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VASCO NUNO DA SILVA OLIVEIRA

VALORES, ÉTICA E JUSTIÇA NA


ADMINISTRAÇÃO EDUCACIONAL
O DESAFIO DA ESCOLA NA BUSCA DO ROSTO

Num mundo complexo e problemático, como aquele em que vivemos, o futuro deixou de brilhar e o horizonte
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deixou de ser tão sorridente quanto as quimeras que as sociedades capitalistas e neo-liberais quiseram fazer crer.
“O futuro deixou de ter um rosto sorridente, ou mais do que isso, deixou de ter rosto, surgindo por vezes
ameaçador na sua irredutível e inquietante alteridade”1. Quando a nossa realidade é assaltada por muitas das
inquietações que colocam em causa o sentido da vida e a emergência de um novo paradigma do humano, é na
escola que confluem, habitualmente, todas as críticas, mas, ao mesmo tempo, todas as esperanças de uma nova
geração, de uma nova mentalidade, de novos desafios. No fundo, a esperança de uma nova quimera que virá
transformar a nossa realidade. Auguram-se “novos céus e novas terras”, onde o humano possa reemergir como
o centro do universo, e coloca-se na Escola a certeza e a exigência dessa nova construção. Esta tarefa
transforma-se, assim, num sufoco e pressão colocados sobre a Escola, uma trama de vontades, expectativas e
interesses que se cruzam no tecido de uma teia complexa de relações. A Escola aparece, assim, como um
terrenos onde a inquietude, a alteridade, os rostos, os olhares, os brilhos se intercruzam, suscitando
questionamento, confronto e discussão de onde se espera surja a luz! A educação constitui-se como a Grande
Esperança, a Grande Utopia do ser humano, de que nos fala Levinas, que a Escola persegue numa função
radicalizadora de busca e construção de um sentido para a vida. A relação educativa é a trama de que falávamos
anteriormente, onde o humano interage e partilha angústias, esperanças, dificuldades, diferenças, suscitando em
cada um dos agentes, ou “interagentes”2, Esta trama exige, naturalmente, que a Escola seja capaz de construir
uma base comum de “com-vivência” da alteridade, desta permanente relação com o outro.

A democratização e universalização do ensino, trouxeram, à Escola, uma dos seus maiores desafios e das suas
mais árduas tarefas: ser capaz de integrar e articular uma multiplicidades de representações sociais, culturais,
étnicas e outras, levadas todas a conviver, no espaço escolar, no mesmo campo, na mesma arena, produzindo
aí o que um “arco-íris” cultural que está na base da complexidade social. Complexidade que nunca deveria ser
encarada como um problema, mas antes como um desafio estimulante e enriquecedor de todos os interagentes
educativos, porque, como nos lembra Galichet, “as crianças encerradas em escolas de uma só classe, de uma
só cultura, estão privadas de cidadania, quer dizer da dimensão central dessa cidadania que é a confrontação
com a alteridade social, cultural ou intelectual de colegas que são, no entanto, seus concidadãos” 3. Questões
como a da integração social, da hospitalidade, da inclusão numa sociedade em mudança constante e profunda,
nomeadamente nos campos da ciência (com a fácil tentação do endeusamento desta) e da moral, preocupações
com o sentido da vida e da existência emergem, inevitavelmente, desta alteridade cultural em ebulição no contexto
escolar. Daí a absoluta urgência da Escola ser capaz de um projecto que promova a “com-vivência", a relação,

1 Baptista, Isabel (1998), Ética e educação. Estatuto ético da relação educativa. Porto: Universidade Portucalense Infante D. Henrique
2 Esta expressão pretende sublinhar a relação interpessoal que se estabelece, necessariamente, na relação educativa. Porque relação exige a
interacção, e daí atribua aos actores a designação de “interagentes”.
3 Galichet (2005), L’école, lieu de citoyenneté. Paris: ESF, também citado por Lúcio, Laborinho (2008), Educação, Arte e Cidadania, Lisboa: Temas

&Letras
entre sujeitos oriundos de realidades sociais, económicas, étnicas, culturais, religiosas profundamente distintas.
Estas já não poderão mais ser vistas como “disfunções” a corrigir e a normalizar, mas “mais-valias” a integrar. E
para isso, terá de integrar na sua acção educativa os valores, enquanto ruptura com a indiferença, enquanto
coragem de decidir, enquanto ousadia, da qual a escola não poderá, jamais, abdicar.
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Por isso precisa de um Projectivo Educativo forte, alicerçado num conjunto de valores universalmente aceites,
ousados e corajosos, que não sejam meros reprodutores de uma mera tolerância covarde pela diferença, mas de
respeito pelas diferenças, pelos “rostos”, usando uma vez mais a expressão de Levinas, e que seja capaz de em
vez de anular, integre, articule e construa, fazendo crescer. Um projecto educativo que promova e reforce a
dimensão ética do homem que aproxima o homem do outro homem, tentando desenvolver as condições
educativas que promovem a sua emancipação. Assim, o Projecto Educativo de uma escola, deverá ser, antes de
tudo, um projecto ético, que expresse esta vocação ontológica da própria escola. Um projecto que seja capaz de
fazer emergir a relação educativa como, absolutamente, fundacional, como experiência onde começa toda a
experiência da relação com a surpresa, a diferença, o rosto do outro. Como dizia D. António Couto 4 , numa
conferência realizada, no Seminário da Boa Nova, em V.N. de Gaia, “perante o outro, teremos de ser capazes de
nos maravilhar, não no que ele tem de igual, mas precisamente, pelo que de diferente ele comporta e urge
reaprendermos a maravilhar-nos perante os outros”. Esta perspectiva poética, que pode até parecer um pouco
ingénua, penso que ilustra bem o papel importante que a escola tem de, como espaço de crescimento, educar
para a relação, para o respeito pelo outro, para a solidariedade, para a diferença.

Desta premissa, surge, imediatamente, a necessidade inalienável, de educar para os valores, a justiça, a
cidadania, no fundo para uma emergência da ética como base fundamental de diálogo com o diferente, o outro,
o “alter”. Mais do que nunca, a educação para esta nova dimensão, é um dos desafios mais difíceis, mas ao
mesmo tempo mais estimulante, da Escola. Fazer a interacção dos diferentes mundos, de que nos fala Estevão
(2010), citando Boltanzki& Thévenot, “organizar compromissos entre os vários mundos que aí se constituem e se
corporizam formas de bem comum (…) o mundo da inspiração, o mundo da opinião, o mundo doméstico, o mundo
cívico, o mundo mercantil e o mundo industrial”. Surge, como dizia, a necessidade de apostar em estratégias
educativas, que façam emergir esta capacidade de compromisso que, em minha opinião se estabelece com a
cultura do diálogo. O diálogo como a chave para a articulação, para a promoção do frente a frente dos diferentes
rostos, no dizer de Levinas, ou dos diferentes mundos, segundo Estêvão. O diálogo como expressão da verdade
e justiça, enquanto acolhimento de frente no discurso, não secundarizado a uma dimensão processual, mas
destacado como emancipador do outro. “Quando reduzido a uma dimensão processual ou a uma prática de
interpelação retórica, o diálogo serve mais para manipular e seduzir e não para educar” 5. Nesta linha, Isabel
Baptista (1998), cita Olivier Reboul, para se referir que “um ensino verdadeiro tem por fim, seja qual for o seu
conteúdo, formar adultos: seres capazes de assumir a sua responsabilidade e os seus compromissos, de pensar
por si próprios, de respeitar os factos mesmo quando estes contradizem os seus desejos e de escutar os outros,

4 D: António Couto é Bispo Lamego e professor de Sagrada Escritura na Universidade Católica Portuguesa.
5Baptista, Isabel (1998), Ética e educação. Estatuto ético da relação educativa, p. 81. Porto: Universidade Portucalense Infante D. Henrique
mesmo quando eles nos contradizem” (1977, p.7). Por isso quando numa escola as práticas de administração e
de gestão, de coordenação pedagógica e/ou disciplinar, de resolução de conflitos não assentam nesta prática do
diálogo puro, do respeito pelo “alter”, do cuidado com o outro, a escola falha numa das suas dimensões mais
importantes: a Pessoa.
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Este é um desafio imenso! Nas nossas prática quotidianas quantas vezes nos centramos no mero cumprimento
funcional dos regulamentos, dos conteúdos, das práticas instaladas, dos pré-conceitos institucionalizados para,
em nome da defesa do interesse dos alunos (expressão que hoje é esvaziada de sentido, reduzida a uma mera
gestão de clientelas que importa seduzir!) nos esquecemos precisamente DO ALUNO, daquele em concreto,
deste que temos a nossa frente e que tem um nome, um rosto, um contexto, uma vida por detrás de si. Olhá-lo
como quem se olha a si próprio, na certeza de que não o é, pois que diferente e totalmente outro preciso que o
acolha assim mesmo. Mesmo na repreensão das suas atitudes, dos seus atos, importa perceber que temos ali
na frente alguém que É e no SER emerge como alguém muito especial que precisa que dele cuide, que precisa
que o ajude a crescer como ser inteligente e livre.

O desafio é, portanto, fazer emergir adultos livres, capazes de agir e promover uma verdadeira cultura
democrática, uma verdadeira integridade cognitiva, uma autêntica liberdade cívica, emprestando à diversidade,
enquanto uma realidade social e política, a fonte eticamente legitimada que lhe advém da autonomia ontológica
do sujeito. Seres capazes de interagir e de olhar o outro na sua diversidade e “maravilhar-se” e solidarizar-se,
pois só em solidariedade, no óptica da busca do sentido de cada um na relação com o outro, poderemos atingir
o âmago do ser humano na sua vocação universal para a relação, para a felicidade, para o seu crescimento
holístico de compreensão do mundo que o rodeia e na construção de uma mundividência assente no profundo
respeito pela autonomia e liberdade de todos os seres humanos. Pois, como nos recordam Luísa Beltrão e Helena
Nascimento, “num mundo cada vez mais interdependente, educar para a cidadania implica fomentar o espírito de
solidariedade, assente no respeito pela diversidade cultural e na consciência que é a sobrevivência comum que
está em causa”6. É, pois, nesta trama tecida em finos fios de frágil seda, que se joga o desafio de educar para
valores: num “inenarrável cruzamento” de complexidade, diversidade e multiplicidade social, cultural, de
alteridade, de solidariedade, Um desafio que importa assumir em pleno e dele fazer emergir a PESSOA que o
OUTRO é para mim e, como dizia Levinas, diante do rosto do Outro, me descubro responsável e me vem à ideia
o Infinito. É no face-a-face humano que emerge todo o sentido da existência.

6 Beltrão L., Nascimento H.(2000), O desafio da cidadania na escola. Lisboa: Ed.Presença


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Página | 5

Baptista, Isabel (1998), Ética e educação. Estatuto ético da relação educativa. Porto: Universidade Portucalense
Infante D. Henrique

Beltrão L., Nascimento H.(2000), O desafio da cidadania na escola. Lisboa: Ed.Presença

Estevão, Carlos (2001), Justiça e Educação, S. Paulo: Cortez Editora

Estêvão, C. (2004), Educação, Justiça e Democracia. Um estudo sobre as geografias da justiça em educação, S.
Paulo: Cortez Editora

Galichet (2005), L’école, lieu de citoyenneté. Paris: ESF, também

Lima, L. (2005), Escolarizando para uma educação crítica: a reinvenção das escolas como organizações
democráticas. In Teodoro, A. E Torres, C.A., Educação Crítica e Utopia. Perspectivas para o século XXI. Porto:
Ed. Afrontamento.

Lúcio, Laborinho (2008), Educação, Arte e Cidadania, Lisboa: Temas & Letras

Silva, A. (2002), Ética, deontologia e profissão docente: possível contributo da bioética. Porto: edição do autor.

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