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“Estamira” e os limiares heterotópicos de resistência

ao governo biopolítico-psiquiátrico das diferenças.

Objetivo: Analisar as
possibilidades de resistência à
psiquiatria (enquanto um
dispositivo biopolítico de
governo das diferenças)
presentes nas falas, nas
narrativas e na existência de
Estamira Gomes de Souza
(ESTAMIRA, 2006).
Quadro teórico-analítico:
Poder em Foucault.
-Poder relacional: relações de poder em rede entre
corpos, sujeitos, saberes, técnicas, normas...
-Governo: “traço distintivo do poder é que alguns
homens podem mais ou menos determinar inteiramente
a conduta de outros homens – mas nunca de maneira
exaustiva ou coercitiva.” (Ditos & escritos, vol. 4, p. 384)
-Resistência: reciprocidade ontológica entre poder e
resistência.
Quadro teórico-analítico:
Foucault: Biopoder (disciplina e biopolítica) e Atitude Crítica
A diferença como o que não é norma(l). Como o que escapa
e afronta às normas disciplinares e biopolíticas. Como o que
assume uma atitude crítica: que nega ser governado dessa
ou daquela forma (O que é a Crítica).
A vontade de não ser
governado é negar-se a ser Vocês é comum. Eu não
governado dessa forma, a sou comum.
esse preço...
Quadro teórico-analítico:
Foucault: Medicalização psiquiátrica e governo dos
anormais/das diferenças.
“tudo o que é desordem, indisciplina, agitação, indocilidade,
caráter recalcitrante, falta de afeto, etc., tudo isso poder ser
psiquiatrizado” (Os anormais, p. 138).
Perspectiva metodológica:
“Estamira” como um documentário de orientação
genealógica (Foucault), que constrói um
enquadramento (Butler) que possibilita a transmissão e,
ao menos, a apreensão do discurso sujeitado e da
precariedade de existência da personagem.

“ser o discurso daqueles que não têm a glória,


ou daqueles que a perderam e se encontram
agora, por uns tempos talvez, mas por muito
tempo decerto, na obscuridade e no silêncio”
(Foucault, Em defesa da sociedade, p. 82)
Análise:
“Trocadilo safado, canalha, assaltante de poder,
manjado, desmascarado!”
-Estamira como os modestos infames:“pertencem a esses
milhares de existências destinadas a passar sem deixar
rastro.” (Foucault, A vida dos homens infames, p. 207).
-Estamira: vida em condição precária, negligenciada,
privada de direitos, exposta à violações, violência, morte
(Butler).
- Biopotência de Estamira: “ao poder sobre a vida
responde a potência da vida” (Pelbart, Biopolítica, p. 58).
- Fala provocativa, disparatada, recheada de neologismos,
metáforas, devaneios.
- Um tom parresíastico, de fala franca e corajosa
(Foucault, A coragem da verdade).
Análise:

Que Bíblia? Papel aceita até levar no banheiro. Papel


é indefeso!
Não foi Deus que pariu sua mãe, não! Foi eu! Foi eu
que pari! Aqui, ó! Aqui ó!
A minha missão é revelar, seja lá quem for, doa a
quem doer. A verdade é nua e crua. Ninguém errado
gosta da verdade.
Análise:
“A única sorte que eu tive foi conhecer o Sr. Jardim
Gramacho, o lixão

Descarregaram uma coisa muito importante aqui... Que é o de


comer... Enlatados, conservas... Palmito. Veio uma carga boa.
Olha, tá vendo? Eu ponho no molho do macarrão também, tá
vendo? E às vezes fica até melhor do que lá no restaurante.

Lixão como uma heterotopia


(Foucault, As heterotopias): um
contraespaço, espaço social da
diferença, do desvio e da
multiplicidade
Análise:
“Se eu beber diazepam... se eu sou louca, visivelmente,
naturalmente, eu fico mais louca!”
- Sujeições:

-No lixão, enquanto seu espaço heterotópico, insurgência


contra a tentativa de internação.
- Nas críticas ao uso de psicofármacos, uma resistência
mais lúcida e crítica.
Análise:

Ela [a médica] é a copiadora. Eles estão, sabe, fazendo o quê?


Dopando, quem quer que seja... com um só remédio!

Vocês não aprendem na escola,


vocês copiam.
O tal do diazepam... Não, eles vai
lá... Só copeia. Uma conversinha
qualquer e só copeia e tome!

Fica se viciando. Fica dopando. Esses remédio são da


quadrilha, da armação do dopante, pra cegar os home pra
querer Deus.
Análise:

O que era utilizar o láudano, o éter (...)?


Em aparência era acalmar o sistema
nervoso do doente, mas na realidade era
simplesmente prolongar até o interior do
corpo do doente o sistema do regime
asilar, o regime da disciplina (p. 226)
Enfim, quanto às drogas (...), elas eram,
evidentemente, como as drogas atuais
continuam sendo, um instrumento
disciplinar evidente, reino da ordem, da
calma, da colocação em silêncio. (p. 301)
Considerações finais:

Enfim, apesar de submeter-se a algumas práticas


psiquiátricas, Estamira busca resistir, ainda que de
maneira frágil em muitas situações, ao dispositivo
psiquiátrico. Nesse sentido, a postura de resistência de
Estamira (mesmo com seus desvarios) às tecnologias
contemporâneas da psiquiatria assemelha-se à atitude
crítica tal como analisada por Foucault: ao não querer e
não aceitar ser governado de determinada forma, ao não
aceitar como um discurso verdadeiro somente por que
algo foi proferido por uma autoridade, ao praticar uma
espécie de inservidão voluntária.

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