Você está na página 1de 6

Madalena Vitorino

A linguagem secreta do corpo


Era uma vez uma menina que gostava de se cansar. Tinha um prazer intenso em
sentir os músculos, em nadar, em correr, em saltar, em passar tardes inteiras a
dançar na discoteca. A menina, só por acaso, quase no fim da adolescência,
descobriu que há uma linguagem secreta do corpo. Descobriu que o corpo não
mente mas que, por vezes, nós e ele, não queremos exactamente a mesma coisa.
Descobriu que o nosso corpo sabe tudo a nosso respeito – mostrando aos outros
aquilo que somos mesmo quando tentamos escondê-lo - embora, por vezes, nós
saibamos muito pouco a respeito dele. Descobriu tudo isto na dança e daí para cá
gosta de o ensinar. Hoje, aos 47 anos, a menina (ainda tem gestos e olhar e voz de
menina) partilha tudo o que aprendeu, tanto como coreógrafa como a escolher os
espectáculos do Centro de Pedagogia e Animação do Centro Cultural de Belém.
Não sabe estar quieta. Do que é ela gosta é de movimento.

O que é que há de comum entre as duas actividades que exerce, a de coreógrafa e a


de programadora cultural?

São a mesma coisa. Trata-se de uma grande dança dentro da qual eu salto, giro, caio,
levanto-me, deito-me, escorrego e voo.

A programadora cultural, tal como a coreógrafa, põe gente em movimento?

Sim, sempre gostei imenso dos coros de movimento. Estudei na escola expressionista
alemã e, no início do século, havia a ideia de construir movimento através de grandes
grupos de pessoas que se movimentavam como as ondas do mar. Havia um retorno aos
elementos naturais. Essa ideia de coro, quando a aprendi, agradou-me imenso.

E isso acontece não só quando põe bailarinos em palco mas também quando põe
um grupo de pessoas a ir a determinado espectáculo, a determinada hora, a
determinado dia?

A dança, muitas vezes, é pensada como qualquer coisa que acontece só nas pernas dos
bailarinos. A dança pode estar dentro da nossa cabeça. O movimento que vai de mim
para si ou que vai num pedido que eu faço a uma companhia de artistas para
conceberem um espectáculo para determinada cidade é um movimento que eu considero
uma grande coreografia. São gestos, são movimentos, são pensamentos que põem
materiais em equação, construindo-se para chegar a um objectivo. Esse movimento para
mim é que é a verdadeira dança.

No seu trabalho alia o pensamento e a acção, o movimento e a reflexão. O corpo


pensa?

Às vezes o corpo tem ideias diferentes de nós - é uma frase, um pensamento de Roland
Barthes. Nem sempre estamos em sintonia. A dança que eu estudei dirige-se a uma
sabedoria que tem a ver com o estudo analítico do movimento de cada um. É muito
importante, para cada pessoa, saber o movimento que gosta de fazer e fazê-lo bem.
Para se sentir à-vontade nesse movimento?

Exacto. E para não tentar ser outro. Não tentar ter os movimentos de outros, porque lhe
parecem elegantes ou bonitos ou com status. É muito importante compreendermos
quem é que nós somos em termos de movimento: como é que nos sentamos, como é que
nos sentimos bem a andar, que tipo de sapatos devemos usar.

Já que fala de sapatos: é como a relação que temos de estabelecer com aquilo que
vestimos?

Também. Porque a leitura do nosso corpo faz-se através dessa segunda pele que são as
roupas. Nesse sentido, aulas de dança são muito importantes para toda a gente. Porque
nos dão a conhecer uma parte de nós que na educação tradicional das sociedades
ocidentais não é feita. Nós estudamos sempre do pescoço para cima. Aquilo que é
importante é saber escrever, saber ler, saber fazer contas muito bem, ter um raciocínio
cognitivo desenvolvido. Mas eu acho que o conhecimento empírico do corpo é
importantíssimo.

Pode-se falar de uma outra forma de inteligência, a do movimento?

Sim, absolutamente. O corpo tem a sua inteligência. E, quando nós o ouvimos e lhe
damos oportunidade, sabe estar e ajudar-nos. O corpo pode ser nosso amigo se
aprendermos a não estar contra ele, a não estar num jogo de competições. Muitas vezes,
nós estamos em competição com o nosso próprio corpo. Ele não responde e nós ficamos
zangados.

O coreógrafo, nessa linha de raciocínio, seria alguém que escreve não com palavras
mas com corpos. Pode dizer-se assim?

Sim. Escreve o movimento no espaço. No tempo e no espaço. Aquilo que se faz, hoje
em dia, no século XXI, e se fez em toda a dança contemporânea do século XX, é um
respeito muito grande pelo intérprete. O coreógrafo vê quem é que tem à sua frente,
para trabalhar, e quem é que tem em termos de personalidade, de história pessoal. O
caso da Pina Bausch, por exemplo, é um caso fantástico, em que ela agarra em cada
bailarino e tira dele o máximo. Porque o respeita. É isso que vai um pouco contra a ideia
de dança do século XIX. Há uma ideia de respeito e de desenvolvimento do indivíduo,
do intérprete, a partir daquilo que ele é.

Porque temos, todos, uma personalidade própria também no nosso movimento?

Sim. Absolutamente. O movimento tem uma escrita própria que conta com uma cor,
com uma tonalidade. E é isso que nos faz dizer: olha, que mulher tão elegante! ou que
homem tão atraente! ou que pessoa monstruosa! Portanto, o movimento tem uma
qualidade, tem um sabor, tem um tom.

Já a ouvi dizer, até, que os corpos das pessoas estão cheios de mensagens. O que é
que eles, normalmente, dizem delas (eles, os corpos; delas, as pessoas)?
Eu acho que o corpo fala imenso. Sessenta por cento da comunicação é feita não
verbalmente. É a maneira como os braços se abrem ou se fecham...

Sessenta por cento: essa percentagem vem de onde?

Está definida estatisticamente e os estudiosos da análise do movimento dizem que


sessenta por cento da comunicação que vai entre mim e si se faz através dos nossos
corpos.

Mais de metade disto que nós estamos aqui a dizer um ao outro não está a ser
recebido por quem estiver a ler esta entrevista.

É verdade. Desculpem lá, senhores leitores, mas é assim.

Portanto, a maioria das pessoas provavelmente comunica, muitas vezes, sem se dar
conta das mensagens que está a enviar aos outros.

Sim. Porque o corpo não mente. Isso é outra coisa também fascinante. O corpo cora, por
exemplo. Esse é um exemplo clássico. A pessoa está inquieta ou desconfortável e cora.
No entanto, não quer estar a dizer aos outros como é que se sente. O corpo, nesse
sentido, pode desmentir-nos e é transparente e isso, a mim, agrada-me muito.

Porque é que não há essa consciência: por ser impossível termos a consciência
plena dessas mensagens que o corpo emite ou porque não soubemos ainda ler-nos e
compreender-nos a nós próprios?

Isso é uma técnica. Há uma técnica de análise de movimento que foi desenvolvida no
princípio do século passado na Europa central e pode-se mesmo, até, chegar à situação
de analisar a personalidade de alguém através do seu próprio movimento. É uma técnica
analítica – e há várias – que desenha pareceres sobre a personalidade e o modo que as
pessoas têm de estar face a determinada situação através do seu desenho coreográfico.

O que lhe queria perguntar é se esse auto-conhecimento se foi perdendo com o


tempo ou se é qualquer coisa que não faz parte do nosso conhecimento natural, o
conhecimento daquilo que somos enquanto seres comunicantes pelo corpo.

Acho que há duas coisas. Uma, são os clichés da imagem corporal que a sociedade foi
desenvolvendo, que o mercado capitalista nos impõe: o que é que é ser bonito, ser
atraente, ser bem sucedido. Outra, é que esses clichés cegam-nos, não nos deixam ver
outras coisas que, se estivéssemos mais disponíveis, víamos. Aquilo que a mim me
parece que é importante fazer – e por isso também me interessa tanto o contacto com as
pessoas, nas aulas que dou, com as crianças, com os grupos com quem contacto – é
lembrar-lhes que afinal o código corporal é muito simples. É feito de temparaturas,
aquecimentos e arrefecimentos que se percebem e se pressentem muito bem. Nós não
estamos é disponíveis para o fazer porque temos medo do corpo.

Temos medo do corpo?

Eu acho que sim. Acho que é, mais uma vez, por causa dos clichés. Por exemplo, a
questão da sexualidade e do relacionamento entre pesssoas, com códigos de divisão de
espaços pessoais: eu não me posso aproximar demasiado de si porque isso pode ser
perigoso, pode ler em mim uma intenção que pode tornar-se perigosa. Portanto, esses
códigos que estão, de alguma forma, impressos na sociedade não nos deixam ver,
através de uma sinceridade maior que o corpo naturalmente tem. E as crianças têm-no.

Essa relação com o corpo também tem épocas, também é codificada de forma
diferente consoante a época?

Sim, sim. Não é só cultural, é também epocal, evidentemente.

Se nós olharmos para um filme de há cem anos, as pessoas...

Estavam de outra maneira. Comportavam-se de outra maneira.

A dança reflecte essa mudança dos códigos do movimento?

Sim. Acho que, hoje em dia, há coreógrafos e há, sobretudo, criadores - porque hoje as
artes misturam-se e fundem-se umas nas outras – com visões sobre aquilo que têm para
dizer, utilizando o corpo como medium, como meio de comunicação, que nos lançam
num sentido de contemporaneidade. Ou seja, o que é que o corpo hoje, no século XXI,
pode dizer.

Isto era para lhe perguntar se se pode encarar a dança contemporânea como uma
forma de investigação, como uma espécie de laboratório do movimento.

Ah, sim. Absolutamente. Acho que atravessámos uma época em que os coreógrafos
queriam esquecer-se da própria dança – quase que esvaziavam os seus espectáculos de
dança e de movimento – mas penso que já ultrapassámos isso e estamos numa outra fase
de manipulação do corpo e do movimento para dizer as coisas que os artistas, hoje,
precisam de dizer sobre os enigmas da contemporaneidade.

A dança, para si, foi uma descoberta tardia. O que é que teria sido diferente se se
tivesse encontrado mais cedo com a dança?

Não sei. Acho que me encontrei desde muito cedo com a dança, neste sentido lato.
Laban, o mestre cuja filosofia de movimento eu estudei, diz que a dança é movimento
humano transfigurado. Não é, portanto, um conjunto de passos ou saltos tecnicamente
bem executados mas é o meu, o seu movimento, o movimento de toda a gente.

O nosso movimento de todos os dias?

Exactamente. O movimento de todas as pessoas olhado e trabalhado de uma


determinada maneira. Passado para a dimensão estética.

O que é que torna um gesto quotidiano, corrente - eu levantar este braço e acenar
com a mão, por exemplo - um gesto de dança?

Depende do contexto. Acho que é o contexto que transfigura o movimento. Não é o


movimento, ele próprio. E isso é uma descoberta do século XX. Portanto, não é a
estilização.
Na dança clássica, havia aqueles códigos todos.

Não é necessariamente a estilização do movimento que o transforma num movimento


de dança. É antes o contexto em que ele aparece. É o enquadramento em que ele surge.
Quando a pessoa sabe que o Carlos já não é o Carlos mas é um homem que acena não
para mim mas para a humanidade.

Ter-me-ei tornado já em personagem para que isso aconteça?

Sim, exactamente. É a passagem da pessoa para a persona, para um outro que se


universaliza. É também isso que acontece na dança. As pessoas deixam de ser a Maria, a
Rita e o Manuel para passarem a ser as pessoas que se espelham no próprio público. O
intérprete, num trabalho interessante, espelha-se e devolve imagens ao próprio público
para que ele se possa rever, identificar ou até fugir do próprio espectáculo.

E já tinha descoberto isso, em si, de alguma forma, antes de chegar à dança?

Não. Até chegar à dança eu tinha um prazer enorme em movimentar-me. Fazia desporto,
ginástica, nadava, corria. Lembro-me, por exemplo, de ir para a escola. Havia cerca de
um quilómetro e meio, no Campo Grande, de um terreno plano que era preciso
palmilhar. E esse palmilhar dava-me prazer. Lembro-me perfeitamente de dar os passos
e dizer: estou mais perto e estou mais longe. Estava mais longe da paragem do autocarro
e mais perto da escola. Essa dimansão de transporte do meu corpo naquele espaço era
algo em que eu sentia prazer quando era miúda.

Isso tem a ver com uma coisa que já a ouvi dizer: a ideia de que quem é da dança
gosta do cansaço, gosta de se cansar.

Ah, sim, sim.

Já teria a ver com isso, esse prazer de infância?

Sim, talvez. Ali, era a ideia de sentir os músculos das pernas a pisar o chão e a avançar,
a comer terreno. A comer o espaço.

Como é que aconteceu esse acaso da descoberta da dança já numa versão artística?

Eu sempre fiz ginástica, no Lisboa Ginásio e a minha professora de ginástica rítmica, a


dada altura, quando eu tinha dezasseis anos, convidou-me a ir fazer um curso de dança
moderna, chamava-se assim.

O que é que descobriu nesse curso que lhe mudou a vida?

Descobri uma coisa extraordinária: a ideia de que o corpo quando se movimenta pode
contar uma história. Pode dizer uma palavra sem ser com a boca. Pode contar de uma
atmosfera ou de um estado de espírito. E nessa descoberta de que o corpo pode dizer,
pode transportar consigo um significado ou um grande conjunto de significados, foi
quando eu percebi o que era a dança, de facto.
Dito isto, numa frase, o que é dançar, Madalena Vitorino?

Dançar é respirar com o sangue, talvez. É pôr o sangue num tal movimento que se
respira até bastante longe.

Madalena Vitorino, coreógrafa e programadora cultural, tem 47 anos. Estudou dança


contemporânea na escola de Martha Graham, em Londres, e formou-se também na
capital inglesa, no Laban Center. É, desde 1996, a responsável pelo Centro de
Pedagogia e Animação do Centro Cultural de Belém. Depois do festival Percursos, que
dirigiu em parceria com Giacomo Scalisi nos últimos três anos, prepara agora a nova
temporada de espectáculos, para todas as idades, no CCB.

Você também pode gostar