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COMBINATÓRIAS DO SILÊNCIO: APROXIMAÇÕES ENTRE

LEIBNIZ E JOHN CAGE*

Fabrício Pires Fortes (UFSM)


fortes.fp@gmail.com

A música é o silêncio que existe entre os sons.


Antônio Carlos Jobim

Em Novembro de 1952, quando o pianista David Tuddor apresentou pela

primeira vez a obra 4’33”, a chamada silent piece, de John Cage, a reação do público

foi de escândalo. A peça, para execução em qualquer instrumento ou conjunto de

instrumentos, pode ser descrita como um período de tempo de quatro minutos e trinta e

três segundos (dividido em três movimentos: 30’, 2’23” e 1’40”) em que nenhum

instrumento emite qualquer som. A causa da revolta do público – devida, segundo Cage

a um mau entendimento da peça – foi a resistência em aceitar que a música possa

prescindir de sons. Ora, Cage estava preocupado não com o silêncio propriamente dito

(enquanto absoluta ausência de sons), mas com os sons ocasionais que permeiam a vida

humana e com o caráter contínuo da música. A silent piece, nesse sentido, teria o intuito

de chamar a atenção para a impossibilidade de se isolar o ouvido humano da ocorrência

de sons.

Eles (o público) não compreenderam. Não há uma coisa tal como o


silêncio. O que eles pensaram ser silêncio ( em 4’33”), porque eles
não sabiam como ouvir, estava repleto de sons acidentais. Você
poderia ouvir o vento soprando do lado de fora durante o primeiro
movimento. Durante o segundo, pingos de chuva começaram a
tamborilar o telhado, e durante o terceiro, as pessoas elas mesmas
fizeram todo o tipo de sons interessantes como para falar ou para ir
embora1.

*
É devido aqui um agradecimento ao professor Abel Lassalle Casanave, de cuja mente inquieta surgiram
as idéias que deram origem a este trabalho.
1
Cage, J. apud Solomon, 1998.

1
Disso se poderia concluir prematuramente que 4’33” se constitui numa música

sem musicistas, ou numa composição sem compositor. Contudo, um olhar mais detido

sobre a peça fornece alguns elementos que permitem descartar como demasiadamente

simplista essa conclusão. Em primeiro lugar, convém explicitar a distinção proposta por

Solomon entre os sons intencionais e os não-intencionais. Os primeiros seriam aqueles

previstos pela partitura, e cuja incidência depende da correta execução do intérprete. Já

os últimos seriam aqueles próprios de um determinado ambiente, não-previstos pela

partitura, e cuja incidência depende, em última instância, do acaso. A mão do

compositor em 4’33”, portanto, se manifesta na intenção de direcionar a audição do

público para os sons do segundo tipo.

Eu quis que meu trabalho fosse livre das minhas preferências


pessoais, porque eu penso que a música deve ser alheia aos
sentimentos e idéias do compositor. Senti – e esperei ter levado
outras pessoas a sentir – que os sons do ambiente constituem uma
música que é mais interessante que a música que eles ouviriam se
tivessem ido a uma sala de concertos2.

Em segundo lugar, há de se atentar para o aspecto formal da obra. Mesmo que se

sustente, contra Cage, que os sons não-intencionais não constituem propriamente

música, é forçoso aceitar que há ainda na obra um elemento composicional, a saber,

uma organização estrutural. A própria divisão da obra em três movimentos, com

durações rigorosamente definidas, caracteriza de maneira geral essa estrutura. Os

mesmos quatro minutos trinta e três segundos poderiam ser executados, por exemplo,

em apenas um movimento, ou mesmo em três movimentos com durações diferentes.

Certamente, em semelhantes casos, não se poderia dizer que o que se tem é a mesma

2
Cage, J. apud Solomon, 1998.

2
peça. A menos que se despreze completamente o caráter estrutural da música, deve-se

aceitar que diferentes organizações formais constituem diferentes composições.

Isso se torna ainda mais evidente quando se atenta para o aspecto notacional da

obra. Embora algumas edições posteriores da silent piece tenham sido elaboradas de

maneiras não convencionais (utilizando, por exemplo, gráficos espaço-temporais e até

mesmo indicações em linguagem ordinária), o manuscrito original (perdido logo após a

primeira apresentação) foi composto em notação tradicional, utilizando-se das figuras

de pausas. Não se sabe exatamente quais entre as diferentes figuras de pausas foram

usadas por Cage nessa composição. Contudo, uma abordagem combinatória poderia

revelar (sob certas convenções) todas as possibilidades para essa construção. Embora o

uso da combinatória em música esteja principalmente associado ao atonalismo do

século XX, tal abordagem remete a algumas idéias de Leibniz, mais diretamente à sua

Dissertatio de Arte Combinatorio (1666).

Nesta obra, se introduzem as questões que fundamentam a combinatória como

método geral. Além disso, são propostas aplicações desse método a diversas áreas do

saber, entre as quais podem ser citadas a silogística, a jurisprudência, a poesia e a

música. Assim, algumas passagens da Dissertatio oferecem exemplos de genuína

combinatória musical. Por exemplo, nas aplicações dos problemas I e II, enunciados da

seguinte forma: Problema I: dado o número e o expoente, encontrar as complexões (...)

Problema II: dado o número, encontrar as complexões simpliciter”3. A esses problemas

gerais, Leibniz propõe o cálculo das combinações entre os registros do órgão litúrgico4.

Trata-se, nesse caso, do cálculo das possibilidades de ocorrência, independentemente da

3
Número, nesse contexto, é definido por Leibniz como a quantidade de coisas que devem ser
combinadas. Expoente é o número de partes de cada combinação. Por complexões, entende-se o número
de combinações possíveis para um dado expoente. Finalmente, as complexões simpliciter são a soma de
todas as combinações possíveis de todos os expoentes para um dado conjunto.
4
Leibniz, 1992, p. 43.

3
ordem dessas ocorrências. Na matemática contemporânea, denominam-se combinações

simples esse tipo de operação.

Considere-se agora o problema VI: “dado o número de coisas que devem variar,

das quais alguma ou algumas se repetem, encontrar a variação de ordem”5. Aqui, uma

vez introduzido o fator ordem, a aplicação proposta ao caso da música consiste em

calcular as melodias possíveis para um dado texto musical. Para a resolução do

problema, Leibniz restringe o domínio às seis primeiras notas da escala natural, além de

desconsiderar aspectos como andamentos ou durações das notas. Assim, a resolução do

problema consiste em encontras as possíveis seqüências (na linguagem de Leibniz,

variações de ordem; na matemática contemporânea, permutações) com repetições de

elementos.

Contudo, a esse problema poderiam ser acrescentados outros elementos, como

os já mencionados andamentos e variações entre as durações das notas. Mais do que

isso, poderiam ser adicionadas outras notas ou até mesmo silêncio ao domínio do

problema. O resultado, o qual dependeria de um sistema notacional capaz de dar conta

de todos esses elementos, seria certamente mais rico em detalhes que os da Dissertatio.

Como questiona o próprio Leibniz no §6 do problema VI:

“Mas o que [aconteceria] se a sétima nota de Puteano, Si,


agregássemos para calcular, ou pausas, ou desigualdade de rapidez
nas notas, ou outros caracteres musicais, ou se avançássemos a um
texto de mais sílabas do que 6, ou aos textos compostos? Qual seria o
mar de melodias, cuja maior parte, em outro caso, poderiam ser
úteis”6?

Com base nisso, e pensando mais diretamente o caso das pausas, podem ser

feitas algumas aproximações entre a combinatória leibniziana e a silent piece de Cage.

Certamente, do mesmo modo que se podem acrescentar pausas às notas musicais do

5
Id. Ibid. p. 93.
6
Leibniz, 1992, p. 94.

4
exemplo de Leibniz, o mesmo problema poderia ser reduzido somente a essas pausas.

Fixando como domínio do problema as figuras de pausas que compõem a notação

musical tradicional, pode-se chegar a resultados semelhantes à silent piece. Por

exemplo, preservando-se a organização formal da peça de Cage, sua duração e sua

divisão em três movimentos, poder-se-ia inclusive reconstruir o manuscrito original.

Obviamente, todas as possibilidades combinatórias com pausas que durassem quatro

minutos e trinta e três segundos teriam um resultado que, do ponto de vista perceptivo,

seria idêntico a 4’33”. Contudo, do ponto de vista notacional, apenas uma entre todas as

combinações a que se chegaria seria a reconstrução perfeita do manuscrito de Cage.

Para tornar mais claras essas considerações, atente-se para alguns aspectos

básicos da notação musical. Essa notação designa os elementos da música sobre a base

de dois eixos, onde se assinalam as relações de altura e duração entre as notas. A altura

é apontada pela linha em que a nota é grafada no pentagrama, sendo que a ascensão do

grave para o agudo se representa pela ascensão das linhas inferiores às linhas superiores

da pauta. Como se pode observar abaixo:

Já a duração das notas é designada pelo próprio desenho da figura que é

assinalada sobre uma determinada altura. Contudo, os desenhos das figuras indicam

simplesmente a duração relativa das notas. A duração exata dessas notas depende da

indicação do andamento, o qual funciona como um pulso temporal padrão para uma

5
determinada peça ou trecho. O seguinte grafo exibe o complexo de relações entre as

diferentes durações das notas:

Cada uma dessas figuras para sons encontra uma respectiva pausa, de modo que

o mesmo complexo de relações entre as durações dos sons pode ser observado entre as

pausas ou sinais para silêncio. Como ilustra a seguinte tabela:

Assim, entende-se que diferentes combinações entre as figuras constituem

diferentes estruturas rítmicas. Pode-se exemplificar esse ponto a partir das diferentes

6
possibilidades combinatórias para um trecho de quatro compassos utilizando-se apenas

as figuras de pausas. Uma dessas possibilidades, com a composição rítmica bastante

simples poderia ser escrita utilizando-se apenas as pausas de semibreve. Na pauta, o

resultado seria o seguinte:

De forma semelhante, preservando-se o andamento e a unidade de compasso, um

novo trecho de mesma duração poderia ser construído com outras figuras, como por

exemplo as semínimas. Pela divisão binária das durações, tem-se o seguinte:

Outras tantas combinações a que se pode chegar para esse trecho fariam uso de

diferentes figuras, constituindo-se assim estruturas rítmicas mais complexas. Isso pode

ser observado no seguinte exemplo:

Dentre as inúmeras possibilidades de combinações entre pausas que uma tal

abordagem é capaz de revelar, uma delas poderia ser (dadas algumas convenções

prévias, com respeito ao andamento e ao número de compassos, por exemplo) idêntica

ao manuscrito original da silent piece. Da mesma forma, muitas outras possibilidades

poderiam resultar de um estudo mais profundo da questão. Assim, Cage poderia ter

composto não apenas uma, mas inúmeras silent pieces. Mesmo que todas elas tivessem

a duração de quatro minutos e trinta e três segundos, seria ainda lícito afirmar que se

7
tratariam de composições diferentes, desde que sua construção se utilizasse de

diferentes combinações de figuras.

É claro que, como foi dito anteriormente, os propósitos de Cage não estavam

direcionados para os aspectos combinatórios da música. No entanto, seu trabalho

oferece elementos de grande valor para se pensar semelhantes questões, sobretudo no

tocante ao aspecto notacional. Primeiramente, entende-se que a música não pode ser

reduzida à ocorrência de sons. Mesmo esvaziando de qualquer ocorrência sonora uma

determinada composição, resta ainda algo, a saber, uma estrutura temporal. Essa

estrutura deve, portanto, ser o que há de mais fundamental na música. Nos termos da

teoria musical tradicional, pode-se dizer que, embora se possa prescindir da categoria

altura na música, é impossível abrir mão da categoria de duração.

Portanto, a própria caracterização clássica da música como “a arte dos sons” não

parece aqui muito oportuna. Mesmo que para as condições perceptivas humanas o som

se configure como a matéria-prima musical por excelência, não se pode dizer que seja a

única possível. Em um trabalho recente, Osvaldo Pessoa Jr. Questiona a possibilidade

de haver música sem sons, sugerindo algumas possibilidades de música visual7. Para

tanto, traça uma analogia entre os sons e as cores, bem como entre a escala natural dos

sons musicais e a escala cromática. Suas conclusões mostram que, embora hajam certas

semelhanças entre as escalas musical e cromática, algumas diferenças básicas entre

órgãos dos sentidos de audição e de visão impedem que tenhamos algo como uma

música das cores. A principal diferença apontada pelo autor é o fato de que, enquanto as

células sensíveis da audição têm o formato de cavidades, as quais reproduzem, de

qualquer freqüência, todo o restante da série harmônica, as células sensíveis da visão

possuem o formato de cone, o que não as permite um funcionamento semelhante.

7
C. f. PESSOA, 2007.

8
“De fato, mesmo que um lá de freqüência única entrasse no ouvido, o
aparelho auditivo geraria as notas da série harmônica, devido ao fato
de ser uma cavidade ressonante. Já a visão não envolve cavidades:
cada um dos três tipos de células sensíveis a cores, chamados ‘cones’,
detecta apenas uma região em torno de uma freqüência única de luz,
não havendo o armazenamento temporário de energia luminosa em
qualquer cavidade ressonante”8.

Portanto, se a constituição de nossas células sensíveis da visão fosse em formato

de cavidades ressonantes, como os laseres, por exemplo, a estrutura temporal da música

poderia ser preenchida não com sons, mas com cores, e organizadas de uma forma tal

que possibilitaria identificar inclusive melodias e acordes.

Embora esse argumento possa parecer um tanto extravagante, oferece elementos

para afirmar de maneira mais consistente o caráter estrutural da música. Dessa forma,

diferentemente de se pensar a notação musical como um sistema que se refere a objetos

(que seriam os sons), parece mais próprio falar em um sistema que se refere a estruturas,

dentre a estrutura temporal pode ser considerada a mais fundamental.

Bibliografia

LEIBNIZ, G. W. Dissertatio de Arte Combinatorio. Santiago: Universidad Católica


de Chile, 1992.

PESSOA, O. “É Possível Haver Música sem Som?” [in: DUARTE, R., SAFATLE, V.
(orgs.) Ensaios Sobre Música e Filosofia. São Paulo: Humanitas, 2007].

SOLOMON, L. The Sounds of Silence – John Cage and 4’33”. Princeton: GH Press,
1998.

8
Id. Ibid.

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