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A reordenação do mundo: Arthur Bispo do Rosário e Tony Cragg

Marcelino Peixoto

“Na coleção a prosa cotidiana dos objetos se torna poesia”.


Baudrillard

Todo e qualquer inventário guarda elementos de uma escolha do

inventariante. Subjetivados, os sistemas científicos de classificação do mundo e

do conhecimento, apontam para sua própria falência na busca de uma ordenação

precisa do mundo existente. Conscientes da falibilidade de tais sistemas

taxonômicos, inúmeros artistas ao longo do século XX deles se apropriaram para,

no rearranjo dos objetos/símbolos inventariados, propor uma outra ordenação.

Segundo Maria Esther Maciel “todo recenseamento tende, em seus limites, a

revelar o caráter do que é naturalmente incontrolável e ilimitado”.

Inventário: detalhamento, levantamento, listagem. Inventar: descobrir,

imaginar, criar, arquitetar. Inventor: o que acha, o que descobre, o autor-primeiro.

Uma questão: Onde o inventor procura, onde encontra a matéria para suas

invenções?
No ato de inventariar, o inventor seleciona, cataloga – desde o seu mundo -

as coisas do mundo instituído, constituindo, dessa maneira, seu próprio inventário.

Inventa com o inventariado. Da manipulação do inventariado constrói um outro

sentido, inaugurando um deslocamento, uma transformação da cadeia de

significações estabelecida.

Artistas como Arthur Bispo do Rosário e Tony Cragg se valeram dos

modelos taxonômicos (listagens, catalogações, mapeamentos, estatísticas,

enumerações), criando um curto-circuito na lógica ordenadora de tais modelos.

Listando, inventariando, Bispo e Cragg desenvolveram trabalhos que guardam

entre si semelhanças e dessemelhanças.

O que poderia haver de semelhança entre a obra de artistas com realidades

tão distintas quanto Arthur Bispo do Rosário e Tony Cragg? Não se sabe de

registros de qualquer diálogo explicitado entre a obra de ambos os artistas.

Consta em um possível inventário da vida de Bispo o ofício de fuzileiro da

marinha de guerra, pugilista (campeão sul-americano da categoria peso-leve),

empregado doméstico, porteiro, segurança, interno da Colônia Juliano Moreira,

artista, brasileiro... Inventariando a vida do britânico Anthony Cragg, temos

laboratorista da National Rubber Producers Research Association, estudante de

arte nos anos 60 (momento em que a arte conceitual, minimal e a arte povera se

desenvolviam), artista, professor na Academia de Arte de Düsseldorf e um dos

mais bem sucedidos escultores da sua geração.

Produzindo a partir de realidades diversas e motivações distintas, Arthur

Bispo do Rosário e Tony Cragg encontraram no ato de colecionar e nos modelos

classificatórios a forma possível para a tarefa, pôr ambos compartilhada, de


reordenação do mundo. Uma reordenação que guarda características

enciclopédicas, pois como aponta Umberto Eco, o que caracteriza o conhecimento

enciclopédico é justamente sua natureza desordenada, construída a partir de

“algum critério provisório de ordem” que busca construir uma compreensão de um

mundo desordenado.

Bispo do Rosário! Consta que o rosário é um agrupamento de contas, uma

enfiada de 165 contas dispostas de maneira sucessiva, correspondente ao

número de 15 dezenas de ave-marias e 15 padre-nossos. Mas rosário também é

sucessão, série, seqüência ininterrupta, listagem, uma coleção. O bispo é o vigia,

o inspetor. Figura que em pleno sacerdócio tem poderes de conferir os

sacramentos da confirmação e da ordem. Assim foi o território de Arthur Bispo do

Rosário: um mundo ordenado. Nascido em 1911 e falecido em 1989, sua

passagem pelo mundo traçou uma diagonal no tabuleiro das questões comuns

aos homens do século XX, abordadas com seu ordenamento vertiginoso.

Nascido na cidade de Liverpool, na Inglaterra no ano de 1949, Tony Cragg,

talvez o artista mais importante da chamada Nova Escultura inglesa, inova no

mapeamento de seu território. Leve e precária, essa Nova Escultura desenvolvida

nos finais dos anos setenta teve sua tônica numa espécie de bricolagem mental.

As obras funcionavam como eventos ou como pequenos sinais modificadores do

espaço. Tais esculturas nunca se erguiam verticalmente sobre o piso, estando

quase sempre bem rentes ao chão, como animais rastejantes ou que se grudam à

parede. A Nova Escultura inglesa, pôr seus procedimentos, indica um recuo do

volumétrico ao pictórico e ao bidimensional.


A matéria-prima da obra tanto de Arthur Bispo do Rosário quanto de Tony

Cragg é constituída pôr resíduos, detritos da civilização industrial: brinquedos,

talheres, ferramentas, pentes, engrenagens, sapatos, canecas e copos, garrafas,

latas, embalagens, papelão, pano, madeira, linhas, botões enfim, o que foi

desprezado pela sociedade. Interessam-se pelo universo das coisas. São

colecionadores que tiveram em comum, sobretudo, o procedimento empreendido:

ordenação, catalogação para reconstrução de uma outra ordem. Inventam

inventariando. Nesse percurso, constroem verdadeiros mapeamentos de territórios

percorridos/vividos. Os materiais inventariados se fundem e se confundem, se

adicionam e se interferem, criando ressonâncias que norteiam um caminho

marcado pela ausência de linearidade. O que une essa variada gama de objetos é

o fato pertencerem a um mesmo inventário, a uma mesma coleção.

O ato de colecionar de ambos aponta para o hábito, comum ao homem pós-

industrial, de juntar coisas. Com extrema ironia, Marcel Duchamp no início do

século XX criticou tal gosto, atacando com suas ações, a própria noção de obra de

arte. Retirando objetos das funções para as quais foram produzidos, Duchamp os

transforma em obra de arte ao inseri-los no ambiente artístico. A tais objetos ele

dá o nome de ready made, objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo

único fato de escolhê-los, converte em obra de arte. Ao mesmo tempo esse gesto

dissolve a noção de obra como excelência da técnica ou de uma genialidade

criadora.

Como ocorre com qualquer objeto colecionado, o objeto ready made ao ser

desalojado de sua significação inicial transforma-se em um objeto vazio. Porém,

como afirma Otávio Paz, “se o objeto é anônimo, não o é aquele que o escolhe”,
que o retira de seu lugar de origem. Também Jean Baudrillard, em ensaio sobre o

ato de colecionar afirma que “todo objeto ao ser colecionado deixa de ser definido

pela sua função para entrar na ordem da subjetividade do colecionador”. Nesse

sentido, o território de Arthur Bispo do Rosário e de Tony Cragg são definidores da

obra de ambos, sintomas de realidades vividas pôr dois homens do século XX.

O ato de recolher é distinto do ato de escolher. Ao eleger um objeto, como

no caso dos ready made, o ato de escolher guarda certa semelhança com um

encontro: dia e hora precisa, um instante exato. Recolher, pôr sua vez, é um

momento-pós, é juntar o que estava disperso. E, no caso de Bispo e Cragg, o que

foi dispensado, objetos escolhidos para serem descartados. O método de trabalho

de ambos os artistas dá ênfase ao arranjo de algo recolhido e não

necessariamente, à fatura. São manipuladores, reordenadores e não construtores

de objetos.

Enclausurado de 1939 a 1989 na Colônia Juliano Moreira, no Rio de

Janeiro, Bispo do Rosário recolheu os objetos que o cercava para colecioná-los e

reordená-los. Tal ambiência se não é definitiva é definidora da espacialidade da

obra de Bispo. Na limitação de seus domínios territoriais ele recolhe materiais que

indiciam além de seu próprio tempo, sua vida marcada pela pobreza, pela loucura

e pela exclusão. Tais objetos recolhidos são, nos dizeres do próprio Bispo, “tudo

material existente na Terra dos homens”.

No final dos anos 70, Tony Cragg tornou-se aclamado para suas esculturas

e retratos que consistiram em coisas que encontrou, objetos cotidianos feitos de

materiais distintos, recolhidos pelo próprio artista e reordenados pôr suas formas e

cores. Como Bispo em sua clausura, desenvolveu os seus trabalhos


habitualmente recluso em seu ateliê, onde trabalhou com idéias, raciocínios,

gestos, sentimentos, humores e tensões.

Ao contrário de Tony Cragg, Bispo do Rosário não trabalhou a favor ou

contra quaisquer correntes estéticas, visto que seu isolamento o impedira de ter

contato com o universo intelectualizado dos salões de arte e dos movimentos

estéticos, mas seu procedimento como artista e homem esbarram em questões

estéticas que caracterizaram os experimentos na arte de seu tempo, chegando

mesmo a apontar algumas tendências da produção contemporânea dos finais do

século XX, dentre as quais situa-se a obra de Tony Cragg.

A viagem estética de Bispo era norteada pôr uma missão: reapresentar o

mundo para Deus na hora do juízo final. Acreditando ter sido o escolhido de Deus

para reconstruir o mundo após o fim de tudo, Bispo se dedicou, obstinadamente, à

sua missão: “Quando eu subir, os céus se abrirão e vai começar a contagem do

mundo (...) vou me apresentar”. Como aponta Maria Esther Maciel “para Bispo, o

mundo não se afigurava de forma naturalizada, mas artificialmente moldado a

partir do que nele foi depositado pela cultura. Interessava-lhe, particularmente,

coletar a multiplicidade das coisas fabricadas e das nomenclaturas que as

acompanham (...) para depois, ordenar tudo, fazer tudo coexistir em um todo finito,

a partir de uma lógica desconcertante, na qual se conjugam, paradoxalmente, a

lucidez e o delírio”. Assim, Arthur Bispo do Rosário, engolido pelo seu próprio

processo vai construindo uma textura instauradora de sentidos outros que não os

já instituídos e aceitos.
Como vimos, as semelhanças entre a obra de Bispo e de Cragg estão

relacionadas, sobretudo, com o procedimento empreendido. Quando entramos no

campo das dessemelhanças fica evidenciado a distinção entre as motivações de

ambos. Ao contrário do cariz místico da obra de Bispo, marcada pôr seu intento de

reapresentar mundo, Tony Cragg se propõe uma investigação própria do universo

das artes. Seu interesse mais marcante passa pôr uma redefinição da escultura,

colocando-a como mais um objeto do mundo. Seus trabalhos intentam representar

o mundo e sua fragmentação. Nos dizeres do próprio Cragg, seus trabalhos

também são coisas, "estão lá e querem um diálogo na base de todas as coisas

restantes que estão no mundo, e não na base de um grupo particular dos objetos

que se chamou, no passado, escultura". Talvez pôr essa concepção de Cragg as

suas esculturas, como ele mesmo aponta, "funcionam como metáforas de célula,

órgão, organismo ou corpo".

Em artigo publicado no catálogo de 1996 intitulado The Articulated Column,

aponta que seu ofício escultórico: "é uma tentativa de fazer com que material

inanimado expresse sentimentos e pensamentos humanos (...), não apenas de

projetar a inteligência no material como também de se valer do material para

pensar". Cragg define sua sistemática de trabalho como uma mistura de método e

loucura. "Na maior parte das vezes, não sei quem está no comando, se a

escultura ou eu próprio”. Virando a mesma luva, vemos que a sistemática de Bispo

do Rosário igualmente mescla loucura e método.

Tony Cragg e Arthur Bispo do Rosário ao trabalharem com os resíduos ou

detritos da civilização industrial, acabam pôr recobrir seus trabalhos com uma
dimensão crítica em relação à produção seriada e à própria sociedade. A

comparação entre o gesto de ambos os artistas revela a negatividade do objeto

manufaturado. Os objetos, ao contrário dos homens, não nascem e tampouco

morrem. São fabricados, gastam-se, tornam-se inúteis e tem como fim o lixo. E

mais: o componente mítico nas inquietações de Arthur Bispo do Rosário, próprio

dos primórdios da arte, apontam para a questão ainda atual da perda da aura nos

objetos produzidos em série. A dimensão religiosa das artes deu aos objetos

artísticos uma qualidade que foi estudada pelo filósofo alemão Walter Benjamim: a

aura, essa absoluta singularidade do ser (irrepetível). A obra de arte aurática seria

aquela que torna distante o que está perto, porque transfigura a realidade, dando-

lhe a qualidade da transcendência.

Houve um tempo em que as artes tiveram como finalidade sacralizar e

divinizar o mundo tornando-o distante e transcendente e, ao mesmo tempo,

presentificar os deuses, tornado o que está longe (o divino) próximo. A origem

religiosa transmitiu às obras de arte a qualidade aurática mesmo quando deixaram

de ser parte da religião para se tornarem autônomas.

Quando entramos no território Bispo do Rosário, vemos que além dos

procedimentos, sua fala, seu texto bordado – desfiado para construir outra trama –

no corpo da obra ecoa, ressoa de alguma maneira tal questão. A quem quisesse

adentrar nos seus aposentos e experienciar o contato com seu território, uma

pergunta:“Qual a cor da minha aura?”

Ao reordenar o mundo inventariado Bispo e Cragg propõem um retorno,

cada um a seu modo, dos objetos coletados à própria sociedade que os


descartou. Tal ato artístico restitui, de alguma maneira, a aura perdida dos

mesmos objetos recolhidos, uma vez que em uma nova ordenação os objetos

trazem consigo resíduos de sua origem e inauguram uma outra realidade, que

ganha ainda, ilimitadamente, outros contornos na medida em que se apresentam à

subjetividade do fruidor. A presença física do outro, impondo-se como necessária

para presentificar o fenômeno arte, faz do ato de experienciar o fenômeno um

momento único e intransponível.

A arte de Arthur Bispo do Rosário e Anthony Cragg possibilita aos nossos

sentidos viciados fatias, fragmentos, pedaços inesperados do mundo. E esse é o

sentido do qual a obra de Bispo e Cragg se revestem. Em seus trabalhos, os

signos da arte agem sobre todos os outros signos, perpassando-os, como um

bispo, na diagonal do xadrez contemporâneo.


BIBLIOGRAFIA

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organizador/Fundação Bienal de São Paulo - São Paulo: Associação Brasil 500
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