Feio bicho, de resto: Por acaso ou milagre, aconteceu Uma cara de burro sem cabresto Que, num burrinho pela areia fora, E duas grandes tranças. Fugiu A gente olhava, reparava, e via Daquelas mãos de sangue um Que naquela figura não havia pequenito Olhos de quem gosta de crianças. Que o vivo sol da vida acarinhou; E bastou E, na verdade, assim acontecia. Esse palmo de sonho Porque um dia, Para encher este mundo de alegria; O malvado, Para crescer, ser Deus; Só por ter o poder de quem é rei E meter no inferno o tal das tranças, Por não ter coração, Só porque ele não gostava de Sem mais nem menos, crianças. Mandou matar quantos eram Miguel Torga pequenos Antologia Poética Nas cidades e aldeias da Nação. Coimbra, Ed. do Autor, 1981 FALAVAM-ME DE AMOR
Quando um ramo de doze Depois nas folhas secas te envolvias
badaladas de trezentos e muitos lerdos dias e eras um sol na sombra flagelado. se espalhava nos móveis e tu vinhas solstício de mel pelas escadas O fel que por nós bebes te liberta de um sentimento com nozes e com e no manso natal que te conserta pinhas, só tu ficaste a ti acostumado. menino eras de lenha e crepitavas porque do fogo o nome antigo tinhas e em sua eternidade colocavas o que a infância pedia às andorinhas. Natália Correia O Dilúvio e a Pomba Lisboa, Publicações D. Quixote, 1979 NATAL À BEIRA-RIO
É o braço do abeto a bater na vidraça? E quanto mais na terra a terra me
E o ponteiro pequeno a caminho da meta! envolvia Cala-te, vento velho! É o Natal que passa, E quanto mais na terra fazia o norte de A trazer-me da água a infância ressurrecta. quem erra. Da casa onde nasci via-se perto o rio. Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me Tão novos os meus Pais, tão novos no À beira desse cais onde Jesus nascia... passado! Serei dos que afinal, errando em terra E o Menino nascia a bordo de um navio firme, Precisam de Jesus, de Mar, ou de Que ficava, no cais, à noite Poesia? iluminado... Ó noite de Natal, que travo a maresia! David Mourão-Ferreira, Obra Poética Depois fui não sei quem que se perdeu 1948-1988 na terra. Lisboa, Editorial Presença, 1988