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São a mesma coisa. Trata-se de uma grande dança dentro da qual eu salto, giro, caio,
levanto-me, deito-me, escorrego e voo.
Sim, sempre gostei imenso dos coros de movimento. Estudei na escola expressionista
alemã e, no início do século, havia a ideia de construir movimento através de grandes
grupos de pessoas que se movimentavam como as ondas do mar. Havia um retorno aos
elementos naturais. Essa ideia de coro, quando a aprendi, agradou-me imenso.
E isso acontece não só quando põe bailarinos em palco mas também quando põe
um grupo de pessoas a ir a determinado espectáculo, a determinada hora, a
determinado dia?
A dança, muitas vezes, é pensada como qualquer coisa que acontece só nas pernas dos
bailarinos. A dança pode estar dentro da nossa cabeça. O movimento que vai de mim
para si ou que vai num pedido que eu faço a uma companhia de artistas para
conceberem um espectáculo para determinada cidade é um movimento que eu considero
uma grande coreografia. São gestos, são movimentos, são pensamentos que põem
materiais em equação, construindo-se para chegar a um objectivo. Esse movimento para
mim é que é a verdadeira dança.
Às vezes o corpo tem ideias diferentes de nós - é uma frase, um pensamento de Roland
Barthes. Nem sempre estamos em sintonia. A dança que eu estudei dirige-se a uma
sabedoria que tem a ver com o estudo analítico do movimento de cada um. É muito
importante, para cada pessoa, saber o movimento que gosta de fazer e fazê-lo bem.
Para se sentir à-vontade nesse movimento?
Exacto. E para não tentar ser outro. Não tentar ter os movimentos de outros, porque lhe
parecem elegantes ou bonitos ou com status. É muito importante compreendermos
quem é que nós somos em termos de movimento: como é que nos sentamos, como é que
nos sentimos bem a andar, que tipo de sapatos devemos usar.
Já que fala de sapatos: é como a relação que temos de estabelecer com aquilo que
vestimos?
Também. Porque a leitura do nosso corpo faz-se através dessa segunda pele que são as
roupas. Nesse sentido, aulas de dança são muito importantes para toda a gente. Porque
nos dão a conhecer uma parte de nós que na educação tradicional das sociedades
ocidentais não é feita. Nós estudamos sempre do pescoço para cima. Aquilo que é
importante é saber escrever, saber ler, saber fazer contas muito bem, ter um raciocínio
cognitivo desenvolvido. Mas eu acho que o conhecimento empírico do corpo é
importantíssimo.
Sim, absolutamente. O corpo tem a sua inteligência. E, quando nós o ouvimos e lhe
damos oportunidade, sabe estar e ajudar-nos. O corpo pode ser nosso amigo se
aprendermos a não estar contra ele, a não estar num jogo de competições. Muitas vezes,
nós estamos em competição com o nosso próprio corpo. Ele não responde e nós ficamos
zangados.
O coreógrafo, nessa linha de raciocínio, seria alguém que escreve não com palavras
mas com corpos. Pode dizer-se assim?
Sim. Escreve o movimento no espaço. No tempo e no espaço. Aquilo que se faz, hoje
em dia, no século XXI, e se fez em toda a dança contemporânea do século XX, é um
respeito muito grande pelo intérprete. O coreógrafo vê quem é que tem à sua frente,
para trabalhar, e quem é que tem em termos de personalidade, de história pessoal. O
caso da Pina Bausch, por exemplo, é um caso fantástico, em que ela agarra em cada
bailarino e tira dele o máximo. Porque o respeita. É isso que vai um pouco contra a ideia
de dança do século XIX. Há uma ideia de respeito e de desenvolvimento do indivíduo,
do intérprete, a partir daquilo que ele é.
Sim. Absolutamente. O movimento tem uma escrita própria que conta com uma cor,
com uma tonalidade. E é isso que nos faz dizer: olha, que mulher tão elegante! ou que
homem tão atraente! ou que pessoa monstruosa! Portanto, o movimento tem uma
qualidade, tem um sabor, tem um tom.
Já a ouvi dizer, até, que os corpos das pessoas estão cheios de mensagens. O que é
que eles, normalmente, dizem delas (eles, os corpos; delas, as pessoas)?
Eu acho que o corpo fala imenso. Sessenta por cento da comunicação é feita não
verbalmente. É a maneira como os braços se abrem ou se fecham...
Mais de metade disto que nós estamos aqui a dizer um ao outro não está a ser
recebido por quem estiver a ler esta entrevista.
Portanto, a maioria das pessoas provavelmente comunica, muitas vezes, sem se dar
conta das mensagens que está a enviar aos outros.
Sim. Porque o corpo não mente. Isso é outra coisa também fascinante. O corpo cora, por
exemplo. Esse é um exemplo clássico. A pessoa está inquieta ou desconfortável e cora.
No entanto, não quer estar a dizer aos outros como é que se sente. O corpo, nesse
sentido, pode desmentir-nos e é transparente e isso, a mim, agrada-me muito.
Porque é que não há essa consciência: por ser impossível termos a consciência
plena dessas mensagens que o corpo emite ou porque não soubemos ainda ler-nos e
compreender-nos a nós próprios?
Isso é uma técnica. Há uma técnica de análise de movimento que foi desenvolvida no
princípio do século passado na Europa central e pode-se mesmo, até, chegar à situação
de analisar a personalidade de alguém através do seu próprio movimento. É uma técnica
analítica – e há várias – que desenha pareceres sobre a personalidade e o modo que as
pessoas têm de estar face a determinada situação através do seu desenho coreográfico.
Acho que há duas coisas. Uma, são os clichés da imagem corporal que a sociedade foi
desenvolvendo, que o mercado capitalista nos impõe: o que é que é ser bonito, ser
atraente, ser bem sucedido. Outra, é que esses clichés cegam-nos, não nos deixam ver
outras coisas que, se estivéssemos mais disponíveis, víamos. Aquilo que a mim me
parece que é importante fazer – e por isso também me interessa tanto o contacto com as
pessoas, nas aulas que dou, com as crianças, com os grupos com quem contacto – é
lembrar-lhes que afinal o código corporal é muito simples. É feito de temparaturas,
aquecimentos e arrefecimentos que se percebem e se pressentem muito bem. Nós não
estamos é disponíveis para o fazer porque temos medo do corpo.
Eu acho que sim. Acho que é, mais uma vez, por causa dos clichés. Por exemplo, a
questão da sexualidade e do relacionamento entre pesssoas, com códigos de divisão de
espaços pessoais: eu não me posso aproximar demasiado de si porque isso pode ser
perigoso, pode ler em mim uma intenção que pode tornar-se perigosa. Portanto, esses
códigos que estão, de alguma forma, impressos na sociedade não nos deixam ver,
através de uma sinceridade maior que o corpo naturalmente tem. E as crianças têm-no.
Essa relação com o corpo também tem épocas, também é codificada de forma
diferente consoante a época?
Sim. Acho que, hoje em dia, há coreógrafos e há, sobretudo, criadores - porque hoje as
artes misturam-se e fundem-se umas nas outras – com visões sobre aquilo que têm para
dizer, utilizando o corpo como medium, como meio de comunicação, que nos lançam
num sentido de contemporaneidade. Ou seja, o que é que o corpo hoje, no século XXI,
pode dizer.
Isto era para lhe perguntar se se pode encarar a dança contemporânea como uma
forma de investigação, como uma espécie de laboratório do movimento.
Ah, sim. Absolutamente. Acho que atravessámos uma época em que os coreógrafos
queriam esquecer-se da própria dança – quase que esvaziavam os seus espectáculos de
dança e de movimento – mas penso que já ultrapassámos isso e estamos numa outra fase
de manipulação do corpo e do movimento para dizer as coisas que os artistas, hoje,
precisam de dizer sobre os enigmas da contemporaneidade.
A dança, para si, foi uma descoberta tardia. O que é que teria sido diferente se se
tivesse encontrado mais cedo com a dança?
Não sei. Acho que me encontrei desde muito cedo com a dança, neste sentido lato.
Laban, o mestre cuja filosofia de movimento eu estudei, diz que a dança é movimento
humano transfigurado. Não é, portanto, um conjunto de passos ou saltos tecnicamente
bem executados mas é o meu, o seu movimento, o movimento de toda a gente.
O que é que torna um gesto quotidiano, corrente - eu levantar este braço e acenar
com a mão, por exemplo - um gesto de dança?
Não. Até chegar à dança eu tinha um prazer enorme em movimentar-me. Fazia desporto,
ginástica, nadava, corria. Lembro-me, por exemplo, de ir para a escola. Havia cerca de
um quilómetro e meio, no Campo Grande, de um terreno plano que era preciso
palmilhar. E esse palmilhar dava-me prazer. Lembro-me perfeitamente de dar os passos
e dizer: estou mais perto e estou mais longe. Estava mais longe da paragem do autocarro
e mais perto da escola. Essa dimansão de transporte do meu corpo naquele espaço era
algo em que eu sentia prazer quando era miúda.
Isso tem a ver com uma coisa que já a ouvi dizer: a ideia de que quem é da dança
gosta do cansaço, gosta de se cansar.
Sim, talvez. Ali, era a ideia de sentir os músculos das pernas a pisar o chão e a avançar,
a comer terreno. A comer o espaço.
Como é que aconteceu esse acaso da descoberta da dança já numa versão artística?
Descobri uma coisa extraordinária: a ideia de que o corpo quando se movimenta pode
contar uma história. Pode dizer uma palavra sem ser com a boca. Pode contar de uma
atmosfera ou de um estado de espírito. E nessa descoberta de que o corpo pode dizer,
pode transportar consigo um significado ou um grande conjunto de significados, foi
quando eu percebi o que era a dança, de facto.
Dito isto, numa frase, o que é dançar, Madalena Vitorino?
Dançar é respirar com o sangue, talvez. É pôr o sangue num tal movimento que se
respira até bastante longe.