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Do pós-colonial à decolonialidade

Como dizem os zapatistas, [é preciso]“luchar


por un mundo donde otros mundos sean
posibles”.  
Ramón Grosfoguel
- Nova onda de independências ao sul do globo e o surgimento de reflexões teóricas
denominadas de pós-coloniais

- “Sul” como um posicionamento político, como um “espaço de resistência híbrido”,


(Grovogui, 2010; Cairo y Bringel, 2010)

O prefixo “pós” na expressão pós-colonial não indica simplesmente um “depois” no


sentido cronológico linear; trata-se de uma operação de reconfiguração do campo
discursivo, no qual as relações hierárquicas ganham significado (HALL, 1997a).

Colonial, por sua vez, vai além do colonialismo e alude a situações de opressão
diversas, definidas a partir de fronteiras de gênero, étnicas ou raciais (COSTA, 2006,
p. 117).
Os estudos pós-coloniais se ocupam das ininterrupções da relação colonial na
contemporaneidade.

A colonialidade se mantém viva nos manuais de aprendizagem, nos critérios


para os trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos
povos, nas aspirações dos sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa
experiência moderna. Enfim, respiramos a colonialidade na modernidade
cotidianamente (MALDONADO-TORRES, 2007a, p. 131).

Spivak (1990, p. 166) deixa claro esse vínculo entre momentos históricos: “nós
vivemos em um mundo pós-colonial, neocolonizado”.

A perspectiva pós-colonial é, para Bhabha (1994, p. 6), “uma lembrança salutar


das persistentes relações ‘neocoloniais’ dentro da ‘nova’ ordem mundial e da
divisão multinacional do trabalho”.
Não existe uma teoria pós-colonial:

O que parece aproximar as várias “percepções, perspectivas e insights deste


campo de estudos é a construção de epistemologias que apontam para
outros paradigmas metodológicos – que potenciam outras formas de
racionalidade, racionalidades alternativas, outras epistemologias, do Sul”
(MATA, 2014, p. 31).

A maior parte das pesquisas pós-coloniais seguiu a trajetória dos estudos


literários e culturais, através:
- da crítica a modernidade eurocentrada
- da análise da construção discursiva e representacional do ocidente e do oriente
- e das suas consequências para a construção das identidades pós-independência
A noção de orientalismo discutida pelo palestino Edward Said (1935 – 2003)
exemplifica o tipo de estudo proposto pelos pós-coloniais:

“a cultura europeia ganhou força e identidade ao se contrastar com o Oriente,


visto como uma espécie de eu substituto e até subterrâneo” (SAID, 2007, p. 30).

Said problematiza a distinção entre conhecimento puro e político:

nenhum europeu se aproximou do Oriente sem antes de


qualquer coisa ser um europeu (SAID, 2011, p. 37)

É preciso atentar para o intercâmbio constante e disciplinado entre o significado


acadêmico e o sentido mais ou menos imaginativo do Orientalismo
“[...] sem examinar o Orientalismo como um discurso, não se pode compreender
a disciplina extremamente sistemática por meio da qual a cultura europeia foi
capaz de manejar – e até produzir – o Oriente política, sociológica, militar,
ideológica, científica e imaginativamente durante o período do pós-Iluminismo”
(SAID, 2007, p. 29).
Para Said, no livro “Cultura e Imperialismo” (2011):

A narrativa é crucial, uma vez que sua tese básica é a de que “as histórias estão
no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das
regiões estranhas do mundo; elas também se tornam o método usado pelos
povos colonizados para afirmar sua identidade e a existência de uma
história própria deles” (...)

Dessa forma, possuir o poder significa possuir o poder da narrativa, pois “o


poder de narrar, ou de impedir que se formem ou surjam outras narrativas
é muito importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das
principais conexões entre ambos” (2011, p. 111)
Para Said, a hegemonia gramsciana é um conceito indispensável para a
compreensão da vida cultural no Ocidente / Oriente:

“a relação entre o Ocidente e o Oriente é uma relação de poder, de


dominação, de graus variáveis de uma hegemonia complexa” (SAID, 2007,
p. 31).

“É a hegemonia, ou antes o resultado da hegemonia cultural em ação, que


dá ao Orientalismo a durabilidade e a força que tenho falado até o
momento” (SAID, 2011).
Importância da chamada “tríade francesa”:

- Aime Cesaire (1913-2008) – poeta, negro, também nascido na Martinica

- Albert Memmi (1920-) – escritor e professor, nascido na Tunisia, de origem


judaica

- Franz Fanon (1925-1961) – psicanalista, negro, nascido na Martinica e


revolucionário do processo de libertação nacional da Argélia

Os livros Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador (1947), de


Albert Memmi, Discurso sobre o colonialismo (1950), de Cesaire, e Os
condenados da terra (1961), de Franz Fanon, foram considerados escritos
seminais para dar voz aos colonizados (para usar os termos de Spivak)
Fanon questiona-se sobre qual o critério para ser francês

Na introdução de “Pele negra, máscaras brancas” (1952), Fanon proclamava: “É


preciso libertar o homem de cor de si mesmo. Lentamente, porque há dois
campos: o branco e o negro”.

“Quando me amam, dizem que é apesar da cor da minha pele. Quando me


detestam, se justificam dizendo que não é pela cor da pele. Em uma ou outra
situação, sou prisioneiro de um círculo infernal”

“Por vezes, o maniqueísmo alcança o limite de sua lógica e desumaniza o


colonizado” (1961)
Para Fanon, a alienação é a impossibilidade de um indivíduo se constituir como
sujeito.

alienação colonial -> toda a narrativa que é contada sobre o mundo e sobre os
seres humanos o exclui do mundo humano

Mesmo que ele tenha consciência do que está acontecendo, ainda assim as
estruturas e as relações da sociedade não lhe permitem sair da situação alienada.

Para Fanon, a superação do racismo deve se articular com a “descolonização das


mentes”
A máscara branca é uma condição de sobrevivência para o negro. Em uma
sociedade em que a regra de humanidade é branca, para ser aceito como humano, o
negro precisa embranquecer, muitas vezes.

“Não estávamos mais no tempo em que as pessoas se impressionavam diante


de um padre preto. Tínhamos médicos, professores, estadistas... Sim, mas em
todos esses casos algo de insólito persiste. (...) Sabia, por exemplo, que se um
médico negro cometesse um erro, era o seu fim e o dos outros que o seguiriam.
Na verdade, o que é que se pode esperar de um médico preto?”

Para Fanon, é preciso evitar o ódio, devido ao risco de manutenção da cisão


Na década de 1970, foi criado, no sul asiático, o Grupo de Estudos Subalternos –
com a liderança de Ranajit Guha

Na década de 1980, os subaltern studies se tornaram conhecidos fora da India,


especialmente através de Gayatri Chakrabarty Spivak

Spivak apresentou o trabalho do grupo ao publico estadunidense. Em 1985, ela


publicou o conhecido artigo “Pode o subalterno falar?”

Para ela, o sujeito subalterno é aquele cuja voz não pode ser ouvida, fazendo com
que ela critique também a intelectualidade que pretende falar em seu nome. O
subalterno permanece silenciado e aparece como constituição essencialista de um
“outro”.
Em 1992 – ano de reimpressão do texto clássico de Anibal Quijano “Colonialidad y
modernidad-racionalidad” – um grupo de intelectuais latino-americanos e
americanistas fundou o Grupo Latino-Americano dos Estudos Subalternos.

O founding statement do grupo foi originalmente publicado em 1993 na revista


Boundary 2, editada pela Duke University Press.

Em 1998, Santiago Castro-Gomez traduziu o documento para o espanhol como


“Manifiesto inaugural del Grupo Latinoamericano de Estudios Subalternos”.

Uma das vozes mais radicais do grupo, Walter Mignolo demonstrava seu
descontentamento com os estudos subalternos “originais”

Devido as divergências teóricas, o grupo latino foi desagregado em 1998


O grupo Modernidade/Colonialidade

(...) a colonialidade é o lado obscuro e necessário da modernidade; e a sua


parte indissociavelmente constitutiva (Mignolo, 2003, p. 30)

Necessidade de decolonizar a epistemologia latino-americana.

Colonialidade do poder: Segundo Aníbel Quijano, as relações de colonialidade


nas esferas econômica e política não findaram com a destruição do
colonialismo
Quijano -> a conquista das Américas e a ideia de raça

relação entre classificação social e a expansão do capitalismo

Identificação dos povos de acordo com suas faltas ou excessos é uma marca
fundamental da diferença colonial

Se a raça é uma categoria mental da modernidade, tem-se que seu sentido


moderno não tem historia conhecida antes da América (Quijano, 2005, p. 1).

Raça, gênero e trabalho foram as três linhas principais de classificação que


constituíram a formação do capitalismo mundial colonial/moderno no século XVI
(Quijano, 2000, p. 342)
Mignolo(2002) -> “diferença colonial e geopolítica do conhecimento”

Se para Habermas a modernidade é um projeto inacabado, para o grupo M/C a


decolonização também o é. Diferentemente da modernidade, a colonialidade não
e um ponto de chegada (Mignolo, 2003).

Para Mignolo, “a conceitualização mesma da colonialidade como constitutiva da


modernidade é já o pensamento de-colonial em marcha” (Mignolo, 2008, p.
249).

“O pensamento fronteiriço, desde a perspectiva da subalternidade colonial,


é um pensamento que não pode ignorar o pensamento da modernidade, mas
que não pode tampouco subjugar-se a ele, ainda que tal pensamento
moderno seja de esquerda ou progressista” (Mignolo, 2003, p. 52).
Siba N’Zatioula Grovogui

“O pós-colonialismo aspira participar na criação de ‘verdades’, com base nos


distintos modos de significação e formas de conhecimento (ou modos de
representação) que promovam a justiça, a paz e o pluralismo político. Para este fim,
contesta os pontos de vista racionalista, humanista e universalista vigentes e seus
modos de signifcação (ou maneiras de conferir sentido ao mundo), especialmente
onde eles afirmam que a Europa possui as formas mais finas da razão, da moral e do
direito” (GROVOGUI, 2010, p. 248).

O processo de criação e universalização da narrativa normativa eurocêntrica “não foi


aberto a uma maior participação dos vários círculos da sociedade internacional e o
ethos e a teleologia do imaginário moral prevalecente não são vistos por essas
multidões como geralmente congruentes com as suas próprias necessidades”
(GROVOGUI, 2002, p. 53).
Grovogui identifica falhas no pensamento humanista, o qual se vê como
universal

A crítica e resgate do humanismo europeu poderia ser feita a partir da


“etnografia reversa” (2003)

Exemplo: no artigo “Regimes of Sovereignty: International Morality and the


African Condition”, Grovogui problematiza a ideia de “Estados falidos”

moralidades diferentes

O regime de soberania na Europa ocidental não se


baseou exclusivamente em critérios de legitimidade ou de capacidade
doméstica dos Estados
A segurança internacional no pós-Guerra Fria e a concepção de “Estado falido”

- Aumentos das missões de paz com mandatos mais amplos

Agenda para a Paz (1992): necessidade de estabilizar as sociedades


fragilizadas, em consonância com o fortalecimento de um modelo
democrático-liberal

“o tempo para a absoluta e exclusiva soberania [...] havia passado”


(UNITED NATION, 1992).

- Gerald Helman e Steven Ratner: publicação do artigo Saving Failed States (1992)
- Madelene Albright: em artigo no NYT, definiu a Somália como Estado falido
(1993)
Nova ênfase à questão dos Estados falidos durante a Guerra ao Terror

Exemplo: Estratégia de Segurança Nacional de 2002: “os EUA estariam menos


ameaçados por Estados conquistadores do que pelos falidos”.

Efeito: aumento das intervenções militares e da securitização da ajuda


internacional

USAID: “Fragile States Strategy (2005): “talvez não haja um assunto


mais urgente que a USAID enfrente do que os Estados frágeis”.

O nexo entre segurança e desenvolvimento na questão dos Estados falidos


também era visto em informes de instituições como o Banco Mundial e a OCDE

- Criação do Índice de Estados Falidos, publicado desde 2005


Discursos em prol da necessidade de intervenções “modernizadoras” e
“disciplinadoras”:

- Gérard Kreijen, no livro “State Failure, Sovereignty And Effectiveness” (2004):

A redução das fragilidades de tais Estados requer um processo de


“pacificação”, para a garantia do monopólio legítimo da violência

Para “salvar Estados falidos deve-se começar com o derramamento de mais


sangue” (2004, p. 299).

É preciso uma “re-colonização benigna”, uma vez que “o colonialismo


evolucionário tem de ser retomado onde a precipitada descolonização o deixou,
há cerca de quarenta anos” (ibidem).
- Francis Fukuyama, no livro Construção de Estados (2005):

Os Estados falidos seriam a maior ameaça à segurança internacional no século


XXI -> isto porque não desempenham suas funções mínimas e são fontes de
vários problemas transnacionais

É preciso (re)construí-los:

Embora o poder militar convencional tenha sido suficiente para algum propósito
[...] os problemas estruturantes causados por Estados falidos ou por uma
governança fraca podem apenas ser resolvidos com base em esforços de longo
prazo capitaneados por potências externas, para reconstruir instituições estatais que
lhes sejam próprias (FUKUYAMA, 2006, p. 2).
Bruce Gilley, da Universidade Estadual de Portland, no estado de Oregon (EUA), na
edição de setembro de 2017 da Third World Quarterly (TWQ):

“Nos últimos cem anos, o colonialismo ocidental gozou de má fama. É chegada a


hora de questionar essa ortodoxia. O colonialismo ocidental, como regra geral, foi
tanto objetivamente benéfico quanto subjetivamente legítimo na maioria dos lugares
em que se encontrou [sic], usando-se medidas realistas desses conceitos. Os países
que abraçaram sua herança colonial, de maneira geral, se saíram melhor do que
aqueles que o repudiaram.
A ideologia anticolonial impôs graves danos aos povos sujeitados e continua a tolher
o desenvolvimento sustentado e um encontro frutífero com a modernidade em muitos
lugares. O colonialismo pode ser recuperado em Estados fracos e frágeis, hoje, de
três maneiras: recuperando modos coloniais de governança; recolonizando algumas
áreas; e criando novas colônias ocidentais do zero”.
A partir das teorias tradicionais, a falência estatal seria revertida a partir da
“correção” de falhas domésticas

Há a inversão interessada da lógica dualista que perpassa essas teorias:

no caso dos Estados falidos haveria uma anarquia doméstica, a qual


poderia ser revertida por meio do que há de “modernizador” no
domínio internacional (MORENO, 2015)

A definição de Estados falidos confirmaria a percepção de Grovogui (2002) quanto


à necessidade de problematização de uma ordem hegemônica hierarquizada
baseada em mecanismos de subordinação.
No texto A Revolution Nonetheless: The Global South in International Relations
(2011), Grovogui afirma que o termo Sul Global é uma designação simbólica
com implicações políticas

A busca pela autodeterminação tem emanado com cada vez mais força do Sul
Global.

Desde a Conferência Bandung (1955) e o Movimento dos Não-Alinhados


(1961), há ampla evidência do impacto da agenda pós-colonial do Sul Global
sobre as normas e práticas internacionais

As ciências sociais e humanidades constituídas no Ocidente não refletiram essa


"realidade" por razões históricas e estratégicas.
Para Hegel (1955, p. 231), “o Novo Mundo pode ter sido uma vez unido à Europa e à
África”, mas as populações que habitavam essa região mostravam-se como
inferiores. “Mesmo nos animais encontrava-se a mesma inferioridade que existia nos
homens” (ibidem, p. 232). Os habitantes nativos da América seriam incapazes até
mesmo de se adaptarem à civilidade europeia, visto que eram “como crianças
inconscientes vivendo seu cotidiano, privadas de toda reflexão e intenção superior”
(ibidem, p. 234). Não restava outro destino àquela civilização “inteiramente natural”
que não fosse o “colapso no primeiro contato com o Espírito”, tendo em vista sua
“impotência tanto do ponto de vista físico como moral” (ibidem, p. 232)

“Passamos da caracterização de ‘povos sem escrita’ (pictografia) do século XVI, para


a dos ‘povos sem civilização’ até o século XIX, depois para ‘povos sem
desenvolvimento’ do século XX e, mais recentemente, ‘povos sem democracia’ do
século XXI” (GROSFOGUEL, 2006, p. 47).
Contra este pano de fundo, Grovogui afirma que um desafio importante do Sul
Global tem sido abolir o mandamento imperial sobre as populações que foram
alvo de colonizações

Os enunciados de Nehru (e outros presidentes) sobre não-intervenção e não-


interferência em Bandung estabeleceram o paralelismo e o lateralismo como
padrão inadiável para as relações internacionais

O Sul Global tem agendas que vão além das críticas ao imperialismo ou revoltas
ocasionais contra o mandamento colonial e suas manifestações.

O Sul Global almeja um tipo diferente de universalismo, baseado em


deliberações e contestações entre diversas entidades políticas, com o objetivo de
alcançar um acordo funcional sobre questões de interesse global.

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