de uma constatação da par­
teira Salomé (“se eu não puser meu dedo para examinar... não acre­
d itare i...” E Salomé verificou, etc.).
Quanto à Imaculada Conceição, parece ela se esboçar através da
afirmação de que Maria foi concebida virginalmente sem intervenção
de seu pai Joaquim. Este havia-se retirado ao deserto, onde jejuou
durante “40 dias” (I, 4, Testuz, p. 2). E’ então que o anjo diz à sua
mulher Ana: “Eis que tu conceberás" (no futuro), o que supõe que
a conceição não está realizada (IV, I, p. 7). Ora, pouco após, Joaquim
recebe no deserto o mesmo aviso sob esta forma: “Eis que tua mulher
concebeu” (no passado): o que supõe que tudo foi realizado sem sua
intervenção. De qualquer modo, esta última lição era considerada até
aqui como suspeita e ordinariamente eliminada. Atestada pelo Papyrus
Bodmer V, ela é daqui por diante considerada certa.
Alcance dos apócrifos marianos
Estas constatações fazem estender, senão generalizar, o que dizía­
mos acima, p. 65, nota 60, sôbre a situação dos apócrifos assuncio-
nistas. Os apócrifos da infância, como os da Assunção, parecem uma
antecipação grosseira de verdades que serão reconhecidas pela Igreja,
em outros termos completamente diferentes.
Poder-se-ia ver nisso o fruto de uma tradição histórica explícita
da origem apostólica, mas que se teria depois corrompido? Segura­
mente não.
Os apócrifos representam coisa diferente: são uma primeira tomada
da consciência da Revelação não explícita no nível da imaginação.
A "louca da casa” — esta louca, capaz de gênio, quando sob a moção
de algum pensamento (cf. acima, p. 65) teve, por vêzes, o mérito de
preceder a autêntica explicitação dogmática que devia provir da inte­
ligência esclarecida pela fé.
Mas notemos sobretudo a contrapartida. 1’ A imaginação não pôde
preceder à inteligência, senão na medida em que lhe furtava alguma
centelha da luz verdadeira. 2’ Esta tomada de consciência precoce e
pré-intelectual foi sempre muito falível, em diversos graus: era apro-
ximativa, grosseira, impura, inextricàvelmente mesclada de fabulações
gratuitas, por si inaceitáveis. A legítima reação, que suscitavam estas
fábulas, freqüentemente bloqueara o desenvolvimento autêntico do dogma
durante os séculos (assim no Ocidente, do século VIII ao XII para
a Assunção). A explicitação dogmática não podia fazer-se sem ruptura
■com as aproximações míticas que a haviam precedido, ou, no melhor
A Virgem nos Apócrifos da Infância 187

caso, sem depuração e nova volta às fontes. As narrativas dos apó­


crifos não forneceram senão uma primeira sugestão e material para
a reflexão, cujo alcance não podia ser justamente apreciado, senão
ao fim de um longo trabalho critico proveniente de fontes completa­
mente diferentes.
Quanto à importância dos apócrifos, e mais largamente, do pensa­
mento de estilo simbólico, tão fortemente representado na antiguidade
cristã, seria interessante precisá-la. Mas êste grande problema — sôbre
o qual quase tudo falta dizer — ultrapassa a finalidade do presente
estudo. Êste anexo II propõe-se apenas mostrar o interesse em situar
em seu lugar a grandeza e a miséria dos apócrifos: para que ninguém
se engane, sem dúvida é mister sublinhar: miséria.
ANEXO III

As origens do titulo de Theotókos

De estudos atualmente em andamento sôbre as origens do titulo


de Theotókos, estou em condições de tirar as conclusões seguintes:
1 * Os numerosos testemunhos do titulo de Theotókos, tidos como
anteriores ao segundo quartel do século III, são inautênticos ou sus­
peitos. São êles:
Hipólito de Roma, t 235 (Bênçãos de Jacob, segundo o texto gre­
go editado em TUU, 38a, p. 13, linha 7: “Jo sé... noivo de Maria
torna-se testemunha da mãe de Deus”, e In Canticum, 4, 16, segundo
a versão síria, editada por G. Bonwetsch, GCS, Hippolyte la, p. 359,
9. II. Raliner (Hippolyt von Rom ais Zeuge fiir dcn Ansdruck theotókos,
em Zeilschr. fiir kath. Theol., 59, 1935, 73-81) tentou sustentar a au­
tenticidade destes textos. A edição dos textos armênios das Bênçãos
por L. Mariés, Paris 1935, confirma que a palavra theotókos é interpo-
lada. Cf. B. Reynders, em Bnletin de théol. anc. et mèd., 2 (1933/1936),
pp. 601-602, e J. Lebreton, em Recli. se. rei. 26 (1936), 204. G. Jouassard,
em Maria, I, p. 86, n. 2.
Orígenes (t 253/255): 1 . Comentário desaparecido In Ep. ad Rom.,
tomus I, segundo o testemunho de Sócrates, Hist. Eel., 7, 32, PG 67,
812 AB. 2. In Lucam, segundo diversos fragmentos transmitidos por cor­
rentes gregas, mas nenhum é confirmado pela tradução latina de São
,í> Jerónimo (Hom. 6. GCS, t. 35 = Orígenes, 9, p. 44, 10, é de fato um
fragmento de um texto de Eusébio, PG 23, I341D-1344A; Hom. 7,
p. 279, fragm. 101 é suspeito; quinze outras variantes atestadas por
diversas correntes sôbre Lucas testemunham a facilidade com que se
introduzia o titulo tornado popular de Theotókos nos textos mais an­
tigos). 3. Selecta in Dcuteron., PG 12, 813C, é inautêntico (R. Devreesse,
Anciens Commentaires grecs de rOctatemjue, em Rev. Bibl., 44, 1935,
p. 17S, nota 10).
Igualmente inautênticos, interpolados ou suspeitos são os testemu­
nhos atribuídos a: Dionisio de Alexandria, Ep. ad Pauliim Samosat.,
que é obra do século IV, Piério de Alexandria ('i' 290), Pedro de Ale­
xandria (t 311), o imperador Constantino, João Crisóstomo, etc. Esta
massa enorme de textos de má qualidade se explica pelo fervor dos
copistas e pelo ardor dos polemistas.
2” O primeiro testemunho rigorosamente certo é o de Alexandre de
Alexandria, em 325, Epist. ad Alexandrum Constantinopolitum, n: 12,
transmitido por Teodoreto, Hist. Ecles., 1, 3, PG 82, 908A, editado à
parte em PG 18, 568c, e por H. G. Opitz, Athanasius Werke, III, I,
p. 28, 14-19: “ . . . Nosso Senhor Jesus Cristo teve um corpo verdadei­
ramente e não em aparência (tirado) da Theotókos M aria ...”


As origens do titulo de Theotókos 189

Continua, entretanto, possível, malgrado as objeções de O. Stegmül-


ler (Sub timm praesidium, em Zeitschr. fiir Kath. Theol., 74, 1952,
n” 1, pp. 76-82) que o Sub tuum (atestado pelos papiros nv 470 da
John Rylands Library: “sob tua proteção, nós nos refugiamos, ó Theo­
tókos” . . . ) seja anterior. Não se nega que êle pudesse remontar ao fim
do século III (cf. o artigo Sub tuum, em Enciclopédia Cattolica, 11,
1468-1469, onde figura uma reprodução fotográfica do papiro: a pa­
lavra subsiste maravilhosamente preservada, sôbre um fragmento car­
comido em tôdas as partes).
Não está excluído, também, que qualquer um dos testemunhos sus­
peitos ou inautênticos mencionados acima seja anterior ao de Alexan­
dre. E parece claro que êste último não criou a expressão, mas fêz
eco a um costume já aceito.
Como quer que seja, o titulo nada tem de revolucionário. A Es­
critura havia insinuado de modo significativo (supra, pp. 30-35) e os
Padres da Igreja desde o século II haviam dito claramente que o Filho
de Maria era Deus.
3" A partir do segundo quartel do século IV, os testemunhos se
multiplicam de repente, de sorte que no fim dêste século o titulo é uni­
versalmente difundido. Principalmente entre os Alexandrinos: Atanásio
(t 373) e diversos escritores pseudo-atanasianos, Serapião de Thmuia
(antes de 359), Dídimo, o Cego (t perto de 398) e muitos monumentos.
Na Arábia, com Tito de Bostra (segunda metade do século IV).Na
Palestina, com Eusébio de Cesaréia (t 340), Cirilo de Jerusalém (f
396); na Capadócia, com Basilio (t 379), Oregório de Nazianzo (t
389), Gregório de Nissa (t 394); e mesmo na região da Antioquia, i

XV.
com Eustato (t antes de 337) (testemunho provável), Apolinário de
Laodicéia (t cêrca de 390), Deodoro de Tarso (t antes de 394) (que
não ousa recusar o título e tenta explicá-lo num sentido restrito), Se-
veriano de Gábala (f pouco após 408). E-’ professado mesmo pelos
arianos (Astério, o Sofista, + após 341, e Vita Constantini).
4” Entre os latinos, o principal é Ambrósio que emprega Mater
Dei, De Virg., II, 65, PL 16, 282C.
Bibliografia: V. Schweitzer, Alter des Titels Theotókos, em Der
Katholik, III Série, 28 (1903), 97-113. Ver também R. P. Clément
(Dillenschneider), l.e sens chrctien de Ia maicrnitè divine de Marie aux
IVe e Ve siècles, Bruges, Beyaert, 1929 e G. Jouassard, em Maria,
I, pp. 85-86 e 122-136.
ANEXO IV

A primeira festa mariana no Ocidente

E’ um espetáculo extraordinário para o historiador o de ver a Vir­


gem tomar Seu lugar explicito na liturgia, na sombra do mistério do
Natal. Isto acontece esporàdicamente; a forma litúrgica, a data de ce­
lebração diferem segundo os países; e as datas da adoção são sepa­
radas de um a dois séculos. Esta convergência 11a diversidade mani­
festa que aqui assistimos, não a uma criação arbitrária, mas a uma
eclosão necessária, como a das folhas e das flôres na primavera, quando
chega a época. A Escritura, o dogma, o espírito da liturgia precisavam
desta primeira festa mariana.
Mas é importante sermos rigorosos aqui. Os dados são simultâ­
neamente complexos e fracos e não se encontram em parte alguma
completamente reunidos.
Ei-los, pois, reduzidos ao essencial.
Antes, uma palavra sôbre a ordem desta apresentação. E’ ainda
aqui uma ordem cronológica, mas em lugar de ser a das datas da ce­
lebração (como acima, pp. 62 e 71) é a das datas da instituição des­
tas festas, enquanto no-lo manifestem as atestações chegadas até nós;
quase nunca, com efeito, assistimos à instituição de uma festa: vemo-la
emergir insensivelmente na vida da Igreja.

1. Ültimo domingo do Advento: Norte da Itália, meados do século V


O caráter mariano dêste último domingo é atestado desde a me­
tade do século V pela carta 61 de São Leão (t 361), PL 54, 697, e
sobretudo por quatro sermões sôbre a Anunciação de Pedro Crisólogo
(t c. 450), destinados a êste domingo (PL 52: s. 140, col. 575-577;
s. 142-144, col. 579-588. Ver o estudo de M. Jugie, em PO 19, 311-314).
O caráter mariano é atestado no século VII na liturgia de Áquila:
“Quinta dom[inica] Lucas 1, Mense sexto messus est angelus Gabriel”
(Codex Evangeliorum Rehdigeronus, século VII, citado por G. Morin,
L'année liturgique à Aquilee antérieurement à 1’cpoque caroligienne, em
Rev. Bén. 19, 1902, pp. 1-12), assim como na liturgia ambrosiana, onde
o último domingo do Advento traz a menção: "dom. VI Adventus item
ad sanctam Mariam” (Lejay, Ambrosicn, em DACL, 1, col. 1393).

2. 18 de janeiro: Gália, século VI


Na Gália, no fim do século VI, a versão de Auxerre do martiro­
lógio Jeronimiano traz em 18 de janeiro a menção: “Depositio sanctae
Mariae”. G. Morin, Notes liturgiques sur 1'Assomption, em Rev. Bén.
5 (1888), pp. 342-346. Seria esta celebração que advém "mediante mense
A primeira festa mariana no Oriente 191

undecimo” que visariam Gregório de Tours (t 593/594), em Hist.


franc., X, 31, PL 71, 566, e uma velha homilia que Dom Morin (p. 344)
atribui a Cesário de Aries. Se esta última hipótese tiver fundamento, a
celebração dataria, neste caso, da primeira metade do século VI. En­
contramos remanescentes dela até nos séculos X-XI (H. Barré, em
Rev. Bén., 68 1958, p. 225, nota 4).

3. 1' de janeiro (Oitava do Natal): Roma entre 550 e 595


Em Roma, entre 550 e 595 instaura-se a primeira missa mariana,
destinada a celebrar a maternidade virginal (B. Botte, La première
fête mariale de Ia liturgie romaine, em Ephem. liturgicae, 47, 1933,
pp. 425-430, precisada pelos trabalhos de A. Chavasse, Le Sacramen-
laire Gélasien, Paris, Desclée 1958, pp. 381-383; 651-657. Esta festa
desaparece na segunda metade do século VII, quando da instauração
das festas marianas, inspiradas do Oriente, que lhes reproduzem
as partes.

4. Quarta e sexta-feiras do jejum do décimo mês (futuras Quatro Têm­


poras do Advento): Roma, inicio do século VII
Desde o início do século VII, as leituras do que chamamos hoje
quarta e sexta-feiras das Quatro Têmporas (falava-se então do “jejum
do décimo mês) estavam fixadas. Na quarta-feira, havia estação em
Santa-Maria-Maior; a epístola era a profecia do Emanuel (Is 7,10-14),
o Evangelho: a Anunciação (Lc 1,26). Na sexta-feira, a epístola era
Egredietur virga de radice lesse (Is 1,1-5), o Evangelho: a Visitação.
Com relação às epístolas, o Comes de Würzburg (inicio do século VII)
as menciona. (Ver a edição de G. Morin, Le plus ancien comes ou
lectionnaire de 1’Eglisc romaine, em Rev. Bén., 27, 1910, pp. 63-64,
n? CLXI-CLXIV. Para os Evangelhos, o evangeliário de Würzburg é
cinqüenta anos posterior ao lecionário, mas atesta um costume contem­
porâneo àquele das epístolas, ou também, o mais tardar, no início do
século VII).
Nota importante: estas leituras, que manifestavam a posição de
Maria no mistério do Advento, não têm, de modo algum, o caráter de
“festa” mariana que possuem em diversos graus as outras celebrações
aqui mencionadas, por mais integradas que estejam no “temporal”. O
caráter mariano da quarta-feira das Quatro Têmporas acentuar-se-á,
em seguida, até dar nascimento à devoção da "Missa de ouro”. Ver
Urmser Berlière, em Quest. liturg. et par. 5 (1920), pp. 210-216.

5. 18 de dezembro (Oitava antes do Natal): Espanha, 656


Em 656, o concilio de Toledo fixa em 18 de dezembro: ante octa-
vam diem quo natus esf Dominus, a celebração do “dia de sua mãe”:
Genetricis dies habeatur celeberrimus et praeclarus (Mansi, t. II,
col. 33-34.
Esta decisão que vigorará na Espanha se recomendou pelos costu­
mes das Igrejas longínquas: In multis namque ecclesiis a nobis et spatio
remotis et terris, hic mos agnoscitur retinere" (ib.). Segundo M. Jugie
192 Anexo IV
(PO 19, 311) tratar-se-ia das Igrejas do Oriente. Nenhum texto confir­
ma esta hipótese. Tudo o que encontramos neste sentido são as ates-
tações tardias de uma festa do anjo Gabriel a 18 de dezembro:
l 5 Menológio copta árabe (PO 10, apêndice 3, p. 226);
2" Calendário de Abou’1 Barakát (“dia do anjo Gabriel”, PO 10, 261);
3’ Sinaxário etíope (ib., 26, pp. 30-38) que precisa: “neste dia
também é a comemoração da festa da Anunciação pelo glorioso Ga­
briel”. Relaciona-se com uma aparição da Virgem ao bispo de Daqseyos,
"da região de Roma” (sem dúvida, Constantinopla, a nova Roma):
Ela prescreveu-lhe que celebrasse a Anunciação a 18 de dezembro e não
a 25 de março, que cai na Quaresma. Estas três atestações parecem
ser de origem copta. Mas nada prova que a festa de que se trata seja
a mesma conhecida das Igrejas espanholas.
Lembremos que o Ocidente foi precedido pelo Oriente na institui­
ção da primeira festa mariana, ver acima pp. 61-63 e 71-72.
BIBLIOGRAFIA
Uma bibliografia mariana compreendería cêrca de 100.000 títulos.
E’, pois, preciso fazer aqui uma seleção rigorosa. Ela se inspirará em
três critérios: qualidade, valor documentário, facilidade de acesso.

RESENHAS BIBLIOGRÁFICAS
G. Besutti, Note di Bibliografia mariana, em Marianum, 9 (1947)
pp. 115-137 (apresenta as fontes e o método da bibliografia mariana).
Id. Bibliografia Mariana, Roma, Marianum, 1950. 982 obras e artigos
publicados de 1948 a 1950, ai são agrupados segundo uma ordem sis­
temática criteriosa. Um índice onomástico sistemático permite encontrar
tudo o que concerne a cada questão ou autor. Bibliografia mariana,
II, ibid., 1952, agrupa as obras dos anos 1950-51 (1.220 títulos), Biblio­
grafia Mariana, III, de 1959, compreende as obras dos anos 1952 a 57
(5.776 títulos selecionados). Graças a êsses instrumentos de trabalho
fundamentais, poder-se-ão completar as indicações sumárias que seguirão.
G. Besutti deu ainda uma bibliografia selecionada e comentada
Panorama bibliográfico mariano na Enciclopédia Mariana. Theotókos,
Milano, Massimo, 1954, pp. 801-834.

OBRAS GERAIS
1. A1ANUAIS. — São numerosos. O mais documentado é G. Roschini,
Mariologia, Roma, Belardetti, 1947, quatro volumes. Esta documentação
insubstituível, muitas vêzes de segunda mão, fornece inúmeras pistas,
mas precisa sempre de controle. G. Roschini deu uma versão italiana
adaptada a um público italiano, um pouco maior, e denominada, La
Madonna secondo Ia fede c Ia teologia, Roma, Ferrari, ed. 1953-1954.
Assinalemos dois outros tratados sistemáticos mais breves: J. Keuppens,
Mariologiae compendium, Louvain, Collège Théologique des missions
africaines, 2e édition 1947: de dimensões muito acessíveis (224 pp.)
e munida de uma coletânea de textos mariológicos. B. Merkelbach,
OP, Mariologia, Paris, Desclée de Brouwer 1939. A obra estava esgo­
tada desde 1944. O Pe. Arenillas deu da mesma uma tradução espa­
nhola em que as referências foram feitas com rigor e a bibliografia,
atualizada.
2. ESTUDOS DE CONJUNTO. — M. J. Scheeben, La Mire Virginale
du Sauvcur, traduzido do alemão por A. Kerkvoorde OSB para o fran­
cês, Desclée de Brouwer, Paris, 8* de 209 pp. e tabela, 19X12,5. J.-B.
Terrien, La mère de Dicu, quatro volumes claros e sólidos, reeditados
muitas vêzes desde 1902, por Lethielleux. A última edição contém um
longo prefácio de H. Rondet. E. Dublanchy, artigo Maria, em DTC,
vol. 9, pp. 2339-2374. R. Bernard, Le mistère de Marie, Paris, Desclée
Breve T ratado — 13
194 Bibliografia
de Brouwer 1933, reeditado em 1954. R. Garrigou Lagrange, Mariologie,
Cerf, 2* ed. 1948. J. Guitton, La Vierge Marie, Aiibier, 2* ed., 1954. J.
Nicolas, Sinthèse Mariale, em H. du Manoir, Maria, editada por Beau-
chesne, I, 1949, pp. 707-744. L. Bouyer, Le trône de la Sagesse,
Essai sur la signijication du culle marial, Paris, Cerf 1957, 296 pp.
S. Exc. Mons. M.-M. Dubois, Petite Somme mariale, Paris, B .P ., 1958,
390 pp.
3. ENCICLOPÉDIAS. — H. du Manoir, Maria, Paris, Beauchesne, 4 to­
mos editados em 1949, mais dois a aparecer. (Uma mina de do­
cumentação). Em alemão: P. Straetcr, Katholische Marienkunde, Pader-
horn, Schõningh, três volumes, 1947-1951 (I = Revelação; II = Teo­
logia; III = Culto). J. B. Carol, Mariology, Milwaukee, Bruce, t. I,
1955; t. II, 1957.
4. PERIÓDICOS. — Boletins das Sociedades nacionais de estudos rna-
rianos: Marialc Dagen, Tongerloo, 14 volumes aparecidos desde 1931.
Bulletins de la Sociélé jrançaise d'éludes mariales. 15 volumes, des­
de 1935. Estúdios marianos (Espanha), 18 volumes desde 1942. Estudos
Marianos (Portugal), 1 volume (1944). Marian Studies (U .S .A .), 8
volumes desde 1950. Joumées saccrdotales mariales, 2 volumes (1952-
53). Société canadienne d'étudcs mariales, 4 volumes.
4bis. ACADEMIA MARIANA INTERNACIONAL DE ROMA. — Via Me-
rulana, 124, Roma, fundada e presidida pelo P. C. Balic, OFM, cujas
publicações serão citadas muitas vêzes:
A) Atas dos Congressos Marianos Internacionais: I) Alma Socia Christi
(Atas do Congresso de Roma de 1950), 13 volumes. 2) Virgo Imma-
culata (Atas do Congresso de Roma, 1954), 18 volumes (= 21 tomos).
3) Maria et Ecclesia (Atas do Congresso de Lourdes, 1958), 2 volu­
mes editados e cêrca de vinte a sair.
B) Coleções: Bibliotheca mariana mcdii aevi (8 volumes), Bibliotheca As-
sumptiouis (4 volumes editados), Bibliotheca tmmaculatae ConcCptionis
(8 volumes editados), Bibliotheca Mediationis (1 volume), Bibliotheca
mariana moderai aevi (2 volumes editados).
5. REVISTAS. — Duas revistas teológicas: Marianum (6 Viale XXX
Aprile, Roma), fundada em 1938 e Ephemcrides mariologicae (Buen
Suceso, Madrid), fundada em 1951. Uma revista de vulgarização, Marie,
Nicolet, Canadá, fundada em 1946. Enfim, a Nouvclle Revue Mariale,
fundada em 1954 e transformada em 1957 em Cahiers marials, ado­
tou uma fórmula intermediária.
6. DICIONÁRIO. — Lexicon der Marienkunde, Regensburg, Pustet, com­
preenderá 25 fascículos de 96 páginas. Quatro já foram editados. Ex­
celente realização abundantemente ilustrada.
HISTÓRIA DA TEOLOGIA MARIANA
7. Não existe história geral da Teologia Mariana. Para o problema do
desenvolvimento desta história, ver C. Dilienschneider, Le sens de la
foi et le progrès dogmatique du mystère marial, Roma, Academia Ma­
riana (Bibliotheca mariana moderni aevi, 2) 1954 e C. Journet, Esquisse
du développemeut du dogme marial, Paris, Alsatia, 1954.
Sagrada Escritura 195
SAGRADA ESCRITURA
Antigo Testamento

8. ESTUDOS DE CONJUNTO. — A. Robert, La Sainte Vierge daiis


1'Ancien Testament, em 'Maria, I, pp. 21-39. j. Coppens, La Mire dtt
Sauveur, à la lumière de la théologie vètéro-testamentaire, em Ephem
Theol. lov. 31 (1955), pp. 7-21.
Gen. 3 ,1 5 — Ver bibliografia bastante considerável em R. Laurentin:
L’interprétation de Gen. 3,15 dans la tradition, em Études Mariales 12
(1954), 77-156 e em H. Cazelles, Genèse 3,15. Exegese contemporaine,
ib. 14 (1956), pp. 91-99, que dá sugestões novas e interessantes.
Is. 7,14 — J. Coppens, La prophètie de 1'Almah, em Ephem. Theol. Lov.
28 (1952), pp. 648-678. Id. La prophélie de TÊmntanueí, em Attenie
du Mèssic, Paris, Desclée de Brouwer, 1954, pp. 39-50. H. Cazelles,
Emmanuel, em Calholicisme, fase. 13, p. 56, e, principalmente, La Mère
du Roi-Messie dans 1'Ancien Testament, em Maria et Ecciesia 5 (1959),
pp. 39-56: bibliografia, p. 51, nota 46.
Mich. 5 ,1 — Os artigos relativos a Is. 7,14 todos êles examinam êste
texto, que testemunha a mesma tradição.
A respeito de Canl. e Jer. 31,32 ver acima p. 122 , nota 12.

Nôvo Testamento
9. CONJUNTO. — J. J. Weber, La Vierge dans le Nouveau Testament,
Paris, Alsatia, 1951. P. Gãchter, Maria im Erdenleben Neutestamentliche
Marienstudien, Innsbruck, Verlangenstalt Tyrolia, 1953, in-12 de 260
pp. La Bible et la Vierge, em Êvangile 35 (1954), nova série n° 13, fasci-
culo de 72 pp.). Bible et vie chrètienne, 1954, n* 7, UÊpouse et la parole.
J. Galot, Marie dans I’Êvangile, Paris, Desclée de Brouwer (Museum
Lessianum, n® 52), 1958, 8’ de 198 pp.
Lucas 1-2 — R. Laurentin, Structure et théologie de Lue 1-2, Paris,
Gabalda 1957. Bibliografia comentada de 500 títulos no fim deste
volume.
João 2 ,1 - 2 e 1 9 ,2 5 - 2 7 — F. M. Braun, ÜP, La Mère des fidèles, Essai
de théologie johanniquc, Paris-Tournai, Castermann, 1953, obra básica
que reúne os trabalhos anteriores. Observe-se que o protestante F.
Quiévreux, La Maternitè spirituclle de la Mère de Jèsus dans TÊvangile
de Saint Jean, em Supplément de la Vie Spirituelle 5 (1952), n’ 20,
pp. 101-134, chega por caminhos diferentes e muito originais (o sim­
bolismo dos membros) às mesmas conclusões que F. Braun. A dis­
cussão se reanima sobre João 2, principalmente com o livro de M. E .
Boisnard, Du baptême à Cana, Cerf, 1956 (Lectio divina 18), pp. 133-
159. Ver também A. Thyes, Jean XIX, 25-27 et la maternitè spirituelle
de Marie. em Marianum 18 (1956), 80-117.
Apocalipse 12 — Bernard J. le Frois, SVD, The woman clothcd with
the sun, Apoc 12 Individual or collective, Roma, Orbis Catholicus 1954.
L. Cerfaux, La vision de la femme et du dragon de VApocalypse en re-
lation avec le Protévangile, eni Ephem. theol. lov. 31 (1955), pp. 21-34.
i:;»
196 Bibliografia
A.-M. Dubarle, La femme couronnée d’étoilcs, em Mèlanges Bibliques. ..
A. Robert, Paris, Bloud, 1957, pp. 512-518. A. Tabucco, La donna ravvol-
ta di sole (Apoc 12), em Marianum 19, (1957), 289-334: sôbre a exe­
gese católica de Apoc 12 em meados do século XIX. Lyonnet, Maria
Santíssima nelFApocalisse, em Tabor, Roma 25 (1959), pp. 213-222.
P. Prigent, Apocalypse 12, Histoire de 1’excgèse, Tübingcn, Mohr, 1959.
A. Feuillet, Le Messie et sa Mère d'après le chapitre XII de l'Apocalypse,
em Revue Biblique 66 (1959), pp. 56-88, sustenta uma nova tese: “O
nascimento messiânico descrito pelo Apocalipse não é o de Belém,
mas o de Páscoa; as dores do Parto correspondem ao Calvário", p. 60.
Èstes três últimos estudos apareceram durante a impressão do pre­
sente volume.

TRADIÇAO

10. PATR1STICA. — G. Jouassard, Marie à travers ta Patristique.- ma-


ternitè divine, virginité, saintetc, em Maria, I, pp. 69-157 (bibliogra­
fia pp. 154-157). Este trabalho básico não trata do tema Eva-Maria-
Igreja, para o qual damos bibliografia abaixo. Notemos também H.
Wcisweiler, Das jriihe Marienbild der Westkirche unter dem Einfluss
des Dogmas von Chalcedon, em Scholastik 28 (1953), pp. 321-360 e
504-525. Virgo Immacutata, Roma, Academia Mariana, 1958, t. 4.
11. IDADE MÉDIA. — O estudo de H. Barré, Marie et VÊglise du vé-
nèrable Bède à Saint Atbert, em Bulletin de Ia Société Française d’étu-
des mariatcs, 9 (1951), pp. 59-143, dá uma excelente síntese dêste pe­
ríodo. Sôbre a época carolingia: Leo Scheffczyk, Das Mariengeheimniss
in Frõmmigkeit und Lebre der Karolingerzeit, Erfurter theologische Stu-
dien 5 — Leipzig, St. Benno Verlag, 1959 (XX1V-530 pp.).
Não há trabalhos de conjunto sôbre os séculos seguintes (1270-1600).
Pode-se encontrar uma série de monografias indo das origens do mo-
naquismo beneditino a São Francisco de Sales em Maria, II, J951,
pp. 540-1107 e uma rica documentação agrupada por temas teológicos
em B. Korosak, Mariologia Sancti Alberti Magni eiusque coaequalium,
Roma, Academia Mariana (Bibliotheca Marianna medii aevi n' 8, 1954).
Note-se também os sete primeiros volumes desta biblioteca e o 5*' vo­
lume de Virgo Immacutata, Roma 1958.
12. SÉCULOS XVII E XVIII. — C. Flachaire, La dévotion à la Vierge dans
la littcraturc Catholique au commencement du XVlle. Siècte, Paris,
Leroux, 1916. P. Hoffer, La dévotion mariale au déctin du XVIIIe. Sicde.
A utour... des “Avis salutaires", Paris, Cerf, 1938. Sôbre o século XVIII,
C. Dillenschneider, Mariologie de Saint Atphonse de Liguori, Friburgo
(Suiça) 1931. O tomo I situa muito detalhadamente Santo Afonso em
sua época. Assinalemos, enfim, as numerosas monografias contidas em
Maria, II e III, bem como em Virgo Immacutata (passim).
13. SÉCULOS XIX-XX. — A obra citada de R. Laurentin, Marie, 1'Église
et te Saccrdoce, pp. 346-628 descreve as grandezas e misérias desta épo­
ca. Maria, III, a ela consagra uma série de monografias.
Tradição, Doutrina 197
14. MARIA E OS NAO-CATÓLICOS
A) No protestantismo. — C. Crivelli, Marie et les protestants, em
Maria. I, em pp. 675 a 695; G. Phillips, L'opposition protestante à la
Mariologie, em Marianum, 11 (1949), pp. 469-488. J. Hamer, Les pro­
testants devant la mariologie, em journèes mariaies sacerdotales, I
(1951), pp. 125-149. Y. Congar, Marie et 1’Église cliez les protestants,
em Étudcs mariaies, 10 (1952), 87-106. R. Schinimelpfennig, Die Geschichte
der Marienverehrung in deulschen Protestantismus, Paderborn, Schõningh,
1952. Hamer, Marie et le protestantisme, em Maria, t. 5, pp. 983-1006.
Completar as bibliografias desses autores pelas de A. Roskovány, Im-
maculata ex monumentis omnium saeciilorum, Budapestini, 1873-1881,
t. I, pp. 298-303; t. 3, 1-4; 545-554; t. 6, 418-421 (bibliografia retranscri-
ta em G. Roschini, Mariologia, ed. 1947, t. 1, pp. 306-316, a escolher
e controlar, e de G. Besutti, Bibliografia (1951), n’ 921-926, e
n" 1417-1454.
B) Ortodoxos. — M. Gordillo, Mariologia orientalis, Roma, Pontificium
Institutum Orientalium studiorum, 1954. Ver também o grupo de estu­
dos contidos em Virgo Immaculata, t. 2, 1955, pp. 170-247 e A. Wenger,
Foi et piétè mariaies à Byzancc, em Maria, t. 5, pp. 923-982.
C) Islão. — J. M. Abd el Jalil, Maria et 1’Islam, Paris, Beauchesne, 1950
(substancialmente idêntico ao artigo de Maria, I, 183-211).
15. MAGISTÉRIO. — A. Tondini, Le encicliche mariane, Roma, Be-
lardetti, 1950. Reedição em 1955 (texto e tradução italianos dos do­
cumentos marianos da Santa Sé de 1849 a 1949). J. Bourassé, Sttmma
áurea, Paris, Migne, 1862, t. 7, col. 9-643 (documentos organizados das
Origens até 1860). Notre Dame, ng 205 da coleção Les Enseignements
pontificaux, Paris, Desclée, 1957, 8’ de 456+ (132) pp. Tradução fran­
cesa dos textos, de Bento XIV a Pio XII.

DOUTRINA

16. A1ETODOLOGIA. — R. Laurentin, Un príncipe initial de mèthodo-


logie mariale, em Maria, I, 695-706. Sôbre o problema dos princípios
básicos, ver o status quaestionis de G. Roschini, Mariologia, Roma 1947
(I, 323-337), e a explicação de G. Philips, Perspectives Mariologiques,
em Marianum, 15 (1933), pp. 6-13. A. Müller, Um die Grundtagen der
Mariologie, em Div. Thom. (Frib.), 29 (1951), 384-401. K. Rahner,
Le príncipe fondamcntal de la théologie mariale, em Rech. Sc. rei, 42
(1954), pp. 481-522. C. Dillenschneider, Le príncipe premier d’une théo­
logie mariale organique, Paris, Alsatia, 8' de 192 pp., e os C. R. de
A. Patfoort, em Rev. sc. phil. théol., 41 (1957), pp. 445-454, e R. Lau­
rentin, em Supl. Vie Spirituette, 1956, n° 37, pp. 227-228. Marian stu-
dies, 10 (1959). Sôbre o desenvolvimento do dogma mariano, ver acima,
rubrica n° 7, HISTÓRIA, obras gerais.
17. IMACULADA CONCEIÇÃO. — A história dêste dogma foi intei­
ramente renovada pelos estudos feitos por ocasião do centenário de
1954. Assim, devemos estender-nos neste ponto, mais longamente.
Ií>8 Bibliografia
A) ESTUDOS DE CONJUNTO: M. Jugie e X. Le Baclielct, Immaculée
Conception, em DTC, 7, 848-1218. Este artigo continua válido em suas
grandes linhas. Cf. também Marían Studies, 5 (1954), 8” de 243 pp.:
L'Immaculée Conceplion, compte rcndu... des travaux du VUe. Congrès
Marial nalional de Lyon, Lyon 5, Rue du Mulet, 1954, 8’ de 448 pp.
(Edição das Atas do Congressus Mariologicus Internationalis de Roma,
Academia Mariana, 1954-1958: 18 volumes o 7* e 8’, compreendendo
três tomos cada um. O 19v será consagrado ao indice, indispensável
para orientação do leitor em tal acervo). E' impossível citar tõdas as
atas do Congresso (Quebec, S aragoça...) e números especiais de re­
vistas consagrados à Imaculada Conceição em 1954, por ocasião do cente­
nário. Notemos apenas: Analccta baetica, dez. 1954, Anlonianum, 29
(1954), fase. 4; Arcliivo Ibero-Americano, 15 (1955); Ciência tomista,
81 (1954), n' 252-253; Ephemerides theologicac lovanienses, 31 (1954).
fase. 1-2; Eidos, 1954, n'J 1 ; Estúdios ecclesiásticos, 28 (1954), n* 110-111.
Esludios Marianos, 16 (1955); Miscellanea Comillas, 1954-55, etc. Uma ex­
celente coleção foi editada nos EE.UU. por Edward 0 ’Connor, com
uma colaboração internacional muito aberta: The dogma oj Immaculatc
Conception, Notre-Dame University Press, 1958, 8Ç de 648 pp.
B) FONTES
Origens no Oriente — Os textos mais antigos de que temos conheci­
mento sôbre a Imaculada Conceição são os sermões de João de Eubéia
(PG 95, 1459-1500), Jorge de Nicomedia século IX (PG 100, 1335-1402),
Pedro de Sicilia (PG 104, 1351-1366), Cosmas Vestitor (século X), (PG
105, 1005-1012) e os cânones de André de Creta (PG 97, 1305-1316) e de
um anônimo (PG 106, 1013-1018).
Século XII — Será útil levantar aqui a lista dos principais escritos,
ainda muito dispersos.
1» Antes de São Bernardo: Eadmer (1141), Tractatus de Conceptione.
PL 159, 301C-318D; ediç. critica de H. Thurston e T. Slater, Eadmeri
monachi Canluarensis, tractatus de Conceptione sanctac Mariae, Fribur-
go, Herder, 1904. Osbert de Clare (duas cartas e um sermão sôbre
a Imaculada Conceição, por volta de 1125-1130: ib. pp. 53-83); Anô­
nimo de Heiligenkreuz (Codex, 14: Trois sermons sur Ia Conception;
os dois últimos apenas são anteriores a S. Bernardo). Pseudo-Pedro
Comestor, editado em dois livros raríssimos de P. Alva y Astorga,
Radii solis, Louvain, 1666, pp. 614-621 e Monumenta antiqua Immacula-
tae Conccptionis, pp. 2-12.
2’ São Bernardo (oponente, por volta de 1130-1140) Ep. 174 PL 182,
332-336.
S* Depois de São Bernardo — Controvérsia de Pedro de Celle contra
Nicolau de Santo Albano (PL 202, 613-632). Mestre Nicolau, De cele­
brando Conceptione contra Bcrnardum, editado por C. A. Talbot, em
Rev. Bén., 64, 1954, pp. 92-117). Em oposição ao editor, L. Modric (em
Virgo Immaculata, p. 2 1 , nota 31) pensa que o Autor não é Nicolau de
S. Albano, mas um outro. Pseudo-Anselmo, Sermo de Conceptio­
ne, PL 159, 319-324 (fim do século XII). Sermo de decem privilcgiis
Mariae, Paris, Bibl. Nac. lat. 13203 (por volta de 1200, foi. 140v, edi­
tado por J. Leclercq, em Rev. du moyen âgc latin, 3 (1947), p. 132,
Doutrina 190

nota 102 (reedição falha em Miscell., V, 125, PL 177, 807D). Dois


sermões In Conceptione B. Mariae, Munich, CLM 27129, edit. por H.
Barré em Sciences ecclèsiastiques, 10 (1958), pp. 353-359 (segunda me­
tade do século XII).
Anônimo de Paris, BN ms. lat. 5347, f. 197-210'', fim do século XII.
4" Em data incerta, também no fim do século XII: Pseudo-Pedro Cantor,
Sermo Vcnerandam Conccptionis, e Pseudo-Pedro Abelardo, Sermo Pleri-
que tanto devotionis, são editados no livro rarissimo de P. Alva y
Astorga, Monumenta antiqua, Louvain, 1644, pp. 107-138.
Nota — O famoso Pedro de Conipostela, considerado a primeira tes­
temunha ocidental da Imaculada Conceição, é, na realidade, um autor
do século XIV. L. Modric, De Petro Compostcllano qui primus assertor
Immaculatae Conceptionis dicitur, em Antonianum, 29, 1954, pp. 563-572.
Séculos XIII-XIV — G. Guarrae, J. Duns Scoti, P. Aureoli, Quaestiones
selectae de Immaculata Conceptione, Quaracchi, 1904. Tractatus quator
de Immaculata Conceptione, nempe Thomae de Rossy, Andreae de Novo
Castro, Pctri de Candia et Francisci de Ariminio (Bibliotheca francisca-
na scolastica medii aevi, tomo 16), Quaracchi, 1954. C. Ballic, loannes
Duns Scotus, Doctor Immaculatae Conceptionis I. Textus auctoris, Ro-
mae, Academia mariana, 1955, Id. loannis de Polliaco (Jean de Pouilly)
et loannis de Neapoli: quaestiones disputatae de Immaculata Conceptio­
ne, Sibenici, Kacic, 1931.
Século XVII — Documentos sôbre a importante embaixada espanhola
de 1659 e a redação da bula Sollicitudo de 1661, em Miscellanea Coniillas,
24 (1955), pp. 80-480 (com introdução, pp. 1-75).
Definição — Os documentos depostos na Secretaria dos Breves por
Mons. Pacifici (secretário de Pio IX e das congregações preparatórias
para a definição) foram editados por V. Sardi, La solenne definizione
dei dogma dellTmmacolato Concepimento di Maria Santíssima. Atti e
documcnti, Roma, Tip. Vaticana, 2 vol. 1904-1905.
C) ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA DO DOGMA DA IMACULADA
CONCEIÇÃO: Virgo Immaculata, Roma, Academia Mariana, 1955-1958,
vol. I a 9.
Oriente — M. Jugie, LTmmaculêe Conception dans L'Êcriture et dans
Ia tradition orientale, Roma, Acad. Mar. 1952. Ver também o vol. 4 de
Virgo Immaculata, citado mais acima.
Ocidente — (Por ordem cronológica dos períodos estudados): I.
Modric, Doctrina de Conceptione B. V. Mariae in controvérsia saec. XII,
Roma, 1955, 8Ç de XV-62 pp. (As pp. 1-62 foram reeditadas em Virgo
Immaculata, vol. 5, pp. 13-73). H. Barré. Dcux scrmons du XXIe. Siècle
pour Ia fête de Ia Conception, em Sciences ecclèsiastiques, 10 (1958),
pp. 341-359. A. M. Cecchin, LTmmacolata nella liturgia occidentale an-
teriore al sccolo XIII, em Marianum, 5 (1943), pp. 58-114. Francisco
Guimarães, OFM Cap., La doctrine des thèologicns sur ITmmaculèe
Conception de 1250 à 1350, em Êtudes jranciscaines, 3 (1952), pp. 181-
204; 4 (1954), 23-52; 167-188. L. Rosato, OFM, Doctrina de Immaculata
B. M. V. conceptione secundam Petrum Aureoli, Roma 1959. B. Heiclich,
OFM, De immaculata conceptione secundam Thomas de Sutton, OP, et
Robertum de Cowton, OFM, Roma 1958. C. Sericoli, OFM, Immaculata
200 Bibliografia

B. Af. Virginis Conceptio iuxta Xysti IV Constitutiones, Roma, Officium


libri catholici, 1945 (Bibl. medii aevi, fase. 5). H. Ameri, Doctrina theo-
logorum de immaculata B. V. Mariae Conceplione tempore Concilii Ba-
sileensis, Roma, Acad. mar. 1954. M. Tognetti, L'lmmacolata al Concilio
Tridentino, em Marianum, 15 (1953), 304-374. B. Korosak, OFM, Doctri­
na de Immaculata Conceptione apud auctores OFM qui concilio Triden­
tino interfuerunt, Roma 1958. I. Vásquez, Las negociaciones immacula-
tistas en la Curia romana durante cl reinado de Carlos II de Espana
(1665-1700), Madrid, sem nome de editor, 1957.
Pode-se também encontrar numerosos estudos históricos nas coleções
e revistas citadas acima sob a rubrica: Estudos de Conjunto, espe­
cialmente, Virgo Immaculata, Archivo Ibero-Americano (Séc. XVII es­
panhol), MisceUanea Comillas (id.).
— Os dois estudos fundamentais são:
1 8 . M A T E R N I D A D E D I V IN A .
J . Nicolas, Le concept intégral
de mafernité divine, São Maximino, Revue
thomiste, 1937, 8Ç de 80 pp. e H.-M. Manteau-Bonamy, Maternité divine
et Incarnation, Paris, Vrin, 1949. 8’ de 253 pp. Sôbre o debate entre
êsses dois autores, ver Revue Thomiste, 51 (1951), pp. 214-222. Assina­
lemos também os estudos do vol. 8 (1949) de Estúdios marianos.
1 9 . V I R G I N D A D E . — Faltam estudos de conjunto. Assinalemos Dil-
lersberger, Le mystère de la virginité, Paris, Cerf, 1935 (sôbre um modo
parenético). A.-M. Henry, Virginité de 1'Église, Virginité de Marie, em
Êtudes mariales, 11 (1953), pp. 29-51. Outros estudos são indicados
acima na nota 5 (p. 25) (sôbre o propósito de virgindade de Maria)
e na nota 27 (p. 145) sôbre a virgindade in partu.
J. B. Terrien, La mère des hommes,
2 0. M A T E R N ID A D E E S P IR IT U A L . —
tomo 1, Paris, Lethielleux, 1 * ed. 1902. Estúdios marianos, tomo 7
(1948). A. Baumann, Maria, mater nostra spiritualis, Brixen, Weger,
1948 (testemunhos dos papas, do Concilio de Trento a 1948). T. Koehler,
La maternité spirituelle de Marie, em Maria, I (1949), pp. 573-601.
L. Marvulli, Maria, madre dei Cristo místico. La maternità di Maria nel
suo concetto integrale, Roma, Pontifícia Facoltà teologica, 1948. G.
Geenen, OP, Marie notre mère. Esquissc historique et èvolution doctri-
nale, em Marianum, 10 (1948), 337-352. H. Barré, Marie et 1’Église, em
Bulletin de la Société française d'Êtudes Mariales, 9 (1951, pp. 77-81)
(documentação e bibliografia sôbre o aspecto histórico do problema).
Marian Studies, 3 (1952), 8» de 276 pp. T. M. Bartolomei, OSM, La
maternità spirituale di Maria, em Divas Thomas (PL 55, 1952), pp. 289-
357. R. Laurentin, Lcttre sur le problème de la maternité spirituelle à
iégard des infidèles, em Union missionnaire du Clergé, 13 (1953), n* 4,
pp. 148-155. Depois da sociedade canadense de estudos marianos, que
publicou dois volumes sôbre a Maternidade Espiritual, Ottawa 1958, a
sociedade francesa consagrou seus dias de estudos de 1959-1962 a esta
questão.
21. C O - R E D E N Ç A O . — C. Dillenschneider, Marie au service de la
Rédemption, Haguenau, Bureaux du Perpétuel Secours, 1947; Pour une
corédemplion mariale bien comprise, Roma, Marianum, 1949; Le mystère
t.i' la corédemplion mariale, Paris, Vrin, 1951. J . B. Carol, De co-
u-dci.ndu tx, Rema, Vaíicana, 1950. (O mais vasto inquérito sôbre a
Doutrina 201
questão). R. Laurentin, Le titre de Corédemptrice, Paris, Lethiel-
leux, 1951.
22. A S S U N Ç A O . — M. Jugie, La mort et 1’Assomption, Roma, Vati-
cana, 1944. C. Balic, Testimonia de Assumplione, Roma, Acad. Mar.,
2 vol., 1948 e 1950 (dossiê dos testemunhos sôbre a Assunção) e os
três volumes 6-8 (1948-1950) dos Bulletins de la Société française d’Êtu-
dcs mariales. B. Nieto, La Asunción de la Virgcn en el Arte, Madrid,
Aguado, 1949 (269 ilustrações). O livro de A. Wenger, L'Assomplion de
La Très Sainte Vierge dans la tradition byzantinc du Vlc. au Xe.
sièclc. Études et documents, Paris, Instituto de estudos bizantinos, 1955,
renova completamente a história dêsse dogma e da difusão dos apó­
crifos tanto no Oriente como no Ocidente.
23. M E D I A Ç A O A T U A L D E M A R I A . — J . Bittremieux, De mediationc
universali, Bruges, Beyaert, 1926. W. Sebastian, OFM, De beata Vir-
gine Maria mediatrice. Doctrina franciscanorim ab anno 1600 ad 1730,
Roma, Acad. Mar., 1952. Iconografia: P. Perdrizet, La Vierge de misé-
ricorde, Paris, Fontemoing, 1908. M. Vloberg, La Vierge, notre média-
trice, Grenoble. Arthaud, 1938. O estudo de E. Druwé, La médiation
universelle de Marie, em Maria, I, 417-571, inclui ao mesmo tempo
co-redenção e mediação.
24. R E A L E Z A D E M A R I A . — Os estudos básicos foram realizados por
H. Barre, La royauté de Marie pendant les neuj premiers siècles, em
Rech. sc. rei., 29 (1939), 129-162; 304-334 e Marie, reine du monde, em
Bull. de la Soc. franc. d’Êt. mariales (1937), pp. 21-90. Assinalemos
também: Souveraineté de Marie.Congrès marial national, Boulougne-
sur-Mer, Paris, Desclée de Brouwer, 1938 (estudos de P. Aubron,
pp. 101-126; C. Dillenschneider, 126-148; H. Barré, 149-173). M. J.
Nicolas, Le Christ-Roi des nations, em Revue Thomiste, 44 (1938,
pp. 437-481), et la Vierge Reine, ib. n’ 45 (1939), 1-29 e 207-231.
A. Luís, La realeza de Maria en los últimos veinte anos, em Estúdios
Marianos, 11 (1951), pp.221-252; Marian Studies, 4 (1953), 8’ de
184 pp. Encíclica Ad caeli reginam, de S. S. Pio XII, 24 de out. 1954.
Esta encíclica originou forte corrente de estudos de circunstância, es­
pecialmente: La royauté de ITmmacutàe, Ottawa, 1955, Estúdios Maria­
nos, 17 (1956); uma bibliografia abundante está reunida em Maria, 5,
pp. 1072-1080. Assinalamos principalmente o último livro publicado sô­
bre o problema: Maria et Ecclesia. 5 Mariae potestas regalis in Ecclesiam.
Roma 1959: comunicações da Sociedade francesa de Estudos marianos
ao Congresso de Lourdes de 1959.
2 5 . E V A , M A R I A E A I G R E J A . — H . Coathalem SJ, foi o primeiro que
decifrou de modo assaz penetrante a história dêsses temas no Ociden­
te. Sua tese, defendida em 1939, Le parallélisme entre la Vierge et
1'Église dans la tradition latine jusqu'à la fin du Xlle. siècle, foi pu­
blicada em Roma, Apud Sedes Universitatis Gregorianae, 1954. Esses
estudos foram prolongados pela Sociedade Francesa de Estudos Ma­
rianos: Études mariales, 9-11 (1951-53). Marie et 1'Êglise, l-lll (Biblio­
grafia no fim do 1’ volume) e 12-15 (1954-1957), La nouvelle Èvc,
I-1V. Estúdios marianos, 18 (1957), Marian Studies, 9 (1958). O con­
gresso mariano de Lourdes em 1958 foi consagrado ao mesmo assun­
to: Maria et Ecclesia (ver acima n' 4 bis, A), que está sendo publicado
202 Bibliografia

CULTO, DEVOÇÃO, ESPIRITUALIDADE

26. CULTO E LITURGIA. — Maria, I, pp. 215-116. R. A. Flctcher, The


festival of the Annunciation, tese datilografada de 200 pp. (Oxford
1954?), cuja publicação vivamente recomendamos. Apareceu um excerto
em Byz. Zeitschr., 51 (1958), pp. 53-64. T. Maertens, l.e developpement
liturgique et bihlique du cutte de . Marie, em Paroisse et liturgie, 36
(1954), n' 4, pp. 225-251.
27. VIDAS DE MARIA. — E. Neubert, Vie de Marie, Salvator, Mulhou-
se, 1936. F. M. Willam, Maria. Muttcr und Geführtin das Erlõsers, Frei-
burg-in-B., Herder, 1953. Edição refundida, trad. em franc. por M.
Grandclaudon, Marie, Mère de Jésiis, Mulhouse, Salvator, 1954. G. Roschi-
ni, Vita di Maria, Roma, Belardetti, 1945. M. Vloberg, Vie de Marie
(ilustrada), Paris, Bloud, 1945. Lázaro de Aspurz, OFM Cap., Historia
de Maria, Madrid 1955.
28. ESPIRITUALIDADE. — Citamos apenas a obra clássica de L. M.
Grignion de Montfort, Le traitê de la vraic devotion à Ia Sainte Vierge,
ed. Calvaire Montfort (Pont-Château, L.-inf.) — e, entre os livros re­
centes: M. V. Bemadot, Notre-Dame dans ma vie. Paris, Cerf (nume­
rosas edições). F. Sheen, Le premier amotir du monde, trad. do ame­
ricano por M. Loutrel-Tschirret, Tours, Mame, 1951. R, Laurentin,
Notre-Dame et la messe, Paris, Desclée de Brouwer, 1954.
29. QUESTÃO DA ‘‘PRESENÇA DE MARIA”. — E. Neubert, Lunion
mystique à la Sainte Vierge, em Vie Spirituelle, 50 (1937), pp. 15-29;
La Vie d’union à Marie, Paris, Alsatia, 1954. Gregorio de Jesus Cru­
cificado, La acciòn de Maria c/t Ias almas, em Estádios Marianos (1951),
pp. 255-278.
30. COLEÇÃO DE TEXTOS. — R. Régamey, Lcs plits beaux textes sur
la Vierge Marie, Paris, La Colombe, 1941.
31. APARIÇÕES. — Os teólogos têm muitas vêzes tendência a de­
preciá-las. Por duas razões. 1’ Sabem que a Revelação está encerrada,
e que não têm que fundar seus trabalhos sôbre essas manifestações do
céu, e, sim, sôbre a Escritura, a Tradição e as diretivas do Magisté­
rio. 2” Ficam repugnados pela mediocridade e excitação quase deli­
rante de certas publicações sôbre êsse assunto. Entretanto, não se deve
desconhecer o interêsse dêsses apelos, cujos dois principais, l.ourdes
e Fátima, receberam as mais altas aprovações da Igreja. Se, portanto,
não temos a estrita obrigação de crer nas aparições, teriamospouco
senso de Deus e da Igreja, colocar-nos-iamos mais ou menos grave­
mente fora de sua vida, se recusássemos seja em teoria, seja na prá­
tica, tudo o que fôsse dêsse domínio. Saber-se-á o essencial sôbre as
aparições, lendo, por exemplo, J. Goubert e L. Christiani, Les appa-
ritions de la Sainte Vierge, Paris, La Colombe, 1952. L. Lochet, Appa-
ritions, Paris, Desclée de Brouwer, 1957, 160 pp. (teologia e espiri­
tualidade das aparições). H. Maréchal, Memorial des apparitions de la
Vierge dans 1'Êglise, Paris, Cerf, 1957, 264 pp. Observemos, entretan­
to, que resta fazer o exame crítico da maioria das aparições.
Bibliografia mariana do Brasil 203
Sôbre Lourdes (centenário em 1958), ver F. Trochu, Sainte Berna-
dette, Lyon, Vitte, 1953. R. Laurentin, Sens de Lourdes, Paris, Lethiel-
leux, 1955, e Lourdes. Doeuments authcntiqucs, Paris, Lethielleux, 1958,
publicação integral das fontes: 5 volumes.
32. PEDAGOGIA E QUESTÕES PRATICAS. — La doctrine mariale
dans Vexposè de la foi. Número especial de Êvangèliser, 7 (1953), n9 40,
pp. 315-317. La Vierge Marie et la jormation retigieuse, número especial
de Lumen Vitae, 8 (1953), n9 2, pp. 196-312.
A fim de atualizar esta bibliografia, e manter-se ao corrente das
pesquisas marianas, sigam-se as crônicas regulares de R. Lau­
rentin em La vie Spirituellc e Supplóment, e os relatórios de
A. Michel, em A mi du elergè, J. Galot, em Nouv. rev. thèol., G.
Philips, em Ephem. Théot. Lov., J.-M. Nicolas, em Revue thomistc
(boletins muito espaçados), bem como as revistas marianas es­
pecializadas: Ephemcrides mariologicae e Marianum.

COMPLEMENTO

Bibliografia Mariana do Brasil

Gerais
Mariano Diekhans, O .F.M ., Maria Santíssima, Mãe de Deus e dos
Homens, Editora Mensageiro da Fé, Baia 1954.
E. Vogt, S .J., O nome de Maria à luz de recentes descobertas arqueo­
lógicas, REB I (1941), 473-481.
A. Lorscheider, O .F.M ., O mistério de Maria na pregação.
Maternidade de Nossa Senhora
C. Koser, O .F.M ., O constitutivo metafísico da maternidade divina
de Maria Santíssima, REB 14 (1954), 285-304.
Imaculada
M. Diekhans, O .F.M ., O “debitum peccati originalis" em Maria San­
tíssima, REB 17 (1957), 331-341.
C. Koser, O .F.M ., A teologia da Imaculada em Duns Scotus, REB
14 (1954), 610-676.
Virgindade
G. Baraúna, O .F.M ., Sôbre a virgindade de Maria no parto, REB 20
(1960), 923-926.
M. Diekhans, O .F.M ., Lc 1,34 e a virgindade de Maria Santíssima,
REB 20 (1960), 29-35.
Assunção
A. Charbel, S .D .B ., A Assunção de Nossa Senhora e o Antigo Tes­
tamento, REB 10 (1950), 30-43.
R. de A. Cintra, O .P ., A Assunção de Nossa Senhora segundo os es-
colásticos da Idade Média, REB 10 (1950), 86-98.
204 Bibliografia

M. Hoepers, O .F.M ., A Assunção de Nossa Senhora e o Nôvo Tes­


tamento, REB 10 (1950), 44-61.
B. Kloppenburg, O .F.M ., Questões teológicas em tórno da morte da
Mãe de Deus, REB 9 (1949), 307-333.
— O segundo Cânon de Orange (529) e a Assunção de Maria, REB
9 (1949), 608-635.
— O nôvo dogma da Assunção, REB II (1951), 564-595.
C. Koser, O .F.M ., O argumento da assunção fundado sôbre o II cânon
do II Sinodo de Orange, REB 10 (1950), 203-240.
J. A. M. Lima, A Assunção de Nossa Senhora nos dez primeiros sé­
culos, REB 10 (1950), 62-72.
O. Pessini, C .F.M ., O argumento da Imaculada Conceição e a Assun­
ção, REB 10 (1950), 188-203.
U. Thiesen, S .J., A Assunção de Nossa Senhora e a Liturgia de sua
festa, REB 10 (1950), 72-85.
0. M. Vilela, C .SS.R ., A morte de Nossa Senhora na história e na
teologia, e sua relação com a Assunção, REB 10 (1950), 121-187.
Corredenção, mediação, realeza, etc. (privilégios sociais)
G. Baratina, O .F.M ., O estado atual da controvérsia sôbre a correden­
ção mariana, REB 20 (1960), 303-325.
— Qual o grau de certeza da corredenção mariana? REB 20 (1960),
584-606.
— Ensaio critico sôbre a teoria da corredenção receptiva, REB 21
(1961), 627-645.
— Será o mérito corredentivo de Maria de côngruo ou de condigno?
REB 22 (1962), 354-374.
C. Koser, O .F.M ., A realeza de Maria Santíssima, REB 17 (1957),
606-623.
J. E. M. Terra, S .J., A corredenção mariana, REB 16 (1956), 345-356.
G. Van Rooijen, M .S.C., A essência da realeza de Maria, REB 16
(1956), 840-852.
Mariologia e ecumenismo
G. Baratina, O .F.M ., Movimento ecumênico e movimento mariano: an­
tinomia ou harmonia? REB 23 (1963), 333-368.
— A caminho de uma teologia e pastoral mariana mais ecumênica,
REB 23 (1963), 623-657.
LÉXICO

Se as notas dêste volume apresentam, por vèzes, um caráter técnico,


seu texto, entretanto, procurou evitar ao máximo os têrmos estranhos
à linguagem corrente. Uns, no entanto, dificilmente substituíveis, cujo
conhecimento é necessário â cultura do cristão, foram empregados algu­
mas vêzes.
E aqui damos sua explicação sumária:
Desenvolvimento dogmático: Progresso do conhecimento que a Igre­
ja adquire da Revelação de Cristo. A palavra desenvolvimento, que signi­
fica mudança homogênea (com permanência da espécie) é preferível à
palavra evolução que significa, em linguagem moderna, uma mudança
heterogênea (ex.: uma espécie animal que dá origem a outra espécie).
Docetismo: Heresia, segundo a qual o corpo de Cristo teria sido,
não um corpo real, mas uma aparência.
Exegese: Essa palavra técnica designa ordinariamente a disciplina
que se refere à interpretação cientifica dos textos bíblicos.
Exegeta: Designam-se por êste nome (sem maior precisão) todos
os que se dedicam à exegese escriturária, isto é, à interpretação das
Escrituras segundo os métodos das ciências históricas.
Explicitação: Progresso pelo qual um pensamento passa de um es­
tado implícito (isto é, oculto) a uma forma explicita (cf. palavra
seguinte).
Explicito: Expresso de maneira direta e distinta (por oposição ao
que está mais ou menos obscuramente em uma afirmação).
Implícito: Pensamento expresso de modo indireto, indistinto, con­
fuso, oculto.
Icone: Imagem que possui valor sacral.
Maniqueismo: Heresia cuja história é complexa: explicava o mal
pela existência de um princípio mau, independente de Deus. Assim, no
mundo, o bem adviria de Deus, e o mal, do principio mau (a obra da
carne, o ato carnal era considerado como originário dêste princípio).
Parusia: Transcrição de uma palavra grega que significa presença
ou vinda. Na linguagem cristã: Volta gloriosa de Cristo no fim dos
tempos.
Patristica: Estudo dos Padres da Igreja.
Padres da Igreja: Essa palavra, tornada no sentido estrito, designa
os escritores que têm as seguintes características: anteriores à metade
do século VIII, recomendáveis pela santidade de sua vida, pela pureza
de sua doutrina e aprovação da Igreja.
206 Léxico
Relação: O capitulo sôbre a maternidade divina refere-se à meta­
física da relação. Em suma, uma relação é a referência de uma coisa a ou­
tra. Tôda relação comporta os quatro elementos seguintes: o sujeito (afe­
tado pela relação), o têrmo (com o qual o sujeito está em relação),
o fundamento (de onde resulta a relação) e a relação que resulta de
tudo isto. Assim, na maternidade, o sujeito é a mãe; o têrmo, o filho; o
fundamento, a geração; a relação, a maternidade. Para a relação de
filiação, o fundamento é o mesmo, mas sujeito e têrmo são invertidos:
o filho é sujeito da relação, e a mãe, o seu têrmo. Quanto às diversas
espécies de relação, consultar os manuais de filosofia.
Salvtfico: Que salva (do latim: salvum facit).
Soteriológico: Que concerne à salvação (do grego, sôtéria, salvação).
Triduum mortis: Üs três dias durante os quais o corpo de Cristo
permaneceu no túmulo.
ÍNDICES
ÍN D IC E dos textos m a r ia is da e s c r it u r a

Reproduzimos aqui unicamente os textos que dizem respeito à Vir­


gem ou que lhe foram formalmente aplicados.
Gênese Lucas
2,18 51, 87 1-2 23, 25, 27, 29, 34, 37,
3,15 17, 21, 38, 42, 50, 78 45, 107
3,16 42, 56, 146, 159 1,26-38 29, 67,
3,20 20 , 38, 40, 51 1,28 27, 134
4,25 40
18,14 29, 178 1,28-33 141
1,34 24, 25, 127, 131, 149
Êxodo 1,35 24, 27, 32, 37, 48, 129,
40,35 32, 129, 134 143
2 Sam 1,37 29, 178
1,38 45, 48, 124, 126, 127, 138,
33, 181, 184 149
Judite 1,39-45 45, 107
13,18-19 33, 178 1,46-55 45, 107
1,56 33
Provérbios 2,1-7 159
8,22-35 184 2,6 147
Cânticos 2,19 21
2,35 35, 58, 82, 149, 153, 158
4,7 122, 179 2,48-50 34
Eclesiástico 2,51 24, 136
24,3-21 184 8,19-21 20
11,27-28 28, 150
Isaías
7,14 17, 21, 24, 25, 26, 147, João
178, 180, 181 1,13 37, 131
Jeremias 2,1-12 16
31,22 121, 179 19,25-27 16, 36, 38, 39, 45, 70,
105, 156, 159, 163, 167
Aliquéias
5,1-2 17, 21, 42, 181, 183 Atos
Sofonias 1,14 45, 155, 156, 159
3,14-17 30, 178 2,42-46 156
Alateus Romanos
1-2 23 1,3 19
1-16 24
2 , 1-11 Gaiatas
12,46-50 20 4,4-5 19
Marcos
3,31-35 20, 28, 150 Apocalipse
6,3 20 12 42, 43, 159
Breve T ratad o — 1-1
ÍN D IC E o n o m á s t ic o dos autores

Abd cl Jalil, J. M. 197 Bellet, P. 156


Abelardo, P. 82 Bento XV 197
Adam, A. 102 Berlière, U. 191
Afonso de Ligório, Santo 94 Bernadot, M. V. 202
Agostinho, Santo 47, 52, 54, 59s, Bernardo, São 25, 78, 84, 94, 166,
73, 127s, 148, 171 198
Agreda, Maria de 93 Bernard, P. 78
Alameda, S., OSB 102 Bernard, R. 193
Alastruey, G. 164 Bernardino de Busti 90
Alberto Magno, Santo 86s, 196 Bérulle, P. de 93
Aleuino 75, 83 Besutti, G. 88, 92, 94, 100, 157,
Aldama, J. de 92 193, 197
Alexandre VII 95s, 119 Billot, L., SJ 55, 102
Alexandre de Alexandria 188 Bittremieux, J. 201
Alva y Astorga 198 Boismard, M. E. 36
Amann, E. 77 Boaventura, São 87, 145, 156
Ambrósio, Santo 52, 55, 82, 87, Bolland, J. de, SJ 73
189 Bonnefoy, J., OFM 173
Ameri, H. OFM 89, 199 Bonnichon, P. 173
Andrés, M. 92 Bonoso 52
André de Creta, Santo 66, 69, 75, Bonwetsch, G. 188
160, 198 Bordarrampé, P. 166
Anônimo de Paris 71, 199 Botte, B., OSB 191
Anônimo de Heiligenkreuz 80, 198 Bounian, C. A. 62
Anselmo de Cantuária, S. 78, 84 Bourassé, J. 92, 95, 97, 197
Anselmo de Lncca 40, 83 Bouyer, P. I.. 117, 184, 194
Antipater de Bostra 77 Bover, J. M„ SJ 131
Apolinário de Laodicéia 189 Brana Arrese, A. OFM 88
Archambault, G. 48 Braun, F. M., OP 36, 41, 43s, 113
Arenillas, P. 193 Bréhier, E. 90
Aristóteles 139 Brodntan, B. 26
Arnaud de Bonneval 82, 158 Brou, 1.., OSB 83
Arnaud de Chartres (ver o pre­ Bruder, J. M„ SM 78
cedente) Bulgakov, S. 184
Arnauld, A. 102 Bur, J. 164
Arnauld, M.-C. 166 Burridge, A. W. 79
Astério, o Sofista 189
Atanásio, Santo 188 Cabasilas, N. 60, 87
Anbron, P„ SJ 78, 201 Cajetan, Tomás de Vio, chamado
Audet, J. P. 26 25
Auréoli, P. 199 Camargo, I. de, SJ 157
Autperto, A. 74ss, 82s Cany, G. 90
Capelle, B„ OSB 61, 72
Balié, C., OEM 88, 100, 157, 194, Carol, J. B„ OFM 87, 93, 194, 200
201 Casado, O., CMF 92
Bandelli, V. 89 Cazelles, H., PSS 181, 183
Baratina, G., OFM 9. 203, 204 Cecchim, A. M., OSM 79, 199
Barré, H„ CSSP 73, 75, 78-82, 84. Cerfaux, L. 41, 43s,_ 158
191, 196, 199s Cesário de Aries, São 191
Bartolomei, T. M., OSM 200 Cestac, L. E. 166
Basilio, São 52, 189 Ceuppens, F., OP 25, 26
Baumann, A. 148, 200 Charhel, A., SDB 203
Beda, o Venerável 196 Charlier, C., OSB 73
Belarmino, R. 92 Chavasse, A. 72, 191
Índice onomástico 211

Chevalier, C. 66 Fletcher, R. A. 62
Christiani, L. 202 Francisco de Rimini 199
Cintra, R. de A., OP 203 Francisco de Sales, São 196
Cirilo de Alexandria 52, 56, 68, Frangipane, D. 25
189 Friedel, F. J. 99
Clemente VIII 144 Fries, A., CSSR 87
Coathalem, H., SJ 81 Froisdevanx, M. M. L. 50
Congar, Y. J. M., OP 82, 102, 156, Fuiberto de Chartres, S. 75, 78
197
Coninck, C. de 157 üalot, J. 36, 99, 157, 195, 203
Constantino Magno 188 Gachter, P., SJ 36, 195
Coppens, J. 181 Gallus, T., SJ 157
Cosmas Vestitor 66, 75, 78, 198 Garçon, J. 49
Crisoloras, D. 60 Garitte, G. 66, 185
Crivelli, C. 197 üarrigou-Lagrange, R., OP 8s. 116,
Cucchi, F., OFM 90 194
Cullmann, O. 39 Geenen, G., OP 200
üeiselmann, J. R. 72
Dam, I. 157 Gelin, A. 27
Dasqseyos 192 Geofíroy de Vendõme, 82
Davis, F. 99 Germano de Constantinopla, São
Dcmoulin, A. 100 66, 70, 75, 166
Denziger, H., SJ 96, 14-1 Geukcrs, T. L. M. J. 99
Deodoro de Tasso 189 Gianelli, C. 156
Descartes, R. 65, 145, 161 Gordillo, M. 197
Devreesse, R. 188 Gorres, I. F. 112
Dtdirno, o Cego 189 Gottschalk de Limbnrgo 78, 158
Diekhans, M., OFM 203 Goubert, J. 202
Diepen, H. 25 Grandclaudon, M. 202
Di Fonzo, L, OFM Conv. 156 üravois, M. A., Recoleto 97
Dillenschneider, C., CSSR 94, 101 s. Gregório XI 62
174. 189, 194, 200 Gregório XV 95s
Dillersberger, J. 200 Gregório de Nazianzo, S. 52, 68, 189
Dionisio de Alexandria 188 (ver Gregório de Nissa, São 68, 189
Pseudo-Dionísio) Gregório de Tours, São 191
Dreves, G. 78, 158 Gregório de jestis Crucificado,
Driver, G. R. 183 OCD 164, 202
Druwé, E. 164, 201 Grignion de Montfort, S. Luis-M.
Dubarle, A.-M. 38, 41, 44s, 196 94, 202
Üublanchy, E. 193 Gromaire, M. 90
Duelos, G„ MIC 83 ürosjean, P. 79
Du Manoir, H., SJ 194 Grumel, V., A. A. 66, 71
Dtibois, Mons., M. M. 194 Guéranger, P., OSB 98
Dnvergier de Hanranne, J., Abade Guilherme de Malmesbury 84
de S. Cyrant 93 Guilherme de Ware, OFM 88, 160
Guimarães, F.. OFM Cap. 88, I<t9
Eadmer 80, 198 Guitton, J. 194
Eckbert de Schõnau 81 Gutiérrez, C., SJ 96
Efrém, Santo 69, 156
Epifânio de Salamina 43, 51, 58. llamer 197
63, 69, 158, 160 llammershaimb, A. 181
Eusébio de Cesaréia 188s Harnack, A. von 25, 185
Etistato de Antioquia 189 Harvey, \V. W. 50
Hatigg, D. 26
Feckes, C. 99 Hebert, A. G. 44
Féret, H. 26 Heiclich, B., OFM 199
Feuillet, A., PSS 41, 45 Helvidio 54
Flachaire, C. 196 Henry, A. jM „ OP 200
i-t*
212 índices
Hermann de Tournai 84, 87 Leão XIII 148, 151
Ilesbert, G., OSB 66 Lebon, J. 101
Higgins, H. 62 Lebreton, J., SJ 188
Hincmar de Reims 75 Leclercq, H., OSB 62
Hipólito de Roma, Santo 49, 188 Le Frois, B. J SVD 41, 195
Hoeck, J. M. 66 Leclercq, J., OSB 78, 166, 198
Hoffer, P„ SM 93 Leurent, B. 26
Holstein, li., SJ 69 Littré, E. 115
Hoepers, M., OFM 204 Lima, J. A. M. 204
Hoskyns, E. 44s Lochet, L. 202
Huhn, J. 55 Lorscheider, A., OFM 203
Loutrel-Tschirret, M. 202
Ireneu, Santo 48ss, 69, 185 Luis, A. 201
Lyonnet, S., SJ 19, 41, 44
João Crisóstomo, São 52, 90, 156,
188 Maertens, T., OSB 202
João da Cruz, São 106 Male, E. 90
João Damasceno 66, 75, 144, 160s, Malou, J. B. 98s
166 Mansi, G. D. 191
João de Eubéia 198 Manteau-Bonamy, H. M., OP 200
João Elides, São 93 Marechal, H., OP 202
João de Nápolis 199 Maria-Colette do S. Cor. 166
João de Pouilly 199 Mariés, L. 188
João de Salerno 75 Marvulli, L. 200
João de Tessalonica 64, 156 Meersseman, G., OP 74, 76, 81
João, o Geômetra 71, 75 Mercier, Cardeal D. J. 99s
Jorge de Nicomedia 40, 70s, 82, Merkelbach, B., OP 193
156 Mestre Nicolau 198
Jerônimo, São 52, 55, 72, 188 Michel, A. 203
Jouassard, G. 48-52, 54-57, 59s, 64, Michel, C. 185
188 Milon de Saint-Amand 74s, 82
lournet, C. 156, 194 Mitchel, V. A., SM 66
jugie, M., AA 62, 66, 100, 157, Mitterer, A. 145
191 Modesto de Jerusalém 64, 66
Juliano de Eclano 60 Modric, L. OFM 198s
justino, São 48ss Moholy, F., OFM 49
Morin, G„ OSB 171, 1S4, 191
Kerkvoorde, A., OSB 99, 193 Movinckel, S. 181
Kern, C. 156 Miiller 103, 197
Keuppens, J., CSSP 193 Muratori, L. A. 93
Kloppenburg, B., OFM 204
Koehler, T. 200 Navatel, J. J. 166
Korosak, B.. OFM 87, 91, 196, 200 Nestório 52, 57
Koser, C, OFM 203, 204 Neubert, E„ SM 165, 202
Kóster, H. M. 102 Newman, Cardeal J. H. 99
Nicéforas de Constantinopla 144
Labouré, Catarina 98 Nicetas de 1leracléia 68
Lagrange, M. J., OP 25 Nicolas, M. J., OP 101, 112, 137,
Lattey, C. 25 164, 194, 200, 201, 203
Laurentin, R. 7s, 24-25, 26, 30, 33s, Nicolau de Clairvaux 78
66, 69, 73, 79, 82, 92ss, 96, 99s, Nicolau de Santo Albano 198
146, 157, 178, 197, 200, 202 Nieto, B. 20!
Lavergne, C., OP 40 Nilo, S. 69
Lázaro de Aspurz, OFM Cap 202 Nilus a Sancto Brocardo, OCD 57
Le Bachelet, H. 79, 198
Leandro de Sevilha. São 74 0'Connor, E. D. 62
Leão I. São 127, 190 Odilon de Cluny 78
Leão 111 145 Odon de Cluny, Santo 75
índice onomástico 213

Odon d'Ourscamp 82 Pseudo-Efrém 71


ülier, J. J. 93 Pseudo-IIdefonso 73
Opitz, H. G. 188 Pseudo-Jerônimo (= Radberto)
Origenes 40, 52, 69, 188 73ss
Osbert de Clare 80 Pseudo-Jerônimo (VII e VIII sé­
Osty, E. 19, 25 culos) 74
Pseudo-João 64
Pacifici, L. 199 Pseudo-Justino 156
Pascal, B. 115 Pseudo-Máximo de Turim 74
Passaglia, C. 98 Pseudo-Pedro Abelardo 199
Patfoort, A. 197 Pseudo-Pedro Comestor 198
Paulo IV 144 Pseudo-Pedro Cantor 199
Paulo V 95 Pseudo-Pedro da Sicilia 70
Paulo de Samôsata 188
Paulo Diácono 73, 75, 78, 83 Quiérvreux, F. 44, 195
Pedro Canísio, São SJ 92
Pedro Crisólogo 73, 190 Rabano Mauro 75, 83
Pedro Damião 76, 82, 84, 166 Racine, J. 114
Pedro de Alexandria 188 Radberto, P., OSB 72s, 75, 83
Pedro de Candia 199 Rahner, H., SJ 188
Pedro de Celle 79, 198 Rahner, K., SJ 103, 197
Pedro de Compostela 199 Ratramno 75
Pedro de Sicilia 198 Régamey, P., OP 202
Peeters, P., SJ 185 Reynders, B. 188
Pelágio 59 Ricardo de Saint-Laurent 84
Pelster, F. 87 Righetti, M. 63
Perdrizet, P. 201 Ringgren, H. 181
Perniola, E. 66 Robert, A., PSS 122 , 195
Perrone, J. 98 Robert de Cowton, OFM 199
Pessini, O., CFM 204 Robilliard, J. A., OP 88
Petsch, R. 73 Romanos Melódio 62
Philippe, Th., OP 113 Rondet, H. 193
Philips, G. 120, 197, 203 Rosato, L., OFM 199
Piério de Alexandria 188 Roschini, G., OSM 88, 101, 157,
Pio V, São 96 160, 164, 193, 197, 202
Pio IX 98, 119ss, 199 Roskovány, A. 197
Pio X, São 148, 153 Rouet de Journei, M. J., SJ 144
Pio XI 148 Ruperto de Deutz 40, 83
Pio XII 43, 144, 151, 197
Pitra, Cardeal J. B., OSB 82 Sabbe, E-. 75
Platão 145 Sagnard, F., OP 49
Plazza, B., SJ 97 Sahlin, H. 25, 26
Plumpe, J. C. 55 Saint-Cyran, v. Duvergier de
Policarpo, São 48, 63 Hauranne
Prat, F. 158 Salazar, Quirino de, SJ 92
Prigent 41, 196 Salmerón, A., SJ 92
Proclo de Constantinopla 69, 77 Sardi, V. 199
Proust, M. 47 Sauras, E., OP 157
Przbylsky, B. 49 Scheeben, M. J. 98ss, 103, 171,
Pseudo-Agostinho (= diversos) 193
73s, 80 Scheffczyk, L. 75, 196
Pseudo-AIberto 84, 87 Schimmelpfennig, R. 197
Pseudo-Anselnio de Cantuária 198 Schmied, G. 55
Pseudo-Bernardo 177 Schmitt, J. 45
Pseudo-Comestor 80 Schwartz, E. 68
Pseudo-Dionisio de Alexandria, Schweitzer, V. 189
Carta a P. de Samôsata 188 Schwerdt, K. 151
Pseudo-Dionisio Areopagita 78, 160 Scotus, J. Duns 88, 160, 199
214 índices

Sebastian, W., OFM 201 Thiesen, U„ OFM 204


Sedúlio 156 Thomas, J. 101
Semmelroth, O., SJ 102, 174 Tomás de Aquino, Santo 88, 94,
Sérgio I, santo, papa 72 96, 105, 115, 137, 140, 151, 161
Serapião de Thmuis 189 Tluirston, H. 198
Serieoli, C„ OFM 89, 199 Thyes, A. 195
Severo de Antioquia 156 Timóteo de Jerusalém 158
Severiano de Gábala 69, 189 Tito de Bostra 189
Shakespeare, W. 87 Tognetti, M. 200
Sheen, F. 202 Tomas de Rossy 199
Sinieão Metafrastes 156 Tomás de Sutton 199
Singlin, A. 166 Tondini, A. 197
Sixto IV 89, 96, 199 Trochu, F. 203
Slater, T. 198 Trombelli, J. C. 156
Sócrates, o Historiador 188 Tromp, S., SJ 92
Sommervogel, C., SJ 97
Stegmüller, O. 188 Vailhé, S. 66
Straeter, P. 194 Van Rooijen, M. S. C. 204
Stricher, J., CSSR 92 Vásquez, S. 200
Stricker, E. de, SJ 185 Veuillot, L. 99
Siro, o Monge 75 Vilela, G. M„ CSSR 204
Suárez, F., SJ 92 Vloberg, M. 201, 202
Vogt, E„ SJ 203
Tabucco, A. 196
Talbot, C. A. 198 Walafrido Strabon 75
Taciano 156 Ware, ver Guilherme
Teodoreto 188 Warren, F. E. 76
Teódoto de Ancira 69 Weber, J. J. 195
Teresa do Menino Jesus 27 Weisweiler, H. 196
Theotéknos de Livias 64, 66, 70 VVenger, A. 60, 62, 64, 66, 70, 72s,
Terra, J. E. M„ SJ 204 75, 77s, 100, 197, 201
Terrien, J. B„ SJ 131, 193, 200 Widenfeld, A. 93
Tcrtuliano 52, 55, 135 Willam, F. M. 202
Tetuz, G. 185 Wilmart, A. 83
iN D IC li DOS PRINCIPAIS ASSUNTOS

Traduzido e elaborado por A. Menezes

Abraão 118, 123 Crescimento de Maria, ver duração


Adjutorium símile sibi 51, 86 Crônica bibliográfica 193
Advogada 124 Culto, ver festas e orações
Alegria messiânica 30 Culto 61-63, 67, 71, 202
Antigo Testamento 17, 30, 118-119, Cunctas haercses interemisti 83
177-184, 195
Ancilla Domini 124, ver Índice Es- ücbitum peccati 120, 203
crituristico Luc 1,38 Decadência (fases de) 86, 106
Anunciação 5, 24-31, ver índice Es- Decreto de 1644 95
criturístico Luc 1,26-38 Definição da Assnução 11, 100, 167
Anunciação (festa da) 61, 71 Definição da Imaculada Conceição
Apócrifos 55, 64s, 77, 86s, 185-187 98, 100, 119
Apócrifos da morte 63, 64 Deposição da vestimenta da Vir­
Apócrifos da Infância 55, 185-187 gem em Blachernas (festa da) 62
Aparição de Cristo ressuscitado a Desenvolvimento do dogma 15, 52-
Maria 156 (nota 36) 54, 65, 105s, 167, 207
Aparições de Maria 202 Devoções abusivas 53, 89s
Apresentação de Afaria 62 Dicionário mariano 194
Arca da Aliança 30-35, 129 Divindade de Jesus conhecida de
Arte e Iconografia 64, 90 Maria 30-34
Associação de Maria a Cristo 101 Docetismo 16, 55, 56, 207
Assunção 63-66, 72s, 79-81, 157-167, Dormição, ver Assunção
203, ver morte 201 "Direitos maternais" 153
Assunção (festa da) 62 Duração 12, 45, 115
Atividade maternal de Maria 163-
165 Èfeso (Concilio de) 52
"Escola francesa" 92
Basiléia (Concilio de) 88 Encarnação (Maria e a) 125-133
Bibliografia 193-203 Escravidão 94
Escrituras 11, 15-46
Caná 36ss Espirito Santo 27, 28, 32, 67, 106,
Calvário (presença de Maria no) 129, 155s
81, ver também índice Escritu- Eucaristia (Maria e a) 133, 156
rístico Jo 19,25-27 Eva-Maria 48-51, 86, 201
Caráter sacramental e maternida­
de divina 135 Fé de Maria 28. 82, 137s, 151
Caroüngios 74 Festas marianas no Oriente 61-71
Casamento de Maria 24-25 Festas marianas no Ocidente 71-
Coltum Ecclesiae 84 76, 190-192
Copaixão 35 Filha de Sião 30-31, 44
Conceição (festa da) 66
Conceição (do Coração) 128 Gabriel 24, 192
Concupiscéncia 120 Genealogia 24
Conhecimento de Maria I62s Geração 139-141
Consentimento de Maria 150-151
Conveniência (ver lógica) Graça de Maria 26, 86, 128, 135,
Coração de Maria 81, 94 141-144
Co-redenção, ver Redenção Graça da maternidade divina 141-
Coredcmptrix (titulo de) 75 144
Corpo Místico 148, 156 Grandeza de Maria 25, 27-29
Corrupção, ver incorruptibilidade Gratuidade, ver lógica
216 Índices
História da Salvação 103 Méritos de Maria 120, 127s, 154,
Humildade de Maria, ver tapeinosis 156
Hypapante (festa da) 62 (nota 55), Messianismo 26, 31
71s Metodologia 197, ver principio fun­
damental
Ícone escatológico da Igreja 117, Morte de Maria 157-162
167 Mulher do Apocalipse 42, ver Ín­
Idade Média 196 dice Escrituristico
Igreja (Maria e a) 51, 68, 81, 84,
100, 102, 154, 170-172 Natividade (festa da) 62, 72, 124
Imaculada Conceição 66, 67, 72, 79- Nestorianos 57
81, 88, 119-123, 152, 170, 173, Nicéia (Concilio de) 52
186, 197-200 Nominalismo 89
Incorruptibilidade 147 Nova nativitas 56, 147
Intercessão 30-33, 67-71, 163-164 Nôvo Testamento 195
lslão 197
Israel (Maria e) 30-34, 118-124 Oblação 82
Oração de Maria 156
João Batista 124 Orações a Maria 63, 67
Orientação atual da mariologia
Kecharitoméne 127 98-103
Kénose 20, 147 Oriente e Ocidente 74s, 77s
Ortodoxos 197
Lei do propósito salvifico de Deus
11, 151, 164 Parusia 168s, 207
Liturgia, ver festas Parthénos emnesteuméne 25
Lógica e gratuidade 111-114, 127s, Patrística 196, 207
141 Pedagogia 203
Lourdes 11, 202 Pobres de Israel 26
Lugar orgânico da mariologia 100, Pelagianos 57-60
172-175 Pentecostes 155, 172
Perspectivas antiga e moderna 81-
Magistério 89, 106, 144, 197 84, ver Eva, Igreja
Magnificat 26, 107, 149, 169, ver Plenitude de graça 12, 86, 129,
Índice Escrituristico Luc 1, 46-55 135, 148
Maniqueísmo 57s, 207 Presença de Maria 15, 45, 165
Manuais 193 (n. 46)
Mariologia e Ecumenismo 204 Primado de Maria 123-124
Mártires (culto dos) 63 Princípio fundamental da mariolo­
Mater misericonliae 75 gia 101-102, 111-115, 174-175,
Maternidade santa 126-130 197
Maternidade divina 51, 101, 130- Prólogo de S. João 37
132, 200, 203 Profecias marianas 178-184
Maternidade integral de Maria 101, Propósito de virgindade 25, 129
138-141 Protestantismo 90, 197
Maternidade de M., meio da Enc. Protoevangellto de Tiago 185s
!25s
iMaternidade espiritual 43, 67, 72, Quinta-feira Santa 156
73, 128, 148 (n. 29), 154, 162-
166, 200 Rainhas mães na antiguidade 182
Maternidade social 148-149 Realeza de Maria 123, 182, 201,
Maternidade soteriológica 149 204
Maternidade virginal 144-148 Redenção (parte de Maria na)
Medalha milagrosa 98 81-84, 100, 150-155
Mediação 67-71, 79-81, 166s, 201, Redenção de Maria 119, 204
204 Rcdemptrix (titulo de) 75
Medidtrix (titulo de) 68, 71, 77, Relação maternal 133-141, 208
81 Revistas e periódicos marianos 194
índice dos principais assuntos 217

Sabedoria (Maria e a) 184 náculo, Theotocos (ver também


Sacerdócio (Maria e o) 171s, 175 p. 69: Mãe da Salvação, da Eco­
Santa Sé (papel da) 89, 95, 96, nomia, do Mistério; p. 71, n. 77:
106 Mãe de todos, etc.; p. 73, n. 84:
Santidade de Maria 52, 56, 58, 59, Mater capitis, membrorum, viven-
90, 106 tium, etc.)
Séculos XVII e XVII! 92-97, 196 Tradição 196
Séculos XIX e XX 98-103, 196 Transitus, ver Assunção
Separações de Jesus e Maria 150 Trento (Concilio de) 89s
Siglas 6 Triduum rnortis (Maria durante o)
"Silêncio das Escrituras" 11 82, 208
Socia Christi 86 Tipologia 178, ver Arca da Alian­
Status fidci 137 ça, Tabernáculo
Sujeito (ponto de vista do)
Sub tuum 63, 67 Universalismo 23
IInus Mediator 154, 167
Tabernáculo 35-37, ver Arca da
Aliança Venerando (Oração) 72
Tapeínosis 26 Vértice da humanidade 124
Tempo (a Virgeni e o) II, 115- Vidas de Maria 202
117 Virgindade 51, 200
Teologia mariana (história da) 194 Virgindade ante partum 22 , 90
Theotókos 51,56, 57, 67, 174, 188-189 Virgindade in parta 51, 55, 57, 58,
Títulos de Maria, ver Arca da 186, 203
Aliança, Adiutorium, Advogada, Virgindade post partum 51, 54, 58,
Collum, Kecharitoméne, Cored- 186
emptrix, Igreja, Eva, Mediatrix, Voto de Virgindade, ver propósito
Redemptrix, Socia Christi, Taber­ Voto sanguinário 93
ÍNDICE GERAL

Advertência .................................................................................................. 5
Siglas ............................................................................................................ 6
Apresentação ............................................................................................... 7

Introdução geral ........................................................................................ I•


A Virgem e o tempo ................................................................................. *'
Nosso itinerário ......................................................................................... '2

FARTE I
DESENVOLVIMENTO DA DOUTRINA MARIANA

Introdução da Primeira Parte ............................................................... Lã


Etapa preliminar: presença e silêncio ................................................ Lã
Antigo Testamento .................................................................................. D
Primeiro Período: Maria nas Escrituras .............................................. 19
Gálatas 4,5 .................................................................................................. 20
Marcos .......................................................................................................... 20
Mateus .......................................................................................................... 21
Lucas ............................................................................................................. 25
João ............................................................................................................... 25
C onclusão........................................ 45
Segundo Período: Do Evangelho de S. João ao Concilio de Éfeso
(90-431) ................................................................................................. 47
1. Maturação silenciosa. Explicitação da antítese Eva-Maria ........ 48
2. Maternidade divina, virgindade, santidade. O tempo das he­
sitações (190-373) ................................................................................ 51
3. Solução progressiva ............................................................................. 54
4. Dois problemas novos ........................................................................ 58
Posição do problema da Assunção (337) ...................................... 58
Posição do problema da Imaculada Conceição (429) ............. 59

Terceiro Período: Do Concilio de Éfeso ã Reforma Gregoriana


(4 3 1 -1 0 5 0 ) ..................................................................................... f il
I. No O rie n te ..................... g|
Origens das lestas marianas ........................................................... gj
Assunção ................................................................................................ 63
Imaculada Conceição............................................................................. 66
220 índices
Intercessão, Mediação, Maternidade espiritual ............................. 67
2. No Ocidente ........................................................................................... 71
As festas ................................................................................................ 71
Assunção, Conceição, Mediação ....................................................... 72
3. Século X ............................................................................................... 74
Quarto Período: Da Reforma Gregoriana ao Concilio de Trento
(1050-1563) ........................................................................................... 77
Imaculada Conceição, Assunção, Mediação .......................................... 70
Mudança de perspectiva ............................................................................. 81
Qual a significação desta mudança ................................................... 84
Quinto Período: Dos Últimos Anos do Século XVI ao Fim do XVIII 92
Sexto Período: Séculos XIX e XX ....................................................... 08
Conclusão ....................................................................................................... 105

PARTE II
DESENVOLVIMENTO DO DESTINO DE MARIA

Introdução à Segunda Parte .................................. . ................................ 111


Conveniências e inconveniências do método dedutivo ......................... 111
Escolha de posição .................................................................................... 114
A Virgem e o tempo .............................................................................. 115
Primeira Etapa: Antes da Anunciação. Maria, Coroamento de Israel 118
1. A Imaculada Conceição ..................................................................... 110
2. A perfeição de Israel em marcha para a salvação ................. 123
Segunda Etapa: Maria na Encarnação. A Maternidade divina . .. 125
A Maternidade de Maria, meio da Encarnação ................................ 125
Maternidade santa ............................................................... >.................... 126
Maternidade santa por parte de Maria ................................................ 127
Maternidade santa por parte de Deus ................................................. 128
Maternidade divina ..................................................................................... 130
Relação única .............................................................................................. 133
Relação transformante .............................................................................. 133
a) O que supõe a relação de mãe ................................................ 134
Esclarecimento comparativo: maternidade divina e c a rá te r.... 135
b) O que convém a uma mãe cujo filho é Deus ........................ 138
A graça da maternidade divina ........................................................... 141
1. Dom de ordem estrutural ................................................................. 142
2. Dom de ordem vital .......................................................................... 142
Maternidade virginal ................................................................................... 144
Maternidade social ...................................................................................... 148
Maternidade soteriológica .......................................................................... 149
Terceira Etapa: Maria no Sacrifício Redentor ................................ 150
Maria associada à Redenção por seu consentimento ..................... 150
Associada à Redenção em nome dos resgatados ................................ 151
Associada à Redenção a titulo de sua perfeita santidade .................. 152
Associada à Redenção a título de mãe ................................................. 153
Quarta Etapa: Da Morte de Cristo à Dormição ................................ 155
Índice Geral 221

Quinta Etapa: Assunção de Maria. A Virgem, icone escatotógico da


Igreja ...................................................................................................... 157
O “Transitus Mariae” .............................................................................. 157
Últimos desenvolvimentos .......................................................................... 162
Conhecimento materno .............................................................................. 162
Atividade materna da Virgem ................................................................. 163
“Mediação” ................................................................................................... 166
ícone escatoíógico da Igreja ................................................................. 167
Sexta Etapa: A Parusia 168

Conclusão 171
1. Maria e a Igreja ............................... 171
2. Lugar e unidade do tratado mariano 173

Anexo I: A Virgem no Antigo Testamento ........................................ 177


I. Preparação moral ......................................................................... 177
II. Preparação tipológica ................................................................... 178
III. Preparação profética................................................................... 178
1. Textos escatológicos cuja significação se realiza simultaneamente
em Maria e na Igreja ...................................................................... 179
2. Textos relativos à Mãe do Messias .............................................. 179
A. Gn 3,15 ............................................................................................ 179
B. Is 7,14 ...........................................................r . ............................. 180
C. Miq 5,1-4 .......................................................................................... 181
D. O cenário das três profecias ..................................................... 182
Escólio. Maria e a Sabedoria ................................................................. 184
Apexo II: A Virgem nos apócrifos da Infância .................................. 185
Antiguidade do Protoevangelho ............................................................... 185
Insinuações teológicas do Protoevangelho ............................................ 185
Alcance dos apócrifos marianos ............................................................. 186
Anexo III: As origens do titulo "Theotókos" ...................................... 188
Anexo IV: A primeira festa mariana no Ocidente ........................... 190
1. Último domingo do Advento: Norte da Itália, meados do sé­
culo V .................................................................................................... 190
2. 18 de janeiro: Gália, século VI ................................................... 190
3. I9 de janeiro: Roma entre 550 e 595 ............................................ 191
4. 4" e sexta-feiras do jejum do décimo mês (futuras Quatro
Têmporas do Advento): Roma, início do século VII ............... 191
5. 18 de dezembro: Espanha, 656 ..................................................... 191

Bibliografia
Resenhas bibliográficas ............................................................................ 193
Obras gerais ................................................................................................ 193
1. Manuais .................................................................................................. 193
2. Estudos de conjunto .......................................................................... 193
3. Enciclopédias ......................................................................................... 194
222 Índices
4. Periódicos .............................................................................................. 194
4 bis. Academia M. Internacional de Roma ..................................... 194
A. Atas dos C. M. 1........................................................................... 194
B. Coleções ........................................................................................... 194
5. Revistas .................................................................................................. 194
6. Dicionário .............................................................................................. 194
História da Teologia Mariana
7. Em geral ............................................................................................... 194
8. Sagrada Escritura:Antigo Testamento ............................................ 195
9. Nôvo Testamento ................................................................................ 195
Tradição ....................................................................................................... 196
10. Patrística ............................................................................................... 196
11. Idade Média ......................................................................................... 196
12. Séculos XVII e XVIII .......................................................................... 196
13. Séculos XIX e XX ............................................................................ 196
15. Magistério .............................................................................................. 197
Doutrina ....................................................................................................... 197
16. Metodologia ........................................................................................... 197
17. Imaculada Conceição .......................................................................... 197
A. Estudos de conjunto ..................................................................... 198
B. Fontes ............................................................................................... 198
C. Estudos sôbre aH. do dogma da Im. Cone............................... 199
18. Maternidade divina .......................................................... 200
19. Virgindade ................................................................................................200
20. Maternidade Espiritual ....................................................................... 200
21. Co-redenção ............................................................................................. 200
<22/ Assunção ..................................................................................................200
Mediação atual deMaria .................................................................... 201
24. Realeza de Maria ............................................................................ 201
25. Eva-Maria-lgreja .................................................................................... 201
Culto, Devoção, Espiritualidade
26. Culto e liturgia .................................................................................. 202
27. Vidas de Maria .................................................................................. 202
28. Espiritualidade ........................................................................................ 202
29. Questão “Presençade Maria" ........................................................... 202
30. Coleção de Textos ............................................................................ 202
31. Aparições ................................................................................................. 202
32. Pedagogia .......................................................................' ..................... 203
Complemento bibliográfico (Bibliografia mariana no Brasil) .......... 203
Léxico ...................................................... \ .................................................. 205
índices
índice dos textos mariais da Escritura ............................................... 2C9
Índice onomástico dos autores ................................................................. 210
Índice dos principais assuntos ................................................................. 215
índice Geral ................................................................................................... 219

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