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Da Usura

Hilaire Belloc

TRADUÇÃO: NINA BANDEIRA

Notas do blogueiro:

1. Por meio do amigo Carlos Nougué este blog recebe um texto importante de Belloc,
numa bela tradução de Nina Bandeira. À Nina e ao Nougué meus mais efusivos
agradecimentos. Em tempos em que os católicos nos dividimos entre a Teologia da
Libertação e o liberalismo, já não sabemos mais como analisar temas econômicos do
ponto de vista católico. Há mesmo quem negue, como vimos no caso de Tom Woods,
que a Igreja deva opinar em assuntos econômicos para deixá-los para os entendidos.
Já Leão XIII, na Rerum Novarum, nos advertia de que a soberania política, a liberdade
humana, a constituição cristã dos Estados e assuntos econômicos são temas que ele
julgava dever da Igreja comentar, opinar e interpretar segundo a Tradição e as
Escrituras. Belloc, neste ensaio, nos ensina como refletir sobre um assunto econômico
de um ponto de vista diferente do comunismo e do liberalismo, considerando a
economia uma parte da moral.

2. Anuncio aos leitores do blog que estaremos (eu e Guilherme Ferreira Araujo)
traduzindo, nos próximos meses, o Estado Servil, de Hilaire Belloc. Este é um livro em
que Belloc trata exclusivamente de economia sob o ponto de vista católico. É um sonho
antigo que agora se torna realidade pelas mãos amigas do Guilherme. Estarei
postando os primeiros textos desta obra muito proximamente.

Usura não significa juros altos, e sim qualquer cobrança de juros, mesmo baixos, sobre
um empréstimo improdutivo. Não é apenas imoral (tendo sido, em decorrência disso,
condenada por todos os códigos morais – pagãos, muçulmanos ou católicos), mas
também, em última análise, destrutiva da sociedade. Somente tornou-se prática usual do
nosso comércio após o colapso europeu que se seguiu à Reforma Protestante. A Usura
destruirá nossa sociedade, mas não há como escapar-lhe nesse meio-tempo.
Aproximamo-nos do final de sua ação maléfica, não devido à conscientização sobre
seus males, mas sim por ela beirar o esgotamento de seus recursos. Os empréstimos da
Grande Guerra, usurários em sua quase totalidade, aceleraram intensamente esse
processo. 

O mundo moderno se organiza segundo o princípio de que o dinheiro, por sua própria
natureza, gera dinheiro. Uma soma em dinheiro emprestada, segundo nosso sistema
atual, tem o direito intrínseco à cobrança de juros. Trata-se de um falso princípio, tanto
em termos econômicos quanto morais. Após arruinar Roma, vem-nos conduzindo ao
nosso fim.

Suponhamos que um homem o procure e diga: "Há um terreno junto ao meu, excelente
para construção. Se eu construir ali uma boa casa, conseguirei alugá-la com lucro
líquido de 100 libras esterlinas ao ano, já considerado o pagamento de todas as taxas,
impostos e reparos. Só que não disponho de capital para construir a casa. O terreno
custará 50 libras e a casa, 950. O senhor me emprestará mil libras, de forma que eu
compre o terreno, construa a casa e desfrute dessa pequena renda?" Sua provável
resposta seria: "E o que receberei em troca? Certo, o senhor ficará com suas 100 libras
ao ano. Mas só as conseguirá graças ao meu auxílio, o que me confere o direito à
participação nos lucros. Havemos de dividi-los meio a meio. O senhor retira sua parte
de 50 libras ao ano pelo conhecimento da oportunidade e por seu trabalho e me repassa
as outras 50. Elas representam 5% do meu investimento, e ficarei satisfeito."

Essa resposta, considerando-se a propriedade como direito moral, constitui oferta


perfeitamente lícita. Ao aceitá-la, o indivíduo que solicitou o empréstimo nada tem a
reclamar. Por muito tempo (teoricamente, para sempre) seria possível continuar
retirando cinco por cento do valor emprestado sem qualquer peso na consciência.

Agora, suponhamos que esse homem o procure e diga: "Conheço o caso de um senhor
de meia idade subitamente acometido por terrível doença. Um tratamento médico que
custa mil libras esterlinas salvará sua vida, mas ele nunca mais poderá exercer qualquer
trabalho. Ele recebe uma pensão de 100 libras ao ano, que garantirá sua subsistência
após a operação e o tratamento subsequente. O senhor emprestará as mil libras? Elas
serão devolvidas na ocasião de sua morte, por conta de um seguro de vida no valor de
mil libras." Sua resposta: "Emprestarei as mil libras para salvar sua vida, mas exijo
metade da pensão anual, ou seja, 50 libras ao ano, por cada ano que ele ainda venha a
viver; e ele terá de sobreviver como puder com as 50 libras restantes da pensão." Caso
ainda lhe restasse alguma sensibilidade, essa proposta o faria sentir-se um patife, e caso
contrário – tendo-se tornado um, de fato, pela ação do que foi chamado pelo poeta de
"longas jornadas de endurecimento e decadência da alma" – ainda assim seria uma
atitude abjeta, embora não lhe causasse a menor inquietude.

Parece, portanto, que certas condições permitem, de forma legítima e moral, emprestar
mil libras com cinco por cento de juros mantendo perfeita paz com a própria
consciência, e outras não.

Vejamos agora a questão sob outra perspectiva.

Quando a cidade norte-americana de Boston foi fundada, há trezentos anos, um homem


de Londres que se propôs a para lá emigrar deixou uma quantidade de ouro no valor de
mil libras esterlinas aos cuidados de um ourives londrino permitindo que fizesse uso do
dinheiro até que ele ou seus herdeiros o reclamassem, mas com a condição de que cinco
por cento do capital deveria render juros compostos até a retirada. O emigrante não
retornou. Com o avanço do século XVII, o empreendimento se desenvolveu, assim
como muitos outros, em uma espécie de banco. No início do século XVIII, já era um
banco em plena forma, e seu sucessor atual faz parte de um dos maiores sistemas
bancários de nossos tempos. O depósito original "rendeu frutos", como se costuma
dizer, com a dívida se acumulando sem ninguém para reivindicá-la.

Por fim, neste ano de 1931, eis que surge um herdeiro capaz de comprovar seu direito.
A soma de capital alcançada pelo modesto investimento de mil libras a cinco por cento
deve ser paga a ele por ordem judicial. Consegue imaginar o montante alcançado? –
Mais do que o dobro da receita anual dos Estados Unidos na atualidade.

Tomemos um exemplo menos extravagante e talvez mais convincente. Supondo que um


homem tenha emprestado dez mil libras esterlinas em regime de hipoteca, com juros de
seis por cento, sobre a propriedade de um senhor inglês no início da Guerra da
Independência dos Estados Unidos, em 1776: tal propriedade renderia 600 libras por
ano ao credor. A dívida não foi cobrada. O constrangido senhor teve permissão para
adicionar ao valor principal os pagamentos anuais devidos, de forma que o total fosse
acrescido da taxa de juros compostos de seis por cento.

Não se trata de uma suposição de todo impossível. Imagina o que o credor da hipoteca
poderia exigir da propriedade nos dias de hoje? Quase cinco milhões de libras ao ano!

Nenhum desses exemplos poderia ocorrer na prática, uma vez que a lei proíbe
acumulação tão prolongada. Mas o próprio fato de que a lei viu-se obrigada a aplicar tal
proibição comprova haver algo de errado com a noção atual, aplicada de forma
generalizada, de que o dinheiro "faz jus" a determinada taxa de juros, tendo a ela direito
moral, independentemente da forma como o capital seja empregado.

Pois o que há de comum a todos esses exemplos é o fato evidente de que os juros sobre
um empréstimo podem constituir, sob certas circunstâncias de tempo ou extensão, uma
exigência de tributação impossível. Podem representar em determinado contexto um
tributo moralmente indevido, que não traduz produção extra de riquezas gerada pelo
investimento original. Sob certas condições, os valores exigidos não equivalem mais o
fruto do investimento original, não correspondendo, portanto, à remuneração de parte
dos lucros, mas sim a um pagamento a ser feito, se possível, a partir de quaisquer outros
bens que o devedor possa obter. E esse tributo, além de certo ponto, torna-se mesmo
impagável, devido à inexistência na sociedade dos meios suficientes para tanto.

Que circunstâncias são essas? Que condições distinguem a exigência de juros


moralmente legítima da ilegítima?

A distinção se dá entre a cobrança moral de parte dos frutos de um empréstimo


produtivo e a exigência imoral de (1) juros sobre um empréstimo improdutivo ou (2)
juros superiores ao incremento anual em riquezas efetivas geradas por um empréstimo
produtivo. Tal exigência "esgota" – "consome" – "exaure" as riquezas do devedor,
sendo por isso denominada "Usura". Uma derivação imprecisa em termos filológicos,
mas correta sob o ponto de vista moral, conecta o termo latino "usura" à idéia de
destruir, "exaurir", e não à idéia original do termo "usus," "uso".

A Usura, portanto, é a cobrança de juros sobre um empréstimo improdutivo ou de juros


superiores ao incremento real gerado por um empréstimo produtivo. É a exigência de
algo ao qual o credor não tem direito, como se eu dissesse: "Pague-me dez sacas de
trigo ao ano pelo aluguel destes campos", após os campos terem sido tragados pelo mar
ou terem passado a produzir anualmente muito menos do que as dez sacas de trigo.

Devo, com relutância, introduzir aqui um significado coloquial do termo "Usura" que
confunde o raciocínio. As pessoas falam de "juros usurários" referindo-se a juros muito
elevados. A forma como surgiu essa confusão é elementar. Juros muito elevados são
geralmente superiores à riqueza real produzida até mesmo por um empréstimo
produtivo, e cobrá-los significa, de fato, cobrar mais do que a produção do empréstimo
original; mas não há nada na taxa de juros per se que a torne usurária. É possível cobrar
juros de cem por cento sobre um empréstimo e estar em pleno exercício de seus direitos
morais.
Por exemplo, uma pequena área de mineração que produzia 15 kg de ouro por ano tem a
súbita oportunidade de produzir 200 vezes essa quantidade – 3.000 kg – com a obtenção
do capital equivalente a apenas 30 kg para desenvolvimento. O credor desse novo
capital não tem a obrigação moral de ceder ao devedor, como presente, os lucros
imensamente maiores. É legítimo que reivindique sua parte; ele poderia muito bem
exigir metade da nova produção, ou seja, 1.500 kg ao ano, 500 por cento sobre o
empréstimo, pois esses juros altos corresponderiam apenas à metade da nova riqueza
produzida. A demanda desses 500 por cento não representaria cobrança de tributo sobre
riqueza inexistente, nem sobre riqueza que não foi criada pelo capital investido.

Portanto, a rigor a Usura nada tem a ver com o valor dos juros cobrados, mas sim com o
fato de haver ou não um incremento produzido pelo capital investido que seja pelo
menos igual ao tributo exigido.

Caso seja necessário avalizar uma posição moral tão evidente, esse aval pode ser
encontrado em todos os principais sistemas morais sancionados pelas filosofias
religiosas e sociais permanentes adotadas pela humanidade. Aristóteles1 a proíbe, assim
como São Tomás de Aquino. O sistema ético muçulmano a condena [e, na prática, faz
uma condenação ininteligível, ao proibir muitos empréstimos que seriam úteis]2. Temos,
em particular, a brilhante decisão do Quarto Concílio de Latrão [1215].

Tudo certo até este ponto. Vejamos agora o desenvolvimento muito interessante que se
deu nos tempos modernos, desde o rompimento de nosso sistema moral e religioso
comum europeu, com a Reforma Protestante. Após esse desastre, a Usura passou a ser
gradualmente admitida. Tornou-se prática comum sancionada pela legislação, com
pagamento imposto pela magistratura civil. Na Inglaterra, foi sob o reinado de Cecil, no
ano de 1571, que os juros, embora limitados a dez por cento, tornaram-se legais,
independentemente da utilização do empréstimo. O ano de nascimento do que se pode
chamar "Usura Indiscriminada" foi 1609, quando, sob o Calvinismo, o Banco de
Amsterdã iniciou sua próspera carreira em estimular a capacidade dos afortunados e
arruinar os desafortunados. De forma geral, os governos que se desligaram da unidade
representada pela Cristandade introduziram, um após o outro, a Usura legalizada,
obtendo vantagem sobre as nações conservadoras que se empenhavam em manter o
antigo código moral. Às novas ideias morais, ou melhor, imorais assim introduzidas,
devemos o rápido desenvolvimento do sistema bancário nas nações "reformadas", bem
como o controle financeiro que adquiriram e mantiveram por três séculos. Por fim,
todos se adequaram ao novo sistema, e hoje a Usura atua lado a lado com o lucro
legítimo e, confundida com ele, universalizou-se no que já foi a civilização Cristã. É
ponto pacífico que todo empréstimo deve produzir juros, sem questionamento
quanto ao seu caráter produtivo ou improdutivo. Todo o aspecto financeiro de
nossa civilização ainda se baseia nesse falso conceito. [ênfase acrescentada]

Seria possível escrever um ensaio muito interessante sobre os mais recentes frutos de tal
concepção em nossos tempos. Se porventura viesse a ser escrito, um bom título seria "O
fim do reinado da Usura". Afinal, vem-se tornando muito claro que o vício inerente ao
sistema responsável, tempos atrás, pela derrocada da estrutura social do Império
Romano começa a fazer ruir também nossas transações financeiras internacionais.
Contudo, com a seguinte diferença: eles foram arruinados pela Usura particular e nós,
pela pública.
Mas essas são digressões; voltemos ao assunto. Sendo a Usura uma demanda por
dinheiro inexistente (um tributo cobrado não sobre a produção de capital, mas sobre
uma margem superior a tal produção, ou mesmo sem que haja produção alguma) e, uma
vez admitida em caráter universal, constituindo, de início, um mecanismo para a total
concentração das riquezas nas mãos dos credores e, por fim, para a redução do restante
da comunidade à servidão econômica; sendo a Usura, em última análise, um sistema
fadado a ruir sob seu próprio peso – quando a demanda gerada for superior a toda a
capacidade produtiva – surge o questionamento: por que vem sendo praticada com
sucesso há tanto tempo? Por que parece estar nas origens de um progresso produtivo tão
vasto em todo o mundo?

Ninguém poderá negar seu uso bem-sucedido ao longo de tantas gerações, desde seu
sólido estabelecimento como prática generalizada durante o século XVII. Nem seria
possível negar que vem acompanhando (e acredito ter, em ampla medida, causado) a
grande expansão moderna da produção. E surge aqui uma daquelas aparentes
contradições entre uma verdade matemática direta e os resultados de sua negação na
prática, tão comuns na vida real. Convencida por tais aparências (pois tratam-se apenas
de aparências, e enganadoras), a maioria dos homens abandona a reflexão abstrata e se
satisfaz com o resultado prático. É por conta disso que, mesmo após tanto tempo, a
simples menção da palavra “Usura” e o debate de sua ética traz em si a impressão de
algo ridículo.

Há não muito tempo, qualquer pessoa diria que a atitude adotada aqui significaria
escrever o próprio atestado de loucura. As conclusões de qualquer raciocínio lógico
sobre o assunto simplesmente não eram levadas em conta, mas sim repelidas como
noções imperfeitas, características de épocas primitivas e acríticas, quando o homem
ainda não dominava a economia ou qualquer outra ciência.

O número crescente, embora ainda restrito, de homens instruídos que passam a suspeitar
de tal desprezo pelo passado imemorial e pelas tradições morais da Cristandade retira
dessas objeções parte do peso que tinham na geração anterior; ainda assim, elas exercem
peso esmagador sobre a maioria. Diante da afirmação de que "a Usura é errada" ou
mesmo de que "a Usura é perigosa", ou apenas de que "a Usura, a longo prazo, entrará
em colapso", a grande maioria, ainda hoje, se recusará a discutir o assunto. A maioria
dos desatentos e todos os tolos o incluirão entre os defensores da teoria de que a Terra é
plana.

O erro é deles, e não nosso; ainda assim, o erro deles, como afirmei, possui sólido
embasamento prático, pois a Usura tem funcionado. A produtividade aumentou
consideravelmente desde seu estabelecimento. Os três últimos séculos foram de imensa
expansão, liderada precisamente pelos primeiros a abolir a moral Cristã.

Como explicar esse fato? A explicação consiste em três reflexões: primeiro, quando a
Usura é permitida e aplicada em caráter universal, torna-se simples parte de uma
atividade geral de acumulação de capital para fins de investimento. Na época em que a
Usura era ilegal e passível de punição, esse tipo de acumulação não era possível. Por
acaso, era também uma época em que a produção de riqueza em escala crescente não
representava a finalidade última da existência humana. De qualquer modo, sob o ponto
de vista exclusivamente econômico, o fim dos questionamentos sobre a forma como o
capital seria usado e o estabelecimento da regra de que todo o capital faz jus ao
recebimento de juros, independentemente de como seja investido, logicamente criaram a
tendência de acúmulo mais rápido e, incidentalmente, a avidez dos homens pela busca
de oportunidades para fazer empréstimos, tanto produtivos quanto improdutivos.

Ao mesmo tempo, embora as causas fossem outras, veio o aumento do poder do homem
sobre a natureza, com uma curva de crescimento cada vez mais acentuada e talvez ainda
em progressão – embora haja sinais de fadiga e interferência de causas externas ao
campo da economia nesse processo, a despeito da rápida escalada do conhecimento
científico e da sua aplicação econômica. Esse aumento em nosso poder sobre a natureza
é o segundo fator de mascaramento da falsa ação da Usura por tanto tempo. O mal
econômico da Usura estimulou e acompanhou a grande vantagem econômica da
acumulação para Produção, e a oportunidade para esse uso legítimo do dinheiro
originou-se de um afluxo de descobertas geográficas e de novas conquistas das Ciências
da Natureza. O terceiro motivo pelo qual a Usura ainda não concretizou seu total efeito
nefasto é que, há tempos, tal efeito vem sendo detido automaticamente por repetidos
colapsos que anularam as reivindicações usurárias. O capital de empréstimos
improdutivos deixou de receber seus tributos, que tiveram de ser cancelados. Verdade
seja dita, a Usura sobre esse tipo de capital é geralmente a última a ser cancelada 3;
ainda assim, tal cancelamento se dá de forma contínua, promovendo a restrição
intermitente dos tributos imerecidos e impedindo que o verdadeiro caráter de tais
tributos se mostre em sua máxima potência.

O século XIX, especificamente, e ainda mais o início do século XX, estão repletos de
exemplos desses colapsos – um sem-número deles. Uma soma em dinheiro é investida
em determinada empresa. A empresa não atende às expectativas. Embora o dinheiro não
produza mais juros legítimos, são emitidos debêntures, com garantia de juros
estritamente usurários. Esses juros são pagos por algum tempo, até que, por fim, chega-
se a um ponto em que nem mesmo os juros da debênture podem ser pagos. Todo o
negócio se desfaz e o tributo usurário não pode mais ser exigido. É possível ver esse
processo em funcionamento hoje em muitos setores da indústria têxtil. A fábrica está em
dificuldade; o banco concede um empréstimo com a atribuição de juros, embora não
haja superávit de riqueza em relação ao custo da produção. Os juros são pagos a partir
de fontes externas; mas o processo não pode continuar eternamente e, em dado
momento, o banco tem de cancelar o empréstimo como dívida incobrável. Como o
banco continua a extrair recursos de outros investimentos bem-sucedidos e lucrativos,
prossegue próspero a gerar dinheiro, sua receita aumenta, e a parte perdida por conta do
colapso da Usura é ocultada no esquema produtivo geral. Não se faz distinção entre o
caráter usurário de determinados recebimentos e o caráter legítimo da maioria. Mas,
quando uma sociedade exibe sinais de decadência econômica, a verdadeira natureza da
Usura, submersa e oculta nos tempos de prosperidade, fatalmente emerge acima da
superfície.

Há muitos anos, o Sr. Orage, escrevendo em seu jornal, The New Age, traçou a esse
respeito um dos muitos quadros ilustrativos e vívidos da questão, com o talento para a
exposição que o tornou famoso. Ele partiu do exemplo de um oásis de palmeiras no
deserto com um suprimento de água alcançado por meios bastante primitivos. Eis que
surge um financiador disposto a emprestar dinheiro para o desenvolvimento. O capital é
empregado de forma produtiva; poços artesianos são perfurados; o suprimento de água
aumenta em grande escala; instaura-se maior organização do cultivo de palmeiras; a
produção do oásis cresce com rapidez de um ano para outro; a demanda legítima de
lucros pelo financiador faz parte do total de riqueza extra anual, cuja existência se deve
ao seu empreendimento. Todos participam da prosperidade geral.

Então, seja devido a desgaste, guerra, epidemia, variações no mercado externo ou


alguma calamidade climática, as coisas começam a dar errado. A riqueza produzida
anualmente pelo oásis decai. Contudo, ainda é preciso pagar os juros sobre o dinheiro
emprestado. À medida que aumenta o constrangimento dos agricultores, eles contraem
empréstimos para pagar os juros até um ponto de "sobreposição" em que,
paradoxalmente, o banqueiro parece cada vez mais próspero, embora a comunidade que
o sustenta o seja cada vez menos. Mas, pela simples aritmética, o processo precisa ter
um fim. Chegará o momento em que o agricultor não mais conseguirá obter dinheiro
para pagar os juros, que há muito deixaram de ser moralmente devidos. A mera coerção,
sob um sistema policial todo-poderoso, já lhe arrancou até os últimos centavos. A
"sobreposição" entre prosperidade real e aparente – apenas financeira ou burocrática –
deixa de existir; e a riqueza temporária desfrutada pelo credor chega ao fim, tal como
ocorrera com a prosperidade real do devedor.

Em outras palavras, a grande prosperidade bancária em determinado período pode ser, e


geralmente é, prova da prosperidade geral naquele período; mas não necessariamente, e
nem sempre é assim. Uma não é o complemento inevitável da outra.

A essas conclusões gerais, há outra objeção que será feita prontamente por qualquer
pessoa com razoável conhecimento histórico:

"O senhor afirma" [diz o objetor] "que em outros tempos, quando a Fé tinha alcance
universal – época que talvez o senhor considere mais sadia, embora houvesse
certamente muito menos riqueza e fosse preciso lidar com uma população, além de mais
simples, muito menor – a Usura era proibida. Isso é verdade. Porém, o senhor erra ao
argumentar que existe uma diferença essencial entre aquela época e a nossa, mais
exatamente em relação ao passado recente, que o senhor denomina “o reino da Usura”,
com a prevalência de uma ética diferenciada em cada um desses períodos. O senhor
confunde o que é proibido com o que não é feito. É verdade que o código moral da
Cristandade em tempos Católicos proibia a Usura e a punia; até mesmo na época das
Cartas Provinciais de Pascal, os homens sentiam indignação moral para com a Usura e,
até o final do século XVIII, a punição continuava a ser exercida nos tribunais e a vigorar
nos códigos legais onde quer que a Igreja detivesse poder. Mas, a bem da verdade, a
Usura sempre existiu, pois sempre deverá existir. É impossível traçar uma linha
divisória entre os empréstimos produtivos e os improdutivos. O dinheiro emprestado a
um doente pode criar as condições para que ele volte a ser produtivo, sendo
considerado, portanto, um empréstimo indiretamente produtivo, apesar da intenção
originalmente improdutiva. O valor de um empréstimo contraído por um perdulário para
seus prazeres pode, no evento de sua morte antes que tivesse tempo de gastá-lo, ser
transferido a um herdeiro econômico, que irá investi-lo de forma produtiva. Tais
considerações sempre exerceram forte influência sobre a mente humana. Por isso
encontramos a Usura amplamente disseminada, mesmo em épocas e sociedades que a
condenavam sob o ponto de vista moral.

"Além do mais, mesmo naqueles casos onde é possível [o que certamente não é a regra]
traçar uma linha exata entre os empréstimos produtivos e os improdutivos, há inúmeras
formas de se burlar a proibição de cobrar juros sobre um empréstimo improdutivo,
evadindo-se ao dever de descobrir se o empréstimo é produtivo ou não. Por exemplo, os
governos Católicos, tanto quanto os Protestantes, emitiam os que os franceses
denominaram “Rentes” – compromissos governamentais de pagamento de renda anual.
Henrique IV da França, após sua conversão, era especialmente ativo nesse tipo de
empréstimo. Filipe II da Espanha, o grande defensor do Catolicismo, afundou-se até o
pescoço em constrangimento por tomar empréstimos a juros altos – ironicamente, das
mesmas pessoas que vinham destruindo sua renda. Um governo preparando-se para ir à
guerra – ou seja, prestes a gastar dinheiro em uma atividade normalmente improdutiva –
implorava aos financiadores que comprassem direitos anuais sobre sua receita; e não
existe qualquer diferença entre isso e a prática moderna de emissão de títulos da dívida
pública. Havia ainda o óbvio método de assinar uma nota promissória em troca de
dinheiro e receber uma soma menor do que a mencionada. Thomas Cromwell, de
piedosa memória, foi adepto incondicional dessa prática, em uma época na qual toda a
moralidade Católica em relação à Usura ainda era incontestável. Muito antes, em plena
Idade Média, os príncipes tomavam empréstimos constantes para suas guerras –
principalmente do recém-surgido sistema bancário italiano; e ainda antes, quando a
Usura era privilégio excepcional, mas concedido legalmente aos judeus, e fonte de
imensa renda para os príncipes Cristãos sob os quais viviam, a prática era admitida
abertamente. Assim, a Usura sempre ocorreu na sociedade humana. E sempre ocorrerá;
toda discussão sobre o assunto é meramente acadêmica e fútil."

A isso, respondo que o raciocínio lógico sobre assuntos práticos jamais é fútil. Se eu
afirmar que o consumo excessivo de álcool faz mal à constituição física do ser humano,
especialmente após certa idade, não é resposta satisfatória apresentar-me exemplos de
alcoólatras que viveram até os noventa anos. O efeito danoso do excesso de álcool é
algo demonstrável e, para qualquer pessoa de mente honesta, inquestionável. É uma
simples questão de submeter à razão a experimentação e a experiência. Nos casos em
que a experiência parece contradizer conclusões verdadeiras, o que de fato
contradiz tais conclusões são outras forças, que não esvaziam seu caráter de
verdade. [ênfase acrescentada]

O mesmo se dá com a verdade sobre a Usura. Seus efeitos empobrecedores, enquanto


mascarados ou contrabalançados pela atuação de forças mais potentes, são
negligenciados. No entanto, continuam a existir e estão sempre em atividade. Há grande
utilidade prática em saber da existência de uma verdade, mesmo que oculta. Esse
conhecimento é algo a ser mantido como um trunfo para permitir a ação quando chegar
o momento crítico de sua aplicação.

Em seguida, é preciso apontar que existe toda a diferença do mundo entre um sistema
que admite um princípio imoral e outro que nega tal princípio, embora a imoralidade
seja praticada. Estão presentes na sociedade, e provavelmente sempre estarão inúmeros
casos de adultério, assassinato, fraude e tudo o mais; contudo, existe enorme diferença
entre a sociedade onde os direitos à propriedade são admitidos, o casamento é sagrado e
tirar uma vida humana é abominável, e outra onde as relações sexuais são promíscuas, o
Comunismo prevalece ou o assassinato para fins de vingança particular ou por mero
impulso constitui passatempo aceitável. Assassinar um desafeto, fugir com a esposa do
vizinho e até mesmo bater a carteira de alguém ainda estão entre as anomalias da nossa
sociedade: anomalias que nós, pessoas antiquadas, atribuímos à Queda do Homem, mas
cuja ocorrência nem o mais entusiástico pelagiano poderá negar. Existe toda a diferença
do mundo entre uma sociedade onde esses lapsos continuam a existir, ou mesmo são
tolerados, e outra onde são considerados positivos. [ênfase acrescentada]

O homem se sustenta sobre duas pernas, mas pode apoiar-se em uma ou em outra.
Assim (para utilizar um exemplo que desenvolvo em outro ensaio), a sociedade, no que
se refere à lei, precisa insistir tanto na justiça quanto na ordem; e, sem dúvida, em
qualquer sociedade civilizada a justiça tende a ser sacrificada em benefício da ordem.
Mas existe toda a diferença do mundo entre o ambiente e o caráter de uma sociedade
onde a injustiça é considerada mais abominável do que a desordem e outra onde a
desordem é considerada mais abominável do que a injustiça. Duas partes de um
elemento químico para quatro partes de outro resultarão em determinado produto.
Alterando-se as proporções, surgirá um produto inteiramente diferente. Uma sociedade
em que a Usura, embora praticada, é considerada imoral (não totalmente, admito, para
benefício do desenvolvimento econômico) é muito diferente de outra onde é
considerada moral. Uma sociedade onde o credor considera seu dever moral examinar o
objetivo de um empréstimo antes de levar em conta seu lucro pessoal é diferente de
outra onde não se espera que ele faça tal coisa. Um mundo onde os juros sobre
empréstimos improdutivos são repudiados e o Usurário é um malfeitor constitui
sociedade muito distinta de outra onde os homens deixaram de questionar se um
empréstimo irá ou não gerar lucro; e, ademais, é diferente de outra como a nossa, onde
juros sobre qualquer empréstimo são exigidos como uma espécie de direito moral
sagrado, sem qualquer relação com a produtividade do empréstimo – ou a ausência dela.

Bem, como para todo mal deve haver um remédio, o que podemos dizer da Usura nos
tempos atuais? Como insisto em esta discussão tem o caráter prático, e quanto à prática?

Suponhamos que nosso oponente tenha sido convencido; deixemo-no replicar:


"Concordo que a Usura seja um mal. E mais, estou inclinado a concordar que, por fim,
começamos a perceber seus efeitos nefastos em todo o mundo – principalmente pelo
assustador exemplo dos empréstimos da Grande Guerra. Então, o que devemos fazer a
respeito?"

A isso, respondo, por minha vez, que não se pode fazer nada de imediato. Não se pode
eliminar uma parte essencial de qualquer estrutura social existente. Todo o mundo de
hoje se assenta sobre a estrutura bancária, e todo o sistema de investimentos considera
normalmente impossível qualquer consulta sobre o caráter produtivo ou improdutivo de
um investimento.

Há casos especiais, de cunho particular, onde se pode fazer a distinção claramente, e


nesses casos verifica-se a ação dos homens de bem (como no caso dos empréstimos a
indivíduos do nosso círculo de conhecimentos), pois a consciência humana atua em
todos os momentos, ainda que na sociedade mais corrupta e complexa. Mas, em noventa
e nove por cento dos casos, é impossível fazer essa distinção. Um homem se sacrifica
para economizar. Ele precisa aplicar suas economias em um sistema que considera
normal a cobrança de juros sem qualquer análise, e onde todos os infinitos detalhes de
um sistema mundial de produção, distribuição e intercâmbio se baseiam há tanto tempo
na aceitação da Usura – bem como no cálculo muito mais amplo dos lucros legítimos –
que, na prática, não é mais possível distingui-los, assim como seria impossível separar
as cores no tonel de um tintureiro. Se eu me ausentar por seis meses e deixar dinheiro
depositado no banco, dificilmente poderei perguntar o que o banco fará com ele; e,
mesmo que o fizesse, eles não me poderiam dizer. Ninguém poderia afirmar qual a parte
destinada a alimentar animais em uma fazenda de extração de peles no Canadá; quanto
se destinaria a um jovem que vem fazendo grandes retiradas com suas ações e gastando
tudo em uma vida desregrada; e quanto contribuiria para o desenvolvimento de uma
mina produtiva nos Andes. Que homem, em sã consciência, hesitaria em depositar o
resultado de sua abnegação cotidiana em um título de renda fixa, ou suas modestas mil
libras esterlinas em um Empréstimo de Guerra – esse exemplo gritante de Usura? O
sistema precisa prosseguir até seu colapso, e mesmo a palavra “colapso” é imprecisa. Se
a história servir como guia, o termo certo será “decadência”. Um pensamento animador.

Fiz bem em chamar este livro de Ensaios de um Católico, em vez de Ensaios Católicos.
Pois, caso se tornasse uma questão de disciplina Católica que os homens de hoje não se
envolvessem nessa prática impura – o empréstimo improdutivo com cobrança de juros –
tal disciplina já nasceria condenada. Não seria possível obedecer à ordem eclesiástica.
Se, ao propor tal análise, eu envolvesse também meus companheiros Católicos nas
conclusões peculiares alcançadas, causaria prejuízo não apenas ao senso comum de
meus confrades, mas também ao seu senso de humor.

Todavia, como já previu um perfumista ao batizar sua fragrância, "Un jour viendra" –
"Chegará um dia".

O Sr. Belloc encerrou com a mesma frase em grego, mas, como a maioria dos
navegadores não tem instalados caracteres em grego antigo, excluí a última linha do
ensaio para evitar que aparecessem caracteres sem sentido.

1. Quando eu, ainda garoto em Oxford, começava a articular minhas ideias, um sábio professor nos assegurou em sua preleção que o texto
de Aristóteles deve ter sido adulterado, pois ele jamais poderia ter dito algo tão tolo como chamar a usura de errada. Do que São Tomás de
Aquino a chamou, aposto que ele nunca soube.
2. Descobri em Túnis, há três anos, que um plantador de oliveiras muçulmano com o propósito de contrair empréstimo para o
desenvolvimento de sua propriedade não podia obter o dinheiro de outros muçulmanos, mas precisava pedi-lo aos europeus. 
3. Vide os juros continuados ainda pagos sobre créditos bancários por nossas indústrias falidas. Outro excelente exemplo de cancelamento
de juros usurários é a redução das dívidas da França e da Itália para com os Estados Unidos.

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