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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR


CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ
MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

O POSITIV IS M O JURÍD I CO NA TEOR IA PURA DO DI R E ITO

José Antônio Parente da Silva

Fortaleza - CE
Setembro, 2006
JOSÉ ANTÔNIO PARENTE DA SILVA

O POSITIV IS M O JURÍDI CO NA TEOR IA PURA DO


DI R E I TO

Dissertação submetida à Coordenação do


Curso de Mestrado em Direito Constitucional
da Universidade de Fortaleza - UNIFOR,
como requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Márcio Augusto de


Vasconcelos Diniz - Doutor em Filosofia do
Direito

Fortaleza – Ceará
2006
UNIVE RSIDADE DE FORTAL EZA – UNIFOR
M ESTRADO E M DI RE I TO CONSTITUCIONAL

DISSE RTA ÇÃO

O POSITIV IS M O JURÍD I CO NA TEOR IA PURA DO DI R E I TO

de

_______________________________________
José Antônio Parente da Silva

Dissertação aprovada em____/___/_______


Nota:___________

BANCA E X A M INADORA:

__________________________________________
Prof. Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz – Dr.
Orientador

__________________________________________
Prof. Martônio Mont’Alverne Barreto Lima – Dr.
1º Examinador

_________________________________________
Prof. Marcelo Cattoni de Oliveira – Dr.
2º Examinador

_______________________________________
Prof. Dr. Martônio Mont’Alverne Barreto Lima
Coordenador do Curso
“[...] em definitivo, trata-se de saber por que é
que dada regra, e não dada outra, rege dada
sociedade, em dado momento. Se a ciência
jurídica apenas nos pode dizer como essa regra
funciona, ela encontra-se reduzida a uma
tecnologia jurídica perfeitamente insatisfatória.
Temos o direito de exigir mais dessa ciência, ou
melhor, de exigir coisa diversa de uma simples
descrição de mecanismos”.

(Michel Miaille).
Aos meus pais, Jacy Bezerra e Hilda
Parente, que tanto legaram para mim,
inclusive, o “animus” necessário para vencer
todos os obstáculos durante a caminhada.

À minha mulher Maryane e a meus


filhos Marina e Gustavo pelas horas roubadas
do nosso mágico convívio.
AGRADECIMENTOS

A todos os que colaboram nesta empresa, dentre estes a Coordenação do Mestrado em


Direito Constitucional da Unifor, bem assim o corpo docente e discente, meus
agradecimentos.
RESUMO

A importância da Filosofia do Direito no século XX deve muito a Hans Kelsen, sendo


obrigatório o conhecimento do pensamento do renomado jusfilósofo, se se pretende produzir
um texto que possa ser considerado. Bem por isso, o pensamento Kelseniano pela atenção
despertada, não poderia restar imune às críticas que até hoje lhe são dirigidas. Umas
procedentes, outras nem tanto. A sua obra principal, a “Teoria Pura do Direito”, pretendeu
uma pureza capaz de expungir do Direito tudo aquilo que embora conectado com ele, não o
integraria necessariamente. Em síntese, o ser do direito, para Kelsen, é a ordem jurídica e não
aquilo que essa ordem idealmente jurídica deveria ser. Por via de conseqüência, o cientista do
direito deve se ocupar com o que é o direito. Com o que deveria ser o direito, outros
estudiosos. O propósito deste estudo consiste em desvelar as possibilidades do pensamento
Kelseniano, conforme exposto na Teoria Pura. Trata-se, ainda, de vislumbrar uma linha de
continuidade na proposta Kelseniana na atualidade, enquanto instrumental teórico
imprescindível para outros futuros avanços doutrinários.

Palavras-chave: Filosofia do Direito. Kelsen. Crítica. Pureza. Avanços Doutrinários.


ABSTRACT

The importance of the Philosophy of the Law in the 20th century owes a lot to Hans Kelsen,
and knowing the thoughts of this renowned philosopher is mandatory when producing a text
that is intended to be considered. That is why, after the attention he has attracted, the
Kelsenian thought did not escape the critics up to this very day. Some of these critics are
justified, some are not. Kelsen’s main work, The Pure Theory of Law, looked for purity able
to remove from the Law everything that would not necessarily integrates it, yet may be linked
to it. To sum up, the nature of the Law, for Kelsen, was the judicial order as it is, and not what
such order should be. Therefore, the law scientist must deal with what the Law is. Other
researchers would deal with what the Law should be. This study is aimed to show the
possibilities of the Kelsenian thought, as it appears within the Pure Theory. It deals, as well,
onto a continuity line of the Kelsenian thought in our days, as a needed theoretical tool for
future doctrine progresses.

Keywords: Law philosophy. Kelsen. Critic. Purity. Doctrine advancements.


SOMMARIO

L’importanza della filosofia del diritto nel secolo XX debbe molto a Hans Kelsen, essendo
obbligatorio la conoscenza del suo pensiero, per chi vuole produrre qualcosa che merita essere
presa in considerazione. Proprio per questo, il pensiero Kelseniano, dalla attenzione che ha
chiamato, non potrebbe rimanere immune a critiche, che ancora oggi li sono dirette. Ci sono
quelle giuste e quelle che non lo sono. Il suo lavoro principale, la Teoria Pura del Diritto, ha
inteso raggiungere una purezza sufficiente per spungere del diritto tutto quello che, nonostante
ne sia relato, non lo integrerebbe necessariamente. In sintesi, l’essere del diritto, secondo
Kelsen, è l’ordinamento giuridico e non quello que questo ordinamento idealmente giuridico
dovrebbe essere. Dunque, lo studioso del diritto deve si occupare con quello che è il diritto.
Con quello che dovrebbe essere il diritto, si occupano altri studiosi. Lo scopo di questo saggio
è quello di rivelare le possibilità del pensiero Kelseniano, secondo viene sposto nella Teoria
Pura. È anche diretto ad accenare all’esistenza di una linea di continuità nella proposizione
kelseniana nella attualità, nella qualità di istrumentale teorico imprescindibile per altri futuri
progressi doutrinari.

Parole-chiave: Filosofia del Diritto. Kelsen. Critica. Purezza. Progressi doutrinari.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 10

2 DADOS BIBLIOGRÁFICOS.............................................................................................. 12

3 POSITIVISMO JURÍDICO: PARTE HISTÓRICA............................................................. 15


3.1 Na Grécia....................................................................................................................... 15
3.2 Em Roma....................................................................................................................... 15
3.3 Na Idade Média.............................................................................................................. 16
3.4 Na Idade Moderna (séculos XVII e XVIII).................................................................... 17
3.5 Na Era Contemporânea................................................................................................... 18

4 O POSITIVISMO................................................................................................................. 21
4.1As diversas faces do positivismo jurídico..................................................................... 26

5 AS IDÉIAS DE KELSEN..................................................................................................... 33
5.1 A concepção de ciência- a pureza metodológica............................................................ 33
5.2 Princípio da imputação e princípio da causalidade........................................................ 37
5.3 Proposição jurídica e norma jurídica.............................................................................. 40
5.4 Teoria estática e teoria dinâmica do ordenamento jurídico............................................ 44
5.5 A teoria da norma fundamental...................................................................................... 48
5.6 A estrutura escalonada da ordem jurídica...................................................................... 58
5.7 A validade e a eficácia da norma jurídica e do ordenamento jurídico............................62
5.8 A hermenêutica kelseniana............................................................................................. 68
5.9 O problema das lacunas.................................................................................................. 74
5.10 Ciência e ideologia........................................................................................................79
5.11 Direito e moral...............................................................................................................83

6 DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO.................................................................... 86

7 POSITIVISMO FORMAL.................................................................................................... 91

8 A QUESTÃO DA JUSTIÇA................................................................................................. 95
9 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 99

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................... 103


1 INTRODUÇÃO

O presente estudo intenta promover uma reflexão sobre algumas questões suscitadas
pela Teoria Pura de Hans Kelsen e seu positivismo de cariz normativista, no âmbito da
Ciência do Direito. Trata-se de saber até que ponto essa teoria positivista – de que a
neutralidade axiológica é parte fundamental – realiza-se lógica e faticamente no plano das
proposições constitutivas do pensamento kelseniano. Esse é o objeto central do trabalho.

De antemão, faz-se questão de enfatizar que o estudo não é tributário de posições


juspositivistas, nem tampouco de atitudes jusnaturalistas. Procura antes trazer à tona questões
que permanecem até hoje abertas no pensamento kelseniano, constituindo ainda algumas
delas verdadeiras aporias. Essas questões devem merecer atenção daqueles que reconhecem o
grandioso esforço de Kelsen na tentativa empreendida de conferir um estatuto de
cientificidade ao Direito, de acordo com uma epistemologia de filiação positivista.

A par disso, cumpre aprofundar a vertente do positivismo kelseniano pelo fato de ser
ela a mais arrojada tentativa de purificar a Ciência do Direito de fatores por ele considerados
não jurídicos ou metajurídicos, excluindo-os, destarte, do conhecimento rigorosamente
jurídico. Entretanto, cabe aduzir que Kelsen não pretendeu purificar o fenômeno jurídico, mas
antes cuidou de purificar a Ciência Jurídica ao propor como seu objeto precípuo de estudo o
direito positivo.

Kelsen, no primeiro capítulo da Teoria Pura do Direito, deixa bem clara sua pretensão
de pureza metodológica:

Quando a si própria se designa como “pura” Teoria do Direito, isto significa que ela
se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste
conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa,
rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a
ciência jurídica de todo os elementos que lhe são estranhos. Esse é seu princípio
metodológico fundamental. (KELSEN, 2003, p. 1).

Sob o ponto de vista ético, tal pureza metodológica baseia-se na ausência de juízos de
valor por considerar a justiça um ‘ideal irracional’, inacessível ao conhecimento. Somente
através de uma atitude positivista é que se revelaria a Teoria Pura como verdadeira Ciência do
Direito.
Nesse quadro, o positivismo acaba gerando duas atitudes: ou se aceita o paradigma
juspositivista ou se postula um direito positivo com fundamento em um direito natural de
ordem superior, quer dizer, suprapositivo. Parece não haver lugar para posição distinta. Esse é
o dilema subjacente ao trato das questões analisadas neste estudo e que tem sido recorrente
em todas as fases da história da ciência do direito.

Para enfrentar essas e outras questões, o trabalho faz um sintético esboço das
principais idéias de Kelsen naquilo que de mais significativo remarcou seu positivismo
jurídico normativista. São questões que ainda permanecem como um desafio para a Ciência
Jurídica atual.

Com acerto, observa Coelho que: “Sem Kelsen, sem a Teoria Pura, sem o desafio
kelseniano, talvez a filosofia jurídica não estivesse ainda pronta para a exploração dessas
novas e revolucionárias possibilidades” (COELHO, 2001, p. 70).

É dizer que está pronta para novos questionamentos teóricos, que, na atual fase de
transição pós-moderna, se colocam como uma exigência inarredável.
2 DADOS BIOG RÁFI COS

Hans Kelsen foi um jurista austro-húngaro, nascido em 11 de outubro de 1881, em


Praga, e falecido em 19 de abril de 1973, nos Estados Unidos, em Berkeley, Califórnia.
Criador da metodologia da Teoria Pura do Direito, foi o principal representante do positivismo
jurídico, sistema jusfilosófico corporificado em sua obra chamada de “Teoria Pura do
Direito”, publicada pela primeira vez em 1934.

Através do método da Teoria Pura do Direito, propôs Kelsen para a Ciência Jurídica
positivista um tratamento rigoroso e objetivo. Pensava Kelsen que a Ciência Jurídica, até
então praticada, pecava pela inexistência de rigor e objetividade, qualidades essas que se
devem exigir de qualquer conhecimento que pretenda constituir-se como verdadeiramente
científico.

De família judia, fez seus estudos em Viena, inclusive o doutorado em Direito em


1906. Ingressou no magistério em 1911, na Universidade de Viena como livre-docente em
Direito Público e Filosofia Jurídica. Elaborou a Constituição Austríaca em 1920, quando era
juiz da Suprema Corte Constitucional da Áustria, cargo que ocupou durante nove anos (de
1921 a 1930).

Em 1940, emigrou para os Estados Unidos, onde foi Professor das Universidades de
Harvard e de Berkeley, na Califórnia.

Segundo Araújo Lima (1995, p.15), entre as obras mais importantes de Kelsen, podem
ser mencionadas:

“Problemas Fundamentais da Teoria do Direito Político”, desenvolvidos a partir de


doutrina sobre a proposição – 1911; “Para a Teoria do Negócio Jurídico Público” –
1913; “O Problema da Sabedoria e a Teoria do Direito Internacional” – 1920; “O
Conceito Sociológico e o Conceito Jurídico de Estado” – 1922; “Teoria Geral do
Estado” – 1925; “A Forma do Estado como Forma Jurídica” – 1925; “A Execução
Federal” – 1927; “O Estado como Super-Homem” – 1927; “Sociedade e Natureza” –
1943;

“A Teoria Comunista do Direito” – 1955; “Existencialismo na Ciência do Direito” –


1957; em 1981 surgiu mais uma obra – póstuma – denominada “Allgemeine Theorie der
Normen” (Teoria Geral das Normas); e a “Reine Rechtslehre” (Teoria Pura do Direito) –
resumo dos resultados de seu trabalho sobre o direito, que teve quatro edições
básicas distintas entre si. A primeira é a edição alemã de 1934, editada em Viena; a
segunda, edição inglesa intitulada “General Theory of Law And State” (Teoria Geral do
Direito e do Estado), editada nos EUA, em 1945; a terceira, edição francesa
publicada na Suíça, em 1953; e finalmente a quarta e última (2ª edição alemã)
editada em Viena, em 1960.

Muitas são as contribuições teóricas de relevo deixadas por Kelsen à Teoria Geral do
Direito que se podem destacar: a sua concepção sobre a norma fundamental, como norma
superior pressuposta de um ordenamento jurídico; a concepção de Corte Constitucional
introduzida pela primeira vez no texto da Constituição austríaca de 1920, de cuja elaboração
participou; a defesa da existência de leis próprias do Direito em face da natureza e da
realidade social, situando o Direito na categoria epistemológica do dever-ser, sendo seu objeto
de interesse tão-somente a norma jurídica; o monismo jurídico, defendendo a assimilação
entre Direito e Estado; e a sua concepção piramidal do ordenamento jurídico em que se apóia
sua produção e aplicação. Vale lembrar ainda as categorias inovadoras de sua Teoria Geral do
Direito, a saber: a distinção entre normas e proposições jurídicas, a coação física como nota
identificadora do Direito, a negativa de conhecimento objetivo da moral e os juízes como
destinatários precípuos das regras jurídicas.

Hans Kelsen, por toda a sua obra (ao todo mais de seiscentas obras publicadas, em
diversos idiomas, entre livros e artigos), é um dos autores mais conhecidos em nosso País;
constituindo-se em ponto de referência na vida de qualquer estudioso do Direito. Contestando
a Kelsen sobre o porquê do interesse das pessoas em conhecer a “Teoria Pura do Direito”,
Recaséns Siches pronunciou as seguintes palavras, perfeitamente ajustáveis à realidade
jurídica brasileira, que bem refletem o interesse dos juristas pátrios:

[...] todos nuestros juristas y estudiantes en esta facultad [Mexicana] han


encontrado las doctrinas de usted por lo menos cinco veces a lo largo de
su carrera. Las han encontrado en la disciplina de Introducción al Estudio
del Derecho, en la Teoria General del Estado, en la de Derecho
Constitucional, en la de Derecho Internacional Público, y en la de
Filosofia del Derecho (SICHES, apud GOMES, 2004, p. 222).

Como se nota, os temas analisados pela teoria kelseniana estão presentes ainda em
muitas das reflexões jurídicas, daí ser considerado Kelsen um dos mais importantes teóricos
do Direito de nosso tempo, sendo indiscutível o seu valioso legado para a Ciência do Direito.
Mais do que nunca Kelsen permanece vivo, dado o interesse que provocam seus
questionamentos para a Ciência Jurídica e para a pragmática do Direito.
3 POSITIV IS M O JURÍD I CO: PARTE H ISTÓR I CA

3.1 Na Grécia

Já nesses primórdios se afigurava o dualismo entre a direito positivo e a direito natural.


Platão e Aristóteles legaram, nos seus escritos, a distinção conceitual entre lei positiva e lei
natural.

Na Ética a Nicômaco, figurativamente, já se desenhavam ambos os conceitos. Para


Aristóteles, o Direito Natural é aquele encontrado em todo lugar (como o fogo que queima em
todo lugar), ao passo que o Direito Positivo se refere àquele que vigora em determinado lugar,
conforme particularidades específicas de certa coletividade. A lei natural é a válida em si
mesma e vinculante para todos. Já o Direito Positivo contém muito de arbitrário ou é dirigido
pelas conveniências práticas e convenções sociais. Daí concluir que, se as leis positivas são
muitas vezes defeituosas, deverão ser interpretadas de acordo com o Direito Natural, que é
bom por si mesmo.

Ademais, observa o Estagirita que o Direito Natural se caracteriza pelo seu conteúdo
ético objetivo, em que as ações prescritas são boas, incondicionalmente, indiferentes que são à
atitude subjetiva do sujeito. Por outro lado, o Direito Positivo afasta o caráter objetivo da
ética, preocupando-se tãosomente com o que é conforme a lei, independentemente da
motivação.

3.2 Em Roma

Em Roma, a dicotomia existente entre Direito Positivo e Natural resplandecia na


distinção respectiva entre o conceito do Jus Civile (que era o direito que se aplicava aos
cidadãos romanos e que era determinado pelo sistema romano tradicional de forma e ação) e o
Jus Gentium (que era o direito comum aos cidadãos romanos e a todos os povos estrangeiros).
O primeiro relaciona-se com uma determinada comunidade, enquanto o segundo não encontra
jurisdição. O primeiro é criação do populus, enquanto o segundo é fundado pela razão natural.
O primeiro, portanto, é mutável no espaço e no tempo; ao passo que o segundo é imutável,
eterno e universal. Tanto o Jus Civile quanto o Jus Gentium, eram direito positivo, isto é,
baseavam-se na força. Entretanto, era o Jus Gentium, interpretado como sendo determinado
pela natureza humana comum aos diferentes povos. Por isso enxergouse, no Jus Gentium, a
expressão dos princípios básicos do Direito Natural, por estar num patamar mais elevado que
o Jus Civile Romano.

3.3 Na Idade Média

Como traço marcante desse período, prevalece o entendimento de ser o Direito Natural
revelado de acordo com a Lei Divina, ao passo que o Direito Positivo seria estatuído de
conformidade com o Direito Natural. Predomina hegemonicamente, no período medievo, a
Lei Natural, uma vez que ‘posto’ pela vontade de Deus. O Direito romano somente adquiriu
sua força vinculante, sua validade como Direito em virtude de sua derivação do divino.
Nenhum direito humano, que esteja em conflito direto com o Direito Natural, tem validade
alguma.

A característica do Direito Positivo é, portanto, a de ser fundado pelos homens, em


contraste com o Direito Natural, que não é obra humana, mas sim proveniente de força divina.
Nessa fase histórica, o Direito romano teve grande receptividade, ganhando inclusive o valor
de direito comum, porquanto foi tido como expressão da própria razão.

Com a autonomia crescente dos “reinos”, com capacidade legiferante, é de notar-se,


entretanto, que o Direito comum a todos os povos (o Direito Romano) deixa paulatinamente
de prevalecer em face do ‘jus proprium’, que se constituía da manifestação das diversas
instituições sociais do período.

Como observa Bobbio:

[...], pouco a pouco, inicialmente os reinos (em particular o reino da França), depois
os civitates (as comunas) proclamaram a sua autonomia e independência do Império,
declararam-se Jurisdictionem habentes (isto é, dotados do poder de criar o direito),
definiram-se como civitates (ou reinos) sibi principes (para significar que eram
independentes do “príncipe” - por antonomásia, o Imperador). (BOBBIO, 1995, p.
31-32).

De tal modo, começa-se a desenhar, a partir de então, a prevalência do Direito posto


sobre o direito que invocava a autoridade do direito romano de fundo comum a todos os
povos. Com isso, passa a prevalecer o direito do “príncipe”.

3.4 Na Idade Moderna (séculos X V I I e X V I I I)

Nessa fase, conforme já vinha sendo desenhado no período da Idade Média, o Estado
tende a concentrar todos os poderes ao seu redor, sendo onipotente como órgão legislador,
seja através do poder de editar leis, seja através do reconhecimento ou controle sobre as
normas de extração consuetudinária.

Embora tido como pertencente à tradição jusnaturalista Hobbes exarceba a idéia do


Direito Natural não como limite do poder civil, mas como forma de reforçá-lo. Daí ser
considerado, em verdade, lídimo precursor do positivismo jurídico.

Para Hobbes as leis naturais são aquelas que, no estado da natureza ainda não têm
vigência e no estado civil, deixaram de viger. [...] Para resumir o pensamento
hobbesiano sobre a validade da lei natural e da lei civil, podemos dizer que a lei
natural põe toda a sua força a serviço do direito positivo e, desta forma, morre ao dar
à luz o seu filho. (BOBBIO, 1997, p. 42 e 44).

Abandona-se o direito de inspiração teológica para fundamentá-lo em bases


racionalistas. Com isso, chega-se à concepção de se construir um ordenamento jurídico
fundamentado em normas coerentes, editadas pelo poder soberano. Concebe-se que as
transformações sociais seriam decorrentes da lei, sendo esta considerada uma atitude
consciente e racional do homem, ao contrário do Direito consuetudinário, considerado como
uma manifestação inconsciente e passiva, por suposto, inadequada para fomentar as
transformações desejadas.

O Direito Natural nessa fase teve como característica principal e mais evidente o seu
viés secular, profano e não teológico. O Direito Natural foi concebido sem nenhum apoio na
teologia e na revelação sobrenatural, mas somente com base na natureza humana racional.

Grócio (2000) simbolizava emblematicamente a nova concepção de Direito Natural


em famosa passagem ao dizer que o direito natural continuaria sendo válido ainda que se
sustentasse que Deus não existe, embora tal idéia constituisse um crime hediondo.
Nesse período, a distinção que destacamos entre o Direito Natural e o Direito Positivo
pode ser sintetizada na seguinte observação de Bobbio:

A esfera do Direito Natural limita-se àquilo que se demonstra ‘a priori’; aquela do


Direito Positivo começa, ao contrário, onde a decisão sobre se uma coisa constitui,
ou não, direito depende da vontade do legislador. (BOBBIO, 1995, p. 22).

Destarte, com isso diz-se que o Direito Natural conhecia-se por meio da razão,
enquanto o Direito Positivo se fazia reconhecer tão-só pela declaração da vontade de um
legislador.

3.5 Na Era Contemporânea

Em síntese, pode-se elencar os pontos fundamentais da doutrina juspositivista, na fase


contemporânea, e que resultaram dessa evolução histórica.

São as seguintes:

- A análise neutra do Direito, encarando-o como fato e não como valor;


- O Direito definido em função de coação, a fim de garantir condições de
sobrevivência social;
- A legislação como fonte precípua do Direito, dentro de um conjunto
complexo e hierarquizado de normas;
- A teoria imperativista da norma, como uma derivação da definição do
Direito em função de coação;
- A teoria do ordenamento jurídico para guarda dos requisitos basilares
da unidade, coerência e completude do sistema;
- A teoria da interpretação mecanicista do Direito, em que o jurista
deve buscar a norma que solucione o caso concreto, mediante o
emprego de um silogismo, sem adições criativo-inovadoras; e
- A teoria da obediência à lei segundo a qual a inobservância acarretará
um cometimento de um ilícito, passível de punição.
Com tais características sumariadas de acordo com as lições de Bobbio (1995), poder-
se-á analisar, na atualidade, o positivismo jurídico de três formas, a saber: a) como método
para o estudo do Direito; b) como uma Teoria do Direito; c) como uma ideologia do Direito.
Entretanto, vale notar que tais distinções evidenciam que cada um dos aspectos não implica
um no outro, subsistindo cada um de forma independente, donde se poderá fazer uma crítica
dirigida ao método, à teoria ou à ideologia; logrando com isso evitar uma crítica
genericamente antipositivista, o que para Bobbio parece despropositado. Ele próprio, como
jusfilósofo, ilustrativamente, acolhe o método positivista, mas rejeita a teoria integral do
positivismo, para finalmente rejeitar um positivismo ideológico, corporificado numa
estatolatria ou num totalitarismo político. De igual sorte, a presente pesquisa, sob determinado
aspecto, conforme se poderá observar, tentou seguir a lição de Norberto Bobbio, no sentido de
uma aceitação mitigada do método positivista, porém sem adesão irrestrita à teoria extremada
do positivismo, mas em todo caso afastado qualquer laivo jusnaturalista.
4 O POSITIV IS M O

Antes de conhecer o positivismo professado por Hans Kelsen, convém seja feita uma
ligeira introdução ao positivismo tal como ele se apresenta em sua versão científico-filosófica.
Consoante o Dicionário Abbagnano de Filosofia (2000, p. 776), o termo positivismo foi usado
pela primeira vez por Saint-Simon para designar o método exato das ciências e sua extensão
para a filosofia. Foi posteriormente adotado por Auguste Comte para a sua filosofia e que,
graças a esse pensador, passou a designar uma corrente filosófica que até hoje possui
seguidores.

A idéia principal do positivismo parte do princípio de que a sociedade é regida por leis
naturais, que têm como características serem constantes e independentes da vontade humana.
Seu postulado fundamental é de que as leis que regem o funcionamento da vida social,
econômica e política são do mesmo tipo das que regulam as leis da natureza, sendo assim, de
ordem física e mecânica.

Como conseqüência desse postulado, tem-se que os métodos e procedimentos para


conhecer a sociedade são similares aos que são empregados para conhecer a natureza. Por
conseguinte, se a sociedade é regida por leis do tipo natural, de igual ordem a ciência que
estuda as leis da sociedade deve ser do mesmo tipo da ciência que estuda a química, a física, a
biologia, etc.

E, da mesma forma que as ciências naturais são neutras, objetivas e imunes a juízos de
valor subjetivos, as ciências da sociedade devem se comportar de acordo com o paradigma de
objetividade.

Enquanto sistema filosófico, proclama o positivismo que a ciência é o único


conhecimento possível, sendo o método da ciência o único válido. Sua preocupação reside no
estudo da realidade, entendida como tudo que esteja ao alcance da razão mediante a
experiência empírica e o raciocínio abstrato. Por isso, acredita que o recurso a causas
inacessíveis não pode gerar conhecimento científico. A ciência não deve se ater às causas
primeiras ou causas finais das coisas, mas excluir como não-científicas as investigações que
não se atenham à realidade dos fatos. Deve se limitar a proceder ao encadeamento das
relações dos fatos entre si, porquanto “nenhuma realidade pode ser estabelecida pelo
raciocínio.

O mundo não pode ser adivinhado” (AFONSO, 1984, p. 69). Afirma, ademais, o
positivismo que o método da ciência é exclusivamente descritivo, visando, através da
descrição dos fatos, chegar às regularidades entre os fatos expressos pela leis, culminando
com a previsão dos próprios fatos. A descrição das leis gerais dos fenômenos, obtidas através
da observação, constitui o único método legítimo para a atividade científica.

O método da ciência, sendo o único verdadeiro, deve ser estendido a todos os


domínios do conhecimento humano. Assim, o verdadeiro método do conhecimento torna-se o
método das Ciências Naturais, entendido este como a busca das regularidades das leis naturais
a partir da observação.

A par disso, o positivismo não admite como válidos cientificamente outros


conhecimentos, senão os que procedem da experiência; rejeitando toda noção ‘a priori’ e todo
conceito absoluto, razão pela qual abraça o relativismo na filosofia do conhecimento. O fato é
a única realidade científica, e a experiência e a indução são os métodos exclusivos da ciência.
O seu vetor metodológico se guia pela aplicação do método indutivo na formulação de teorias
científicas, sob o pressuposto de que a natureza possui uma ordem que pode ser descrita em
linguagem matemática. Segundo Galileu (1564-1642), o livro da natureza está escrito em
linguagem matemática e os símbolos dessa escrita são triângulos, círculos e outras formas
geométricas, sem cujo auxílio é impossível compreender uma só palavra.

Os postulados do positivismo científico-filosófico exerceram grande influência no


campo jurídico, havendo mesmo a tentação de aplicar às Ciências Sociais os métodos
empregados pelas Ciências Naturais, graças, provavelmente, ao êxito obtido pelo positivismo
em outros setores da ciência. Segundo Comte (apud LOWY, 2000, p. 42): “A física social é
uma ciência que tem por objeto o estudo dos fenômenos sociais, considerados no mesmo
espírito que os fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos.” Isso significa que
os fenômenos sociais são sujeitos a leis naturais invariáveis e necessárias. Com isso, quiseram
os juspositivistas fundar uma Ciência do Direito que se equiparasse, em grau de certeza,
estrutura, validade e resultados, aos observados nas ciências da natureza. Tentava-se, enfim,
conferir à Ciência do Direito o mesmo prestígio que desfrutavam as ciências naturais.

Nesse sentido, podem ser relacionados os seguintes princípios, enquanto pressupostos


ideológicos do direito, conforme pontua Coelho (1997):

a) Princípio da objetividade ontológica - A ficção de que o objeto do conhecimento jurídico, a


lei, é um objeto independente, não criado pelo homem, que por isso mesmo pode ser
conhecido, controlado e dominado pelo cientista, da mesma forma que procede o físico ou o
biólogo em face da natureza;
b) Princípio da neutralidade ideológica do Direito – Assim como não cabe ao biólogo
discordar da cor da rosa, mas apenas descrevê-la, não compete ao cientista avaliar o
ordenamento jurídico, mas somente descrevê-lo, seja justo ou injusto, conforme o pensamento
de Kelsen. Por isso, é fundamental para o paradigma juspositivista a separação entre direito de
um lado e moral de outro. À neutralidade valorativa do seu objeto, a norma jurídica, refratária
ao par justo/injusto, corresponde um compromisso metodológico da ciência jurídica
concebida pelo paradigma juspositivista: a adoção do modelo das ciências naturais como
modelo adequado ao conhecimento jurídico.
c) Princípio da cientificidade do Direito - Adoção do critério da verdade – Consoante
afirmativa de Kelsen, se devemos concordar que as normas jurídicas não podem ser aferidas
pelo critério científico da verdade/falsidade, é preciso, no entanto, controlar, por meio desse
critério as proposições jurídicas que as descrevem. Em outras palavras: se não podemos
enunciar juízos de valor sobre o ordenamento jurídico, podemos, contudo, emitir juízos de
valor sobre os enunciados que descrevem o direito positivo estatal, controlando-o
indiretamente. Afirma-se o jus como resultado de um trabalho científico.
d) Princípio da sistematicidade analítica do Diteito - Adoção de pensamento sistemático –
Com vistas à dominação do conhecimento positivismo jurídico adotará um tipo de raciocínio
tipicamente sistemático. Isso significa que o ordenamento jurídico é concebido como um
conjunto de prescrições harmônicas entre si, que servem para regular cabalmente a vida
humana e que guardam uma relativa independência entre si. A Teoria Pura do Direito,
incorporando tais princípios, procura descrever, então, o seu objeto; tratando o Direito como
ele efetivamente é, ou seja, como Direito posto, e não como Direito pressuposto, afastando-se,
portanto, de paradigmas idealistas. Sua metodologia rejeita elementos estranhos ao Direito,
para ele apenas as normas são o objeto da Ciência do Direito. A Teoria Pura dedica-se às
normas e não aos fatos. Daí decorrer dessa pureza metodológica um corte epistemológico que
define o seu objeto (as normas) e também um corte axiológico que afirma a ontológica
neutralidade científica do Direito.

É fato admitido por muitos que a Teoria Pura do Direito constituiu a mais grandiosa
tentativa de fundamentação da Ciência do Direito como ciência. Por certo que não há como
negar que o positivismo filosófico, como sistema geral de idéias, influenciou praticamente
todas as ciências do espírito, particularmente a Ciência do Direito e especialmente a
concepção de ciência em Kelsen, o seu positivismo jurídico.

No positivismo, sobremodo, faz-se a distinção clara entre juízo de valor e juízo de


fato. Em primeiro lugar, aduz que é impossível se deduzirem os fatos a partir dos valores,
mesmo se considerando que os valores podem inspirar na formulação do problema. O certo é
que os valores não podem servir de ponto de partida para deduzirmos uma análise científica.
Em segundo lugar, é de se considerar que não se podem deduzir os valores a partir dos fatos,
ou seja, se, se empreender uma análise de fatos, não se pode extrair daí conclusões de fundo
moral, nem juízosaxiológicos.

Reportando-se a Max Weber que pregava a separação de maneira rigorosa dos juízos
de fato e de valor, no processo de análise empírica da realidade, Michael Löwy assinala que:

Com isso, Max Weber quer dizer que a análise dos fatos não conduz, de maneira
lógica, a nenhuma conclusão política ou moral. Não há vínculo lógico-dedutivo entre
a análise fatual e a análise político-moral. Max Weber diz que os valores morais não
podem se reconciliar a partir de raciocínios científicos. Por exemplo, quem teria a
pretensão de refutar o Sermão da Montanha? Não se pode refutar uma ética
cientificamente, pode-se acreditar em outra, mas não há maneira científica de provar
que um determinado valor seja certo e outro errado. Também, acreditar em consenso
de valores é uma ilusão, porque se os valores culturais, nacionais, sociais são
opostos, não se pode acreditar que a ciência possa resolver esse conflito, acreditar
nisso é um erro fundamental. (LÖWA, 2003, p. 57).

Nesse sentido é que se compreendem perfeitamente os limites epistemológicos


impostos a si pela teoria juspositivista, conforme bem pontuado por Lourival Vilanova:
Resumidamente: o direito/objeto de conhecimento científico é o direito positivo,
despojado de qualquer conexão com o direito natural ou a ética, e a política do
direito; o direito é norma de conduta, ou conduta como conteúdo de norma, mas o
fator qualificante decisivo é a norma: o direito é norma. A norma é a forma lógica de
vincular um pressuposto de fato a uma conseqüência - se o vínculo requer uma
tomada-de-posição axiológica (qualificação axiológica do pressuposto, relação
valorativamente feita entre o pressuposto e a conseqüência, valoração do quantum e
da espécie de conseqüência), o conhecimento positivo do direito toma essa valoração
como mero dado, sem emitir uma sobrevaloração positivamente feita pelo legislador,
ou pelo juiz, ou pela comunidade. (VILANOVA, 2003, p. 315).

4.1 As diversas faces do positivismo jurídico

Tendo em conta as diversas espécies de positivismos jurídicos, uma vez que existem
diversas correntes positivistas com significações diferentes, em que pese o traço comum da
visão positivista se limite ao real, ao dado e ao demonstrável positivamente, convém, nessa
altura, situarmos as diversas modalidades desse pensamento, quando não, para efeitos
didáticos:

a) Positivismo Racionalista – essa corrente procura os elementos produtores do Direito nos


conceitos, dos quais derivam, por dedução lógica os enunciados jurídicos e destes as decisões
para os casos concretos. A tarefa principal consiste em descobrir, separar e estabelecer, com
exatidão, os conceitos ou princípios fundamentais manipulados pelo Direito. O pensamento
trabalha com idéias e conceitos e não com o objeto real. Isso não significa, no entanto, que o
positivismo racionalista, de um modo geral, ignore o objeto real, mas sim que parte do
princípio segundo o qual os fatos não são as fontes de todos os conhecimentos e que,
isoladamente, não oferecem condições de certeza e precisão;
b) Positivismo Científico-Naturalista – essa corrente exclui toda especulação metafísica,
prendendo-se à observação dos fatos naturais, considerando consistir sua tarefa determinar as
conexões e as leis que regem os fatos. Metodologicamente, opõe ao procedimento dedutivo do
pensamento racionalista uma captação indutiva do direito com base nas observações das
relações existentes entre os fatos jurídicos. Ao sujeito cognoscível caberia desempenhar o
papel de uma câmera fotográfica, ou seja, registrar o objeto tal como ele é. Essa corrente
pretendeu aplicar ao Direito o método empregado nos estudos das ciências da natureza;
c) Positivismo Sociológico – para essa corrente, o Direito baseia-se nas regras de
comportamento manifestadas na sociedade; portanto o Direito é o conjunto de regras jurídicas
de comportamento social que a sociedade cria de modo espontâneo. De tal forma é a
sociedade que cria o Direito que nela vigora e não a lei. São as forças sociais que atuam na
sociedade que fazem aparecer o Direito. O Direito, segundo Ehrlich (apud AZEVEDO, 1998,
p. 31), é somente o que “facticamente se pratica e vive. Só o que se produz na vida se
converte em norma viva; o mais é mera doutrina, norma de decisão, dogma ou teoria”.
Estabelece essa doutrina a ‘força normativa do fato social’, ou seja, a possibilidade de
determinados fatos sociais de conteúdo jurídico terem força jurígena, derrogando ou
modificando o Direito posto;
d) Positivismo Psicológico – caracteriza-se pela preocupação com os fatos internos que
servem de fundamento à constituição jurídica das normas. Figurativamente, dessa forma se
destaca a teoria do reconhecimento criada por Ernst Bieling, entendendo que o Direito nasce e
vigora porque os cidadãos o reconhecem na consciência, isto é, o internalizam, como tal e
assim lhe prestam obediência;
e) Positivismo Teleológico – essa corrente entende o Direito como uma proteção dos fins e
interesses humanos. Com isso, surgiram duas doutrinas teleológicas: a da jurisprudência dos
fins e a dos interesses. Para a jurisprudência dos fins, a luta por esses fins cria o Direito. Seu
lema traduz-se na idéia de que tudo o que existe no Direito foi produzido por uma finalidade e
existe por causa de um fim. Já para a jurisprudência dos interesses, os mandamentos jurídicos
não procedem dos princípios, mas são originados das necessidades práticas da vida e da
alterabilidade dessas necessidades. Sua diretriz é no sentido de que o Direito tem, como fim
último, a satisfação das necessidades da vida, sejam materiais ou espirituais;
f) Positivismo Normativista – entende essa corrente que o objeto do conhecimento do Direito
consiste nas proposições jurídicas do Direito vigente, devendo o jurista limitar seu interesse
ao estudo dessas proposições. Enquadra-se, nessa corrente, a Teoria Pura do Direito de Hans
Kelsen, por se limitar ao conhecimento e descrição do Direito posto, independentemente de
sua valorização, considerada como nãocientífica. “O Direito só estuda o Direito”. A Teoria
Pura do Direito tem, por objeto de estudo, a norma jurídica pura, livre de todo elemento extra
ou metajurídico;
g) Positivismo Legalista – essa corrente, expressão do positivismo normativo, segue o lema
segundo o qual a lei equivale ao Direito. E mais: defende não existir direito fora das regras
jurídicas promulgadas pelo Estado ou garantidas por ele. O direito é um fato estatal positivo,
sendo a sanção estatal o que caracteriza a regra de Direito, por lhe garantir eficácia. De resto,
proclama que toda lei, nascida de um modo formalmente válido, goza de vigência
indiscutível;
h) Positivismo Exegético – essa corrente se constituiu através da sua tarefa interpretativa. Sua
atenção se volta para a lei, notadamente para sua interpretação, que deve atingir-lhe o espírito,
sem acréscimos e muito menos censura ao declarado na lei, recorrendo, em caso de lacuna, à
intenção do legislador (mens legislatoris). Os juristas dessa escola dirigiram sua atenção, pois,
ao código, reputando o legislador onisciente e onipotente, considerando não haver outra fonte
do Direito senão o estabelecido através do código.

Demais disso, poder-se-á analisar o positivismo jurídico de acordo com os seguintes


aspectos conceituais encontrados em Bobbio (1995):

a) Como uma abordagem neutra do Direito, visto pretender que o Direito seja considerado
uma Ciência, a semelhança das ciências naturais e físicas. Como ciência feita apenas de juízos
de fato, nunca de valor, a realidade deve ser vista de forma apenas descritiva, sem qualquer
influência do observador sobre o objeto em observação. Consoante essa neutralidade, está o
formalismo jurídico, onde o Direito é definido em função de sua estrutura formal, sem ter em
conta o conteúdo de que o Direito é portador;
b) No que pertine à concepção coercitiva do Direito com base no Direito pautado e instituído
pelo Estado. Nesse sentido, Ihering admite a coação como uma concretização de uma
finalidade por meio da sujeição da vontade alheia, sendo o Direito fundado no poder
coercitivo do Estado com vistas a assegurar as condições de funcionamento da sociedade;
c) A concepção juspositivista sobre a lei como única fonte de qualificação do Direito,
partindo-se do pressuposto da existência de um ordenamento jurídico complexificado e
hierarquizado, onde existe mais de uma fonte jurídica, as quais se preordenam consoante uma
hierarquia existente. Assim, o Estado como a única fonte do Direito e a lei como única
expressão do poder normativo estatal;
d) A concepção imperativa da norma jurídica, que configura o direito como um comando.
Bobbio nota que há duas fases do imperativismo jurídico: a primeira, chamada de
imperativismo ingênuo, quando o Direito é tido como um conjunto de ordens dirigidas pelo
soberano aos súditos, sem considerar a estrutura do imperativo jurídico; a segunda, chamada
imperativismo crítico, tem em conta a norma jurídica como imperativo hipotético, o qual tem
como destinatários os juízes e não os cidadãos. Como se sabe, a teoria dos juízes destinatários
da norma jurídica foi aceita por Kelsen, que considerou ser a norma primária destinada aos
juízes e a norma secundária dirigida aos cidadãos, sendo estes não os destinatários de
verdadeiros comandos, mas sim sendo a eles mostrada uma alternativa, consistente em
obedecer a lei ou sofrer a sanção;
e) A teoria do ordenamento jurídico, tendo como características a unidade, a coerência e a
completitude.

− No que concerne à unidade, cuida-se de uma unidade formal, que diz quanto ao modo pelo
qual as normas são positivadas. Tal significa que existe uma única autoridade que confere
imediata ou mediatamente caráter jurídico ao amontoado de normas.
− No que concerne à coerência, funda-se na crença de que para uma norma integrar o
ordenamento ela precisa ser compatível com as demais normas jurídicas. Nesse sendo, mister
aplicar determinados critérios no caso de conflito de normas, quais sejam: o cronológico (em
que a norma posterior derroga a anterior); o hierárquico (em que a norma hierarquicamente
superior derroga a inferior); e o da especialidade (em que a norma especial prevalece em face
de uma norma geral).
− Já a completitude consiste em afirmar a inexistência de lacuna na lei, porquanto se há um
fato não contemplado por nenhuma norma é porque esse fato situa-se fora dos limites do
Direito ou porque, se não há uma norma para tal fato, há uma secundária implícita nas
presentes que regula todas as situações.
f) A concepção de que o papel da jurisprudência é simplesmente reproduzir o Direito, isto é,
desentranhar o conteúdo das normas jurídicas já postas e não criá-las. Defende o positivismo
que a jurisprudência não deve criar normas, mas somente interpretá-las. A partir dessa
concepção, conclui-se que o jurista deve buscar a norma que soluciona o caso concreto,
interpretando a norma de forma mecânica. Desse modo, o positivismo privilegia na
interpretação as formas, considerando a exegese uma operação de dedução lógica de conceitos
abstratos, sem se importar com a realidade social ou os conflitos de interesses subjacentes à
norma interpretada;
g) Outra característica da concepção positivista diz com a obediência absoluta à lei. A lei deve
ser obedecida de forma incondicional, visto ser a forma racional de o Estado e os homens, que
ao Estado estão submetidos, atuarem. Nestes termos, Bobbio (1995) acrescenta que somente
será questionada a obediência à lei quando houver outra norma que regule diferentemente a
situação. Caso contrário, a desobediência à lei implicará em responsabilidade pelo
cometimento de um ilícito.

Ainda segundo Bobbio (1995), o positivismo apresenta-se sob três aspectos:

a) Como método para o estudo do Direito, bem como para sua aplicação. Assim,
reivindicando um estatuto científico, o método positivista assemelha-se ao método científico,
no aspecto em que a ciência se faz a partir de proposições sobre um objeto que podem ser
verdadeiras ou falsas;
b) Como teoria do Direito, conforme as premissas anteriormente descritas, ou seja: a) a teoria
coativa do Direito; b) a teoria legislativa do Direito; c) a teoria imperativista do Direito; d) a
teoria da coerência do ordenamento jurídico; e) a teoria da completitude do ordenamento
jurídico; f) a teoria da interpretação lógica ou mecanicista do Direito;
c) Como ideologia do Direito – conforme Bobbio (1995), o positivismo se apresenta em duas
versões: a primeira, que leva ao extremo o dever de obediência absoluta às leis, o que conduz
ao culto do Estado (estatolatria) e ao autoritarismo; a segunda, a versão moderada que, ao ter
em conta valores do Direito como a ordem, a igualdade formal e a certeza, se identifica mais
com o Estado liberal do que com o Estado autocrático.

Numa apreensão feliz, Bobbio mostra a versão jusnaturalista e juspositivista


extremada da lei:

O Jusnaturalismo e o positivismo extremista (isto é, o positivismo ético) identificam


ambas as noções de validade e de justiça da lei, mas, enquanto o primeiro deduz a
validade de uma lei da sua justiça, o segundo deduz a justiça de uma lei de sua
validade. (BOBBIO, 1995, p. 232).
5 AS ID É IAS DE K E LSEN

5.1 A concepção de ciência – a pureza metodológica

O projeto contido na metodologia kelseniana consiste em afastar a Ciência Jurídica de


toda ideologia política e de todo elemento próprio às ciências da natureza.

Por essa razão, prega Kelsen um método monista para a Ciência Jurídica, o que
importa na necessidade de banir da Ciência Jurídica toda espécie de sincretismo
metodológico, não se admitindo interferências de outros métodos que não o jurídico. A pureza
de método exige que se prescinda de outros métodos próprios de outras ciências não-jurídicas
como a filosofia, a sociologia, a psicologia, etc.

Em virtude desse pretendido monismo metodológico, o Estado, forçosamente, se


confunde com o Direito, uma vez que desaparece o problema da autolimitação do Estado e
das relações do Estado com o Direito, posto que ambas as figuras são a mesma coisa. De igual
feita, segundo a perspectiva monista, o problema da caracterização da norma jurídica já não
mais reside em um elemento externo ao Direito, como por exemplo na moral, mas em um
predicado inerente à própria norma jurídica: a coação.

Demais disso, a pureza metodológica da teoria kelseniana exige também a rejeição


pela Ciência Jurídica de argumentos de ordem política e ideológica, visto que uma teoria pura
do Direito não pretende senão conhecer e descrever o Direito, jamais ser uma justificativa
para um determinado poder qualquer. Seu intento consiste em construir uma Ciência do
Direito objetiva, que tenha como missão única descrever seu objeto e não justificá-lo. Daí a
neutralidade política e a neutralidade axiológica serem notas essenciais à pureza
metodológica, não se admitindo doutrina que pretenda justificar um poder político qualquer
ou que pretenda impor uma idéia determinada, visto que uma teoria científica nos moldes
kelsenianos não se harmoniza com teorias contaminadas por elementos estranhos ao postulado
de pureza metodológica.

Dessa maneira, somente a adoção de um monismo metodológico permitirá a obtenção


de uma Ciência Jurídica pura, porquanto está convencido Kelsen que apenas a utilização de
um único método para o conhecimento de um objeto é a condição primeira que permitirá a
elaboração de uma Ciência Jurídica pura.

Nesse sentido considera que a Ciência Jurídica deve estudar o seu objeto, consistente
das normas jurídicas, com indiferença de se saber se a conduta que prescreve a norma ocorra
ou não no mundo fenomênico. Em outros termos, não deve estudar a conduta efetiva dos
destinatários da norma, mas tão-somente se limitar a descrever as normas jurídicas que
integram o ordenamento jurídico. Para Kelsen, a ciência se caracteriza pela descrição da
realidade através de enunciados que revelam as relações de causa e efeito entre os fenômenos.

Nesse sentido, a ciência não passa de um processo de generalização e descrição de


leis, procedendo a formulação de leis mediante a observação. Não que as normas jurídicas não
sejam portadoras de valores, apenas a tarefa do jurista, enquanto Cientista do Direito, não
deve ser voltada à valoração do seu objeto de conhecimento. A ele cabe apenas a descrição do
objeto isenta de valores se se quiser permanecer apenas na tarefa de jurista científico.

Tal concepção de ciência transportou-a Kelsen para a Ciência do Direito, reputando


que a Ciência Jurídica também se caracteriza pela descrição das normas jurídicas extraídas da
experiência, mediante enunciados obtidos de proposições jurídicas, sendo os enunciados
destas o equivalente às leis causais da ciência natural.

Dessa forma, o ato de conhecimento da Ciência do Direito é considerado tal como nas
ciências da natureza, como ato eminentemente descritivo, no caso, descrição das regras
jurídicas postas pelo órgão competente. A crença positivista é de que simplesmente, através da
descrição, se pode chegar ao conhecimento científico, conforme observado nas ciências
naturais.

O que caracteriza o positivismo jurídico é uma concepção do ordenamento jurídico


como disciplina descritiva que deve ater-se a uma neutralidade valorativa em face do seu
objeto e que sendo assim permanece independente frente à moral e à política.

Deve se restringir a Ciência Jurídica a descrever a realidade normativa, abstendo-se de


elaborar juízo de valor, pois tal implicaria não considerar a norma jurídica como referência.
Para Kelsen, tendo o jurista que exclusivamente descrever a realidade normativa, o papel
destinado à Ciência do Direito resume-se à descrição do valor acolhido pela norma posta, não
podendo apreciar valores que a regra não abriga. Com isso, procede à distinção da função
cognoscitiva da Ciência do Direito da função de autoridade consistente na produção de
normas jurídicas (função legífera).

Comentando o pensamento kelseniano, Afonso (1984, p. 224) acrescenta que:

O papel da ciência jurídica, segundo Kelsen, seria análogo ao da ciência natural:


proceder à descrição de seu objeto através da formulação de leis. Por isso Kelsen
admite que a proposição jurídica seja também denominada ‘lei’ jurídica, à
semelhança da expressão ‘lei’ natural e, nessa analogia não importa a diferença do
objeto da ciência jurídica e o da ciência natural. Enquanto ciências ambas se
destinam a descrever o objeto de que se ocupam e tanto a lei natural como a lei
jurídica são instrumentos para a descrição de uma conexão funcional.

A Ciência Jurídica, em face de ser normativa, implica atividade descritiva das normas
jurídicas, ou seja, cinge-se a enunciar as normas mediante proposições jurídicas. Ciência
normativa no sentido de que o Direito deve ser visto como um sistema de normas, que
conhece normas, através da descrição. Analogamente às ciências da natureza (que descreve os
fatos naturais), a Ciência do Direito tem a função de descrever as normas jurídicas, rejeitando
considerações de ordem valorativa como o ideal de justiça ou o fim da norma, pois a crítica
das normas não é função da Ciência.

Emerge da atitude kelseniana uma metodologia neutra baseada na ausência de juízos


de valor, devendo o Cientista do Direito trabalhar exclusivamente com a norma positiva. O
conhecimento jurídico para ser científico deve, pois, ser neutro, não devendo emitir qualquer
juízo de valor sobre a opção quando da edição da regra jurídica. Em sua atividade descritiva, a
Ciência do Direito deve se cingir a verificar se a conduta do indivíduo se enquadra na
prescrição da norma, sem a emissão de qualquer juízo de valor sobre a justiça ou injustiça do
conteúdo da regra.

Como observa Coelho (2001, p. 3):

[...], o princípio metodológico fundamental kelseniano afirma que o conhecimento


da norma jurídica deve necessariamente prescindir daqueles outros [conhecimentos]
relativos à sua produção, bem como abstrair totalmente os valores envolvidos com a
sua aplicação. Considerar esses aspectos pré–normativos e metanormativos implica
obscurecer o conhecimento da norma, comprometendo-se a cientificidade dos
enunciados formulados acerca dela.

Como se pode ver, ao pensamento kelseniano é subjacente que o seu conceito


positivista parte do princípio de que a descrição da realidade é o método por excelência de
produzir conhecimento científico. Só assim a Ciência do Direito seria uma ciência exata e
objetiva.

Dissertando sobre o procedimento descritivo da norma, adverte Afonso que a função


descritiva não pode exaurir o conhecimento jurídico-científico, pois tal implicaria mutilar seu
objeto, bem como em cortar os seus vínculos com a razão humana que constitui a sua própria
razão de ser:

Entretanto, se admitirmos que o papel da ciência tem sido meramente descritivo,


teríamos de admitir, em conseqüência, que a atividade científica tem proporcionado
ao mundo apenas uma grande coletânea de leis enunciativas de uma realidade que se
oferece à observação. A ciência não teria qualquer função ativa a desempenhar na
própria ampliação do conhecimento. (AFONSO, 1984, p. 226).

5.2 Princípio da imputação e princípio da causalidade

De acordo com Kelsen, na descrição de uma ordem normativa da conduta dos homens
entre si, é aplicado o princípio da imputação, diferente do que é aplicado na descrição de uma
ordem natural, que é o princípio da causalidade. Enquanto se diz na proposição jurídica que se
A é, B deve ser, mesmo quando B não venha efetivamente ocorrer, na lei natural se afirma que
quando A é, B é ou será.

Diferenciam-se os dois princípios, ainda, pelas conseqüências adstritas a cada


princípio. Em primeiro lugar, o efeito, em uma relação de causalidade, independe da vontade
humana, sendo que a causa segue inelutavelmente o efeito na esfera da realidade. Se tal não
ocorrer, o enunciado é declarado falso e deve ser desconsiderado. Entretanto, em uma relação
envolvendo o princípio da imputação, o efeito cinge-se à mera descrição do estabelecido por
ato de vontade dos detentores de competência jurídica de acordo com a conseqüência prevista.
Coelho (2001, p. 52-53) esclarece este ponto:

Desse modo, como independe da vontade humana, o conseqüente na relação causal


necessariamente segue o antecedente na órbita do ser. Se tanto não ocorre, o
enunciado é falso e deve ser substituído, ou seja, se a água aquecida a cem graus não
evaporar, a afirmação de que o líquido nessas condições se evapora perde
inteiramente a sua pertinência (veracidade). Já, por outro lado, como o conseqüente
na relação de imputação se refere a uma manifestação de vontade, o fato de a
prescrição não se verificar efetivamente não torna falsa a proposição de que ela
deveria ocorrer.

Outra diferença observada consiste em que toda causa é, ao mesmo tempo, efeito de
outra causa, e todo efeito, a sua vez, causa novo efeito. Essa relação tende a se projetar em
uma escala infinita. A mesma cadeia de sucessão ao infinito não ocorre em face do princípio
da imputação, visto que não há derivação alguma. A hipótese de incidência da norma resulta
de uma específica definição normativa, não gerando necessariamente a sanção novo contexto
de imputação.

Explica Kelsen:

O pressuposto a que é imputada a conseqüência numa lei moral ou jurídica, como,


por exemplo, a morte pela pátria, o ato generoso, o pecado, o crime, a que são
imputados, respectivamente, a veneração da memória do morto, o reconhecimento, a
penitência e a pena, todos esses pressupostos não são necessariamente conseqüência
que tenham de ser atribuídas a outros pressupostos. E as conseqüências, como, por
exemplo, a veneração da memória, o reconhecimento, a penitência, a pena, que são
imputadas, respectivamente, à morte pela pátria, ao ato generoso, ao pecado e ao
crime, não tem necessariamente de ser também pressupostos a que sejam de atribuir
novas conseqüências. O número dos elos de uma série imputativa não é, como o
número dos elos de uma série causal, ilimitado, mas limitado. Existe um ponto
terminal da imputação. Na sériecausal, porém tal ponto não existe. (KELSEN, 2003,
p. 101).

Assim resta evidente que, enquanto o princípio da causalidade se caracteriza pela


relação entre uma causa e um efeito, o princípio da imputação contém uma relação entre uma
condição e uma conseqüência que não se rege segundo o reino da necessidade, mas trabalha
com o contigente, onde nos deparamos com as ações humanas.

O princípio da imputação é, portanto, o diferencial que se estabelece entre as ciências


causais e as ciências normativas. Com o princípio da imputação, Kelsen consegue delimitar as
ciências que se ocupam de normas, das ciências que se ocupam de fatos. As ciências da
natureza descrevem as relações regulares que se processam entre os fenômenos naturais com a
elaboração de leis que se traduzam mediante o princípio da causalidade. A seu turno, as
ciências normativas descrevem as relações estabelecidas pelas normas segundo o princípio da
imputação.

Conforme explica Kelsen (2003, p. 90):

Assim como a lei natural é uma afirmação ou enunciado descritivo da natureza, e


não o objeto a descrever, assim também a lei jurídica é um enunciado ou afirmação
descritiva do Direito, a saber, da proposição jurídica formulada pela ciência do
Direito, e não o objeto a descrever, isto é o Direito, a norma jurídica. Esta - se bem
que, quando tem caráter geral, seja designada como “lei” não é uma lei, não é algo
que, por qualquer espécie de analogia com a lei natural, possa ser designado como
“lei”. Ela não é, com efeito, um enunciado pelo qual se descreva uma ligação de
fatos, uma conexão funcional. Não é sequer um enunciado, mas o sentido de um ato
com o qual se prescreve algo e, assim , se cria a ligação entre fatos, a conexão
funcional que é descrita pela proposição jurídica, como lei jurídica.

Num quadro comparativo, pode-se, didaticamente, elencar uma série de aspectos no


que se refere à relação mantida entre o princípio da causalidade e da imputação consoante as
seguintes notas:
a) O princípio da causalidade e o da imputação são idênticos, porquanto ambos relacionam
condições com conseqüências.
b) O princípio da causalidade relaciona a condição à conseqüência através de um nexo de
necessidade, ou seja, de causa e efeito, ao passo que o princípio da imputação imbrica a
condição com a conseqüência mediante um dever ser. De forma que as ciências causais são
ciências do ser, enquanto que as ciências normativas são ciências do dever ser.
c) A conexão estabelecida entre a condição e a conseqüência segundo o princípio da
causalidade é independente da vontade humana, ao passo que a conexão entre a condição e a
conseqüência segundo o princípio da imputação é estabelecida por uma norma editada por
uma autoridade jurídica, por meio de um ato de vontade jurídica, por meio de um ato de
vontade humana.
d) Por fim, cumpre assinalar que, consoante o princípio da causalidade, cada causa concreta
deve ser considerada como o efeito de outra causa, e cada efeito concreto como a causa de
outro efeito, de tal modo que a cadeia de causas e efeitos aponta para o infinito. Em contraste,
na norma jurídica existe um termo final de imputabilidade. A conduta do homem constitue o
ponto final da imputação, porquanto ela realiza e implementa a condição. Condição essa que é
prevista no ordenamento jurídico, quantificando-a como jurídica.
Segundo Kelsen, a atividade da Ciência do Direito consiste em produzir proposições
jurídicas, descrevendo o seu objeto, isto é, a norma. Não está o cientista autorizado a atribuir
conteúdos de valor ao Direito, devendo descrever seu objeto (a norma) de forma neutra,
valendo-se dos princípios lógicos e de um método rigoroso e objetivo.

Segundo Kelsen, a questão da ciência jurídica clássica, elaborada com base em


conteúdos, que perseguiam explicações para o fundamento do Direito, quer através das idéias
metafísicas da justiça, quer através da finalidade solidária da ordem social, acarretava
debilidade do Direito ao ter que responder as suas próprias demandas. Para ele o objeto da
Ciência Jurídica deveria ser tão-só a norma jurídica positiva, ou seja, a norma tornada válida
por si mesma, uma vez que sua validade decorre de sua correspondência com outra norma que
se acha em uma posição que lhe é imediatamente superior, até chegar à norma fundamental,
constituindo assim um todo articulado e hierarquizado, consistente justamente no
ordenamento jurídico lógico-formal, através da denominada pirâmide normativa kelseniana.

De sorte que a problemática relativa ao fundamento axiológico do sistema jurídico não


é posta por Kelsen, haja vista a sua concepção da norma fundamental que para ele trata-se
apenas de um pressuposto lógico do sistema positivo. A nosso ver, nada mais aporético essa
postura com o seu ideal de pureza metodológica, porquanto a norma fundamental termina se
confundindo com um ato de fé de validade do ordenamento jurídico, possua este o conteúdo
que for em termos éticos.

Bem por isso, a crítica que foi dirigida por Alf Ross (2003) à teoria kelseniana,
tachando-a de idealismo formal, posto que o fundamento do Direito é baseado numa hipótese
teórica que passa a ser considerada como o critério de determinação do jurídico.

5.3 Proposição jurídica e norma jurídica

Consiste a proposição jurídica em um juízo descritivo da norma jurídica. A sua vez, a


norma jurídica não é descritiva, mas prescritiva de uma determinada conduta. Assim, entende-
se que a função da norma é prescritiva, ao passo que a função da Ciência Jurídica, mediante o
estudo dos enunciados, das proposições jurídicas, cingir-se-á a ser descritiva, enquanto ciência
do dever ser. Portanto, através de tais categorias, pode-se estabelecer a distinção entre a
atividade de aplicação do direito e a empreendida pelo Cientista do Direito, ou melhor, entre a
função de autoridade e a função de conhecimento.

Kelsen dissertando sobre o tema esclarece a diferença entre norma jurídica e


proposição jurídica:

Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de


conformidade com o sentido de uma ordem jurídica nacional ou internacional dada
ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse
ordenamento, devem intervir certas conseqüências pelo mesmo ordenamento
determinadas. As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados
sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido,
mandamentos e, como tais, comandos, imperativos. Mas não são apenas comandos,
pois também são permissões e atribuições de poder ou competência. Em todo o caso,
não são, como, por vezes, identificando Direito como Ciência Jurídica, se afirma –
instruções (ensinamentos). O Direito prescreve, permite, confere poder ou
competência – não “ensina nada”. (KELSEN, 2003, p. 80-81).

Da definição de Kelsen pode-se inferir os seguintes traços diferenciados existentes


entre proposição jurídica e norma jurídica:

a) As proposições jurídicas se preordenam a descrever o ordenamento jurídico, posto ser


função da ciência do Direito apenas conhecer. As normas jurídicas, por sua vez, não
pretendem conhecer. Elas estão preordenadas para a função de prescrever, ou seja, ordenar,
proibir ou facultar;
b) A proposição jurídica, ao ser uma descrição da norma jurídica, é suscetível de ser
verdadeira ou falsa, ao passo que as normas jurídicas editadas pela autoridade jurídica, não
são suscetíveis de serem verdadeiras ou falsas, posto que as normas jurídicas dizem com o
conceito de validade ou invalidade;
c) O fato de que as proposições jurídicas serem verdadeiras ou falsas permite introduzir os
princípios da lógica no Direito. Quanto às normas jurídicas, elas podem ser válidas ou
inválidas, não fazendo sentido atribuir-lhe função de verdade ou falsidade, porquanto para
Kelsen apenas os enunciados verdadeiros ou falsos podem ser logicamente relacionados;
d) Outra característica das proposições jurídicas diz que há impossibilidade de as proposições
jurídicas criarem direito. Como é sabido, a função da Ciência Jurídica é de conhecimento. A
sua vez, as normas jurídicas são preordenadas para criarem direito, por estarem imbricadas
com o poder decisório. O Cientista do Direito tem uma função de conhecimento, e para isto se
utiliza da proposição jurídica que não se dirige a proibir, ordenar ou permitir. Ao contrário,
a norma jurídica editada pela autoridade pretende valer e ser efetiva, a par de ordenar o
comportamento humano a responder ao comando de um poder determinado.

Destarte, as normas como substrato de atos de vontade, não são verdadeiras ou falsas,
porém válidas ou inválidas. As proposições jurídicas, como juízos hipotéticos, são verdadeiras
se reproduzem fielmente as regras em trato, ou falsas, no caso contrário. Para Kelsen o
conjunto de normas jurídicas, ou seja, o ordenamento jurídico, não possui lógica interna, já
que as regras podem ser somente válidas ou inválidas, não sendo apropriado atribuir-lhe o
epíteto de verdadeiras ou falsas, não cabendo a sujeição das relações entre regras de uma
mesma ordem jurídica aos preceitos da lógica formal. Nesse sentido, segundo o binômio do
falso e do verdadeiro, pode-se dizer que as normas jurídicas são emanadas das autoridades,
simplesmente em razão da competência atribuída pela ordem jurídica, sem, todavia, se
verificar uma necessária compatibilização lógica entre as normas. As normas são simples
comandos, atos de vontade.

Kelsen (2003, p. 83-84) expõe claramente essa sua idéia:

Dado que as normas jurídicas como prescrições, isto é, enquanto comandos


permissões, atribuições de competência, não podem ser verdadeiras nem falsas, põe-
se a questão de saber como é que os princípios lógicos, particularmente o princípio
da não contradição e as regras da não concludência do raciocínio, podem ser
aplicados à relação entre normas (como desde sempre tem feito a Teoria Pura do
Direito) quando, segundo a concepção tradicional, estes princípios apenas são
aplicáveis às proposições ou enunciados que possam ser verdadeiros ou falsos. A
resposta a esta questão é a seguinte: os princípios lógicos podem ser, se não direta,
indiretamente, aplicados as normas jurídicas, na medida em que podem ser aplicados
às proposições jurídicas que descrevem estas normas e que, por sua vez, podem ser
verdadeiras ou falsas. Duas normas jurídicas contradizem-se e não podem, por isso,
ser afirmadas simultaneamente como válidas quando as proposições jurídicas que as
descrevem se contradizem, e uma norma jurídica pode ser deduzida de uma outra
quando as proposições jurídicas que as descrevem podem entrar num silogismo
lógico.

Cumpre observar que essa dicotomia entre o que é Direito (norma) e o que é Ciência
(proposições jurídicas) se revela bastante questionável, haja vista a linguagem que veicula a
descrição jurídica não ser portadora de sentido unívoco, da mesma forma que é imprecisa a
linguagem que exprime as normas jurídicas dada a multiplicidade da linguagem natural.
Ademais, na descrição da natureza, a causalidade ocorre independente da vontade do cientista,
ao passo que, na descrição das proposições jurídicas, a vontade do cientista intervém na
formulação da proposição jurídica, em face da necessária interpretação que realiza.

Conforme leciona Noleto (2002, on line):

A meu ver, o problema dessa epistemologia positivista, que, num esforço de


abstração, produz a sua dicotomia central entre o que é Direito (norma) e o que é
Ciência (proposição ou lei jurídica), é não considerar preliminarmente que,
diferentemente da descrição da ordem natural, que se faz em linguagem matemática,
a descrição jurídica, embora aspire ao rigor matemático e sistêmico, se faz na mesma
linguagem natural (comum) e, portanto, imprecisa com a qual se produz o seu
objeto, as normas jurídicas (gerais e individuais, conforme a competência ou a
capacidade do agente produtor). Além disso, é mais ou menos certo que, na
descrição da natureza, a causalidade ocorra independentemente do cientista, mas na
“descrição” (compreensão) da normatividade válida formalmente, o jurista, em razão
da necessária interpretação que realiza, não raramente recompõe a imputação.

Com efeito, não nos parece possível a separação rígida entre sujeito cognoscente (o
cientista) e o objeto (o Direito), sendo a “contaminação” entre ambos muitas vezes inevitável,
principalmente, nos chamados casos difíceis (hard cases), quando o ato de subsunção do fato à
norma não é um ato passivo, mas antes de participação criativa do intérprete, realizando ao
mesmo tempo obra de cognição e criação jurídica.

Além disso, cumpre lembrar que ao operador jurídico lhe é conatural ter de responder
a casos concretos na sua prática diária, de onde a inevitável escolha que há de proceder
sempre sobre um valor de justiça. A dificuldade da formulação kelseniana se agiganta, a nosso
ver, quando se sabe que o Direito, como técnica de controle social, é estatuído por razões
essencialmente operativas e não teóricas e formais, momento em que a pragmática assume
valor proeminente fundamental na realidade social.

Como é sabido, a dogmática jurídica se dirige aos Juízes e aos demais operadores
jurídicos, propondo soluções juridicamente corretas para casos concretos. Entretanto, o
positivismo jurídico kelseniano nega esta atividade como científica por exceder ao
conhecimento descritivo do Direito. A atividade prática de resolução dos problemas jurídicos
não é aceita como sendo atividade científica porque não seria suscetível de racionalização por
meios puramente lógicos. Para ele o jurista, que sustenta uma determinada interpretação como
a única correta, não cumpre uma função científico-jurídica, mas sim uma função jurídico-
política.

5.4 Teoria estática e teoria dinâmica do ordenamento jurídico

Para os jusnaturalistas, a unidade do ordenamento jurídico é de natureza substancial,


resultando da circunstância de que todo e qualquer preceito tem seu conteúdo inferido
logicamente a partir de uma norma geral, que é o fundamento que sustenta todo o conjunto
normativo, e que se corporifica através de um postulado moral axiomático e auto-evidente. Já
segundo os justapositivistas, a unidade é de caráter formal, resultando da circunstância de que
todas as normas que compõem o ordenamento jurídico são derivadas, direta ou indiretamente,
de uma mesma matrix.

Kelsen explica essas diferenças mencionando a existência de dois tipos de


ordenamentos normativos, os do tipo estático e os do tipo dinâmico; sendo que os primeiros
são os que possuem sua unidade vinculada ao conteúdo das normas, enquanto que os
segundos têm sua unidade vinculada ao elemento formal. Nesse sentido, como juspositivista
que é, o ordenamento jurídico para Kelsen há de ser classificado como sendo do tipo
dinâmico.

Vejamos a lição de Bobbio (1995, p. 200):

Para esclarecer a diferença entre concepção substancial (ou estática) e concepção


formal (ou dinâmica) da unidade do ordenamento, consideremos este exemplo
trazido da família (cujo ordenamento prefigura in nuce o do Estado). Suponhamos
que o pai ordene ao filho: “Hoje à tarde permaneça em casa para estudar” e que o
filho pergunte: “Por que devo estudar?”. Se o pai responder apelando para um bem
(bemestar, felicidade, liberdade...) que o estudo serve para obter, estará dando uma
resposta do tipo moralista ou jusnaturalista, visto que procura deduzir o conteúdo de
seu comando de um sistema de normas morais; se, ao contrário, responde: “Deve
estudar porque eu estou mandando”, estará dando uma resposta de tipo
juspositivista, visto que reconduz a norma ao sujeito que na família é a autoridade, a
fonte que põe as normas.

Como se sabe, a pretensão primeira perseguida pela Teoria Pura do Direito é de ser
uma ciência teorético-cognoscitiva exata do Direito Positivo, desvencilhada de toda política,
como assim de outras ciências. Para alcançar esse objetivo concentra Kelsen sua atenção no
sistema de normas válidas, entendendo como direito positivo aquilo que está disposto de
forma normativa. Não inclui ainda, nos seus estudos a Constituição, base de todas as leis, nem
tampouco se detém sobre a esfera de aplicação das leis, por não perceber nestes momentos
uma etapa de produção de direito. Até então seu sistema de Direito Positivo era um sistema
estático de apreensão do Direito como ordem do dever ser.

O elemento dinâmico considerado no Direito foi introduzido por Adolf Merkl na


Teoria Pura do Direito, o que foi sempre reconhecido por Kelsen. Conforme a concepção
dinâmica do direito, as leis se editam com base na Constituição e os atos judiciais e
administrativos com base nas leis. De forma que o legislador está vinculado até certo ponto à
Constituição e o administrador e o Juiz até certo grau à dicção das leis.

El mérito de haber concebido y expuesto el orden jurídico como um sistema genético


de normas de derecho que van concretandóse gradualmente desde la Constituicion,
pasando por la ley y el decreto y demás fases intermedias, hasta los actos jurídicos
individuales de ejecucion, corresponde a ADOFF MERKL. (WALTER, 2001, p. 63).

Assim, a Ciência do Direito, segundo Kelsen, pode se apresentar de forma estática


quando o sistema de normas é objeto de estudo sob o prisma do conteúdo, tendo como
pressuposta ou pensada uma norma fundamental. Ela pode se apresentar de forma dinâmica,
quando o Direito é objeto de estudo como estrutura escalonada de normas, em seu processo de
produção e aplicação, ou seja, quando se estuda como o ordenamento jurídico se mantém
válido e confere validade às normas que o integram, convertendo-as de normas de sentidos
subjetivos de certos atos em sentidos objetivos.

Tal distinção entre teoria estática e teoria dinâmica serve para delimitar qual o papel da
Ciência Jurídica perante o estudo das normas. A teoria estática se preocupa com as normas
reguladoras do comportamento humano pelo prisma do conteúdo. Pela teoria estática, uma
norma é válida quando o seu conteúdo tiver sido logicamente originado de uma norma
hierarquicamente superior ou mais abrangente. Tal teoria é afeiçoada mais à moral, ao passo
que se preocupa a teoria dinâmica com a regulação da conduta humana pelas normas jurídicas
sob o prisma da validade. Por essa teoria, uma norma é válida desde que tenha sido
formalmente produzida consoante autorização prevista em uma norma superior.
Nesse ponto, Kelsen deixa bem claro qual é o objetivo da Ciência Jurídica: descrever o
direito por meio das proposições jurídicas, estudando a conduta humana estabelecida pelas
normas, oferecendo uma interpretação normativa da conduta humana. A norma jurídica surge
como o conceito principal do objeto da Ciência Jurídica e a proposição jurídica como o
resultado da apreciação científica desse objeto, o Direito. Com o estabelecimento das
categorias da norma jurídica e da proposição jurídica, Kelsen estabelece a diferença entre a
atividade do aplicador do Direito e a desempenhada pelo cientista jurídico:

A Ciência Jurídica, porém apenas pode descrever o Direito; ela não pode, como o
Direito produzido pela autoridade jurídica (através de normas gerais ou individuais),
prescrever seja o que for. Nenhum jurista pode negar a distinção essencial que existe
entre uma lei publicada no jornal oficial e um comentário jurídico a essa lei, entre o
código penal e um tratado de Direito Penal. (KELSEN, 2003, p. 82).

Afirma Kelsen que o sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurídica
tem essencialmente um caráter dinâmico. De tal sorte, para o cientista não lhe importa, no
estudo do Direito, o conteúdo da lei, mas o conhecimento do ato que produz a regra jurídica.
A Ciência do Direito não deve preocupar-se com o conteúdo das normas, mas com a sua
dinâmica, ou seja, com a validade, a unidade lógica da ordem jurídica, a norma fundamental
do sistema jurídico, as lacunas, etc; temas esses relativos à produção e aplicação do Direito. À
Ciência Jurídica, segundo a doutrina kelseniana, cabe tão-somente descrever o objeto (a
norma) e não participar de sua produção e aplicação; visto que à autoridade jurídica se lhe
adjudica estabelecer a norma, ao passo que ao cientista jurídico cumpre tão-somente descrevê-
la sob a forma de uma proposição jurídica. Destarte, a norma prescreve, a doutrina descreve.
A Ciência do Direito, esclarece Kelsen, não pode fazer outra coisa senão estabelecer as
possíveis significações de uma norma jurídica, através das proposições jurídicas. E como as
normas jurídicas, mediante enunciado das proposições jurídicas, fazem parte de um sistema
essencialmente dinâmico, não importa o conteúdo para a definição de validade das normas.

Entretanto, o princípio estático não é estranho ao sistema do Direito Positivo. É que o


legislador constitucional não preordena apenas órgãos para legislar, mas também um processo
legislativo. As suas normas constitucionais, com frequência, estabelecem, nos direitos e
garantias fundamentais, o conteúdo das leis quando preceituam certo grau do que devem e do
que não devem conter as normas infraconstitucionais. Ao legislador ordinário compete
regulamentar a ordem jurídica, não sendo suficiente a previsão de órgãos para um
funcionamento dos órgãos do judiciário e da administração pública. Ele então expede normas
para possibilitar a atuação dos órgãos administrativos e judiciários, a par de legislar
determinando o conteúdo das normas que os órgãos são obrigados a aplicar.

A existência, contudo, de outras normas de conteúdo material, quer dizer, não


subordinadas pelo princípio da hierarquia formal, não significa uma quebra do princípio de
que o sistema de normas da ordem jurídica tem essencialmente um caráter dinâmico,
porquanto:

Ainda assim, nenhuma norma individual na condição de norma positiva, emana


simplesmente de uma norma geral (tal como: um ladrão deve ser punido) como o
particular do geral, mas apenas na medida em que tal norma individual seja criada
pelos órgãos aplicadores de Direito. (KELSEN, 2002, p. 572).

Como síntese do que foi exposto, ou seja, do discriminen entre teoria jurídica estática e
teoria jurídica dinâmica resulta que o sistema jurídico comporta duas análises,
respectivamente, quanto ao conteúdo e quanto à produção do Direito. Ilustrativamente, poderá
ocorrer uma situação em que o texto constitucional poderá ter sido desobedecido do ponto de
vista estático, mas obedecido do ponto de vista dinâmico, ou obedecido do ponto de vista
estático, porém desobedecido do ponto de vista dinâmico.

5.5 A teoria da norma fundamental

A norma fundamental do ordenamento jurídico não é como se poderia imaginar a


Constituição Federal. A Constituição é positivada por um Poder Constituinte, que é o
derradeiro Poder em uma ordem jurídica. Entrementes, ainda assim carece esse Poder
Constituinte de algo que lhe outorgue o poder, ou seja, que lhe atribua a permissão de
produzir o texto constitucional. E é justamente esse “algo” que corporifica a denominada
norma fundamental de um ordenamento jurídico. Como se vê, a norma fundamental surge
antes de qualquer outra norma, conferindo ao Poder Constituinte poder de instituir um texto
que irá prevalecer sobre todo o ordenamento jurídico positivo.

Entretanto, é de se perquirir: qual é, por sua vez, o fundamento da norma fundamental?


A resposta oferecida por Kelsen é de ordem lógica: a norma fundamental não se fundamenta
em nenhuma outra, visto que ela é “ratio” final de todas as outras normas e, portanto, de toda a
ordem jurídica. De forma que a norma fundamental é um pressuposto derivado do próprio
ordenamento, é um postulado auto-evidente, sendo indispensável a sua admissão para que
sirva de base a todo o ordenamento jurídico, tendo a função ainda de conferir unidade ao
sistema.

Nesse mister, cumpre lembrar o escólio de Vilanova sobre a função desempenhada


pela norma fundamental e seu estatuto epistemológico na teoria pura:

A norma fundamental cumpre a função de um postulado do conhecimento. Norma


positiva não é, pois não dimana de ato-de-vontade. Com ela não nos orientamos nas
relações sociais. Não indica à conduta o que é lícito
ou ilícito, não corta o universo da conduta humana nas modalidades deônticas do
proibido, do permitido e do obrigatório. Não serve de diretiva para a conduta
concreta. Não é índice do que se deve fazer e do que se deve omitir. Em termos de
linguagem: não está no nível da linguagem das normas jurídicas, mas formulada em
nível da linguagem da ciência dogmática do Direito. A reflexão sobre a norma
fundamental tampouco é feita em nível da linguagem da Ciência Jurídica. Nesta está
o título de postulado. Quer o saiba, quer não se dê consciência disto, o jurista, como
jurista (produzindo ou aplicando norma no interior de um sistema de normas
jurídicas positivas), desatende às questões das origens históricas e sociológicas
porque as corta como a norma básica. Se o
jurista trabalhasse com a categoria da causalidade não poderia cortar a seqüência
ininterrupta de causas e efeitos, e regrediria sua investigação até as origens, mesmo
que fossem estas não-jurídicas: ingressaria no terreno das idéias e crenças, dos
costumes e tradições, das concepções mágicas e religiosas do mundo natural e social,
iria buscar as interrelações do direito com o econômico, o religioso, o moral. Iria
mais além: em busca de processos sociais ou em que sistemas sociais surgem as
normas jurídicas, por não serem suficientes para a ordenação do grupo as normas dos
usos e costumes, as normas religiosas e as normas morais. Com o postulado da
norma fundamental, o jurista põe o limite em que se move seu saber especializado.
Como jurista, ele pode dizer com Malberg: somente a partir do momento em que a
coletividade adquire seu estatuto e se organiza em Estado é que começa o
conhecimento jurídico. O que se passa antes é problema metajurídico (Malberg,
Teoría general del Estado, p. 1.167-1.169). A gênese ou processus anterior à Constituição
“nem sequer é um problema jurídico”. (VILANOVA, 2003, p. 339-340).

No desenvolvimento da Teoria Pura, Kelsen tenta a todo custo imunizar a Ciência do


Direito de aspectos considerados atinentes ao ser do Direito, tais como os aspectos políticos,
morais, econômicos ou históricos, os quais, embora relacionados com o Direito, não integram
a Ciência Jurídica. O Direito é para o autor tão-somente uma ordem normativa, é dizer, uma
ordem relativa ao dever-ser. O que importa para Kelsen é alcançar uma pureza metodológica
que consiga afastar da Ciência Jurídica tudo aquilo que diga respeito a outras ciências sociais.
Pretende, de um lado, retirar a Ciência do Direito do âmbito da natureza (ciência do ser) e,
assim, livrá-la de elementos históricos, sociológicos e psicológicos, para considerá-la uma
disciplina apenas normativa (ciência do dever ser). Por outro lado, intenta diferenciá-la,
enquanto disciplina normativa, da ética, da moral, também disciplinas normativas; visando
delimitar o seu terreno específico. Pretende, enfim, ser uma teoria jurídica pura, depurada de
toda mescla com elementos éticos, políticos e sociológicos. Com isso, pretendeu-se criar uma
metodologia capaz de isolar da análise jurídica o estudo de outras disciplinas.

Nesse passo, a norma fundamental surge como o instrumental manejado para resolver
a questão do fundamento de validade das normas jurídicas, independentemente de valoração
sobre o conteúdo da ordem jurídica. Ela não prescreve nenhum conteúdo específico. Desta
forma, qualquer ordem jurídica tornase válida desde que haja uma norma fundamental que dê
suporte a esta validade e, assim, por uma lógica de raciocínio, todas as normas componentes
da ordem serão válidas também.

Para Kelsen, a norma fundamental é aquela que não baseia sua validade sobre outra
norma superior e que não é posta por nenhum órgão competente, ou seja, por nenhuma
autoridade. Ela é uma norma pressuposta, porquanto não é posta nem é ditada por nenhum
legislador. Se precisasse buscar o seu fundamento em outra norma, evidentemente que não
poderia ser fundamental. Essa norma pressuposta, que não pode ser derivada de uma norma
mais elevada, é a norma fundamental. Ela é a que, em última análise, confere validade a todas
as normas que compõem todo o arcabouço jurídico:

Dado que o fundamento de validade de uma norma somente pode ser uma outra
norma, esse pressuposto tem de ser uma norma: não uma norma posta por uma
autoridade jurídica, mas uma norma pressuposta, quer dizer, uma norma que é
pressuposta sempre que o sentido subjetivo dos fatos geradores de normas postas de
conformidade com a Constituição é interpretado como o seu sentido objetivo. Como
essa norma é a norma fundamental de uma ordem jurídica, isto é, de uma ordem que
estatui atos coercivos, a proposição que descreve tal norma, a proposição
fundamental da ordem jurídica estadual em questão, diz: devem ser postos atos de
coerção sob os pressupostos e pela forma que estatuem a primeira Constituição
histórica e as normas estabelecidas em conformidade com ela. (Em forma abreviada:
devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve.). (KELSEN, 2003, p. 224).

Esclarecendo melhor, para a Teoria Pura, o Direito não é nada mais que um conjunto
de normas intrinsecamente vinculadas por relações de validade, sendo o seu suporte
derradeiro também uma norma. Essa norma oferece, em última instância, o fundamento de
validade a todas as normas componentes do conjunto jurídico, razão pela qual se denomina de
norma fundamental, por permitir que o sistema jurídico seja autofundado, extraindo do
próprio sistema sua validade. Nesse sentido, importa perquirir qual a relevância para a Ciência
do Direito positivo da existência da norma fundamental? E por que deve haver uma única
norma fundamental?
A importância do tema da norma fundamental advém do fato de que se não se puder
encontrar nenhuma base para a justificação da validade da norma fundamental, não apenas a
validade dessa norma restará comprometida, mas também a própria validade de todas as
normas da ordem jurídica. Com efeito, todas as normas pertencentes a um ordenamento
jurídico terão validade somente se existir uma norma fundamental reputada válida para
fundamentar tal ordenamento. Assim, a norma fundamental aparece como um pressuposto
indispensável, porquanto sem ela não poderia ser estabelecido o caráter normativo da
Constituição positiva. Demais disso, a norma fundamental evita que o pensamento jurídico
fique lançado em um raciocínio de regresso ao infinito, em que sempre se poderá perguntar
pela norma fundante. Para pôr fim a semelhante atitude, Kelsen concebe a norma fundamental
como um limite último. Com ela, chega-se ao ponto de partida de um processo de criação do
Direito Positivo no qual se pode fixar-se. A função da norma fundamental é igual à dos
axiomas ou postulados das demais ciências, porquanto representa o ponto de partida que
possibilita a construção e demarcação do objeto do conhecimento, tal como o zero faz na
Matemática, ao evitar que a Matemática perca-se num infinito de valores mínimos e condene-
se a si própria como algo ilógico.

Com efeito, desempenha a norma fundamental a função de ente unificador da ordem


jurídica, dando-lhe uma feição sistêmica, desempenhando ainda a segunda e necessária função
de fundamento de validade das normas, o que possibilita, em termos epistemológicos, o
próprio pensamento jurídico científico. Ela constitui a unidade na pluralidade das normas,
pertencentes a uma ordem jurídica. A primeira função responde pela unidade do sistema e a
segunda pelo seu fundamento de validade.

Vejamos quais as características de que se reveste a norma fundamental consoante o


que expõe Kelsen (1987) em sua obra Teoria Pura do Direito:
a) A primeira reporta-se ao seu caráter formalístico. Conforme Kelsen, a norma fundamental
apenas fornece o fundamento de validade e não o conteúdo das normas do sistema jurídico.
Ela é desprovida de qualquer conteúdo ético ou empírico, bastando que a norma se enquadre
na estrutura escalonada das normas para ter caráter jurídico.
b) É uma norma, no sentido de que a norma fundamental é um ato de vontade e não um ato de
conhecimento, uma vez depender de uma ação no mundo empírico e não apenas de um ato de
conhecimento. Kelsen considera que as normas não podem ser reputadas verdadeiras ou
falsas. Sua atitude não cognitivista da norma é induvidosa. Para ele se um enunciado é uma
norma, então provém de um ato de vontade, não sendo suscetível de ser verdadeira ou falsa,
mas válida ou inválida. De tal forma, as proposições com que se expressa a norma
fundamental não se apresentam nem verdadeiras nem falsas.
c) A norma fundamental confere força obrigatória às demais normas do sistema jurídico, ou
seja, a norma é válida no sentido de possuir força obrigatória quando se deve fazer algo, o que
serve para diferenciar a ordem jurídica de outras ordens jurídicas, como, ilustrativamente, a
ordem da moral. Tal característica da norma fundamental é responsável, assim, pela
autonomia do Direito de qualquer outra realidade fática ou normativa; fundamentando sua
validez específica.

Kelsen (2003, p. 37) assim expõe sobre essa nota definidora:

Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens sociais. O momento


coação, isto é, a circunstância de que o ato estatuído pela ordem como conseqüência
de uma situação de fato considerada socialmente prejudicial deve ser executado
mesmo contra a vontade da pessoa atingida e  em caso de resistência  mediante
o emprego da força física, é o critério decisivo.

d) Serve para identificar e dar unidade a todas as normas do sistema. Esta função da norma
fundamental opera na constituição do sistema jurídico, porquanto sendo a norma fundamental
“o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem jurídica,
ela constitui a unidade na pluralidade dessas normas”. Tratase, pois, da identificação das
normas que integram um sistema jurídico positivo.
e) É uma norma pressuposta, significando que a norma fundamental não é o resultado de um
ato de vontade, mas decorre de uma posição epistemológica. É uma norma pressuposta para
poder interpretar certos fatos com conseqüências normativas. Pela necessidade de unificar o
sistema, de impedir o regresso ao infinito nos parâmetros de validade e também pela
necessidade de conferir estatuto de ciência ao direito, a norma fundamental é pressuposta. Do
exposto, exsurge, em nosso espírito, a pergunta relativa à razão pela qual se deve pressupor
que a norma fundamental seja ela mesma válida, ao ponto de, inclusive, legitimar a validade
de todas as normas positivas do sistema jurídico. Nesta quadra, vamos deter-nos nas respostas
oferecidas pelo próprio Kelsen. A primeira, encontrada na Teoria Pura do Direito, faz analogia
da norma fundamental com as categorias do entendimento de Kant e; a segunda, esboçada na
“Teoria Geral das Normas”, remete à “Teoria do Como Se” de Hans Vaihinger.

Vejamos:

a) A norma fundamental e as categorias transcendentais de Kant:

É o próprio Kelsen (2003, p. 225) que nos esclarece:

Na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna


possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de
acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, quer dizer, como norma
objetivamente válida, pode a norma fundamental, na sua descrição pela Ciência
Jurídica – e se é lícito aplicar per analogiam um conceito da teoria do conhecimento de
Kant, ser designada, como a condição lógico-transcendental desta interpretação.
Assim como Kant pergunta: Como é possível uma interpretação, alheia a toda
metafísica, dos fatos dados aos nossos sentidos nas leis naturais formuladas pela
ciência da natureza, a Teoria Pura do Direito pergunta: Como é possível uma
interpretação, não reconduzível a autoridade metajurídicas, como Deus ou a
natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas
objetivamente válidas, descritíveis em proposições jurídicas? A resposta
epistemológica (teorético gnoseológica) da Teoria Pura do Direito é: sob a condição
de pressupormos a norma fundamental: devemos conduzir-nos como a Constituição
prescreve, quer dizer, de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade
constituinte, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição.

Em consonância com a formulação de Kant, enuncia Kelsen através da norma


fundamental que a proposição basilar do conhecimento jurídico–científico é um juízo
hipotético:

[...], a teoria pura recusa-se a ser uma metafísica do Direito. Conseqüentemente, ela
procura a base do Direito, isto é, o fundamento da sua validade, não num princípio
metajurídico, mas numa hipótese jurídica, isto é, numa norma fundamental a ser
estabelecida por meio de uma análise lógica de pensamento jurídico efetivo.
(KELSEN, 2000, p. XXIX-XXX).
Destarte, pode-se licitamente deduzir do pensamento kelseniano que sendo
pressuposta uma norma fundamental a uma só vez é possível: a) dar unidade a um aglomerado
de normas que até então era considerado de modo fragmentário, o que poderia comprometer a
certeza e a segurança jurídicas; b) julgar a validade dessas normas, ou seja, existe a
possibilidade de interpretação de certos sentidos subjetivos de atos de vontade, como sendo
também seus sentidos objetivos; c) conferir um estatuto de cientificidade ao Direito, ou seja,
legitimar epistemologicamente o objeto do conhecimento científico do Direito.

Resumindo: a concepção de uma norma fundamental é que confere a coerência


necessária a todo o sistema jurídico-normativo, constituindo-se em hipótese cuja validade é
pressuposta para que todo o sistema possua validade. Em conclusão: como a teoria da norma
fundamental corresponde a um juízo hipotético, tem-se que um sistema de normas poderá ser
considerado válido somente por alguém que aceite a validade de sua norma fundamental, uma
vez que se a norma fundamental não é uma norma jurídica positiva é algo que o jurista aceita
com base no ato de escolha voluntária. Isto contradiz o papel meramente descritivo defendido
por Kelsen para a Ciência do Direito, porquanto estar-se-ia admitindo que o objeto do
conhecimento, ou seja, a norma fundamental, seja criada pelo Cientista do Direito;
contrariando assim o papel reservado a este de apenas descrevê-lo. De igual se estaria
admitindo a possibilidade de a norma fundamental, como ato puro de criação, ser
reconduzível a autoridades metajurídicas, podendo ter sido posta, ilustrativamente, por Deus,
pela Natureza ou pelo Contrato Social. E mais, o Cientista do Direito poderá fazê-lo por
quaisquer razões, inclusive de ordem ideológica, política, econômica, etc, uma vez que a
norma fundamental por ser uma hipótese permite várias compreensões; podendo o pensador
pressupor qualquer norma como a primeira.

Daí a constatação de Gomes (2004, p. 269):

De fato, a norma fundamental é norma hipotética e depende, portanto, da vontade


daquele que tem o direito como objeto do conhecimento. As categorias
transcendentais do conhecimento de Kant, ao contrário, são necessárias para explicar
a possibilidade da ciência, independentemente da vontade. Enquanto a norma
fundamental é um conceito geral obtido a partir do material empírico, as categorias
do conhecimento em Kant não são deduzidas do material empírico, mas, ao
contrário, são dadas a priori.

Ao lume do exposto, pode-se aduzir que a concepção da norma fundamental não só


não teria formulado uma Teoria Pura isenta de todo elemento ideológico ou político, como
também não teria logrado obter sucesso em explicar a própria norma fundamental. Em outras
palavras, a ambição de Kelsen de que o Direito fosse autofundado não se teria concretizado
conforme projetado no prefácio à primeira edição de sua obra fundamental, “Teoria Pura do
Direito”:

Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é,
purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural,
uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade
específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a
Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em
raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do
espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do
Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do
Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a
ciência: objetividade e exatidão. (KELSEN, 2004, p. 251).

b) A norma fundamental como ficção:


Em obra póstuma denominada de “Teoria Geral das Normas”, publicada em 1979, Kelsen
empreendeu completa reformulação de sua concepção acerca da natureza da norma
fundamental, muito embora esta continue subsistindo como o fundamento de validade da
ordem jurídica. Ele percebeu, segundo Gomes (2004, p. 251), que: “se a norma fundamental é
meramente pensada, não pode ser o sentido de um ato de vontade, mas apenas o sentido de
um ato de pensamento.” Percebe-se assim que, sendo a norma fundamental fruto de um ato de
vontade, alguém pode ser levado a concluir que a Ciência do Direito cria a norma
fundamental, o que se opõe a seu papel meramente descritivo. Tratou Kelsen de justificar ou
legitimar a eficácia ou a imposição coativa do Direito com a ficção, porquanto, se não se
fingir a existência da norma fundamental, nos limitaremos unicamente à descrição de fatos ou
relações de poder, sem obter a distinção entre o ser e o dever ser, a separação entre o fático e o
normativo. Passou então a adotar a solução da norma fictícia, concebendo a norma
fundamental como fruto de um puro ato de pensamento, que não seria criada pelo cientista
jurídico, mas por uma autoridade superior ficticiamente suposta. No trecho abaixo,
reconheceu claramente que havia laborado em erro quando concebeu a norma fundamental
como hipótese, quando sempre deveria tê-la concebido como fruto da ficção no sentido
desenvolvido por Hans Vaihinger (1852 – 1933):

Segundo Vaihinger, Die Philosophie des Als-Ob, uma ficção é um recurso do


pensamento, do qual se serve, se não se pode alcançar o fim do pensamento do
material existente. O fim do pensamento da norma fundamental é: o fundamento de
validade das normas instituintes de uma ordem jurídica ou moral positiva, é a
interpretação do sentido subjetivo dos atos ponentes dessas normas como de seu
sentido objetivo: isto significa, porém, como normas válidas, e dos respectivos atos
como atos ponentes de normas. Este fim é atingível apenas pela via de uma ficção.
Por conseguinte, é de se observar que a norma fundamental, no sentido da
vaihingeriana filosofia do “Como-Se” não é hipótese – como eu mesmo,
acidentalmente, a qualifiquei – e sim uma ficção que se distingue de uma hipótese
pelo fato de que é acompanhada pela consciência ou, então, deve ser acompanhada,
porque a ela não corresponde à realidade. (KELSEN, 1986, p. 329).

Desse modo, vê-se que Kelsen passa a adotar novo entendimento segundo o qual a
norma fundamental, como ficção, não é nada mais do que um artifício de que se lança mão
quando não se pode alcançar o fim do pensamento com o material existente. Para o autor, a
norma fundamental é uma ficção e não mais uma hipótese, como anteriormente entendida,
visto que se assim considerada estar-se-ia admitindo a hipótese de ela ter sido posta por um
ato de vontade; contrariando a função da Ciência do Direito que é de apenas descrever o seu
objeto: o direito.

Com esse novo enfoque, passa a aceitar que a Ciência Jurídica se vale da ficção para
pressupor a norma fundamental. Como ficção, a norma pressupõe uma autoridade superior
que a estabelece, embora se saiba de antemão que esta autoridade não existe.

Nesse momento, pode-se dizer que, concebendo a norma fundamental como ficção,
está abandonando Kelsen toda a objetividade pretendida à estrutura do Direito, porquanto já
não há e nem pode haver concordância entre a norma fundamental e a realidade jurídica. No
uso do artifício da ficção, não há mais preocupação alguma em eliminar contradições, mas ao
reverso a ficção encarna em si mesma contradições lógicas. Com isso, resta inviável o projeto
kelseniano de ser a norma fundamental essencialmente e objetivamente algo exclusivamente
jurídico e imunizado contra qualquer tipo de elemento ideológico ou político. Nesse sentido
último de ficção, a norma fundamental poderá ser entendida – nada impede – inclusive como
a própria idéia de justiça do jusnaturalismo, já que a norma fundamental, a exemplo do valor
justiça, também se situa fora do Direito posto. Assim, resta claro que Kelsen não se limitou a
descrever o ordenamento jurídico, mas através da ficção acaba construindo um conceito do
Direito Positivo mítico e irreal. Tal como na aceitação da norma fundamental como hipótese,
na admissão da norma fundamental como ficção estaria igualmente a Ciência saindo de sua
função, posto não ser seu papel criar ficções, mas somente descrever normas. Permanece,
pois, a aporia em Kelsen, porquanto, apesar da pretensão racionalista de pureza metódica,
vislumbra-se um certo grau de metafísica na sua construção teórica da norma fundamental.
Afinal a Ciência Jurídica tem como função o conhecimento do Direito. A criação de normas
jurídicas está reservada aos órgãos especialmente competentes para tal fim. Kelsen, no
entanto, persevera em aduzir que a norma fundamental é uma pressuposição. O problema
remanesce pendente, porquanto não é papel da Ciência Jurídica pressupor uma norma, ou
melhor formulando, não é função da Ciência Jurídica criar presuposições, mas apenas
descrever normas, conforme sentença Kelseniana.

5.6 A estrutura escalonada da ordem jurídica

A Teoria Pura do Direito não se resume à teoria da norma fundamental. É sabido que
um ordenamento jurídico não se apresenta como um conjunto de normas justapostas umas as
outras, mas como um conjunto de normas vinculadas por um mesmo fundamento de validade.
Assim, as normas estão vinculadas à norma fundamental de uma maneira sistêmica, de forma
que guardam entre elas uma relação. Este vínculo decorre de que uma norma dá validade à
outra que, por sua vez, retira sua validade de uma outra norma, até que no ápice nos
deparamos com a norma fundamental. Nesse ponto, Kelsen (1986), conforme sobredito
alhures, adota, em seu sistema como componente essencial da teoria pura do direito, a tese
desenvolvida por Adolf Merkl do escalonamento da ordem jurídica.

Diz Kelsen (1986, p. 224):

As normas de uma ordem Jurídica cujo fundamento de validade comum é esta norma
fundamental não são – como o mostra a recondução à norma fundamental
anteriormente descrita – um complexo de normas válidas colocadas umas ao lado
das outras, mas uma construção escalonada de normas supra e infra-ordenadas umas
das outras.

Desta maneira, nota-se que uma norma pode estar em relação de inferioridade,
igualdade ou de superioridade em face das demais. Assim, o ordenamento jurídico se concebe
não como um simples agregado de normas que regulam o comportamento humano, mas como
um conjunto sistemático e orgânico de normas. No ápice, se encontra a Constituição como Lei
Maior e, à medida que se vai descendo, as leis complementares, as leis ordinárias, os decretos,
etc, até ubicar na base da pirâmide normativa, na qual se encontram as normas individuais.
Mais acima, inclusive da primeira Constituição histórica se encontra – já fora da
própria pirâmide normativa, como norma pressuposta e hipótese lógicotranscendental −
sobrepairando à constituição no sentido positivo, a denominada norma fundamental
kelseniana. Tratar-se-ia de uma norma não posta, pensada, fruto de um ato intelectual e não de
um ato de vontade.

Todas as normas da pirâmide estarão unidas entre si pelo conceito de validade, que
cada norma recebe da superior. A validade consiste assim na vinculação de uma norma
jurídica ao ordenamento jurídico em virtude de se ajustar aos critérios formais desse
ordenamento. Trata-se então de que cada norma tenha sido produzida pelo sujeito ou órgão
competente e, em virtude do procedimento previsto na norma imediatamente superior, e
assim, de grau em grau, até ubicar na norma fundamental, não-histórica, mas pressuposta. A
esta validade meramente formal do Direito corresponde, como já reiteramos alhures, uma
concepção do Direito como sistema dinâmico, em face da concepção jusnaturalista da
validade não formal, mas material, vinculada com o conteúdo do particular ao geral, própria
dos sistemas normativos estáticos.

De tal arte, a validade de cada norma jurídica se sustenta na validade da norma jurídica
superior. Mas, cumpre perquirir: em que se apóia, por sua vez, a validade da norma
fundamental?

Neste passo, para se manter com uma teoria positivista e realista, diz-se que se apóia
não em uma norma, que não mais se poderá supor, mas em um fato, aquele que faz com que o
ordenamento jurídico seja efetivamente observado e aplicado em seu conjunto. A razão está
em que um ordenamento jurídico, como um todo, é válido à proporção que é eficaz, ainda que
uma de suas normas, singularmente, não tenha que ser por sua vez eficaz. De tal forma que a
eficácia do ordenamento jurídico global é assim condição necessária de validade de cada uma
das normas que o integram. Mesmo que a teoria kelseniana não acolha a idéia, a relação
mantida entre a validade e a eficácia se poderá equiparar à relação que existe entre Direito e
poder, porquanto o Direito (a validade) não pode existir sem o poder (a eficácia). Relação esta
que se nos afigura ser do tipo dialético, não se separando tão radicalmente, como defende
Kelsen, o plano da eficácia (do ser) do plano da validade (do dever ser).
A questão da justiça em Kelsen assume especial relevo, tendo em conta a firme
posição do autor em fazer o Direito Positivo valer independentemente do grau de justiça ou
injustiça contido em seu conteúdo. Ele afirma que a validade das normas do Direito Positivo
não depende da relação estabelecida com a norma de justiça. O direito positivo vale de per si,
ou seja, somente da norma positivada é extraída a sua validade subjetiva. Se a norma
ingressou sem vícios no sistema jurídico, daí ela retirará sua validade subjetiva. Despiciendo
invocar sua adequação a um ideal de justiça.

Para o jusfilósofo não se pode extrair de um ideal, como o de justiça, que se arvora em
absoluto – mas que para ele não o é – uma norma do dever-ser. O mundo do ser, de onde se
pode conceber um valor absoluto não se comunica com o mundo do dever-ser. Diz ele:

Não se pode deduzir de um conceito uma norma, como pretende erroneamente a


chamada jurisprudência dos conceitos. Uma norma pode ser deduzida apenas de
outra norma, um dever-ser pode ser derivado apenas de um dever-ser. (KELSEN,
1997, p. 13).

De tudo isso, percebe-se que, em face da ciência positiva, predomina uma postura
relativista, porquanto para Kelsen a Ciência Jurídica:

Não tem de decidir o que é justo, isto é, prescrever como devemos tratar os seres
humanos, mas descrever aquilo que de fato é valorado como justo, sem se identificar
a si própria com um destes juízos de valor. (KELSEN, 1998, p. 16).

De sorte que a validade do Direito não subordinada em um ideal exterior, do mundo do


ser, encarta a idéia da relatividade do valor, do sentimento de justiça. Nada se erige de forma
absoluta, com a capacidade de transpor o mundo sensível do ser e penetrar no mundo
normativo do dever-ser.

Kelsen (1998, p. 17-18) é taxativo:

Se no problema de justiça partirmos de um ponto de vista racionalcientífico, não


metafísico e reconhecermos que há muitos ideais de justiça diferentes um dos outros
e contraditórios entre si, nenhum dos quais exclui a possibilidade de um outro, então
nos será lícito conferir uma validade relativa aos valores de justiça constituídos
através destes ideais.

Como visto, ao contrário da teoria idealista, de fundo jusnaturalista, a concepção do


positivismo jurídico descreve a validade da norma jurídica independentemente do ideal de
justiça. A norma positiva vale enquanto integrante do ordenamento jurídico, extraindo sua
validade da estrutura das normas, conforme uma lógica formal, sem qualquer dependência ou
vinculação a uma autoridade transcendente.

Nesse sentido, ao vincular a teoria positivista, a uma teoria realista, Kelsen ampara-se
no relativismo axiológico, na inexistência de valor absoluto e na variação das normas de
justiça reputadas como válidas. Nas palavras do jusfilósofo:

Uma teoria do direito positivista, isto é, realista, não afirma – e isto é importante
acentuar sempre – que não haja nenhuma justiça, mas que de fato se pressupõem
muitas normas de justiça, diferentes umas das outras e possivelmente contraditórias
entre si. (KELSEN, 1998, p. 70).

Para Kelsen a única coisa que se pode afirmar é que um Direito Positivo foi elaborado
em consonância com uma determinada norma de justiça originária do direito natural. Não se
pode fazer daí um juízo de valor sobre a vantagem ou desvantagem de determinada ordem
positiva.

5.7 A validade e a eficácia da norma jurídica e do ordenamento jurídico

A questão da validade da norma jurídica está na teoria kelseniana relacionada com a


teoria da norma fundamental de vez que, pertencendo as normas jurídicas a um sistema
dinâmico, o seu conteúdo nada diz com a questão da validade de vez que a regra jurídica vale
porque é criada de uma forma determinada, forma esta fixada por uma norma fundamental
pressuposta.

Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer,
porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico, do de
uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma
determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental
pressuposta.

Segundo o pensamento kelseniano, uma norma só pode fundamentar-se em uma outra


norma, entretanto essa série de imputação precisa ter um início e um fim. O ponto de partida
consiste justamente na norma fundamental, sendo ela o fundamento de validade do sistema
jurídico. Esta norma fundamental funciona como um artifício lógico que é invocado por ser
uma conseqüência da necessidade que tem um comando subjetivo de escalonar-se em uma
norma considerada objetiva para ser considerado válido, uma vez que rejeita Kelsen
fundamentar o comando em uma circunstância supra-ordenada. Segundo o jusfilósofo:

A Teoria Pura do Direito pergunta: como é possível uma interpretação, não


reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido
subjetivo de certos, fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente
válidas descritíveis em proposições jurídicas? A resposta epistemológica (teórico-
gnoseológica) da Teoria Pura do Direito é sob a condição de pressupormos a norma
fundamental: devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve, quer dizer, de
harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade constituinte, de harmonia com
as prescrições do autor da Constituição. (KELSEN, 2003, p.225).

Stanley L. Paulson expõe esta questão em Kelsen:

Segundo o seu ponto de vista, a validade de uma norma jurídica se estabelece a partir
de uma referência à norma de nível superior adequada, cuja própria validade se
estabelece, sucessivamente, com relação à correspondente norma de nível superior a
ela e assim sucessivamente, até que se alcance a norma de nível mais alto no sistema
jurídico, a nível de constituição. Mais além do nível constitucional, não é possível
haver mais referências. Todavia, uma referência a um nível mais alto de normas de
Direito positivo se exclui “ex hypothesi”. E uma referência a algum tipo de fato está
impedida pela forte e firme distinção entre “ser” e “dever-ser” como reflexo do
dualismo metodológico. Uma terceira via de referência, a da moral, está também
excluída pela tese da separação. Como se estabelece, então, a validade das normas
no nível constitucional? A falta de qualquer outra referência se assume a sua
validade. E a assunção toma a forma da norma fundamental. (DINIZ, 2000, p. 194).

O que importa para a Ciência do Direito são as normas jurídicas positivas, sendo que
são válidas se inseridas dentro do ordenamento de um sistema positivo, independentemente de
seu conteúdo. No sistema normativo do tipo dinâmico, a norma fundamental fornece o
fundamento de validade das normas da ordem jurídica, sendo-lhe estranha a questão do
conteúdo das normas. O fundamento de validade é simplesmente formal, não vinculando o
conteúdo da ordem jurídica.

Como afirma o próprio Kelsen (2003, p. 221):

Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer,
porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do de uma
norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada –
em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta.
Por isso, e somente por isso, pertence ela a ordem jurídica, cujas normas são criadas
de conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo
pode ser direito.

A questão da validade do direito na doutrina de Kelsen é marcada por critérios


eminentemente formais, sendo que é a norma fundamental - que se concretiza através da
Constituição - que dá suporte de validade ao ordenamento jurídico globalmente considerado e
às normas jurídicas individuais. A ordem jurídica, desta forma, se valida por si mesma, como
explica Kelsen (2003, p. 222):

Se se pergunta pelo fundamento de validade de uma norma pertencente à uma


determinada ordem jurídica, a resposta apenas pode consistir na recondução à norma
fundamental dessa ordem jurídica, quer dizer: na afirmação de que esta norma foi
produzida de acordo com a norma fundamental.

Consoante reiteradamente esclarecido, o papel da Ciência do Direito em Kelsen se


limita a descrever o sistema de normas postas no ordenamento positivo mediante os
enunciados das proposições jurídicas, porém é a norma fundamental que possibilita o
conhecimento cientifico-jurídico, conferindo-lhe estatuto de verdadeira ciência. O autor
afirma ser ela responsável pela instauração do fato fundamental da criação jurídica, podendo
ser designada como responsável pela Constituição no sentido lógico-jurídico.

Nesse ponto, cabe mencionar a relação entre validade e eficácia da norma jurídica. De
acordo com Kelsen, para a existência da norma não basta o atendimento aos critérios formais
de validade da norma, porquanto um mínimo de eficácia se faz necessário: “Uma ordem
jurídica é considerada válida quando as suas normas são em uma consideração global,
eficazes, quer dizer, são de fato Losano (1993), conhecido estudioso do pensamento
kelseniano, surpreende nesse momento uma aporia que nos revela um Kelsen contraditório no
tocante à defesa do dualismo intransitável e intransigente entre as categorias do “ser” e do
“dever”. Kelsen, segundo Losano, teve que admitir esta ligação com a realidade, quando
percebeu que uma norma jurídica perde validade quando deixa de ser eficaz. Nesse ponto faz-
se a vinculação com a realidade, com o mundo do ser, negado por Kelsen em sua pureza
científica.

Conforme as palavras de Kelsen (apud LOSANO, 1993, p. XIX):

Depois de construir essa estrutura hierárquica para manter a distinção entre o mundo
do “ser” e o do “dever-ser”, a Teoria Pura do Direito encontra-se diante de uma
dificuldade: a coerência com o seu pressuposto metodológico de pureza é
inconciliável com a realidade jurídica que ela quer descrever. Realmente, para que
uma norma jurídica seja válida, é preciso que ela também seja eficaz: ou seja, não
basta o respeito a certas formalidades no estabelecimento da norma, mas é preciso
que, de fato, a norma assim estabelecida seja também efetivamente aplicada. Kelsen
é obrigado a admitir que “tanto uma ordenação jurídica como um todo, quanto uma
norma jurídica isolada perdem a validade quando deixam de ser eficazes.” Em outras
palavras, para responder a questão em torno da qual constrói toda a sua doutrina (ou
seja, quais são os pressupostos formais para a validade de uma norma jurídica), Hans
Kelsen precisa renunciar à rigorosa separação entre mundo natural e mundo
normativo, entre “ser” e “dever-ser”.

De igual sorte, critica Larenz (1997) a teoria pregada por Kelsen, ao observar que ao
fim e ao cabo a relação entre eficácia e validade implica a passagem do “ser” ao “dever-ser’.
Entretanto, diga-se, a bem da verdade, que Kelsen, na “Teoria Pura do Direito”, não pregou a
separação absoluta entre “ser” e “dever-ser”, conforme se vê do seguinte trecho: “Este
dualismo de ser e dever-ser não significa que ser e dever-ser se coloquem um ao lado do outro
sem qualquer relação” (KELSEN, 2003, p. 224).

Nada obstante remanesce a aporia tendo em vista ter a “Teoria Pura do Direito” por
objeto a normatividade e não a realidade. É que, conforme admitido pelo próprio Kelsen, a
Teoria Pura não pode deixar de lado a realidade (o “ser”) no momento em que deve definir o
fundamento de validade da regra jurídica (o “deverser”).

Necessitou, portanto, o jusfilósofo fazer a normatividade do direito dependente da


eficácia em detrimento de um sistema meramente formal de direito. O que não deixa de ser
uma concessão ao conceito de eficácia, já que a noção de validade na obra de Kelsen é
baseada no princípio de uma racionalidade jurídica meramente formal, ou seja, que prescinde
de uma base material.

Ferraz Júnior (1995, p. 224) vislumbra também dificuldades na formulação kelseniana:

Para encontrar a validade das normas, diz ele, é preciso recorrer a uma hierarquia de
normas, o que conduz Kelsen a uma norma básica – grundnorm – acima da própria
constituição, cuja única função é outorgarlhe validade, validando, assim, todo o
conjunto. A norma básica ou norma fundamental é mera hipótese (do pensamento
dogmático), desprovida de qualquer conteúdo ético ou empírico. Uma norma é
válida no interior de um ordenamento válido, cuja validade repousa no postulado de
que esta ordem possui validade. A explicação é idealista e formal: o ordenamento é
válido porque teoricamente o postulamos como válido.

Como então conciliar a afirmação contida na “Teoria Pura do Direito” de que a


eficácia também constitui condição de validade das normas jurídicas global e singularmente
considerada, com a tese fundamental kelseniana que reivindica, através do princípio da
pureza, que o método e o objeto da Ciência Jurídica devem ter como postulado essencial e
exclusivo o enfoque normativista, em que Direito e norma se equivalem? Não se pode
esquecer que o postulado fundamental da Teoria Pura do Direito reza que é necessário separar
radicalmente o ser (eficácia) do dever-ser (validade).

Ora, se a eficácia (ser) é uma condição de validade (dever-ser) e para que uma norma
possa ser considerada como válida é preciso que seja efetiva, resulta a inconsistência da
metodologia kelseniana que tem que admitir o ser no dever-ser, donde não ser autônoma a
validade, precisando da eficácia. A esfera autônoma da validade necessita da eficácia e esta é
uma condição daquela.

Não convence, a nosso ver, a argumentação de que a eficácia é mera condição de


validade da norma, não podendo confundir-se uma condição com aquilo que condiciona.
Kelsen (2003, p. 236) ilustra a argumentação dizendo assim:

Assim, um homem, para viver, tem de nascer: mas, para permanecer com vida,
outras condições tem ainda de ser preenchidas, v.g., tem de receber alimento. Se esta
condição não é satisfeita, perde a vida. A vida, porém, não se identifica com o fato
de nascer nem com o fato de receber alimento.

Ora, se a condição, com efeito, não se identifica com o que é condicionado, o fato é
que sem a condição não existe o que condicionar, logo, como reconhecido pelo próprio autor,
se a condição não é satisfeita nada subsiste, tudo estará perdido. De forma que pode-se dizer,
sem medo de errar, se a norma jurídica deixar de ser aplicada e cumprida, perdendo a sua
eficácia, evidentemente que a regra deixará igualmente de ter validade. Ou, em outras
palavras: se uma norma nunca é observada, nem aplicada, deixará de ser considera válida. De
resto, impende não olvidar que a validade da norma jurídica em Kelsen é de ordem
meramente formal, de maneira que o fundamento de validade da norma não pode transigir
com critérios formalísticos, nem permitir mesclagem de extração substancial. De fato – diz
Kelsen (2003, p. 236):

De algo ser não pode seguir-se que algo deve ser; assim como do fato de
algo dever ser não pode seguir que algo é. O fundamento de validade de
uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma.

De efeito, a tese de que o fundamento de validade de uma norma nunca pode ser um
fato (o ser) contradiz a tese de que a norma para ser válida (o deverser) deva ser eficaz.
Conforme nos lembra Afonso (1984, p. 268):

Na teoria de Kelsen não há espaço para se indagar se a validade da ordem jurídica é


devida ao seu valor intrínseco, à justiça de seu conteúdo, se é devida ao consenso da
comunidade social à que as normas jurídicas se dirigem, se decorre da harmonia
entre os valores contidos nas normas jurídicas e os valores acolhidos pela
comunidade social.

Se eficácia é fato e se validade é regra lógica de competência, cumpre indagar: Como


pode uma Teoria do Direito (que se pretende pura) invocar fatos sociais para a sua validade,
senão através de uma renúncia expressa à rigorosa separação entre o mundo natural e o
mundo normativo, entre ser e dever-ser? Ross vislumbra essa dificuldade em querer a teoria
Kelseniana que o conhecimento do direito não vise a descrição de algo fático, mas somente
apreensão do que é válido:

Finalmente, caso se rejeite radicalmente toda censura ética, como faz Kelsen, e se
aceite simplesmente como direito a ordem que tem efetividade, a validade específica
como categoria formal se transforma em algo supérfluo. Kelsen faz uma tentativa de
determinar a natureza do direito positivo prescindindo da realidade psicológica e
social. A impossibilidade disso se patenteia ao chegarmos à hipótese inicial (norma
básica ou Grundnorm). Enquanto permanecermos nos degraus inferiores do
ordenamento jurídico, será possível retardar o problema da validade da norma nos
remetendo a uma norma superior. Entretanto, este procedimento não pode ser
empregado ao chegarmos à hipótese inicial. A essa altura a questão da relação da
norma com a realidade se torna inevitavelmente urgente. Se se pretende que o
sistema faça sentido, está claro que a hipótese inicial não poderá ser selecionada
arbitrariamente. O próprio Kelsen afirma que esta tem que ser escolhida de tal modo
que esbanja o sistema que se acha efetivamente em vigor. Mas então fica claro que,
na realidade, a efetividade é o critério do direito positivo; e que a hipótese inicial,
uma vez que sabemos que é direito positivo, apenas cumpre a função de outorgar-lhe
validade que é exigida pela interpretação metafísica da consciência jurídica, embora
ninguém saiba no que consiste tal validade. A hipótese inicial é a fonte última de que
emana a validade, que se estende através de todo o sistema. Poderse-ia passar tudo
isso por alto como uma construção supérflua mas inócua se dela não resultasse o
fechamento dos olhos a uma rigorosa análise do critério de afetividade. Ao fazer da
validade uma relação internormativa (a validade de uma norma deriva da validade de
outra), Kelsen se impediu, desde o começo, de lidar com o cerne do problema da
vigência do direito: a relação entre o conteúdo ideal normativo e a realidade social.
(ROSS, 2003, p. 96-97).

5.8 A hermenêutica kelseniana

Em que pese às críticas dirigidas contra Hans Kelsen, principalmente em face da sua
pretensão metodológica de pureza da Ciência do Direito, não há negar que sua teoria da
interpretação descortinou verdades até então encobertas pela teoria tradicional da
interpretação, mostrando Kelsen que a interpretação e aplicação de uma norma a um caso
concreto não se resume a um mero processo de dedução e subsunção, próprios de um
silogismo lógico, nesse ponto revelando-se bastante avançada a sua formulação.

Segundo o jusfilósofo , em todos os casos de indeterminação, intencional ou não, da


norma, o sistema jurídico oferece várias possibilidades de aplicação, pelo que o Direito a
aplicar equipara-se a uma moldura dentro da qual cabem múltiplas possibilidades de
intervenção:

Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto


a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da
moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento
das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a
interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução
como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida
em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas
uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do
tribunal, especialmente. (KELSEN, 2003, p. 390).

Este modo de encarar a interpretação está em consonância com a sua teoria da


estrutura escalonada da ordem jurídica. Nesta teoria, os vários escalões que compõem a ordem
jurídica possuem entre si uma relação de determinação, no sentido de que a norma do escalão
superior determina o procedimento e o conteúdo da norma do escalão inferior. A relação entre
a norma superior e a inferior revela-se na medida em que a norma superior determina o
processo de criação da norma inferior, mas às vezes também o conteúdo da norma a
estabelecer ou do ato de execução a implementar. Essa relação de determinação entre uma
norma de um escalão superior e uma norma do escalão inferior, nunca, porém, é completa,
restando uma margem de livre apreciação, porquanto:

A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os
aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora
maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior
tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o
caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem a
mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma
pluralidade de determinações a fazer. (KELSEN,, 2003, p. 388).

A indeterminação do ato jurídico poderá ser intencional ou ser conseqüência não-


intencional da própria constituição da norma jurídica a ser aplicada. Em qualquer dos dois
casos de indeterminação, é o intérprete do direito, através de um ato de vontade, que escolherá
qual a solução que deverá ser adotada e que converter-se-á, a posteriori, em direito positivado.
A princípio, haverá um ato de inteligência prévio para conhecer a moldura com as suas
variadas possibilidades de ação. Em seguida, já agora, com interferência de um ato volitivo, o
intérprete escolherá qual das vias deverá seguir na aplicação do Direito. Cabe assim a quem
for aplicar a norma decidir-se, através de um ato de vontade, por uma das múltiplas
possibilidades que existem dentro da moldura. A interpretação, por si só, como ato de
conhecimento consiste apenas em revelar as várias significações possíveis, não podendo nos
dizer qual delas é a escorreita. Semelhante forma de considerar a interpretação difere
enormemente da hermenêutica tradicional, uma vez que esta afirma que o intérprete, através
de um ato de inteligência, desentranha o significado correto da norma, que é único. O labor
hermenêutico se limita a descobrir, descrever e desvelar o significado entranhado na lei, para
posterior subsunção aos casos concretos. Imagina a hermenêutica tradicional poder, através da
interpretação, encontrar uma única decisão correta e que a escolha certa corresponde ao
sentido do Direito Positivo. Ao reverso, a teoria de interpretação kelseniana se caracteriza pela
afirmação da multiplicidade de significados contidos em cada norma jurídica e pela
constatação da função criadora da interpretação jurídica. Inacolhe-se, desta sorte, a
possibilidade científica de se encontrar um sentido unívoco para a norma interpretada,
conforme se observa do seguinte trecho:

A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de


que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só
interpretação: a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a
jurisprudência tradicional para consolidar o ideal de segurança jurídica. (KELSEN,
2003, p. 396).

A Ciência do Direito, portanto, só pode indicar os significados possíveis de uma norma


jurídica, cabendo ao aplicador da norma escolher, mediante considerações jurídico-políticas,
qual das interpretações prefere.

A teoria da interpretação é ainda dividida em função de quem a realiza. De um lado, a


que é feita pelos órgãos incumbidos de aplicar o Direito, ilustrativamente, o Legislativo, o
Executivo ou o Judiciário, chamada interpretação autêntica; de outro, a que é levado a efeito
na esfera privada, seja pelo cidadão comum ou através da doutrina, denominada não-
autêntica.
Na interpretação não-autêntica, também conhecida como científica, o intérprete se
limita a enumerar os possíveis sentidos contidos na norma jurídica, ao passo que, na
interpretação autêntica, ele cria o direito por estar autorizado a tanto por ser o órgão
competente. Para ser Cientista do Direito, o intérprete tem apenas que expor todos os
significados possíveis de uma norma jurídica, mesmo aqueles sentidos politicamente
indesejáveis sem adotar, contudo, nenhuma decisão entre as várias possibilidades elencadas.

Com este entendimento, Kelsen delimita o papel do Cientista do Direito que, como
estudioso e não aplicador de direitos, deve-se limitar a interpretar objetivamente a norma
através de um ato de intelecção racional:

A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as


possíveis significações de uma norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto,
ela não pode tomar qualquer decisão entre as possibilidades, por si mesma,
reveladas, mas tem de deixar tal decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é
competente para aplicar o Direito. (KELSEN, 2003, p. 395-396).

Destarte, na teoria da interpretação kelseniana o Cientista do Direito procede através


de atos meramente cognoscitivos de caráter científico. Deve ele apreciar uma norma, sem se
preocupar com aquela que seria a preferível, porquanto, assim agindo, estaria formulando
juízo de valor e, portanto, não desempenhando atividade científica:

Um advogado que, no interesse do seu constituinte, propõe ao tribunal apenas uma


das várias interpretações possíveis da norma jurídica a aplicar a certo caso, e um
escritor que, num comentário, elege uma interpretação determinada, de entre as
várias interpretações possíveis, como a única “acertada”, não realizam uma função
jurídico-científica mas uma função jurídico - política (de política jurídica). Eles
procuram exercer influência sobre a criação do Direito. Isto não lhes pode,
evidentemente, ser proibido. Mas não o podem fazer em nome da Ciência Jurídica,
como freqüentemente fazem. (KELSEN, 2003, p. 396).

Entretanto, é bastante questionável este entendimento do autor, visto ser praticamente


impossível exigir do ser humano que ele renuncie a um envolvimento subjetivo quando do
exame das possíveis interpretações de uma norma, desligandose assim do contexto social ao
seu derredor, simplesmente para poder desempenhar uma atividade de caráter jurídico–
científico. Em verdade, os juristas não renunciam à tarefa de propor soluções jurídicas para
determinados casos, nem tampouco podem prescindir de juízos valorativos que o modelo
positivista de ciência jurídica kelseniana pretende ver banido.
A determinação dos materiais jurídicos relevantes para a solução de determinado tipo
de caso, a atribuição de certo significado a tais materiais, a superação de problemas de
indeterminação semântica, lacunas e contradições, a nosso ver, já estão contaminadas por
valorações que os juristas fazem, ainda que não sejam explicitadas e se pretenda ocultar com
um discurso meramente descritivo ou de caráter somente lógico-conceitual.

Em nosso modo de ver, os atos intelectivos estão intrinsecamente impregnados da


ideologia do intérprete, ideologia aqui no sentido figurado de conjunto de idéias, de crenças e
valores que integra a cultura de todo indivíduo, ou seja, a sua mundividência, e que o
acompanha desde o instante em que vem ao mundo até o momento de sua morte.

Guerra Filho (2001, p. 112) reflete semelhante visão:

Entretanto, parece assente na atual filosofia da ciência a impossibilidade de se


depurar totalmente a pesquisa, não só no Direito, mas nas ciências em geral, de
elementos ideológicos e de compromissos políticos e sociais, mesmo que estes
tenham incidência não conscientizada pelo pesquisador, atingindo-se com isso a
“neutralidade axiológica”, preconizada pelo positivismo. Não obstante, e por isso
mesmo, é indeclinável a postura crítica perante a ideologia, que no Direito se
encontra agregada ao próprio objeto, pois a configuração dos institutos jurídicos é
determinada pela visão de mundo ou mundividência (Weltanschauung) subjacente ao
ordenamento jurídico, ou seja, sua “ideologia”, no sentido empregado na obra
pioneira de Destutt de Tracy.

Demais disso, não esqueçamos a difícil exigência formulada por Kelsen para que o
jurista - como Cientista do Direito - se abstenha de valorar o Direito, quando se sabe que esta
é uma ciência social eminentemente pragmática voltada para equação de problemas humanos
concretos.

Kelsen (apud LOSANO, 1993, p. XV) - não sem uma certa ironia - adverte para o
caráter algo fantasioso desse ponto da teoria de Kelsen ao querer desqualificar a atividade da
prática jurídica como não-científica:

Uma vez que o Direito é estatuído por razões operativas e não teóricas, todo o
discurso de Kelsen vale apenas para um setor marginal dele. A diferença no peso da
teoria e da prática do Direito é eloqüentemente qualificável quando se confronta o
magro punhado de filósofos e teóricos do Direito com o gordo continente de juízes,
advogados e consultores jurídicos.

Entretanto, para Kelsen, a Ciência do Direito, como conhecimento de um ordenamento


jurídico não tem por objeto senão o estudo das normas e de seu significado,
independentemente dos efeitos que possam resultar de sua aplicação. Defende o jusfilósofo
que a atividade do intérprete fique limitada a operações formais lógico-dedutivas extraíveis de
um conjunto de normas produzidas pelo Estado com base na norma fundamental. Entretanto,
é fácil ver que não dá para conciliar, como pretende a doutrina kelseniana, uma ciência do tipo
descritiva, meramente enunciativa do seu objeto (a norma) com uma atividade interpretativa
de ordem criativa, sendo assim produtora de normas. De logo se vê a dificuldade em que se
coloca Kelsen, ao querer uma ciência do tipo descritiva, meramente enunciativa do seu objeto
(a norma) e uma teoria da interpretação de ordem criativa conforme exposto na sua “Teoria
Pura do Direito”.

Admitido o entendimento de Kelsen de que o órgão aplicador do Direito ao atribuir à


norma um dos sentidos possíveis da moldura, não realiza ato de conhecimento, mas ato de
vontade, não guiado pela inteligência, tem-se de reputar como não-científica esta operação,
considerando que a validade do ato decisional advém tão-somente do fato de a decisão
emanar de órgão que possui competência para tanto. Disso decorre que o entendimento de
Kelsen sobre a total autonomia e voluntarismo do órgão aplicador do Direito tem como
conseqüência a perda de pretensão de cientificidade de parte do Direito, já que sob esse
enfoque os aplicadores não estariam submetidos a nenhum controle ou verificação, livres que
estão de justificar de forma racional suas decisões.

Perelman chama atenção para as conseqüências contidas nas deficiências da teoria


interpretativa de Kelsen por deixar sem justificação as decisões jurídicas, entregues que são
ao mais puro arbítrio do intérprete e aplicador.

Parece-me que todos os paradoxos da Teoria Pura do Direito, assim como todas as
suas implicações filosóficas, derivam de uma teoria do conhecimento que só dá valor
senão a um saber não controverso, inteiramente fundamentado nos dados da
experiência, e da prova demonstrativa, desprezando totalmente o papel da
argumentação. Com efeito, nem a experiência nem a demonstração lógica permitem
a passagem do ser para o dever-ser, da realidade para o valor, de comportamentos
para normas. Por conseguinte, como toda justificação racional das normas parecem
excluídas na perspectiva kelseniana, estes dependem efetivamente de imperativos
religiosos, de revelações sobrenaturais. As metafísicas racionalistas que buscaram
um fundamento puramente humano para nossas normas e para nossos valores não
são de fato, senão ideologias, que se esforçam em vão para substituir-se ao
fundamento religioso não racional. E, sobre este ponto, é difícil não seguir o nosso
autor [Kelsen]: se nos recusamos a considerar probatórias intuições controversas,
não existe, no campo das normas e dos valores que nos regem a ação, provas
demonstrativas e coesivas. Mas cumprirá, a mingua de prova demonstrativa,
renunciar a justificar mediante uma argumentação, tão convincente quanto o
possível, nossas escolhas e nossas decisões, nossos valores e nossas normas? E
cumprirá, com a ambição de constituir uma ciência e uma Teoria Pura do Direito,
considerar como juridicamente arbitrário tudo quanto não pode ser justificado senão
por meio de uma argumentação assim? (PERELMAN, 1999, p. 476-477).

Como conclusão de tudo o que foi dito, parece-nos lícito deduzir que a atitude
positivista de Kelsen se mostra insuficiente diante dos aspectos múltiplos da realidade, visto
que deixa de fora do seu modelo científico todo um contexto social não enquadrável como
saber científico por se qualificar como irracional. Teríamos então de nos conformar com o
fato de que a prática jurídica, em sua quase totalidade, não serviria para outra coisa se não
para cobrir com um manto de respeitabilidade aquilo que os interesses e paixões impõem pela
força. De resto, a objeção kelseniana de incorporar a sua teoria do Direito Positivo o problema
da justiça deixa sem resposta os desafios concretos com que depara o jurista em seu trato com
a experiência do Direito e, portanto, com os valores.

A esse respeito Siches (apud AZEVEDO, 1998, p. 79) adverte:

Tanto a concepção cartesiana quanto a dos cientistas empíricos – ou ambas reunidas


– mutilam o campo da razão, posto que lhe negam capacidade para tratar dos
domínios em que nem a dedução lógica nem a observação dos fatos podem fornecer-
nos a solução dos problemas. A aceitar-se esta circunscrição da razão, não nos
restaria, nesses domínios, outro recurso exceto o de neles entregar-nos às forças
irracionais, a nossos instintos ou à violência.

Todavia, sem embargo do amplo prestígio de que gozou a “Teoria Pura do Direito”, os
juristas quando têm que dar solução a um caso concreto ao invés de elencar as várias
possibilidades interpretativas da norma jurídica, fazem, na verdade, a opção por defender a
interpretação que lhes seja mais defensável. Entretanto, nesta função, como entende Kelsen,
não exerceriam uma atividade de interpretação científica do Direito Positivo, mas uma função
política similar à que compete ao legislador.

5.9 O problema das lacunas

O pensamento de Kelsen é no sentido de não admitir a diferença entre lacunas da Lei e


do Direito por considerar que o Direito, como objeto de estudo da ciência, deve ser tido como
norma, uma vez que a pesquisa científica do Direito deve se cingir ao estudo da norma
jurídica, sendo irrelevante a conduta dos homens. Na visão de Kelsen, os preceitos de uma
ordem jurídica regulam toda a conduta dos homens, podendo ser positiva ou negativa referida
regulação. No caso positivo, quando a norma preordena uma ação ou uma omissão, ou quando
determina um certo comportamento. A regulação negativa sucede quando o legislador não se
refere de modo específico àquele determinado comportamento, nem para obrigá-lo, nem
tampouco para permiti-lo. Nesse caso, semelhante comportamento resta permitido em um
sentido negativo, sendo a liberdade de conduta uma liberdade conferida pelo ordenamento
jurídico, em conformidade com os limites balizados pelas normas jurídicas.

Para Kelsen, todo e qualquer comportamento sempre estará regulado, inexistindo


condutas juridicamente indiferentes, porquanto tudo aquilo que não estiver proibido restará
conseqüentemente permitido, quer de forma positiva ou negativa, o que afasta a possibilidade
de lacunas. Assim, o Direito, não podendo regular toda a conduta humana, sempre deixará
uma esfera de liberdade de comportamento, sendo esta esfera regulada negativamente.

Afirmava Hans Kelsen ser a questão das lacunas no Direito uma ficção jurídica. Se,
porventura, dada questão não encontrava solução em uma norma do ordenamento jurídico, tal
fato significava que semelhante questão se afigurava despicienda, visto que o sistema jurídico,
por definição, era hermético e completo. Fundando-se na premissa de que “tudo aquilo que
não está proibido, está permitido” (corporificando esta máxima a descrição de uma liberdade
jurídica negativa), Kelsen repelia a idéia de existência de lacuna no Direito. A aplicação do
ordenamento jurídico não ocorreria apenas de forma positiva, mas também, de forma
negativa, neste último caso existindo uma norma secundária implícita nas normas vigentes
que regem todas as situações.

Para ele, toda e qualquer conduta humana restará sempre regulada, donde inexistirem
condutas juridicamente indiferentes, porquanto tudo aquilo que não estiver imposto ou
proibido estará necessariamente facultado, seja positiva, seja negativamente, do que resulta a
impossibilidade de existência de lacunas. Quando, ilustrativamente, o aplicador rejeitava a
demanda sob o pretexto de que não havia regra incidente à espécie na verdade estava
aplicando o Direito vigente, debaixo do postulado de que “tudo aquilo que não está proibido
está permitido”, ou, melhor, estava lançando mão do postulado de que ninguém deve ser
obrigado a adotar certa conduta se esta não está prevista no Direito Positivo. De forma que,
implícito ao sistema, existe uma norma que reza que tudo o que não se encontra proibido, nem
é obrigatório, restará perdido, sendo que essa norma conterá todo e qualquer comportamento
para o qual não haja especificamente uma regra que o autorize ou proíba.

Para o autor, a lacuna era a diferença entre o Direito Positivo e uma ordem reputada
melhor e mais justa. De forma que só há lacuna quando se compara o Direito que é com o
que, na opinião do aplicador, deveria ser. É que, embora exista uma solução no ordenamento
jurídico, tal solução é considerada, sob o ponto de vista axiológico, insatisfatória. A lacuna
consistiria não na ausência de uma solução, mas na falta de uma solução satisfatória, assim
entendida a realização do ideal de justiça adotado pelo intérprete. A assertiva de que o Direito
possui lacunas, para Kelsen não passava de uma afirmação de caráter político-jurídico, uma
vez que tal não significa que o Direito não regulou o fato em questão, mas sim que não o
regulou como deveria ter regulado.

Nesse sentido, para Kelsen os órgãos judiciários somente se deparam com a questão
das lacunas, quando a resolução da demanda não coincide com os seus valores ético-políticos,
nada obstante o Direito Positivo pudesse ser perfeitamente aplicado. Se se dispusesse poderia
o aplicador se ater ao Direito vigente e rejeitar a demanda, valendo-se da máxima geral da
permissão das condutas não proibidas. Não o faz por reputar, sob o ponto de vista ideológico,
desacertada ou insastisfatória a solução prevista no ordenamento jurídico. O que, na verdade,
ocorre é que, sob o pretexto de colmatar a ordem jurídica, o que se faz é eliminar a norma
específica e substituí-la por uma outra, criando-se, na realidade, um Direito novo,
estabelecido livremente pelo convencimento do aplicador contra norma por ele tida por
injusta. Em que pese não admitir a existência de qualquer situação em que no ordenamento
jurídico não exista a norma que proíba, nem que permita certo comportamento, entende o
autor que se pode conceber a lacuna como uma ficção manejada pelo legislador, com o fito de
disciplinar o poder de interpretação e integração feita pelos intérpretes. Para Kelsen, a
plenitude do ordenamento é uma realidade, e a aceitação das lacunas uma ficção necessária
para limitar o arbítrio do juiz:

Por isso, o legislador, para limitar a atribuição deste poder aos tribunais, atribuição
essa considerada por ele como inevitável, recorre à ficção de que a ordem jurídica
vigente, em certos casos, não pode ser aplicada - não por uma razão ético-política
subjetiva, mas por uma razão lógica objetiva -, de que o juiz somente pode se fazer
de legislador quando o direito apresente uma lacuna. (KELSEN, 2003, p. 276).

Essa é a explicação formulada pelo autor para entender-se a acolhida generalizada


pelos ordenamentos jurídicos desta falsificada teoria das lacunas do Direito. Em alguns
sistemas jurídicos, inclusive no brasileiro (art. 126, do CPC), não se admite a possibilidade de
o juiz deixar de decidir em virtude da inexistência da norma (proibição do non liquet).
Colimava-se, dessa forma, frear o ânimo legislativo dos aplicadores, porquanto somente seria
aceita a competência legislativa do intérprete nos casos previamente previstos pelo próprio
legislador. Assim, ficariam os juízes expressamente proibidos de procurar solução para o caso
fora do ordenamento jurídico.

Bobbio (1995), sumariando as teorias que sustentam a completude do orçamento


jurídico, apresenta-nos a argumentação empolgada pelos positivistas, consistente na “teoria
do espaço jurídico vazio” e na “teoria da norma geral exclusiva”. Segundo a “teoria do
espaço jurídico vazio” defendida por Karl Bergbohm e Santi Romano e, ao que nos parece,
secundada por Kelsen, as atividades humanas são divididas em duas espécies: as reguladas e
as não-reguladas pelo Direito em vigor. A partir desta observação, entende-se que as
atividades não constantes no ordenamento seriam juridicamente irrelevantes, fazendo parte do
“espaço jurídico vazio”.

Para essa teoria, quando não existe regramento acerca de um determinado


comportamento, não se cuida de lacuna, mas de atividade irrelevante ao Direito, portanto, fora
dos limites do Direito. De forma que não se deveria cogitar da existência de lacunas,
porquanto das duas, uma, ou a ação humana estava regulada pelo ordenamento ou a conduta
ser-lhe-ia indiferente. Ou existe o vínculo jurídico ou há a absoluta liberdade. Tertium non
datum, no dizer de Bobbio (1995).

Já a teoria da “norma geral exclusiva” desenvolvida por Zitelmann e Donati, expõe


que uma norma nunca nasce sozinha, mas se faz acompanhada de uma outra norma geral
exclusiva, de compleição contrastante com regência de todos os casos tratados pela norma
particular. Assim, todo e qualquer comportamento humano restaria regulado por uma norma
jurídica, que seria uma norma específica, por tratar sobre tal comportamento ou então estaria
regulado pela norma geral que cuidaria dos comportamentos não tratados pelas normas
específicas. De molde que todas as ações humanas restariam reguladas, pelo sistema jurídico,
por serem relevantes, ao contrário do que pregado pela teoria do “espaço jurídico vazio”.
Jamais haveria espaço jurídico vazio de modo que os espaços não-preenchidos pelas normas
específicas restariam preenchidos pelas normas gerais exclusivas, inexistindo, portanto,
lacunas. Bobbio (1995) aponta o ponto fraco de cada uma dessas teorias. A do “espaço
jurídico vazio” por igualar a esfera do jurídico à do obrigatório, olvidando que o Direito
também cuida do que é permitido. “Mas - indaga Bobbio - Aquilo que não é obrigatório, e,
portanto, representa a esfera do permitido e do lícito, deve ser considerado juridicamente
irrelevante ou indiferente?” (BOBBIO, 1999, p. 130).

Tal teoria se revela falha exatamente pela circunstância de que também o Direito cuida
das atividades permitidas, a par das atividades proibidas ou obrigatórias. O fato de ser livre a
atividade não quer dizer que tal atuação esteja à margem do âmbito de interesse do Direito.
Quanto à teoria da norma geral exclusiva, a falha apontada consiste em se constatar que, ao
contrário do que ela afirma, nem todas as situações não tratadas por uma norma particular são
equacionadas com o sinal contrário, mas, amiúde, é a solução semelhante à da norma escrita
que irá regular de modo mais satisfatório aquela situação não prevista. Olvidou a teoria de
dizer que:

Normalmente, num ordenamento jurídico não existe somente um conjunto de


normas particulares inclusiva e uma norma geral exclusiva que as acompanha, mas
também um terceiro tipo de norma, que é inclusiva como a primeira e geral como a
segunda, e podemos chamar de norma geral inclusiva. (BOBBIO, 1999, p. 135).

O equívoco da teoria foi não ter em conta que paralelamente à norma especial e à
norma geral exclusiva, haveria uma terceira norma que autoriza o juiz - inexistindo regulação
específica de determinada situação – a lançar mão do recurso à analogia, na busca de
encontrar a solução do problema em casos similares. De tal maneira, conclui Bobbio (1999),
pela permanência da aporia da teoria das lacunas, não lhe parecendo possível excluir as
lacunas jurídicas do sistema nem por uma teoria nem por outra. Só que a questão agora se
desloca, segundo o autor, para a decisão de se saber se são análogas ou não as situações
deixadas ao intérprete.
Nesse caso, o problema deixa de ser a ausência de solução jurídica e passa a ser a
existência de mais de uma solução possível sem que haja um critério para aplicação da
solução, seja da norma geral inclusiva, seja da norma geral exclusiva. A lacuna ganha nova
feição: já não é a ausência de uma norma que possa ser aplicável, mas a ausência de critério
que possibilite escolher qual será a norma aplicável entre as que estão disponíveis. Ao
intérprete restará a liberdade de colmatar à lacuna do ordenamento jurídico, conforme ensina
Bobbio (1999, p. 139):

Mas agora sabemos que em muitos casos podemos aplicar tanto a norma que quer os
comportamentos diferentes regulamentado de maneira oposta ao comportamento
regulamentado, quanto a norma que quer os comportamentos semelhantes
regulamentados de maneira idêntica ao regulamentado. E não estamos em condições
de decidir mediante regras do sistema se o caso é semelhante ou diferente. E, então,
a solução não é mais óbvia. O fato de a solução não ser mais óbvia, isto é, de não se
poder tirar do sistema nem uma solução nem a solução oposta, revela a lacuna, isto
é, revela a incompletude do ordenamento jurídico.

5.10 Ciência e ideologia

No capítulo sobre Direito e Ciência do seu livro Teoria Pura do Direito, Kelsen (2003)
deixa bem claro que sua doutrina tem pronunciada tendência antiideológica sobremodo pelo
fato de sua descrição do Direito Positivo procurar manter-se afastada de qualquer confusão
com um Direito justo ou ideal. Bem por isso, proclama que é a Teoria Pura uma teoria do
positivismo jurídico, eis que se recusa a valorar o Direito Positivo. Somente assim, assegura o
jusfilósofo, se manifesta o caráter científico do Direito.

A Teoria Pura do Direito tem como objeto as normas jurídicas (o deverser) e não os
fatos da ordem do ser, ou seja, concentra a sua atenção sobre as normas jurídicas como
conteúdos de sentido de quaisquer fatos por elas apreendidos. Para ele, o termo “ideologia” de
acordo com o sentido que lhe é conferido pode ser aceito ou rejeitado pela Ciência Jurídica.
Pode ser entendida “ideologia” como oposição à realidade dos fatos da ordem do ser, ou seja,
tudo o que não seja uma descrição da realidade determinada por lei causal. Nesse sentido, o
Direito pode ser entendido como uma ideologia, por ser um ‘complexo sistemático’ diferente
da natureza. Existiria, assim, uma acepção positiva do termo ideologia aplicável ao Direito,
por indicar este como um sistema de relações distinto da natureza, estudado por nexos de
imputação e não de causalidade.
Entretanto, existe um segundo significado do termo ideologia correspondente a uma
representação não objetiva da realidade, influenciada que é por juízos de valor subjetivos, que
esconde e desfoca o objeto do conhecimento. Esta é a acepção negativa da ideologia, por
traduzir um querer que escamoteia a realidade, desfigurando-a em nome de interesses outros
que não a busca da verdade. Para Kelsen, o entendimento do Direito Positivo, como sendo
uma ordem normativa em contraposição a uma ordem fática, pode ser aceito pela Teoria do
Direito sem maiores preocupações; podendo ser concebido como ideologia nesse sentido.

Entretanto a “Teoria Pura do Direito” rejeita o segundo sentido do termo “ideologia”


por considerá-lo não-científico, por se basear na vontade e não no conhecimento. Isto se dá,
por exemplo, quando consideramos existir uma ordem jurídica superior que tenha a pretensão
de ser o modelo ideal de justiça, e que exige que o Direito Positivo lhe corresponda, a exempli
gratia, do jusnaturalismo. Rejeita Kelsen o termo “ideologia” neste último sentido por
pretender a “Teoria Pura do Direito” ser mera descrição do Direito Positivo, mantendo-o
imune de qualquer confusão com um Direito ideal ou justo:

Precisamente através desta sua tendência anti-ideológica se revela a Teoria Pura do


Direito como verdadeira Ciência do Direito. Com efeito, a ciência tem, como
conhecimento, a intenção imanente de desvendar o seu objeto. A ideologia, porém,
encobre a realidade enquanto, com a intenção de a conservar, de a defender, a
obscurece ou, com a intenção de a atacar, de a destruir e de a substituir por uma
outra, a desfigura. Tal ideologia tem a sua raiz na vontade, não no conhecimento,
nasce de certos interesses, melhor, nasce de outros interesses que não o interesse
pela verdade [...]. (KELSEN, 2003, p. 118-119).

Percebe-se, na realidade, que a intenção de Kelsen é de construir uma estrutura teórica,


através de uma Teoria Pura, que possa ser considerada a-histórica, apolítica, imune ao uso
ideológico que dela possa ser feito. Pretende, assim, a erradicação do conhecimento jurídico
da esfera do social e do político, conhecimento que deve se ater apenas à descrição das
normas.

Releva ponderar se o modo de pensar de Kelsen não encerra em si mesmo uma


ideologia. Se existe a possibilidade efetiva de um Direito Positivo se constituir sem se
imiscuir na historicidade do Direito real, sem ter de se manifestar sobre essa realidade; vale
perscrutar sobre a pureza de uma teoria que pretende excluir do conhecimento jurídico todos
os elementos que lhe são estranhos por serem considerados metajurídicos.

Quanto ao primeiro aspecto, muitas são as críticas endereçadas à Teoria Pura de


Kelsen, por considerarem seus opositores que uma estrutura jurídica assim concebida, a-
histórica, apolítica, é pura ilusão de caráter ideológico, transformando-se em instrumento de
legitimação de inúmeras ordens políticojurídicas, conforme denunciado por Coelho (1983, p.
170-173):

Essa estrutura acaba por transformar-se em mais um instrumento que vai ser
manipulado pelos donos do poder, ou ao menos pelo grupo social hegemônico e no
seu próprio interesse. [...] aqui identificamos a ideologia próxima, subjacente à
“Teoria Pura do Direito”, a qual também reflete o espírito positivista, de que essa
racionalidade imanente se expressa na ordem social, a qual é fundamentalmente boa
e merece ser preservada, cabendo ao jurista sua descrição sob as categorias gnósicas
que define – o dever ser – mas alheia a qualquer juízo crítico-valorativo, eis que a
ordem social não deve ser julgada, mas aceita como tal, embora passível de
aperfeiçoamento.

No que se refere ao segundo aspecto, também a Teoria Pura sofreu críticas, pelo fato
de que não estava trabalhando com um sistema a partir de um objeto dado, um a priori, mas ela
própria construindo um objeto que suportasse um tipo de conhecimento que se auto-
reivindicava neutro, como requisito de cientificidade. Kelsen (apud COELHO, 1983, p. 180),
“não se deu conta de que a ordem cuja estrutura a Teoria Pura descrevia, não era uma ordem
que se antepunha ao conhecimento, mas o resultado da criação do espírito cognoscente.”
Sobre ser assim, conforme já ressaltado antes, a concepção de Ciência Jurídica acolhida pela
Teoria Pura deixa de lado e sem justificativa a atividade do aplicador do Direito já que Kelsen
limita a função do jurista à verificação da validade formal das normas, sem considerações
valorativas. Para ele, existe a interpretação que é feita pelo Cientista do Direito e a
interpretação que é feita pelo juiz. O cientista, ao interpretar, descreve a norma como parte da
ordem jurídica, de acordo com os princípios lógicos, ao passo que a interpretação do juiz cria
norma nova na busca de um ideal de justiça subjetivo, fora, portanto, dos parâmetros da
ciência.

É justamente na interpretação das normas jurídicas pelo juiz que o positivismo se


mostra mais insuficiente. Isso ocorre porque a atividade do intérprete e aplicador do Direito
tem de ser, e efetivamente é, essencialmente valorativa. Não há como fugir dessa realidade.
Só este fato contraria, a nosso ver, a pretensão defendida pelo positivismo kelseniano de que a
consideração valorativa do Direito, por não ser científica, deve ser expulsa do raciocínio
jurídico. Tal pretensão seria ideológica por ter raiz na vontade e não no conhecimento
conforme censura advinda do próprio pensamento kelseniano.

5.11 Direito e moral

Kelsen considera fundamental estabelecer a separação entre Direito e Moral, pois só


assim restará preservada a pureza do método e do objeto da Ciência Jurídica. A distinção para
ele não pode ser encontrada baseando-se no conteúdo do que prescrevem ou proíbem o
Direito e a Moral, pois ambas ordens sociais são preordenadas a regular condutas humanas
estatuindo deveres e direitos. O jusfilósofo critica a afirmação segundo a qual o Direito
prescreve uma conduta externa e a Moral uma conduta interna. Para ele, as normas das duas
ordens sociais determinam as duas espécies de condutas. Ele explica que, quando uma ordem
jurídica proíbe o homicídio, proíbe não apenas a produção da morte de um homem, o evento
externo; mas também uma conduta interna, ou seja, a intenção de praticar o crime.

Entretanto, para ele, o traço diferencial pode ser encontrado, no “como” as duas ordens
sociais prescrevem ou proíbem. Direito e moral se diferenciariam pela forma como se proíbe
ou prescreve determinada conduta. Enquanto as normas do Direito permitem o uso organizado
da força, quando as normas não são espontaneamente cumpridas; as normas da ordem moral,
quando descumpridas, acarretam sanções de ordem transcendental ou imanente, conforme
sejam aplicadas em outro plano mais além ou se produzam neste mundo, ambas sem a
interferência da força física. Kelsen sustenta que a única forma de distinguir o Direito de
outras ordens normativas é pelo tipo específico de sanção:

O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando se concebe como


uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma
determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção
socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui
quaisquer sanções desse tipo; visto que as suas sanções apenas consistem na
aprovação da conduta conforme as normas e na desaprovação da conduta contrária
às normas, nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força
física. (KELSEN, 2003, p. 71)

Nesse sentido, também é a lição de Bobbio:

O que distingue o Direito da moral é precisamente o fato, que enquanto o primeiro é


coercitivo, a segunda não o é; esta relação diversa do Direito e da moral com a
coerção deriva da natureza diversa do ato jurídico e do ato moral; o ato jurídico
consiste puramente na conformação exterior do sujeito à norma e, assim, o fato de tal
conformação ser obtida mediante a força não nega a juridicidade do ato; o ato moral
consiste, ao contrário, na adesão à norma por respeito à própria norma, não podendo,
pois, ser obtido mediante a força, porque esta não obtém a adesão interna necessária
para a moralidade do ato. Ou, se quisermos considerar o problema não mais do ponto
de vista da natureza do ato, mas do ponto de vista da natureza da norma, poderíamos
dizer: a coação se concilia com a norma jurídica porque esta é heterônoma, mas não
com a norma moral, porque esta é autônoma. (BOBBIO, 1995, p. 152)

O que diferencia, pois, a ordem jurídica da ordem moral é o fato de que aquela regula
a conduta humana por meio de uma técnica específica. Essa técnica específica só pode ser
concebida se definirmos o Direito como uma ordem coercitiva. As normas sociais que
organizam a coação e estão institucionalizadas são normas jurídicas, enquanto as que não têm
organizada e institucionalizada a coação não são normas jurídicas. Assim, enquanto o Direito
sanciona as condutas das pessoas com o uso da força física, a moral apenas expede
recomendação, aprovando ou desaprovando as condutas.

Kelsen explica que o tipo de sanção jurídica é heterônoma, enquanto as sanções


morais são autônomas. Não existem polícias morais, nem tampouco prisões morais. O Direito
deve ser entendido apenas partindo-se das idéias de normatividade e validade, não tendo nada
a ver com a moral. As normas jurídicas são objeto de estudo da Ciência do Direito, ao passo
que as normas morais são objeto de estudo da Ética como ciência. Daí o Direito não dever se
preocupar sobre o que é certo ou errado, sobre o bom e o mau, mas se deter sobre o que
constitui o lícito e o ilícito, sobre a validade ou invalidade da norma.

Para Kelsen, é necessário delimitar as relações entre Direito e Moral. A distinção entre
os campos da moral e do jurídico deriva de sua busca pela autonomia da Ciência Jurídica.
Kelsen quer afastar a Ciência Jurídica das preocupações com a justiça ou com a injustiça.
Preocupar-se com a justiça constitui objeto da Ética, ciência voltada para estudar as normas
morais sob os aspectos do justo e do injusto. Para ele, essa questão quando não bem
equacionada é fonte de grandes equívocos. O maior deles consiste em querer fundamentar a
ordem jurídica numa ordem moral, invalidando as normas do Direito que forem contrárias às
normas morais. Baseia-se tal modo de pensar em se pressupor a existência de uma moral que
seja a única válida e de caráter universal. Não existem valores morais absolutos e universais
para o jusfilósofo, visto que em diversas épocas, nos diferentes povos e até mesmo dentro de
diferentes categorias, classes e profissões predominam sistemas morais diferentes e
contraditórios entre si, variando o entendimento do que se toma por bom e mau, justo e
injusto em todas as circunstâncias possíveis.

Pela impossibilidade de se acolher uma moral absoluta, resta clara a impossibilidade


de uma tal moral fornecer um padrão absoluto para valoração da ordem jurídica positiva. Se
não há valores absolutos, a Ciência do Direito deve ser pura, ou seja, isenta de valores. Desse
relativismo axiológico, resulta que a Ciência do Direito deve se abster de expender
considerações sobre a justiça ou injustiça de uma determinada ordem jurídica, em face da
ausência de um critério absoluto de justiça. Desse modo, infere-se que, na proposta
kelseniana, o juízo de valor sobre a justiça da norma deve ser desconsiderado, uma vez que a
validade de uma norma de Direito Positivo é independente da validade de uma norma de
justiça, não se podendo assim colocar a norma jurídica na dependência de um critério moral.
Importa concluir dizendo que Kelsen não exclui de todo a possibilidade de as normas
jurídicas serem apreciadas em face de uma moral conforme remarca Gomes (2004, p. 211):

Kelsen não afasta a possibilidade de normas do ordenamento jurídico serem


examinadas em comparação com uma moral. É possível um estudo analisando os
valores postos pela ordem jurídica de determinado Estado, ou mesmo pela ordem
internacional, comparando-os com os valores postos por determinada moral positiva.
Esse estudo, porém fica excluído da apreciação do jurista científico, já que a Ciência
do Direito é, em Kelsen, avalorativa.
6 DI R E I TO NATURAL E DI R E I TO POSITIVO

O Direito Natural adota como tese fundamental o postulado apriorístico segundo o


qual existe uma lei natural, eterna e imutável; quer dizer, válida para todo o tempo e em todos
os lugares, que tem como significado a pressuposição de um universo previamente legislado.
Tal Direito Natural tem origem na vontade de Deus, na natureza das coisas, na consciência do
homem, ou no instinto social, segundo a crença professada. Ao reverso das regras do Direito
Positivo, as regras do Direito Natural não vigoram por força de uma autoridade humana, mas
em virtude de emanarem de Deus, da Natureza ou da Razão, donde serem boas, retas e justas,
intrinsecamente. E mais, são regras postuladamente auto-evidentes, não carecendo provas.

O jusnaturalismo defende a procedência de um ordenamento jurídico ideal superior ao


ordenamento jurídico positivado. O Direito Positivo retiraria a sua validade de um
ordenamento superior, fazendo com que seja considerado Direito aquilo que for
substancialmente de acordo com esse ordenamento suprapositivo. É dizer que a
correspondência da lei positiva com o Direito Natural funciona como uma condição de
validade. Tal entendimento decorre da afirmação de que as leis postas dimanam de princípios
fundamentais que já estão na natureza das coisas. Pressupõe a existência de um ordenamento
jurídico transcendental acima das leis dos homens. A tese fundamental jusnaturalista proclama
que os princípios gerais do Direito fornecem as verdades últimas do Direito de modo a
transcenderem as particularidades entre as nações, sendo comum a todos os povos. Acredita
que os princípios do Direito Natural correspondem à crença em uma razão jurídica de caráter
universal que acompanha a humanidade em seu desenvolvimento desde tempos imemoriais.

Reversamente, o positivismo jurídico, inspirado na atitude positivista em geral,


segundo a qual é inútil toda atividade do espírito que pretenda ir além da observação dos
fenômenos, rejeita toda doutrina do Direito Natural, por considerála mera especulação
metafísica, cuja impossibilidade de aceitação é suficientemente demonstrada pelas
contradições em que se põem àqueles que nela acreditam e por ela se empenham. Ao
contrário, pensam os positivistas, deveria ser incentivado o estudo, de reconhecida utilidade
para a humanidade, das legislações positivadas, que são fenômenos que se sucedem no tempo
e espaço concretos. Sendo esses os dois principais paradigmas jurídicos, cumpre proceder à
distinção entre as duas teorias jurídicas, levando-se em conta que o Direito Positivo
historicamente teve como seu contraponto o Direito Natural, à semelhança do que acontece
com a tese e a antítese do sistema hegeliano, sem, no entanto, ao contrário deste, obter-se uma
síntese. Informa Bobbio (1995, p. 15) que:

Toda a tradição do pensamento jurídico ocidental é dominada pela distinção entre


‘direito positivo’ e ‘direito natural’, ‘distinção que, quanto ao conteúdo conceitual, já
se encontra no pensamento grego e latino’.

O que demonstra que, desde os primórdios da civilização, se verifica o contraste entre


Direito Positivo com suas instituições e convenções sociais, de um lado, e o Direito Natural,
com sua crença no eterno e numa validade sobrenatural absoluta. Detendo-nos ainda nos
ensinamentos de Bobbio (1995), pode-se elencar os seguintes critérios de distinção que ao
longo do desenvolvimento histórico foram lentamente maturados:

a) O Direito Natural tem como característica a universalidade, por ser válido em toda e
qualquer parte, ao passo que o Direito Positivo tem validade em apenas alguns lugares
determinados;
b) O Direito Natural se apresenta com o caráter de imutabilidade temporal por ser eterno e
constante, enquanto o Direito Positivo é essencialmente mutável e contigente. O Direito
Natural é aquele Direito dado, que se revela por meio da supressão dos elementos
contingentes do Direito, em contraponto ao Direito Positivo que é forjado, isto é, que se
constrói intelectualmente.
c) O Direito Natural distingue-se no referente à fonte do Direito, por ser o Direito Natural
proveniente da “natureza das coisas”, da natureza racional do homem ou da vontade divina,
enquanto o Direito Positivo se funda apenas na vontade declarada de um legislador, “tout
court”;
d) Conforme o critério pelo qual os destinatários tomam conhecimento do Direito, o Direito
Natural é aquele que tomamos ciência por meio da razão, ao passo que o Direito Positivo é
dado conhecer por meio de uma declaração de vontade alheia;
e) O Direito Natural, no que atina aos comportamentos regulados, entende que estes são bons
ou maus intrinsecamente, enquanto que, para o Direito Positivo os comportamentos se lhes
apresentam intrinsecamente indiferentes, somente assumindo uma qualificação apenas porque
foram regulados, de uma certa maneira pelo ordenamento jurídico. Em uma palavra: é justo,
porque ordenado; injusto porque vetado;
f) Por derradeiro, outra distinção reporta-se ao critério de valoração das ações. Para o Direito
Natural, deve ser valorado aquilo que se apresenta como bom, ao passo que para o Direito
Positivo prevalece aquilo que for considerado útil.

Essa dicotomia entre Direito Natural e Direito Positivo que acompanhou ao longo da
história o pensamento jurídico, contemporaneamente, porém perdeu força como instrumento
operacional, quer dizer, enquanto técnica para a descrição e classificação de situações
jurídicas passíveis de uma decisão normativa. Consoante se observa o Direito Natural jaz
positivado por meio de normas constitucionais que, com status de cláusulas pétreas, são
portadoras de direitos fundamentais do ser humano. Com efeito, os princípios fundamentais
positivados passaram a albergar as verdades supremas do Direito, outrora identificados como
Direito Natural. Tal fato concorreu para o enfraquecimento da dicotomia aludida, em face da
trivialização do Direito Natural, desde o momento em que todo Direito passou a ser
reconduzível a direitos outrora tidos por naturais. Ferraz Júnior (1996, p. 171) de há muito
vem denunciando esse fato explicando que:

Uma das razões do enfraquecimento operacional da dicotomia pode ser localizada na


promulgação constitucional dos direitos fundamentais. Esta promulgação, o
estabelecimento do Direito Natural na forma de normas postas na Constituição, de
algum modo, “positivou-o”. E, depois, a proliferação dos direitos fundamentais, a
princípio, conjunto de supremos direitos individuais e, posteriormente, de direitos
sociais, políticos, econômicos aos quais se acrescem hoje direitos ecológicos,
direitos especiais das crianças, das mulheres etc., provocou, progressivamente, a sua
trivialização. Uma coisa se torna trivial quando perdemos a capacidade de
diferenciá-la e avaliá-la, quando ela se torna tão comum que passamos a conviver
com ela sem nos apercebermos disto, gerando, portanto, alta indiferença face às
diferenças.

Entretanto, como bem lembra o mesmo Ferraz Júnior (1996), a relevância da


dicotomia mantém-se até hoje nas discussões sobre questões relativas à política jurídica; à
defesa dos direitos fundamentais do homem; à defesa contra a ingerência avassaladora do
Estado na vida dos cidadãos; ao combate às várias formas de governos autocráticos e
totalitários. Temas esses de Direitos Naturais de grande interesse ainda para a filosofia do
Direito contemporâneo, apesar do enfraquecimento operacional da dicotomia Direito Natural
e Direito Positivo. Tem servido inegavelmente o Direito Natural ainda de critério de
inspiração na feitura de leis ou normas concretas do Direito Positivo. A razão radica em que
atualmente os princípios outrora identificados com o Direito Natural ganharam juridicidade.
Deixaram de habitar a esfera da abstratividade, da moralidade, quando então não gozavam de
nenhuma normatividade e juridicidade. Hoje a realidade mudou. “As novas Constituições
promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal
normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”,
consoante lembra Bonavides (1999, p. 237). Deixaram assim os princípios de serem apenas
simples diretrizes teóricas e passaram a fazer parte constitutiva das normas jurídicas positivas,
integrando desse modo o Direito Positivo. Neste norte, também pode-se lembrar que o papel
ativo do juiz na solução de um caso concreto, com amplos poderes de elaboração de um
Direito para a situação em exame, tornou enfraquecida também a oposição entre Direito
Positivo e Direito Natural, aparecendo o direito real como o resultado de um processo em que
intervêm elementos variados, tais como, a vontade do legislador, a construção dos juristas e
considerações de natureza social, política, econômica e moral. Hoje, o Direito Natural é um
conjunto de regras dirigidas aos cidadãos para regular suas relações recíprocas em termos de
direitos e deveres, identificando as complexas questões com a positividade do Direito.

Curioso notar que com o reconhecimento da positividade dos princípios o


enfraquecimento da dicotomia entre o Direito Natural e o Direito Positivo ocorre em
detrimento de ambos os termos da equação, ou seja, tanto do lado do velho positivismo
ortodoxo, que assinalava a carência de normatividade dos princípios, quanto do lado
jusnaturalista que entendia serem os princípios um conjunto de verdades objetivas
constitutivas de um direito ideal nunca plenamente realizável. Tanto isso é verdade que
denominamos de pós-positivista a fase ora vivenciada.
7 POSITIV IS M O FOR M A L

O positivismo jurídico formal de cariz normativista é conhecido por ser uma


concepção filosófica do Direito que pretende circunscrever-se ao conhecimento do que é e
como é o Direito, não lhe interessando saber como deve ser o Direito, ou como deveria ser.
Pretende ser ‘Ciência Jurídica e não política do direito’. Bem por isso, circunscreve o labor do
jurista tão-somente à função de descrição da ordem jurídica, isto é, ao conhecimento das leis
hierarquizadas do ordenamento jurídico. Kelsen, no prefácio à primeira edição da Teoria Pura
do Direito, deixa claros os seus objetivos:

Há mais de duas décadas que empreedi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é,
purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de Ciência Natural,
uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade
específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a
Jurisprudência, que - aberta ou veladamente - se esgotava quase por completo em
raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do
espírito. Importava explicar não as suas tendências endereçadas à formação do
Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do
Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a
ciência: objetividade e exatidão. (KELSEN, 2003, p. XI).

Dessa forma, a pureza metodológica apenas poderá ser atingida pelo banimento dos
elementos estranhos à sua essência. Com efeito, deve ser afastado qualquer apoio na ciência
dos fatos, assim como em reflexões de natureza sociológica e política. Na visão kelseniana, o
elemento extra ou meta jurídico está automaticamente fora dos limites da Ciência do Direito.
Estão assim englobados nessa perspectiva as considerações de juízos axiológicos sobre o
conteúdo da norma jurídica, vez que a preocupação do Cientista do Direito está direcionada
apenas ao aspecto formal da norma. Quanto ao debate envolvendo a justiça no interior de sua
visão científica, parte Kelsen da idéia de que se o valor justifica, não pode ser expresso em
termos objetivos, não será o justo ou injusto contido na norma que conferirá o caráter jurídico
da norma, mas apenas a forma como ela é produzida. Essa é a proposta kelseniana
consolidada na Teoria Pura do Direito, pretendendo escoimar o Direito de toda e qualquer
influência de elementos que lhe são estranhos, pelo fato de ser uma ‘teoria jurídica consciente
da sua especificidade, porque consciente da legalidade específica do seu objeto’, conforme
transcrito acima.

Como postura positivista, pode-se apontar quem concebe a dogmática jurídica como
um conhecimento do Direito que se limita à sua descrição e sistematização por meio de
operações lógico-dedutivas, permanecendo este conhecimento autônomo em face dos juízos
de caráter político ou moral. Marcel Waline (apud AZEVEDO, 1989, p. 45), assim bem define
o positivismo jurídico, formal, dentro da concepção filosófica do Direito, dizendo que é a
doutrina que:

Só admite como critério de valor jurídico de uma norma sua conformidade formal e
material com outra norma, tomada como padrão dos valores jurídicos num sistema
determinado, e a que se chama norma jurídica fundamental, assim como com outras
normas regularmente promulgadas pelas autoridades qualificadas por essa norma
primeira, que é, no tocante ao Direito de um Estado, a Constituição desse Estado.

Almeja o positivismo jurídico formal com isso uma análise não-valorativa e não-
crítica do Direito, animada que é do propósito de converter o Direito numa ciência objetiva,
tal como as Ciências Naturais. Entende que, sendo a ciência composta de juízos de fato e não
de valor, a realidade deve ser encarada de forma meramente descritiva, sem qualquer
influência do observador para com o objeto em estudo. Subsumida a essa visão não-valorativa
está o formalismo jurídico, de acordo com o qual o Direito deve ser concebido em função de
sua estrutura formal, sem preocupação com o conteúdo de que o Direito seja portador:

O Direito é assim reduzido a um simples sistema de normas, o qual se limita a dar


sentido jurídico aos fatos sociais à medida que estes são enquadrados no esquema
normativo vigente. Por isso, ao determinar o uso das normas e dos instrumentos
jurídicos exclusivamente em função das categorias e dos conceitos legais, esta
concepção torna desnecessário o questionamento do conteúdo de seus dogmas, isto
é: a discussão relativa à função social das leis e a identificação dos nexos ocultos que
vinculam o Direito às estruturas (e virse-versa). Neste sentido, uma das
características dos sistemas jurídicos é a de regular sua própria criação e aplicação
mediante pressupostos, postulados e princípios unificadores que servem como
elementos básicos tanto para a formulação de uma dada ordem jurídica quanto para a
própria conceitualização da dogmática jurídica. Tal concepção, privilegiando as
argumentações lógicas fundadas no princípio da não-contradição, deixa de lado os
aspectos políticos e históricos do fenômeno jurídico, por considerá-los
empiricamente contigentes, de um lado destacando o racional-jurídico como
universal e necessário e, de outro, reduzindo as condutas às estruturas normativas,
numa contínua construção e reconstrução das próprias estruturas formais do direito.
(FARIA, 1989, p. 99).

Com essa perspectiva, igualmente abre-se espaço para a pretendida neutralidade


axiológica do jurista, devendo ele se ater a aspectos lógico-formais do Direito Positivo;
enfatizando as questões de validade das normas, o significado contido nas regras, a auto-
integração das lacunas ou a eliminação das possíveis antinomias detectadas.
Cria-se, dessa forma, uma estrutura que impele o jurista, em nome da cientificidade do
Direito, a trabalhar apenas com conceitos, articulando-os, classificando-os e fazendo os
encadeamentos entre eles, valorizando apenas os aspectos lógico-formais do Direito Positivo.
O labor do jurista exaurir-se-ia na análise das estruturas do Direito Positivo com um olhar
circunscrito às categorias formais do Direito posto. Além dessas fronteiras, o trabalho seria
para os filósofos e os sociólogos do Direito que, a bem dizer, não fariam parte da comunidade
dos juristas, estrito senso.

Situa-se aí o positivismo normativista de Kelsen que prega aviso ao anunciar que quer
limitar-se ‘ao conhecimento e interpretação do Direito positivo’. A exclusão da Filosofia da
justiça é expressamente apontada no prefácio à segunda edição da “Teoria Pura do Direito”:
“O problema da justiça, enquanto problema valorativo, situa-se fora de uma teoria do Direito
que se limita à análise do Direito positivo como sendo a realidade jurídica” (KELSEN, 2003,
p. XVIII). A visão de Kelsen, focalizando seu interesse no aspecto gnoseológico e
epistemológico, na tentativa de construir uma Ciência do Direito metodologicamente pura,
culminou por desembocar num formalismo jurídico que, ao pretender afastar todas as
ideologias, acabou demonstrando sua capacidade de absorver qualquer uma delas, conforme
admitido pelo próprio Kelsen:

Os fascistas declararam-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os


sociais-democratas consideraram-na um posto avançado do fascismo. Do lado
comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado
capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como
anarquismo velado. O seu espírito é – asseguram muitos – aparentado com o da
escolástica católica; ao passo que outros crêem reconhecer nela as características
distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também
quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em suma, não há qualquer
organização política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha ainda tornado
suspeita. (KELSEN, 2003, p. XIII).

Essa neutralidade axiológica que busca apenas conhecer e descrever a ordem jurídica,
sem valoração, na opinião dos críticos de Kelsen, conteria uma ideologia disfarçada,
consistente, justamente, em consagrar toda e qualquer ideologia. Entretanto, a crítica mais
mordaz à concepção kelseniana advém do fato de que, ao reduzir o universo jurídico à norma
pura, em todo o seu formalismo abstrato, esta teoria destrói o que há de essencial no Direito,
ou seja, a matéria social regulada, não sendo mais uma teoria do Direito Positivo, mas uma
teoria lógica do Direito, “tout court”.
8 A QUESTÃO DA JUSTIÇA

É, na teorização sobre a justiça e o Direito, que se percebe os limites impostos a si pela


doutrina do positivismo de cariz kelseniano. Esta vislumbra o Direito como um sistema
formado apenas por normas, sem perscrutar questões relacionadas à legitimidade e
justificação destas normas. Considera a justiça como um elemento externo ao Direito,
considerado este em sua acepção estrita. O positivismo kelseniano reduz toda noção ou
critério de justiça a princípios incluídos no ordenamento jurídico. Justiça para Kelsen é a
norma e naquilo que ela possui de juridicidade, isto é, a noção de justiça se reduz aos critérios
formais-normativos fixados pelo Direito Positivo. Mas não se trata da negação do sentimento
de justiça, que aliás foi amplamente analisada por Kelsen, mas da recusa em querer inseri-la
no campo da investigação jurídica, definido que é em termos meramente lógico-formais o
Direito. A Ciência do Direito, sob a perspectiva da “Teoria Pura do Direito” busca apenas
enxergar a existência das normas positivas independentemente de valores éticos. De acordo
com Kelsen, a Ciência do Direito não é uma filosofia moral, mas sim uma teoria dogmática
fincada em termos normativos. Dessa sorte, delimitou o campo de atuação da Ciência Jurídica
ao estudo do Direito enquanto norma.

Defende o positivismo jurídico formal que a pesquisa jurídica se circunscreva à


enunciação de juízos de constatação, à descrição de puros juízos de fatos, sem maiores
indagações a respeito da elaboração e aplicação das normas. As leis formalmente elaboradas
são consideradas dadas e, como tais, não são passíveis de questionamentos no estrito campo
jurídico. Dessa sorte, a lei não poderá ser posta em dúvida, sendo o Estado, considerado como
ordem coercitiva globalmente válida, o pressuposto de toda a ordem jurídica.

Não é que Kelsen ignore os elementos éticos-políticos que influenciam o Direito,


apenas a ciência normativa não pode tomá-los como tais, cumprindo descrevê-los como juízos
similares aos juízos de realidade. O que acontece é que para o jusfilósofo esses fatores são
considerados metajurídicos, ou seja, são valores situados para além do Direito. Entende
Kelsen que a ética, a política e a justiça se relacionam com o conteúdo do Direito, mas o
Direito não pode ser validado por tais fatores, uma vez que o Direito existe como
escalonamento hierárquico de normas, cuja validade é dada através da referência a uma norma
fundamental. Em outras palavras, é a norma fundamental, enquanto condição de validade da
ordem jurídica positiva, que fundamenta a existência de toda e qualquer ordem jurídica,
independentemente de que seja justa ou injusta. A norma fundamental não visa dar uma
justificação ético-política da ordem jurídica, ou seja, não fornece critério de julgamento ou
legitimação sob o qual o Direito Positivo possa ser avaliado como justo ou injusto.

Dessa maneira, segundo o positivismo kelseniano, o conteúdo de uma ordem jurídica é


inteiramente independente da sua norma fundamental. Desde que emanada de autoridade
competente e desde que dotada de um mínimo de eficácia, a norma jurídica será válida,
mesmo que o seu conteúdo contrarie o conteúdo de norma hierarquicamente superior. Nesse
sentido, pode-se afirmar que da norma fundamental apenas pode ser derivada a validade e não
o conteúdo da ordem jurídica. De tal forma, toda ordem jurídica globalmente eficaz pode ser
aceita como ordem normativa objetivamente válida. Para Kelsen a validade de uma norma
jurídica é independente da validade de uma norma de justiça. Não pode a norma jurídica ser
colocada na dependência de um critério que refoge da objetividade consubstanciada no
Direito Positivo.

Essa idéia de justiça tem sido atualmente criticada por oferecer um conceito de Direito
puramente formal e vazio de conteúdo, e por implicar uma atitude reducionista ao pretender
afastar outras análises complementares à compreensão do Direito. Nessa linha de pensamento,
situa-se o entendimento de Azevedo ao dizer que:

[...] cumpre rejeitar a cisão operada no discurso jurídico, consistente em


compartimentar o conhecimento do Direito, dividindo-o em duas partes estanques,
uma lógica, ocupando-se da “ciência” das normas, e outra, axiológica, a quem
incumbiria o trato dos valores tanto subjacentes quanto buscados pela ordem
jurídica. Deriva ela de uma redução gnosiológica insustentável, em completo
descompasso com os dados da moderna investigação jurídica voltada ao campo
social, daí resultando sérias conseqüências para o raciocínio jurídico, sensíveis na
interpretação e aplicação do Direito. Seu artificialismo é sensível na própria estrutura
das regras jurídicas de conduta, em cuja hipótese legal não se enunciam
simplesmente juízos de natureza hipotética, visto que neles se acham implícitos
valores a serem resguardados. Essa injustificável cisão, oriunda do positivismo
jurídico, em nome da “cientificidade” do Direito, declara incientífica toda a
contemplação valorativa e os espíritos procuram, conscientemente, limitar-se à
investigação empírica do Direito existente. (AZEVEDO, 1998, p. 13-14).

Como saída dos paradoxos decorrentes da posição lógico-formal, do positivismo sem,


no entanto, cair nos braços de uma postura jusnaturalista, é mister, em nosso sentir, uma
compreensão do Direito que leve em conta os princípios fundamentais agasalhados na
Constituição; reputando-os, concretos, consagrados e vigentes dentro da ordem jurídico-
constitucional. Nega-se, assim, ao mesmo tempo, a possibilidade de um Direito metafísico,
fundado em uma ordem social abstrata, é dizer, sem base nas convenções positivas dos
homens. Nega-se, outrossim, também o entendimento de que, admitindo-se, possa o
intérprete, em determinados casos, afastar-se da submissão dogmática à lei, estar-se-ia
incidindo em arbítrio judicial. Aliás, o próprio Kelsen, em sua teoria da interpretação, admite,
conforme vimos alhures, que toda decisão judicial é ato criativo de Direito, não existindo uma
resposta única que seja considerada a única verdadeira. Na verdade, o que se deseja é dar a
devida ênfase aos princípios jurídicos fundamentais, como constantes axiológicas que devem
fazer parte da ordem jurídica com toda positividade. A lógica da decisão judicial deixa de ter
como único referencial a lei e passa a se orientar também pelos valores jurídicos que integram
o ordenamento jurídico na forma de princípios fundamentais, conforme lição de Freitas (1989,
p. 21):

Destarte, diante do problema máximo da aplicação jurídica – a lei injusta – cabe ao


decisor, mesmo porque a lógica jurídica não é uma lógica formal ou abstrata, realizar
uma interpretação teleológica ou finalística, recorrendo, primordialmente, aos
princípios gerais do Direito e aos princípios fundamentais da Constituição, que
estão, ou deveriam estar, na base e simultaneamente no topo do sistema jurídico. Tal
procedimento faz com que o julgador, sem sucumbir a decisões ‘contra legem’,
graças à lógica dialética, possa buscar e descobrir, por intuição, o justo no caso
concreto e, somente após, buscar amparo e fundamentação legal à pretendida decisão
justa, eventualmente desconsiderando a abstratividade que negue a justiça dos
princípios gerais, que devem ser postos na hierarquia jurídico-positiva, de modo
genérico, a permitir que se confira ao juiz, mais do que ao legislador, diante do caso,
a aplicação adequada do melhor Direito. Neste sentido, as leis devem passar a ser
vistas como critérios gerais, por mais minudentes que sejam, tendo em vista o
escopo de evitar a abstração do julgamento, bem como qualquer servilismo – nunca
abstrato, aliás – à vontade do legislador, que é inconciliável com a noção de
autonomia ética do juiz, sem a qual a sua independência seria fictícia. Dito de outra
maneira, o Poder Judiciário é – e deve ser – criador, sob pena de servir apenas ao
Estado Formal do Direito, sem servir, como deve, ao Estado Democrático, por apego
à exegese tradicional, a qual produz o contrário do que se busca.

Este enfoque reconhece que o Direito é norma, porém entende que a juridicidade não
se limita ao modelo lógico-formal de conduta corporificada pela lei, mas resulta da referência
das estruturas normativas a todo o sistema jurídico; assumindo os princípios, como
transfiguração dos valores, plena normatividade. A atitude kelseniana de querer reduzir toda
idéia de justiça ao conteúdo inserido nas normas jurídicas, strito sensu, não condiz com o
pensamento de que os princípios fundamentais possuem normatividade, e mais, que os
princípios são identificados e equiparados com valores, sendo a expressão mais alta da
normatividade que fundamenta a ordem jurídica.
9 CONC LUSÃO

Muitos dos temas versados no vertente trabalho permanecem abertos à discussão,


sendo fonte de incessantes controvérsias e ainda desafiando ainda soluções na doutrina do
Direito. Permanecem ainda abertos, constituindo às vezes verdadeiras aporias, creio, em razão
do raciocínio jurídico ser diferente daquele que caracteriza as ciências apodíticas, ou seja, as
ciências físico-matemáticas, nas quais é fácil se chegar a um consenso, fundadas que são no
cálculo e na medição, isto é, na precisão.

Distinto inteiramente do raciocínio empregado pelas ciências apodícticas, de caráter


formal, é o raciocínio jurídico em razão de não se poder chegar, senão muito raramente, a um
juízo que possa ser considerado correto ou incorreto, de maneira inconteste. Isto ocorre por
ser o raciocínio, vinculado ao Direito, de caráter dialético-retórico, em que se exercita a
argumentação como critério da verdade, diferentemente das ciências físico-matemáticas em
que se emprega o raciocínio lógico-formal-dedutivo.

Cumpre, assim, afastar a tentação patrocinada pelo positivismo jurídico de matriz


kelseniana em querer que os resultados obtidos pela Ciência Jurídica possam alcançar o
mesmo grau de certeza e objetividade de raciocínio lógicoformal. Com a pretensão de ostentar
um conhecimento imune às interferências extra-jurídicas, Kelsen se preocupou em construir
uma Ciência do Direito que tivesse um objeto puro, livre de qualquer influência da política, da
ética, da econômica, limitando-se ao conhecimento do Direito Positivo; buscando seus
resultados exclusivamente através da análise do Direito Positivo.

Sobressaem, da perspectiva juspositivista, várias conseqüências, como o trabalho


tentou demonstrar; dentre elas, a renúncia à responsabilidade social axiológica da jurista, a par
do descomprometimento do discurso jurídico com a contextualidade social, o que redundou
no abandono da vida jurídica, à letra fria das leis, aos textos da jurisprudência, ao arbítrio, e à
força. A par disso, a idéia de neutralidade reivindicada pelo positivismo produziu fórmulas
vazias que foram preenchidas pelos conteúdos os mais variados possível, propiciando
substratos que contrastavam com o mínimo ético, sendo, por isso, acusado de ter preparado
terreno para o totalitarismo nazi-fascista, permitindo que tenha ocorrido uma “reductio ad
hitlerum” do positivismo jurídico, consoante lembra Bobbio (1995).

Da análise empreendida, resulta claro que, embora o positivismo sob qualquer de suas
faces apontadas aqui, limite-se ao estudo da realidade empírica, teve o mérito de haver
promovido o conhecimento do lado existencial e humano do Direito, deixando ver,
contrariamente à concepção jusnaturalista, que antes de ser positivado o Direito não existe
como ordem jurídica, sendo inquestionável a relevância das normas jurídicas. Nesse sentido, a
teoria positivista parece bastante realista ao apresentar o fenômeno jurídico como sendo as
normas produzidas pelo Estado.

Com efeito, não remanesce dúvida de que o jurista deve priorizar as normas positivas,
bem como deve se dedicar ao trabalho de perquirição e interpretação das normas jurídicas.
Entretanto, não devem as normas constituírem empecilhos para que o jurista possa propugnar
pela consecução do justo, máxime em situações em que o apelo aos princípios fundamentais
possa ser invocado para a resolução do caso concreto.

Com esse sentimento, impende desenvolver esforços contra os excessos logicistas que
desembocam no formalismo jurídico, que até pode ser de grande valia para o jurista afeito às
disputas acadêmicas e cerebrinas, mas que não guardam nenhuma serventia para a sociedade.
Esta, afinal de contas, a grande destinatária desse labor, mas que não entende, não tem
interesse, e nada lucra desse refinado exercício teórico, que obstina por ignorá-la, por não
atentar para o contexto social em que se gera e desenrola o Direito.

De sorte que, a despeito de algumas inconsistências apontadas neste trabalho no


positivismo de matriz kelseniana, a verdade é que não se pode obscurecer as importantes
contribuições deixadas por sua vasta obra, que vão desde a concepção piramidal do
ordenamento jurídico, à contribuição para a instituição de uma Corte Constitucional, até o
desenvolvimento da teoria constitucional que tem como base a Constituição como lei suprema
do Estado, conforme já alhures ressaltado.

Impõe-se, finalmente, situar historicamente o positivismo kelseniano, sob pena de não


compreendê-lo devidamente. A esse respeito, Wolkmer (1991, p. 116) lembra que: “O rígido
formalismo de Kelsen reflete certa posição dominante nas ciências humanas, em determinado
momento do desenvolvimento políticoeconômico das sociedades burguesas liberais
contemporâneas.”

Efetivamente, pode-se assinalar que a característica principal do positivismo jurídico


de Kelsen, em consonância com a modernidade jurídica, foi a busca da chamada segurança
jurídica, uma vez que a certeza sobre o critério pelo qual se reconheceria a juridicidade das
normas era exigida para estabilização das expectativas sociais.

Desta forma, o positivismo jurídico de Kelsen se explica sob o pano de fundo do


período histórico em que ocorre a aliança entre o capitalismo e a modernidade. Nesse
momento, a busca pela segurança jurídica transformou-se num imperativo e o positivismo
jurídico foi o instrumento útil que melhor atendeu às expectativas de um principiante
capitalismo liberal, que não mais se permitia qualquer irracionalidade, fosse ela proveniente
de uma entidade metafísica, como Deus, a tradição ou de alguma razão universal
transcendente.

Nesse sentido, ensina Santos (2002, p. 141):

O aparecimento do positivismo na epistemologia da ciência moderna e o do


positivismo jurídico no Direito e na dogmática jurídica podem considerar-se, em
ambos os casos, construções ideológicas destinadas a reduzir o progresso societal ao
desenvolvimento capitalista, bem como a imunizar a racionalidade contra a
contaminação de qualquer irracionalidade não capitalista, quer ela fosse Deus, a
religião ou a tradição, a metafísica ou a ética, ou ainda as utopias ou os ideais
emancipatórios. No mesmo processo, as irracionalidades do capitalismo passam a
poder coexistir e até a conviver com a racionalidade moderna, desde que se
apresentem como regularidades (jurídicas ou científicas) empíricas. O positivismo é
a consciência filosófica do conhecimentoregulação. É uma filosofia da ordem sobre
o caos tanto na natureza como na sociedade. A ordem é a regularidade, lógica e
empiricamente estabelecida através de um conhecimento sistemático. O
conhecimento sistemático e a regulação sistemática são as duas faces da ordem. O
conhecimento sistemático é o conhecimento das regularidades observadas. A
regulação sistemática é o controle efectivo sobre a produção e reprodução das
regularidades observadas. Formam, em conjunto, a ordem positivista eficaz, uma
ordem baseada na certeza, na previsibilidade e no controlo. A ordem positivista tem,
portanto, as duas faces de Janus: é, simultaneamente, uma regularidade observada e
uma forma regularizada de produzir a regularidade, o que explica que exista na
natureza e na sociedade. Graças à ordem positivista, a natureza pode tornar-se
previsível e certa, de forma a poder ser controlada, enquanto a sociedade será
controlada para que possa tornar-se previsível e certa. Isto explica a diferença, mas
também a simbiose, entre as leis científicas e as leis positivas. A ciência moderna e o
Direito moderno são as duas faces do conhecimento-regulação.
O Positivismo Jurídico veio em substituição ao paradigma jusnaturalista que
predominou durante toda a fase pré-moderna, anterior ao capitalismo. A determinação do que
é direito na modernidade deixou de ser remetida a fatores transcendentais e metafísicos,
passando o Direito a ser um sistema de normas produzido pelo Estado, com base numa norma
fundante - origem de toda positividade: a Constituição. Desde então o positivismo jurídico se
constituiu no único objeto de consideração do jurista, afastando outros critérios de
juridicidade fora do ordenamento jurídico, virando, desta forma, uma página da história. A
questão que se coloca no momento atual é em que medida esta epistemologia juspositivista é
adequada para o conhecimento jurídico deste começo de novo milênio. Na modernidade, não
há dúvidas, o positivismo jurídico era ou foi, pelo menos, eficaz. Mas, e hoje, ainda o será? E
se pensarmos na epistemologia jurídica para além da eficácia da ação instrumental, será o
positivismo jurídico adequado para se instaurar uma sociedade que se pretende minimamente
justa?
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