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O Patrimônio Edificado Do Centro Histórico de Caxias-Ma
O Patrimônio Edificado Do Centro Histórico de Caxias-Ma
Teresina-PI
2009
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Teresina-PI
2009
3
CDD – 725.95
4
APROVADA: ______/_______/_______
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Prof. Dr. Fabiano de Souza Gontijo
Universidade Federal do Piauí
Orientador
_____________________________________________________________
Profª Dra. Maria Lídia de Medeiros de Noronha Pessoa
Universidade Federal do Piauí
Examinador
____________________________________________________________
Prof. Dr. Wilton Garcia
Universidade Braz Cubas
Examinador externo
____________________________________________________________
Profª Dra. Áurea da Paz Pinheiro
Universidade Federal do Piauí
Suplente interno
5
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Esta dissertação discute o patrimônio edificado de Caxias como lugar de memória, a partir do
entendimento de que as edificações são repletas de significados para aqueles(as) que
vivenciam a cidade. Por isso, busca investigar os sentidos e os significados do patrimônio
edificado do centro histórico de Caxias para os habitantes da cidade, de que forma estes(estas)
se identificam com o patrimônio e de que forma reivindicam políticas de preservação
patrimonial. Fundamenta o estudo a partir das discussões teóricas sobre o conceito de
patrimônio, que reflete sobre as noções de cultura, memória e identidades, suportes
fundamentais para compreender a trajetória das ações de preservação patrimonial e sua
configuração na atualidade. O estudo se pauta ainda em pesquisa de campo, em que, através
das entrevistas, é dado vozes aos cidadãos(ãs) caxienses sobre seus sentimentos em relação ao
patrimônio histórico-cultural. No primeiro momento, discute a identidade caxiense a partir do
patrimônio histórico-cultural. No segundo momento, são discutidos os conceitos de
patrimônio, cultura, memória e identidades, bem como o surgimento da idéia de preservação e
como essa discussão chega ao Maranhão e a Caxias. Os sentidos e significados do centro
histórico de Caxias são abordados no terceiro momento, através das vozes daqueles(as) que
vivem e sentem a cidade como lugar de memória. Neste, são verificadas as matrizes
intelectuais que orientaram os critérios de seleção para tombamento e uso do patrimônio
edificado em Caxias; os elementos que justificaram o tombamento desse patrimônio, na
perspectiva de entender os sentidos e os significados do patrimônio edificado do centro
histórico para os moradores(as) da cidade, para verificar de que forma este patrimônio é
articulado pelos(as) cidadãos(ãs), trazendo à tona a potencialidade da identidade e memória
dos caxienses como um dos elementos constitutivos de reivindicação de uma política pública
de patrimônio efetiva para a cidade. A reflexão sugere, a partir dessa percepção, mudanças na
concepção e nas políticas de educação patrimonial.
ABSTRACT
This dissertation argues the built patrimony of Caxias as memory place, from the
understanding that the constructions are replete of meanings for those which live the city.
Because of this, it seeks to investigate the senses and the meanings of the built patrimony of
the historical center of Caxias for then inhabitants of the city, the way they identify
themselves with the patrimony and the way they claim policies of patrimonial preservation. It
seeks to base the study from the theoretical discussions about the patrimony concept, which
reflects about the culture notions, memory and identities, fundamental supports to
comprehend the trajectory of the actions of patrimonial preservation and its configuration at
the present time. The study still bases in field research, in which, through the interviews, it is
given voices to the caxienses citizens about their feelings regarding the historical-cultural
patrimony. In the first moment, it is discussed the caxiense identify from the historical-
cultural patrimony. In the second moment, the concepts of patrimony, culture, memory and
identities, as well as the appearance of the preservation idea and as this discussion arrive to
Maranhão and to Caxias are also discussed. The senses and meanings of the historical enter of
Caxias are cited in the third moment, through the voices of those which live and feel the city
as memory place. In this one, the intellectual bases that guided the selection criteria for
tombamento and use of the built patrimony in Caxias are verified; the elements that justified
the tombamento of this patrimony, in the perspective of understand the senses and the
meanings of the built patrimony of the historical center for the inhabitants of the city, to
verify the way this patrimony is articulated by the citizens, bringing afloat the potentiality of
the identity and memory of caxienses as one of the constituent elements of revindication of a
public politics of effective patrimony for the city. The reflection suggests, starting from this
perception, changes in the conception and in the policies of patrimonial education.
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................... 08
ABSTRACT........................................................................................................... 09
INTRODUÇÃO..................................................................................................... 11
CAPÍTULO I:
1 PATRIMÔNIO E MEMÓRIA: percorrer os dias para sentir a cidade....... 17
1.1 A Identidade Caxiense a partir de seu Patrimônio Cultural......................... 18
1.2 Caxias: aspectos históricos........................................................................... 27
1.3 A Belle Èpoque Caxiense............................................................................. 31
CAPÍTULO II:
2 A PERTINÊNCIA DOS CONCEITOS: do patrimônio histórico ao
cultural............................................................................................................... 57
2.1 O Patrimônio como Elemento Sociocultural................................................ 58
2.2 Patrimônio e Memória.................................................................................. 65
2.3 Os Usos Sociais do Passado: a sagração do patrimônio.............................. 84
2.4 Políticas de Preservação no Brasil............................................................... 92
CAPÍTULO III:
3 CAXIAS: significados e sentidos do centro histórico.................................... 104
3.1 Saberes sobre a Cidade............................................................................... 105
3.2 As Vozes do Patrimônio em Caxias........................................................... 115
3.3 O Patrimônio Presente: o centro histórico de Caxias................................. 127
3.4 Um Espaço Reencontrado........................................................................... 131
3.5 Práticas Patrimoniais: reinventar a cidade.................................................. 142
REFERÊNCIAS.................................................................................................... 156
APÊNDICE............................................................................................................ 162
12
INTRODUÇÃO
Caxias, a antiga São José das Aldeias Altas, considerada uma das mais expressivas
cidades maranhenses, orgulha-se por ter sido o berço de personalidades importantes no
cenário nacional e internacional, de ter sido a primeira a instalar uma fábrica têxtil no Estado
e possuir um significativo acervo arquitetônico remanescente do século XIX. A cidade teve o
centro histórico tombado em 1990 pela significância de seu patrimônio histórico-cultural.
A valorização desse patrimônio, por sua vez, passa pelo conhecimento que se tem sobre
ele e seu uso social, de qual significado possui para a comunidade, articulado estreitamente à
memória e às identidades locais. O patrimônio histórico-cultural, portanto, é uma construção
social, ou seja, historicamente determinado e em permanente reconfiguração, como processo
simbólico de legitimidade social e cultural.
Percebe-se neste trabalho, cuja observação e análise assentou em conceitos e
metodologias da antropologia, uma forma de estudar a realidade social e cultural de uma área
urbana específica – o centro histórico de Caxias – com o sentimento de registrar os sentidos e
os significados desse patrimônio para os habitantes da cidade.
Com a inquietação em descobrir até que ponto o tombamento do centro histórico de
Caxias fora criador de identidades, contribuindo para aproximar as pessoas, perpetuar a
memória, recuperar rituais ou desenvolver sustentadamente a cidade, encontrou-se na história
e no patrimônio histórico-cultural, principalmente no edificado, o pretexto para muitas
histórias, muitas pessoais, outras coletivas, porque partilhadas, e que suscitaram questões,
deram respostas, definiram objetivos e prioridades.
Leituras e trabalho de campo permitiram observar o centro histórico através do seu
patrimônio histórico-cultural. Quando se fala, aqui, de patrimônio, fala-se da sua invenção,
valorização, definição, políticas; de noções de identidades e memórias; de saberes técnicos; de
cidade, lugares e não-lugares, histórias familiares, sentimentos, emoções; de qualidade
estética, objetos, monumentos e monumentos históricos; de passado, presente, futuro;
conservação e descaracterização; de arquitetura. Organizados de forma a dar-lhes coerência,
são temas que serão desenvolvidos ao longo desse trabalho e não somente no capítulo teórico.
O palco para essa investigação é a cidade de Caxias, Estado do Maranhão, precisamente
o centro histórico, tombado pela 3ª Superintendência do Estado do Maranhão, em 1990, órgão
estadual subordinado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan –, com
vistas a preservação do patrimônio construído que, para o grupo que discutiu e reivindicou,
constituía-se em “lugar de memória”, esta pesquisa tem como foco de estudo investigar os
13
1
O entrevistado e entrevistada com sobrenome igual, será acrescido de uma letra para melhor identificá-lo nas
referências bibliográficas.
16
intenção foi a de apresentar as falas dessas pessoas, para perceber as relações que elas
estabelecem com aquele patrimônio edificado. Nessa perspectiva, aponta para a prática de
preservação do patrimônio edificado de Caxias, aliada aos princípios da educação patrimonial
e das atividades turísticas. Essas vertentes buscam o comprometimento com a sociedade, de
forma que essas ações sejam utilizadas como ferramenta política, partindo-se em defesa de
políticas públicas preservacionistas que propõem uma melhor utilização do patrimônio
cultural considerando as leituras e anseios da população local.
Nas considerações finais, são apresentadas as percepções da pesquisa diante da
proposta inicial de investigar o patrimônio edificado de Caxias como lugar de memória e,
sendo assim, de que forma esse patrimônio é percebido pelos habitantes e como reivindicam
políticas de preservação do patrimônio histórico-cultural na realidade enfocada. Desse modo,
reforça-se os importantes e estratégicos pontos da pesquisa realizada, traçando reflexões com
vistas a fornecer subsídios à futuras investigações sobre o patrimônio edificado do centro
histórico de Caxias.
18
Neste capítulo, busca-se apresentar as razões para a escolha de Caxias como lugar de
realização da pesquisa. As leituras e o trabalho de campo deram subsídios para que se
percorresse o centro histórico da cidade e o observasse a partir de seu patrimônio histórico-
cultural.
Na perspectiva de percorrer os dias para sentir a cidade, foi possível descobrir o
patrimônio histórico-cultural de Caxias através das imagens, entrecortadas com as falas que os
habitantes possuem sobre ela. Isso proporciona caminhos variados de afirmação de
identidades e memórias sobre a cidade, seja através do recorte da paisagem, da arquitetura
secular ou do seu detalhe, ou fragmentos de lembranças de seus moradores e moradoras.
O caminho proposto é apresentar a cidade a partir de seu patrimônio cultural. Para
tanto, busca-se as influências que Caxias recebe da capital maranhense, São Luís, e de que
forma os cidadãos(ãs) caxienses vão se apropriando dessa riqueza cultural ao longo dos
séculos.
Por isso, o capítulo traz uma breve contextualização da capital maranhense, que
desempenha um patrimônio histórico-cultural que lhe é próprio na cultura do Estado:
proclama uma “herança” francesa e se orgulha dos traços arquitetônicos deixados pelos
colonizadores portugueses. Em virtude dessa riqueza, ostenta o título de Patrimônio Mundial
(1997) pela excepcionalidade do conjunto arquitetônico de que tanto se orgulha; é a Capital
Brasileira da Cultura em 2009. E, assim, vai influenciando outras cidades do Estado, a
exemplo de Caxias, ao servir de fonte inspiradora para as edificações construídas pelas elites
caxienses no período áureo – Belle Èpoque – da cidade, o século XIX.
E, assim, descreve-se desde a formação do Povoado até a ascensão à categoria de
cidade, bem como as atividades econômicas, políticas e culturais daí decorrentes, no sentido
de apresentar o patrimônio histórico-cultural de Caxias, destacando-se o edificado, e como
esse patrimônio vai se constituindo em lugares de memórias para os moradores e moradoras,
visto esta ser a cidade dos poetas, tais como Gonçalves Dias, Vespasiano Ramos, Coelho
Neto; dos “guerreiros” ou “facínoras e baderneiros” (como queria os governantes da época) da
Balaiada.
Sob essa constelação de fatos históricos – terra de poetas, palco da Guerra da Balaiada e
de resistência à independência do Brasil, formação de um parque têxtil, singularidade da
arquitetura colonial –, criaram-se subsídios para alimentar a idéia de uma cidade rica, cultural,
importante nacional e internacionalmente e, portanto, com um passado a ser protegido para
inspirar a cidade do presente.
20
Nos textos e nas imagens da cidade, caminhos já percorridos por outros passos,
cenários vistos por outros olhos, mas que querem provocar em Caxias um despertar para a
preservação de seu patrimônio histórico-cultural, de tanta tradição, e que possa levar o
conhecimento ou reconhecimento da cidade real que existe dentro da cidade imaginária, para
muitos(as), ou do que seria a cidade ideal, para outros(as).
Assim, busca-se investigar os elementos que justificaram o tombamento do patrimônio
edificado do centro histórico de Caxias.
Canção do Exílio
sabedoria popular recorreu à lenda da Virgem Maria, chamando a dita expedição de milagrosa
– “Jornada Milagrosa” –, por Ela ter transformado areia em pólvora para os portugueses. Por
isso, dos fundadores pouco restou. O tempo exíguo não lhes permitiu a construção de obras
que sobrevivessem até a atualidade.
Não obstante a estes fatos, os ludovicenses3 reclamam uma herança francesa, que Maria
de Lourdes Lacroix chama de “ideologia da singularidade” (LACROIX, 2002), ao buscarem
uma diferenciação até em suas origens – francesa.
Destacar a fundação francesa faz sentido com a auto-imagem de distinção que os
ludovicenses criam a partir da cultura, considerada muito diferente da dos outros estados
brasileiros, e que por isso, aqueles que migram sempre buscam encená-la, reverenciá-la nos
novos lugares em que se estabelecem. E, simultaneamente, coaduna-se e reforça a idéia de ser
uma cidade diferente das demais porque sabe preservar suas tradições, um dos motivos do
atual crescimento turístico com o objetivo de conhecer a cultura local.
Ser fundada por franceses é mais uma riqueza cultural a ser mantida cuidadosamente ao
se falar da cidade, e a transmissão dos conhecimentos trazidos pelos franceses, mesmo que
tenha sido interrompida pelos portugueses, pode ser continuada pelos(as) moradores(as) de
São Luís, a partir da memória que a tradição histórica reafirma nas práticas cotidianas.
Exemplos de como a fundação francesa permanecem, contemporaneamente, são as
denominações de avenidas, sobrados, palácios governamentais, estátuas e personagens em
homenagem aos fundadores franceses (Avenida dos Franceses, Solar São Luís, Palácio La
Ravardière) e no nome da própria cidade que celebra o Rei-Menino de França – São Luís.
Não obstante, Maria de Lourdes Lacroix, dentre outros(as) pesquisadores(as), aponta os
portugueses como sendo os colonizadores efetivos. São estes que dão as primeiras formas
urbanas à São Luís, sendo incumbido ao engenheiro militar Francisco de Frias Mesquita o
projeto de planejamento das ruas e praças, que, a partir daquela data, deveria orientar o
crescimento da cidade, semelhantes aos desenhos originários das cidades espanholas4.
O mesmo processo de ocupação aplicado no Brasil a partir de 1530 foi estabelecido no
Maranhão, mas sem resultados efetivos. A forma usual de colonização foi a sesmaria 5, doada
tanto pelo governador como por qualquer donatário nos limites de sua Capitania. A
3
Herança da presença francesa em São Luís, uma vez que Luís em francês é Louis, que provém do germânico
Hlodoviko, Ludovico em português.
4
Com a morte do rei português D. Sebastião I, em 1578, e como este não possuía herdeiros, o Rei Felipe, da
Espanha, juntou os dois países num só reino – União Ibérica (1580-1640) –, período em que Portugal ficou sob
domínio espanhol.
5
Instituto jurídico português (presente na legislação desde 1375) que normatiza a distribuição de terras
destinadas à produçãode terras sem culturas ou abandonado. Foi aplicado no Brasil, através da Carta Régia a
Martim Afonso de Sousa, em 1531.
23
colonização, entretanto, foi lenta e cheia de obstáculos. Desde a década de 1620, existiam
lavouras de subsistência, gado e alguns engenhos de açúcar, mas a pobreza era a característica
maior da região.
Frente às constantes ameaças de invasão, principalmente na região Norte, a colonização
portuguesa no Brasil é marcada, em 1621, pela divisão territorial em dois Estados: o Estado
do Brasil, com capital em Salvador, e o Estado do Maranhão e Grão-Pará, com capital em São
Luís6, que compreendia os atuais estados do Ceará, Piauí, Maranhão, Pará, Tocantins e parte
de Goiás. Talvez essa primeira fase da organização administrativa tenha influído no
sentimento do seu povo, como aponta Maria de Lourdes Lacroix “[...] o ludovicense não se
sentia brasileiro” (LACROIX, 2002, p. 70), devido ao contato mais direto com Portugal do
que com o restante da Colônia brasileira.
Muito embora a planta da cidade de São Luís, registrada pelos holandeses em 1641,
apresente traçados geométricos bem definidos, regularmente cortada de ruas e quarteirões que
se entrecruzam em ângulos retos, percebe-se que nas cidades brasileiras, em especial São
Luís, essa orientação não foi obedecida; continuaram seguindo o modelo das cidades
portuguesas. No centro da cidade, por exemplo, observa-se becos, ruas estreitas, sinuosas,
dificultando a circulação de pessoas e dos meios de locomoção, mas encantando a todo(as)
que por ali passa. É o que se pode verificar nas palavras de Emanuel Araújo.
Ao que parece, os portugueses, teimaram em prolongar a tradição
medieval de ruas em ladeiras tortuosas e íngremes, formando labirintos
intrincados e irregulares por onde se postava o casario apertado
(ARAÚJO, 1993, p. 31).
Na zona urbana, ainda são conservados traços característicos de sua origem portuguesa,
com sólidas casas e sobrados, com azulejos importados de Lisboa e linhas arquitetônicas de
inconfundível acabamento lusitano. São prédios, casarões e sobrados que apresentam rigorosa
simetria nas fachadas, ao definir superfícies contínuas no alinhamento das vias e sobre os
limites laterais dos lotes.
6
Esta estrutura administrativa foi extinta em 1652 e em 1751, foi transferida a capital do Estado do Maranhão
para o Pará, sendo a nova capital Belém, passando-se a denominar Estado do Grão-Pará e Maranhão.
24
Para Olavo Pereira da Silva Filho, “a casa maranhense oitocentista não representa
apenas um estilo decorrente das relações de produção e consumo” (SILVA FILHO, 1988, p.
22), pois a arquitetura de São Luís foi se formando com a mistura do estilo europeu, adaptado,
porém, ao meio tropical brasileiro, ou ainda nas palavras do autor,
uma arquitetura forjada nas relações Metrópole-Colônia. [...] As frentes, expostas ao
público, são fechadas, formais, e exibem respeito e austeridade: a Metrópole – nas
salas de vistas, alcovas e dormitórios, no equilíbrio da simetria das fachadas, nos
barrados e simulacros de capitéis de origem renascentista, na forja de bizarras
grades do renascimento espanhol, no lioz estrutural dos vãos, na azulejaria de
fabricação lisboeta. [...] nos fundos, ajustados ao rigor da frontaria européia (SILVA
FILHO, 1998, p. 33).
Sobre esta arquitetura, os viajantes, que por aqui passaram, deixaram seus depoimentos.
Encantados com a arquitetura de São Luís, os naturalistas Spix e Martius, quando estiveram
no Maranhão, em 1828, assinalaram:
São Luís merece, à vista de sua população e riqueza, o 4º lugar entre as cidades
brasileiras. As casas de 2 e 3 pavimentos são na maioria construídas de pés de
cantaria e a cômoda disposição interior corresponde ao exterior sólido, de conforto
burguês (SPIX e MARTIUS apud PEREIRA, 1992, p. 86).
Spix e Martius observam ainda, mais adiante, que em São Luís “as ruas não são bem
alinhadas, parte em ladeiras, e mal calçadas ou sem calçamentos” (SPIX E MARTIUS apud
ARAÚJO, 1993, p. 46). Esse fator pode ser atribuído ao sentido que deram à colônia, ou seja,
algo fugaz e provisório, chegando mesmo a um sentimento de desapego ao lugar, à princípio,
já que os colonos que vieram ao Brasil, em sua maioria, tinham como propósito enriquecer e
voltar à terra natal, à “civilidade”.
Ao contrário de Spix e Martius, outro viajante, Raimundo José de Sousa Gaioso, na
primeira metade do século XIX, parece ter visto outra cidade.
[...] A principal cidade do Maranhão, São Luís, possui dois grandes bairros: o maior,
tem muitos sofríveis edifícios e com muita comunidade, mas a desigualdade do
terreno lhes tira uma parte da sua formosura e algumas ruas mal calçadas fazem a
sua serventia bastante incômoda. [...] o segundo bairro, se é mais extenso, também é
mais miúda e diminuta sua povoação em geral (GAIOSO apud ARAÚJO, 1993, p.
41).
7
Equipe formada por engenheiros, arquitetos e historiadores.
26
arquitetura civil dos séculos XVIII e XIX da América Latina e, neste aspecto, atinge o nível
da excepcionalidade” (BOGÉA et al, 2005, p. 27).
Em São Luís, os debates sobre uma configuração cultural que exprime “ser
maranhense”, acentuam três conjuntos de significados: o valor da cultura erudita e popular; o
patrimônio arquitetônico e histórico; e a história do Estado e da cidade. À categoria das festas,
como expressão do valor da cultura, alia-se à produção de intelectuais do século XIX, que
nomeou a cidade de “Atenas Brasileira”8, possibilitando aos estudiosos contemporâneos e
produtores culturais estabelecerem continuidades dos significados das identidades locais, em
textos e falas onde destacam a profícua produção literária e intelectual do Estado.
Esta produção de significados e sentidos lhes permite fazer uma relação entre o erudito
e o popular, que privilegia mais o diálogo do que a oposição, sem, entretanto, eliminar uma
hierarquia entre essas classificações da cultura e do conhecimento. Aqui, o patrimônio
arquitetônico e a história são traduzidos como tradição, cujos conteúdos servem para a
interpretação da produção cultural dos setores populares e para o entendimento do tempo
histórico, desde a fundação do Estado até os dias atuais. Esta relação é mediada por diferentes
grupos sociais que revelam disputas de poder, ao deslocar, manter e criar desigualdades entre
estes agentes. Por isso, a identidade maranhense não resulta de processos lineares e contínuos,
como se pretende enfatizar nos registros da história oficial local. É o lugar privilegiado onde
se pode ver, ouvir e tomar parte das festas, exposições e palestras que tratam da história, do
patrimônio e da cultura.
No rastro da valorização patrimonial, iniciada nos anos 50, num conjunto de
tombamentos, em uma luta constante com a rápida descaracterização, preservou-se
um valioso patrimônio arquitetônico, somado a aspectos culturais, que permitiram
adaptações a novas funções através dos anos, assegurando que a Unesco concedesse
ao centro histórico o maior valor que um núcleo urbano possa receber no planeta: o
de Patrimônio Cultural da Humanidade (MARTINS, 2000, p. 21).
O título de Patrimônio Mundial, concedido pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco –, em dezembro de 1997, a que Ananias Martins se
refere, foi em reconhecimento à excepcionalidade de seu centro histórico, com traçado
preservado e conjunto arquitetônico representativo, adaptada às condições climáticas do
Brasil equatorial.
Antes mesmo do reconhecimento da Unesco, já podem ser verificadas, no âmbito
nacional, ações do Estado na preservação de seu patrimônio, frente às ameaças de destruição e
descaracterização da arquitetura de São Luís. O governo passa a empreender projetos
8
Denominação atribuída à São Luís pela prosperidade econômica (4ª Província mais rica do Império) e,
sobretudo, pelo desenvolvimento cultural do Estado, com seus famosos escritores e intelectuais (Gonçalves Dias,
Sousândrade, Artur Azevedo, Coelho Neto, entre outros).
27
9
As ações para o patrimônio arquitetônico foram consideradas prioritárias pelo Governador Epitácio Cafeteira, a
partir de 1987. A obra de maior destaque foi o Projeto Reviver, cujo objetivo era o de promover, recuperar,
reformar e ampliar os prédios do centro histórico de São Luís. O Departamento de Patrimônio Histórico,
Artístico e Paisagístico da Secretaria do Estado do MA – Dphap-MA – ficou responsável pela implementação,
juntamente com outros órgãos estaduais e federais. O Projeto Reviver torna-se fundamental para as ações de
desenvolvimento do turismo, assim como sua representação como símbolo de identidade maranhense.
28
O que se conhece, hoje, como Caxias nasce por volta de 1716. Formada ao longo das
margens do rio Itapecuru ou, nas palavras do escritor caxiense Libânio da Costa Lôbo, do
“Nilo maranhense” (LÔBO, 2003, p. 171), o local era habitado por diversas tribos indígenas,
entre elas os Guanarés, os Timbiras e os Gamelas, quando chegaram os colonizadores.
A história de Caxias começa com a história das entradas e reconhecimento da terra,
feita pelos franceses, e com a ocupação das terras férteis que margeiam o Itapecuru,
e principalmente com o trabalho valoroso dos missionários que, em sua obra
evangelizadora por toda a redondeza, criou entre os silvícolas um laço de confiança
que se processou na fé e civilização (VILANETO, 2006, p. 31).
10
Casebres construídos de folhas de palmeira, geralmente tapados de palha, que serviam aos tocadores de gado.
11
Depósitos provisórios construídos pelos lavradores de cultivo, onde armazenavam, nas colheitas, o produto do
seu trabalho.
12
Cidade maranhense, localizada a 490 km da capital, fica localizada na região do Leste Maranhense, teve seu
povoamento iniciado por bandeirantes e fazendeiros vindos do vale do São Francisco e da Serra da Ibiapaba,
Pernambuco.
29
pelos criadores de gado baianos e bandeirantes vindos da região do rio São Francisco, em
função da “via de passagem” ocorrer por Caxias13.
O pesquisador Mílson Coutinho é quem melhor aborda sobre a origem da povoação:
“Caxias, que jamais fora fundada, num dia e hora certos, senão originada dos pousos e paiós,
e do aglomerado de lavradores e criadores da região, veio a se transformar, a partir dos 30
primeiros anos do século XVIII, no arraial que foi o núcleo da atual Caxias” (COUTINHO,
2005, p. 24, grifo do autor). O Arraial nasce, lentamente, a partir da chegada dos primeiros
colonos, organizada com a vinda dos padres jesuítas e impulsionada com o trabalho dos
mercadores que para cá se dirigiam, ao trazer suas mercadorias e comprar os produtos da
terra.
Porto de entrada para o Alto Itapecuru e para a próspera região de Pastos Bons, era
também rota de passagem do intenso intercâmbio mercantil a partir da Bahia, passando pelo
Sul do Piauí até os sertões maranhenses, como escreve o governador do Maranhão D.
Fernando Antônio de Noronha (1792-1798):
O Julgado de Aldeias Altas tem tido um aumento considerável em população,
cultura e comércio [...], constitui-se como um ponto central comunicável às
Capitanias do Ceará, Pernambuco, Piauí, Bahia e a todos esses vastíssimos sertões
(NORONHA apud COUTINHO, 2005, p. 29).
13
A ligação entre Caxias e a capital do Piauí, Teresina, mantém-se até a atualidade devido à proximidade
(78km). Vale ressaltar, que esta relação é sobretudo econômica.
30
exportação, de sorte que aquele arraial é uma continuada feira de compras e vendas.
As embarcações que atualmente ali vão desta cidade, carregadas de fazendas secas e
molhadas, são muitas e, no regresso vêm todas carregadas de sacaria de algodão. Eu
vi em maio do ano passado, juntos naquele porto, cinco barcos de coberta, grandes e
todos capazes de navegar o alto mar, que foram carregados de mercadorias e
voltaram abarrotados de sacas (MENDONÇA apud COUTINHO, 2005, p. 31-32).
Assim, como em grande parte das cidades coloniais brasileiras, o porto desempenhou
um papel importante no seu desenvolvimento, como pólo econômico da cidade, provocando a
aglomeração da população e de estabelecimento de serviços e comércio. Em Caxias, a ligação
com a capital e os vilarejos ribeirinhos era através do rio Itapecuru. Em um tempo em que a
navegação era o mais importante meio de circulação das riquezas, o Arraial muito se beneficia
dessa circunstância. Mas o incremento da produção algodoeira e a necessidade de escoar a
produção forçaram a que os caxienses iniciassem a ligação terrestre, abrindo estradas para
animais de carga. Posteriormente, já no final do século XIX, foi iniciada a construção da
estrada de ferro ligando Caxias à Cajazeiras (hoje Timon)14. Os trilhos dessa estrada atingiram
Caxias em 1895, data de sua inauguração. Para Mílson Coutinho, esta ferrovia foi o primeiro
grande fator do que possa ser considerado progresso da cidade e no desenvolvimento de sua
economia (COUTINHO, 2005).
A estrada de ferro e os trens significaram uma nova etapa na história da cidade, tanto
pelo incremento do comércio e possibilidade do intercâmbio, como pelas modificações físicas
resultantes da implementação do sistema férreo na malha urbana.
As linhas do trem estabeleceram-se como eixo de crescimento na cidade, atraindo para
suas margens, fábricas e armazéns, à semelhança do papel exercido pelo porto, décadas antes.
Impulsionada pelo desenvolvimento econômico o Arraial é elevado a Vila em 1811,
passando a denominar-se Caxias das Aldeias Altas. Nessa época, já havia um ambiente
construído significativo em “feitio colonial no Largo da Cadeia e ainda em terrenos
devolutos” (MEDEIROS, 2005, p. 99).
Segundo Pe. Cláudio Melo, a ascensão à categoria de cidade, com a denominação
Caxias, ocorrida em 1836 – Lei Provincial nº 24 –, é conseqüência do aumento populacional,
resultante do significativo desenvolvimento econômico, pois em meados do século XIX, a
cidade transforma-se na principal exportadora de algodão, abastecendo grande parte da
Europa, pelo porto de São Luís, e para os grandes centros do Sul, através do Piauí,
Pernambuco e Bahia (MELO, 1986).
14
Cidade maranhense, localizada a 426 km da capital, está localizada na região do Leste Maranhense. A cupação
de Timon começa ainda no século XVIII, com o estabelecimento das comunicações entre a Vila da Mocha, hoje
Oeiras, no Piauí, e Aldeias Altas , hoje Caxias.
31
Figuras 1 e 2: Linha férrea da Estrada de Ferro Caxias-Cajazeiras (foto: arquivo pessoal de Rodrigo Bayma).
Ao chegar o século XX, a construção de estradas rodoviárias vem também fortalecer as
relações comerciais de Caxias com as principais cidades brasileiras. E, em meados do século
33
Segundo Mílson Coutinho, ainda no século XIX, pela Lei Provincial de 1835, a Vila foi
contemplada com iluminação pública, com a concessão de 50 lampiões a querosene, para
iluminação das principais vias públicas e, em 1891, já possuía também serviço de
abastecimento de água (COUTINHO, 2005).
A “modernização” desfrutada pela elite da cidade foi fator de consolidação da cultura
algodoeira – o “ouro branco” caxiense –, cultivada em latifúndios na região, cuja mão-de-obra
fundamental era o trabalho escravo, e a conseqüente instalação de um parque fabril têxtil na
cidade, a partir da década de 1880, deixa marcas da riqueza da cidade. Isso desperta nos(as)
moradores(as), principalmente aos(às) mais aquinhoados(as), uma maior atenção à cidade,
com investimento nas áreas de urbanismo e saneamento, a partir da instalação de infra-
estrutura, com vistas a usufruir das benesses proporcionadas pela vitalidade econômica do
período.
Essa atividade econômica de grande vitalidade gera um acúmulo de capital, que se fez
refletir no aspecto arquitetônico e cultural significativo na cidade, com a construção de
sobrados, casarões, casas com mirantes, azulejos nas fachadas, fábricas têxteis.
Nesse contexto, “modernização” significava uma palavra carregada de atributos
inconfundíveis: a cidade, os sistemas de equipamentos urbanos, a comunicação, os transportes
e as extravagâncias contidas no que aqui se chama de Belle Époque, ou a idade de ouro de
Caxias, período compreendido entre 1850 a 1950, quando a cidade vivia uma fase de
esplendor econômico e cultural.
No campo da cultura, a imagem dessa nova sociedade cristaliza-se na proliferação de
jornais, multiplicado em números, ao difundir e reforçar, ainda mais, os novos hábitos
culturais da cidade. Segundo Mílson Coutinho, a tipografia em Caxias era significativa, tendo,
entre 1833 e 1900, circulado cerca de trinta e dois jornais, entre algumas interrupções e
34
outras. Alguns de natureza noticiosa e política (A Crônica, 1833; Correio de Caxias, 1847;
Bem-te-vi Caxiense, 1849); outros de linha literária (A Tulipa, 1857; A Rosa, 1860); e também
de cunho econômico (Correio Caxiense, 1854). (COUTINHO, 2005).
Para dar mostras da efervescência cultural e dos novos hábitos da elite caxiense, a
cidade possuía dois teatros, espaço esse que Caxias atualmente não tem. O primeiro teatro, o
Harmonia, foi inaugurado em 1846. Ali havia apresentações do que melhor se podia falar
entre as companhias teatrais da época. Já em 1882, inaugurava-se um segundo teatro, o Fênix,
que chegou a receber, em 1885, a Companhia Dramática Italiana, a Balsamani & Cia.
Em entrevista concedida para esta pesquisa, o desembargador Arthur Almada Lima
Filho, caxiense, 80 anos, reforça essa visão de cidade cultural:
É uma coisa extraordinária, em saber que no princípio do século XX a nossa cidade
tinha um movimento cultural tão importante: aqui haviam mais de oito pianos
particulares, inclusive esse de meia calda [mostra a imagem de um piano], que era
da família Carvalho. A minha família tinha dois pianos, um que ainda menino a
gente arrebentava com ele e o outro foi conservado até a morte da minha avó e
depois ficou jogado. Este piano está na Balaiada [Memorial da]. Você encontrava
muitos pianos: dois eram da família dos Cesário Lima e o outro da família da
Raimunda Maria. Tinha o da família Lobo, o da família Vidigal, e tinha o da família
Caldas. Mas o que fico admirado é como esses pianos vinham pra cá: pelo rio
Itapecuru. Eles chegavam da Europa de navios, desciam em São Luís e [...] vinham
pra cá nas lanchas e vapores da Companhia que era da família Robert Walls. [...]. Se
você ver jornais daquela época verá que tinha profissões de afinador de piano,
instrutor de piano. É incrível como era uma cidade cultural já naquela época. E você
vê também pelo número de jornais que foram publicados em Caxias [...]. Não existe
no Brasil, creio eu, uma cidade no interior do Maranhão, com tantos jornais como
aqui (LIMA FILHO, 2008).
15
Introduzido no Brasil com os colonizadores portugueses, é identificado pelo uso, nas construções, de balcões e
sacadas, portadas, portas e janelas emolduras em relevo, predominando a planta oval, com fachadas de
superfícies ondulantes. Como as construções ficavam alinhadas à rua, por segurança eram geminadas,
configurando um contínuo correr de casas semelhantes. A maior parte das casas era térrea, mas também existiam
os sobrados: edificações de dois pavimentos, sendo a parte inferior utilizada para atividades comerciais
(ALMEIDA, 2001, p. 73).
16
Inserido ao Brasil em fins do século XIX, apresenta uma arquitetura simples e de proporções harmoniosas,
linhas elegantes, efeitos ordenados, lembrando a arquitetura greco-romana. A simetria marcante e composição
perfeitamente equilibrada são traços típicos da arquitetura neoclássica (ALMEIDA, 2001, p. 74).
17
Recorrendo ao emprego das novas técnicas e materiais industriais, como o concreto, o aço laminado e o vidro
em grandes dimensões.
18
Mistura de estilos arquitetônicos para a criação de uma nova linguagem arquitetônica, catgorizando uma
arquitetura pós-moderna, termo genérico para designar uma série de novas propostas arquitetônicas.
36
De propriedade de Pedro Lobo, o outro sobrado que permanece edificado (figura 5),
localiza-se na Praça da Matriz, foi construído na segunda metade do século XIX, em estilo
colonial, com portadas em cantaria, sacada com gradís de ferro.
37
Hoje, no mesmo local, funciona uma agência bancária (Bradesco), uma loja de
artesanato local, a única que ainda mantém a fachada original, apesar de descaracterizada pelo
Figura 6: Fachada da residência do Coronel José Figura 7: Concessionária Willys, na década de 1950
Guimarães Júnior, final do século XIX (Foto: (Foto: Arquivo pessoal de Rodrigo Bayma).
Arquivo pessoal de Rodrigo Bayma).
uso inadequado de cores, lojas de xérox e papelaria e loja de produtos populares. Pelas
fotografias é possível visualizar estas transformações/atualizações.
Figura 8: Banco Bradesco (Foto: ALMEIDA, 2008). Figura 9: Lojas diversas (Foto: ALMEIDA, 2008).
ferro, janelas de vidro); mantém acima da porta principal uma grade de ferro decorada, com
data de construção do imóvel (no detalhe), conforme costume da época; o imóvel possui
espessas paredes de pedras; portadas e janelas apresentando-se em colunas que terminam na
parte superior em um arco de volta perfeita e entablamento, que caracterizam o estilo colonial
no Brasil. Na década de 1920 funcionou como Escola – Grupo Escolar João Lisboa.
Ao caminhar por esta rua, encontra-se também um casarão datado do ano de 1901, de
significativo valor arquitetônico (figura 11). O imóvel ostenta sua carcaça desfeita em ruínas,
com perda de paredes e tetos. A única fachada ainda de pé mostra a imponência de outros
tempos. A residência pertenceu a Turíbio Oliveira, de família tradicional em Caxias, no início
do século XX. A fotografia destaca a fachada, com profusa decoração, entablamento reto,
vergas das portas e janelas guarnecidas de moldura (padieira) , como também se pode observar
nos detalhes abaixo.
Ao passear um pouco mais pelas ruas da cidade, chega-se à Praça do Panteon, onde se
encontra o prédio que sedia, hoje, a Prefeitura Municipal de Caxias. Nas imagens (figuras 12
e 13) podem ser visualizadas a construção em estilo colonial, em dois momentos.
verão, que os moradores chamam de “sol escaldante”, e muita chuva no inverno. Tal inovação
expandiu-se até Caxias, onde construções residenciais passaram a ter as fachadas revestidas
em azulejos vindos de Portugal, utilizados como proteção e embelezamento das fachadas do
casario colonial, como os casarões ilustrados a seguir:
Figura 16: Fachada da residência da família Silveira. Construída em 1873, quando recebeu
revestimento de azulejo português (Foto: ALMEIDA, 2008).
maioria, trazidos de Portugal. Esses casarões ainda permanecem na mesma família, que
procuram preservar a fachada; já o interior dessas residências sofreu algumas atualizações.
Assim, como em São Luís, Caxias possuiu vários casarões com mirantes, mas, ao longo
do tempo, foram sendo destruídos, é o que afirma Arthur Almada Lima Filho: “[...] tinha uma
casa com mirante, do prefeito Vilanova, de 1921 a 1923, ali no Largo do Poço” (figuras 17 e
18), hoje Praça Gonçalves Dias. E, ainda segundo o entrevistado, “tinha uma casa também
muito interessante do Nafitali Carvalho [...]; lá tinha um mirantizinho, baixinho, mas tinha um
sobradinho, e lá com meus primos a gente brincava” (LIMA FILHO, 2008).
Quando convidados a (re)visitar o passado, através de suas memórias, constata-se que
os mirantes também eram vistos como lugares para bisbilhotar a vida alheia. Assim, no
depoimento de Luís Domingues Oliveira, o fato se confirma: “os mirantes eram chamados de
alcoviteiro [...], porque de lá dava pra ver tudo o que estava acontecendo na cidade [...], quem
estava namorando, quem ia passando, quem estava na porta” (OLIVEIRA[A], 2001).
Mas é bom ressaltar que tais descaracterizações podem ocorrer por fatores diversos,
como os proprietários argumentam, sendo um deles a falta de recursos financeiros, devido ao
elevado custo para restaurar os imóveis; contudo, isso termina por destruir importantes
monumentos históricos do patrimônio arquitetônico caxiense.
Um dos cartões-postais da cidade é a Fábrica da Companhia Têxtil Caxiense (figuras 21
e 22). Em estilo neoclássico, caracteriza-se pela simplicidade e proporções harmônicas, linhas
elegantes, colunas e colunatas, que lembram as ordens greco-romanas, principalmente na
composição dos elementos de fachada, como platibandas, frontões isósceles, que podem ser
observados também em algumas construções de caráter civil que compõem o centro histórico.
O interior, com grandes espaços, é próprio da atividade industrial, símbolo de uma nova
ordem econômica na cidade.
44
Figura 21: Fachada da Companhia Têxtil Caxiense, inaugurada em 1889, localizado na Praça
do Panteon, fotografada em 1940 (Foto: Arquivo pessoal de Rodrigo Bayma).
Figura 22: Hoje, Centro de Cultura José Sarney, funcionam várias secretarias da administração
municipal (Foto: ALMEIDA, 2008).
Figura 24: Fachada do Palácio Episcopal, construído em 1944 (Foto: ALMEIDA, 2008)
46
Nas figuras (23 e 24) são apresentadas fachadas em estilo neoclássico. Na residência,
identificando, por exemplo, que ali residia um industrial, a partir da existência do detalhe de
uma “rede” na parte do frontão isóscele. No Palácio Episcopal, podendo ser identificado pelo
uso colunas, colunatas, janelas em dois estilos diferentes.
Na identificação e caracterização dos estilos do patrimônio edificado de Caxias também
foi possível notar, em parte das construções, uma arquitetura eclética, ou seja, a mistura de
vários estilos na mesma construção, como pode ser visualizada nas imagens abaixo:
Figura 25: Portas e janelas identificadas como estilo gótico pelo uso do arco em ogiva; neoclássico pelo
entablamento, onde não é possível visualizar o teto do chão (Foto: ALMEIDA, 2008).
Figuras 27 e 28: Fachadas do casario do centro histórico de Caxias (Foto: ALMEIDA, 2008).
Assim, nota-se (figuras 26, 27 e 28) que as fachadas não variam muito, constituindo-se
por linhas retas; tipologicamente definidas como morada-inteira, ou seja, uma porta central e,
de cada lado desta, uma ou duas janelas, em perfeita simetria e proporção.
Já na arquitetura religiosa, identifica-se características de várias fases do barroco 19. As
Igrejas de Nossa Senhora da Conceição e São José e a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos são caracterizadas como sendo da primeira fase: frontispício com frontões curvos,
torres em seção quadrada, cúpula de alvenaria com formas diversas, entablamento reto, com
um encurvamento em semicírculo no meio, parte central triangular e sineira na capela ao lado.
A Capela dedicada a São José (Figuras 29 e 30) foi construída na primeira metade do
século XVIII, pelos colonizadores portugueses. Constituía-se numa capela de edificação
simples: capela-mor, sacristia, arco cruzeiro, nave e coro; na parte externa observa-se um
frontispício simples, compondo uma fachada sem torres sineiras. Em 1835, foi elevada a
condição de Igreja Matriz, passando por algumas reformas, com as características
arquitetônicas de hoje. Está situada na Praça Cândido Mendes, centro, em construção maciça
de pedra e cal, paredes excessivamente grossas, de uma só torre.
A construção da Capela do Rosário (figuras 31 e 32) foi iniciada em 1772, em pedra,
rebocada de cal e coberta de palha. Com o conflito armado na cidade, em 1839, quando da
Guerra da Balaiada (1838-41), foi ocupada pelos balaios, que instalaram nela um posto de
abastecimento, ocasionando alguns danos à edificação. A partir de 1840 a Capela passa por
processo de reforma, momento em que foi feita a reforma do frontispício, cobertura, altar-mor
e laterais, como se apresenta hoje.
Figuras 31 e 32: Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (1908 – Arquivo público – e 2008 – ALMEIDA
–, respectivamente).
Figura 34: Igreja de Catedral de Nossa Senhora dos Remédios (Foto: ALMEIDA,
2008).
A Catedral de Nossa Senhora dos Remédios (Figura 34) domina importante vista da
cidade. Localizada na Praça Magalhães de Almeida, a Igreja foi construída em 20 de outubro
de 1817, em terreno elevado, próximo ao Morro do Alecrim. Como as demais, o frontispício
tem forma quadrangular, torres quadradas, frontão se abrindo, sugerindo movimento, sineiras,
janelas e porta ornadas em perfeita simetria, envasadura circular.
Alguns episódios da história de Caxias estão ligados ao patrimônio edificado. Destaca-
se, por exemplo, o episódio da Guerra da Balaiada: a Igreja de São Benedito teria servido de
abrigo para parte da população; a Igreja de Nossa Senhora de Nazaré dos Pretos foi
transformada em Mercado da Intendência dos insurretos. Já a Igreja de Nossa Senhora dos
50
Remédios serviu como depósito de artigos bélicos aos legalistas, sendo depois tomada pelos
balaios. No movimento pelo reconhecimento de Caxias à independência do Brasil, foi na
Igreja Nossa Senhora da Conceição e São José (Matriz) que o Major João José da Cunha Fidié
assinou sua rendição.
Assim, o patrimônio edificado de Caxias é um testemunho marcante da arte de saber
fazer, que determinaram o processo de urbanização da cidade e, conseqüentemente, da
concentração de riquezas proporcionadas pelo ciclo de exportação do algodão e da instalação
de manufaturas.
A carga histórica do lugar é sabiamente usada pelo poder municipal como instrumento
eficaz de desenvolvimento local. Vários folhetos/guias são editados, apostando, sobretudo, no
registro fotográfico que tira partido não só das belezas arquitetônicas, mas também das figuras
populares que conferem a este centro histórico uma “identidade própria”, ao contribuir para
gerar uma imagem de marca, elemento fundamental para a visualização de Caxias no mundo.
Os guias turísticos podem dar uma dimensão geral da cidade. No entanto, eles têm
como objetivo apresentar a cidade de Caxias para os(as) visitantes. Por isso, acredita-se tratar
de uma fonte privilegiada, pois através deles é possível compreender que cidade se quer
apresentar para os(as) visitantes, que bairros, que tradições devem ser apresentadas às visitas.
Dos itens que compõem o Guia Turístico de Caxias, editado pelo governo municipal
(2005-2008), distribuído gratuitamente a quaisquer interessados, estão as igrejas seculares,
construídas nos séculos XVIII e XIX: Igreja da Matriz de Nossa Senhora da Conceição e São
José, localizada na área central da Praça Cândido Mendes; Igreja de São Benedito, localizada
na Praça Vespasiano Ramos; Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na Praça Rui
Barbosa; Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, localizada no antigo largo de Nazaré, à margem
esquerda do Rio Itapecuru e Igreja da Catedral Nossa Senhora dos Remédios, na Praça
Magalhães de Almeida.
Os outros itens se dividem por monumentos, assim classificados: casario, praças,
cultura, balneários e culinária, procurando dar uma visão de conjunto em que se ignora, de
forma explícita, novas áreas urbanas ou marcas de desenvolvimento tecnológico.
Os folhetos – na medida em que se arrogam a traduzir Caxias para os(as) visitantes,
revestindo de verdade suas descrições com dados históricos, topográficos e culturais –
compõem uma identidade para a cidade, e, através dela, ao Maranhão. Dessa forma, na sua
função de propaganda, faz uma mediação entre os turistas e os(as) moradores(as), tornando
triangular esta relação, ou seja, nesta função a propaganda atua nessas relações. A passagem
51
seguinte, extraída do Guia Turístico de Caxias, é um exemplo de como as imagens sobre uma
identidade caxiense nos folhetos, também articulam as relações entre turistas e locais:
‘Minha terra tem palmeiras [...]’. O canto do nosso poeta maior encanta os amantes da
vida. Ao chegar em Caxias você perceberá melhor o significado das palavras do nosso
Gonçalves Dias. A poesia e a literatura pulsam nas veias de nossa gente. Mas Caxias
é muito mais que poesia. É realidade. É encanto. É natureza. É progresso social.
Caxias é vida. É alegria. A alegria que sentimos ao recebê-lo em nossa terra. Terra de
poetas e guerreiros, de grandes vultos literários e políticos do Maranhão e do Brasil.
[...]. o cenário que se descortinará à sua frente é um mosaico de história, cultura,
letras e um patrimônio arquitetônico-paisagístico-artístico incomum (Guia Turístico
de Caxias, 2005, p. 2).
Nessa passagem, além de ser destacada a categoria poética para compor uma identidade
caxiense, relacionando-a com a personalidade do seu poeta maior, Gonçalves Dias, “Minha
terra tem palmeiras, onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá” são
introduzidos novos atributos, novas qualidades para a cidade e seus habitantes como um
caráter, um modo de ser, uma alma específica. Os adjetivos e substantivos que dão
significados para a cidade – encanto, natureza, progresso social, vida, alegria, história, cultura,
letras, poetas e guerreiros, patrimônio arquitetônico, paisagístico e artístico – parecem
(re)apresentar as qualidades estudadas acima, como se fosse um núcleo aglutinador da
composição de uma cultura caxiense nesses folhetos, aqui denominada caxiensidade,
terminologia emprestada dos folhetos do Estado, que fala da maranhensidade que, em outras
palavras, nada mais é do que os habitantes se assumirem como verdadeiros caxienses, com as
suas caras autênticas, onde resplandecem as conquistas em vastos segmentos culturais, em
especial, no que vem de suas raízes históricas.
Numa leitura atenta a esse folheto, nota-se que a apresentação da cidade traz como
elementos principais, as fachadas de casarões em estilo colonial, as igrejas seculares no estilo
barroco, a fábrica têxtil, em estilo neoclássico, praças, comidas típicas, balneários, que se
repetem na estrutura ilustrativa do folheto. Esta relação entre a cidade e o seu casario colonial
é reforçada pela editoração do folheto, que enfocam detalhes característicos da arquitetura
colonial de Caxias, azulejos, portas e janelas, intercaladas aos textos. A predominância da
arquitetura como detalhe ilustrativo coaduna-se com uma configuração de cultura que
exprime a identidade caxiense e (inter)media sua experiência, ao pretender se apresentar como
cidade culta, literária, histórica.
De fato, no folheto, com a presença da fachada da Academia Caxiense de Letras, as
produções eruditas locais aparecem como composição na qual arquitetura e literatura são
entrelaçadas nos nomes poéticos das ruas e praças, ou em homenagem aos literatos caxienses
52
Figura 35: Mapa dos limites de tombamento do Centro Histórico de Caxias-MA. Ilustração: Joana Batista.
O mapa (Figura 35) mostra a área que foi efetuado o tombamento do centro histórico,
arquitetônico e área paisagística do município de Caxias. Nessa lei, definiu-se como limites:
Centro Histórico
Inicia-se na interseção do Rio Itapecuru com a Rua Porto das Pedras, seguindo por
esta e incluindo o casario do lado direito até encontrar a Rua Conselheiro Furtado.
Dobra-se à direita e, incluindo o casario do lado direito, segue-se pelas Ruas do
Cotovelo e 13 de Maio, alcançando a Praça Magalhães de Almeida. Incluindo o
casario do lado direito da Praça, sobe o Morro do Alecrim, contornando as ruínas do
Forte e o Monumento ao Duque de Caxias. Neste ponto, desce a encosta à esquerda
do morro até o cruzamento das Ruas Aarão Reis e Bom Jesus dos Passos, seguindo
por esta até a Rua Dr. Berrêdo onde dobra-se à esquerda e, incluindo o casario do
lado direito, segue-se até à esquina da Rua dos Grades. Dobra-se à direita, seguindo
pela Rua dos Frades até seu cruzamento com a Praça do Cemitério dos Remédios,
subindo por esta e incluindo seu casario do lado direito, contornando o Cemitério
dos Remédios descendo pela mesma Praça do Cemitério dos Remédios até a Praça
São Sebastião. Dobra-se à direita e, incluindo o casario do lado direito, segue-se
pela Rua da Tangerina, cruzando a Rua Nossa Senhora de Fátima, contornando a
Praça Dom Marelim e o Cemitério São Benedito. Retornando pela Av. Santos
Dumont até a Rua da Independência onde dobra à direita e, incluindo o casario do
lado direito, segue-se até a esquina da Rua Siqueira Campos onde dobra-se à direita
e segue-se até contornar a Capela de São Francisco e a Praça que lhe fica em frente.
Retorna-se pela mesma Rua Siqueira Campos até a Rua Libânio Lobo, seguindo-se
por esta até a esquina da Rua Agostinho Reis onde dobra-se à direita, continuando
por esta e cruzando a Av. Getúlio Vargas, contornando o Mercado Central até a
linha da Estrada de Ferro, acompanhando-a até encontrar o Rio Itapecuru.
Morro Santo Antonio
Compreende a Capela Santo Antonio no bairro Ponte, edificada no topo do Morro
do mesmo nome, as encostas e escadaria existentes que dão acesso ao templo.
55
Fábrica Francastro
Compreende a edificação original sede da Fábrica do mesmo nome, localizada no
Bairro Ponte.
Balneário Hidromineral
Área paisagística composta por fonte de água mineral sulfurosa, lago que contém
lama negra com propriedades medicinais e extensa reserva florestal, totalizando 40
hectares.
(Decreto de Tombamento Nº 11.681/90).
Seria bom, portanto, que a relação passado/presente tivesse significados, sentidos, que
fossem preservados, na perspectiva de que poderão possibilitar aos cidadãos e cidadãs
caxienses compreenderem a importância dos acontecimentos passados e, a partir daí,
reelaborar e refletir sobre a necessidade ou não de preservá-lo, bem como que novos usos
podem ser atribuídos ao patrimônio.
Com as informações acima expostas, procurou-se fazer a caracterização da cidade de
Caxias, abordando os aspectos políticos, econômicos, históricos e culturais relativos à
fundação e expansão de Caxias, fatores que se refletiram e ainda influenciam na configuração
espacial da cidade. Trazer esses dados à tona permite a identificação do patrimônio
construído, bem como os valores subjacentes a esse patrimônio erigidos nos séculos XIX e
XX.
Constata-se que o interesse da elite dessa época, formada por industriais e
comerciantes, é estruturar a cidade, tornando-a compatível com o desenvolvimento
econômico, sendo uma das ferramentas utilizadas a edificação de residências imponentes em
estilo colonial, neoclássico e eclético.
Investigar o contexto social, econômico e histórico é o primeiro passo para o estudo do
universo em que se elaboram, se difundem e se reproduzem os sentidos e significados sociais
do patrimônio edificado de Caxias.
Buscando acrescentar elementos do debate sobre a apreensão desse patrimônio cultural,
o capítulo seguinte aborda a expansão do conceito de patrimônio ao longo do tempo, bem
como as categorias memória e identidades, a partir da perspectiva dos valores históricos
associados aos bens patrimoniais, com enfoque nos sentidos e significados atribuídos ao
patrimônio edificado.
57
CAPÍTULO II
A PERTINÊNCIA DOS CONCEITOS: do
patrimônio histórico ao cultural
A palavra patrimônio talvez seja das lembranças mais antigas da minha vida.
Era como se fosse, senão uma pessoa. Certamente uma coisa viva, íntima e
querida, um pouco parte da família. Passado, lá em casa, nunca teve cheiro
de mofo, nunca foi visto como coisa pretérita, mas como o “moderno” de sua
época.
Maria Elisa Costa
58
categoria seria representada por espaços materiais que possibilitariam essa proteção. Na pós-
modernidade, verifica-se que há, cada vez mais, uma demanda por fundar “lugares de
memória”, para imortalizar o passado, impedindo seu esquecimento.
Em 2001, Françoise Choay escreve que o patrimônio histórico se tornou a palavra-
condição midiática, sendo o seu culto revelador do estado de uma sociedade e das questões
que se lhe colocam. A mídia é um dos artifícios empregados para a preservação dos bens
culturais, na medida em que se observa que as memórias são influenciadas pela organização
social de transmissão e os diferentes meios de comunicação utilizados.
De fato, ao longo das últimas décadas do século XX, verifica-se um mundo que tem
dedicado grande atenção aos chamados patrimônios culturais. São patrimônios históricos
edificados, socioculturais, artísticos, lingüísticos e humanos, que encontram expressões
diversas nas cidades de hoje. Enunciadores de modos de viver, passados e atuais que, no seu
conjunto, constituem a memória social, estes patrimônios, tanto os tangíveis como os
intangíveis, revelam as identidades, os significados, os “lugares de memória”, para lembrar
mais uma vez a expressão de Pierre Nora (NORA, 1993), pelo fato de que a experiência
proporcionada pelos lugares de memória está vinculada a uma importante busca do ser
humano: o entendimento de si mesmo.
Isso porque do lugar em que se vive, espera-se mais do que simples situações
favoráveis à saúde, recursos para fazer funcionar a máquina econômica e tudo o que
signifique boas condições ecológicas. Em outras palavras, o que se quer experimentar são as
satisfações sensoriais, emocionais e espirituais que somente podem ser conseguidas mediante
uma interação íntima, uma real identificação com os lugares onde se vive. Essa interação e
identificação geram o espírito do lugar.
É a noção de patrimônio evocando múltiplas dimensões da cultura, como imagens de
um passado vivo, acontecimentos e coisas a serem preservadas, porque são coletivamente
significativas em sua diversidade. Quando se discute “preservar o patrimônio”, é por
compreendê-lo como forma de respeito pela história social, pelo passado, presente e futuro.
Isso implica considerar não apenas as dimensões construtivas, decorativas e estéticas, mas
também os significados, sentidos e valores simbólicos, sociais e culturais inerentes a tais
dimensões.
Contudo, não é o que parece acontecer. Quando se fala em patrimônio, pensa-se quase
sempre em uma imagem congelada do passado. Um passado paralisado em museus cheios de
objetos que ali estão para atestar que há uma herança coletiva. Monumentos arquitetônicos e
obras de arte espalhadas pela cidade, cuja visibilidade se achata no meio da paisagem urbana,
61
O que se evidencia é que o patrimônio passa a ser visto como o discurso do cotidiano,
prioriza valores como a experiência pessoal e coletiva dos diversos grupos sociais ao
constituir o patrimônio como a representação da diversidade cultural presente em uma
sociedade nacional. É o que afirma José Reginaldo Gonçalves: “o passado, portanto, torna-se
relativo. Ele vai depender de pontos de vista particulares” (GONÇALVES(a), 2002, p. 114), o
que parece ser certo, haja vista o patrimônio simbolizar diferentes práticas sociais e memórias
de diversos grupos nem sempre reconhecidos pela historiografia oficial. Trata-se daquelas
situações em que determinados bens culturais, classificados pelo Estado ou Município, como
patrimônio não chegam a encontrar respaldo ou reconhecimento junto a setores da população.
Os patrimônios culturais não são simplesmente objetos e estruturas materiais existentes por si
mesmos, mas, antes, são constituídos no discurso, ao expressar diferentes visões de mundo.
Quando se fala patrimônio cultural, pretende-se fazer referência ao conjunto daquilo que
tem significação, que tem sentido social; não importa se esse patrimônio é algo materializado,
visível, ou manifestações da cultura que se apresentam através da(o) cidadão(ã) comum.
Nesse sentido, compreende-se que a materialidade não está dissociada da imaterialidade, elas
se complementam. Desse modo, os bens materiais e imateriais que compreendem o
patrimônio cultural são considerados manifestações ou testemunho significativo da cultura
humana, reputados como imprescindíveis para a conformação da identidade cultural de um
povo.
Corroborando as leituras de patrimônio apresentada por Françoise Choay e Maria
Cecília Londres Fonseca, para José Reginaldo Santos Gonçalves o:
patrimônio está entre as palavras que usamos com mais freqüência no cotidiano.
Falamos dos patrimônios econômicos e financeiros, dos patrimônios imobiliários;
referimo-nos ao patrimônio econômico e financeiro de uma empresa, de um país,
de uma família, de um indivíduo; usamos também a noção de patrimônios culturais,
arquitetônicos, históricos, artísticos, etnográficos, ecológicos, genéticos; sem falar
nos chamados patrimônios intangíveis, de recente e oportuna formulação no Brasil.
Parece não haver limite para o processo de qualificação dessa palavra
(GONÇALVES(b), 2002, p. 21-22).
De fato, nas últimas décadas do século XX, verifica-se uma transição significativa na
forma de compreender o patrimônio, pois ao serem acrescentados os adjetivos cultural,
histórico ou natural, a concepção de patrimônio foi ampliada, passando da noção estrita de
patrimônio histórico, para a de patrimônio cultural. Assim,a expressão patrimônio cultural é
63
usada para designar objetos no sentido mais geral desse termo: prédios, obras de arte,
monumentos, lugares históricos, relíquias, documentos e diferentes modalidades de práticas
sociais objetificadas enquanto bens culturais: artesanato, rituais, festas populares, religiões
populares, esportes (GONÇALVES, 1996).
Em outras palavras, a expressãopatrimônioculturalé usadaparadesignaraquiloque é
próprioda criaçãohumana,constituindo-
seem um lócus privilegiado,em queasidentidadese
asmemóriasadquiremmaterialidadee visualidadesocial.É relevantenotarqueessesobjetos
ou práticassociaissão objetificadosparase tornarem visveis
í no mundo dos homens e das
mulheres. Assim, pode-se argumentar que um patrimônio histórico edificado é a
concretizaçãodessaobjetificação,poiseleé concreto,visvel
í ou tangvel
í ,constituindo-
se,por
assimdizer,numa metáforamaisevidenciada.
Esse discurso evidencia outras naturezas, apropriadas socialmente e vividas com
intensidade: o patrimônio como memória coletiva das histórias de vida. É a passagem da
noção de patrimônio histórico para a de patrimônio cultural. O que se verifica é o
aparecimento de uma outra forma de leitura, na qual esse patrimônio manifesta-se como algo
que é conquistado por meio da organização social, ligado, assim, às práticas sociais e à
memória coletiva; um patrimônio que faz parte da vida humana e cuja legitimidade passa pela
discussão de seu valor social e afetivo.
Sobre esse patrimônio coletivo, Maria Cecília Londres Fonseca afirma que,
a idéia da posse coletiva como parte do exercício de cidadania, inspirou a utilização
do termo patrimônio para designar o conjunto de bens de valor cultural que
passaram a ser propriedade da nação, ou seja, do conjunto de todos os cidadãos. A
construção do que chamamos patrimônio histórico e artístico nacional partiu,
portanto, de uma motivação prática – o novo estatuto de propriedade dos bens
confiscados – e de uma motivação ideológica – a necessidade de ressemantizar
esses bens (FONSECA, 2005, p. 58).
Pensar o patrimônio cultural nesse contexto significa equacionar, de forma não sectária,
o largo espectro de diferenças que permeiam o tecido social, seus conflitos, interesses e
constantes transformações, ou seja, olhar as experiências sociais que acompanham os objetos,
os lugares, pois dizem respeito a inúmeras trajetórias de vidas em diferentes momentos; são,
portanto, memórias em nuances que vão do político e do religioso ao social, por meio dos
diferentes segmentos sociais, englobando o homem e a mulher comum e, portanto, não
supondo que o patrimônio tenha significado igual.
Convém enfatizar que ao entrar em contato com o conceito de patrimônio, e vendo-o ao
longo do tempo, logo se percebe a simbiose entre este e o de cultura. O conceito de cultura
defendido por Clifford Geertz passa a ser um instrumento para visualizar as teias de
significados na interação dos indivíduos, isto porque “o homem é um animal amarrado a teias
de significados que ele mesmo teceu” (GEERTZ, 1989, p. 15). Por isso, o autor assume a
cultura como sendo “essas teias e a sua análise; [...] não como uma ciência experimental em
busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significados” (Ibidem, p. 15).
Isso equivale a compreender a cultura como um texto que vai ser lido e decodificado, haja
vista esta só ter sentido em um contexto histórico-social. Seria encarar a cultura como um
texto que se lê, escrito pelos agentes transformadores do passado ao longo do processo de sua
(trans)formação.
Clifford Geertz tem, dessa forma, uma concepção simbólica de cultura, em que as
manifestações e práticas que certa comunidade possui carregam significados compreensíveis
para aquela e que, muitas vezes, é menosprezada pelo Estado, o qual, influenciado ou por uma
ideologia cultural de elite, ou por não ler tal teia simbólica, acaba praticando ações ou
omissões que destroem o patrimônio cultural de determinadas comunidades.
Assim, o comportamento do ser humano pode ser visto como uma ação simbólica que
pode se constituir pela e na interpretação, possibilitada pelo contexto, através do
procedimento do situar-se. A questão pertinente aqui é buscar a compreensão da cultura como
documento de atuação pública, portanto, como diz Clifford Geertz, com caráter diverso, em
que múltiplas vozes querem se fazer ouvir (GEERTZ, 1989).
Para Denys Cuche a cultura pode ser compreendida como sendo
um conjunto dinâmico, mais ou menos homogêneo. Os elementos que compõe uma
cultura jamais são integrados uns aos outros, pois provém de fontes diversas no
espaço e no tempo. Em outras palavras, há um ‘jogo’ no sistema, especialmente
porque se trata de um sistema extremamente complexo. Este jogo está no interstício
no qual a liberdade dos indivíduos e dos grupos se instala para ‘manipular’ a cultura
(CUCHE, 2002, p. 140).
65
Essa relação entre o bem e a atribuição cultural que se faz dele traz à tona a questão da
reflexividade entre as práticas de discurso e a memória que marcam os grupos humanos. Isso
é marcado com o aparecimento da escrita, como é abordado por Luís Fernando Dias Duarte,
quando afirma:
Essa separação, esse ‘distanciamento’ entre os recursos objetivados de memória e a
experiência vivida de rememoração implicou, na verdade, duas linhas de
desenvolvimento paralelas: se a desvitalização e dessensibilização dos suportes
ameaça a integridade vivencial da cultura (inclusive servindo diretamente as
diferenciações sociais, decorrentes da emergência das estruturas estatais, de que são,
às vezes, consideradas alguns dos mecanismos ativos), enseja por outro lado uma
autonomização virtual dos processos de racionalização do pensamento (DUARTE,
2003, p. 307).
Em Caxias, a memória dos locais com significação histórica carrega recordações do que
ali se passou e foi vivido, despertando curiosidade entre habitantes e visitantes. Essa memória
se torna viva e freqüente, a ponto de manter esses patrimônios erguidos para servirem como
suporte físico retratado em suas histórias, como no depoimento de Letícia Maria Mesquita.
O Edifício Duque de Caxias, que se localiza na Praça Gonçalves Dias, hoje onde é o
Laboratório São João, ali é um dos edifícios mais importante para a cidade; é um
dos edifícios que deveria até ser aberto para visitação pública, que fosse
transformado em um museu, alguma coisa que pudesse mostrar o esplendor daquela
época (MESQUITA, 2009).
A memória não é estática, nem seu volume e conteúdo são fixos; ela se movimenta, e
esse movimento configura uma espiral no espaço e no tempo, que se inicia e se atualiza no
presente. Surge ligada ao sentimento, à pertença. É, pois, elemento fundamental do que se
costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje. A memória, onde cresce a história, que
por sua vez a alimenta, procura “salvar” o passado para servir o presente e o futuro.
É por isso que alguns segmentos da sociedade caxiense elegeram o patrimônio
edificado como lugares de memória de Caxias que, por sua vez, são valorizado por conter
uma relação cultural e histórica com a memória dos mesmos, como destaca Wybson
Carvalho:
Caxias recebeu, dentro desse contexto do acervo arquitetônico da cidade, uma
herança européia. Para cá vieram os portugueses e deixaram essa herança [...]. Por
exemplo, essas edificações seculares: nossas igrejas, o edifício Duque de Caxias, no
perímetro central da cidade; esse centro de cultura José Sarney (CARVALHO,
2008).
O uso social do bem cultural preservado pode ser visto como possibilidade de ser
utilizado como referência de memória por determinados segmentos sociais, ou ainda como
recurso de educação, de conhecimento e de lazer para uma determinada coletividade.
Conseqüentemente, o uso social do bem cultural passa, necessariamente, através da
democratização do acesso ao patrimônio cultural, da democratização da produção cultural e
da incorporação ao patrimônio cultural brasileiro de representações de memória de origens
sociais diversas.
A memória diz respeito às experiências que o indivíduo retém de suas vivências em um
dado meio social, tendo, portanto, caráter coletivo, pois qualquer experiência pressupõe um
campo de partilha e de aprendizado. Em outras palavras, a experiência de um indivíduo vem
de suas vivências em um espaço comum: o indivíduo possui a memória que é compartilhada
com outros indivíduos de seu grupo social, de seus espaços de sociabilidade. Tem, portanto,
caráter afetivo e identitário marcante, pois concerne ao universo social de uma pessoa,
valores, códigos morais, hábitos. A memória coletiva acontece quando se estabelece relações,
sintonia com aqueles que participam, partilham alguma atividade anterior. Isso porque o
depoimento de outras pessoas podem avivar a memória individual no que tange àquilo que
tem relações com o(a) outro(a). Sobre essa memória, Maurice Halbwachs afirma:
70
Suponhamos agora que tenhamos feito uma viagem com um grupo de companheiros
que não revimos mais. Nosso pensamento estava ao mesmo tempo mais perto e mais
distante deles. Conversávamos e os diversos incidentes da viagem. Mas, ao mesmo
tempo, nossas reflexões seguiam um curso que lhes escapava. Trazíamos conosco,
com efeito, sentimentos e idéias que tinham sua origem em outros grupos, reais ou
imaginários: é com outras pessoas que nos entretínhamos interiormente, percorrendo
esse país nós o povoávamos, em pensamentos, com outros seres: tal lugar, tal
circunstância tomavam então a nossos olhos um valor que não podiam ter para
aqueles que nos acompanhavam (HALBWACHS, 1989, p. 33-34).
O que se observa é que existe o intuito da proteção por parte do governo municipal. O
Plano Diretor deve partir de uma leitura de cidade real, preocupando-se com aspectos
urbanos, sociais, econômicos e ambientais. O de Caxias, para o Promotor de Justiça do Meio
Ambiente e Patrimônio Histórico Fernando Menezes, é “mais uma carta de intenções [...]; ele
deixou mais para a lei de zoneamento urbano, a questão de habitação” (MENEZES, 2008).
Por outro lado, ressalta a importância do zoneamento, visto que este “vai delimitar na cidade
as áreas em que cada atividade vai ter: a área industrial, a área comercial, áreas residenciais,
áreas residenciais mistas”, ou seja, vai implementar legalmente, fazendo paulatinamente essas
mudanças. Um problema possível de ser identificado refere-se à prática de que determinados
planejamentos não tem continuidade no trabalho do governante sucessor, o que, ainda
segundo o Promotor, “acaba retrocedendo o processo”.
Ao se pensar o patrimônio cultural enquanto uma face da história de um povo, as
políticas de preservação e refuncionalização, definidas na Constituição e corroboradas no
Plano Diretor, pautam-se na dinâmica cotidiana da população local, não só em intervenções
urbanísticas, mas no desenvolvimento e implantação de políticas que visem a melhoria na
qualidade de vida.
Assim como a identidade de um indivíduo ou de uma família pode ser definida pela
posse de objetos que foram herdados e que permanecem na família por várias gerações,
também a identidade de uma nação constitui-se a partir de seus monumentos – aquele
conjunto de bens culturais associados ao passado nacional. Esses bens constituem um tipo
74
A forma de pensar a herança cultural como lugar de memória vai ao encontro com as
práticas de preservação do patrimônio no país na década de 1930 e, até certo ponto, ao próprio
rumo assumido pelas políticas patrimoniais desde então. Para Marly Rodrigues, isso se deve
“a muitos e complexos fatores, a partir dos quais se estruturam as políticas públicas voltadas à
proteção do patrimônio” (RODRIGUES, 2003, p. 17), que no Brasil, nas palavras de Márcia
Sant’anna,
a idéia de que o patrimônio não se compõe apenas de edifícios e obras de arte
erudita, estando também no produto da alma popular, remete aos anos de 1930 e se
encontrava no projeto que o poeta modernista Mário de Andrade elaborou para o
Serviço do Patrimônio Artístico e Nacional, em 1936. Esse sentido amplo de
patrimônio encontrava-se na definição andradiana de arte, como a habilidade com
que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos, pois, para Mário,
arte equivale a cultura (SANT’ANNA, 2003, p. 51).
Aqui, nota-se que a cultura protegida seria a praticada, criada e representativa das mais
diversas camadas da população, o que, em termos sociológicos, é o povo. Nesta nova
conceituação, a cultura brasileira passou a ser considerada com valores muito próximos aos
idealizados no início do século XX por Mário de Andrade20.
Pensar a questão do patrimônio cultural olhando esse conjunto, observando a dimensão
da força simbólica do seu significado é, no mínimo, interessante. Seria, portanto, redefinir o
patrimônio cultural, como memória social e, por conseguinte, fonte de (in)formação. Isso leva
em consideração as condições históricas, sociais e comunicacionais na contemporaneidade,
que exalta a produção humana como bem cultural da maior significação à construção de um
ser socialmente ativo. É unir passado e presente e (re)criar imagens da cidade, do povo, da
cultura, é fundamental para que se possa reconhecer as diferenças culturais dos indivíduos.
20
A participação de Mário de Andrade junto ao Departamento de Cultura será abordada no item 2.3.
75
21
As Cartas Patrimoniais são recomendações no que diz respeito, entre outros temas, àqueles ligados à
preservação e conservação dos chamados bens culturais. Estes documentos, muitos dos quais firmados
internacionalmente, representam tentativas que vão além do estabelecimento de normas e procedimentos,
criando e circunscrevendo conceitos às vezes globais, outras vezes locais. Sua publicação oferece ao público
interessado um panorama das diferentes abordagens que a questão da preservação mereceu ao longo do tempo,
registrando o processo segundo o qual muitos conceitos e posturas se formaram, consolidaram e continuam
orientando estas ações, até os nossos dias.
22
Atualmente, a Unesco conta com 192 Estados-membros e 6 Estados-membros Associados, que se reúnem a
cada dois anos, numa Conferência Geral, para discutir e deliberar sobre importantes questões no âmbito de seu
mandato. Além disso, promove inúmeros estudos, reflexões e reuniões com os governos, dirigentes e
especialistas dos países que a integram com o objetivo de aprofundar o exame de temas vitais para o futuro das
sociedades, ao buscar consensos e definir estratégias de ação (www.unesco.gov.br).
76
saberes coletivos produzidos por certa comunidade e fundados sobre tradição, transmitidos
oralmente, através de gestos, modificados através dos tempos por um processo de recriação
coletiva – por exemplo, a música, a dança, os rituais, as festividades, a medicina, os jogos, a
mitologia, o artesanato, as artes da mesa, as formas tradicionais de comunicação e
informação. Ainda segundo o documento, a educação e a formação pessoal são as grandes
chances da perpetuação das memórias e dos bens culturais.
Em abril de 2006, o governo brasileiro ratificou, por meio do Decreto n° 5.753, essa
convenção, que define patrimônio cultural imaterial como sendo
[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os
instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as
comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte
integrante de seu patrimônio cultural. Esse patrimônio cultural imaterial, que se
transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e
grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua
história, gerando um sentimento de identidade e de continuidade e contribuindo
assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana
(IPHAN, 2006, p. 15-16).
Houve, a partir daí, uma definição detalhada de cultura que orientou o modelo de
política cultural recomendado para os países-membros. Nesse contexto, a cultura passa a ser
expressa como elemento fortalecedor da identidade das nações, tomando dimensão
fundamental no processo de desenvolvimento.
Stuart Hall defende que a formação das culturas nacionais edifica-se sobre cinco
elementos fundamentais: a narrativa dos símbolos ou rituais que representam as experiências
partilhadas; a crença na continuidade das origens representadas pela tradição e noção de
intemporalidade inerente à nação; a invenção de tradições que permitem cristalizar valores
individuais em proporções nacionais; a presença do mito fundador que situa a origem da
nação num passado imemorial incapaz de ser questionado; e, por fim, a identidade nacional
baseada na idéia de um povo enquanto entidade política, capaz de homogeneizar as diferenças
sociais (HALL, 2005).
De fato, na contemporaneidade, de constante movimento e informação, há uma
potencialização da diferença, com a constante exposição de expressões culturais, em um
intercâmbio de identidades, o que implica o reconhecimento social e o respeito ao outro.
Segundo Homi Bhabha, “o valor transformacional da mudança reside na rearticulação, ou
tradução, de elementos que não são nem o um [...] nem o outro [...], mas algo a mais, que
contesta os termos e territórios de ambos” (BHABHA, 1998, p. 55).
Nessa perspectiva, a expressão patrimônio cultural remete a uma reflexão: trata-se de
um conjunto cada vez mais vasto de bens e conhecimentos, e que será cada vez mais vasta
77
quanto mais complexa forem as sociedades. De qualquer forma, mesmo sendo tão ampla, ter-
se-á que considerar a valorização que cada uma dará ao seu patrimônio. Por vezes, muitos
objetos vistos sem importância, num dado momento histórico, passa a ser considerado como
de grande valor histórico e cultural, a partir do momento em que ganha representatividade
dentro da cultura onde está ou esteve inserido.
Contudo, nem sempre foi assim. Isso porque, desde seu “surgimento”, o conceito de
patrimônio virou sinônimo de “pedra e cal”23. Para diversos pesquisadores(as), entre eles
Pedro Paulo Funari e Sandra Pelegrini (2006) e Maria Cecília Londres Fonseca (2005), talvez
essa visão tenha ocorrido por o termo ter surgido no âmbito do direito privado da propriedade,
ligado aos pontos de vista e interesses aristocráticos, já na Antigüidade. Nas palavras de
Maria Cecília Londres Fonseca:
a imagem que a expressão ‘patrimônio histórico e artístico’ evoca entre as pessoas é
a de um conjunto de monumentos antigos que devemos preservar, ou porque
constituem obras de arte excepcionais, ou por terem sido palco de eventos
marcantes, referidos em documentos e em narrativas dos historiadores (FONSECA,
2002, p. 56).
23
Expressão atribuída a Rodrigo Melo Franco para designar igrejas, fortes, pontes, chafarizes, prédios e
conjuntos urbanos representativos de estilos arquitetônicos específicos (SILVA, 2002).
78
Para Pedro Paulo Funari e Sandra Pelegrini, o conceito de patrimônio histórico tem uma
perspectiva reducionista, por reconhecer o patrimônio apenas no âmbito histórico, circunscrito
a recortes cronológicos arbitrários e permeados por episódios heróicos ou militares, mas aos
poucos, foi suplantada por uma visão mais abrangente, isso porque,
a definição de patrimônio passou a ser pautada pelos referenciais culturais dos
povos, pela percepção dos bens culturais nas dimensões testemunhais do cotidiano e
das realizações intangíveis. Essa abertura temática permitiu que construções menos
prestigiadas ou mais populares (mercado público, estação de trem) fossem
reconhecidas como patrimônio (FUNARI & PELEGRINI, 2006, p. 32).
No entanto, um espaço de patrimônio bem construído e conservado não faz uma cidade.
Isso porque um conjunto de construções, obras de arte, ornamentos, decorações, ruas e
avenidas, em si mesmas, não afirmam a razão vital, a força criadora, a capacidade de mudança
ou, pelo contrário, de permanência. Ao defender o patrimônio de um centro histórico, tem que
se lembrar a sua forma de estar, os seus gestos rotineiros, os seus sentidos e os significados, a
sua cultura, porque é isso que constitui a vida de uma cidade.
Com efeito, este estudo tem como fulcro configurar uma visão mais apurada dos
imóveis voltados para o interesse patrimonial na cidade de Caxias, uma vez que fazem parte
de um seleto número de edificações que se sobressaem na paisagem urbana em função de toda
uma carga simbólica que possuem; tais imóveis são, melhor dizendo, bens culturais, bens que
fazem parte do patrimônio histórico e cultural da sociedade caxiense. Seria, portanto, pensar
numa memória que mantenha conexão com os bens patrimoniais, que permita aos cidadãos e
cidadãs caxienses uma história capaz de lhes possibilitar o (re)conhecimento desses bens
como parte da sua memória e da sua história.
Ampliando a noção de patrimônio a uma concepção antropológica, passa-se a considerar
os imóveis e os objetos como conjuntos, cuja integridade também é objeto de conservação.
Nesta perspectiva, patrimônio são objetos e conjuntos de objetos ligados a uma atividade
humana e ao edifício que lhe dá abrigo e constitui valor simbólico.
Por sua vez, a leitura que se faz sobre a elaboração desse conceito é conseqüência de
uma demanda social, ocorrida um pouco por todo lado e de um avanço cultural, dando prova
da capacidade holística das ciências sociais, sobretudo da antropologia que lhe permite
penetrar nas formas do saber, do trabalho e das idéias e prova, também, de que, na prática, o
seu objeto de estudo continua a ser a cultura e os sistemas de relações sociais. É olhar o
patrimônio, portanto, enquanto memória social, como lugar onde se projetam as significações
que delineiam e formam os significados sociais e tem na cidade seu lugar privilegiado.
O interesse emergente pelo passado surge da necessidade de dimensionar essa
historicidade fragmentada e de torná-la compatível com o novo paradigma do saber, sendo
79
importante referir, no entanto, que não é a valorização do passado que produz a conservação,
mas sim a conservação que dá ao passado um novo valor de operador social. De fato, é a
invenção de uma política do patrimônio que engendra o interesse repentino pelo passado e a
necessidade de o conservar, e não o contrário.
Talvez se fale em preservar pelo fato de o ser humano estar diante de uma possível
massificação cultural, diante de um conceito conhecido como globalização. Percebe-se uma
ânsia por registrar diferentes estágios da passagem humana na Terra. Pensa-se que registrar
seja sinônimo de preservar, de fazer levantamentos de construções arquitetônicas,
especialmente aquelas sabidamente condenadas ao desaparecimento decorrente da
especulação imobiliária.
Num mundo em acelerado processo de globalização, em que as pressões para a
massificação cultural são constantes, cada grupo – nacional, regional, lingüístico – ao mesmo
tempo que absorve e transforma as idéias circulantes nos meios de comunicação globais, tenta
preservar o que considera ser a sua identidade cultural própria, valorizando as suas tradições,
usos e costumes, e definindo o seu “lugar singular” no mundo.
A despeito da lógica em se preservar o patrimônio edificado de valor histórico para
determinada sociedade, tem-se verificado que essas cidades estão sujeitas às mais diversas
formas de perda do seu patrimônio. Essa perda pode ser ilustrada, por exemplo, quando a
permanência de um monumento se coloca frente ao interesse de um empreendimento
imobiliário.
Contudo, para Gilberto Velho, não se trata de “satanizar as empresas imobiliárias”, pois
a indústria da construção civil pode gerar aspirações e expectativas de estilos de vida, além de
que “se constitui em um dos principais mercados para a mão-de-obra mais barata das camadas
populares” (VELHO, 2006, p. 241).
Não precisa um olhar mais aguçado para que seja verificado também esse processo
ocorrendo no centro histórico de Caxias, com um processo de verticalização acentuada, fruto
de uma corrida imobiliária fremente, decorrente do desenvolvimento econômico da outrora
“pequena” cidade, sobretudo a partir das últimas décadas do século passado. Em entrevista,
Letícia Maria Mesquita, professora, 54 anos, afirma que isso ocorre em Caxias por “conta do
desenvolvimento da cidade, das novas faculdades que estão surgindo aqui” (MESQUITA,
2009). Observa, em outro momento, que esse crescimento vertical “até que é bom, por uma
parte, por que desenvolve a cidade, por outro lado, descaracteriza o centro histórico”, vendo
como saída para que se mantenha a preservação do centro histórico, o mesmo que tem sido
feito na capital maranhense, São Luís, em que:
80
procuraram preservar; tem a parte velha, que é o centro histórico, e a parte nova,
muito embora esse centro histórico sofra também com as intempéries do tempo e do
abandono, sendo muito casarões do século XVIII e XIX, atualmente, transformados
em estacionamentos privativos e rotativos (MESQUITA, 2009).
O que é possível observar é que existe uma relação afetiva entre parcela significativa de
moradores(as) de Caxias e os patrimônios culturais da cidade em que vivem, estabelecem
relações, verificada a partir da polifonia, nas múltiplas vozes que se querem fazer ouvir: vozes
estas imbricadas em seus discursos, em seus fazeres sociais cotidiano.
Nesse sentido, as estruturas arquitetônicas encontram-se inseridas no fluxo histórico.
Portanto, dizem algo sobre as sociedades que as criaram. A preservação, a destruição ou a
alteração das edificações são resultados de determinadas conjunturas econômicas, culturais ou
políticas. Por isso mesmo, pode-se dizer que os bens arquitetônicos constituem-se em
elementos privilegiados para a formação do patrimônio cultural de uma cidade.
81
lutas, de conflitos e tensões políticas, apesar de muitas vezes ser tratado apenas como objeto
técnico-científico neutro” (SCIFONI, 2006, p. 74).
De fato, Kathryn Woodward deixa bem claro que a indústria da herança parece
apresentar apenas uma e única versão. E questiona: “Qual é a história que pesa, a história de
quem?”, enfatizando que pode haver diferentes histórias, então, se existem diferentes versões
do passado, elas precisam ser negociadas (WOODWARD, 2000). A negociação é uma
categoria importante aqui, haja vista ela ser um processo em que se procura alcançar objetivos
através de acordos nas situações em que existem interpretações comuns e conflitantes. Parte-
se do entendimento de que o patrimônio cultural pode ser (re)visto e (re)negociado de acordo
com o interesse e a postura política de seus(as) narradores(as).
Para Ricardo Thomazinho da Cunha e Karla Christina Martins Borges, há várias
definições para o termo negociação, mas, em geral, diz-se que a negociação é um processo
seqüencial e dinâmico envolvendo dois ou mais atores que pretendem chegar a um acordo
sobre um assunto divergente qualquer, utilizando-se, nesta prática, de grande poder de
persuasão. A negociação é um processo de mão dupla, cujo objetivo deve chegar a um acordo
mútuo sobre as necessidades e opiniões divergentes. Negociar significa persuadir, em vez de
usar a força bruta. Além do mais, negociar quer dizer que o outro lado está satisfeito com o
resultado da negociação (CUNHA & BORGES, 2004).
Os indivíduos, segundo Gilberto Velho, defrontam-se constantemente com visões
divergentes sobre esta questão. De um lado, indivíduos com uma postura preservacionista,
que pode ser rotulada de elitista, e de outro, indivíduos com posturas “modernizantes e
invasiva, mais democrática” (VELHO, 2006, p. 245), destituída, portanto, dos laços e das
características dos antigos moradores, ávidos por desfrutarem as vantagens de conforto e
qualidade de vida.
Mediante a categoria negociação, Jonathan Friedman mostra que as identidades estão
sendo constantemente negociadas, haja vista elas serem heterogêneas e múltiplas. A
heterogeneidade da sociedade aponta para dificuldades e limitações de uma ação pública
responsável de defesa e proteção de um patrimônio cuja escolha e definição implica ainda em
arbítrio e exercício de poder,
o consumo é um aspecto das estratégias culturais mais amplas de definição e de
auto-manutenção, que marca os contornos de identidades específicas uma soma de
produtos configurados numa classificação que expressa o que eu sou (FRIEDMAN,
1994, p. 330).
25
Ato administrativo realizado pelo poder público com o objetivo de preservar, por intermédio da aplicação de
legislação específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a
população, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados. Esse instrumento coloca sob a tutela do
Estado bens dignos de preservação (BOGÉA et al, 2005, p. 32).
85
26
Designação dada ao conjunto de características sociais, políticas, econômicas e culturais das sociedades da
Idade Moderna, na transição do feudalismo para o capitalismo.
87
passar para as gerações futuras parte de sua memória, mesmo que essa seja seletiva, já que é
feita, por parte dessa sociedade, uma escolha no sentido do que deve ou não ser registrado, de
qual seria a melhor história para se contar.
O caráter de monumentalidade desde o início permeou a concepção do que atualmente
se entende como patrimônio cultural. Mas, como lembra Françoise Choay, o monumento, em
seu sentido original, contrasta com a concepção que se tem hoje. Originalmente, era associado
a uma lembrança coletiva, era feito para marcar algo do que se desejava recordar,
acontecimentos, ritos, crenças, que deveriam ser transmitidos para às gerações, tendo,
portanto, uma função memorial (CHOAY, 2001).
A definição de monumento histórico, para uma cidade com valor patrimonial, o centro
histórico (ver Capítulo III) de Caxias dispõe de um reduzido número, categorizados em um
total de 7 (sete): a Fábrica União Têxtil Caxiense, a Casa do poeta Vespasiano Ramos, 5
(cinco) Igrejas católicas construídas entre os séculos XVIII e XIX: Igreja da Matriz de Nossa
Senhora da Conceição e São José, Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Igreja de São
Benedito, Catedral de Nossa Senhora dos Remédios e Igreja Nossa Senhora dos Remédios.
Na verdade, a própria idéia de um passado ou de uma memória como dado relevante na
construção das identidades individuais e coletivas pode ser pensada como invenção moderna e
que data de fins do século XVIII, com a formação dos Estados Nacionais, como explicam
Pedro Paulo Funari e Sandra Pelegrini: “O melhor exemplo de criação do Estado nacional
moderno talvez seja a França, a partir da revolução de 1789. [...] foi lá que se desenvolveu o
moderno conceito de patrimônio” (FUNARI & PELEGRINI, 2006, p. 15).
O surgimento dos Estados Nacionais desencadeou uma transformação no conceito de
patrimônio. Isto ocorre porque, ao destruir o Ancien Régime, e instalar a República, criava-se
a igualdade, refletida na cidadania dos homens adultos. Precisava-se fornecer meios para que
compartilhassem valores e costumes, para que pudessem se comunicar entre si.
Assim, a construção da unidade nacional ocorre através de uma produção ideológica
que conseguisse abarcar as diferenças do povo francês, desenvolvendo o sentido de
identificação, de algo em comum. Isto é pertinente, pois segundo Manuel Castells, o
nacionalismo é construído a partir de ações e reações sociais, tanto por parte das elites quanto
das massas (CASTELLS, 2000).
Uma nação, para João Lanari Bo, entendida como comunidade de aspirações comuns,
“constitui-se por meio de instâncias de identificação, entre elas o patrimônio coletivo. Nessa
visão, pode-se reconhecer a nação brasileira, por exemplo, no conjunto arquitetônico e
artístico de Ouro Preto” (BO, 2003, p. 17), de São Luís, ou de Caxias, dependendo do enfoque
88
Começa a surgir o conceito de patrimônio que se tem hoje, não mais no âmbito privado
ou religioso, mas do povo, com língua, origem e território únicos. Foi em meio às violências e
lutas civis da Revolução Francesa que foi criada uma comissão encarregada de preservação
dos monumentos nacionais, com o objetivo de proteger os monumentos que representavam a
incipiente nação e sua cultura. É a idéia de um patrimônio comum a um grupo social,
definidor de sua identidade e enquanto tal merecedor de proteção.
Por sua vez, o conceito de cultura nacional homogênea baseado em tradições está sendo
desafiado e redefinido. O reconhecimento do caráter multicultural das sociedades leva a
constatação da pluralidade de identidades culturais que tomam parte na constituição da
cidadania. É sabido, hoje, que as pessoas possuem múltiplas identidades, em termos de
gênero, etnia, visões de mundo, rompendo com a noção de unidade identitária e deslocando,
dessa forma, a discussão sobre identidades para uma ótica mais atual, como explica Stuart
Hall:
Parece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as
identidades centradas e ‘fechadas’ de uma cultura nacional. Ela tem efeito
pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e
novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais
políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas e trans-históricas (HALL,
2005, p. 87).
Assim, quando se fala em patrimônio cultural, estar muito menos ligado a idéia de uma
identidade nacional, como era nos séculos XVIII e XIX, e mesmo na fundação do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan –, no século XX, ou seja, a idéia de
patrimônio como documento de identidade da nação, e hoje tem-se muito mais a noção de
patrimônio como expressão da diversidade cultural, seja da diversidade cultural da
89
humanidade, seja da diversidade cultural dos diferentes grupos, como enfatiza Homi Bhabha:
“estamos diante da nação dividida no interior dela própria, articulando a heterogeneidade de
sua população” (BHABHA, 1998, p. 209).
Terá sido a partir dela que o patrimônio privado, indicativo, portanto, da propriedade
individual, sobretudo da nobreza, se estendeu para o grupo social. Instituiu-se e difundiu-se a
idéia do bem comum, como também se fez progressivo o valor de que alguns bens são
representativos da riqueza material e moral da nação.
A partir daí, e notadamente ao longo do século XIX, como aborda Márcia Sant’anna, os
países da Europa desenvolveram sistemas destinados à proteção e conservação dos seus
patrimônios nacionais, que eram compostos,
[...] de objetos de arte e edificações estreitamente relacionadas à concepção de
monumento histórico, aos ideais renascentistas de arte e beleza e aos conceitos de
grandeza e excepcionalidade. Esses patrimônios eram, ao mesmo tempo, as riquezas
das nações e a representação do seu gênio e história (SANT’ANNA, 2003, p.47).
A idéia de preservar algo surge com a noção de perda, afinal, preserva-se aquilo que se
corre o risco de perder. Quando esta questão chega ao Brasil, os intelectuais – “mediadores da
memória” –, acreditavam na possibilidade de preservação “in natura”, o que implicaria, nesta
visão, na estagnação do patrimônio preservado. Mas, com a ampliação desta categoria, o que
se verifica hoje é uma luta para mantê-lo vivo.
Pensando assim, a conservação englobaria os atos para prolongar a vida do patrimônio
cultural, sendo seu objetivo apresentar a todos(as) que usam e contemplam as edificações
históricas, as mensagens artísticas e humanas que essas edificações possuem. Isso por se
propor que o patrimônio cultural propicia a ligação entre as várias gerações, cria vínculos
90
entre os cidadãos por fazer referência aos símbolos que são representativos da coletividade,
ou bens coletivos (GONÇALVES, 1996 e FONSECA, 2005), acionando, portanto, os
sentimentos, os sentidos e os significados das edificações, além de aumentar a auto-estima do
grupo portador e herdeiro de tal legado.
Entende-se por preservação o ato ou processo de aplicar medidas necessárias para a
sustentação da forma, integridade e materiais existentes numa propriedade histórica. É a
manutenção no estado da substância de um bem e a desaceleração do processo pelo qual ele
se degrada. A Carta de Burra aponta:
Art. 11º - A preservação se impõe nos casos em que a própria substância do bem, no
estado em que se encontra, oferece testemunho de uma significação cultural
específica, assim como nos casos em que há insuficiência de dados que permitam
realizar a conservação sob outra forma (ICOMOS, 1980, p. 1).
Entretanto, Riccardo Mariani tece críticas sobre o que os especialistas estão fazendo ao
procederem o processo de restauração urbana, questionando sobre o que, realmente, está
sendo salvaguardado. Segundo este autor, não estão salvaguardando a memória coletiva que
tais locais de memórias possuem, mas “fazendo osteologia urbana”, ou seja, estão
transformando a cidade histórica num esqueleto e, portanto,
mantinha aqueles monumentos, isto é, da relação que existe entre carne e ossos
(MARIANI, 1992, p. 66).
De fato, entender que a cidade é composta por edificações e por pessoas, gente de carne
e osso, implicou na reformulação do conceito de patrimônio, uma vez que nos bens a serem
preservados se incorporou o valor cultural, a dimensão simbólica que envolve a produção e a
reprodução das culturas, que se expressa nos modos de uso desses bens. Os bens culturais
demonstram aquilo que é comum e o que os representam, já que o ser humano é
eminentemente simbólico. Perpassam, assim, a noção de ideologia, pois constituem uma
identidade e trabalham com a noção de pertencimento.
Logo, o patrimônio transforma um simples lugar em espaço social, como diz Homi
Bhabha: “uma humanização criativa desta localidade, que transforma uma parte do espaço
terrestre num lugar de vida histórica para as pessoas” (BHABHA, 1998, p. 203). Assim, para
muitos caxienses, como a cidade de Caxias possui um patrimônio de importante valor
histórico e cultural, este deve ser preservado e revitalizado, não só para os seus moradores e
moradoras, como também para o setor turístico, quando esta se apresenta como atrativo
turístico do local. Mas, para que isso ocorra, afirmam, são necessárias ações efetivas, em
sinergia, entre a esfera pública, a iniciativa privada e a comunidade.
Portanto, empreender políticas visando a valorização do patrimônio cultural de uma
nação é dever do Estado, sobretudo quando os problemas sociais são de vulto que ponham em
segundo plano a questão da cultura. Contudo, há de se ter a sensibilidade de perceber a
importância da participação social.
Em A alegoria do patrimônio Françoise Choay faz uma análise abrangente da questão
do patrimônio, e com relação à França pós-revolução, descreve alguns tipos de valores que
podem ser definidos em relação ao patrimônio. Guardada as devidas proporções, mesmo
porque a autora investiga mais especificamente os monumentos, pode-se destacar do seu
estudo alguns parâmetros de valorização: nacional – quando há interesse do Estado em um
determinado bem histórico, gerando assim interesse em se criar mecanismos que garantam a
sua proteção; cognitivo – trata-se de um termo mais amplo, englobando aí uma série de ramos
relativos aos conhecimentos abstratos e as múltiplas competências. “[...] são testemunhas
irrepreensíveis da história” (CHOAY, 2001, p. 117); econômico – quando os monumentos são
capazes de atrair turistas, tornando-se assim uma atividade econômica atraente; e o artístico –
restrito a um número reduzido de pessoas, já que o próprio conceito de arte ainda não tinha se
popularizado.
O patrimônio passa a ser entendido como bem material concreto, um monumento, um
edifício, assim como objetos de alto valor material e simbólico para à nação, partindo-se do
92
27
Foram realizadas várias conferências na cidade de Haia (1899, 1907 e 1954), cujo objetivo era humanizar a
guerra, através da proteção da população civil e da propriedade privada. A de 1954 constituiu-se como
importante instrumento normativo internacional, significativo para a proteção do patrimônio para a proteção da
propriedade cultural em caso de conflito armado, consolidando uma série de práticas e regras voltadas à proteção
de monumentos e bens culturais em áreas em conflito, iniciadas no século XIX (BO, 2003).
93
O que vale sublinhar é que a noção de preservação, que implica na idéia de prevenção,
proteção, conservação, para ser desenvolvida requer que o sujeito da ação se identifique no
objeto a ser preservado. Isso significa que a expressão patrimônio cultural tem historicidade e
cada período conta com as soluções de que dispõe e trabalha ao enfrentamento dos problemas
como se apresentam. Essa parece ser a razão principal das mudanças no conceito de
patrimônio percebidas ao se examinar a história.
A inserção do Brasil no debate em torno do patrimônio não pode ser classificada como
tardia, pois desde a terceira década do século XIX assiste-se a diversas tentativas em torno da
proposição de um ideal de nação que viria a considerar o tema. Talvez o exemplo mais
representativo deste esforço esteja na fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
– IHGB – em 1838, ao ficar claro desde o início que o objetivo engloba uma reescrita do
passado brasileiro, adequando sua história a uma almejada e pré-determinada identidade do
país em construção. A preocupação com a elaboração de uma identidade nacional se exacerba
com a proclamação da República (1889) e eclode em diversos movimentos no século XX.
Para Maria Cecília Londres Fonseca, a preocupação com os lugares a serem
preservados partiu de expoentes da arquitetura moderna, consolidado com a criação do Sphan,
em 1937, seguindo as idéias e ideais de Mário de Andrade. A denominação Sphan foi mudada
para Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan – em 1970. Mesmo com a
mudança do nome, a data de criação permanece a mesma, pois a função do atual Iphan não foi
alterada (FONSECA, 2005). Como na França, a noção de preservar está associada com o
conceito de patrimônio histórico e artístico, mas ainda assim, tomou parte no processo de
construção do conceito, na medida em que foi adquirido e difundido, entre os estados co-
partícipes de convenções e tratados internacionais, a experiência advinda da sua própria
prática (FONSECA, 2005).
Viviane Pedrazzani afirma que no Brasil costuma-se situar as origens da noção de
preservação do patrimônio à década de 1920, quando foram elaborados os primeiros projetos
de lei a esse respeito. No entanto, já podem ser identificadas tentativas de preservação do
patrimônio brasileiro no século XVIII, quando em 1742 o nobre português Conde de
Galveias, D. André de Melo e Castro, manifesta preocupação contra a transformação do
Palácio das Duas Torres, erigido em Pernambuco pelo holandês Maurício de Nassau, sendo
94
contrário à sua utilização como quartel, como propunha o então Governador da Capitania
(FUNARI & PELEGRINI, 2006; PEDRAZZANI, 2005; LEMOS, 1987).
Quando Viviane Pedrazzani enfatiza a década de 1920, é por esta ser de intensa
efervescência política e cultural no país, estando lá as primeiras manifestações, liderada por
um grupo de intelectuais brasileiros (modernistas, naquela época), com vistas a romper com a
influência hegemônica européia, e iniciar um encaminhamento em busca das raízes
“autênticas” da cultura brasileira.
Nesse mesmo percurso, Soraia Maria de Andrade deixa bem claro o período ao apontar
o ano de 1922 como marco de defesa dos bens culturais da nação brasileira, tanto no plano
intelectual como legal, aparecendo o primeiro ato de legislação de proteção cultural com a
criação do Museu Histórico Nacional – decreto nº 1.596, de 02 de agosto de 1922 –, que
limitava como objetivo:
Será da maior conveniência para o estudo da História Pátria reunir os objetos a ela
relativos que se encontram nos estabelecimentos oficiais e concentrá-las em museus
que os conserve, classifique e exponha ao público, e, enriquecido com os obtidos
por compra, por doação ou legado, contribua, como escola de patriotismo, para o
culto de nosso passado (ANDRADE, 2002, p. 29).
A partir das cidades mineiras, busca-se produzir uma imagem que representasse o
Brasil como “nação moderna”, que o Sphan, na década de 1930, consagra e veicula como as
únicas com valor de patrimônio, ao construir, além de uma representação de Brasil, uma
imagem socialmente incorporada de patrimônio histórico e cultural urbano. Nesse primeiro
momento, as cidades mineiras são selecionadas pelos intelectuais modernos para o exercício
da busca de uma “identidade nacional”, sendo a arquitetura colonial a expressão
“autenticamente” brasileira e fonte de inspiração para uma arquitetura moderna. Dessa forma,
a cidade de Ouro Preto, por exemplo, torna-se patrimônio nacional e padrão para este
patrimônio e o “colonial”, eleito como marca desta nacionalidade.
Com a preservação das cidades mineiras, e ignorando tantas outras, a instituição
estabelece critérios para a valoração do patrimônio urbano que considera exclusivamente as
características estético-estilísticas de sua arquitetura. Vincula o valor de patrimônio à
uniformidade estilística dos conjuntos coloniais e/ou à excepcionalidade dos monumentos nas
cidades que haviam perdido sua uniformidade colonial.
Para Lia Motta, os modernistas – “mediadores do patrimônio nacional” –, organizados
em torno dos debates sobre a identidade nacional, tinham a determinação de elaborar uma
feição brasileira para marcar uma civilização nacional (MOTTA, 2002). Essa feição foi
atribuída ao “abrasileiramento” da cultura trazida pela metrópole, à força de um Brasil
mestiço, que rompia com os determinismos de natureza biológica, buscando analisar e
compreender os brasileiros a partir da dinâmica que se estabeleceu no processo de
colonização.
Os modernistas criticavam o Brasil ‘europeizado’ do século XIX e valorizavam os
traços primitivos da cultura brasileira do século XVIII, anteriormente considerados
sinais de atraso. Entendiam que, no Brasil, uma cultura própria teria sido construída,
não se limitando à mera importação de estilos e técnicas da metrópole (MOTTA,
2002, p. 127).
É verdade, foi este intelectual quem deu início à reflexão sobre o patrimônio cultural
imaterial brasileiro. Em 1936, em proposta entregue ao então ministro da Educação Gustavo
Capanema, afirmava que o patrimônio cultural da nação compreendia muitos outros bens
além de monumentos e obras de artes. Mário de Andrade elaborou um projeto bastante amplo,
em que apresentou a definição de Patrimônio Artístico e Nacional, como sendo todas as obras
de arte, pura ou aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes aos
poderes públicos, e a organismos sociais e a particulares nacionais ou estrangeiros residentes
no Brasil. Desse modo o autor procurava englobar toda manifestação da cultura brasileira, sob
quaisquer formas que fossem: artefatos, música, culinária, contos e lendas, costumes e outros.
98
De volta à década de 1930, para Adriana Campani e Virginia Holanda, esta década é
marcada como período de forte discurso político de modernização do país, dentro das ações
que visavam a unificação nacional através da construção de uma identidade isenta de
sentimentos regionalistas, amparada no processo de formação de uma cultura brasileira
(CAMPANI & HOLANDA, 2005). Do ponto de vista de um projeto intelectual, os
integrantes da Sphan, afinados com o movimento moderno, propuseram a reelaboração do que
seria a tradição cultural brasileira, recusando tanto a cópia (neo) quanto a mistura (eclético) de
estilos pretéritos. “A afinidade estrutural [...] da arquitetura moderna com as técnicas
construtivas tradicionais era demonstrada para erigir esses dois estilos nas manifestações mais
autênticas da arquitetura brasileira” (FONSECA, 2005, p. 130).
É nesta década que as iniciativas preservacionistas começam a alcançar resultados mais
consistentes, sendo o primeiro deles o ano de 1933, durante o governo provisório de Getúlio
Vargas, quando a cidade de Ouro Preto foi declarada Monumento Nacional, em
reconhecimento a seu rico passado histórico, o cenário da Inconfidência Mineira (1789) 28, e a
seu opulento patrimônio edificado, a maior parte do qual era àquela altura atribuído à
Aleijadinho (MOTTA, 2002), tombada pelo Sphan em 1938 e sendo reconhecida pela Unesco
como Patrimônio Mundial em 1980.
Para Carlos A. C. Lemos,
Ouro Preto foi preservada porque se desejou proteger seus monumentos maiores,
cada um vistos de per si, e o ato legal visou à proteção de uma ‘pacote’ de
construções, cujas áreas envoltórias acabaram abrangendo a cidade toda (LEMOS,
1987, p. 46).
A identidade brasileira tomaria forma, em parte, através destes bens históricos, sendo a
preservação restrita às grandes edificações como igrejas, casarões, quartéis e outros símbolos
representativos do poder de uma época. Ouro Preto é, assim, dimensionado no imaginário
coletivo brasileiro como poderoso símbolo da identidade brasileira. Um símbolo barroco e
mineiro, desbancando inclusive a primeira capital brasileira, Salvador, que só recebeu o título
de Patrimônio Mundial em 1985.
Em 1934 o governo federal criou a Inspetoria dos Monumentos Nacionais, no âmbito
do Museu Histórico Nacional, que chegou a promover intervenções de restauro conduzidas
pelo engenheiro Epaminondas Macedo em vários monumentos de Ouro Preto. Neste mesmo
ano, foi promulgada nova Constituição Federal, que, em seu Capítulo II, artigo 148, incluiu
28
Movimento de cunho elitista que apresentava idéias e interesses de romper os laços que a colônia brasileira
mantinha com a metrópole portuguesa.
99
O embate entre as várias correntes ocorre, de forma mais evidente e concreta, entre
1935 e 1937, no terreno da arquitetura e patrimônio. Em uma primeira instância, Lúcio Costa
consegue provar,em facedosacadêmicose neocoloniais,
quesuasconstruçõeseram,a um só
tempo, novas, nacionais e estruturalmente ligadas a uma tradição pretérita.Como
desdobramento,é convocadoparaformaros quadrosdo Sphan,que passaa detero poderde
seleção daquiloque deve sersacralizadoe conservadocomo monumento nacional,com o
tombamento.
As estruturasmodernas,simplificadase multiplicáveis,igualariamas casasde ricose
pobresno aspectoconstrutivo,possibilitaa produção em largaescalade casasoperárias.
100
Por outro lado, faz-se necessário reconhecer que a valorização do patrimônio no Brasil
é um processo extremamente desigual, pois atinge, em geral, aqueles bens considerados
monumentais ou aqueles para os quais o mercado turístico vê possibilidades de exploração.
Em outras palavras, na prática, essa visão de patrimônio cultural presente na Constituição de
1988 ainda precisa ser reconhecida e apropriada pela sociedade.
Isso pode levar à uma reflexão sobre o olhar que se tem sobre a região Nordeste, palco
do “descobrimento”, mas já primordialmente habitada pelos homens e mulheres da Pré-
História30, cenário dos maiores engenhos de açúcar, das drogas do sertão e do pau-brasil do
período colonial e por isso cobiçada pelos outros invasores31 que aqui estiveram,
estabelecendo inclusive relações econômicas, mas sendo colonizada mesmo pelos portugueses
que aqui deixaram as “indeléveis marcas lusitanas” (LACROIX, 2002) e que ressentiu-se
econômica e culturalmente pela transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, em
1763.
A produção dos intelectuais maranhenses sobre a história e cultura do Estado confirma
vários qualificativos: tradição, arquitetura, política, cultura. Somando-se a esse quadro,
apresentam a existência de um período de riqueza econômica, concomitante a uma grande
produção erudita que resultou no título de Atenas Brasileira para São Luís (ver Capítulo I). A
este período áureo segue-se um período de decadência, econômica e cultural, o qual nunca
teria sido completamente superado. Em certa medida a idéia da decadência estaria presente
em muitas falas sobre o Estado e a cidade, porém expressa de forma indireta, ao se reclamar
da insuficiência de recursos e apoio do governo federal para o desenvolvimento do Estado,
que por esse motivo estaria entre os mais pobres do país.
No processo de construção de uma visibilidade para a região, a fixação do que seria a
identidade nordestina, literatos, pintores, eruditos, historiadores, pesquisadores, que se
dedicaram a apresentar o patrimônio cultural da região, mostrando-o como fonte inesgotável
de surpresas e belezas naturais, em contraposição à imagem vendida pelo Sul de “primo-
pobre” (ALBUQUERQUE JR, 2003), na perspectiva de dar-lhe materialidade, de transformá-
la em matéria de expressão artística, paisagística e de significados. Materialidade essa capaz
de ser lembrada, de ser levada à memória de seus habitantes.
A natureza, aqui, proporciona momentos de prazer. São tradições, músicas, danças,
folclore e gastronomia que combinam, com o contato com os(as) moradores(as) ou visitantes,
30
Pesquisas feitas pelos arqueólogos Niède Guidon e Fábio Parenti desde a década de 1960, no sul do Piauí,
cidade de São Raimundo Nonato, apontam a chegada do homem na região há mais de 56 mil anos.
31
Holandeses: Salvador (1624-1625), Pernambuco (1630-1654), Maranhão (1941-1644); franceses: São Luís
(1612-1615) e outras potências européias que praticaram saques.
102
de uma política pública de patrimônio efetiva na cidade de Caxias. É sobre esses temas que se
passa a tratar agora.
CAPÍTULO III
CAXIAS: significados e sentidos do
centro histórico
“De pedras e azulejos, mirantes e becos, sobrados e torres faz-se
uma cidade: ainda mais alma”.
Bandeira Tribuzi
Esse é um capítulo em que se faz a aplicação do que foram os dois capítulos anteriores,
em que se propôs apresentar, no primeiro, o objeto (Caxias) e, no segundo, a teoria, tendo
agora, portanto, uma soma dos capítulos para uma condição metodológica de aplicação do
olhar investigativo sobre o objeto de estudo.
Portanto, busca-se apresentar os significados e sentidos do centro histórico de Caxias
para os seus habitantes. Aqui, o grande eixo são os depoimentos; foram entrevistados tantos
os “renomados/intelectuais”, bem como os moradores, usuários e passantes, convidados para
pensar a cidade, a arquitetura da cidade, o significado que tal patrimônio tem para ele(a),
porque os olhares distintos têm a expectativa de demonstrar as diferentes visões sobre o
sentido desse patrimônio.
A memória dos(as) entrevistados(as) vai revelando o patrimônio histórico-cultural de
Caxias, cada um a seu modo, inserido no painel de acontecimentos que marcaram e marcam a
história da cidade. Não importa o lugar por eles(elas) ocupado, pois o que se verifica é o
compromisso em levar adiante a bandeira de contribuir para a preservação e requalificação do
patrimônio histórico-cultural de Caxias.
O capítulo se constitui de 4 itens. No primeiro, saberes sobre a cidade, busca-se
fundamentação nos aportes teóricos de intelectuais que discutem a sociologia urbana: cidade,
espaço, lugar, haja a cidade, como produção humana, ser o reflexo de uma variada gama de
valores, construções históricas e sociais que se relacionam ao imaginário. O espaço, que
contém os bens patrimoniais edificados é o lugar em que a dimensão subjetiva revela-se de
forma mais intensa. Por meio das práticas sociais, são atribuídos valores ao patrimônio que
ultrapassam a esfera objetiva, ao englobar os símbolos, as relações afetivas com o espaço, a
identidade e a memória local.
105
Por isso, definir o que seja cidade consiste numa tarefa não tão livre de imprecisões e
controvérsias. Pode-se contentar com os ensinamentos compilados pelo dicionarista Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira que diz: “a cidade é um complexo demográfico formado, social
e economicamente, por uma importante concentração populacional não agrícola, e dedicada a
atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e cultural” (FERREIRA, 2004, p. 43).
Mesmo que se aceite esta noção como suficiente para definir a categoria cidade,
permanece a questão principal sobre o que ela seja. Segundo Ana Fani Carlos, esta pergunta
permanece no ar. Contudo, qualquer habitante sabe o que ela é, posto que vive nela e constrói
no seu cotidiano o cotidiano da cidade (CARLOS, 1997).
Pensa-se, porém, que para que se entenda a cidade não basta apenas observá-la ou viver
nela. É preciso sentir a sua dinâmica, geografia e história. Seria observar a movimentação das
pessoas nas ruas, as relações comerciais, onde estão localizados os estabelecimentos
industriais, onde moram e estudam seus habitantes, o que fazem nos momentos de trabalho e
de lazer. Isso por que a cidade é composta por um sem-número de traços, linhas, cores,
cheiros, sons, sotaques, frases, movimentos. Seria compreendê-la não apenas na acepção
exclusivamente visual, mas na dimensão significativa que os habitantes/usuários(as) atribuem
à ela, ou seja, na sua dinâmica cotidiana, símbolos e significados.
Com efeito, pensar a cidade leva à reflexão sobre o espaço físico, o homem e a mulher
que ocupa esse espaço, os significados, os lugares, as relações que permeiam cada canto que
fazem a cidade, como afirma Maria Cecília Silva de A. Nunes:
Ela é memória organizada, natureza e cultura. Tem história, personagens e uma
trama de desejos individuais e de projetos. Olhando a cidade como lugar onde as
contradições se dão; lugar onde a luta cultural para configurar valores, hábitos,
atitudes, comportamentos e crenças se faz presente. É importante afirmar que a
cidade também é lugar de pluralidades e diferenças (NUNES, 2005, p. 233).
Ao descrever a cidade, Ítalo Calvino mostra que ela pode ser observada a partir da
conformação dos edifícios, ruas, moradias, praças, topografia, moradores(as) e visitantes, que
se expressam diferenciadamente, além de conhecer os caminhos e descaminhos históricos que
culminaram com a sua formação enquanto unidade político-econômica e cultural. É, pois, um
lugar de trocas, materiais, espirituais, simbólicas. É, então, objeto – pode ser observada
materialmente –, e sujeito, pois atrai e acolhe os habitantes aos quais fornece, através de sua
produção, a maior parte do que os moradores e moradoras necessita. No entanto, enquanto
objeto, ocorre a partir da função de sujeito, tendo em vista a influência que o ambiente urbano
materializado exerce em seus habitantes. Nesse sentindo, se os sujeitos utilizam e moldam a
cidade, a recíproca também é igualmente verdadeira.
Por sua vez, uma cidade também é um lugar singular, diferenciado; o sentimento de
orgulho, visto o que a faz são as particularidades que cada um cria; é o caráter individual que
proporciona a criação de densidades relacionais; assim, uma cidade torna-se mais do que uma
aglomeração de pessoas, mas sendo singular, depende criticamente da pluralidade que só as
outras cidades lhe emprestam: o sentido da constelação. O lugar induz à idéia de pertença e
identidade, como afirma Ana Cristina M. Brandim: “As lembranças, as reminiscências,
possuem uma ligação muito íntima com os espaços da memória, pois os monumentos, os
lugares, imprimem porções de identidade, estabelecem elos entre o passado e o
108
Por sua vez, é paradoxal o olhar de muitos(as) dos(as) entrevistados(as), que não fala de
uma visão mais realista, que envolve a dimensão das desigualdades sociais, da favela, da
pobreza. O tom de voz enuncia uma presença idílica, de algo quase lírico, de só olhar para
onde o foco de luz marca esse lugar da paisagem arquitetônica, a riqueza e beleza da cidade,
uma visão quase que divinizada, embora o seu entorno se agencia pelas desigualdades sociais,
com bairros sem infra-estrutura, saneamento básico, casas de pau a pique e telhados de palha.
Como contraponto a essa visão idílica de cidade, Luís Domingues Oliveira (in
memoriam), dentre outros(as), fala sobre a cidade e as edificações que conheceu.
A cidade melhorou muito, porque naquele tempo as casas eram tudo casinhas,
mesmos a desses homens ricos, tudo era pequeno. A casa do “seu” Zé Guimarães,
dono dessa fábrica aí [Manufatura, hoje Centro de Cultura], era tapada de taipa. Ali
era de taipa, amarrada com umas embiras, cipó, com rêis de couro de boi, que
usavam para amarrar. O prédio que tem na Praça Gonçalves Dias, eu já alcancei
daquele jeito. Foram desmanchando aos poucos e fazendo de alvenaria. [...] Não
achava tão bonita não, porque a gente acostuma com uma coisa, né? Eu passava
quase todo dia naquelas portas, eu vendia lenha para as donas dessas casas. O
homem trabalhador, naquele tempo, por dia só ganhava 10 tostão, dava mal pra
passar. Já passei muita fome. Tinha vez que os calangos ‘passava’ por dentro do
fogão, por que não era nem aceso no dia (OLIVEIRA[A], 2002).
São as desigualdades da própria condição daqueles que residem (ontem e hoje) nos
bairros periféricos e que usufruem do centro apenas como espaço de trabalho, em
atendimentos hospitalares ou nas visitas bancárias que fazem mensalmente, constituindo-se
este centro no que Marc Augé chama de não-lugar, em virtude de que “certos lugares só
existem pelas palavras que evocam, não-lugares nesse sentido ou, antes, lugares imaginários,
utopias banais, clichês” (AUGÉ, 2008, p. 88), visto serem apenas lugares de passagem ou
espaço utilizado para determinados fins: comércio, atendimentos, trabalho e lazer.
Não obstante a essa visão, as memórias daqueles que manifestam sentimentos positivos
com relação ao patrimônio histórico-cultural, revelam, quando convidados a (re)visitar os
lugares, as edificações, uma cidade monumental, de passado glorioso, que demonstra a
herança recebida, complementada com o toque do presente, numa dinâmica que por vezes se
constitui num verdadeiro desafio.
As edificações seculares, as manifestações artísticas dos poetas, escritores e artistas,
fornecem, para eles, uma amostra do desenvolvimento histórico-cultural de Caxias, expresso
não somente diante da cultura material, mas também, pela vasta produção literária que
imortalizou a imagem da cidade no Brasil e no mundo.
Por isso consideram particularmente regozijante constatar que a arquitetura constitui
um lugar de fala privilegiado. Por meio desse lugar de primazia da arquitetura é possível a
111
apropriação de um discurso urbanístico que vai além das dimensões das malhas viárias, que
esta apropriação arquitetônica está no centro eqüidistante de qualquer outro viés ali imbuído.
O(a) leitor(a) dos poetas caxienses, conhecendo através de suas obras a cidade, os
lugares mencionados, sente-se, muitas vezes, motivado(a) a ir a esses lugares e identificá-lo,
lançando também o seu próprio olhar. É assim, como pátria afetiva, cheia de significados e
sentidos, que muitos dos(as) entrevistados(as) também a vêem, a exemplo de Arthur Almada
Lima Filho:
Para mim a cidade de Caxias é como se fosse uma custódia, de guarda, lembrando
que aqui tem as raízes da minha família, e as lembranças, sabendo que os nossos
antepassados, no caso, o ramo dos Almada, chegou aqui já no século XVIII e os
Lima já nos meados do século XIX. Aqui nossas famílias, com o cruzamento dos
Almada com os Lima criaram uma certa tradição [...]. O meu avô, Coronel Cesário
Fernandes Lima, foi um grande comerciante, foi vereador e até Presidente da
Câmara. O Dr. Honorato Fernandes Lima, que era meu bisavô, teve uma prole
também, ainda que pequena, mas de bastante projeção: General Bernardino e o Dr.
Benedito Vieira Lima. Então, tudo isso me faz ver a cidade com respeito, como se
fosse um templo sagrado, que vejo, infelizmente, esteja sendo deformada pelas
novas gerações, inclusive gerações de pessoas que não são nem vinculadas às nossas
tradições, que não são de famílias, que eu diria, fundadoras da cidade (LIMA
FILHO, 2008 – grifo da pesquisadora).
Nessa fala, pretende-se destacar Caxias como um “lugar de memória”, tal como
descrito por Pierre Nora (1993), lugar esse, para o entrevistado, rico na cultura e na herança,
lugar de práticas e sentimentos vividos pelos seus antepassados. Esses lugares da memória
falam não somente do passado, mas, ainda mais, justificam e confirmam o tempo presente
para os habitantes. Por outro lado, a deformação pode ser entendida, ou lida, como
atualização, ressignificação. Por ressignificação entende-se a mudança de um referencial para
lhe conferir um novo significado. Em outras palavras, que esse patrimônio seja (re)utilizado.
O (re)uso é argumentado como um dos elementos dinamizadores (âncora) nas políticas e
projetos de intervenção nas edificações dos centros históricos.
Por sua vez, pode-se indagar o que tem então de se preservar para que uma cidade não
perca as suas referências, identidade, o seu patrimônio cultural. Quem responde é Helder
Pacheco, para quem, uma cidade precisa de,
antes do mais, de gente com ternura pelos sítios e as coisas, passadas e presentes,
que corporizam o espírito dos lugares. E precisa, depois, de gente que, num mundo
que se despersonaliza e onde as diferenças se liquefazem no amorfismo cinzento do
número, mantenha desperto o sentido vital de pertença a uma comunidade – rua,
largo, viela, bairro, freguesia – identificável. A uma comunidade que harmonize as
identidades sem as unificar, tonifique a solidariedade sem dependências, concite a
comunicação sem abafar as vozes. O silêncio das ruas desabitadas é, mais do que
um crime, uma abjeção do mundo contemporâneo, que deixa perder ou assassina o
sentido da existência. Porque uma cidade é feita de vizinhos. É feita de bulícios,
gestos, choros, falas, congruências e incongruências. Passado e presente, memória e
esquecimento. Uma cidade é feita de atos de viver: atitudes concretas que fazem
112
parte de um universo habitável e poético onde cada um, por humilde e apagado que
seja, desempenha o seu papel no jogo complexo e contraditório de ser cidadão
(PACHECO, 1996, p. 29-30).
Por isso mesmo, os espaços urbanos são fundados na idéia do processo dinâmico
aberto, assim como também na idéia de acolhimento e conforto que os habitantes sentem ao
estar ou retornar à sua cidade, a seu lar, ao espaço construído, transformado e adaptado para
sua comodidade e bem-estar. É neste espaço que o homem projeta sonhos e idealizações,
114
De fato, a cidade continua a exercer atração entre as populações que para ela se dirigem
em busca de novas oportunidades de vida. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística – IBGE –, mais de 80% da população brasileira vive hoje em cidades. A intensa
urbanização que se inicia no Brasil no final da década de 1950 começa a apresentar seus
resultados já nos anos iniciais de 1960 (IBGE, 2005).
É, sobretudo, a partir de meados da década de 1950 que as cidades brasileira passam
por múltiplas intervenções urbanísticas no sentido de transformá-las em centros dinâmicos,
com o poder público implantando infra-estrutura necessária para acompanhar os passos do
desenvolvimento.
O debate sobre políticas preservacionistas (como visto no capítulo I), inicia-se no Brasil
efetivamente na década de 1930, com um debate que organizou as ações do patrimônio e
passou a orientar a compreensão e a leitura estética sobre o patrimônio histórico. Durante
muito tempo achava-se que não se tinha nada a ser preservado. Depois, passou-se a defender a
preservação do período colonial – daí a atuação dos órgãos de preservação no espaço das
cidades mineiras, com a proteção das igrejas barrocas, o chamado “patrimônio de pedra e
cal”.
É a partir desse momento que aumentam, consideravelmente, as discussões sobre a
preservação do patrimônio edificado nas cidades, com pedidos de tombamentos tanto de bens
isolados como em conjunto. A capital maranhense, São Luís, por exemplo, frente ao processo
de urbanização, a partir de 1955, teve vários bens tombados isoladamente pelo Iphan. Em
Caxias, esse debate chega no final da década de 1970, com um grupo de intelectuais
discutindo políticas de preservação para a cidade e o governo do Estado atendendo à
solicitação do tombamento da fábrica têxtil, a Companhia Têxtil Caxiense, em 1980.
Os sentidos de pertença que os habitantes têm por sua cidade e, conseqüentemente, pelo
seu patrimônio histórico-cultural, fazem com que busquem preservá-la. São pessoas que
apegam-se aos lugares onde nasceram e vivem ou viveram, e que costumam retratá-los de
forma nostálgica, como se fosse o melhor lugar do mundo. Muitos(as), mesmo quando saem
de sua terra natal, costumam voltar a ela periodicamente para rever parentes, amigos e para
visitar àqueles lugares “de memórias”.
116
Por isso, nos dias de hoje, o patrimônio arquitetônico está conectado não só com o
passado e a memória nacional, mas também com a vida das pessoas que moram no espaço da
cidade. O conjunto urbanístico, assim como a paisagem, faz parte do patrimônio cultural que
se inter-relaciona com a noção de espaço turístico.
A sintaxe das vozes do patrimônio histórico-cultural em Caxias se efetiva na década de
1980. O patrimônio edificado da cidade passa a ser alvo da atenção de intelectuais,
pesquisadores(as) e interessados(as) em preservar o acervo arquitetônico da cidade, por
reconhecer o valor e a importância desse conjunto para a sociedade. Esse grupo, teve à frente
Letícia Maria Mesquita, José Cardoso, Wybson Carvalho, Renato Meneses, dentre outros(as)
envolvidos(as) com a cultura local. As vozes desse grupo constroem a narrativa nostálgica de
um passado que agora parece ter urgência de reconstruir-se como presente e futuro, como
forma de preservar o patrimônio histórico-cultural da cidade.
Metaforicamente, “os(as) guardiões(ãs) da memória” caxiense começaram a discutir
sobre a preservação do acervo arquitetônico de Caxias, na perspectiva de que não se perdesse
os exemplares significativos da arquitetura colonial, presente nesse centro, ocorrendo a
primeira ação preservacionista na cidade, com o tombamento do antigo prédio da Companhia
Têxtil Caxiense, em 1980 – Decreto nº 7.660, de 23/06/1980 –, pelo fato dessa construção
estar, nas palavras de Letícia Maria Mesquita, “caindo, deteriorado, [desde que] parou a
manufatura e ficou abandonado” (MESQUITA, 2009). Por isso, enfatiza como importante
para o Maranhão e, evidentemente para Caxias, a chegada de um maranhense ao cargo
máximo do executivo nacional: “quando entrou o governo Sarney32, ele deu incentivo nessa
parte da cultura” (MESQUITA, 2009).
O Decreto nº 7.660, assinado pelo Governador do Estado do Maranhão João Castelo
(1979-1982), em 23 de junho de 1980, determina:
Art. 1º - Fica tombado, para os efeitos da Lei Estadual nº 3.599, de 05 de dezembro
de 1978, o prédio localizado à Praça do Panteon onde funcionou a Fábrica da
Companhia União Caxiense S. A., na cidade de Caxias, neste Estado.
Art. 2º - Por força deste Decreto, o imóvel de que trata o artigo anterior será inscrito
no Livro de Tombo Histórico da Fundação Cultural do Maranhão, de conformidade
com o disposto no artigo 29 da Lei acima referida.
[...]
(Arquivo do DPHAP-MA, 1980).
Essa ação parece ter tirado Caxias do torpor, do abandono pela qual, para os(as)
chamados(as) “guardiões(ãs) da memória” que o patrimônio edificado da cidade estava
32
José Sarney, maranhense, da cidade de Pinheiro, Presidente do Brasil no período de 1985-1990.
117
Motivado pelas discussões desse grupo, bem como das discussões no âmbito nacional e
estadual, a administração municipal, segundo depoimentos de pessoas envolvidas com o
processo, além de artigos publicados em jornais33 locais e até de outros Estados, mostrou-se
sensível à solicitação, ao encaminhar ao Departamento do Patrimônio Histórico Artístico e
Paisagístico do Maranhão – Dphap-MA – ofício em que solicitava a vinda de uma comissão
para investigar a situação dos imóveis históricos localizados no centro da cidade.
Atendendo à solicitação, neste mesmo mês, setembro de 1986, chegou à Caxias uma
equipe do Dphap-MA, composta pelos arquitetos Carlos Frederico Lago Burnett e Margareth
Figueiredo e da bibliotecária Marilúcia Basileu Bandeira, para assessoramento, pesquisas e
palestras sobre o patrimônio histórico e arquitetônico de Caxias.
33
Jornal O Dia, O Estado (Teresina-PI); O Estado do Maranhão; O Imparcial (São Luís-MA).
118
Esta equipe foi a responsável pela pesquisa dos imóveis históricos da cidade. Para
tanto, empreenderam visitas às Ruínas da Balaiada, às edificações que compunham a região
central e ao Balneário Veneza, área paisagística composta por fonte de água mineral
sulfurosa, lago que contém lama negra com propriedades medicinais e reserva florestal. Após
minuciosa pesquisa sobre o patrimônio cultural de Caxias, o Presidente do Conselho Estadual
de Cultura, Benedito Bogéa Buzar, determina:
Art. 1º - Aprovar o pedido de tombamento, elaborado pelo Departamento de
Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico do Maranhão, constante do processo
nº 0834/90, referente ao Centro Histórico de Caxias/Maranhão.
Art. 2º - Recomendar que o tombamento solicitado seja precedido das exigências
contidas nos Arts. 2º e 4º e/ou 7º, da Lei nº 3.999, de 05 de dezembro de 1987
(Arquivo do DPHAP-MA, 1990).
O passo seguinte foi definir o que seria preservado. Na realidade, é possível notar, a
partir de análises nos documentos oficiais, que o objetivo era atribuir qualidade especial aos
imóveis em seu conjunto, ao privilegiar a arquitetura das construções singulares, porque a
importância dessas edificações é dada pelo ritmo e pelo valor ambiental que suas fachadas
proporcionam em termos de qualidade do espaço urbano.
A cidade de Caxias, pela homogeneidade de seu conjunto urbano, sua presença na
história maranhense e a produção cultural de seus filhos ilustres como Gonçalves
Dias e Vespasiano Ramos, passa hoje por estudos que poderão elevá-la à categoria
de cidade histórica do Maranhão, como São Luís, Alcântara e Viana. Tal fato
colocará o imenso acervo cultural de Caxias sob a proteção do Estado,
representando garantia de perenidade para seu valioso patrimônio histórico, artístico
e paisagístico, propriedade de toda comunidade caxiense (Arquivo DPHAP-MA,
1990).
Pelo menos é essa a imagem que o governo quis transmitir: uma cidade que tem o
centro tombado pela significância da arquitetura e da história. Por sua vez, as esferas
municipal, estadual e federal usufruem dos tombamentos, pois a cidade passa a agregar mais
valor quando trabalha para a promoção do patrimônio histórico de Caxias, afinal, trata-se da
“terra de Gonçalves Dias”, dos poetas “Coelho Neto, Vespasiano Ramos”, do “palco final da
Guerra da Balaiada”, etc. São esses aspectos que são observados nas falas de muitos(as)
dos(as) entrevistados(as), por isso, quando indagados(as) sobre o que elegem como símbolos
da cidade, citam:
O Centro de Cultura, que já foi uma grande fábrica de tecidos; a Praça Gonçalves
Dias (com suas lendas); e as Igrejas da Matriz, de São Benedito, do Rosário
(ALMEIDA[B], 2008).
A falta de diálogo entre poder público e sociedade, sobre o que deveria, ou merecia, ser
preservado é evidente nas falas dos(as) entrevistados(as), ressaltando-se aqui, o depoimento
de Madalena Pereira. Não menos diferente é a compreensão da professora Letícia Maria
Mesquita, ao afirmar que faltam ações efetivas do poder público para esclarecer à sociedade
de seu patrimônio.
122
É triste a gente dizer, mas eu não vejo, nem no jovem nem no próprio poder público.
Eu acho que falta campanha de preservação para esclarecimento do patrimônio
histórico. Falta também a questão de você ter um pouco dessa educação na escola,
uma disciplina, a Educação Patrimonial, que deveria ser passada, poderia nem ser
como uma matéria fixa, mas dentro da área de História. Poderia ser desenvolvida
para a preservação da cidade, se voltar para o patrimônio da cidade, porque aqui as
pessoas não sabem a história de Caxias (MESQUITA, 2009).
Determinar o que deve ou não ser preservado é uma decisão político-ideológica. Nessa
discussão, espera-se que estejam refletidos os valores e as opiniões da comunidade,
envolvendo os elementos tidos como representativos de uma determinada sociedade. A idéia
seria estabelecer diálogos entre a esfera política e a comunidade, para que, juntas, decidam o
que preservar ou não.
Destaca-se aqui a divulgação, através da imprensa, sobre a idéia da proteção do
patrimônio histórico local, no período do processo de tombamento do centro histórico de
Caxias, em que traz como manchete “Caxias vai ser estudada”:
Uma equipe de técnicos do Departamento de Patrimônio Histórico do Estado
seguirá para Caxias [...], onde durante alguns dias, realizará um trabalho de
levantamento histórico, fotográfico e arquitetônico, constatando as reais condições
da casa onde nasceu o escritor caxiense Vespasiano Ramo, local que poderá ser
elevado, dentro dos próximos meses, à categoria de patrimônio histórico (Jornal O
Imparcial, 03/03/1989).
E, em outro periódico,
a cada dia que passa Caxias perde um pouco de sua memória, e desta vez, quem é
responsável por tal fato é a Igreja caxiense, que por capricho de seus párocos, vem
descaracterizando os seus templos e apagando o patrimônio histórico de nossa Terra.
O que nos chamou a atenção foram as obras que estão sendo realizadas na Igreja de
São Benedito, que está tendo sua fachada revestida em pedra piracuruca, o que tira
por completo sua originalidade (Jornal Tribuna de Caxias, 15 a 30/08/1989).
A briga maior foi com a Igreja São Benedito que foi totalmente descaracterizada. Às
vezes, a gente estava na missa e ele falava alguma coisa contra a Secretaria de
Cultura (MESQUITA, 2009).
A discussão feita pela Igreja católica sobre quem deveria arcar com o ônus da
preservação é ouvida também entre muitos(as) proprietários(as) de imóveis localizados na
área do perímetro tombado, a exemplo de uma entrevistada que não quer ser identificada:
“falta auxílio do governo municipal, pois se o bem é tombado, deveria ter alguma ajuda do
governo para manter”, e por isso não vê esse tombamento como importante.
Sobre esse aspecto, a atual Secretária de Cultura, Valquíria Araújo Fernandes de
Oliveira, diz que a Secretaria de Cultura não é gestora financeira: “Ela não tem sequer conta
em Banco e tudo o que envolve recursos financeiros, a gente elabora projetos e envia para o
Prefeito, ou para o governo do Estado, através de edital específico para aquele
fim” (OLIVEIRA[B], 2008).
A maioria dos(as) proprietários(as) de imóveis situados na área tombada e seu entorno
reclama o fato de arcar apenas com o ônus de serem proprietários(as) de imóveis tutelados
pelo município, o que significa terem seus direitos de propriedade restringidos; muito embora
não seja bem o que se verifica nessa área, que não tem experimentado uma vigilância
constante da burocracia patrimonial.
De fato, o tombamento tem sido apropriado pela sociedade brasileira de forma
diferenciada e, nesse sentido, pode ser considerado de forma positiva ou negativa. Segundo
Maria Cecília Londres Fonseca, “ter um bem de sua cultura tombado pode significar, para
grupos econômico e socialmente desfavorecidos, benefícios de ordem material e simbólica,
além de demonstração de poder político” (FONSECA, 2005, p. 180).
A falta de interlocução com a sociedade aparece em muitas falas dos(as)
entrevistados(as), muito embora tenha sido divulgado na época a ocorrência de palestras e até
mesmo “nota à comunidade”. Não obstante, o que se verifica é a falta de informação para que
a comunidade compreenda e tenha acesso ao conhecimento sobre a importância do patrimônio
arquitetônico da cidade, sobretudo os(as) proprietários(as) de imóveis localizados no centro
histórico, pois o que entendem é que não podem “fazer mais nada” no imóvel, momento em
que se sentem “lesados” desse patrimônio, pois muitos são de propriedade privada.
Partindo do argumento de que o sentimento de pertença a um lugar sustenta-se numa
memória coletiva, esta depende de práticas de (re)conhecimento para que a sociedade se
aproprie de seu patrimônio cultural, que pode ser visto como alimentadores das ligações
126
afetivas e emocionais que, por sua vez, renovam o sentimento de pertença entre as pessoas. O
patrimônio apresenta-se, assim, como um valor da memória que, de certo modo, projeta na
contemporaneidade a presença daquelas origens que os sujeitos, protagonistas da atualidade,
constituem como seus.
Sobre o asfaltamento de ruas centrais feita pela Prefeitura na década de 1990, Letícia
Maria Mesquita, funcionária da Secretaria de Cultura e Urbanismo na época, ressalta as
dificuldades entre aquelas Secretarias e o Executivo. Enquanto uma discutia, pesquisava e
estabelecia medidas para conter a descaracterização e/ou destruição do patrimônio histórico e
cultural da cidade, a outra concedia autorizações para as transformações. É o que expõe:
Ele [o prefeito] asfaltou o centro histórico todo e a gente era contrária a isso, ficando
uma situação difícil a gente se manifestar contra a própria administração. Haviam
ruas que tinham calçamento próprio, antigo, que a gente procurava preservar,
principalmente nas proximidades da Igreja São Benedito. Aquelas pedras eram
pedras originais, da época mesmo da formação do Largo de São Benedito. Eu tenho
fotos, onde faço essa comparação: a parte antiga e a parte nova da cidade, da cidade
moderna. E é triste a gente perceber que a nossa cidade não preservou o centro
histórico. Na época eu estava ministrando um curso no Senac de Guia Regional de
Turismo e ficou difícil a gente falar a respeito de uma coisa que até não existia mais,
porque o centro histórico foi modificado, descaracterizado, porque até o calçamento
que tinha original foi retirado, ou seja, foi asfaltado tudo e nada se preservou
(MESQUITA, 2009).
O que ocorria antes, como enfocado nessa fala, não é diferente das ações que continuam
sendo praticadas pelos diferentes órgãos do município. O centro histórico, atualmente, passa
por um processo de verticalização acentuado, em que se vê exemplares arquitetônicos
significativos para a memória da cidade sendo destruídos para atender a lógica do
desenvolvimento urbano. O que muitas vezes acontece é que as pessoas acham que imóveis
velhos não têm valor ou que sua recuperação seria onerosa. Além disso, há uma carência de
políticas de incentivo à preservação desse patrimônio. Por isso, muitos(as) deixam as
edificações caírem para erguerem construções novas no espaço.
Na Rua Benedito Leite, que era a antiga Rua do Cisco, aquelas edificações eram
seculares. Simplesmente uma certa pessoa comprou todo um quarteirão e ia derrubar
as casas; como a gente interferiu, ele simplesmente derrubou a parte de trás de um
casarão e ficou só a fachada, e agora a fachada não agüentou e ruim também, e aí ele
ficou numa boa, porque não foi ‘ele’ que derrubou o casarão, quer dizer, foi o tempo,
que deixou se desgastar (MESQUITA, 2008).
inscrevem, pelo seu “exotismo” ou “raridade”, na categoria de “objetos de culto”, como bem
explicitou Françoise Choay, cuja função é a de serem olhados e apreciados por esses atributos
(CHOAY, 2001). Em decorrência dessas características, tais patrimônios histórico-culturais
passam a ser considerados partes constitutivas do legado cultural no centro histórico de
Caxias.
Ter nascido e morado na Rua Coelho Neto para mim é significativo. Nessa Rua,
hoje, existe o Centro Artístico Operário Caxiense, pouco valorizado pelos caxienses,
mas que trás a História da casa onde morou Coelho Neto (poeta caxiense). Outra
lembrança presente em minha vida é a antiga residência da Refesa 34, onde meus
avós residiram e onde atualmente funciona o Samal35. O prédio onde atualmente
funciona o Colégio João Lisboa (onde fiz o meu primário) – lá foi fundada a
primeira Escola Normal de Caxias, que foi doado por uma família portuguesa e até
hoje mantém suas características originais (LOBÃO, 2009).
Ou nas marcas de sucessivos modos de vida, como lembra outra moradora do centro
histórico.
Eu gostava mais da cidade antes do que de agora. Hoje houve mudanças, até demais.
No meu tempo não tinha esse tanto de camelô na porta da gente. Todo mundo
respeitava e era respeitado. Hoje ninguém respeita mais. Nesta casa não tinha essa
grade na porta da frente, não. Eu mandei botar por causa dos maus elementos. Nesse
corredor já roubaram dois conjuntos de cadeira. Hoje é tudo no cadeado. [...] Ali na
Praça Gonçalves Dias, lá no canto, tinha um microfone, que entoava músicas; Na
Praça da Igreja São Benedito tinha a maior festa do ano – a Festa de São Benedito –,
vinha gente de todo lugar, depois fizeram uma Praça nova e acabou a festa; na praça
Gonçalves Dias era onde os rapazes e as moças se encontravam: as moças
caminhavam numa direção e os rapazes, na outra, e se encontravam em determinado
ponto, mas tudo com muito respeito. Naquele sobrado antigo, perto da Praça, havia
o Cassino Caxiense. Todas as festas eram lá. Eu gostava de ir. As moças bem
vestidas, os rapazes de terno; [...] havia várias lojas, que vendiam de tudo
(PEREIRA, 2008).
34
Rede Ferroviária S/A.
35
Serviço Autônomo de Meio Ambiente e Limpeza.
130
O lugar guarda, de fato, estreita relação pessoal com certos aspectos mais perenes da
vida social, do passado comum e do inconsciente das pessoas. O “lugar da memória” da
moradora Madalena Pereira surge, assim, do que sobrevive, ou remanesce, ao tempo
destruidor da chamada “modernidade”. Ou seja, o surgimento da cidade histórica depende
desse processo temporal mutante, que gera as condições, pela própria dramaticidade e vigor
de suas mudanças, de se elencar e eleger os resquícios pretéritos que resistem no presente,
mas que foram engendrados em outrora. Quanto maior for o ritmo das mudanças, maior será a
produção desses resquícios que servirá como “lugares da memória” ou testemunhos de um
passado histórico.
O que se verifica, na contemporaneidade, é que tais centros históricos constituem um
elemento central de uma nova sintaxe do espaço urbano. Enquanto objeto de estudo, é um
instrumento privilegiado para que se investigue a dialética urbana da permanência e da
mudança e para que se apreenda a cidade em seu contexto. É um objeto que permite, ao
mesmo tempo, dar conta desse imponderável hiato entre a cidade imaginada e ensaiada pelos
projetos e a cidade vivida e sentida pelos seus habitantes, em que as políticas urbanas tantas
vezes se demoram, chegando, por vezes, a estagnar.
Para o Chefe do Dphap-MA Alan Jorge P. Pires, o centro histórico ferve cultura,
história, turismo, contudo, mas as pessoas precisam “fazer o uso racional desse espaço, de
forma que ao mesmo tempo nós possamos utilizar nosso bem e constituir relações” (PIRES,
2008), isso baseado na questão do desenvolvimento sustentável, ou seja, seria usá-lo com
responsabilidade, para que no futuro esse patrimônio possa ser contemplado e vivido. O
patrimônio arquitetônico de uma cidade é capaz de desencadear o sentimento de pertença em
relação ao seu lugar, como ruas, praças, igrejas, edifícios, casarões, cemitérios, monumentos,
museus, teatros, colocando-o em sintonia com o lugar.
Mediante a lógica que os sujeitos utilizam os patrimônios culturais, percebe-se os
vários sentidos e significados que elaboram em torno de patrimônio e arquitetura, ambos
performances de um diálogo simbólico e, portanto, polissêmico, com o qual inscrevem sua
história.
Há uma tendência para uma elitização de muitos centros históricos, resultantes de
agressivas políticas de enobrecimento urbano ou “gentrificação”. No entanto, preservar e dar
qualidade aos centros históricos não pode ser visto como torná-lo uma paisagem de privilégio
e exclusividade social para usufruto de grupos sociais determinantes.
Assim, o patrimônio histórico-cultural não deveria ser apresentado apenas como
monumento estático, exposto à curiosidade dos habitantes da cidade ou mesmo de visitantes.
131
É preciso que seja interativo e que leve a pensar e refletir os que se colocam diante dele, para
assim dar continuidade à ação dinâmica da cultura. O atrativo cultural não deve apenas ser
objeto de atenção por um momento, mas antes ser apreciado como uma inserção histórica,
dotada de amplos significados. Pois todo patrimônio é vivo, porque é construído a cada dia,
nas reformas e ressignificações e, ainda, pelo seu caráter polissêmico que a apreciação pessoal
possibilita, através de diversas interpretações pessoais.
A ressignificação passa pelo valor de uso/função. No momento em que se fizer o uso,
evidentemente sem a mesma função de antes, visto esses serem diferentes, a ambiência
interna/externa pode ser trabalhada, em favor inclusive de quem vai fazer uso dele,
preservando, assim o(a) homem(mulher) e suas necessidades na contemporaneidade.
Figura 38: Residência (estilo neoclassico), de propriedade de Raimunda Maria e Silva, situada na
Praça Cesário Lima, nº 153, Centro (Foto: ALMEIDA, 2008).
Figura 39: Casas comerciais localizadas no centro histórico de Caxias, em estilo neoclassico
(Foto: ALMEIDA, 2008).
As imagens (figuras 36, 37, 38 e 39) ilustram edificações com pintura descascadas,
portas de aço lacrando entradas e janelas e restos de paredes que apenas insinuam o que já
existiu. Por isso, muitos(as) entrevistados(as), quando indagados sobre a imagem que têm
sobre o patrimônio arquitetônico do centro histórico de Caxias é de “algo caindo, tombado,
literalmente” (ALMEIDA[B], 2008), quando, para a moradora de um casarão no centro
histórico, Patrícia Silva Lobão, deveria ser a imagem de
edifícios conservados e respeitados pelo seu valor histórico e cultural, pelo poder
público e pelos cidadãos, a exemplo da casa onde atualmente moro, pela beleza e
133
Ainda para o Chefe do Dphap-MA, um ponto importante e que deve ser revisto é
quanto à equipe técnica:
hoje nós temos dez fiscais, mas nem todos são técnicos e nem todos estão aqui
conosco. Em Alcântara, por exemplo, a gente tem uma situação sui generis, pois os
técnicos estão em cargos administrativos e isso compromete o resultado final. A
36
A poesia valor patrimonial foi criada especialmente para este trabalho, no momento em que o poeta recebeu a
pesquisadora para a entrevista, em 16 de outubro de 2008.
134
gente tem, numericamente falando, mais de 400 imóveis para cada fiscal. Temos um
trabalho administrativo que só funciona à tarde, mas o tempo todo ocorre de forma
sistemática, permanente, de forma que não fuja aos olhos do Estado essa questão da
violação do patrimônio (PIRES, 2008).
aqui, quando se trata do centro histórico, eles [imóveis] são quase todos prédios
privados. Eu acho que não é interessante para o dono mantê-lo. Por exemplo, o
aluguel de um prédio novo, estruturado para receber investimentos, cobra-se um
135
valor x, mas se o prédio é tombado pelo patrimônio histórico vale 20% do valor real
do aluguel, então não tem benefícios para quem mantém [...]. Agora, se o estado ou
o município pode manter, eu acho que ele poderia até adquirir esse imóvel, fazer
uma Secretaria; isso é diferente, porque uma Secretaria dentro de um imóvel desse,
o povo vai, porque é um setor público e as pessoas vão lá para resolver negócios
(FERREIRA, 2008).
Na visão do empresário José Ivan Ferreira, é importante analisar o que esse centro
histórico pode trazer de benefícios para a sociedade.
a sua comunidade, se faz imprescindível, para que possam também lutar e reivindicar pela
preservação e manutenção desse patrimônio.
Ao investigar fontes hemerográficas do período de pesquisa para o tombamento do
centro histórico, em 1990, ou até mesmo de dez anos antes, quando do tombamento da fábrica
têxtil, não se vê o povo sendo convidado a discutir sobre o que é preservação, ou sobre a
importância ou não de preservar. O que se verifica nessas fontes é o povo sendo chamado à
participar somente em eventos comemorativos, como a data de adesão à independência, o
aniversário da cidade, etc. Em poucos momentos foram ou são convidados a discutir questões
relativas à cidade. Sobre esse fato, Alan Jorge P. Pires afirma: “Se não ocorre hoje, naquela
época [década de 1980] menos ainda, até por conta da conjuntura política37” do período.
Não obstante a essa constatação, quando da visita da comissão do Dphap-MA, em
setembro de 1986, foi proferida, no Auditório da Prefeitura Municipal, uma palestra para um
público de cerca de cem (100) pessoas, composta por professores, engenheiros, advogados e
alunos, sobre o tema “Patrimônio cultural”, em que foram discutidos conceitos de patrimônio
e preservação.
Como o patrimônio arquitetônico é um lugar de memória e sendo lugar de memória é
lugar de história, muitos(as) moradores(as), em conversas formais e informais, sobretudo
os(as) mais idosos(as), mostram-se tristes, ficando até mesmo penalizados(as), quando vêem o
centro histórico hoje, porque ali, para eles(elas), está se destruindo um lugar de memória.
Parcela significativa da população sente-se desenraizada quando vê algum casarão ou prédio
sendo destruído ou descaracterizado, aqui pensando na posição de Riccardo Mariani, para
quem o prédio “não é apenas pedra e cal” (MARIANI, 1991, p. 66) e na de Alan Jorge Pires,
para quem,
o prédio é vivo. A gente quando trata de patrimônio tem que ver que o patrimônio
está muito ligado à questão da herança, no caso o patrimônio cultural ligado à
herança cultural. Mas não é só isso. Toda herança, quem a recebe, recebe com muito
prazer, com muito gosto, e quer sempre manter. A preservação é inclusive pra isso,
para você ter de volta todo aquele passado, que não volta mais, mas é você
rememorar, tornar aquilo vivo na sua lembrança, que já é algo imaterial (PIRES,
2008).
Esse patrimônio herdado, a que se refere o entrevistado, capaz de identificar uma nação,
pode ser visto por muitos(as) como um dom, algo que por ter sido recebido do passado com
tal prestígio simbólico não cabe discuti-lo. As operações possíveis – preservá-lo, restaurá-lo,
difundi-lo – são a base da simulação social que mantém determinada comunidade unida,
como afirma Nestor Canclini, “a perenidade desses bens leva a imaginar que seu valor é
37
Regime militar (1964-1985).
138
inquestionável e torna-os fontes do consenso coletivo, para além das divisões entre classes,
etnias e grupos que cindem a sociedade e diferenciam os modos de apropriar-se do
patrimônio” (CANCLINI, 1998, p. 160).
O sentimento de preservação do patrimônio está presente tanto na comunidade, quanto
no(a) visitante(a), afinal, é o valor desse patrimônio que torna a cidade mais atraente, mais
viva. Acontecimentos recentes, ou mesmo de problemas atuais, bem como a coleta de
evidências pessoais da história, são fundamentais no processo de valorização. Em qualquer
cultura, as construções seculares, as lembranças pessoais e as experiências passadas, as
fotografias desbotadas e os registros de eventos familiares fornecem marcos de vidas
individuais e são de grande valor para o processo de leitura do patrimônio.
Por sua vez, a importância de defender o patrimônio local torna-se pública. Valorizado
progressivamente aos olhos de um número significativo de pessoas, enfatiza-se o estudo,
divulgação e preservação do patrimônio edificado caxiense, bem como a prática de quaisquer
outras atividades culturais.
Muito se tem discutido, em vários âmbitos, sobre as possibilidades e alternativas de
preservação desses patrimônios, porém, estabelecer diálogo com a comunidade é primordial,
ou seja, se é preciso saber se é de interesse da população local. Nas entrevistas, o que mais se
ouviu foram os clamores da comunidade quanto à falta de investimentos, preservação e outros
cuidados para com o patrimônio edificado da cidade, momento em que propõem:
Seria ideal que cada cidadão caxiense tomasse consciência de que da mesma
maneira que lhe foi mostrado a história de Caxias, as próximas pessoas a ocuparem
a sociedade também têm esse direito. Assim, cada um preservará seu patrimônio e
respeitará o que lhe foi deixado (QUEIROGA, 2008).
O caminho seria fazer com que a população tivesse conhecimento de seu patrimônio
e da importância de preservar a história de nossa cidade (SILVA[C], 2008).
a importância de que o patrimônio seja visto como parte integrante da comunidade onde está
inserido, numa significação das manifestações sociais que marcam ou marcaram suas vidas,
conquistas, sonhos e realizações (ou idealizações) que constroem a história, e a possibilidade
de olhar esse patrimônio como memória social. É pensar que além de um patrimônio material
existe um patrimônio imaterial, um patrimônio que tem leveza, movimento e que pode
caminhar.
Ou, além da poesia, Caxias pode ser vista a partir das edificações seculares, que
embelezam e encantam a cidade: “aqui nós temos casas que têm umas grades que foi ainda do
período do Brasil Colônia” (LIMA, 2008). E, no olhar de um outro entrevistado: “A casa da
Dona Quininha Pires [...] tinha aqueles azulejos lindos, de alto relevo, que vieram de Portugal,
e que hoje em dia colocaram uma parte aqui neste edifico Duque de Caxias” (LIMA FILHO,
2008), são algumas vozes sobre o patrimônio construído de Caxias, pronunciadas por muitos
de seus habitantes como a cidade guardiã de uma memória que resiste aos processos sociais.
A cidade seria, assim, o próprio passado de glórias presentificado, visível, sobretudo, na
arquitetura. O que conta é a visibilidade da cidade, ou seja, seria tanto para moradores e
moradoras como visitantes, ler nas ruas e nas edificações caxienses os fatos históricos mais
representativos da personalidade e identidades dos caxienses.
Também, uma cidade economicamente ativa, que negociava a produção do algodão
com outras regiões do Brasil e, sobretudo com a Europa, e depois, no século XX, exportando
a amêndoa de babaçu, como afirma Géssica Queiroga: “Caxias já foi um grande pólo
econômico, o maior de todo o Maranhão, porém hoje sua economia diminuiu bastante por
vários fatores, o que mais se destaca é a ineficiência e incapacidade de
governar” (QUEIROGA, 2008). Com o declínio econômico, veio a estagnação e o sentimento
de perda, como expresso na fala da professora Letícia Maria Mesquita.
Caxias tinha um aeroporto. Daqui saiam vôos nacionais, e hoje em dia não tem mais
nada, perdeu, descaracterizou; tinha dois teatros, o Fênix – até de boa acústica, eu
não o vi funcionando, mas meus pais falavam, funcionava no colégio Caxiense, que
sempre teve essa preocupação de manter esse espaço de teatro; e o Teatro Harmonia
(MESQUITA, 2009).
ficou a do babaçu, que hoje também já ta desaparecendo, sendo substituída pela soja
(BARATA, 2008).
39
Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Caxias.
40
Memorial da Balaiada.
142
seus altares. [...] E nós deixamos perder uma capela no Cemitério de São Benedito,
que era um estilo muito bonito. Despojaram. Recentemente vi que se está tirando
uma escultura lá do Cemitério para ornamentar um prédio aqui no centro da cidade.
É um crime o que se está praticando e que dói para nós (LIMA FILHO, 2008).
41
Imóvel de propriedade da Arquidiocese de Caxias, tombada pelo governo do Estado, Decreto nº 11.595, de
12/10/1990, inscrita no Livro de Tombo nº 054, folha 12, em 30/11/1990.
145
A partir dessa discussão, o Plano Diretor de Caxias, no capítulo VI, determina, no Art.
19 – São diretrizes da política de cultura: “V – Implantar o departamento de proteção ao
patrimônio arquitetônico de Caxias” (PLANO DIRETOR DE CAXIAS, 2006).
Com a criação desse Departamento, nos segmentos histórico, artístico e paisagístico,
com amparo juridicamente legal, por meio da criação da Lei Municipal de Tombamento,
pretende-se que esse se torne um Instituto pelo qual o poder público determinará que bens
culturais do acervo arquitetônico e paisagístico sejam objetos de proteção, dizendo inclusive
de que forma se dará essa proteção.
Outras Instituições em Caxias têm se mobilizado no sentido de criar mecanismos de
proteção ao patrimônio histórico-cultural, a exemplo do Instituto Histórico e Geográfico de
Caxias – IHGC. O presidente e um dos fundadores, Arthur Almada Lima Filho, tem sido
incansável nessa luta, ao buscar apoio em outros órgãos:
Fomos convocados pelo Presidente da Câmara, vereador Ironaldo Alencar, para
redigirmos um texto de lei a fim de criarmos um selo do patrimônio histórico. Estes
prédios que ainda restam serão identificados por este selo e não será admissível que
seja feito qualquer reforma, qualquer alteração, sem que se ouça o patrimônio
histórico, porque senão daqui a pouco nós teremos uma cidade, que ela já está
descaracterizada, que não podemos dizer se do século XVIII, do século XIX, porque
não existe mais continuidade das construções. A toda momento uma nova
construção é edificada entre um prédio antigo e outro; aí fazem a demolição de uma
casa antiga e constrói-se um sobradinho entre duas casas ainda em arquitetura
colonial (LIMA FILHO, 2008).
abastados à camelôs, ou seja, por classes populares, mais vulneráveis por ausência de reflexão
crítica sobre questões a isto associadas.
Em conseqüência do consenso da necessidade de conservação e preservação do
patrimônio a que chega a sociedade contemporânea, surgem propostas visando à inserção
desta idéia na mentalidade da comunidade. Um dos exemplos do trabalho de busca dessa nova
mentalidade é a Educação Patrimonial. No Brasil, a discussão acerca do tema pode parecer
recente, haja vista o lançamento do Guia Básico de Educação Patrimonial pelo Iphan, em
1990. No entanto, a Constituição de 1988 já aponta essa discussão.
Esse Guia veio ao encontro da necessidade de um texto que servisse de orientação para
a prática da Educação Patrimonial, além de atender demandas por textos que pudessem servir
como referencial teórico sobre este campo. Nele, educação patrimonial trata-se
de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no
Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento
individual e coletivo. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e
manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e
significados, o trabalho da Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a
um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança
cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a
geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação
cultural (HORTA, 1999, p. 6).
entendida como uma proposta interdisciplinar de ensino que tem o patrimônio cultural como
objeto de conhecimento. E na perspectiva de José Ricardo Oriá Fernandes,
compreende desde a inclusão, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino,
de temáticas ou de conteúdos programáticos que versem sobre o conhecimento e a
conservação do patrimônio histórico, até a realização de cursos de aperfeiçoamento
e extensão para os educadores e a comunidade em geral, a fim de lhes propiciar
informações acerca do acervo cultural, de forma a habilitá-los a despertar, nos
educandos e na sociedade, o senso de preservação da memória histórica e o
conseqüente interesse pelo tema (FERNANDES apud BITTENCOURT, 2003, p.
146).
A proposta de uma política pública, tendo a educação como um dos caminhos seria no
sentido de despertar a consciência do maior número de pessoas para que elas possam
reconhecer a importância do patrimônio existente, aprendam a respeitá-lo e ajudem a
conservá-lo.
A legitimação do valor histórico de Caxias, reforçada pelo tombamento do centro
histórico da cidade em 1990, pode proporcionar benefícios econômicos e sociais. Um sítio
classificado converte-se em destino turístico fazendo com que o patrimônio cultural se
transforme em cultura formativa e produtiva, isto é, a cultura capaz de gerar riqueza cultural e
de se transformar em artigo de consumo.
Porém, a política de preservação do patrimônio histórico-cultural no Brasil não
conseguiu ainda conciliar o progresso com a preservação de traços do passado. As realizações
e significações culturais, representados pelo patrimônio cultural, estão repletas de
significações que possibilitam a busca e reconstituição de identidades, para conquista de
cidadania. Para isso a valorização das várias faces constitutivas do patrimônio cultural é
primordial como política preservacionista desse patrimônio.
Assim, (re)equacionando o seu papel como agente regulador dos mercados culturais, o
poder político local poderia proporcionar o aumento do consumo da cultura, que suportada
pela dinâmica do sistema municipal de ensino, ampliará o conteúdo do conceito de prática
cultural.
De fato, o poder público local tem buscado dar atenção ao patrimônio cultural da cidade
numa visão mais ampla. É o que confirma a Secretária de Cultura Valquíria Oliveira:
a gente trabalha tanto a cultura popular como a elitista; nós valorizamos os artistas
da terra, os cantores da terra. Por exemplo, agora, no carnaval, vamos colocar 20
bandas da terra; temos que trabalhar, mostrar o valor das coisas da terra. Faremos o
carnaval na zona urbana, em vários bairros [elenca os bairros] e na zona rural. O
carnaval nos bairros é para resgatar as antigas marchinhas e sambas, tipo saca-rolha,
149
músicas bem antigas de quando a gente era criança. O São João, nós registramos
todas as noites, com edição ao vivo, além do resumo, que está num cd. Trabalhamos
o Reisado [emociona-se]: eu vi Reisado quando era criança. Como cultura dita das
elites, no campo da música, trouxemos o pianista Arthur Moreira Lima, o Grupo
Cazumbá [...]; festival de poesias [...] (OLIVEIRA[B], 2008).
Igreja de Nossa Senhora dos Remédios (Catedral) (Ilustradora: Joana Batista, 2009)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
algodão. Com o objetivo de preservar da destruição e/ou da descaracterização pelo qual estava
passando, foi efetuado o tombamento do centro histórico da cidade, em 1990.
O tombamento do centro histórico de Caxias é um marco significativo para a história
da cidade. Significa uma importante ação com vista a proteger o patrimônio histórico,
arquitetônico e paisagístico da cidade. Este patrimônio, por sua vez, não é constituído apenas
de pedra e cal, porque repletos de lembranças, de significados e sentidos para os habitantes da
cidade.
Escolhida essa ótica, o recorte espacial (o centro histórico de Caxias) e o tema a ser
tratado (patrimônio edificado), foi definido o objetivo da pesquisa: investigar os sentidos e os
significados do patrimônio edificado do centro histórico para a(o) cidadã(o) caxiense, na
perspectiva de compreender de que forma estes sujeitos se identificam com o patrimônio e
como reivindicam políticas de preservação patrimonial.
Para realizar tal intento, investigou-se desde a dimensão histórica, com a abordagem
desde a formação do Povoado das Aldeias Altas à ascensão da categoria de cidade, bem como
os aspectos subjacentes ao desenvolvimento econômico e cultural de Caxias, além de tratar de
questões teóricas relativas ao conceito de patrimônio, cultura, memória e identidades,
tratando, pois, da dimensão subjetiva desses sujeitos ao seu patrimônio.
Muitas vezes, defende-se a proteção de bens do passado balizados em atributos
estilísticos e estéticos, esquecendo a sua vinculação social. Não raro, exige-se a preservação
integral da unidade construída, mas não do organismo urbano, admitindo-se a transformação,
muitas vezes, inconseqüente. Muitas são as razões que justificam a preservação do patrimônio
edificado, lugares e até mesmo de resíduos antigos. Conseqüentemente, para preservar é
pertinente atuar na qualidade do presente. O conhecimento, a auto sustentação decorrente
dessa harmonia, será, certamente, o recurso capaz de assegurar, sem paternalismo, nostalgia
ou saudosismo, tamanho legado.
É importante considerar que promover a preservação do patrimônio histórico-cultural
em Caxias, ou em qualquer outra cidade brasileira, não é tarefa fácil. Laços afetivos
tradicionais, saudosismos, que ligam as pessoas aos patrimônios, muitas vezes laços
temporais de proximidade rememorados pela exibição/exposição, não são ativados
instantaneamente pelos órgãos protetores de tal patrimônio. Dito de outra forma, seria lançar
mão de alternativas ou artifícios que estabeleçam elos entre poder público e sociedade.
Entretanto, não é necessário inventar relações, elas já existem. Resta aos patrimônios
histórico-culturais, em sua função de lugares de memória, promover a externalização dos
múltiplos usos e significados que a sociedade atribui ao patrimônio histórico-cultural.
152
possível com a atuação do poder público, que deve adotar medidas que garantam a
conservação das edificações, promovam benefícios aos proprietários(as) e a destinação dos
bens a um uso que lhe garanta a permanência para o usufruto das próximas gerações.
Os resultados obtidos na investigação surpreenderam. O processo de degradação das
edificações de importância histórico-arquitetônica do centro da cidade de Caxias e a
indiferença da população em relação a esse patrimônio eram compreendidos, antes da
elaboração do estudo, como indicativos da falta de apropriação dos bens. Contudo, constatou-
se, ao contrário do que se pensava, que a população tem conhecimento e apropria-se das
edificações de importância histórica e arquitetônica e considera como lugares de memórias
muitas das edificações que foram demolidas ou que estão sendo descaracterizadas. Vêem,
portanto, a necessidade de preservação desses bens em função do reconhecimento do seu
valor, principalmente histórico e de suporte de memórias.
Outra consideração importante refere-se às falas dos sujeitos entrevistados que não
pensam numa cidade paralisada. Vêem Caxias como uma cidade que cresce, ascende
economicamente, se verticaliza. O que não significa que precise destruir o seu acervo
patrimonial construído. Dessa forma, a necessidade de manter a identidade cultural da cidade
com medidas preservacionistas, seria garantir o equilíbrio entre o crescimento e o progresso
sem desaparecer o passado e a memória da sociedade no processo de desenvolvimento da
cidade.
Não obstante a essas considerações, parcela significativa dos cidadãos(ãs) caxienses,
sobretudo a mais jovem, fica na expectativa de que o poder público atue no que se refere à
elaborar (e colocar em prática) políticas patrimoniais. Frente a isso, corrobora-se o
pressuposto inicial dessa investigação, sobre a falta de reação da população à destruição do
seu acervo histórico-cultural edificado, visto que apesar da existência de uma política de
preservação do patrimônio edificado, este portador de sentidos e significações históricas e
simbólicas, a implementação de políticas patrimoniais deve partir dos anseios da comunidade
e ser norteada pela delimitação democrática dos bens reconhecidos como merecedores de
preservação, o que significa a participação da sociedade na reivindicação de políticas
patrimoniais para a cidade.
A partir da avaliação dos principais resultados encontrados, considera-se que os
objetivos da pesquisa foram alcançados, pois foi possível verificar as matrizes intelectuais que
orientaram os critérios de seleção para tombamento do centro histórico de Caxias e identificar
os elementos que estruturam o imaginário dos sujeitos pesquisados, referentes aos símbolos,
às memórias e aos referenciais de identidade e assim apontar quais os sentidos e os
154
REFERÊNCIAS
APÊNDICE
BARATA, João Afonso. Maranhense de Caxias, 81 anos, ex-deputado estadual. Afinado com
as discussões sobre a preservação do patrimônio edificado da cidade. Entrevista realizada em
novembro de 2008.
COSTA, Maria Bertolina. Maranhense de São Bento, reside em Caxias há mais de 20 anos.
Atualmente é Diretora do Memorial da Balaiada. Licenciada em História pela Universidade
Federal do Piauí – UFPI –, Especialista em História do Brasil. Atua principalmente nos temas:
memória, tradição oral, balaiada e patrimônio cultural imaterial. Mestranda em Políticas
Públicas pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Entrevista realizada em outubro de
2008.
LEITE FILHO, Deusdédit Carneiro. Natural de São Luís, Estado do Maranhão, arqueólogo,
Diretor do Centro de Pesquisa Natural e Arqueologia do Maranhão. Fez parte da equipe que
esteve em Caxias para realizar trabalho de campo com o objetivo de reconhecimento dos
pontos de interesse na cidade para demarcação dos limites da área a ser tombada, em 1990.
Entrevista realizada em setembro de 2008, em São Luís-MA.
LIMA FILHO, Arthur Almada. Caxiense, 80 anos, magistrado e professor aposentado, desde
1953 exerceu cargo de Juiz de Direito, Promotor e Desembargador em várias Comarcas do
Estado do Maranhão, fundador a atual Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de
Caxias (IHGC). Entrevista realizada em novembro de 2008.
LOBÃO, Patrícia Silva. Caxiense, 38 anos, médica. De família tradicional na cidade, fez
curso de Medicina em outro Estado. Mora em um casarão histórico, construído em 1873. O
imóvel recebeu revestimento de azulejo português. Está localizado na Praça da Matriz e hoje
sofreu inúmeras transformações, sobretudo na parte externa. Entrevista realizada em janeiro
de 2009.
OLIVEIRA [A], Luís Domingues [In memoriam]. Aposentado pela Estrada de Ferro, 102
anos. Esta entrevista foi realizada em 2001, para o trabalho de graduação em Licenciatura
Plena em História, pelo Cesc-Uema, com o título O patrimônio arquitetônico e artístico do
centro histórico de Caxias-MA.
OLIVEIRA [B], Walquíria Araújo Fernandes de. Caxiense, graduada em Letras pela UFBA;
especialista em Língua e Literatura Anglo-americana na UFPB; mestrado em Letras na área
de concentração Língua Inglesa, na UFPB. Exerceu diversos cargos públicos: Secretária
Municipal de Educação, Diretora Regional da Secretaria de Educação Estadual de Caxias;
Diretora da Escola Monsenhor Frederico Chaves; Chefe de Departamento do Curso de Letras
(CESC/UEMA); Diretora do Curso de Letras; Diretora Geral do CESC-UEMA, atualmente é
Secretária de Cultura do Município (2007-...). Entrevista realizada em outubro de 2008.
PIRES, Alan Jorge Pereira. Alan Jorge Pereira Pires, Natural de São Luís-MA, Servidor
Público Estadual, Engenheiro Civil pela UEMA, professor licenciado em Construção Civil
pelo CEFET-MA, especialista em gestão de cidades pela UEMA, exerceu os cargos de: chefe
da seção de obras – DPHAP-MA, diretor da divisão de conservação e restauração do DPHAP-
MA, diretor do Departamento do Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico do Maranhão,
atualmente é Superintendente Estadual do Patrimônio Cultural da Secretaria de Estado da
Cultura do Governo do Estado do Maranhão. Entrevista realizada em setembro de 2008, em
São Luís-MA.
QUEIROGA, Géssica Amaral C. de. Caxiense, 16 anos, estudante do ensino médio.
Entrevista realizada em janeiro de 2008.
SILVA[B], Jusivan Alves da. Caxiense, 31 anos, com nível de escolaridade de Ensino Médio,
exerce a função de Auxiliar Operacional em uma Escola localizada no centro histórico da
cidade. Entrevista realizada em janeiro de 2009.
166
SILVA[C], Thays Torres da. Natural de Caxias, 18 anos, cursa o 3º ano do Ensino Médio. É
usuária do centro histórico, para onde se desloca todos para ir à Escola, ou fazer comprar e se
divertir. Entrevista realizada em janeiro de 2009.
SILVA NETO, Adonato Teles da. Caxiense, 16 anos, estudante do 3º ano do Ensino Médio.
Entrevista realizada em janeiro de 2008.
SOUSA, Paulo. Nasceu em Caxias, em 1967. Possui o ensino médio; trabalha como radialista
e repórter cinematográfico; considera-se leitor dadaísta e crítico na arte de julgar algumas
produções literárias com comentários, às vezes com apreciação antagonista. Entrevista
realizada em dezembro de 2008.
SOUZA, Iriomar José Ramos. Caxiense, 60 anos, nível médio de ensino, trabalhador rural,
filiado ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Caxias, co-fundador do PT em Caxias,
contribuiu na fundação da Central Única dos Trabalhadores em Caxias. Sua formação
militante teve origem no movimento da Igreja. Atualmente é assessor do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Gonçalves Dias-MA. Entrevista realizada em dezembro de 2008.
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