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Desigualdades raciais no Brasil

Roberto Borges Martins (*)

(*) Presidente do IPEA. Os dados referentes à atualidade brasileira são parte do projeto
“Desigualdades raciais no Brasil”, em desenvolvimento no IPEA, sob a coordenação de
Ricardo Henriques
“Quando alguém prende uma corrente no
pescoço de um escravo, a outra ponta dessa
corrente se enrosca no seu próprio pescoço”

Ralph Waldo Emerson. Compensations


Fundamento Histórico
• Na origem das extremas desigualdades raciais observadas no Brasil
está o fato óbvio de que os africanos e muitos dos seus descendentes
foram incorporados à sociedade brasileira na condição de escravos.
• A chamada “escravidão moderna” foi uma das formas mais radicais de
exclusão econômica e social já inventadas pelo homem.
• As desigualdades entre as raças observadas no Brasil de hoje nada
mais são, portanto, que o resultado cumulativo das desvantagens
iniciais transmitidas através das gerações.
• As políticas de “ação afirmativa” ou “discriminação positiva” são
instrumentos de que a sociedade dispõe para compensar essas
desvantagens impostas às vítimas da escravidão e seus descendentes,
com o objetivo de colocá-los na mesma condição competitiva que os
outros segmentos da sociedade.
• Numa linguagem bem direta, pode-se dizer que se trata apenas de
“pagar os atrasados” ou de “recuperar o tempo perdido”.
• “Tratar desigualmente os desiguais para promover a igualdade”
O Brasil foi

• A segunda maior nação escravista da era moderna

• O último país do mundo ocidental a abolir a escravidão (1888)

• O penúltimo país da América a abolir o tráfico de escravos (1850)

• O maior importador de toda a história do tráfico atlântico

O Brasil tem hoje

• A segunda maior população negra (afrodescendente) do mundo, com


cerca de 80 milhões de indivíduos, só sendo superado pela Nigéria
Cronologia da abolição da escravidão na América

Saint Domingue (Haiti) 1804


Chile 1823
Províncias Unidas da América Central 1824
México 1829
Uruguai 1842
Colônias suecas 1847
Colônias dinamarquesas 1848
Colônias francesas 1848
Bolívia 1851
Colômbia 1851
Equador 1852
Argentina 1853
Venezuela 1854
Peru 1855
Colônias holandesas 1863
Estados Unidos 1863
Porto Rico 1873
Cuba 1886
Brasil 1888
Tráfico atlântico de escravos, 1451- 1870 (milhares de pessoas)

Destino 1451-1600 1601-1700 1701-1810 1811-1870 Total

Estados Unidos 0 0 376 51 427

América Espanhola 75 293 579 606 1.552

Caribe Britânico 0 264 1.401 0 1.665

Caribe Francês 0 156 1.320 96 1.572

Caribe Holandês e Dinamarquês 0 44 484 0 528

Europa e Ilhas Atlânticas 150 25 0 0 175

Brasil 50 560 1.891 1.145 3.647

Total 275 1.341 6.052 1.898 9.566

Fonte : Philip D. Curtin. The Atlantic Slave Trade. A Census (1969), p. 88


Distribuição percentual do Tráfico Atlântico, por local de destino, 1451-1870

7 4
EUA
Outros
16

América Espanhola

38
17

Brasil Caribe Britânico

16

Caribe Francês
Disseminação da propriedade de escravos

Suporte social e ético do regime


• A propriedade de escravos era amplamente disseminada na sociedade brasileira
(muito mais que nos Estados Unidos ou no Caribe)
• Durante quase 4 séculos o regime escravista contou com uma ampla base de
sustentação social, ideológica, política e religiosa. A Igreja Católica nunca
combateu a escravidão negra
•Não havia clivagens regionais, como nos EUA : a escravidão era aceita e
praticada em todo o território brasileiro
• No censo do Império (1872) havia escravos em todos os 643 municípios
brasileiros
• Ao contrário da lenda perpetuada pela literatura abolicionista, a sociedade não
rejeitava éticamente a escravidão
• Ter escravos ou traficar com escravos não era vergonhoso, nem estigmatizante,
mas sim um sinal de status, de riqueza e de prestígio. A maior parte dos grandes
traficantes e dos grandes proprietários recebeu títulos de nobreza do Império
• Até depois da Guerra do Paraguai quase não se encontra nenhuma oposição ao
regime servil na literatura, na imprensa, na jurisprudência ou no parlamento
• O movimento abolicionista, quando surgiu, foi inteiramente secular - a Igreja
Católica não participou dele
• Possuíam escravos tanto o grande fazendeiro, o grande
minerador, o grande comerciante, o general e o bispo, como
o pequeno lavrador, o faiscador, o pequeno funcionário,
o tropeiro, o artesão, o vendeiro e o cura da aldeia

• Mas também tinham cativos o sacristão, a viúva pobre, o


negro e o mulato forros, e até alguns escravos

• O governo tinha cativos (os “escravos da nação”), assim


como as ordens religiosas, os conventos e a família imperial

• As companhias mineradoras inglesas tinham muitos –


no Gongo Soco encontramos negros batizados como Otello,
Byron e Macbeth,além de inúmeras Pollys, Mollys e Peggies
• Em Minas Gerais, em 1831, 34% dos domicílios possuía
escravos (dois terços destes tinham de 1 a 5 indivíduos)

• Em 1862, encontramos cativos em 25% dos “fogos” mineiros

• Em 1828, 25% dos domicílios paulistas possuíam escravos

• Em 1998, 30% dos domicílios brasileiros tinham telefone

• Em 1997, 24% dos domicílios mineiros tinham automóvel


Brasil : Características da população no Recenseamento do Império, 1872

População População População População População %


Livre afro Escrava Total afro Não-afro Total Afrodescendente

Côrte 71.418 48.939 120.357 154.615 274.972 43,8


Rio Grande do Sul 84.992 69.685 154.677 292.285 446.962 34,6
Maranhão 170.615 75.272 245.887 114.753 360.640 68,2
São Paulo 207.517 156.612 364.129 473.225 837.354 43,5
Rio de Janeiro 187.251 306.425 493.676 325.928 819.604 60,2
Pernambuco 449.115 89.028 538.143 303.396 841.539 63,9
Bahia 837.816 167.824 1.005.640 373.976 1.379.616 72,9
Minas Gerais 830.255 381.893 1.212.148 890.541 2.102.689 57,6

Demais províncias 1.487.083 250.202 1.737.285 1.310.400 3.047.685 57,0

Brasil 4.326.063 1.545.880 5.871.943 4.239.118 10.111.061 58,1

Fonte : Recenseamento Geral do Império do Brasil (1872) (Dados corrigidos pela DGE)
Brasil : População por cor, 1890

Brancos Pretos e Pardos Total % Afro

Minas Gerais 1.292.716 1.891.383 3.184.099 59,4


Bahia 491.336 1.428.466 1.919.802 74,4
Pernambuco 423.900 606.324 1.030.224 58,9
São Paulo 873.423 511.330 1.384.753 36,9
Rio de Janeiro 376.661 500.223 876.884 57,0
Ceará 358.619 447.068 805.687 55,5
Alagoas 158.927 352.513 511.440 68,9

Demais Estados 2.326.616 2.294.710 4.621.326 49,7

Brasil 6.302.198 8.032.017 14.334.215 56,0

Fonte : Recenseamento do Brasil, 1890


Brasil : População por cor, 1991

Pretos e Pardos Indígenas Outros Total (1) % Afro % Indígena

Bahia 9.390.270 16.030 2.408.569 11.814.869 79,5 0,14


São Paulo 8.025.592 13.166 23.340.455 31.379.213 25,6 0,04
Minas Gerais 7.599.242 6.112 8.104.328 15.709.682 48,4 0,04
Rio de Janeiro 5.676.677 8.957 7.038.782 12.724.416 44,6 0,07
Pernambuco 4.750.122 10.578 2.357.474 7.118.174 66,7 0,15
Ceará 4.478.578 2.692 1.871.226 6.352.496 70,5 0,04
Maranhão 3.878.951 15.673 1.019.687 4.914.311 78,9 0,32
Pará 3.859.348 16.134 1.051.675 4.927.157 78,3 0,33

Outros Estados 21.992.411 204.793 29.143.390 51.340.594 42,8 0,40

Brasil 69.651.191 294.135 76.335.586 146.280.912 47,6 0,20

Fonte : IBGE, Recenseamento do Brasil, 1991

Nota : Não há declaração de cor para 534.895 indivíduos.


Brasil : População por cor, 1999

Pretos e Pardos Indígenas Outros Total (1) % Afro % Indígena

Bahia 10.093.894 29.780 2.902.497 13.026.171 77,5 0,23


São Paulo 9.626.584 26.940 26.287.808 35.941.332 26,8 0,07
Minas Gerais 8.164.656 11.463 9.165.602 17.341.721 47,1 0,07
Rio de Janeiro 5.286.723 2.337 8.547.758 13.836.818 38,2 0,02
Pernambuco 4.876.897 3.836 2.713.444 7.594.177 64,2 0,05
Ceará 4.811.455 611 2.316.496 7.128.562 67,5 0,01
Maranhão 4.076.339 3.296 1.351.219 5.430.854 75,1 0,06
Pará 2.379.879 5.920 812.528 3.198.327 74,4 0,19

Outros Estados 23.372.004 177.557 33.287.557 56.837.118 41,1 0,31

Brasil 72.688.431 261.740 87.384.909 160.335.080 45,3 0,16

Fonte : IBGE, PNAD 1999


A construção da negação

Do mito da “escravidão cordial” ao mito da “democracia racial”

• A idéia de que a escravidão no Brasil era “mais branda” ou “mais suave” do


que nos EUA ou no Caribe tem suas raízes no próprio período escravista
• Foi retomada por alguns historiadores no século XX (Oliveira Viana,
Carolina Nabuco, Artur ramos, Donald Pierson, Mary Wilhelmine Williams,
Percy A. Martin e, principalmente, Harry Johnston (1910), Gilberto Freyre
(1922, 1933), Frank Tannebaum (1946) e Stanley Elkins (1959)
• Ficou conhecida na literatura como a “tese Freyre-Tannebaum-Elkins”
• Totalmente desmoralizada hoje (Roger Bastide, Fernando Henrique
Cardoso, Octavio Ianni, Florestan Fernandes [UNESCO], Marvin Harris,
Sidney Mintz, etc.), mas teve papel importante na fixação do mito da
democracia racial no Brasil
• Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala (1933) :
• A escravidão afetuosa ou A senzala vista da varanda da casa grande
- uma visão idílica da escravidão e da “civilização do engenho”
- Um sistema patriarcal, paternalista, cordial, afetivo
- intensa troca cultural entre escravos e senhores
- intenso relacionamento sexual e miscigenação
- Foi o “gênio colonial português” que construiu essa civilização

• Muito mais direto e explícito em 1922, em “Social Life in Brazil in the


Middle of the Nineteenth Century”. HAHR (1922)
- Escravos eram bem alimentados, bem abrigados, bem vestidos e
bem tratados em geral
- “The Brazilian slave lived like a cherub if we contrast his lot
with that of the English and other European factory workers in the
middle of the last century”
Frank Tannebaum. Slave and Citizen. The Negro in the Americas (1946)
• Baseia seu argumento na comparação de algumas características :
- Colonização ibérica x colonização anglo-saxônica
- Catolicismo ibérico x catolicismo francês x protestantismo
- Tradição legal ibérica, convivência secular com regime escravista
- Experiência ibérica de convívio interracial

“Humanidade” do escravo brasileiro x bestialidade (chattel) nos EUA

• Estatuto legal da escravidão brasileira garantia garantia direito ao casamento e à família,


direito de mudar de dono, direito de propriedade, direito de comprar sua própria liberdade
• Evidências :
- incidência de manumissão
- relacionamento sexual, miscigenação
- sistema aberto, com possibilidade de mobilidade
- abolição pacífica
Da visão da escravidão mais branda e mais humanizada os defensores
dessa tese inferiram vários corolários sobre as relações raciais no Brasil
pós-abolição :
• “In Brazil the freed Negroes were free men, not freedmen” (Tannebaum)

• Depois da abolição os ex-escravos adquiriram cidadania imediata, fundindo-se


na população livre com plenos direitos, sem restrições legais e sem segregação

Visões como essas, junto com a afirmação formal da igualdade


(inexistência de aparato legal de segregação) e a ausência de violência
interracial, criaram, e mantém até hoje, a mentira da democracia racial,
ou seja a idéia de que a sociedade brasileira oferece oportunidades
iguais para todos, independentemente de sua raça ou cor

Esse é um dos mitos mais arraigados da cultura brasileira.


Racismo e desigualdade racial são anátemas no Brasil.
Recentemente tem surgido até mesmo um renascimento da tese da
“escravidão cordial”
Desigualdades raciais no Brasil hoje: a realidade desmente o mito

• Mais de um século depois da abolição, as desvantagens e


desigualdades geradas pelo regime escravista permanecem entre nós, e
continuam sendo transmitidas entre as gerações

• Todas as outras sociedades escravistas da América tiveram mais


sucesso que o Brasil na superação das desigualdades raciais

• No Brasil persistem grandes diferenças entre os indicadores sócio-


econômicos de brancos e negros e, o que é mais grave,vários desses
indicadores não tem uma trajetória convergente

• Apesar disso, a sociedade brasileira continua negando a existência do


problema e a necessidade de enfrentá-lo
Educação
Brasil : Número médio de anos de estudo em 1999, por coôrtes e por cor

Brancos
6
Escolaridade média

Negros
1

0
1929 1932 1935 1938 1941 1944 1947 1950 1953 1956 1959 1962 1965 1968 1971 1974

Ano de nascimento

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1999.

Nota: *A população negra é composta por pretos e pardos.


Mercado de trabalho
Desemprego
Renda e pobreza
Brasil : Renda domiciliar per capita média mensal, 1992 e 1999 (em reais de 1999)

1992 1999 Negros como % dos brancos


Total Brancos Negros Total Brancos Negros 1992 1999

Brasil 232 308 137 298 401 170 44 42

Centro Oeste 240 326 162 316 428 218 50 51


Nordeste 127 190 103 167 258 128 54 50
Norte 170 242 140 213 307 176 58 57
Sudeste 292 351 174 376 461 211 50 46
Sul 266 288 141 339 371 166 49 45

Metropolitana 327 415 196 421 548 237 47 43


Rural 98 133 70 123 170 84 52 50
Urbana 228 296 137 290 379 173 46 46

Fonte: IPEA, com base na Pesquisa Nacional por amostra de domicílios (PNAD) 1992 e 1999
Renda dos domicílios "negros" como % da renda dos domicílios "brancos", 1992 e 1999

65

Fonte : IPEA, com base na PNAD, IBGE

1992
60
58
1999 57

55 54

51
50 50 50
50 49

46
44 45
45
42

40

35

30
Brasil C. Oeste Nordeste Norte Sudeste Sul
Brasil : Distribuição da população por décimos da renda, segundo a cor, 1999

100

90

80

70
Proporção (%)

60

50

40

30

20

10

0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Décimos da renda

População Branca População Negra*

Fonte: IPEA, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1999.

Nota: *A população negra é composta por pardos e pretos.


Brasil : Proporção e número de pobres e de indigentes, por cor, 1992 e 1999

Proporção (%) Número (milhares)

1992 1999 1992 1999 Variação (%)

Pobres

Total 41 34 57.329 52.866 -8


Brancos 29 23 22.109 19.008 -14
Negros 55 48 35.099 33.638 -4

Indigentes*

Total 19 14 27.130 22.329 -18


Brancos 12 8 8.966 6.861 -23
Negros 29 22 18.092 15.374 -15

Fonte: IPEA, com base nas PNAD 1992 e 1999


Nota : o número de indigentes está incluído no número de pobres, e não deve ser somado a eles.
1992

1999
Brasil : População total, pobres e indigentes, segundo a cor, 1999

Indigentes

Pobres

População total

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

População Branca População Negra*

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de domicilio 1992, 1993, 1995, 1996, 1997, 1998 e 1999
Nota: * A população negra é composta por pardos e pretos.
Trabalho infantil
Distribuição por cor das crianças que trabalham, 1999

Crianças de 5 a 9 anos Crianças de 10 a 14 anos

38% 37%

Outros Outros
62% 63%

Pretos e pardos Pretos e pardos


Condições habitacionais

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