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John Stuart Mill - Sobre o Progresso e a

Educação 1st Edition John Stuart Mill


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Sobre o Progresso
e a Educação
John Stuart Mill

Sobre o Progresso
e a Educação

Traduzido e comentado por Rodrigo Jungmann

São Paulo - 2020


Copyright © 2020 por John Stuart Mill
Sobre o Progresso e a Educação
John Stuart Mill

a
1 Edição
a
1 tiragem – setembro de 2020

Edição
Editora Lux
Revisão:
XXXXXXXXXX
Diagramação:
Regina Paula Tiezzi
Capa:
XXXXXXXXXXXX

ISBN – XXX-XX-XXXX-XX-X

CIP – (Cataloguing-in-Publication) – Brasil – Catalogação na Publicação


Ficha Catalográfica feita na editora
___________________________________________________
XXXX, #Nome#
#Título# / #subtítulo# / #Nome# . 1 ed. São Paulo, Editora Lux,
2020.
158 p.; 21cm (broch.);

ISBN XXX-XX-XXXX-XX-X
CDD B869.35
CDU 82-31
___________________________________________________

Índice para catálogo sistemático

Editora Lux
Endereço: Avenida Conceição, 130
Para a minha mulher, com todo o meu amor.
São Paulo – SP - CEP: 02072-000
Tel.: 11 4213-0401
WhatsApp.: 11 95916-6965
E-mail: contato@editoralux.com.br

Cód. 180920-1746
Sumário

Introdução..................................................................................... 9

1 — A perfectibilidade............................................................... 33

2 — O espírito da época............................................................ 43

3 — A civilização........................................................................ 75

4 — A utilidade do conhecimento.........................................103

5 — Sobre a educação..............................................................111

6 — Sobre a estabilidade social...............................................141

Bibliografia Recomendada......................................................155
Introdução

U
ma rápida consulta aos sites on-line das livrarias brasileiras,
e mesmo à página de uma conhecida rede de sebos, revela
um escasso número de traduções para a nossa língua dos
trabalhos de John Stuart Mill (Londres, 20 de maio 1806 — Avignon,
8 de maio de 1873). Muito raramente se encontrará alguma obra para
além dos títulos habitualmente referidos. No domínio da filosofia,
podemos nos deparar com várias edições de O Utilitarismo, Sobre a
Liberdade, A Sujeição das Mulheres e Considerações sobre o Governo
Representativo. Sua fascinante Autobiografia também foi objeto de
tradução em português. Além de filósofo, Mill foi um economista
clássico de renome e, compreensivelmente, os seus Princípios de Eco-
nomia Política também são encontradiços, ainda que o livro possa
eventualmente estar fora de catálogo.(1)
O maciço tomo de A System of Logic: Raciocinative and In-
ductive lamentavelmente não teve tradução integral em português,
tanto quanto eu saiba. Livro de vastas ambições e amplitude temática,
muito respeitado como obra de filosofia pura por décadas depois de
sua publicação, é pouco conhecido ou mesmo mencionado entre nós.
Talvez tal desinteresse se deva menos ao seu volume físico do que
ao fato de que foi em larga medida voltado para considerações nos

(1) On Liberty se prestou a títulos diversos, tais como Da Liberdade, Sobre a Liber-
dade e A Liberdade. As datas das obras clássicas supracitadas, em sua primeira
aparição em língua inglesa, são A System of Logic (1843), Principles of Political
Economy (1848), On Liberty (1859), Utilitarianism (1861), Considerations on
Representative Government (1861), Subjection of Women (1869) e Autobiogra-
phy (1873). Esta última obra é póstuma e veio a lume exatos cinco meses de
dez dias após a morte de Mill na França.
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

campos da lógica, da metafísica, da epistemologia e da linguagem, O tomo que o leitor tem em mãos é apenas o primeiro de uma
áreas em que Mill já não desperta o mesmo entusiamo que logrou série planejada, que deverá totalizar de nove a onze volumes. Tra-
manter, mesmo um século e meio depois de seu desaparecimento, zendo como título Sobre o Progresso e a educação, é auto-explicativo
enquanto pensador da ética e da política.(2) em sua nomeação. Para a sua composição, o editor (e tradutor) teve
Contudo, mesmo naqueles domínios em que hoje permanece a felicidade se deparar com uma espécie de pré-seleção na coletânea
atual e influente como referência incontornável de pensador liberal, John Stuart Mill: On Democracy, Freedom and Government & Other
utilitarista, teórico da democracia e mesmo na sua condição de fe- Selected Writings (Zbigniew Janowski e Jacob Duggan). Os textos
minista avant la lettre, a compreensão do pensamento de Mill em como tais obviamente estão em domínio público.
nosso país é decerto prejudicada pela escassez de traduções de uma Os demais volumes projetados trarão por títulos, e pela ordem
obra vastíssima que, em sua forma completa, ocupa os 33 volumes de aparição, Bentham, Ideologias e Governança, Ensaios sobre a religião,
de Collected Works of John Stuart Mill.(3) Ensaios sobre a liberdade, A condição das mulheres, A América e a
Além de teórico, John Stuart Mill trabalhou de forma incan- democracia, Os clássicos gregos (um ou dois volumes) e O positivismo
sável como jornalista, ativista político, reformador e mesmo, por de Auguste Comte (um ou dois volumes).
uns poucos anos, como membro da Câmara dos Comuns. Tanto as
Cada volume, a começar do primeiro, terá uma introdução
suas obras teóricas menos conhecidas como seu infatigável labor
geral à sua temática e breves comentários sobre os textos individuais
diuturno, voltado para escritos breves e polêmicas, e mais achegado
às questões concretas do seu dia, contribuem para a composição de traduzidos. Talvez me fosse lícito deixar as coisas por aqui e proceder
um quadro mais completo do seu pensamento, ajudando a lançar imediatamente aos comentários sobre o conteúdo deste volume em
luzes sobre uma obra eclética, multi-facetada e influenciada em particular, mas bem imagino o leitor a questionar-se sobre a rele-
grau enormemente maior pela obra de pensadores franceses seus vância e necessidade de uma coletânea de textos de John Stuart Mill
contemporâneos do que se costuma ter notícia no Brasil; isso, é até bem pouco tempo inéditos em português.
claro, sem mencionar sua imensa dívida para com o pensamento Por um lado, poderia ressaltar o brilhantismo e interesse in-
clássico de Platão e de Aristóteles. Já é hora de deixar de lado uma trínsecos das breves obras aqui traduzidas e anotadas. Mas prefiro
visão tacanha de John Stuart Mill como simplesmente um pensa- seguir adiante e aduzir, à guisa de justificativa, observações adicionais.
dor utilitarista um tanto mais sofisticado do que os seus mentores Pouco acima, aludi ao ecletismo e ao caráter multi-facetado da obra
na juventude, a saber, James Mill (1173 — 1836), seu pai, e Jeremy de Mill e à necessidade de nos havermos com tais características.
Bentham (1748 — 1832).(4) Que Mill pode ser tido na conta de um pensador eclético é uma
(2) Há de notar-se, no entanto, que questões éticas, políticas e sociais não estão verdade ineludível assinalada pelo próprio autor, que, já no prefácio
em absoluto ausentes das páginas de A System of Logic, tratadas que são em de A System of Logic, não se acanha de propugnar a necessidade de
seções bastante extensas. Uma tradução recente das passagens relevantes, no “harmonizar as partes verdadeiras de teorias discordantes”.(5)
seu Livro VI, aparece como A Lógica das Ciências Morais. São Paulo, Ilumi-
nuras, 2020.
Desde já se deve assinalar que o que se apresenta a alguns pes-
(3) Editado por John M. Robson, inicialmente para a University of Toronto Press. quisadores como saudável ecletismo e incansável busca da verdade
A coleção foi subsequentemente encampada pelo Liberty Fund e pela editora pode muito bem se afigurar ante o crivo de outras mentes como um
Routledge. Pode ser efetuado o download gratuito de todos os volumes em
versão pdf no site do Liberty Fund. pleto em mãos com alguma frequência descura de sua parte final ou simples-
(4) Muito contribui para uma visão simplificada do utilitarismo de Mill o fato de mente não a lê por se ter acabado o período letivo.
ser O Utilitarismo apresentado por vezes em versão abreviada entre as capas (5) Prefácio de A System of Logic. A referência ocorre à página cxi no vol. 7 de
de diversas antologias filosóficas. Mesmo o estudante que tem o volume com- Collected Works of John Stuart Mill, John M. Robson, edição do Liberty Fund.

10 11
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

projeto confuso e incoerente. Em que pese estar o editor convencido seu apreço pelo que Wendy Donner, em obra conjunta com Richard
da veracidade da interpretação mais benevolente, aqui não é o lugar Fumerton, chama de “o princípio da participação”(7).
apropriado para uma tentativa de solucionar a questão. O mesmo Mill, no entanto, espera que as pessoas de pouca
Certo é que Mill foi um pensador complexo, de vastos interes- educação se deixem guiar “pelos conselhos e pela influência de um,
ses, que inquestionavelmente se ocupava com a labuta incessante de ou de uns poucos superiormente dotados e instruídos”(8) e com isso
“harmonizar” visões e tendências real ou aparentemente conflitantes. mostra seu apego ao que Donner na mesma obra chama de “o princípio
Dizer que da pena de Mill promanou uma obra multi-facetada é da competência”. Se não souberem mostrar a adequada deferência às
incorrer no que os ingleses chamam de understatement. opiniões dos homens mais sábios de sua comunidade, os indivíduos
Atente-se, com efeito, para os seguintes contrastes, carentes mal iniciados e pouco treinados na ação política poderão se deixar
de análise e, se possível, de resolução: seduzir pelo que, em última análise, não são seriam os seus verda-
deiros interesses, mas aquilo a que Mill se refere por vezes como “os
Pensador da democracia, Mill desejava sinceramente a am-
interesses sinistros”, vale dizer, os de um tipo que em verdade se opõe
pliação, ainda que gradual, da participação popular e a extensão
ao bem comum. Por tudo isso, em Considerações sobre o Governo
do sufrágio. Cultivador de excelsas virtudes intelectuais e morais,
Representativo, Mill defende sem meias palavras, em se considerando
além de defensor incansável da educação — fosse no sentido mais
horizonte do futuro previsível, um sistema de votação ponderada,
estrito atinente à frequência de escolas e universidades, fosse ainda
em que os votos de indivíduos mais cultos e capazes poderiam valer
no que concerne ao auto-cultivo do intelecto, da sensibilidade e do
por dois ou mais.
discernimento, simultaneamente requeridos para a cidadania res-
ponsável e desenvolvido em seu exercício — o elitista que jazia no Esse conflito de difícil resolução entre uma devoção sincera
peito de Mill temia, por outro lado, que o avanço da democracia se às causas populares e um não menos vigoroso endosso da primazia
desse com demasiada rapidez, tão temeroso que era como o Marquês das elites intelectuais perpassa toda a obra de John Stuart Mill. São
de Tocqueville quanto aos ganhos que autoritários e populistas po- ainda dignos de nota, nesse comentário preliminar, três ou quatro
deriam auferir para si mesmos com a manipulação do sentimento outros pontos de conflito real ou aparente.
popular, ou que o próprio sentimento popular, perpassado por uma Economista clássico e defensor dos mercados livres, Mill nem
mediocridade ainda não destronada, pudesse redundar na “tirania por isso se furtou a um genuíno compadecimento face às agruras
da maioria”, um estado de coisas, reputado sumamente indesejável em que estavam mergulhados os trabalhadores no seio do indus-
para Mill, em que a maioria, seja pelo poder da coerção, seja pela trialismo britânico do Século XIX e suas inegáveis iniquidades. Se,
força irresistível da opinião pública, pudesse sufocar os interesses e de uma parte, Mill seguramente cultivava o gradualismo e se oporia
projetos de minorias e indivíduos considerados um a um, interesses denodadamente a uma revolução violenta dos trabalhadores, não era
estes defendidos por Mill com eloquência e vigor incomparáveis em menos verdadeiro que chegou a nutrir vivas esperanças de que num
Sobre a liberdade. futuro distante a produção viesse a estar a cargo de cooperativas de
É certo, ademais, que Mill, em Considerações sobre o governo trabalhadores, no que talvez pudesse ser apelidado de “socialismo
representativo, louva decididamente os benéficos efeitos da partici- democrático de mercado”.(9)
pação e ação políticas sobre o intelecto das massas em virtude do
“exercício mental que daí advém”(6), dando mostras evidentes do (7) John Stuart Mill, Wendy Donner e Richard Fumerton, Edições 70, 2011.
(8) On Liberty. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. 18, p. 269.
(9) É a sincera opinião do editor, embora não de Mill, que o esquema em tela é, em
última análise, inviável e utópico. Mas certamente não é de escasso interesse
(6) Collected Works of John Stuart Mill, vol. 19, p. 412. saber o que John Stuart Mill pensava a esse propósito.

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

Mill não chegou a formular uma filosofia da história tão ela- exercer, de preferência uma aristocracia do intelecto, formada pelos
borada ou sofisticada como as de Santo Agostinho, Hegel ou Marx. homens mais cultos e mais capazes, representantes ilustrados das
Certo é, no entanto, que ao menos os contornos genéricos de uma classes médias.
concepção da história e do progresso estão presentes em sua vasta É a sincera convicção deste editor que a leitura desses opús-
obra e apontam inexoravelmente para um avanço da participação culos inéditos poderá auxiliar o leitor brasileiro que esteja em busca
popular na vida econômica e política, para a democratização em de uma compreensão mais fina e menos esquemática do pensamento
sentido amplo, para a melhora dos níveis gerais de bem-estar, liberal e utilitarista de John Stuart Mill.
cultura e civilização. O otimismo de John Stuart Mill pode ser E, nesse passo, para concluir essa introdução geral à totalidade
creditado a pelo menos três influências: seu temperamento pessoal, dos volumes da série que ora se inicia, bem como deste tomo em
os assombrosos progressos da ciência de Newton em diante e o seu particular, gostaria de acrescentar que nutro muito especialmente a
contato a um só tempo respeitoso e crítico com o positivismo de esperança de que a leitura dos opúsculos aqui presentes, assim como
Auguste Comte. os das coletâneas vindouras desta série, possa ajudar o amável leitor a
À semelhança de Comte, Mill lançava um olhar de funda entender aquilo que reputo como a tensão fulcral, em acréscimo às já
reprovação aos aspectos daninhos da religião institucionalizada, mencionadas, que perpassa o pensamento de John Stuart Mill como
embora, também nesse terreno, sua obra seja ocasionalmente tocada um todo: aquela existente entre as propostas presentes O Utilitarismo
por comentários mais matizados, em que concede à religião o mérito e em Sobre a liberdade. Há uma dificuldade bem real, que a nenhum
de ter contribuído para a ordenação social. Não menos dignos de nota, leitor atento de Mill terá passado desapercebida, entre o utilitarismo
vindos de um homem que se manteve ateu por toda a vida, são o seu e o liberalismo do eminente filósofo inglês.
profundo respeito e a sua admiração por Jesus Cristo. Com efeito, Mill pertence em tese a uma corrente filosófica
À diferença de Marx, Mill via os avanços ocorridos na marcha que repudia uma certa concepção de direitos, a dos direitos naturais,
da história inteiramente nos termos do que o pensador alemão cos- cuja existência está na dependência de alguma concepção metafí-
tumava chamar de “superestrutura”. Os avanços se dão, de acordo sica robusta da natureza das coisas e do ser humano. É conhecida
com Mill, em função do se que se passa nas searas da cultura, da a assertiva de Jeremy Bentham de que a doutrina dos direitos na-
educação e da política. Não se encontrará nada remotamente aná- turais é “uma simples bobagem”, “uma bobagem retórica”, “uma
logo a uma determinação econômica do processo histórico, seja ela bobagem montada em pernas de pau”.(10) E, coerentemente com sua
entendida em termos mecanicistas e crus ou mais intelectualmente rejeição de um fundamento metafísico para os direitos, Bentham
elaborados. E lá onde Marx pôs o proletariado como classe responsável sustenta com vigor uma concepção que hoje seria tida na conta de
por excelência pelo devir revolucionário, Mill não lhe atribuiu uma jus-positivista. Direitos nada mais seriam do que convenções, do
missão nem remotamente análoga. Não menos do que Marx, Mill que realidades positivadas em lei.
tinha plena consciência dos conflitos existentes entre as classes, mas Teria sido essa uma posição partilhada por John Stuart Mill?
era aos segmentos cultos e ilustrados dos setores médios da sociedade Num primeiro momento, poderia parecer que sim. Não
inglesa do Século XIX que costumava creditar o quanto houvesse de menos do que Bentham, Mill defende a promoção da maior feli-
ganho em matéria de inventividade, inovação e avanço intelectual e
moral em sua época, que enxergava como um período de transição, (10) Em “A Critique of the Doctrine of Natural, Inalienable Rights”, ensaio cons-
no qual o poder político estava sendo, a seu juízo, submetido a um tante de Anarchical Fallacies, vol. 2 dos Works de Jeremy Bentham, editado
em 1843 por John Bowring. O original inglês traz “Natural rights is simple
processo inapelável de transferência das aristocracias que tradicio- nonsense: natural and imprescriptible rights, rethorical nonsense — non-
nalmente o exerceram para as mãos de pessoas mais capazes de o sense upon stilts”.

14 15
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

cidade para o maior número. Numa interpretação apressada das Conforme o referido princípio, todo indivíduo adulto e
primeiras páginas de O Utilitarismo, o leitor bem poderia catalogar mentalmente são é senhor soberano das ações que digam respei-
Mill prontamente como um defensor do que modernamente tem to exclusivamente a si próprio e que não possam causar danos a
se chamado de “utilitarismo do ato”, a teoria de que o guiamento terceiros.(12)
correto de nossa conduta moral deve repousar num cálculo da Ora, a prerrogativa de ter estilos de vida bem particulares e
felicidade — ou utilidade — advinda de atos individualmente não consentâneos com os da maioria, ou de professar a religião que
considerados. Correta seria a ação que gera o saldo mais favorável se queira ou nenhuma religião, de expressar-se livremente na fala e
possível na balança em cujos pratos se assentam, de um lado e de na escrita, tudo isso, é certo, confere aos possuidores de tais prerro-
outro, o prazer e a dor por ela causados indistintamente a todas as gativas as liberdades individuais tão caras a Mill, a ponto de serem
pessoas afetadas. Ora, não é difícil imaginar circunstâncias em que invioláveis. Ter uma liberdade inviolável implica o direito inviolável
esse cálculo poderia justificar um assalto a liberdades individuais de intromissões contra a referida liberdade.
em nome do bem comum.
Não pareceria haver aqui qualquer séria dificuldade para
Afortunadamente, Mill rejeita o hedonismo crasso de Ben- aqueles pensadores, como John Locke, que professam a doutrina
tham. Não é apenas a felicidade no sentido hedônico mais simples dos direitos naturais e inalienáveis, estabelecidos por Deus ou pela
de gozo e contentamento imediata e diretamente experimentados natureza mesma das coisas e das pessoas.
que há de servir de baliza para o julgamento moral das ações. O tipo
Mill discorre extensamente sobre direitos na última seção
de prazer gerado também deve ser levado em conta. Os prazeres do
de O Utilitarismo, aquela intitulada “Da relação entre a justiça e a
intelecto e da sensibilidade assomam como mais significativos do
utilidade”. Mas, se, no entender de Mill, qualquer doutrina acerca
que os dos sentidos.
dos nossos direitos deve forçosamente prescindir de um fundamento
Complicações adicionais derivam da análise de certas passagens metafísico, é o caso de indagarmos no que se baseará e de que forma
de O Utilitarismo que têm sido interpretadas por alguns comentadores permanecerá coerente tanto com os preceitos do utilitarismo de Mill,
como contendo uma defesa implícita daquilo que hoje se chama de como com os do seu liberalismo.
“utilitarismo das regras”.(11)
Na referida seção final de O Utilitarismo, Mill se antecipa a
De uma forma ou de outra, há uma tensão prima facie entre possíveis críticas. Diz-nos o nosso autor: “Ter um direito é, pois, na
as alegações de O Utilitarismo e a defesa pungente das liberdades minha concepção, ter algo cuja posse a sociedade deve defender. Se
individuais face ao arbítrio externo em Sobre a Liberdade. Este algum opositor insistir e perguntar por que sociedade deve fazê-lo,
último livro já começa com uma apresentação daquilo que a li- não posso dar-lhe outra razão além da utilidade geral”(13).
teratura tem chamado de “The Harm Principle”, ou “O princípio
do dano”.
(12) Para dar um exemplo contemporâneo, a conduta de um adulto que assis-
te, sozinho e na privacidade do seu lar, a conteúdo pornográfico poderia
(11) Esse não é o lugar propício para tratar da questão, coisa que demandaria um ser objeto de horror moral mas jamais de uma ação coercitiva de indi-
comentário extenso. Há na literatura uma tendência crescente a ver John víduos e, muito especialmente do estado, destinada a coibi-la. Poderia
Stuart Mill como um utilitarista sui generis que definitivamente não parece ser montada contra tal conduta uma barragem de críticas, de conselhos
merecer inclusão no rol dos defensores do utilitarismo do ato, mas que tam- e exortações morais, sem que, no entanto, jamais se legitime a sua proi-
pouco é bem caracterizado como um utilitarista da regra. Uma excelente bição pela força.
abordagem nesse sentido está em An Introduction to Mill’s Utilitarian Ethics, (13) Em O Utilitarismo, editora Iluminuras, 2020. A tradução é de Alexandre Bra-
de Henry R. West, 2004. ga Massella.

16 17
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

Significa dizer que, para Mill, a defesa da liberdade parece se sariamente são do próprio Mill. Representam aqui e ali escolhas
apresentar como um princípio derivativo. A viga mestra e funda- dos editores de Janowski e Duggan, na coletânea supracitada. São
cional do seu sistema continuaria sendo a promoção da utilidade, escolhas que, quando divergem do título original, primam, em todo
ou felicidade.(14) caso, por capturar com perfeição o teor dos excertos substanciais ex-
A liberdade é inviolável pelos outros e irrenunciável pelo seu traídos de publicações um pouco mais extensas. “A perfectibilidade”
detentor. E o é por ser um componente basilar da obtenção de uma boa abrevia um discurso preparado por Mill para um debate realizado
vida, de uma vida digna de ser vivida. Seja por atos ou por palavras, é em 1828 na London Debating Society. O discurso está contido na
inevitável que amiúde cometamos erros. A crença de Mill nas limita- íntegra em Autobiography by John Stuart Mill with an Appendix of
ções humanas, o seu falibilismo abertamente proclamado, demonstra Hitherto Unpublished Speeches, editado por Harold Laski (Londres:
vividamente a própria necessidade de sermos livres. Erramos e, no Oxford University Press, 1924). “O espírito da época” foi extraído
entrechoque de opiniões com quem discorda de nós e nos corrige, de uma série de publicações sob a rubrica geral de The Spirit of the
seguimos no caminho do auto-desenvolvimento moral e intelectual. Age, para o periódico Political Examiner, no ano de 1831. “A Civili-
Uma sociedade precisa ser aberta ao pluralismo de opiniões porque zação” contém o essencial de Civilization, escrita para o London and
tal abertura é tão benéfica para os indivíduos que a compõem quanto Westminster Review, abril de 1836. “A utilidade do conhecimento”
para a própria sociedade. Só com a liberdade podemos avançar em vem de Speech on the Utility of Knowledge, delivered at the Mutual
discernimento e virtude. E crescer em discernimento e virtude é o Improvement Society in 1823”. Está publicado em Autobiography of
aspecto central da busca da felicidade, no entender de Mill.(15) John Stuart Mill with an Appendix of Hitherto Unpublished Speeches,
Como se pode esperar, o avanço da liberdade é reputado editado por Harold Laski (Londres: Oxford University Press, 1924).
indissociavelmente ligado ao progresso, uma noção que para Mill “Sobre a educação” contém o que há de mais memorável no discurso
é sobretudo atinente aos níveis de cultura e civilização de uma proferido por Mill ao assumir a posição de reitor na Universidade de
sociedade qualquer que esteja sob exame — e muito particular- St. Andrews. A íntegra aparece como o Inaugural Address delivered to
mente a sociedade britânica do Século XIX —, de que se ocupam the University of St. Andrews, publicado em Londres com este título
predominantemente os opúsculos sobre os quais teremos um por London Longmans, Green, Reader and Dyer, em 1867. Por fim,
pouco mais a dizer adiante. E falar em civilização e cultura é “Sobre a estabilidade social” abrevia ensaio que veio a lume com o
impensável sem tratar da educação, seja em sentido lato, ou mais título Coleridge, uma vez mais no London and Westminster Review,
estrito. E são esses, o progresso e a educação, os temas centrais em 1840.
deste primeiro volume. Traduzir John Stuart Mill representa um desafio que não é
Antes de procedermos a um breve exame de cada um dos de pequena monta. Nesses ensaios, o tradutor é forçado a haver-se
opúsculos que perfazem o corpo desta coletânea, convém tecer al- muitas e muitas vezes com a sintaxe tortuosa de extensos períodos
gumas breves considerações sobre as fontes e a tradução. Os títulos gramaticais, além de uma pontuação extremamente idiossincrática,
constantes do sumário do primeiro volume desta série não neces- para dizer o mínimo. Inapelavelmente, impuseram-se algumas adap-
tações na passagem para o português. Desejo o que todo tradutor
(14) Aqui não é o lugar para ajuizar da correção da solução de Mill, mas apenas deseja: respeitar a índole semântica e sintática da língua para a qual
para mencioná-la e para pedir ao leitor que tenha a questão bem presente se traduz, sem perder algo do particular colorido do original como
quando estiver entretido com a obra de Mill. resultante de sua ambiência e autoria: no caso presente, o da Ingla-
(15) Claro está que os argumentos apresentados em Sobre a Liberdade são muito terra vitoriana vista pela ótica de um dos seus maiores expoentes
mais complexos e sutis do que esse breve apanhado. Serão objeto da intro-
dução ao volume pertinente da série ora iniciada. intelectuais.

18 19
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

A perfectibilidade É bem digno de nota ter sido bem recebido por Thomas Carlyle,
um crítico acerbo do Utilitarismo, que, de inúmeras formas, foi um
Neste discurso, Mill contraria a tese pessimista de que a maior
autor de pendores inteiramente contrários ao de John Stuart Mill.
parte de nossa humanidade decaída está condenada a rastejar mais
Hoje tido como reacionário de primeira hora, Carlyle certamente
ou menos permanentemente no lodo da barbárie moral. Credita as
não via com bons olhos a tese do progresso indefinido da condição
opiniões negativas nesse terreno a uma certa disposição de espírito
humana, tão cara a Mill.(17)
defeituosa de seus proponentes. O homem que descrê da perfecti-
Mas talvez sua reação não nos devesse causar espanto. O
bilidade humana seria fundamentalmente alguém que alberga um
ensaio encerra uma análise fina e persuasiva do que havia tanto de
horror secreto à simples possibilidade de que o ser humano possa se
promissor quanto de preocupante na Inglaterra à época em que foi
aperfeiçoar porque não deseja fazê-lo ele mesmo, assim como não
escrito — uma análise quiçá persuasiva o bastante para convencer
deseja assumir o fardo de contribuir para o aperfeiçoamento alheio. observadores dos mais distintos matizes políticos. Encerra, ademais,
De resto, a história humana, se analisada com esmero, não fornece, um exame instigante das relações entre a posse do poder político e o
no entender de Mill, fundamento indutivo apropriado para tamanho grau de aptidão moral e intelectual dos indivíduos e classes aptos a
pessimismo; na verdade, a história vem em socorro da concepção exercê-lo e do que os leva a efetivamente exercê-lo ou não. A marca
oposta. Mill nota o que ninguém pode negar: a existência no passado distintiva do espírito da época em que viveu Mill era o de refletir
de um certo número de homens que lograram atingir um nível elevado uma percepção amplamente disseminada de que se tratava de uma
de excelência moral. Por outras palavras: houve homens virtuosos. época de transição.
Cabe indagar: a que se deveram tais realizações individuais. Em No estado que Mill reputava o natural nos assuntos humanos,
cada caso, haverá de se constatar que os indivíduos em questão se o poder político é exercido pelas pessoas mais aptas a fazê-lo. E a
aprimoraram graças a uma educação moral esmerada nos seus anos circunstância de serem as mais aptas pode se impor à contemplação
mais tenros e, numa fase mais madura, à pressão exercida sobre seus dos seus contemporâneos de duas maneiras distintas. Idealmente,
hábitos pela sociedade e pela opinião pública. Os processos que um são escolhidas para o exercício do poder pelos demais concidadãos
dia lograram algum modesto êxito podem vir a fazê-lo num grau em virtude de possuírem uma estatura moral e intelectual reputada
mais extenso em circunstâncias propícias. O artigo procede a uma superior. Tal teria sido o caso nos períodos mais felizes de Atenas e
análise meticulosa e, em última análise, otimista dos fatores que da Roma republicana. Tal ainda era o caso nos Estados Unidos da
ensejam o avanço moral da humanidade. América, segundo Mill. Mas o estado natural não era, nos termos da
lúcida análise de Mill, uma condição que houvesse vigorado ao longo
O espírito da época da história apenas nas repúblicas e democracias em que, num grau
maior ou menor, têm voz os cidadãos. O que a história testemunha é
Ensaio brilhante e infelizmente muito pouco conhecido entre
nós, “O espírito da época”, tão notável sob inumeráveis aspectos, não que alguns dirigentes são alçados ao poder em virtude de qualidades
o é em sua designação. Com efeito, a expressão empregada já estava
(17) Thomas Carlyle (1795-1881), escritor e historiador escocês, notabilizou-se
em uso havia algum tempo. O título provavelmente ecoa o da obra
pela teoria de que um punhado de homens heróicos exerce uma influência
de William Hazlitt, The Spirit of the Age; or, Contemporary Portraits, decisiva e desproporcional no curso da história. Algumas de suas frases de
que veio a lume em 1825, também no Political Examiner.(16) efeito, tornaram-se célebres. A economia, segundo Carlyle, é “a ciência lú-
gubre” (dismal science). Referiu-se ao utilitarismo de Bentham como “uma
filosofia apropriada para porcos”. Acredita-se que as críticas de Carlyle às
(16) William Hazlitt (1778-1830), homem de letras inglês, foi um respeitado en- primeiras versões da teoria utilitária tenham deixado uma marca indelével
saísta e crítico cultural ao seu tempo. sobre Mill.

20 21
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

previamente adquiridas. Outros potentados as adquiriram em algum verdade da mesma maneira pouco interessante em que são verda-
grau, por vezes bastante elevado, porque, nascidos para o poder, não deiras as tautologias.
podem senão exercê-lo e são compelidos pelas circunstâncias a estarem Um sentido claramente mais útil, do qual Mill se ocupa ao
à altura da tarefa. Essa segunda modalidade de estado natural pôde, longo do seu ensaio, é aquele mais estreito, que opõe civilização a
nos períodos mais afortunados, se impor no seio das monarquias e
barbarismo. Por civilização se entende aqui o estado de coisas mar-
da nobreza de alguns países europeus.
cado pelo abandono das características que marcaram as sociedades
O estado transicional, precisamente o estado que Mill tem em selvagens. Estão presentes na civilização, mas não entre os selvagens,
mente ao tratar do que era amplamente percebido no escrutínio do realizações tais como o emprego em larga escala da agricultura, da
espírito de sua época, era seguramente o da Inglaterra da primeira
manufatura e do comércio. Ademais, pelo que respeita às instituições
metade do Século XIX. Ocorre quando há um flagrante descompasso
públicas, faltam aos povos selvagens, ao passo que sobejam entre os
entre a constituição dos grupos que detêm o poder e a daqueles moral
civilizados, mecanismos para a administração pública da justiça e
e intelectualmente dotados para o fazer, tanto quanto humanamente
resolução de conflitos. Impõe-se o império da lei, de sorte que há uma
possível num certo estágio civilizacional.
delegação consensual de poder a instâncias superiores e de alcance
Com os avanços na participação popular, com níveis superiores
coletivo, a bem da proteção dos interesses individuais de todos. Não
de educação se comparados aos dos séculos precedentes, com um
havendo a quem recorrer, na vida selvagem, um homem não pode
acesso muito mais amplo ao letramento e à própria leitura, homens
prevalecer de nenhuma forma sobre seus rivais, se não pela força
que nem em sonhos pertenceriam à aristocracia britânica, passaram
a conhecer os assuntos públicos e as artes da governança em grau bruta ou pela astúcia.
bem mais elevado do que os membros das aristocracias hereditárias, Em contraste, com o modo de vida selvagem, a civilização se
que se aferravam ao poder tanto quanto o podiam. Contudo, era caracteriza pela ativa cooperação entre os seus membros. A marca
irresistível a marcha da democracia e do acesso ao poder político. E do selvagem é a incapacidade de olhar mais adiante do seu próprio
a decadência moral e intelectual das aristocracias de sangue tornava interesse imediato e colaborar com o seu semelhante na persecução
tal marcha de todo irreversível. de objetivos comuns. Não admira que exércitos de nações civiliza-
das com enorme frequência tenham logrado acachapantes vitórias
A civilização militares contra contingentes bárbaros que lhe eram numericamente
É sem dúvida possível usar o vocábulo “civilização” num sen- muito superiores. Assim como não deveria admirar a crescente e
tido infalivelmente laudatório. Numa comparação entre dois países, benfazeja divisão cooperativa do trabalho. A divisão de trabalho,
poder-se-ia simplesmente conferir a alcunha de “civilizado” àquele reputada por Marx um dos horrores da modernidade, é reconhecida
que houvesse alçado a um grau mais elevado de desenvolvimento por Mill como uma das maiores realizações humanas.
aqueles traços de conformação humana e social que são reputadas De quanto foi dito acima, o leitor não haverá de se surpreender
mais próximas da perfeição. Ser mais civilizado, nesta acepção, vale com a visão fundamentalmente otimista de Mill face aos avanços das
por ser mais feliz, mais nobre e mais sábio. sociedades civilizadas. Contudo, ele não se furta a apontar alguns dos
Não é difícil notar, no entanto, que esse gênero de definição problemas e armadilhas que acompanham a marcha civilizacional.
incorre no risco de se mostrar de todo inútil, visto que o avanço A história ensina que os ingredientes materiais e institucio-
civilizatório, compreendido desta forma, haveria de se tornar objeto nais acima elencados sempre caminham pari passu e que um povo
forçoso de aprovação. Que a civilização seja algo de bom seria uma se alça ao nível dos civilizados quando há suficiente proteção das

22 23
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

pessoas e propriedades individuais, do que resulta o crescimento A utilidade do conhecimento


acelerado da riqueza e do tamanho das populações. Mill rechaça com zombarias a tese de Rousseau quanto à su-
Ora, desde sempre, a capacidade de influir nos negócios huma- posta decadência que os progressos das artes e das ciências teriam
nos se deve fundamentalmente a dois fatores: a posse de propriedades trazido ao gênero humano. O genuíno conhecimento — ainda que
materiais e a de capacidades e realizações intelectuais. No entender não certas contrafações que às vezes se apresentem sob a nobre essa
de Mill, à medida que avança a civilização, é inelutável a transfor- nobre rotulação — não pode senão ser extremamente benéfico à hu-
mação de um estado de coisas em que a propriedade e o cultivo da manidade. E o foi por ter promovido a felicidade humana para muito
inteligência são posses exclusivas de um punhado de indivíduos num além do que era conhecido em épocas bárbaras. Mill é especialmente
outro, à vista de todos na Inglaterra de seu tempo, em que as massas
contundente na sua condenação do mundo feudal.
cada vez mais ganham o seu quinhão em ambos os departamentos.
Com o progresso do conhecimento — entendido como avanço
O indivíduo se apequena diante das massas, e mesmo os mais
generalizado, nos países por ele tocados, das artes e ciências —, a
poderosos veem a redução de sua importância pessoal. E o quanto
humanidade passou a desfrutar de benefícios e confortos desco-
lhes sobra de influência é devido sobretudo à capacidade que ainda
nhecidos de nossos ancestrais. Naquilo que Mill parece ver como
possuam de moldar a opinião pública crescentemente mais bem
uma relação de causalidade de mão dupla, o progresso científico
informada e exigente.
gerou uma vasta riqueza, que, por seu turno, não poderia deixar
Se tudo isso é em larga medida positivo, não se segue, no en-
de reforçá-lo.
tanto, que não haja um preço a ser pago. Pois o avanço intelectual das
massas, por mais real e benfazejo que seja se cotejado à sua anterior Como teórico da ética, Mill não se furta a tratar dos efeitos
ausência de quaisquer luzes, mostra-se ainda limitado e superficial. advindos na esfera da moralidade pública e, ao fazê-lo, chega a uma
As opiniões se tornam voláteis e manipuláveis. A trapaça e o engodo conclusão otimista, a saber, a de que a humanidade foi de tudo isto
avançam. Lê-se muito mais do que em qualquer período anterior da beneficiária também no plano moral. Com a difusão da riqueza,
história humana. No entretanto, lê-se mal, pois já vai longe a época lograram-se ganhos no que concerne ao lazer e é só com algum
em que o que era escrito com cuidado e vagar era objeto de um exame lazer que o comum dos homens, e já não mais apenas os potentados
não menos cuidadoso e alentado. do passado, veio a se regalar com a difusão geral da informação. E,
A democracia põe à mostra de todos a sua face menos risonha, numa perspectiva muito cara a Mill, é de notar-se que o tempo livre
também identificada por Tocqueville: a sua tendência à mediocri- e a informação dão força ao olhar vigilante da opinião pública, o
dade, ao excesso de individualismo e à avareza. E já não restam, que, por seu turno, implica que as ações de todos os homens pas-
para ensejar um foco de poder contrastante, muitos homens de sam cada vez mais a se apresentar ante o crivo do julgamento dos
excelsa virtude e cultivo intelectual entre as velhas aristocracias. outros homens, o que, por sua vez, não pode ser deixar de ter um
Verifica-se a conjunção inapelável entre o excesso de segurança impacto benfazejo na própria moralidade. O ensaio prossegue com
dos bem nascidos, nas suas pessoas e propriedades, e sua perda de comentários sumamente duros acerca das formas de governança
vigor e têmpera. pré-democráticas e dos abusos do poder eclesiástico. Mill vê aquilo
Mill tudo percebe e tudo assinala, mas o faz calmamente e sem que reputa como civilização em franca ascendência contra as forças
se entregar ao pessimismo. Para o enfrentamento daqueles aspectos do atraso, aquelas que, segundo crê, tudo fizeram contra o avanço
menos nobres e menos dignos da sociedade que via brotar ante os do conhecimento e seu potencial liberador para o homem comum.
seus olhos Mill prescreve o remédio tão habitual em seus escritos: Julga que é uma batalha em curso, em que não se pode celebrar
uma sólida e socialmente extensiva formação do caráter e do intelecto. prematuramente a vitória.

24 25
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

Sobre a educação De um modo amplo, o mero aprendizado de fatos desacom-


panhado de reflexões deve ser evitado nas universidades. Espera-se
Homem de fabulosa cultura e talentos inicialmente desenvolvidos
que os alunos já os tragam de sua formação básica prévia ou de suas
numa idade sumamente precoce — seu pai começou a familiarizá-lo
leituras individuais.
com o vocabulário grego antes dos cinco anos —, Mill curiosamente
nunca frequentou uma universidade. Naturalmente, nada disso implica dizer que as escolas de for-
mação profissional não devam existir, nem sequer que não devam
Todavia, suas realizações intelectuais foram reconhecidas em coexistir nas mesmas localidades físicas que são usadas para a educação
vida e, por isso, não nos deveria espantar o convite da Universidade universitária geral. Mas, como certamente assinalaria Mill, se um
de St. Andrews, na Escócia, para o reitorado. homem há de ser um advogado, que seja um advogado treinado nos
Os excertos que aqui apresentamos contêm as passagens mais rigores do pensamento humano e não um simples aplicador mecâ-
memoráveis do seu discurso de posse, que se ocupou amplamente nico de regras formalizadas nas leis ou consagradas pelos costumes.
do que deve se esperar de uma universidade no âmbito de uma À sua época, prosseguia uma disputa ingente entre os cul-
educação liberal — a mais adequada para homens livres. tivadores de uma educação clássica e os defensores das disciplinas
É bem provável que muito do que aqui vem expresso se afi- científicas em ascensão. Sempre um otimista, Mill rejeita qualquer
gure inicialmente estranho ao leitor brasileiro. Afinal, a educação dilema neste terreno e insiste na presença simultânea de ambas
em nosso país é excessivamente especializada e hiper-fragmentada, as modalidades educativas no âmbito das instituições superiores.
com múltiplos departamentos que só um tanto raramente se comu- Àqueles que apontam para fracassos bem demonstrados no passa-
nicam entre si. do, digamos, no ensino do latim ou do grego, Mill responde muito
simplesmente que o ensino das línguas clássicas carecia de melhores
Se tal afirmativa parecer desabonadora, que sirva de alívio a métodos. Aos pessimistas quanto ao aprendizado concomitante de
circunstância evidente de que esse mal não é exclusivo ao nosso país. matérias tão diversas, Mill responde com uma ênfase que lhe é muito
E o que é mais: as tendências que levaram a esses estados de coisas já característica. Não se podem fixar de antemão os limites do intelecto
pareciam estar em estado embrionário na época de Mill. humano, que, segundo pensava, poderia alçar voos notáveis quando
Bem, que tipo de pensamento pedagógico é afinal propugnado provido das condições propícias.
por nosso autor? Convém perguntar antes de mais nada a que se Suas palavras sobre as línguas e culturas clássicas são de uma
destina uma universidade. A essa questão a resposta de Mill é inequí- pungência impressionante, assim como o são os seus encômios à obra
voca e contundente. Uma universidade não deve ser primacialmente de Platão e Aristóteles, para mencionar apenas os dois principais
voltada para a formação profissional em compartimentos diversos baluartes da Plêiade de autores gregos e romanos que Mill desejava
mas para a formação do intelecto em sentido profundo. Não se trata ver lidos ao corrente em seus originais e com plena compreensão
em primeiro lugar de ensinar os fatos e saberes a serem dominados pelos jovens leitores universitários do seu tempo. Obras escritas
pelos praticantes de um metiê ou de um outro, mas, por um lado, de com grande vagar por autores que dispunham de tempo e amplos
treinar as jovens mentes nos rigores do intelecto indagador, aquele lazeres e destinadas a leitores que costumavam desfrutar das mesmas
que busca aprender os métodos de raciocínio e observação propícios vantagens, eram tidas por Mill na conta de muito provavelmente
ao desvendamento da verdade, e, por outro lado, de treinar os estu- inexcedíveis na forma, sem prejuízo de permanecerem igualmente
dantes, por meio da exposição a vários dos mais brilhantes e sábios inestimáveis em virtude de sua sabedoria perene.
textos já produzidos pelo gênio humano, no domínio da expressão Disso não se depreenda que Mill via com menoscabo o cultivo
e da forma. das línguas e literaturas europeias modernas. Julgava, no entretanto,

26 27
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

que o seu aprendizado pudesse ser levado a cabo de maneira mais Com efeito, Mill nunca é apontado como simpatizante do
prática e incomparavelmente mais rápida numa Europa em que se conservadorismo. Não costuma ter seu nome mencionado em com-
poderiam passar temporadas proveitosas em nações estrangeiras.(18) panhia dos de Edmund Burke ou Joseph de Maistre. Em vez disso,
No campo da ciência, é bem digno de nota e surpreendente o é de rigueur incluí-lo no rol dos pensadores liberais, um homem
louvor que dirige ao estudo da fisiologia humana, assim como o são pertencente à tradição de John Locke, Montesquieu e Tocqueville.
os argumentos aduzidos em sua defesa. No entanto, ao tratar da estabilidade social em artigo original-
Falibilista convicto, Mill não vê lugar para o ensino de sistemas mente intitulado “Coleridge”, Mill presta um elegante tributo à sua
éticos, políticos e religiosos nas universidades, exceto pelo que respeita contribuição para o pensamento filosófico e social. Coleridge viera
à sua simples exposição imparcial. Notando que intelectos dos mais a adotar posições marcadamente conservadoras sob a influência de
distintos adotaram as mais variadas posições nesses domínios, Mill pensadores alemães. Com evidente satisfação, e sem dar nenhum
insiste que não cabe ao educador ensinar qualquer dessas matérias a sinal de contrariedade, Mill faz importantes concessões de princípio
partir de uma perspectiva unilateral, e menos ainda, dogmática, des- ao que esses pensadores tiveram a dizer no que concerne à desejável
tinada a inculcar nos alunos as mesmas concepções de seus mestres. preservação da estabilidade social, sem prejuízo da possibilidade de
Antes, caberia aos aprendizes conhecer os fatos, os argumentos e a mudanças e avanços do tipo pelo qual Mill se bateu ardorosamente
as concepções presentes em teorias divergentes entre si, para saber por toda a sua vida.
formar suas próprias convicções. Modernamente, diríamos que não Diferentemente de Rousseau e dos philosophes em geral, os
é tarefa de um professor doutrinar os seus alunos. pensadores aos quais Mill dirige seus encômios perceberam que a
A influência moral benfazeja que um professor pode e deve caducidade de uma ordem social em declínio não implica a neces-
exercer é a de servir de exemplo em sua própria pessoa. Cabe-lhe sidade de rejeitá-la por completo. Não nos obriga a desconsiderar o
ensinar movido pelo dever, apresentar o saber como componente que possam ter produzido de bom e de merecedor de preservação.
irrenunciável de uma vida plenamente digna, realçar a sua utilidade Certos pensadores franceses e alemães perceberam nitidamente
concreta para o mundo, além do seu valor na exaltação do caráter a importância de três condições basilares para que o progresso não
da espécie humana. redunde na renúncia irrefletida do passado. Foi por não atinar com
essas condições que a obra dos philosophes serviu de fundamento
Sobre a estabilidade social intelectual e justificativa para os excessos da Revolução Francesa.
Foi esse grosseiro erro de julgamento que fez de Rousseau o pai
Pouco acima, procurei dar a devida ênfase a um dos traços intelectual de Robespierre.
mais marcantes da conformação intelectual de John Stuart Mill: a
As três condições indispensáveis são explicitadas. A primeira
sua abertura para considerar e ajuizar dos méritos de concepções
delas é a manutenção de uma “disciplina limitadora”, apta a subor-
diversas das suas, de “harmonizar” posições distintas, buscando
dinar impulsos e objetivos pessoais aos fins da sociedade como um
nelas encontrar o quanto houvesse de verdadeiro. O presente ensaio
todo”(19). Mill se ocupa de descrever brevemente as sociedades em
fornece uma ilustração percuciente dessa sua incansável disposição
que a disciplina limitadora esteve presente, além de ressaltar em cada
para ouvir as vozes alheias.
caso o que a teria tornado possível. A segunda condição consiste em

(19) Não vejo aqui nenhuma contradição com os princípios esposados por Mill
(18) Para que isso não se afigure insuportavelmente elitista às sensibilidades em Sobre a liberdade. A disciplina limitadora deve, a meu juízo, ser vista
atuais, convém reforçar o ponto de que, na prática, a educação universitária como um fator de contenção ao tipo de ações afetas aos interesses de tercei-
não havia se universalizado. Os tempos eram bem outros. ros e não às da alçada exclusiva do próprio indivíduo.

28 29
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

estarem presentes entre os membros da sociedade sólidos vínculos aspecto particularmente louvável do pensamento de Mill, e que
de lealdade civil e de compromissos mútuos. A existência de tais sem dúvida o coloca num patamar superior de respeitabilidade
vínculos, seja numa monarquia ou numa democracia, pressupõe uma quando se cotejam as suas teorias e os seus compromissos de vida
certa intocabilidade de algo que se repute digno de permanência, com aqueles de pensadores liberais mais recentes de muito menor
que se possa, coerentemente com o liberalismo de Mill, contestar em alcance teórico e envergadura intelectual.
teoria, mas que, como realidade empírica ninguém queira destronar
na prática. O sentimento de apego que subjaz aos vínculos em questão
pode se voltar para um Deus ou deuses por todos cultuados, ou às
pessoas dos guardiões do estado, ou, o que certamente representa
o estado de coisas desejado por Mill, às leis, estatutos e liberdades
consagradas pelo tempo.(20) Por fim, a terceira condição trata da
coesão entre os homens e mulheres pertencentes a um mesmo corpo
político. Se, por um lado, Mill rejeita frontalmente qualquer forma de
nacionalismo xenófobo e incapaz de enxergar virtudes nas práticas
vigentes em países estrangeiros, não é menos certo que Mill reputa
altamente desejável o reconhecimento dos interesses partilhados
pelos nacionais de um estado, o sentido de solidariedade recíproca,
um senso de pertença a uma comunidade limitada por um território,
ciente de uma herança histórica peculiar que se intenta preservar.
Aos ingleses da época de Mill, assim como aos nacionais de qualquer
comunidade bem delimitada, releva a preservação de um sentimento
por todos abraçado de estarem “no mesmo barco”.
Esse último ponto é especialmente interessante. Pensadores
liberais são amiúde criticados à esquerda e à direita pelo, muitas
vezes real, algumas vezes suposto, desapreço pela comunidade.
Seriam, nos termos de uma distinção já presente entre os autores
alemães, campeões da Gesellschaft, a sociedade civil entre indiví-
duos semelhantes a átomos sociais, que têm pouco a uni-los que
não aqueles laços políticos, comerciais ou de outra sorte que livre-
mente escolheram e pactuaram. Aqui se estabelece o contraste com
a Gemeinschaft, uma comunidade que não se escolhe e na qual o
indivíduo se vê atirado pela história e que, no entanto, tem o direito
de contar com o seu afeto e com a sua lealdade. Enxergo nisso um

(20) Neste passo, ainda que não no anterior, inclino-me a questionar se a defesa
da condição sob análise é compatível com os argumentos centrais de Mill em
Sobre a Liberdade, livro que viria a lume dezenove anos depois da publicação
de “Coleridge”, o que talvez sugira não uma incoerência, mas uma mudança
de opinião.

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1

A perfectibilidade

[...] [S]eria(21) de fato um erro supor que a humanidade seja


capaz de grandes avanços? E seria realmente um sinal distintivo de
sabedoria escarnecer como visionários todos os grandes projetos de
aperfeiçoamento humano? Posso assegurar a cavalheiros honrados
que, muito longe de constituir evidência de qualquer grau de sabe-
doria, há nisso algo que qualquer idiota é capaz de fazer tão bem
quanto eles mesmos, e eu creio que são principalmente os idiotas
que associaram a tal modo de proceder uma reputação de sabedo-
ria. Com efeito, tenho observado que, se houver, na vida pública ou
privada, um homem de obtusidade tão impenetrável que a razão e a
argumentação jamais lhe causam a mais ligeira impressão, as pessoas
obtusas imediatamente o classificam como homem de excelente juízo
e robusto bom-senso, como se do fato de que homens de talento e
gênio são por vezes deficientes em seus julgamentos se seguisse que
tudo o que se requer de um homem para que possua uma capaci-
dade consumada de formar juízos é que seja alguém desprovido de
qualquer centelha de talento ou gênio, já que as pessoas às vezes
se enganam de maneira semelhante em razão de suas esperanças
precipitadas. Creio ter observado que não é o homem que mantém
suas esperanças enquanto os outros se desesperam, mas antes o ho-
mem que se desespera enquanto os outros mantêm suas esperanças
que é admirado por um grande número de pessoas como se fora

(21) A presente tradução é abreviada. Pontos suspensivos são usados em alguns


momentos para sinalizar que partes do texto original foram suprimidas. A
capitalização em “[S]eria” atende à convenção de de não se iniciar parágrafo
com letra minúscula. A palavra em inglês do ponto em que começa a
tradução está no meio do texto, em letra inicial minúscula.
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

um sábio, e que se supõe que a sabedoria consiste não em enxergar ligiosas, desde Condorcet(22) até o Sr. Coleridge(23), estiveram muito
mais longe do que as outras pessoas, mas em não enxergar tão longe próximos de crer na perfectibilidade. Na verdade, vou mais longe,
quanto elas. Não pretendo desrespeitar algumas pessoas altamente a ponto de dizer que a doutrina da imperfectibilidade, longe de ser
estimáveis cuja opinião nessa matéria é distinta da minha, mas es- chancelada pela experiência, é proposta em oposição a uma das ex-
tou convencido de que a vasta maioria dos que riem das esperanças periências mais claras que os assuntos humanos apresentam e que,
daqueles que pensam que o homem pode ser elevado em alguma consoante todas as acertadas regras de indução, devemos concluir
medida a um nível superior como um ser moral e intelectual o fazem que um nível extremamente alto de excelência moral e intelectual
com fundamento em um princípio muito diferente da sabedoria ou pode ser levado a prevalecer no seio da humanidade em geral, visto
do conhecimento do mundo. Creio que a grande maioria daqueles que existem causas acerca das quais se admite que foram julgadas
que falam da perfectibilidade como um mero sonho o fazem porque suficientes para produzi-la em muitos casos particulares.
se trata de um sonho que não lhes traria nenhum prazer se fosse No pouco que eu pretendo dizer, tentarei fazer pouco mais do
realizado. Creio que têm na conta de uma quimera a capacidade de que expandir e elaborar este último comentário. Há outros homens
progredir da mente humana, porque estão cônscios de que não estão nessa Sociedade muito mais competentes do que eu para discutir
eles mesmos fazendo coisa alguma para a promover e de que estão em detalhes os progressos passados da mente humana e os estágios
ansiosos por julgar impossível essa grande empreitada, para a qual, através dos quais ela provavelmente passará em seu caminho para
se ela fosse possível, eles sabem que seria seu dever contribuir. Creio melhoras ulteriores. Deixo a eles o encargo de indicar como se ha-
que há algo mais que impele fortemente muitas pessoas a chegar à verá de lutar com as dificuldades — a mim me basta que eu possa
mesma conclusão: a consciência de que não desejam livrar-se de suas provar, fundamentado em sólida experiência, que tais dificuldades
próprias imperfeições e, como consequência, a indisposição para crer podem ser superadas.
que seja factível que os outros se desvencilhem das suas. Creio que, Limitar-me-ei, num primeiro momento, à questão do progresso
se, por um lado, pessoas que desconhecem o mundo às vezes fazem moral. Não pedirei ao senhor(24) que espere encontrar na humanidade
estimativas errôneas por se fiarem numa humanidade mais sábia e qualquer nível de excelência moral que não admita paralelos. Meu
melhor do que ela é, por outro lado, aquelas pessoas que mais se dão padrão será um outro, que todos conhecemos, no qual todos acre-
ares de conhecerem o mundo fazem incessantes estimativas errôneas ditamos, com o qual estamos todos familiarizados na nossa própria
no sentido oposto e, confiantes, contam com um grau de vilania e experiência. Suponho que não se negará que existem e existiram
loucura entre os homens maior do que o realmente existente. Na pessoas que possuíram um nível muito elevado de virtude. Bem,
verdade, essas pessoas mencionadas por último diferem das outras aqui eu finco minha posição: tais pessoas existiram. A mim não
importam quantos foram nem quem eram. Se eu me propusesse a
por não estarem tão prontas a corrigir seu equívoco, visto que é a
nomear qualquer pessoa, qualquer personagem histórico, a quem eu
mesma completa incapacidade de albergar quaisquer visões generosas
julgue que tal atribuição é aplicável, não resta dúvida de que a pessoa
e ampliadas, na raiz do seu erro, o que as impede de descobri-lo e
em questão poderia ser objeto de cavilações e que algo poderia ser
que as faz atribuir tão-somente a uma espécie diferente de egoísmo
desenterrado para lançar dúvidas quanto à sua virtude, pois é difícil
aqueles efeitos da melhor parte da natureza humana com os quais
aduzir provas de tal monta que não subsista a possibilidade de ca-
não contaram. Diria mesmo que entregar-se ao desespero quanto ao
aprimoramento humano está tão longe de ser um sinal de sabedoria
(22) Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, o Marquês de Condorcet (1743 —
que, na realidade, não há indicação mais certeira de visões acanhadas 1794). Filósofo e matemático. Pensador revolucionário francês.
e de compreensão limitada do que esta indicação e que os homens (23) Samuel Taylor Coleridge (1772 — 1834). Poeta, filósofo e pensador inglês.
mais sábios que emitiram todos os tipos de opiniões políticas e re- (24) Dirige-se a um debatedor cujo nome não é declinado.

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

vilar; mas será que as pessoas que dizem que este homem ou aquele nunca se reflete sobre a matéria, ou se se chega sequer a fazê-lo, nada
homem não foram virtuosos irão além e dirão que ninguém jamais pode ser de uma ineficácia mais ridícula do que os meios que são
foi virtuoso? Eu suponho que não. Tudo que podem dizer é que no empregados para tal fim. E tudo isso por pura ignorância, visto que
mais virtuoso houve alguma fragilidade, algum defeito ou fraqueza, não se trata de uma falha em atribuir-se um valor suficiente àqueles
que tornou até o melhor deles menos do que perfeito. Certamente,
hábitos mentais que levam a bons hábitos de conduta; o caso é que
tudo isso pode ser aceito com segurança. Não afirmarei que os ho-
as pessoas realmente não sabem como tais hábitos são gerados, do
mens em geral podem ser tornados melhores do que os homens mais
excelentes que a humanidade produziu até agora. que dependem, nem que tipo de educação os favorece ou neutraliza.
Enquanto, por um lado, aquele tipo de educação a que se chama de
Pois bem, eis um fato: existiram homens virtuosos. Ora, o que
os fez virtuosos? Conclamo aos cavalheiros do outro lado [deste de- educação está nesse estado deplorável, aquela educação imperceptí-
bate] a responder essa questão, pois se se verificar que aqueles que são vel a que não se costuma chamar de educação está ainda pior, pois
virtuosos o são em consequência de causas que, embora agora afetem quase em toda parte os objetos grandemente ambicionados, aqueles
apenas uns poucos, podem ser levadas a afetar toda a humanidade, ou que deveriam ser as recompensas de uma elevada excelência moral
a maior parte dela, está ao alcance do esforço humano tornar todos e intelectual, ou são as recompensas auferidas da riqueza, como é o
os homens ou a maioria deles tão virtuosos quanto aqueles o são. caso neste país, ou são as obtidas com os favores pessoais, como na
Portanto, desafio os honrados cavalheiros a dizer a que atribuem a maior parte dos outros; e é um fato provado acerca da natureza hu-
excelência moral superior de algumas pessoas. Se não responderem, mana o de que, quaisquer que sejam os meios pelos quais as grandes
eu o farei. É a influência original de uma boa educação moral em seus recompensas ambicionadas devam ser obtidas, a pessoa que possui
anos tenros e a imperceptível influência do mundo, da sociedade, da esses meios e que, portanto, pode aspirar a tais recompensas é a
opinião pública, sobre seus hábitos e associações na vida posterior. pessoa que exerce influência sobre as mentes do público; é a pessoa
Aqui então está uma experiência específica. Provou-se de forma clara cujos favores são buscados, cujas ações são imitadas, cujas opiniões
que estas duas forças, a educação e a opinião pública, quando são são adotadas e cujos sentimentos contagiam as grandes massas da
postas em jogo de maneira justa e levadas a agir em harmonia uma humanidade.
com a outra, são capazes de produzir uma elevada excelência moral. É uma opinião pública muito ruim e mal repartida a que pode
E, no entanto, a maior parte dos argumentos que foram aduzidos ser formada de um agregado tão mal composto. E, no entanto, a opi-
contra nós nesta noite destina-se a provar que a educação moral e a nião pública resultante de uma educação moral tão ruim é suficiente,
opinião pública não são capazes de produzir esses efeitos. sempre que for combinada com uma educação moral melhor, para
Por que motivo, então, tais causas não produziram sobre todos produzir toda a virtude que vemos desenvolvida em alguns indiví-
os mesmos efeitos que produziram sobre alguns? Ora, por que seria duos em seu estado atual.
mesmo se não pelo fato de que não agiram sobre todos? Não se des- Dir-se-á, naturalmente, que, embora uma boa educação moral
penderam esforços para a educação moral da humanidade de forma e a atuação da opinião pública produzam tanta excelência em algu-
geral. A grande tarefa da educação moral, a de formar hábitos mentais mas pessoas, disso não se segue que o possam fazer em todas. Eu
virtuosos, é, posso dizê-lo, inteiramente descurada: uma criança é, sustento a opinião contrária, a de que há muito menos dificuldade
com efeito, punida por certos atos imorais, mas pelo que respeita a ir para produzi-la em todos do que houve para produzi-la em alguns.
à raiz do mal e a corrigir as propensões em que tais atos se originam, A excelência moral hoje existente, qualquer que seja sua magnitude,

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

foi produzida a despeito de mil obstáculos, a despeito de sistemas gratificação não possa ser obtida, de modo tão completo e muito mais
educacionais que, se tivessem seus nomes alterados e nos fossem permanente, mediante um padrão de conduta virtuosa, do que pelos
apresentados como se existissem em algum país muito distante, vícios. E, se esse é o caso, seguramente seria o pior procedimento
seriam considerados inacreditáveis em razão da absoluta fatuidade, sequer considerar a excelência moral sem nenhuma mínima atenção
da completa renúncia ao intelecto, por eles exibidas; a despeito de leis à felicidade e erradicar as paixões, porque são elas que fornecem o
que de mil maneiras infligem o mal a um homem para o benefício princípio ativo, a força motriz; as paixões são a fonte, ao passo que o
de um outro e que geram um espírito dominador e opressivo numa princípio moral é apenas a força reguladora da vida humana.
das partes e, na outra, um espírito esquivo e servil, entremeado
Mas vou além. A própria asserção de que as paixões não po-
nesta última com um ressentimento amargo e vingativo; a despeito
dem ser subjugadas pode ser tomada como um espécime da filosofia
de sistemas de procedimento judicial que parecem concebidos de
rasa destes senhores e de sua familiaridade muito superficial com a
propósito para dar ao certo e ao errado a mesma chance e no qual
humanidade. Aqueles que professam conhecer a natureza humana
todos os encorajamentos possíveis são oferecidos ao vício da insince-
tão bem parecem muito pouco cientes daquilo de que ela é capaz.
ridade — a despeito de instituições políticas que ao menos neste país,
Já não vimos que homens se deitaram a vida toda sobre camas de
o mais civilizado do mundo, fazem da riqueza a única aquisição que
pregos; que se puseram de pé a vida toda no topo de pilares; que
é desejada e da pobreza quase o único mal que é temido. Todos esses
permaneceram por toda sua vida sem se mexerem, em uma postura
males poderiam ser remediados pela mão de Deus. Se, nada obstante
estacionária, porque assim o quiseram? Não foram pendurados com
todas essas coisas, a melhor educação moral permitida pelas atuais
ganchos que trespassavam as suas costas e não se permitiram esmagar
circunstâncias da humanidade produziu tanta excelência naqueles
por rodas de carruagens e não se deitaram voluntariamente sobre
a quem foi dada, o que não pode ser esperado se removermos esses
pilhas funerárias para serem queimados? Não é verdade que essas
obstáculos e, quando forem jogados fora, dermos uma educação
coisas foram feitas não por heróis e filósofos mas por milhares e por
moral da mesma boa qualidade para a maior parte da humanidade
milhões de homens comuns que receberam uma educação comum?
— e até mesmo para toda a humanidade? Afinal, a excelência moral
Então que se apresentem cavalheiros e que forneçam argumentos que,
não pressupõe um patamar elevado de cultivo intelectual, visto que
se é que provam alguma coisa, provam a impossibilidade de tudo
amiúde é encontrada em sua maior perfeição nas mentes mais rudes.
isso. Não poderíamos fazer nenhuma dessas coisas. Por quê? Porque
No que concerne às doutrinas apresentadas nesta noite pelo outro nunca nos acostumamos a fixar nossa imaginação nessas coisas por
lado [do debate], algumas delas, devo confessar, surpreenderam-me. tempo suficiente para que nosso primeiro horror diante delas pudesse
Foi-nos dito que é impossível diminuir a magnitude dos vícios porque passar. Mas o que causou essas façanhas surpreendentes? Deve ter
os vícios brotam das paixões, sendo impossível subjugar as paixões. sido a religião, a consciência ou a opinião pública; os cavalheiros
Muito bem, senhor, a isso lanço a objeção de que, em primeiro lugar, podem escolher. Será uma das três. Ouvimos com que força se in-
é uma visão muito estreita dos princípios da moral e da natureza da tentou minimizar cada uma das três e ouvimos argumentos muito
mente humana a de quem supõe ser necessária, para qualquer bom plausíveis aduzidos para provar que nenhuma delas é forte o bastante
propósito, a subjugação das paixões. Não há uma só das paixões que para produzir tais efeitos. E, no entanto, os efeitos são produzidos.
não possa, mediante uma educação bem regrada, ser convertida em Seja-me permitido perguntar novamente a estes cavalheiros qual é a
força auxiliar do princípio moral. Não há uma só das paixões cuja razão disso. Conceder-lhes-ei, resignado, quaisquer duas das forças

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

em questão se eles me concederem a terceira. Caso me perguntem, de ver e com base nas quais estão sempre prontas a agir. E há algo
respondo que a minha opinião é a de que todas contribuíram, mas mais que é requerido: retirar os homens do alcance exclusivo das
que o motivo imediato exerceu a maior influência, aquele resultante opiniões expressas em seus grupelhos separados e privados e tor-
da opinião pública. E alguns honrados cavalheiros, que às vezes fica- ná-los receptivos ao tribunal geral do público inteiro e não deixar
ram se perguntando o porquê de ouvirem nesta Sociedade a opinião nenhuma classe de posse de poder suficiente para a proteção mútua
de seus membros enquanto desafiam a opinião pública e elaboram
pública sendo mencionada como a força imensa que é, talvez agora
um código de moralidade separado como guia da sua conduta pri-
possam ver nesses casos a razão de ser tão mencionada...
vada; e organizar as instituições políticas de um país de tal forma
Mas, se tal é a força da opinião pública, o que está faltando que ninguém possa deter poder algum, salvo o que lhe possa ser
para a produção daquele elevado estado de moralidade geral a que concedido pelos sentimentos favoráveis, não de qualquer classe em
aspiramos? Apenas que a opinião pública seja bem direcionada no separado, com seus interesses privados, mas do povo.
que respeita à moralidade, que um tal sistema de educação possa
existir de sorte que se conceda às massas não a erudição mas o
senso-comum — a capacidade de formar juízos práticos em casos
comuns — e de sorte que as torne capazes de ver que uma coisa é
errada quando for errada, de tal forma que as torne capazes de des-
prezar os embustes e de discernir os casuísmos e as imposturas, e
de não aceitar subterfúgios e pretextos para negligenciar um dever,
e de não pensar que a mesma coisa é louvável quando mencionada
com uma denominação elegante e culpável quando mencionada com
uma denominação vulgar. Que sejam capazes, por exemplo, de não
pensar, como alguns nessa sala, que dar a um homem dinheiro, ou
algo do mesmo valor monetário, é um crime quando se lhe chama de
suborno, mas que é louvável quando chamada de legítima influência
da propriedade; de julgar os homens pela maneira como agem e não
pela maneira como falam, de não estimar a excelência moral de um
homem pelas suas caretas de nojo ou pelo montante de hipocrisia
cuja expressão ele exige de sua família ou de seus dependentes; de
não dar crédito a homens por fazerem grandes sacrifícios às custas
de outras pessoas, ou por serem filantrópicos quando afastados mas
contidos quando estão em casa; de não pensar que a caridade consiste
em elaborar leis que retiram o pão dos pobres, enquanto contribuem
para alguma instituição anualmente com algumas libras para que
ela lhes dê o pão; e, em suma, de não ver muitas outras distinções
especiosas que as pessoas refinadas e cultas da atual era são capazes

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O espírito da época

O
“espírito da época” é, em alguma medida, uma expressão
inovadora. Não creio que seja encontradiça em nenhuma
obra com mais de cinquenta anos de existência. A ideia de
comparar a própria época com épocas anteriores, ou com nossas
noções das ainda vindouras, já ocorrera a filósofos, mas nunca antes
foi ela mesma a ideia dominante de qualquer época.
É essencialmente uma ideia que pertence a uma época de mu-
danças. Antes que os homens comecem a pensar intensa e longamente
sobre as peculiaridades de seu próprio tempo, devem ter pensado
que esse tempo é, ou está destinado a ser, distinto de maneira muito
notável daqueles que o precederam. A humanidade, então, divide-
se entre aqueles que ainda são o que foram e aqueles que mudaram
— entre os homens da época atual e os homens do passado. Para os
primeiros, o espírito da época é um tema que produz entusiasmo;
para os últimos, é um tema que produz terror; para ambos, é objeto
de interesse ávido e ansioso. A sabedoria dos ancestrais e o progres-
so do intelecto circulam de boca em boca, sendo cada qual dessas
expressões originalmente uma expressão de respeito e homenagem
e acabando por ser usurpada pelos partidários do slogan oposto e,
pela amargura de seus espíritos, transformados em uma gozação
sarcástica eivada de ódio e insultos.
Os tempos atuais possuem esse caráter. Deu-se uma mudança
na mente humana, uma mudança que, tendo sido levada a cabo em
gradações imperceptíveis, e sem alarido, já havia avançado muito
antes de ter sido amplamente percebida. Quando o fato se deu a co-
Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

nhecer, milhares de pessoas acordaram como que de um sonho. Elas de determinar qual é realmente o espírito da época e como ou no
não sabiam que processos tinham se manifestado nas mentes alheias, que ele difere do espírito de qualquer outra época. O assunto é de
ou mesmo nas próprias, até que a mudança começou a invadir os uma importância profunda. Afinal, seja o que for que pensemos ou
objetos externos. E tornou-se claro que eram verdadeiramente novos que possamos fingir pensar da época atual, não podemos nos livrar
homens aqueles que insistiram em ser governados de outro modo. dela; devemos sofrer seus sofrimentos, nos deleitar com seus deleites;
Mas agora a humanidade está consciente de sua nova situação. devemos partilhar o seu fardo e, para sermos úteis ou para ficarmos
Já não está longe de se firmar universalmente a convicção de que os tranquilos, devemos até mesmo tomar parte da sua natureza. Ne-
tempos estão prenhes de transformações e de que o Século XIX será nhum homem cujas boas qualidades tenham sido as de outra época
conhecido pela posteridade como a era de uma das maiores revoluções jamais exerceu muita influência sobre a sua própria. E, visto que
cuja recordação foi preservada pela história, seja na mente humana, toda época contém em germe todas as épocas futuras, tanto quanto
seja no inteiro tecido da sociedade humana. Até mesmo o mundo as bolotas contêm em si a futura floresta, o conhecimento da nossa
religioso fervilha com novas interpretações das Profecias, prenun- própria época é a fonte de profecias — a única chave para a história
ciando mudanças portentosas num futuro próximo. Percebe-se que da posteridade. É só no presente que podemos conhecer o futuro; é
os homens deverão doravante ser unidos por novos laços e separados só por meio do presente que está ao nosso alcance influenciar o que
por novas barreiras, visto que os laços antigos não mais unirão e está por vir.
nem tampouco os antigos limites os haverão de confinar. Aqueles E, no entanto, uma vez que nossa época nos é familiar, presume-
homens que trazem seus olhos na parte de trás de suas cabeças e que se, se me é lícito julgar pelas aparências, que é natural que a conheça-
não conseguem ver parte alguma da trajetória da humanidade que mos. De um homem público, por exemplo, caso dele se requeira que
não seja aquela que já foi percorrida imaginam que o rompimentos tenha estudado alguma coisa (o que, no entretanto é mais do que eu
dos antigos laços implica que doravante a humanidade não será ousaria asseverar) supõe-se que tenha estudado história — que, na
unida por laço algum. E daí vêm sua aflição e suas advertências apa- melhor das hipóteses, é o espírito de épocas muito remotas, e, mais
vorantes. Como demonstração dessa assertiva, posso me referir ao comumente, a mera carcassa inanimada despossuída de espírito. Mas
livro mais sombrio jamais escrito por um homem de temperamento será que em algum momento se pergunta (se é que a questão sequer
alegre — os Colloquies on the Progress and Prospects of Society, de ocorre à mente de alguém) se ele compreende a sua própria época?
Southey — uma ilustração deveras curiosa e instrutiva de um dos E, no entanto, também isso é história, e a parte mais importante da
pontos de vista desde os quais o espírito da época pode ser contem- história, e a única parte que um homem pode conhecer e compreender
plado. Aqueles que preferem os desvarios de um político partidário com absoluta certeza mediante o emprego dos meios apropriados.
aos pensamentos de um recluso podem consultar um velho artigo Numa caminhada matinal, ele pode aprender mais a respeito da
na Blackwood’s Magazine, com o mesmo título com que prefixei este história da Inglaterra no Século XIX do que todos os auto-nomeados
tratados de história lhe dirão sobre os outros dezoito séculos, pois
artigo. Para vermos o cenário oposto, basta-nos olhar para qualquer
raramente passa pela cabeça de alguém registrar os fatos óbvios e
jornal ou resenha populares.
universais, que todos veem e com os quais ninguém se espanta, e a
Em meio a todas esses louvores ou ataques igualmente indiscri- posteridade, se é que aprende a regra, aprende-a geralmente graças à
minados, essas esperanças e esses temores igualmente sem nuances, atenção concedida pelos contemporâneos a alguma exceção acidental.
parece ser um objeto muito apropriado de investigação filosófica o E, no entanto, políticos e filósofos são perpetuamente exortados a

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

julgar o presente com fundamento no passado, quando o presente permanecendo com os procedimentos antigos que elas serão endi-
por si só fornece uma base de materiais que serve ao julgamento, reitadas. A sociedade exige e espera não apenas uma nova máquina
uma base mais rica do que todos os depósitos do passado e muito mas uma máquina construída de uma nova maneira. A humanidade
mais acessível. não será conduzida por suas velhas máximas nem pelos seus velhos
Contudo, é desaconselhável deter-nos por mais tempo neste guias, e as pessoas não escolherão nem as suas opiniões nem os seus
tópico, para que não se considere que exageramos propositalmente guias como o fizeram até o presente. Os antigos textos constitucionais
a magnitude dessa necessidade, para cuja satisfação desejamos que o eram no passado como feitiços que espicaçavam ou acalmavam o
leitor nos julgue qualificados. Seria melhor, sem maiores preâmbulos, ânimo do povo inglês a bel-prazer. O que foi feito dos seus encan-
entrar logo no assunto e que sejamos julgados pelos nossas próprias tos? Quem pode manter a esperança de influenciar a consciência do
ideias e não pela necessidade que possa haver delas. público por meio das antigas máximas do direito, do comércio ou da
política externa ou eclesiástica? Quem ainda tem seus sentimentos
A primeira das principais peculiaridades da presente época inflamados pelos lemas e divisas dos Whigs ou dos Tories? E que
é que é uma época de transição. A humanidade superou as antigas homem, seja Whig ou Tory, seria capaz de comandar dez seguidores
instituições e as antigas doutrinas, sem, no entanto, ter adquirido na peleja política só pelo peso de sua própria autoridade pessoal?
novas. Quando dizemos que houve superação, não pretendo prejulgar Mais ainda: que senhorio conseguiria conduzir seus inquilinos e
nada. Um homem não é nem melhor nem mais feliz aos vinte e seis que fabricante de manufaturas conduziria seus subordinados? Será
anos de idade do que aos seis, mas a mesma jaqueta que então nele que os pobres respeitam os ricos ou adotam suas opiniões? Será
cabia não cabe mais agora.
que os jovens respeitam os velhos ou adotam suas opiniões? Acerca
O traço proeminente da que acabamos de salientar no modo das opiniões de nossos ancestrais quase se pode dizer que retemos
de ser da época presente até uns poucos anos atrás era óbvio apenas apenas aquelas que representam a melhora natural e necessária da
para as pessoas de maior discernimento. Atualmente, ele se impõe sociedade humana, seja lá como tenha sido constituída. E, de minha
até aos mais desatentos. Muita coisa há que poderia ser dita e que parte, limito-me a adotar a a expressão enérgica empregada por um
será dita, numa ocasião propícia, sobre a maneira pela qual o antigo membro da Câmara dos Comuns há menos de dois anos, quando
arranjo das coisas se tornou inadequado ao estado da sociedade e disse que mesmo os jovens de alta posição social estão dispostos a
da mente humana. Mas, quando todas as nações do continente eu- alardear publicamente que estão em busca de opiniões.
ropeu atingiram, ou estão caminhando rapidamente para atingir,
Visto que os fatos são tão evidentes, é maior a chance de que
uma mudança em sua forma de governo, quando o nosso próprio
umas poucas reflexões sobre suas causas e prováveis consequências
país, em todos os períodos anteriores o mais apegado da Europa às
suas antigas instituições, proclama quase a uma só voz que elas são recebam do leitor aquela fatia de sua atenção de que porventura
viciosas tanto em seus contornos gerais quanto em seus detalhes, sejam merecedoras.
e que elas haverão de ser renovadas e purificadas e adequadas ao No que respeita, então, ao descrédito pelo qual foram aco-
homem civilizado, então já podemos pressupor que uma parte dos metidas as antigas instituições e as antigas doutrinas, posso tomar
efeitos da causa logo acima apontada fala por si mesma de maneira como premissa que tal descrédito é, segundo penso, inteiramente
suficientemente ruidosa. Para aqueles que são capazes de reflexão, merecido. Tendo afirmado isso, talvez me seja dado esperar que o
mesmo esses efeitos não são mais do indicações que apontam para restante das minhas observações não será objeto de interpretações
uma mudança mais vital e radical. Não se dá meramente o caso de perversas, caso algumas delas não sejam tão agradáveis às opiniões
que, na opinião de quase todos os homens, as coisas tais como estão correntes como posso ter levado alguém a crer no começo. O melhor
estejam erradas, mas que, de acordo com a mesma opinião, não será guia não é aquele que se limita a tecer elogios quando as pessoas estão

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

no caminho certo, mas é aquele que lhes mostra as armadilhas e os as classes superiores. E não seria difícil apresentar as encarnações
despenhadeiros que o periclitam, e, acerca dos quais, quando estavam políticas e literárias de ambos os tipos. Nem logro ver, nas observa-
no caminho errado, não era necessário adverti-los. ções que sou capaz de fazer dos meus contemporâneos, provas de
que carreguem em si qualquer princípio que os torne muito menos
Há uma maneira muito fácil e muito agradável de explicar
propensos agora a ser desencaminhados por sofismas e preconceitos
esse abandono geral dos padrões de pensamento dos nossos ances-
do que em qualquer período anterior. Tudo o que percebo é que as
trais — tão fácil, na verdade, e tão agradável, particularmente para
opiniões que lhes foram transmitidas por seus ancestrais não são o
o ouvinte, a ponto de ser muito conveniente para os escritores à
tipo de sofismas e preconceitos que são aptos a exercer qualquer grau
busca de emprego ou de aplauso, que se dirigem não aos homens da
considerável de ascendência sobre seu arcabouço mental alterado. E
época encerrada mas daquela que se iniciou. Essa explicação é a que
estou bastante propenso a explicar esse fato de uma maneira que não
atribui o estado alterado das opiniões e dos sentimentos à ampliação
redunde para a nossa época em honrarias tão extraordinariamente
do entendimento humano. Consoante essa doutrina, rejeitamos os
grandes, o que seria o caso se verdadeira a teoria que tudo atribui à
sofismas e os preconceitos que desencaminharam as mentes sem
superior expansão de nosso entendimento.
cultivo de nossos ancestrais porque aprendemos demais e nos tor-
namos sábios demais para que nos sejam impostos tais sofismas e As tendências intelectuais da época, vistas em seus aspectos
tais preconceitos. Seria o nosso saber e a nossa sagacidade que nos favoráveis e desfavoráveis, requerem forçosamente, para a perse-
mantêm livres desses erros grosseiros; e os charlatães não são mais cução do projeto em curso, que a examinemos e analisemos com
capazes de nos enganar. algum detalhamento. Pelo momento, pode ser o bastante notar que
raramente é seguro fundamentar um julgamento positivo de um
Não posso adotar essa teoria. Embora seja um firme crente no
personagem com base em meros traços negativos. E que as falhas
avanço da época, não creio que seu avanço tenha sido dessa natureza.
e os preconceitos que uma pessoa, uma época, ou uma nação não
A grande realização da época presente é a difusão do conhecimento
possuem, de muito pouco servem para que um homem sábio forme
superficial; e certamente não é uma coisa à toa a ser alcançada por uma
deles uma opinião elogiosa. Uma pessoa pode ser desprovida de todo
única geração. As pessoas que possuem um conhecimento suficiente
e qualquer preconceito e, no entanto, ser completamente inapta para
para a formação de opiniões sólidas por seus próprios meios também
qualquer propósito natural. Ter convicções errôneas é um mal, mas
constituem um contigente em crescimento constante, mas que até o
momento presente foi em todas as épocas um contingente pequeno. não ter nenhuma convicção enfática ou bem enraizada é um mal
Seria levar demasiadamente a sério a noção de que o intelecto progride enorme. Antes que eu possa cumprimentar um homem ou uma
supor que o homem médio da época atual seja superior aos maiores geração por terem se livrado de seus preconceitos, exijo saber pelo
homens do Século XVIII. E, no entanto, eles albergaram muitas opi- que foram substituídos.
niões a que estamos renunciando rapidamente. O nível intelectual de Bem, é auto-evidente que opiniões consolidadas geralmente
nossa época, portanto, não é a causa que buscamos. Não consigo crer ainda não se firmaram no lugar daquelas que abandonamos e que
que exista o que quer que seja, tanto no treino mental recebido pela nenhuma doutrina recente, quer filosófica ou social, consegue já
imensa maioria daqueles que em meu país constituem o público leitor merecer, nem parece prestes a fazê-lo em breve, um assentimento
e pensante quanto no tipo de conhecimentos e de outros alimentos remotamente comparável em sua unanimidade àquele de que as
intelectuais que lhes foram fornecidos, que seja apto a aumentar a antigas desfrutavam enquanto estavam em voga. Enquanto essa
probabilidade de que se tornem muito menos suscetíveis à impostura anarquia intelectual perdurar, estaremos justificados em crer que
e ao charlatanismo do que jamais o foram. Os Drs. Eadys ainda en- estamos num bom caminho para nos tornarmos mais sábios do que
gabelam as classes inferiores, assim como os St. Longs o fazem com nossos antepassados, mas seria prematuro afirmar que já somos

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

mais sábios. Ainda não avançamos para além do estado inquieto doutrina é verdadeira, é amiúde necessário examinar e sopesar uma
de nossas mentes, quando descobriram recentemente o seu grave imensa variedade de fatos. Um único fato bem estabelecido, se for
erro, não tendo ainda se satisfeito na obtenção da verdade. Os ho- irreconciliável com uma doutrina, é suficiente para provar que ela
mens da época atual se limitam a inclinar-se por uma opinião, de é falsa. Vou além. Opiniões muitas vezes são destronadas por sua
preferência a efetivamente abraçá-la; poucos, à exceção dos mais própria incoerência, e a impossibilidade de que tenham um funda-
atilados, ou dos mais presunçosos, têm plena confiança em suas mento sólido pode ser suscetível de demonstração ante uma mente
próprias convicções. Não se vê nisso o estado de pessoas saudáveis que não esteja de posse sequer de uma única verdade positiva. Todas
mas, na melhor das hipóteses, de convalescentes. É um estágio as inconsistências internas de uma opinião, sua discordância com
necessário no progresso da civilização, mas é acompanhado de fatos óbvios, ou mesmo com outros preconceitos são coisas tais que
numerosos males, assim como uma parte de uma estrada pode ser a discussão elucida e torna manifestas. E, na verdade, tal gênero de
mais irregular ou perigosa do que as outras, embora cada passo refutação, por requerer menos estudo e menos conhecimento genuíno
leve o viajante mais próximo de sua destinação almejada. Não é o do que qualquer outro, é mais bem adaptado às inclinações da maior
aumento da sabedoria, mas uma causa de cuja realidade podemos parte dos contendores. Mas o momento ou estado de espírito em que
ter mais certeza, que pode servir para explicar a decadência dos os homens se desgarram de um erro não é, exceção feita às criaturas de
preconceitos. É o aumento na frequência das discussões. É possível constituição mais afortunada, o mais favorável para aqueles processos
que os homens não raciocinem melhor acerca das grandes questões mentais que são necessários para a investigação da verdade. O que
de interesse para a natureza humana, mas eles raciocinam mais. os conduziu numa direção errada no princípio geralmente não foi
Assuntos de vulto são mais discutidos, e por mais tempo, e por nada senão a incapacidade de discernir mais de uma coisa por vez,
um maior número de mentes. A disposição para discutir penetrou e essa incapacidade tende a acompanhá-los quando tiverem voltado
mais profundamente a sociedade. E, se não se deu o caso de que seus olhos numa direção alterada. Normalmente, eles decidem que
um número maior de pessoas do que antes atingiram os patamares a nova fonte de luz que raiou sobre eles será a única fonte, e eles, de
mais elevados de inteligência, um número menor rasteja naquele modo obstinado e passional, apagam a velha lâmpada que, embora
estado de estupidez abjeta que só pode coexistir com a mais absoluta não lhes tenha mostrado aquilo que agora veem, serviu muito bem
apatia e estagnação. para clarear os objetos em sua vizinhança imediata. Quer os homens
O progresso que obtivemos é precisamente aquele tipo de pro- mantenham sua adesão a opiniões antigas ou adotem novas opiniões,
gresso que o aumento na frequência das discussões é suficiente para eles têm, em geral, uma propensão invencível a dividir a verdade pela
produzir, quer seja acompanhado de um aumento da sabedoria ou não. metade e a se apossar de uma metade ou de menos de uma metade,
Discutir e questionar as opiniões estabelecidas são meramente duas e preservam o hábito de erguer suas penas e de se eriçar como um
expressões para designar a mesma coisa. Quando todas as opiniões são porco espinho no confronto com qualquer um que lhes apresente a
questionadas, descobre-se com o passar do tempo quais são aquelas outra metade, como se estivesse tentando privá-los da porção que
que não resistiram a um exame minucioso. As doutrinas antigas têm possuem.
suas provas avaliadas, e descartam-se aquelas que eram errôneas na Passa longe de mim a intenção de negar que, além de nos
origem ou que assim se tornaram com a mudança das circunstâncias. livrarmos dos erros, também estejamos alargando continuamente
A discussão faz isso. Também é por meio da discussão que as opiniões o estoque de verdades positivas. Nas ciências físicas e nas artes, isso
verdadeiras são descobertas e difundidas. Mas esse último ganho não é evidente demais para ser posto em dúvida, e creio que é também
é uma consequência tão assegurada quanto o é o enfraquecimento uma verdade inegável nas ciências morais e sociais. Os homens mais
dos erros. Para estarmos racionalmente seguros de que uma dada sábios de todas as épocas normalmente superam em sabedoria os mais

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

sábios de qualquer época precedente, porque os homens mais sábios dessas instituições e não pela afronta a elas. A ambição individual
possuem e tiram proveito do acúmulo sempre crescente de ideias não luta por elevar-se, a não ser pelas veredas que a lei reconhece e
de todas as épocas. Mas a pluralidade dos homens (referindo-me à admite. Os poderes dominantes não têm nenhum interesse imediato
maioria em todas as classes) possuem as ideias de sua própria época em contrapor-se ao progresso da civilização; a sociedade fica esta-
e nenhuma outra. E, se a pluralidade dos homens de uma época estão cionária ou se move para frente apenas nas direções nas quais o seu
mais próximos da verdade do que os de qualquer outra, tal é o caso progresso não as leva a colidir com a ordem estabelecida das coisas.
apenas à medida que sejam guiados e influenciados pela autoridade Pode-se dizer que a sociedade se acha em seu estado transicional
dos mais sábios entre eles. quando ela alberga outras pessoas mais aptas ao exercício do poder
Isso está relacionado com certos aspectos que, segundo me mundano e da influência moral do que aquelas que até o presente
parece, não foram objeto de atenção suficiente da parte daqueles os desfrutaram — quando o poder mundano e a maior capacidade
que, assim como eu, professam a doutrina da propensão ilimitada existente para o trato dos assuntos mundanos já não estão mais unidos
da mente humana para o progresso. São aspectos que devem ser mas separados; e quando não existe em absoluto a autoridade que
compreendidos para que se logre uma apreciação correta do caráter estabelece as opiniões e molda os sentimentos daqueles que não estão
da época atual, enquanto época de transição política e moral... acostumados a pensar por si mesmos ou, caso exista, não reside em
Os assuntos da humanidade, ou de quaisquer daquelas socie- lugar algum exceto nos intelectos mais cultivados e nos personagens
dades políticas a que chamamos de nações, estão sempre em um ou mais exaltados da época.
outro de dois estados, um dos quais é duradouro por natureza, ao Quando este é o estado de coisas, a sociedade ou já entrou ou
passo que o outro é essencialmente transitório. Ao primeiro desses está prestes a entrar em um estado no qual não há doutrinas estabe-
estados podemos chamar de estado natural, ao segundo, de estado lecidas, e no qual o universo das opiniões é um mero caos, e no qual,
transicional. no que toca aos assuntos mundanos, quem quer que esteja insatisfeito
Pode-se dizer que a sociedade se acha em seu estado natural com alguma coisa ou por alguma razão se refugia imediatamente
quando o poder mundano e a influência moral são exercidos de forma em uma alteração nas condições do poder mundano como forma
habitual e inconteste pelas pessoas mais aptas que a sociedade tem a de obter algo que afastaria o que considera como a causa de sua in-
oferecer no seu estado atual. Ou, para sermos mais explícitos, quando, satisfação. E isso prossegue até que uma revolução social ou moral
por um lado, os interesses temporais, ou, como os franceses diriam, (ou, porventura, uma série delas) tenha colocado novamente o poder
os interesses materiais, da comunidade são geridos por aqueles dentre mundano e a influência moral nas mãos dos mais competentes —
quando a sociedade está novamente em seu estado natural e retoma
os seus membros que possuem a maior capacidade para tal gestão,
o seu progresso no mesmo ponto em que havia sido anteriormente
e, quando, por outro lado, aqueles cujas opiniões são seguidas pelas detido pelo sistema social abalado.
pessoas, cujos sentimentos elas absorvem e que, na prática e com
assentimento geral, desempenham, não importando a que título, a O objetivo deste ensaio, assim como o daquele que o sucederá, é
mostrar que as mudanças na estrutura visível da sociedade que estão
tarefa de pensar pelo povo são as pessoas mais qualificadas do quais-
manifestamente chegando, aguardadas com horror por tantos e por
quer outras, dentre aquelas compatíveis com o estado civilizacional tantos outros com um tipo de esperança muito distinto daquele que
da época e do país, para pensar e julgar de modo correto e útil. eu sinto, são os meios pelos quais haveremos de atravessar nosso atual
Nessas circunstâncias, o povo, embora possa por vezes se sentir estado transicional, e que a mente humana haverá de retomar seu
infeliz e, em consequência disso, descontente, tem o hábito de consen- curso sereno e regular para diante — um curso tão pouco perturbado
tir com as leis e instituições que o regem, e busca amparo por meio por convulsões ou anarquia, seja no universo político ou no moral,

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quanto nos melhores tempos até esta parte, sendo, no entanto, muito testemunha do bom-senso admirável com o qual os cargos mais
mais favorecido do que qualquer período anterior no que concerne elevados foram concedidos. Em todas as eleições presidenciais, a
aos meios de avanço rápido, além de menos obstada pelo efeito de escolha popular recaiu sobre a pessoa que, conforme todos os expec-
forças contrárias. tadores imparciais devem admitir, era a mais apta aos olhos do povo,
até onde ia seu conhecimento das circunstâncias. Nem tampouco é
Comecemos com as condições do poder mundano.
possível nomear uma única pessoa notavelmente qualificada para o
Há dois estados sociais, que são distintos em outros aspectos, cargo e que não tenha o obtido no caso de candidatar-se. Nos dois
mas que estão de acordo quanto ao fato de que o poder mundano é únicos casos em que a experiência subsequente não corroborou o
habitualmente exercido pelos homens mais aptos. Um deles se apre- julgamento do povo, o erro foi corrigido na primeira oportunidade
senta quando os detentores do poder são propositalmente selecionados admitida pela lei.
em razão de sua aptidão. O outro se dá quando as condições sociais
Contudo, mesmo supondo que, em comunidades constituídas
são de tal natureza que a posse do poder por si mesma faz brotar as
como os Estados Unidos, os detentores do poder não fossem, como
qualificações para o seu exercício em um grau superior do que podem
de fato são, as pessoas mais qualificadas, resta o fato de, pelo menos,
ser adquiridas por quaisquer outras pessoas naquele estado social.
são aqueles que o povo imagina serem. O povo, como consequência
O primeiro caso foi exemplificado pelas repúblicas mais bem disto, está satisfeito com as suas instituições e com os seus dirigen-
constituídas da antiguidade e agora se torna realidade nos Estados tes e, assim, não sente nenhuma inclinação a culpar a ordem social
Unidos da América. O segundo prevaleceu na maior parte das nações existente pelos seus padecimentos privados, nem de buscar uma
europeias durante a Idade Média. melhora em suas circunstâncias por quaisquer meios que causem
Nas melhores repúblicas da Antiguidade, todos os cargos, quer repugnância a tal ordem.
políticos ou militares, para os quais se suponham necessárias habi- Além desses exemplos, em que a gestão dos assuntos da
lidades peculiares, eram concedidos àqueles homens que possuíam comunidade está nas mãos mais aptas porque tais mãos são deli-
as maiores qualificações pessoais para administrar os assuntos do beradamente escolhidas e dela encarregadas, há um outro gênero
estado e que os administrariam valendo-se das melhores ideias da de casos, nos quais o poder não é alocado a quem já é o mais apto,
época, consoante o parecer dos melhores juízes, os cavalheiros edu- mas tem uma firme propensão a fazer da pessoa à qual é alocado a
cados da nação (pois era isso o que eram essencialmente os cidadãos mais apta. O caso extremo desse estado social é aquele de um clã de
livres de Atenas e, em seus melhores dias, os de Roma). A sabedoria Highlanders — e todas as outras pequenas sociedades de bárbaros
das suas escolhas era normalmente evidenciada, no caso de Atenas, são assemelhadas no essencial. O chefe de um clã é um déspota
pela sequência extraordinária de grandes homens pelos quais eram tanto quanto os costumes e opiniões possam torná-lo. Ele não é
geridos os negócios daquela pequena comunidade, e que dela fizeram escolhido por nenhuma qualidade própria, pois seu cargo é em
a fonte de luz e sabedoria para o mundo, o exemplo mais inspirador todos os casos hereditário. Mas ele é adestrado para ele e o praticou
e enobrecedor produzido pela história do que é capaz de realizar a desde a sua juventude, ao passo que todos os demais membros da
natureza humana. No caso de Roma, o mesmo fato é demonstrado comunidade são adestrados para alguma outra coisa e a praticam,
com a mesma certeza pelo progresso firme e ininterrupto daquela e, assim, nunca têm a oportunidade de receber o treinamento
comunidade das origens mais humildes à maior extensão de pros- necessário. Ademais, a situação da própria sociedade não permite
peridade e poder. que o chefe seja inteiramente destituído das qualidades necessárias
Nos Estados Unidos, onde os homens chamados ao exercício para liderar o clã em combate e o guiar em concílios. É inerente à
do poder o são pelo clamor geral de todo o povo, a experiência é sua existência e à de seus subordinados que ele deva ser capaz de

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

perseverar em circunstâncias de considerável dificuldade. Visto que e, por outro lado (numa maneira a ser explicada subsequentemen-
os homens normalmente conseguem as faculdades absolutamente te) a de fazer com que os que monopolizam o poder se tornem, na
indispensáveis, o líder de um clã dificilmente será absolutamente verdade, menos aptos para tanto do que eram no início.
inapto para governar; os membros do clã são aptos para a execução, Bem, a proposição que estou prestes a provar é a de que se forneceu
e às vezes para o conselho, mas raramente para o comando. O líder, acima uma descrição correta do processo que vem se desenrolando
por conseguinte, ainda é o mais apto, ou ao menos tão apto quan- na Europa moderna por uma considerável extensão temporal. Tal
to qualquer outra pessoa, e o caráter essencial do estado natural é como segue: a qualificação prática para o poder tem sido, e ainda
da sociedade é realizado, já que as pessoas confiam naqueles que é, algo bem diverso do que a genuína aptidão para exercê-lo, quer
conduzem os seus assuntos. seja real ou presumida, e, no entanto, por muito tempo, os detento-
Entre esses dois estados sociais, aquele em que a capacidade res do poder possuíram, em razão das circunstâncias inescapáveis
leva os homens ao poder e aquele em que o poder faz brotar sua da sociedade, uma maior aptidão do que a possuída por quaisquer
capacidade, há esta diferença importante, a saber a de que o primeiro outras pessoas de sua época, aptidão esta que eles vêm perdendo há
estado não contém em si mesmo as sementes de sua própria disso- algum tempo, ao passo que outros a vêm obtendo graças ao avanço
lução. Uma sociedade dirigida pelos seus membros mais capazes, da civilização, até chegarmos ao ponto e, que o poder e a aptidão
seja lá onde devam ser encontrados, pode sem dúvida chegar ao para o poder deixaram de coexistir nas mesmas mãos, e que esta é
fim, como o demonstram muitos casos, mas ao menos a sua dis- uma razão proeminente, no que concerne às circunstâncias políticas,
solução nunca é a consequência de sua própria organização, visto para a insatisfação geral com a presente ordem social e o estado de
que toda nova força intelectual crescente assume seu lugar natural inquietude que assola a opinião pública.
na ordem social existente e não se vê obrigada a fazê-la em pedaços Desde os períodos mais remotos entre as nações europeias, o
para progredir. Mas, quando a posse do poder está assegurada a poder mundano pertenceu a uma classe em particular, a dos ricos. Por
pessoas em particular independentemente de sua capacidade, tais muitos séculos, a posse de terras era a única riqueza, e a aristocracia
pessoas podem ser as mais aptas hoje e as mais incapazes amanhã. detentora de territórios era a única classe que abrigava pessoas ricas.
E esses arranjos sociais estão expostos à possibilidade de uma Num período posterior, a riqueza sob a forma de terras deixou de ser
destruição certa em razão de qualquer fator que faça ascenderem objeto de tão grande apreço para alguns famílias nobres, enquanto
na sociedade pessoas mais aptas para o poder do que aquelas que a riqueza advinda do comércio e da manufatura cresceu gradual-
agora o possuem. Afinal de contas, embora os homens, em todas as mente, espraiando-se para muitos. O poder mundano, expressão na
épocas exceto as de transição, estejam sempre prontos a obedecer e qual incluo toda influência direta sobre os assuntos mundanos da
amar aqueles que veem como mais capazes de governá-los do que comunidade, tornou-se proporcionalmente mais difundido. Passou,
eles são de governarem a si mesmos, não está em conformidade com então, a pertencer a duas classes e a elas exclusivamente: a dos ricos
a natureza humana concedermos uma obediência a homens que em virtude das terras que possuem e a dos endinheirados de outra
não são julgados mais sábios do que nós mesmos, especialmente matriz. E tal poder continua em suas mãos.
quando aqueles que de fato julgamos mais sábios dizem-nos que nos Por muitos anos, todos sentiam que esses eram os depositários
governariam de outra forma. A não ser, portanto, que este estado por excelência do poder, visto que possuíam, na média, qualifica-
social seja constituído para prevenir por completo o progresso da ções tais para exercê-lo que nenhum outro membro da comunidade
civilização, tal progresso sempre acaba por destroná-lo, sendo a poderia racionalmente esperar adquirir no então existente estado
tendência da civilização, por um lado, a de tornar alguns daqueles civilizacional. Não se pode, por exemplo, imaginar que os morado-
que foram excluídos do poder cada vez mais aptos para exercê-lo, res de vilarejos ou os servos, ou mesmo os pequenos proprietários,

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

pudessem ser, durante aquelas épocas em que não havia nada a ser sem jamais terem realmente considerado o que de fato é, apoiados
aprendido dos livros e tudo da prática e da experiência, tão aptos a naquele gênero de retórica definida por Platão como a arte de pa-
comandar a nação em batalhas, ou a deliberar sobre os seus assun- recer profundamente versado num assunto diante daqueles que o
tos em reuniões, quanto aqueles a quem se ensinara a considerar desconhecem por completo). Afirmo, por conseguinte, que aqueles
tais prerrogativas como suas devidas funções e ocupações e que que se empenharam em erigir uma filosofia indutiva da história
haviam sido treinados para se fazerem aptos a desempenhá-las de podem ser acusados de não terem levado suficientemente em conta
todas as formas propiciadas pelos concepções daqueles tempos e as qualidades em que a os homens, em todas as épocas e nações,
que, mediante uma prática constante, possuíam em seu mister ao são assemelhados, o que fizeram por terem se deixado impressionar
menos aquele mesmo tipo de superioridade de que um trabalhador indevidamente pelas diferenças. Contudo, há um erro oposto em
manual experimentado desfruta sobre alguém que nunca manejou que são especialmente propensos a incorrer aqueles que constroem
uma ferramenta. sua filosofia política com fundamento no que chamam de princípios
Não se está fazendo de conta que os barões eram em si universais da natureza humana. Essas pessoas amiúde formam
mesmos muito aptos para o poder, nem que não o usassem muito seus julgamentos de casos particulares como se elas imaginassem,
mal. Eles o faziam, consoante o registro histórico, em uma exten- em decorrência dos princípios gerais da natureza humana, que são
são assustadora. Mas não se pense que eu concorde sequer com a todos como aqueles que tomam como universalmente verdadeiros
metade de tudo quanto se diz para depreciá-los e isso por muitos no que concerne ao povo de sua própria época e país. Deveriam
daqueles que se houvessem sido seus contemporâneos, teriam muito levar em conta que se, por um lado, é verdade que existem algumas
provavelmente os admirado, vez que não tinham nenhum padrão tendências da natureza humana e algumas circunstâncias que cer-
de julgamento além das ideias de sua própria época. Mas aqueles, cam os homens de uma tal feição que são as mesmas em todas as
em comparação com os quais uma época incivilizada é provida épocas e países, essas nunca constituem o todo das tendências ou
com pessoas mais aptas, podem ser, no entanto, muito inaptos em das circunstâncias que existem em uma época ou país em particular.
si mesmos. E o poder, que não presta contas àqueles interessados Cada uma possui, junto dessas tendências invariáveis, outras tantas
em ver seu emprego apropriado, provavelmente será objeto de que são mutáveis, e pertencentes a si muito peculiarmente. E, em
abuso, mesmo que pertença às pessoas mais aptas, em não apenas nenhuma época, à medida que progride a civilização, as circuns-
em uma época de rudeza circundante mas até na da mais elevada tâncias prevalentes são as mesmas que na época precedente, nem
civilização. Esse é um daqueles princípios aos quais, em todas os se dá o caso de que essas tendências operem precisamente sob o
casos e circunstâncias em que o ser humano se encontrou ou que efeito das mesmas circunstâncias externas.
podemos racionalmente esperar encontrá-lo, deve ser concedida a Não devemos, portanto, culpar (coisa que algumas pessoas
importância primordial que lhe cabe, qualquer que seja o estado da são dadas a fazer) as pessoas da Idade Média por não terem bus-
civilização que estamos considerando. Talvez este fato não tenha cado se cercar de garantias contra o poderio irresponsável de seus
sido sempre devidamente assinalado pelos políticos da Escola Histó- governantes, convencendo-nos, assim, que, naquela época ou em
rica (vale dizer, entenda-se, os investigadores realmente profundos quaisquer outras, poderiam existir instituições populares se a
e filosóficos da história em atuação na França e na Alemanha, e maioria tivesse o bom-senso necessário para perceber sua utili-
não os Plausibles(25) que, em nosso próprio país, tão assolado pela dade e a determinação de exigi-las. Culpar nossos ancestrais por
superficialidade e pelo charlatanismo, tagarelam sobre a indução não terem tido parlamentos convocados anualmente, o sufrágio
universal e o voto na urna seria como discutir com os gregos e
(25) Praticantes de charlatanismo intelectual que estavam então em voga na os romanos por não terem usado a navegação a vapor, sabendo o
Inglaterra. quanto ela é segura e veloz. Tal seria, em suma, culpar o terceiro

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

século antes de Cristo simplesmente por não ser o décimo oitavo pessimamente geridos por seus senhores, naquela péssima época,
depois dele. Foi necessário que muito mais coisas fossem objeto do do que o povo poderia tê-los gerido por si mesmo. O exército de
pensamento e da ação antes que, em conformidade com as leis que Godefroi de Bouillon(27), na Primeira Cruzada, não foi um instru-
regem os assuntos humanos, a navegação a vapor pudesse se tornar mento tão eficiente de embate militar quanto aquele do Duque de
um objeto possível de cogitação. A natureza humana deve cami- Wellington(28), em 1815. Mas foi consideravelmente mais eficaz do
nhar passo a passo, tanto na política quanto na física. As pessoas que o exército de Pedro, o Ermitão(29), que o precedeu.
da Idade Média sabiam muito bem se eram oprimidas ou não. E a Desses comentários logo se depreenderá o quanto eu divirjo,
opinião da maioria, acrescida do medo da vingança que pudesse por um lado, daqueles que, por perceberem como as instituições dos
ser levada a cabo por algum indivíduo lesado, funcionava em uma nossos antepassados seriam ruins para nós, imaginam que elas eram
certa medida, ainda que de forma alguma suficiente, para restringir ruins para as pessoas para as quais foram criadas, e como também
a opressão. A sociedade ainda não estava madura para qualquer divirjo, por outro lado, daqueles que invocam ridiculamente a sabe-
restrição mais efetiva do que esta. Livrar-se dos seus senhores e doria dos nossos ancestrais como autoridades acerca de instituições
mestres, criando outros, seria o mesmo que comprar um governo que são agora inteiramente diferentes do que foram, por mais que
ainda pior ao preço de uma convulsão. Conceber, estabelecer e fazer possam haver preservado a mesma forma. As instituições de nossos
funcionar os mecanismos de um governo responsável — tais eram ancestrais serviram toleravelmente bem aos nossos ancestrais, e
impossibilidades para o estado mental humano de então. Embora não como consequência de sua sabedoria, mas, antes, em razão de
a ideia tivesse sido concebida, não podia se tornar uma realidade. uma causa à qual, receio dizer, quase todas as boas instituições um
Vários estágios anteriores de civilização tinham de ser previamente dia existentes deveram as suas origens, a saber, a força das circuns-
atravessados. Sendo a natureza das coisas o que é, uma insurreição tâncias. Contudo, os detentores do poder nos dias atuais não são os
dos camponeses contra seus senhores feudais só poderia ter sido o sucessores naturais dos detentores do poder na época dos ancestrais.
que de fato foi: uma Jacquerie.(26) Pois para qualquer esforço mais Eles podem talvez ter um direito legítimo a herdar a propriedade dos
racional, fazia-se necessário um poder de auto-contenção no inte- antigos barões. No entanto, o poder político, como tal, deriva, como
resse do propósito de união, além de um grau de confiança mútua se verificará a longo prazo, da operação de uma outra lei.
que não se pode culpar os camponeses por não possuírem, visto
Não é necessário que eu note que até um período compara-
que só poderia surgir lentamente como resultado de hábitos de ação
tivamente recente ninguém, à exceção dos ricos, e poderia mesmo
concertada para propósitos outros, os quais, em um país extenso, só
dizer, dos ricos em virtude da herança, tinha ao seu alcance a
podem coexistir com um elevado patamar civilizacional. Assim que
obtenção da inteligência, do conhecimento e dos hábitos que são
qualquer parte da população adquiriu efetivamente este hábito de
necessários para fornecer a um homem, em um grau aceitável, as
agir conjuntamente, procurou verdadeiramente melhores garantias
de segurança na ordem política e as obteve, como o testemunha a
(27) Godefroi de Bouillon (1060 — 1100), militar e nobre a serviço dos exércitos
ascensão das cidades livres e das corporações, em toda a Europa.
francos na Primeira Cruzada, nela destacou-se como um dos seus líderes.
Assim, o povo na Idade Média tinha governos tão bons quanto as Foi o primeiro soberano do Reino Latino de Jerusalém, que por pouco
circunstâncias da época permitiam; seus assuntos eram menos mais de um século tomou a Terra Santa do domínio sarraceno a que fora
submetida desde o Século VII.
(26) O termo é por vezes usado como sinônimo de levante medieval. Alude ao (28) Arthur Wellesley (1769 — 1852), o Duque de Ferro. Foi um general e estadista
apelido dado ao líder de um de tais levantes, um Jacques Bonhomme, cujo de origem irlandesa que liderou os britânicos na Batalha de Waterloo (1815),
nome verdadeiro é incerto. Trata-se do líder da revolta francesa de 1358. logrando vitória decisiva contra Napoleão Bonaparte, imperador francês.
As Jacqueries se caracterizavam pelo seu caráter anárquico e desorganizado. (29) Pedro, o Ermitão (1050? — 1115?), monge e pregador francês de papel
Costumavam ser massacradas de forma rápida e brutal. destacado na Primeira Cruzada.

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qualidades requeridas para gerir os assuntos do seu país. Não é Não é inteiramente equivocada a noção que absorvemos
necessário que eu mostre que as coisas não são mais assim, nem nas escolas, proposta por escritores modernos acerca do declínio
quais são as circunstâncias que as modificaram, tais como a me- das antigas comunidades, segundo a qual uma vida de luxo obs-
lhora nos artifícios da vida, que forneceram facilidades e conforto curece e debilita a mente. É bem verdade que esses autores (cujas
a grandes contingentes de pessoas desprovidas do nível de riqueza opiniões, na verdade, não resultaram de processos do pensamento
que propicia o poder político, a alfabetização crescente, a difusão em suas próprias almas imitativas mas, antes, foram um resíduo
da educação elementar, o aumento da população citadina, que da pálida impressão deixada pelo fulgor de um raio da filosofia
aglomera multidões de homens e os acostuma a examinar e discutir estoica da Grécia e de Roma, refratado ou desviado de sua dire-
assuntos importantes. E há várias outras causas, que são de todos ção pelo meio lamacento pelo qual passara) estavam errados ao
conhecidas. Tudo isso, no entanto, nada mais é do que a aquisição
tomar como princípio que o prazer debilita, como se o prazer,
por parte de outras pessoas, ainda que num grau inferior, de al-
passível de ser obtido apenas pelo labor e ganho apenas por feitos
gumas das vantagens que sempre estiveram ao alcance das classes
heróicos, alguma vez tivesse debilitado a mente de alguém ou
superiores em grau muitíssimo maior. E, se as classes superiores
tivessem tirado tanto proveito quanto poderiam de tais vantagens, pudesse fazê-lo. O que realmente debilita é a posse assegurada e
e tivessem mantido as pessoas de sua posição social na vanguarda incontestada, sem esforço algum ser despendido para tanto, de
do progresso, elas não apenas teriam neste momento seguramente todas aquelas coisas para cuja aquisição a humanidade em geral
mantido todos os poderes do governo em suas mãos, sujeitos quiçá costuma despender esforços. Essa posse assegurada e preguiçosa
a exigências quanto à responsabilidade no seu exercício, mas pos- foi objeto do desfrute das classes superiores já por algumas gera-
sivelmente teriam até mesmo continuado a mantê-los nas mesmas ções; não foi desfrutada pelos seus predecessores do mesmo status
bases até o presente. Pois há ampla experiência a comprovar que os social e com os mesmos privilégios.
homens (que, por mais propensos que possam ser, em períodos de Quem, por exemplo, ao compulsar o catálogo dos monarcas
transição, a entreterem suspeitas sem fundamento e uma atitude que reinaram na Europa ao longo dos dois últimos séculos, have-
de desconfiança, são viciados em igual medida, em todos os outros ria de se furtar à conclusão, com base nisso e na natureza inteira
momentos, a errarem no extremo oposto, o da confiança cega e do caso, que a posição de monarca hereditário era precisamente a
ilimitada) suportarão até mesmo grandes abusos de poder, desde mais desfavorável que se podia encontrar no mundo sublunar para
que venham daqueles que reconhecem como mais aptos do que eles a aquisição de algum talento para governar? Não é, com efeito, a
mesmos a segurar as rédeas do governo.
incapacidade dos monarcas admitida, ainda que como uma in-
Mas as classes superiores, em vez de avançarem, passaram por conveniência inevitável, até mesmo pelos mais tenazes defensores
um retrocesso em todas as qualidades superiores da mente. Partilha- da monarquia, apresentada no melhor dos cenários como um mal
ram, é bem verdade, de todos os efeitos da civilização que humaniza, suscetível de abrandamento e que, ademais, evita outras males
e, em alguma medida, da difusão do conhecimento superficial, e,
muito mais fatais? Desde o começo do Século XVII, tornou-se
nisso, superam suas predecessoras. Mas tais predecessoras recebiam o
um truísmo filosófico a proposição de que os reis são geralmente
preparo e a têmpera da atmosfera revigorante de uma época bárbara,
e possuíam todas as virtudes de uma vontade forte e de uma mente inaptos para governar, e altamente propensos a delegar seus poderes
ativa e enérgica, das quais os seus descentes carecem por completo. não a estadistas mas a apaniguados, a não ser que sejam forçados
Pois tais qualidades não foram os frutos de uma educação esclarecida a escolher como ministros aqueles homens que o clamor público
habilmente destinada a esse fim, mas da peculiar posição ocupada lhes recomenda. E, no entanto, esta máxima longe está de ser
pelos detentores do poder. E essa posição não é a mesma. corroborada pela história. Uma maioria nítida de todos os reis da

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

Inglaterra anteriores à Revolução(30) serão apontados como tendo de tempos em tempos. Tão logo esses fatos se tornaram manifestos,
sido homens que, no que concerne a todos os dotes típicos de sua ficou fácil perceber o colapso da monarquia hereditária e da aristo-
época, poderiam ser comparados com os seus melhores homens. cracia hereditária, visto que jamais retornaremos novamente à época
O mesmo pode ser dito a respeito dos imperadores da Alemanha, e em que prevaleciam a violência e a insegurança, quando os homens
mesmo dos reis da França, da Espanha, dos Duques da Borgonha, eram forçados, fosse qual fosse seu pendor pela inépcia, a se tornarem
e assim por diante. Desejam saber por que motivo? Pensem em homens de talento a despeito de suas próprias características pessoais.
Eduardo II ou Ricardo II. Naquela época turbulenta, nem a posição E a humanidade nem sempre se dignará a permitir que um velho
nem o status tornava segura a situação de um homem desprovido de cavalheiro idoso ocupe a posição de mando sem insistir que ele faça
consideráveis dotes pessoais. Se o rei possuía talentos proeminentes, algo para merecê-lo. Não me abalanço a dizer em que ano específico
poderia ter o poder quase absoluto. Se fosse escravo do conforto e as distinções hereditárias serão abolidas, nem afirmo que votaria a
da dissipação, não apenas sua importância era absolutamente nula, favor de sua abolição. Mas, para o filósofo que contempla as venturas
mas o seu trono e a sua própria vida estavam em perigo constante. passadas e futuras da humanidade como partes de uma única série,
Os barões tampouco precisavam de menos energia mental ou habi- e que não atribui a uma ou duas gerações mais importância para o
lidade. O poder, ainda que não houvesse sido obtido pela capacidade cômputo das mudanças do universo moral do que atribuiria a uma ou
pessoal, poderia ser grandemente aumentado por meio dela e não duas eras para o das mudanças do universo físico, o destino último
poderia ser preservado ou desfrutado sem ela. O detentor do poder de tais distinções já está selado.
não estava na situação de alguém que é recompensado sem haver Houve um estágio intermediário na história de nossa própria
se esforçado, mas na daqueles que sentem que um grande prêmio ilha em que ainda se questionava se a Coroa deveria tomar parte do
está ao seu alcance e que é estimulado a envidar todos os esforços governo do país na condição de senhora da aristocracia, ou se apenas
necessários para a manutenção da posse segura do poder. como o primeiro e mais poderoso dos seus membros. Embora o pro-
Mas as virtudes que a insegurança faz brotar terminaram com gresso da civilização tivesse dado à aristocracia rural(31) da Inglaterra
a própria insegurança. Em uma época civilizada, embora possa ser a segurança pessoal independentemente do esforço honrado, ainda
difícil obter alguma coisa, é muito fácil a manter. Se um homem não não lhes havia conferido o poder incontestável. Nada eram, senão por
faz por merecer aquilo que obtém antes de o obter, ele tem pouco meio do Parlamento. E o Parlamento ainda não era nada, senão em
incentivo para fazer por merecê-lo daí em diante. Quanto maior decorrência de sua energia e talentos. Os grandes nomes que imortali-
for o poder que um homem tem nessas condições, tanto menos zaram o décimo-sétimo século da história inglesa pertenceram quase
provável é que o mereça. Por via de consequência, como notou-o o sem exceções à mesma classe que agora possui o poder de governar.
Sr. Hallam, a Grã-Bretanha não teve desde Guilherme III nenhum Que contraste! Basta pensar, bom Deus!, que Sir John Elliot e John
monarca possuidor de dons pessoais acima dos comuns. Nem jamais Hampden, e Sir John Colepepper e Sir Thomas Wentworth eram
terá novamente, a não ser que o capítulo do livro de incidentes seja cavalheiros rurais, e pensar em quem são os líderes parlamentares
aberto em uma página em que se tenham inscrito carácteres muito daquela classe na nossa própria época: um Knachtbull, um Bankes,
singulares. Podemos acrescentar que a Casa dos Pares mal produziu,
ao longo do mesmo período, quaisquer homens notáveis, embora (31) Gentry, no original. Trata-se daquele segmento da aristocracia cuja
alguns merecedores da descrição tenham sido ajuntados à instituição posição resultou da aquisição de terras, e não de sua linhagem sanguínea.
Em contraste com os os Pares do Reino (peerage), seus representantes
raramente possuíam títulos nobiliárquicos em sentido estrito, embora não
(30) Mill se refere à Revolução Gloriosa (1688), marco histórico fundamental raro mandassem confeccionar brasões para as suas famílias. Seus valores,
para o colapso do absolutismo inglês e afirmação das prerrogativas do Poder entretanto, eram assemelhados aos da aristocracia com a qual competiam e
Legislativo. que ao mesmo tempo emulavam.

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

um Gooch, um Lethbridge! Basta mesmo pensar nos nomes mais Nos países que permaneceram católicos, mas nos quais a
respeitáveis entre os donos de terras de nossa época, tais como Lorde hierarquia católica não preservou uma suficiente ascendência moral
Wharncliffe ou o Sr. Coke. O restante dos grandes políticos daquela que lhe possibilitasse deter o progresso da civilização, a Igreja foi
época, os Bacons, os Cecils, os Walsinghams, os Seldens, os Iretons, forçada, devido ao declínio de sua influência, a associar-se de maneira
os Pyms, os Cokes eram advogados em sua maioria. Mas que calibre cada vez mais próxima com as soberanias temporais. E, assim, ela
de advogados eram e como se distinguiam acentuadamente, seja pelas conseguiu de fato retardar a sua ruína, até que o espírito da época
suas origens ou pelo alcance de suas capacidades e realizações, de se tornasse poderoso demais até para a união das duas esferas, e
nossos bem-sucedidos Barristers, nossos Sugdens e Copleys! Eram ambas caíram juntas.
quase todos os filhos mais jovens ou até mesmo os mais velhos das
Deixei dito que as três fontes de influência moral são a sabe-
famílias mais proeminentes da aristocracia rural britânica. Eram
doria e a virtude presumidas, o ofício sacerdotal e a posse do poder
homens que estudaram o direito como sendo aquela atividade que
mundano. Contudo, nos países protestantes, a autoridade dos minis-
era então em alguma medida uma profissão liberal, uma empreita-
tros religiosos, considerada como fonte independente de influência
da adequada para um cavalheiro, e não para um mero repetidor de
procedimentos tediosos, uma atividade que requeria ao menos o moral, deve ser apagada do nosso catálogo. Nenhuma das igrejas
emprego das mais elevadas faculdades por meio da compreensão de que sucederam à Igreja Católica nas nações em que prevaleceu a
princípios (ainda que com frequência fossem absurdos), e não me- Reforma teve êxito, enquanto igreja, em herdar qualquer extensão
ramente o emprego da memória com o empilhamento de detalhes da influência moral de sua predecessora. A razão para tanto reside
desconexos. Eram homens que estudavam o direito principalmente no fato de que nenhuma igreja protestante jamais alegou ter recebido
para que pudesse servi-los no cumprimento daquela sublime missão, uma missão da Deidade, nem jamais enumerou, entre as obrigações
aos quais eram chamados por uma ambição a que se pode chamar religiosas, a de receber suas doutrinas de mestres credenciados por
com justiça de nobre, visto que deles requeria grandes sacrifícios, e aquela igreja em particular. Os católicos receberam seu sacerdote de
que os podia gratificar apenas pela realização do que estivesse mais Deus e sua religião do sacerdote. Mas, nas seitas protestantes, uma
afeito ao bem de sua pátria. pessoa recorria a um mestre porque já se tinha decidido a adotar a sua
Aplicada a esses homens, a expressão “líderes naturais do povo” religião, ou porque outros já tinham tomado a decisão em seu lugar.
tem algum significado. E foi nessa época e apenas nela que nossas Nas religiões populares, uma pessoa escolhia seu próprio credo e,
instituições funcionaram bem, pois fizeram desse país a incubadora tendo-o feito, naturalmente se confiava aos seus ministros, ao passo
de mais daquilo que é elevado em sentimentos, vasto e profundo em que, nas religiões de estado, a escolha era imposta a uma pessoa por
pensamentos, do que o que foi produzido por todos os outros países seus superiores terrenos. Em seguida, instigado pela própria cons-
do mundo combinados e isso até um período recente. A totalidade ciência, ou, o que também poderia se dar, movido por motivos de
de seus efeitos é hoje o exato oposto: a degradação de nossa moral, uma natureza mais mundana, o indivíduo que estava em busca de
o estreitamento e o embrutecimento de nossa compreensão. E não instrução religiosa recorria aos mestres já estabelecidos pelo estado.
haveremos de ser o que poderíamos ser, nem mesmo aquilo que um Na Escócia, todo chefe de família, mesmo da classe mais baixa,
dia já fomos, até que nossas instituições sejam adaptadas ao estado é um teólogo; ele discute pontos de doutrina com os seus vizinhos
atual da civilização e tornadas compatíveis com o progresso futuro e explica as escrituras à sua família. Ele se submete, é bem verdade,
da mente humana. Mas, assim o creio, isso haverá de ser visto com embora não aja nisso com uma submissão servil, à opinião do seu
mais clareza quando, no decorrer do próximo ensaio, o levantamento ministro religioso. Mas em que sentido o faz? Apenas como a um
histórico que aqui realizei das condições do poder mundano também homem que ele admite ser ao menos mais bem versado no assunto
tenha sido feita acerca das condições da influência moral. em particular — e como sendo provavelmente um homem mais sábio

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

e, possivelmente melhor do que ele mesmo. Tal não é a influência de causada pela Reforma e que, no nosso país, prolongou-se até o fim do
um intérprete da religião enquanto tal mas apenas a de um coração Século XVII, aquela influência moral, aquele poder sobre as mentes
mais puro e de uma inteligência mais cultivada. Não é o mesmo que humanas, que havia sido por tantas eras o legado incontestável do
a ascendência exercida por um sacerdote. É a autoridade da combi- clero católico, passou para as mãos das classes endinheiradas e se
nação que consiste em ser um professor de religião e um estimado tornou indissociável do poder terreno. A ascendência da aristocracia
amigo pessoal. não se manifestava de forma tão ditatorial e encantadora quanto a
Aquilo que afirmei da igreja da Escócia pode ser afirmado de dos sacerdotes católicos porque se apoiava num grau infinitamente
todas as igrejas protestantes, exceto as igrejas estatais (coisa que a menor nos terrores suscitados pela religião e porque a unidade dou-
igreja da Escócia não é, nada obstante sua dotação nacional). Isso trinária tampouco foi mantida, por esses mesmos meios poderosos,
pode ser dito de todos aqueles que discordam do que foi estabelecido no seio da própria classe dominante. Todavia, as classes superiores
entre nós — excetuados, é certo, aqueles que herdam a sua religião ditavam a moda, tanto na indumentária, quanto nas opiniões cor-
e a ela aderem (algo nada incomum) como o fariam com qualquer rentes. As opiniões recebidas entre as pessoas da classe superior
laço familiar. Aos seguidores da Igreja da Inglaterra(32) uma obser- eram as que prevaleciam no restante da nação. Aqui e ali, um
vação semelhante seria inteiramente inaplicável, excetuados aqueles homem de pendores livrescos poderia ter suas teorias individuais,
indivíduos de tal sorte constituídos que comungariam fielmente de mas elas não produziam convertidos. Todos aqueles que não tinham
sua doutrina mesmo se ela fosse uma seita dissidente. As pessoas em opiniões próprias assumiam as dos seus superiores. Poucos homens
geral não têm, nem nunca tiveram, qualquer razão ou motivo para escreviam e publicavam doutrinas que fossem desaprovadas pelas
aderir à religião estabelecida, exceto pelo fato de que ela era a religião classes superiores, ou, se publicassem, seus livros eram sufocados
adotado por seus superiores na esfera política. E, na mesma medida com êxito, ou, no melhor dos casos, pouco lidos e pouco notados.
em que declinou o seu apego a tais superiores, assim também declinou Apenas e tão-somente as questões que levavam a divisões no seio
a sua adesão à igreja estabelecida. Desde a época em que a Igreja da da aristocracia eram (parcimoniosamente) discutidas pelo povo,
Inglaterra se enfronhou firmemente nos seus assuntos temporais, cujos variados grupamentos ou divisões eram, cada qual, liderados
desde o período em que seu direito a ocupar um lote de terras nas por uma côterie aristocrática. Até mesmo os Dissidentes em reli-
nossas consciências adquiriu a sanção sacra da prescrição oficial e gião(33) procuravam compensar sua preferência por uma religião
quando ela se tornou capaz de prescindir de qualquer apoio exceto o vulgar dando mostras da mais completa flexibilidade e aquiescência
que obtinha das fundações estáveis do tecido social do qual formava em tudo o que dizia respeito à política e à vida social, ainda que
uma parte, desde então, ela descambou de sua posição independente o estandarte sob o qual marchavam fosse o de um segmento da
e se tornou uma parte integrante, ou uma espécie de apêndice, da aristocracia menos ligado do que o outro segmento ao monopólio
aristocracia. Ela se fundiu com as classes superiores e toda influência da seita que possuía patronagens e arcebispados.
moral que possuía passou a ser meramente uma parte da influência As classes afluentes, por conseguinte, desde a revolução em
moral geral dos seus líderes terrenos. diante, possuíam tudo o que existia tanto em matéria de autoridade
Consequentemente, desde o término daquele período de ex- moral quanto de poder temporal. Sob a sua influência cresceram
citação intelectual e de especulação robusta que se sucedeu à crise as doutrinas constantes da constituição: as opiniões a respeito dos
limites adequados aos poderes do governo e o modo apropriado
de os constituir e administrar, que, por muito tempo, foram uma
(32) A religião anglicana é, na Inglaterra, uma religião oficial do Estado e o tem
sido desde a ruptura de Henrique VIII com Roma, no Século XVI. Ainda que característica dos ingleses. Junto disso, ganhou forma uma ampla
sua maior autoridade religiosa seja o Arcebispo de Canterbury, sua liderança
suprema reside na pessoa do monarca — atualmente, a Rainha Elisabete II. (33) Dissenters, no original.

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

variedade de opiniões correntes acerca da moralidade, da educação comitê de pessoas escolhidas pelo próprio povo, mas que seja, ainda
e da estrutura da sociedade. E sentimentos uníssonos e consentâneos assim, desempenhada de maneira irrepreensível e merecedora da
com essas opiniões espalharam-se por toda parte e lançaram raizes satisfação geral das pessoas interessadas. É fato notório que muito
profundas na mentalidade dos ingleses. daquilo que há de mais importante nas ações do governo na maior
Não houve momento algum, durante este período, no qual se parte dos outros países é aqui levado a cabo inteiramente por asso-
pudesse afirmar verazmente acerca da classe predominante que ela ciações voluntárias e que outras coisas são feitas pelo governo de uma
contasse entre os seus membros com a totalidade das pessoas encon- maneira a tal ponto atabalhoada e descuidada que se julga necessário
tradiças na sociedade tais que estivessem qualificadas a governar as recorrer a associações voluntárias em caráter subsidiário.
mentes dos homens ou a conduzir os seus interesses temporais. Como Quando as pessoas do povo foram treinadas destarte para
um todo, no entanto, aquela classe conteve por muito tempo uma parte o exercício do auto-governo e quando aprenderam por experiên-
mais ampla tanto das atitudes civilizadas quanto da cultura mental cia própria que estavam aptas para tanto, não podiam continuar
do que todas as outras classes somadas. As dificuldades enfrentadas pressupondo que não fosse lícito a nenhuma pessoa destituída de
por homens possuidores de méritos e de energia para se erguerem ao posição e fortuna ter voz ativa no governo, ou que só as pessoas assim
nível daquela classe não eram insuperáveis, e os homens, no interior situadas tinham competência para criticar os seus procedimentos.
do governo, nos quais se manifestavam um espírito de liderança e Quebrou-se o feitiço que fazia crer que a capacidade superior para
vigorosa atividade eram capazes de compreender a superioridade o exercício do poder mundano residia exclusivamente nas classes
intelectual e de valorizá-la. Por conseguinte, as condições necessárias mais elevadas.
para um estado natural da sociedade foram por algum tempo, e de Estava ao alcance de tais classes, possuidoras que eram do
modo geral, razoavelmente bem satisfeitas. desfrute do ócio e de oportunidades ilimitadas para o cultivo da
Mas agora as condições deixaram de ser satisfeitas. O gover- mente terem-se mantido no nível dos mais avançados intelectos
no exercido pelas classes abastadas era, afinal de contas, o governo da época e não se terem deixado superar pelo crescimento, à sua
de um punhado de irresponsáveis e, como tal, nele enxameavam volta, de uma amplitude de inteligências que, na média, eram
os abusos. Embora as pessoas do povo, em virtude do aumento de superiores às suas próprias. Também poderiam ter preservado a
sua inteligência, estivessem se tornando cada vez mais capazes de confiança popular na integridade dos seus propósitos enfrentando
discernir o que quer que houvesse de vicioso no seu governo, elas cada um dos abusos que surgiam na mesma proporção em que a
possivelmente o teriam tolerado se elas mesmas tivessem permaneci- consciência do público se erguia contra eles. Poderiam, destarte,
do inaptas como eram anteriormente e conscientes de sua inaptidão ter mantido, em razão de sua virtude e intelecto, aquele tipo de
para as ações do governo. Mas o grau de liberdade comparativamente ascendência moral sobre um povo inteligente — um povo que, de
elevado na administração prática de nossa Constituição — o amplo outra forma, nunca se submete exclusivamente ante o mero poder
escopo de atuação concedido às energias dos indivíduos — permitiu quando desacompanhado de tais qualidades. Mas deitaram por
que as pessoas se adestrassem em todos os hábitos necessários para terra as vantagens de que desfrutavam.
o auto-governo, para a condução racional dos seus interesses. Eu Já chamei atenção para o declínio das classes superiores
creio que seria impossível mencionar qualquer âmbito das ações em matéria de talentos ativos em virtude de se terem debilitado
governamentais (excetuados alguns aspectos da defesa do país contra pelos divertimentos preguiçosos. Na mesma proporção em que
inimigos externos), tal que não possa existir uma contraparte exata seus integrantes progrediram em humanidade e refinamento
que, em um caso ou noutro, possa ser desempenhada, com menos decaiu sua energia intelectual e força de vontade. Muitos deles
recursos e com dificuldades incomparavelmente maiores, por um foram anteriormente treinados para os negócios e em suas mãos

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

os demais confiaram a condução dos assuntos da nação. Ora, aos tais pessoas já não preservam uma influência moral suficiente para
homens cuja riqueza foi herdada geralmente falta experiência garantir que suas opiniões sigam sendo, como até então o foram, a
nos negócios e assim são inaptos para o seu trato. Muitos deles moeda corrente em vigor. Mas elas preservam — e quem possui o
conheciam a vida e o mundo, mas seu conhecimento da vida já poder mundano deve sempre preservar — um grau suficiente de sua
não é mais do que o conhecimento possuído por duzentas ou influência anterior para impedir que quaisquer opiniões entre as que
trezentas famílias com as quais estão habituados a associar-se. E não reconhecem como válidas possam se tornar as doutrinas aceitas.
se pode asseverar com segurança que nem mesmo um professor Elas devem, por conseguinte, ser destituídas de seu monopólio de
universitário é mais ignorante do mundo ou mais grosseiramente poder mundano antes mesmo que os mais virtuosos e instruídos
equivocado quanto aos sinais dos tempos do que um nobre inglês. homens da nação adquiram suficiente ascendência para influenciar
Até as suas opiniões — que, antes de transmutar-se em aforismos, as opiniões e sentimentos dos demais, condição indispensável para
foram resultantes de uma escolha e tinham algo da feição de atos que a Inglaterra possa emergir desta crise de transição e entrar no-
inteligentes — são agora meramente herdadas. Suas mentes, outro- vamente no estado natural da sociedade.
ra ativas, são hoje passivas. No passado, geravam impressões nas
Alguns meses antes de ter sido escrito o primeiro desses
mentes alheias, ao passo que agora apenas as recebem. Quais são
ensaios, teria parecido paradoxal a assertiva de que a atual era é
agora as suas máximas políticas? Os textos tradicionais que dizem
uma era de transição moral e social. A mesma proposição parece
respeito, direta ou indiretamente, aos privilégios de sua posição
agora o mais banal dos truísmos. A revolução que já se dera na
e à aptidão para governar, que estaria confinada exclusivamente
mente humana está consolidando rapidamente as circunstâncias
às mãos de homens como eles mesmos. Quais são suas virtudes
exteriores nos moldes de sua própria forma e proporções.
de interesse público? O apego a esses textos e à prosperidade e
grandiosidade da Inglaterra, respeitada à condição de que jamais Que estamos num estado de transição é ponto pacífico que
se desviem do seu conteúdo — a idolatria a certas abstrações prescinde de demonstração adicional. Que a transformação em que
chamadas de igreja, constituição, agricultura, comércio e outras estamos mergulhados nos conduzirá a uma situação mais saudável
tantas, por meio das quais geralmente conseguiram, de alguma talvez pareça agora provável à luz dos ensaios precedentes, para os
maneira, expulsar de suas mentes a simples ideia de que seus con- poucos que de outra forma o teriam posto em questão.
cidadãos de carne e osso estivessem no âmbito de sua obrigação Mas para nós é de grande valia obter um entendimento muito
moral enquanto governantes. Amam o seu país da mesma forma mais profundo do que o futuro nos reserva, assim como dos meios
peculiar pela qual Bonaparte(34) amava seu exército — por cuja pelos quais se podem aprimorar as bençãos que nos esperam no
glória nutria o zelo mais ardente possível na mesma época em que mesmo passo em que se evitam os seus riscos.
todos os homens que o integravam eram dizimados, um a um, a
cada dois ou três anos. Não amam a Inglaterra como se ama um Como obteremos tal entendimento? Por meio de uma investi-
ser humano, mas da maneira como um homem ama sua casa ou gação cuidadosa das propriedades características do modo de pensar
os acres de sua propriedade. da nação inglesa na época presente, visto que é delas que o futuro do
nosso país forçosamente depende.
Sendo pessoas como acima as descrevemos, e tendo sido
reconhecidas finalmente como tais por homens mais inteligentes, Contudo, “ouvintes aptos”, “ainda que poucos”, não se haverão
de encontrar para tomar parte nessas discussões em um momento
(34) Napoleão Bonaparte (1769 — 1821) foi cônsul e subsequentemente em que os interesses imediatos estão capturando a atenção de todas
Imperador da França. as mentes, como é natural e próprio que o façam. O prosseguimento

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Sobre o Progresso e a Educação

da apresentação desses ensaios(35) deve, portanto, ser adiada para um


intervalo de repouso que há de ocorrer depois do burburinho e do
3
tumulto atuais. Retomarei o meu tema assim que puder, depois de
aprovado o Projeto de Mudança na Lei.(36)
A civilização

A
palavra ‘civilização’, assim como muitos outros termos per-
tencentes à filosofia da natureza humana, é uma palavra de
duplo sentido. Refere-se por vezes ao avanço humano em
geral e outras vezes a certos tipos de avanços mais particularizados.
Estamos acostumados a chamar um país de mais civilizado
se julgamos que avançou mais, que atingiu um grau de eminência
mais alto no que toca às melhores características do homem e da
sociedade, que é mais adiantado na rota que conduz à perfeição, mais
feliz, mais nobre, mais sábio. Mas, num outro sentido, a palavra se
refere apenas àquele tipo de avanço que distingue uma nação rica
e poderosa das selvagens e bárbaras. É neste sentido que podemos
falar dos vícios e horrores da civilização e é nesse sentido que se
colocou seriamente a questão quanto a ser a civilização, de modo
geral, um bem ou um mal. Com certeza, não nos permitimos ter
dúvida alguma a esse propósito. Consideramos que a civilização é
um bem, que é a causa de um grande bem e que não é incompatível
com bem algum, mas pensamos que há outro gênero de bens, até
dos mais elevados, os quais a civilização, considerada nessa ótica,
não proporciona e até alguns bens que ela tende a impedir, embora
essa tendência possa ser refreada.
Acerca da investigação a que tais considerações poderia levar
supõe-se que ela poderia lançar alguma luz sobre muitos dos traços
característicos de nossa época. A era presente é de uma forma pree-
(35) Mill apresentou uma série de ensaios sob a rubrica geral “O espírito da época”. minente a era da civilização concebida nesse sentido estrito, quer
Aqui, traduzo o mais importante deles. estejamos considerando o que já foi alcançado ou os rápidos avanços
(36) Reform Bill, no original. Mill tem em vista nesse contexto o projeto de que abrem caminho para realizações ainda maiores. Não consideramos
reforma eleitoral de 1831, o primeiro de uma sucessão de medidas com o
mesmo fim. Cuidava-se aqui de moralizar e regularizar o processo eleitoral,
a época igualmente avançada ou igualmente progressista em muitos
além de ampliar o alcance do sufrágio. dos outros tipos de avanço. Em alguns, parece-nos estacionária; em

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

outros ate mesmo retrógrada. Ademais, as consequências irresistíveis para induzir o grosso da comunidade a confiar predominantemente,
de um estado de civilização enquanto avança, a nova posição na qual para a sua segurança, nos arranjos sociais e a renunciar, na maior
tal avanço colocou e a cada dia segue colocando a humanidade mais e parte dos casos e nas circunstâncias normais, à tentação de fazerem
mais, a absoluta inaplicabilidade das antigas regras a essa nova posição valer seus interesses (seja no contexto da agressão ou da defesa) por
e a necessidade, quer desejemos realizar plenamente os benefícios meio de sua própria coragem e força individuais.
do novo estado ou preservar os do antigo, de que adotemos muitas Esses ingredientes sociais são diversificados, mas o seu exame
regras novas e padrões novos de ação — todos esses são tópicos que bastará para nos convencer de que não é um impropriedade reuni
parecem demandar um exame mais abrangente do que aquele que -los numa só classe. Tanto a história quanto à natureza de cada um
normalmente receberam. dos ingredientes em apreço mostram, por igual, que eles sempre
Na ocasião presente, usaremos a palavra ‘civilização’ apenas começam a aparecer juntos, sempre coexistem e se acompanham
no sentido restrito e não naquele em que é sinônima de ‘avanço’, mas uns aos outros enquanto crescem. Onde quer que tenha surgido um
naquele em que é o inverso direto ou contrário de rudeza ou barba- conhecimento suficiente dos artifícios necessários para a vida e uma
rismo. Quaisquer que sejam as características daquilo que chamamos segurança suficiente em torno das pessoas e das propriedades para
de vida selvagem, o contrário delas, ou as qualidades que a sociedade que se torne possível o crescimento constante da riqueza e da popu-
vai adotando a medida que delas se desvencilha, são o que constitui lação, a comunidade se torna e segue sendo progressista em todos
a civilização. Assim, uma tribo selvagem consiste de um punhado os elementos que acabamos de enumerar. Esses elementos existem
de indivíduos que vagam por uma vasta extensão de terras ou que na Europa moderna, e especialmente na Grã-Bretanha, em um grau
nelas se encontram esparsamente distribuídos. Na vida selvagem, não mais acentuado e em um estado de progressão mais rápida do que em
qualquer outro lugar ou época. Propomos considerar algumas das
há nada (ou quase nada) de coisas como o comércio, a manufatura
consequências já produzidas por este estado elevado e progressista
ou a agricultura. Por conseguinte, chamamos de civilizada uma
da civilização, além de algumas consequências ulteriores que está
população densa, com moradas em habitações fixas e reunida em
caminhando velozmente para produzir.
larga medida em cidades e vilas. Em comunidades selvagens, cada
pessoa é por si mesma exclusivamente; exceto em tempos de guerra A mais notável das consequências do avanço da civilização,
(e, mesmo nesse caso, muito imperfeitamente), raramente vemos que a situação do mundo ora impõe à atenção das mentes pensantes,
alguma operação conjunta levada a cabo pela união de muitos, nem é a seguinte: a de que o poder passa cada vez mais de indivíduos,
tampouco os selvagens, em geral, obtêm muito prazer da companhia e de pequenos agrupamentos de indivíduos, para as massas — que
uns dos outros. Portanto, onde quer que encontremos seres humanos assim a importância das massas aumenta constantemente enquanto
diminui a dos indivíduos.
agindo conjuntamente, em grandes contigentes, com propósitos par-
tilhados, chamamo-los de civilizados. Na vida selvagem, há pouca ou As causas, indícios e consequências desse estado de coisas
nenhuma ordem legal, administração ou justiça, nenhum emprego merece a atenção devida.
sistemático da força coletiva da sociedade para proteger os indivíduos Há dois fatores que mostram importância e poder no seio da
de danos a eles infligidos pelos outros. Cada qual se fia apenas em humanidade. Um é a propriedade, o outro, os poderes e aquisições
sua própria força ou astúcia, e, quando isso falha, normalmente não da mente. Ambos são, nos estágios precoces da civilização, confina-
conta com nenhum outro recurso de que possa socorrer-se. Conse- dos a umas poucas pessoas. Nas origens de uma sociedade, inexiste
quentemente, dizemos que um povo é civilizado quando os arranjos o poder das massas porque não existem nem a propriedade nem o
sociais destinados à proteção das pessoas e das suas propriedades cultivo da inteligência para além do alcance de uma parte muito
aperfeiçoaram-se o suficiente para preservar a paz entre elas, ou seja, reduzida da comunidade, e, mesmo se houvessem existido, aqueles

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

que possuíam tais atributos em menor grau ficariam, em razão de disseminadas entre milhões, um efeito adicional da civilização é o
sua incapacidade para a cooperação, incapazes de lidar com aqueles de que o montante de cada uma dessas duas qualidades porventura
que os possuíssem em maior abundância. pertencentes a um indivíduo deve ter uma tendência a se tornar cada
Nos países mais atrasados da época presente, assim como na vez menos influente e que os resultados devem ser cada vez mais
Europa há não muito tempo, víamos a propriedade inteiramente decididos no seio das massas, contanto que a força de associação
concentrada em um pequeno número de mãos, sendo o restante das das massas avance pari passu com o crescimento de seus recursos.
pessoas, com poucas exceções, ou os defensores militares e dependentes Quem pode duvidar que isso de fato está ocorrendo? Não há teste
dos proprietários, ou servos, espoliados e torturados ao bel-prazer mais preciso do progresso de uma civilização do que o progresso do
de um senhor, ou pilhados por uma centena. Em nenhuma época, poder de sua cooperação.
poder-se-ia dizer que literalmente não havia classe média, mas tal Considerem o selvagem. Ele tem força física, ele tem coragem,
classe era extremamente frágil, tanto em seus números quanto em seu capacidade de empreender, além de frequentemente não ser desprovido
poderio, ao passo que o povo trabalhador, absorvido na labuta manual, de inteligência. O que torna todas as comunidades selvagens pobres
ganhava com dificuldade, mediante o esforço mais exacerbado, uma e frágeis? A mesma causa que no passado remoto impediu que os
subsistência mais ou menos limitada e sempre precária. A natureza leões e os tigres extirpassem a raça humana: sua incapacidade para
desse estado social consistia nos mais absolutos excessos de pobreza cooperar. São apenas os homens civilizados que sabem associar-se.
e impotência para as massas e na mais agigantada importância e no Toda associação pressupõe concessões. Consiste no sacrifício de
poderio incontrolável de um reduzido número de indivíduos, cada um alguma extensão da vontade individual para um fim em comum. O
dos quais, em seu próprio âmbito de atuação, não era constrangido selvagem não tolera sacrificar, para nenhum propósito, a satisfação
nem pela lei nem por um poder superior. de sua vontade individual. Seus sentimentos sociais não conseguem
Devemos deixar à história o encargo de desvendar a ascensão prevalecer nem mesmo temporariamente sobre seus sentimentos
gradual das classes que lidavam com o comércio e a manufatura, a egoísticos, nem os seus impulsos se curvam a cálculos racionais.
gradual emancipação dos camponeses, os tumultos e os bouleverse- Agora considere desta feita o escravo. Ele está, com efeito, habituado
ments(37) que acompanharam o curso dessas mudanças, e as alterações a deixar de parte a sua própria vontade, mas o faz ante às ordens
extraordinárias nas instituições, opiniões, hábitos e na totalidade de um senhor, e não ante um propósito superior concebido por ele
da vida social que elas trouxeram consigo. Basta-nos pedir ao leitor mesmo. Falta-lhe inteligência para formar um tal propósito. Antes
que forme uma concepção de tudo que está implicado na expressão de mais nada, ele não consegue elaborar para si mesmo a concepção
“crescimento de uma classe média” e, em seguida, que reflita sobre de uma regra fixa. Nem tampouco, se pudesse fazê-lo, tem a capa-
cidade de prender-se a ela. Ele está habituado ao controle, mas não
o enorme aumento nos números e nas propriedades e sobre o ine-
ao autocontrole. Quando um condutor não se posta diante dele em-
ditismo de uma classe trabalhadora que recebe agora salários como
punhando um chicote, vê-se que ele é ainda mais incapaz de resistir
os que são comumente recebidos pela quase totalidade da classe
a qualquer tentação, ou a dominar qualquer inclinação, do que o é
manufatureira, ou seja, pela parte mais numerosa das classes ativas
o próprio selvagem.
neste país, e que o leitor se pergunte se não era mesmo de esperar que
efeitos tão inéditos decorressem de causas tão inéditas. No mínimo, Consideramos casos extremos para que o fato que tentamos
deve ser evidente que se, à medida que uma civilização avança e a ilustrar possa delinear-se de maneira mais clara. Mas o comentário
propriedade e o cultivo da inteligência tornam-se assim amplamente em si é de aplicação universal. À medida que pessoas vão se aproxi-
mando da condição de selvagens ou de escravos, tanto mais se tornam
(37) Em francês no original. Significa “sublevações”, “levantes”. incapazes de ações concertadas. Considerem até mesmo a guerra, o

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

interesse mais sério de um povo bárbaro. Veja que triste figura as juntos pela vontade de um senhor, então, eles trabalham lado a
nações rudes ou parcialmente civilizadas ou escravizadas exibiram lado mas não de forma concertada. Um homem escava o seu pe-
diante das nações civilizadas, da Batalha de Maratona em diante. Por daço de chão. Outro escava um pedaço assemelhado ao lado do
quê? Porque a disciplina é mais importante do que os números, e a primeiro. Na situação de um obreiro ignorante, que cultiva até
disciplina, ou seja, a cooperação perfeita, é um atributo da civilização. mesmo o seu próprio terreno sem se associar a ninguém além de
Quando nós nos remetemos à nossa própria época, notamos que toda sua mulher e filhos, o que existe à sua volta que possa ensinar-lhe
a história da Guerra Peninsular serve de testemunho da incapacidade a cooperar? A divisão de ocupações — a realização, mediante o
de um povo imperfeitamente civilizado no terreno da cooperação. trabalho combinado de vários, de tarefas que irrealizáveis para
Em meio a todo o entusiasmo da nação espanhola em sua luta contra quaisquer pessoas isoladas — é a grande escola da cooperação.
Napoleão, nem um único líder, militar ou político, conseguiu agir Considerem, por exemplo, a lição contida na navegação assim que
em concerto um com o outro. Nenhum esteve disposto a sacrificar supera o seu singelo estágio inicial. A segurança de todos passa
uma ínfima parte de sua importância, sua autoridade ou sua opinião a depender constantemente do desempenho consciencioso, por
às mais óbvias exigências da causa comum. E nem generais nem cada um dos envolvidos, da parte a si particularmente atribuída
soldados conseguiram seguir as regras mais elementares da técnica da tarefa comum. As operações militares, a não ser que lhes falte
militar. Se há algum interesse do qual poderíamos esperar uma ação toda e qualquer disciplina, são uma escola semelhante. Assim
vigorosa sobre as mentes até mesmo dos selvagens, ele consiste no também são as operações envolvidas no comércio e na manufatura
desejo de esmagar em ação simultânea um vizinho poderoso a que que requerem o emprego de muitos braços sobre a mesma coisa ao
nenhum deles poderia oferecer resistência isoladamente. E, no en- mesmo tempo. Por meio dessas operações, a humanidade aprende
tanto, nenhuma nação incivilizada jamais foi capaz de formar uma o valor da cooperação. Vê o quanto consegue realizar, e com que
aliança. Os estados nativos da Índia foram um a um conquistados
facilidade, das coisas que jamais seriam feitas sem a cooperação.
pelos ingleses. A Turquia celebrou a paz com a Rússia precisamente
Aprendem a lição prática de se submeter a guias e de se resignar
quando esta era invadida pela França. As nações do mundo jamais
à atuação como partes interdependentes de um todo complexo.
foram capazes de formar uma confederação contra os romanos, mas
Um povo que se adestre destarte à ação conjunta na condução dos
foram devorados sucessivamente, estando algumas sempre dispostas
negócios de sua vida diária torna-se capaz de transferir os novos
a ajudar na subjugação das restantes. Empreitadas que requeriam a
hábitos para novos âmbitos. Pois há uma lei universal no fato de
cooperação voluntária de muitas pessoas independentes umas das
que a única maneira de aprender a fazer alguma coisa consiste em
outras sempre falharam em toda parte, exceto nas nações altamente
efetivamente fazer algo do mesmo tipo em circunstâncias mais
civilizadas.
cômodas. Os hábitos de disciplina, uma vez adquiridos, capacitam
Não é difícil entender por que tal incapacidade para a ação os seres humanos a realizar todas as outras coisas para as quais a
organizada caracteriza os selvagens e por que ela desaparece com
disciplina é necessária. Tão logo tenham deixado de se esquivar
o crescimento da civilização. A cooperação, assim como outras
do controle e tão logo tenham deixado de ser incapazes de ver as
coisas difíceis, só pode ser aprendida na prática. E para ser capaz
suas vantagens, então, sempre que se apresentar um objetivo que
de a levar a cabo nas grandes coisas, um povo precisa ser treinado
possa ser atingido mediante a cooperação, e que vejam ou creiam
gradualmente a exercitá-la nas coisas pequenas. Ora, a trajetória
ser benéfico, eles já estão maduros para alcançá-lo.
inteira de uma civilização em avanço é uma série de treinos desse
tipo. O obreiro num estado rude da sociedade trabalha em isola- Visto que os traços distintivos são a difusão da proprie-
mento ou, se se cuidar para que vários sejam postos a trabalhar dade e do cultivo da inteligência, acrescidos da capacidade para

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

a cooperação, a próxima coisa de que devemos tomar nota é o julgamo-lo igualmente surprendente. Em que período as operações
desenvolvimento sem precedentes de todos esses elementos ao produtivas da indústria foram realizadas de maneira remotamente
longo dos últimos anos. semelhante à sua escala atual? Alguma vez tantos braços estiveram
É evidente para todos a rapidez com a qual a propriedade ocupados ao mesmo tempo com o mesmo trabalho, como agora
vem se acumulando nos principais países da Europa, e especial- ocorre em todos os principais departamentos de manufaturas e
mente nessa ilha. O capital das classes industriosas flui para países comércio? Os negócios são agora conduzidos em larguíssima me-
estrangeiros e para todos os tipos de especulação desabrida. A dida por empresas de capital aberto — em outras palavras, pelo
quantidade de capital exportado a cada ano só pela Grã-Bretanha somatório de pequenos capitais ajuntados para formar um grande
provavelmente supera toda a riqueza das repúblicas mais flores- montante de capital. O país está repleto de associações. Há socie-
centes da antiguidade. Mas esse capital, tão vasto em seu conjunto, dades devotadas a propósitos políticos, religiosos, filantrópicos.
é composto principalmente de pequenas porções, que, muito fre- Mas a maior novidade de todas é o espírito associativo que cresceu
quentemente, são tão pequenas que seus proprietários não podem, no seio das classes trabalhadoras. A época atual viu a fundação de
se não tiverem outras fontes de sustento, subsistir com o lucro sociedades beneficentes, e elas agora tomam conta de toda a extensão
que geram. Enquanto o crescimento da propriedade das grandes do país, assim como os um tanto mais questionáveis sindicatos.(38)
massas se deu desta forma, as circunstâncias das classes superiores Um instrumento associativo mais poderoso do que todos esses,
não passaram por nenhum crescimento assemelhado. É certo que embora não tão ostensivo quanto eles, só recentemente tornou-se
muitas grandes fortunas foram acumuladas, mas muitas outras universalmente acessível — o jornal diário. O jornal leva a todos
a voz de muitos. Por meio do jornal, cada qual é inteirado de que
foram integral ou parcialmente dissipadas. Pois os herdeiros de
outros estão se sentindo da mesma forma que ele mesmo se sente.
imensas fortunas, enquanto classe, sempre mantêm um estilo de
O jornal é o telégrafo, que leva o sinal através do país, assim como
vida compatível com o montante de suas rendas quando estavam
é a bandeira em torno da qual o país se congrega. Centenas de jor-
em seu nível mais alto, e as vicissitudes inevitáveis pelas quais atra-
nais falando ao mesmo tempo na mesma voz, junto com a rapidez
vessam essas rendas estão sempre os fazendo atolar-se em dívidas
das comunicações oferecida por meios de locomoção melhores,
cada vez maiores. Uma grande parte dos senhores de terras ingleses,
foram aquilo que tornou possível a todo o país se unir naquela
como eles mesmos estão sempre nos informando, estão a tal ponto
demonstração simultânea e enérgica de uma vontade resoluta que
sufocados com hipotecas que já deixaram de ser os verdadeiros
fez passar a Lei da Reforma.(39) As suas conveniências referidas estão
proprietários do grosso de seus domínios. Em outras países, as
em ascensão. Todos podem ver quão rapidamente. E elas facultarão
grandes propriedades geralmente foram repartidas. Na França, o
às pessoas, em todas as ocasiões decisivas, formar uma vontade
instrumento da mudança foi a Revolução, ao passo que, na Prússia,
coletiva, e tornarão tal vontade irresistível.
ela se deveu aos decretos sucessivos do governo substantivamente
democrático, mas formalmente absoluto, daquela nação. Poder-se-ia afirmar que alguma intensidade proporcional de
energia moral se revelou entre aqueles indivíduos ou classes que
No que concerne ao conhecimento e ao cultivo da inteligência,
desfrutaram de vantagens superiores e que estas os capacitassem a
o truísmo de nossa época ensina que tanto as classes médias quanto,
ir de encontro a esse maravilhoso desenvolvimento do poder físico
até mesmo, as classes trabalhadoras, já estão no encalço dos seus
superiores, a ponto de lhes alcançar os calcanhares.
(38) Trades unions, no original.
Se agora consideramos o progresso feito por essas mesmas (39) Reform act, no original. Veja-se o ensaio anterior. Note-se que, passados
massas no que concerne à sua capacidade e hábito de cooperação, alguns anos, o Projeto de Lei se havia convertido em lei positivada.

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

e mental das massas? Ninguém, segundo pensamos, dirá que sim. “Il faut”, como afirmou o Sr. de Tocqueville(40), “une science
Há um grande aumento nos sentimentos humanísticos, assim como politique nouvelle à un monde tout nouveau”.(41) A face inteira da
um declínio do fanatismo, bem como da arrogância e da presunção sociedade foi transformada — todos os elementos naturais do poder
associada à casta, no seio de nossas classes mais conspícuas, mas definitivamente trocaram de lugares, e, no entanto, há pessoas que
não há, para dizer o mínimo, aumento algum em luminosa habi- falam de erguer-se em defesa das antigas instituições e do dever
lidade e há uma perda acentuada de vigor e energia. A despeito de de aferrar-se à Constituição Britânica estabelecida em 1688! Coisa
todas as vantagens da presente época, das facilidades que oferece ainda mais extraordinária é que essas são as pessoas que acusam
para o cultivo da mente, dos incentivos e recompensas que estende os outros de desconsiderar a variedade de circunstâncias e de
aos talentos excelsos, ainda assim, mal se poderia identificar nos impor suas teorias abstratas sobre todos os estados da civilização
anais da Europa quaisquer períodos agitados que tão pouco tenham indiscriminadamente.
trazido à tona, seja na esfera moral ou intelectual, que seja digno Colocamos uma questão para aqueles que chamam a si mesmos
de distinção. de conservadores: quando o poder mais importante na sociedade
está passando para as mãos das massas, eles julgam realmente
Que isso também não é mais do que já se podia esperar das
possível impedir que as massas tornem tal poder predominante no
tendências da civilização, quando não se faz nenhuma tentativa de as
governo tanto quanto fora dele? O triunfo da democracia ou, por
corrigir, é o que teremos a oportunidade de demonstrar em seguida. outras palavras, do governo da opinião pública, não depende de uma
Mas, mesmo que a civilização de nada adiantasse para rebaixar o que opinião favorável a tal triunfo, seja por parte de algum indivíduo
há de eminente, ela produziria um efeito perfeitamente análogo ao em particular ou de um grupo de indivíduos, mas das leis naturais
soerguer o que é modesto. Quando as massas se tornam poderosas, de avanço da riqueza, da difusão do hábito da leitura e do aumento
um indivíduo, ou um pequeno grupo de indivíduos, nada pode rea- das facilidades para o intercâmbio humano. Se Lorde Kenyon ou o
lizar digno de nota, a não ser que exerça influência sobre as massas. Duque de Newcastle pudessem refrear tais coisas, poderiam rea-
E fazer isso torna-se mais difícil a cada dia, em razão do número lizar algo. Não há nenhum perigo de que a democracia prevaleça
crescente daqueles que estão competindo entre si para atrair a atenção na Síria ou no Timbuktu. Mas só um político inábil desconhece
do público. Temos como provada, portanto, nossa tese de que, com o fato de que o poder crescente em uma sociedade, seja ele qual
o crescimento natural da civilização, o poder passa dos indivíduos for, forçará o seu caminho de entrada no governo, quer por meios
para as massas, e, assim, o peso e a importância de um indivíduo, lícitos ou viciosos. Não é possível que a maneira pela qual o poder
em comparação com as massas, mergulham numa insignificância constitucional está distribuído siga sendo, por um longo período
cada vez maior. de tempo, muito diferente do que ocorre com o poder real, sem que
se dê uma convulsão. Nem tampouco é possível que as instituições
A mudança que assim se processa e que, em larga medida, já
que impedem o avanço da democracia, mesmo se obstadas por
está consumada, é a maior jamais registrada nos assuntos da socie-
algum acontecimento miraculoso, sejam capazes, até mesmo elas,
dade; é a mais completa, a mais frutífera e a mais irreversível. Quem
de lograr mais do que retardar um pouco tal progresso. Mesmo se a
quer que medite sobre essa mudança e não se aperceba que uma tão
Constituição da Grã-Bretanha houvesse doravante de permanecer
grande revolução põe em cheque todas as regras de governo e de
procedimentos e que torna inúteis toda a prática e todas as previsões (40) Alexis-Charles-Henri de Clérel (1805 — 1859), o Visconde de Tocqueville,
assentadas unicamente na experiência prévia é uma pessoa desprovi- comumente referido como Alexis de Tocqueville foi um importante notável
pensador da política e da sociedade.
da do princípio mais fundamental e mais elementar requerido pelo (41) Em francês, no original: “É necessária uma ciência política nova para um
estadismo nos dias que correm. mundo inteiramente novo”.

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

inalterada, nem assim ficaríamos menos sujeitos ao domínio, que que lhes é mais caro, a instrução do discernimento e a elevação do
se torna mais irresistível a cada dia, da opinião pública. caráter dos seus compatriotas de todas as classes.
No que respeita ao progresso da democracia, há duas posições Mas quem são os homens no partido político que chama
que uma pessoa racional pode adotar, a depender de sua opinião a si mesmo de Partido Conservador que professam ter em mira
quanto à questão de as massas estarem preparadas, ou desprepa- tal fim? Eles buscam empregar o interlúdio tranquilo que pode-
radas, para o exercício do controle sobre o próprio destino que riam esperar obter ao se oporem à democracia empenhados em
estão adquirindo, de uma maneira que representasse uma melhora tornar o povo mais capaz de manejar a democracia quando ela
do que hoje ocorre. Se a pessoa as julga preparadas, há de ajudar chegar? Ou será que, bem ao contrário, eles prefeririam contrariar
o movimento democrático, ou, caso julgue que estão avançando empreendimentos do tipo com fundamento no princípio de que
com celeridade suficiente sem o seu auxílio, há de tudo fazer para saber é poder e de que sua difusão ulterior anteciparia o advento
não as refrear. Se, pelo contrário, julga as massas despreparadas do mal que tanto temem?
para o controle completo de seu governo — dando-se conta ao Não hesitamos em expressar nossa convicção de que um espí-
mesmo tempo de que, preparadas ou não, é impossível as impedir rito mais genuíno de conservação, no que concerne a tudo que há de
de adquirir o controle — envidará os seus esforços mais vigorosos bom nos princípios e fins professados por nossas antigas instituições,
com o fim de contribuir para o seu preparo, valendo-se, por um preserva mais de sua vitalidade em muitos dos que são os inimigos
lado, de todos os meios para tornar as próprias massas melhores mais determinados dessas instituições em seu estado presente do que
e mais sábias, e, por outro, atiçando de tal maneira as energias na maior parte daqueles que chamam a si mesmos de conservadores.
adormecidas das classes opulentas e letradas e de tal maneira pro- Mas há muitas pessoas bem-intencionadas que confundem o apego
vendo os jovens dessas classes do conhecimento mais profundo e ao fim com uma fidelidade pertinaz a qualquer conjunto de meios
valioso e a tal ponto promovendo o tanto de grandeza individual pelos quais o fim já é buscado ou pretensamente buscado, e que
que exista ou possa ser erigida nesse país, para que possa rivalizar ainda precisam aprender que agrupamentos de homens que vivem
parcialmente com o poder das massas e assim exercer sobre elas a como pessoas honradas e importantes, apoiados na ficção de que
influência mais salutar para o seu próprio bem. Quando uma pessoa realizam fins que nunca buscam honestamente, são, na verdade, o
racional está seriamente engajada em tais obras, é possível entender maior obstáculo no caminho da consecução de tais fins, e que todos
por que ela poderia pensar que o fim de conceder mais tempo para aqueles verdadeiramente devotados a sua consecução devem esperar
a sua realização tornaria desejável um cenário em que a torrente uma guerra de extermínio com tais agrupamentos.
democrática, embora não possa de forma alguma ser detida, deveria Isto é o que tivemos a dizer até o momento quanto aos efeitos
ser levada por algum tempo a fluir menos impetuosamente. Com políticos da civilização. Seus efeitos morais, que só olhamos de relance
esse gênero de conservadores, todos os democratas movidos por até o momento, exigem maior elucidação. Podem ser considerados
finalidades igualmente abrangentes poderiam relacionar-se frater- sob duas rubricas: a influência direta da própria civilização sobre o
nalmente com tanta franqueza e cordialidade quanto o fazem com caráter individual e os efeitos morais produzidos pela insignificância
os seus próprios amigos. E é com uma extensa familiaridade com à qual o indivíduo se reduz em comparação com as massas.
os homens mais sábios e idealistas no seio de tal corpo político, ao
assumirmos a prerrogativa de responder por eles, que afirmamos Um dos efeitos de um estado elevado de civilização exerce
que tais homens jamais encaminhariam seus próprios projetos sobre o caráter é o relaxamento da energia individual. Ou melhor,
políticos com um ânimo ou uma violência que pudesse frustrar a sua concentração no âmbito estreito das atividades individuais
a realização de quaisquer empreitadas racionais tendentes ao fim voltadas para a aquisição de dinheiro. À medida que a civilização

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Sobre o Progresso e a Educação John Stuart Mill

avança, todas pessoas se tornam dependentes, naquilo que lhes diz o preço de algum pesado labor prévio, mostra-nos a experiência
respeito de uma maneira mais próxima, já não mais de seus próprios que, entre os homens nunca habituados ao sacrifício de seus di-
esforços, mas dos arranjos gerais da sociedade. Em um estado social vertimentos e de seus recursos, torna-se extremamente limitado o
bruto, a segurança pessoal de cada homem, a proteção de sua famí- número daqueles sobre os quais esses altos postos funcionam como
lia, sua propriedade, até mesmo sua liberdade, dependem em larga incentivos à atividade ou nos quais fazem aflorar qualquer vigor de
medida de sua força física e de sua energia mental e astúcia. Em um caráter. Assim se dá o caso de que, em países altamente civilizados,
estado civilizado, tudo isso lhe é assegurado por causas extrínsecas a e particularmente no nosso, as energias das classes médias se voltam
si mesmo. A suavidade crescente das maneiras serve-lhe de proteção quase somente para a aquisição de dinheiro, enquanto que as energias
face a grande parte daquilo a que antes esteve exposto, ao passo que das classes superiores já estão quase extintas.
para o resto ele pode confiar, com uma confiança sempre crescente,
Há uma outra circunstância à qual podemos atribuir muito das
nos soldados, nos policiais e nos juízes, e (naqueles lugares em que a
boas e das más qualidades que distinguem nossa civilização do rude
eficiência ou a pureza de tais meios, como costuma acontecer, é supe-
estado de épocas anteriores. Um dos efeitos da civilização (para não
rada pelo progresso geral da civilização) na força galopante da opinião
dizer, um dos seus ingredientes) é o de que o espetáculo público do
pública. Perduram, como incentivos da energia de caráter, o desejo
de riquezas e de engrandecimento pessoal, a paixão pela filantropia sofrimento humano, e até sua mera concepção, é mantido cada vez
e o amor à virtude ativa. Mas os objetos para os quais esses vários mais fora da vista daquelas classes que desfrutam com plenitude dos
sentimentos se voltam estão agora no âmbito da escolha e já não da benefícios da civilização. O estado de conflito pessoal permanente,
necessidade, e os sentimentos já não atuam com idêntica força sobre que as circunstâncias de épocas passadas tornavam necessário, e do
todas as mentes. Deles, o único que pode ser visto como remotamente qual era praticamente impossível para qualquer pessoa evadir-se, não
universal é o desejo de riquezas. E, sendo a riqueza, no que concerne importando a sua posição social, forçosamente fez com que todos se
à maioria, o meio mais acessível de satisfazer os seus outros desejos, habituassem ao espetáculo de dureza, rudeza e violência, e à luta de
quase toda a energia de caráter existente nas sociedades altamente vontades indomáveis umas contra as outras, e à alternância existente
civilizadas se concentra na busca de tal objetivo. Contudo, no caso entre padecer de dores e as infligir. Como resultado, tais coisas não
das classes mais influentes — aquelas cujas energias, se as possuís- causavam tamanha revolta nem aos melhores e mais benevolentes
sem, poderiam ser exercitadas na maior escala e com os resultados homens dos dias de antanho quanto causam no nosso tempo. E
mais dignos de nota — o desejo de riquezas já está suficientemente se verifica que a conduta desses homens, tal como consignada no
satisfeito a ponto de as tornar avessas ao sofrimento causado pela dor registro histórico, era frequentemente de uma tal natureza que, se
e pouco dispostas a se darem qualquer labor voluntário em nome de emanasse de um homem dos nossos dias, seria considerada muito
ganhos ulteriores. As mesmas classes também desfrutam, apenas em insensível por todos. Eles, no entanto, atribuíam menos importância
razão de sua posição social, de um grau elevado de estima pessoal ao ato de infligir dor porque atribuíam menos importância à dor
a elas dispensada. Excetuados os altos cargos no serviço do Estado, como tal. Quando lemos sobre as ações dos gregos e dos romanos,
não há quase nada que atice as ambições de homens dessa condição. ou de nossos próprios ancestrais, e nelas se evidencia uma insensi-
Tais cargos, na época em que a um grande bastava solicitá-los para bilidade ao sofrimento humano, não devemos pensar que aqueles
tê-los, assim como podia preservá-los com menos dificuldade do que que as perpetravam eram tão cruéis quanto teríamos de nos tornar
tinham para gerir sua propriedade, eram, sem dúvida, objetos de antes de sermos capazes de fazer coisa semelhante. Eles estavam
posse bastante desejáveis para tais pessoas. Mas, quando se tornam habituados a se submeterem voluntariamente, por razões de pouca
cargos perpassados por labor árduo, aborrecimentos e ansiedade, e, importância, a dores da mesma magnitude das que infligiam aos
além disso, já não podem ser obtidos sem que se pague previamente outros. Não lhes parecia um mal tão grande, como nos parece, e,

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