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Corrente crítica

de Richard Sennett
Rio de Janeiro : Record, 1999. 204 p.

por Ana Paula Paes de Paula, Mestre em Administração


Pública e Governo pela EAESP/FGV e Doutoranda
em Ciências Sociais na Unicamp.
E-mail: appaula@uol.com.br

N esse livro, Richard Sennett oferece-nos


um instigante ensaio sobre as influênci-
as do “capitalismo flexível” no mundo
do trabalho e suas repercussões no caráter huma-
flexão sobre as conseqüências sociais dos novos
caminhos trilhados pelos indivíduos na socieda-
de da informação.
É de conhecimento geral o que a maioria dos
no, convidando-nos a realizar uma profunda re- consultores de recursos humanos recomenda para

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os profissionais nos dias de hoje: invista tudo o nia da liberdade. Um dos melhores exemplos
que puder em sua carreira para garantir sua disso é a nova forma de organizar o tempo no
polivalência no mercado de trabalho, não perma- local de trabalho, que Sennett denomina “fle-
neça em uma mesma empresa ou função por mui- xitempo”. Este é caracterizado pelo planeja-
to tempo e esteja preparado para relações de tra- mento flexível das jornadas e pelo trabalho
balho temporárias. virtual, no qual o funcionário deixa de ser
Na opinião de Sennett, essas exigências de fle- monitorado pelo relógio de ponto para ser
xibilidade na atuação profissional e a inexorável controlado por meio da tela do computador.
fugacidade das relações trabalhistas estariam con- Assim, na visão do autor, a proclamada “des-
tribuindo para enfraquecer valores como o com- burocratização” das empresas é enganadora,
promisso, a confiança e a lealdade, que são funda- pois, apesar do abandono da rigidez e do for-
mentais para a consolidação do caráter humano. malismo típicos da organização burocrática,
Para o autor, a decadência desses valores seria um a sua característica fundamental, que é a do-
reflexo do desaparecimento das relações de longo minação e a alienação do trabalhador, está
prazo no trabalho e estaria se reproduzindo na vida sendo recriada.
social, dificultando o estabelecimento de relações Em atividades operacionais, por exemplo,
mais permanentes com os amigos e a comunidade, a automação está reinventando a superespecia-
além de interferir na formação do caráter das cri- lização taylorista do trabalhador. É o caso da
anças, que não vêem mais na rotina diária dos pais padaria automatizada descrita por Sennett em
as virtudes que eles procuram pregar. seu ensaio: para fazer o pão basta saber “cli-
Essas mudanças de comportamento na vida car” os ícones corretos, o que não requer co-
profissional resultam das novas forças que estão nhecimento do ofício, mas apenas conhecimen-
impactando o mundo do trabalho na empresa fle- tos básicos de Windows. Associada ao “flexi-
xível: a reinvenção descontínua das instituições, tempo”, essa superespecialização estaria des-
a especialização flexível de produção e a concen- mantelando as identidades e causando uma pro-
tração de poder sem centralização. Reinventar a funda indiferença em relação ao trabalho.
empresa e flexibilizar a produção tornaram-se uma Já no ambiente empresarial, os executivos
regra em um mercado em que o que interessa é o estão sendo expostos, pela necessidade de pro-
retorno em curto prazo para os acionistas e a var todos os dias a sua competência, a um es-
pronta resposta à demanda do consumidor. Por tado contínuo de vulnerabilidade. Em um mer-
outro lado, para saciar essa vertiginosa ânsia cado em que há poucos ganhadores e no qual
pelo resultado imediato, tornou-se indispensá- o “vencedor leva tudo”, as pessoas estão sen-
vel acelerar os processos, de forma que foi ne- do continuamente pressionadas a se superar,
cessário permitir que funcionários tivessem apesar do alto risco de fracasso. Nesse “jogo”,
mais controle sobre suas atividades, controle os funcionários de meia-idade são os que mais
esse que está sendo concedido sob uma estrita sofrem, pois a concentração nas capacidades
vigilância operada via novas tecnologias de imediatas leva a uma negação de sua experi-
informação, inaugurando formas mais sofisti- ência passada, agravada pelos rótulos de aver-
cadas de dominação do que as utilizadas nas são ao risco e de inflexibilidade.
empresas no passado. Por outro lado, a ética individual do traba-
O paradoxal é que esse novo sistema de lho, personificada pelo “homem motivado”,
dominação está sendo construído sob a insíg- que busca incessantemente provar seu valor

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A corrosão do caráter: conseqüências pessoais
Corrente críticado trabalho no novo capitalismo

moral pelo trabalho, está sendo substituída pela pessoas de poder desigual e interesses diferen-
ética do trabalho em equipe. Para Sennett, isso tes. Além disso, para que a confiança se esta-
seria uma vitória para a civilização se o traba- beleça entre as pessoas, é fundamental que elas
lho em equipe não estivesse se transformando sejam necessárias umas às outras.
em um “teatro” em que as aparências e com- Ironicamente, ser necessário a alguém é jus-
portamentos são manipulados e o conflito é sis- tamente o valor que está sendo depreciado no
tematicamente adiado. Na realidade, o traba- novo mundo do trabalho, no qual se descartam
lho em equipe veio substituir a vigilância do as pessoas, suas identidades e suas chances de
administrador pela pressão dos colegas, tornan- sucesso. Nas palavras de Sennett: “Esse é o pro-
do-se uma excelente estratégia para aumentar blema do caráter no capitalismo moderno. Há
a produtividade. Assim, as responsabilidades história, mas não a narrativa partilhada de difi-
são partilhadas e não há uma figura que sim- culdade, e portanto tampouco destino partilha-
bolize a autoridade, mas a dominação conti- do. Nessas condições, o caráter se corrói; a per-
nua permeando as relações entre os indivídu- gunta ‘Quem precisa de mim?’ não tem respos-
os no trabalho. ta imediata” (p. 175-176).
Sennett, então, cita Rorthy para demonstrar Assim, para Richard Sennett, o novo capi-
que o “homem motivado” está sendo substitu- talismo flexível, em sua ânsia pelos resulta-
ído pelo “homem irônico”: “Richard Rorthy es- dos, está gerando uma sociedade impaciente
creve, sobre a ironia, que é um estado de espí- e concentrada apenas no momento imediato,
rito em que as pessoas jamais são ‘exatamente cujos valores amorais contribuem para cor-
capazes de se levar a sério, porque sabem que roer o caráter humano. E o que é mais inqui-
os termos em que se descrevem estão sujeitos etante: a substituição da rotina burocrática
a mudança, sempre sabem da contingência e pela flexibilidade no trabalho não foi acom-
fragilidade de seus vocabulários finais, e por- panhada pela liberdade e pela emancipação
tanto dos seus eus’. Uma visão irônica de si do indivíduo, mas pela elaboração de novas
mesmo é a conseqüência lógica de viver no formas de dominação.
tempo flexível, sem padrões de autoridade e Apesar de suas constatações pessimistas,
responsabilidade” (p. 138). E nos provoca: “A Sennett reconhece que não há como negar as
clássica ética do trabalho de adiar a satisfação novas realidades históricas nem os avanços que
e provar-se pelo trabalho árduo dificilmente ocorreram no mundo do trabalho. Assim, para
pode exigir nossa afeição. Mas tampouco o compreender sua mensagem, o leitor precisa
pode o trabalho em equipe, com suas ficções e estar atento para o fato de que sua intenção
fingimentos de comunidade” (p. 139). não é fazer um resgate do passado, mas ques-
Para Sennett, o comunitarismo resulta de tionar como vamos moldar o nosso futuro em
fortes laços entre pessoas que tiveram tempo uma sociedade na qual os indivíduos não es-
suficiente para enfrentar suas diferenças: a su- tão mais seguros de serem necessários aos seus
posição de que todos os membros de uma equi- semelhantes. Esse convite para tão indispen-
pe de trabalho partilham das mesmas motiva- sável reflexão é suficiente para tornar a leitu-
ções não garante uma comunicação efetiva, tor- ra desse ensaio estimulante para todos aqueles
nando o trabalho em equipe uma forma frágil que procuram compreender as conseqüências
de comunidade. Na sua visão, é o enfrentamen- sociais dessa progressiva corrosão do caráter
to do conflito que oferece a base real para unir humano. m

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