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Fortaleza - CE
Setembro, 2006
JOSÉ ANTÔNIO PARENTE DA SILVA
Fortaleza – Ceará
2006
UNIVE RSIDADE DE FORTAL EZA – UNIFOR
M ESTRADO E M DI RE I TO CONSTITUCIONAL
de
_______________________________________
José Antônio Parente da Silva
BANCA E X A M INADORA:
__________________________________________
Prof. Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz – Dr.
Orientador
__________________________________________
Prof. Martônio Mont’Alverne Barreto Lima – Dr.
1º Examinador
_________________________________________
Prof. Marcelo Cattoni de Oliveira – Dr.
2º Examinador
_______________________________________
Prof. Dr. Martônio Mont’Alverne Barreto Lima
Coordenador do Curso
“[...] em definitivo, trata-se de saber por que é
que dada regra, e não dada outra, rege dada
sociedade, em dado momento. Se a ciência
jurídica apenas nos pode dizer como essa regra
funciona, ela encontra-se reduzida a uma
tecnologia jurídica perfeitamente insatisfatória.
Temos o direito de exigir mais dessa ciência, ou
melhor, de exigir coisa diversa de uma simples
descrição de mecanismos”.
(Michel Miaille).
Aos meus pais, Jacy Bezerra e Hilda
Parente, que tanto legaram para mim,
inclusive, o “animus” necessário para vencer
todos os obstáculos durante a caminhada.
The importance of the Philosophy of the Law in the 20th century owes a lot to Hans Kelsen,
and knowing the thoughts of this renowned philosopher is mandatory when producing a text
that is intended to be considered. That is why, after the attention he has attracted, the
Kelsenian thought did not escape the critics up to this very day. Some of these critics are
justified, some are not. Kelsen’s main work, The Pure Theory of Law, looked for purity able
to remove from the Law everything that would not necessarily integrates it, yet may be linked
to it. To sum up, the nature of the Law, for Kelsen, was the judicial order as it is, and not what
such order should be. Therefore, the law scientist must deal with what the Law is. Other
researchers would deal with what the Law should be. This study is aimed to show the
possibilities of the Kelsenian thought, as it appears within the Pure Theory. It deals, as well,
onto a continuity line of the Kelsenian thought in our days, as a needed theoretical tool for
future doctrine progresses.
L’importanza della filosofia del diritto nel secolo XX debbe molto a Hans Kelsen, essendo
obbligatorio la conoscenza del suo pensiero, per chi vuole produrre qualcosa che merita essere
presa in considerazione. Proprio per questo, il pensiero Kelseniano, dalla attenzione che ha
chiamato, non potrebbe rimanere immune a critiche, che ancora oggi li sono dirette. Ci sono
quelle giuste e quelle che non lo sono. Il suo lavoro principale, la Teoria Pura del Diritto, ha
inteso raggiungere una purezza sufficiente per spungere del diritto tutto quello che, nonostante
ne sia relato, non lo integrerebbe necessariamente. In sintesi, l’essere del diritto, secondo
Kelsen, è l’ordinamento giuridico e non quello que questo ordinamento idealmente giuridico
dovrebbe essere. Dunque, lo studioso del diritto deve si occupare con quello che è il diritto.
Con quello che dovrebbe essere il diritto, si occupano altri studiosi. Lo scopo di questo saggio
è quello di rivelare le possibilità del pensiero Kelseniano, secondo viene sposto nella Teoria
Pura. È anche diretto ad accenare all’esistenza di una linea di continuità nella proposizione
kelseniana nella attualità, nella qualità di istrumentale teorico imprescindibile per altri futuri
progressi doutrinari.
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 10
2 DADOS BIBLIOGRÁFICOS.............................................................................................. 12
4 O POSITIVISMO................................................................................................................. 21
4.1As diversas faces do positivismo jurídico..................................................................... 26
5 AS IDÉIAS DE KELSEN..................................................................................................... 33
5.1 A concepção de ciência- a pureza metodológica............................................................ 33
5.2 Princípio da imputação e princípio da causalidade........................................................ 37
5.3 Proposição jurídica e norma jurídica.............................................................................. 40
5.4 Teoria estática e teoria dinâmica do ordenamento jurídico............................................ 44
5.5 A teoria da norma fundamental...................................................................................... 48
5.6 A estrutura escalonada da ordem jurídica...................................................................... 58
5.7 A validade e a eficácia da norma jurídica e do ordenamento jurídico............................62
5.8 A hermenêutica kelseniana............................................................................................. 68
5.9 O problema das lacunas.................................................................................................. 74
5.10 Ciência e ideologia........................................................................................................79
5.11 Direito e moral...............................................................................................................83
7 POSITIVISMO FORMAL.................................................................................................... 91
8 A QUESTÃO DA JUSTIÇA................................................................................................. 95
9 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 99
O presente estudo intenta promover uma reflexão sobre algumas questões suscitadas
pela Teoria Pura de Hans Kelsen e seu positivismo de cariz normativista, no âmbito da
Ciência do Direito. Trata-se de saber até que ponto essa teoria positivista – de que a
neutralidade axiológica é parte fundamental – realiza-se lógica e faticamente no plano das
proposições constitutivas do pensamento kelseniano. Esse é o objeto central do trabalho.
A par disso, cumpre aprofundar a vertente do positivismo kelseniano pelo fato de ser
ela a mais arrojada tentativa de purificar a Ciência do Direito de fatores por ele considerados
não jurídicos ou metajurídicos, excluindo-os, destarte, do conhecimento rigorosamente
jurídico. Entretanto, cabe aduzir que Kelsen não pretendeu purificar o fenômeno jurídico, mas
antes cuidou de purificar a Ciência Jurídica ao propor como seu objeto precípuo de estudo o
direito positivo.
Kelsen, no primeiro capítulo da Teoria Pura do Direito, deixa bem clara sua pretensão
de pureza metodológica:
Quando a si própria se designa como “pura” Teoria do Direito, isto significa que ela
se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste
conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa,
rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a
ciência jurídica de todo os elementos que lhe são estranhos. Esse é seu princípio
metodológico fundamental. (KELSEN, 2003, p. 1).
Sob o ponto de vista ético, tal pureza metodológica baseia-se na ausência de juízos de
valor por considerar a justiça um ‘ideal irracional’, inacessível ao conhecimento. Somente
através de uma atitude positivista é que se revelaria a Teoria Pura como verdadeira Ciência do
Direito.
Nesse quadro, o positivismo acaba gerando duas atitudes: ou se aceita o paradigma
juspositivista ou se postula um direito positivo com fundamento em um direito natural de
ordem superior, quer dizer, suprapositivo. Parece não haver lugar para posição distinta. Esse é
o dilema subjacente ao trato das questões analisadas neste estudo e que tem sido recorrente
em todas as fases da história da ciência do direito.
Para enfrentar essas e outras questões, o trabalho faz um sintético esboço das
principais idéias de Kelsen naquilo que de mais significativo remarcou seu positivismo
jurídico normativista. São questões que ainda permanecem como um desafio para a Ciência
Jurídica atual.
Com acerto, observa Coelho que: “Sem Kelsen, sem a Teoria Pura, sem o desafio
kelseniano, talvez a filosofia jurídica não estivesse ainda pronta para a exploração dessas
novas e revolucionárias possibilidades” (COELHO, 2001, p. 70).
É dizer que está pronta para novos questionamentos teóricos, que, na atual fase de
transição pós-moderna, se colocam como uma exigência inarredável.
2 DADOS BIOG RÁFI COS
Através do método da Teoria Pura do Direito, propôs Kelsen para a Ciência Jurídica
positivista um tratamento rigoroso e objetivo. Pensava Kelsen que a Ciência Jurídica, até
então praticada, pecava pela inexistência de rigor e objetividade, qualidades essas que se
devem exigir de qualquer conhecimento que pretenda constituir-se como verdadeiramente
científico.
Em 1940, emigrou para os Estados Unidos, onde foi Professor das Universidades de
Harvard e de Berkeley, na Califórnia.
Segundo Araújo Lima (1995, p.15), entre as obras mais importantes de Kelsen, podem
ser mencionadas:
Muitas são as contribuições teóricas de relevo deixadas por Kelsen à Teoria Geral do
Direito que se podem destacar: a sua concepção sobre a norma fundamental, como norma
superior pressuposta de um ordenamento jurídico; a concepção de Corte Constitucional
introduzida pela primeira vez no texto da Constituição austríaca de 1920, de cuja elaboração
participou; a defesa da existência de leis próprias do Direito em face da natureza e da
realidade social, situando o Direito na categoria epistemológica do dever-ser, sendo seu objeto
de interesse tão-somente a norma jurídica; o monismo jurídico, defendendo a assimilação
entre Direito e Estado; e a sua concepção piramidal do ordenamento jurídico em que se apóia
sua produção e aplicação. Vale lembrar ainda as categorias inovadoras de sua Teoria Geral do
Direito, a saber: a distinção entre normas e proposições jurídicas, a coação física como nota
identificadora do Direito, a negativa de conhecimento objetivo da moral e os juízes como
destinatários precípuos das regras jurídicas.
Hans Kelsen, por toda a sua obra (ao todo mais de seiscentas obras publicadas, em
diversos idiomas, entre livros e artigos), é um dos autores mais conhecidos em nosso País;
constituindo-se em ponto de referência na vida de qualquer estudioso do Direito. Contestando
a Kelsen sobre o porquê do interesse das pessoas em conhecer a “Teoria Pura do Direito”,
Recaséns Siches pronunciou as seguintes palavras, perfeitamente ajustáveis à realidade
jurídica brasileira, que bem refletem o interesse dos juristas pátrios:
Como se nota, os temas analisados pela teoria kelseniana estão presentes ainda em
muitas das reflexões jurídicas, daí ser considerado Kelsen um dos mais importantes teóricos
do Direito de nosso tempo, sendo indiscutível o seu valioso legado para a Ciência do Direito.
Mais do que nunca Kelsen permanece vivo, dado o interesse que provocam seus
questionamentos para a Ciência Jurídica e para a pragmática do Direito.
3 POSITIV IS M O JURÍD I CO: PARTE H ISTÓR I CA
3.1 Na Grécia
Ademais, observa o Estagirita que o Direito Natural se caracteriza pelo seu conteúdo
ético objetivo, em que as ações prescritas são boas, incondicionalmente, indiferentes que são à
atitude subjetiva do sujeito. Por outro lado, o Direito Positivo afasta o caráter objetivo da
ética, preocupando-se tãosomente com o que é conforme a lei, independentemente da
motivação.
3.2 Em Roma
Como traço marcante desse período, prevalece o entendimento de ser o Direito Natural
revelado de acordo com a Lei Divina, ao passo que o Direito Positivo seria estatuído de
conformidade com o Direito Natural. Predomina hegemonicamente, no período medievo, a
Lei Natural, uma vez que ‘posto’ pela vontade de Deus. O Direito romano somente adquiriu
sua força vinculante, sua validade como Direito em virtude de sua derivação do divino.
Nenhum direito humano, que esteja em conflito direto com o Direito Natural, tem validade
alguma.
[...], pouco a pouco, inicialmente os reinos (em particular o reino da França), depois
os civitates (as comunas) proclamaram a sua autonomia e independência do Império,
declararam-se Jurisdictionem habentes (isto é, dotados do poder de criar o direito),
definiram-se como civitates (ou reinos) sibi principes (para significar que eram
independentes do “príncipe” - por antonomásia, o Imperador). (BOBBIO, 1995, p.
31-32).
Nessa fase, conforme já vinha sendo desenhado no período da Idade Média, o Estado
tende a concentrar todos os poderes ao seu redor, sendo onipotente como órgão legislador,
seja através do poder de editar leis, seja através do reconhecimento ou controle sobre as
normas de extração consuetudinária.
Para Hobbes as leis naturais são aquelas que, no estado da natureza ainda não têm
vigência e no estado civil, deixaram de viger. [...] Para resumir o pensamento
hobbesiano sobre a validade da lei natural e da lei civil, podemos dizer que a lei
natural põe toda a sua força a serviço do direito positivo e, desta forma, morre ao dar
à luz o seu filho. (BOBBIO, 1997, p. 42 e 44).
O Direito Natural nessa fase teve como característica principal e mais evidente o seu
viés secular, profano e não teológico. O Direito Natural foi concebido sem nenhum apoio na
teologia e na revelação sobrenatural, mas somente com base na natureza humana racional.
Destarte, com isso diz-se que o Direito Natural conhecia-se por meio da razão,
enquanto o Direito Positivo se fazia reconhecer tão-só pela declaração da vontade de um
legislador.
São as seguintes:
Antes de conhecer o positivismo professado por Hans Kelsen, convém seja feita uma
ligeira introdução ao positivismo tal como ele se apresenta em sua versão científico-filosófica.
Consoante o Dicionário Abbagnano de Filosofia (2000, p. 776), o termo positivismo foi usado
pela primeira vez por Saint-Simon para designar o método exato das ciências e sua extensão
para a filosofia. Foi posteriormente adotado por Auguste Comte para a sua filosofia e que,
graças a esse pensador, passou a designar uma corrente filosófica que até hoje possui
seguidores.
A idéia principal do positivismo parte do princípio de que a sociedade é regida por leis
naturais, que têm como características serem constantes e independentes da vontade humana.
Seu postulado fundamental é de que as leis que regem o funcionamento da vida social,
econômica e política são do mesmo tipo das que regulam as leis da natureza, sendo assim, de
ordem física e mecânica.
E, da mesma forma que as ciências naturais são neutras, objetivas e imunes a juízos de
valor subjetivos, as ciências da sociedade devem se comportar de acordo com o paradigma de
objetividade.
O mundo não pode ser adivinhado” (AFONSO, 1984, p. 69). Afirma, ademais, o
positivismo que o método da ciência é exclusivamente descritivo, visando, através da
descrição dos fatos, chegar às regularidades entre os fatos expressos pela leis, culminando
com a previsão dos próprios fatos. A descrição das leis gerais dos fenômenos, obtidas através
da observação, constitui o único método legítimo para a atividade científica.
É fato admitido por muitos que a Teoria Pura do Direito constituiu a mais grandiosa
tentativa de fundamentação da Ciência do Direito como ciência. Por certo que não há como
negar que o positivismo filosófico, como sistema geral de idéias, influenciou praticamente
todas as ciências do espírito, particularmente a Ciência do Direito e especialmente a
concepção de ciência em Kelsen, o seu positivismo jurídico.
Reportando-se a Max Weber que pregava a separação de maneira rigorosa dos juízos
de fato e de valor, no processo de análise empírica da realidade, Michael Löwy assinala que:
Com isso, Max Weber quer dizer que a análise dos fatos não conduz, de maneira
lógica, a nenhuma conclusão política ou moral. Não há vínculo lógico-dedutivo entre
a análise fatual e a análise político-moral. Max Weber diz que os valores morais não
podem se reconciliar a partir de raciocínios científicos. Por exemplo, quem teria a
pretensão de refutar o Sermão da Montanha? Não se pode refutar uma ética
cientificamente, pode-se acreditar em outra, mas não há maneira científica de provar
que um determinado valor seja certo e outro errado. Também, acreditar em consenso
de valores é uma ilusão, porque se os valores culturais, nacionais, sociais são
opostos, não se pode acreditar que a ciência possa resolver esse conflito, acreditar
nisso é um erro fundamental. (LÖWA, 2003, p. 57).
Tendo em conta as diversas espécies de positivismos jurídicos, uma vez que existem
diversas correntes positivistas com significações diferentes, em que pese o traço comum da
visão positivista se limite ao real, ao dado e ao demonstrável positivamente, convém, nessa
altura, situarmos as diversas modalidades desse pensamento, quando não, para efeitos
didáticos:
a) Como uma abordagem neutra do Direito, visto pretender que o Direito seja considerado
uma Ciência, a semelhança das ciências naturais e físicas. Como ciência feita apenas de juízos
de fato, nunca de valor, a realidade deve ser vista de forma apenas descritiva, sem qualquer
influência do observador sobre o objeto em observação. Consoante essa neutralidade, está o
formalismo jurídico, onde o Direito é definido em função de sua estrutura formal, sem ter em
conta o conteúdo de que o Direito é portador;
b) No que pertine à concepção coercitiva do Direito com base no Direito pautado e instituído
pelo Estado. Nesse sentido, Ihering admite a coação como uma concretização de uma
finalidade por meio da sujeição da vontade alheia, sendo o Direito fundado no poder
coercitivo do Estado com vistas a assegurar as condições de funcionamento da sociedade;
c) A concepção juspositivista sobre a lei como única fonte de qualificação do Direito,
partindo-se do pressuposto da existência de um ordenamento jurídico complexificado e
hierarquizado, onde existe mais de uma fonte jurídica, as quais se preordenam consoante uma
hierarquia existente. Assim, o Estado como a única fonte do Direito e a lei como única
expressão do poder normativo estatal;
d) A concepção imperativa da norma jurídica, que configura o direito como um comando.
Bobbio nota que há duas fases do imperativismo jurídico: a primeira, chamada de
imperativismo ingênuo, quando o Direito é tido como um conjunto de ordens dirigidas pelo
soberano aos súditos, sem considerar a estrutura do imperativo jurídico; a segunda, chamada
imperativismo crítico, tem em conta a norma jurídica como imperativo hipotético, o qual tem
como destinatários os juízes e não os cidadãos. Como se sabe, a teoria dos juízes destinatários
da norma jurídica foi aceita por Kelsen, que considerou ser a norma primária destinada aos
juízes e a norma secundária dirigida aos cidadãos, sendo estes não os destinatários de
verdadeiros comandos, mas sim sendo a eles mostrada uma alternativa, consistente em
obedecer a lei ou sofrer a sanção;
e) A teoria do ordenamento jurídico, tendo como características a unidade, a coerência e a
completitude.
− No que concerne à unidade, cuida-se de uma unidade formal, que diz quanto ao modo pelo
qual as normas são positivadas. Tal significa que existe uma única autoridade que confere
imediata ou mediatamente caráter jurídico ao amontoado de normas.
− No que concerne à coerência, funda-se na crença de que para uma norma integrar o
ordenamento ela precisa ser compatível com as demais normas jurídicas. Nesse sendo, mister
aplicar determinados critérios no caso de conflito de normas, quais sejam: o cronológico (em
que a norma posterior derroga a anterior); o hierárquico (em que a norma hierarquicamente
superior derroga a inferior); e o da especialidade (em que a norma especial prevalece em face
de uma norma geral).
− Já a completitude consiste em afirmar a inexistência de lacuna na lei, porquanto se há um
fato não contemplado por nenhuma norma é porque esse fato situa-se fora dos limites do
Direito ou porque, se não há uma norma para tal fato, há uma secundária implícita nas
presentes que regula todas as situações.
f) A concepção de que o papel da jurisprudência é simplesmente reproduzir o Direito, isto é,
desentranhar o conteúdo das normas jurídicas já postas e não criá-las. Defende o positivismo
que a jurisprudência não deve criar normas, mas somente interpretá-las. A partir dessa
concepção, conclui-se que o jurista deve buscar a norma que soluciona o caso concreto,
interpretando a norma de forma mecânica. Desse modo, o positivismo privilegia na
interpretação as formas, considerando a exegese uma operação de dedução lógica de conceitos
abstratos, sem se importar com a realidade social ou os conflitos de interesses subjacentes à
norma interpretada;
g) Outra característica da concepção positivista diz com a obediência absoluta à lei. A lei deve
ser obedecida de forma incondicional, visto ser a forma racional de o Estado e os homens, que
ao Estado estão submetidos, atuarem. Nestes termos, Bobbio (1995) acrescenta que somente
será questionada a obediência à lei quando houver outra norma que regule diferentemente a
situação. Caso contrário, a desobediência à lei implicará em responsabilidade pelo
cometimento de um ilícito.
a) Como método para o estudo do Direito, bem como para sua aplicação. Assim,
reivindicando um estatuto científico, o método positivista assemelha-se ao método científico,
no aspecto em que a ciência se faz a partir de proposições sobre um objeto que podem ser
verdadeiras ou falsas;
b) Como teoria do Direito, conforme as premissas anteriormente descritas, ou seja: a) a teoria
coativa do Direito; b) a teoria legislativa do Direito; c) a teoria imperativista do Direito; d) a
teoria da coerência do ordenamento jurídico; e) a teoria da completitude do ordenamento
jurídico; f) a teoria da interpretação lógica ou mecanicista do Direito;
c) Como ideologia do Direito – conforme Bobbio (1995), o positivismo se apresenta em duas
versões: a primeira, que leva ao extremo o dever de obediência absoluta às leis, o que conduz
ao culto do Estado (estatolatria) e ao autoritarismo; a segunda, a versão moderada que, ao ter
em conta valores do Direito como a ordem, a igualdade formal e a certeza, se identifica mais
com o Estado liberal do que com o Estado autocrático.
Por essa razão, prega Kelsen um método monista para a Ciência Jurídica, o que
importa na necessidade de banir da Ciência Jurídica toda espécie de sincretismo
metodológico, não se admitindo interferências de outros métodos que não o jurídico. A pureza
de método exige que se prescinda de outros métodos próprios de outras ciências não-jurídicas
como a filosofia, a sociologia, a psicologia, etc.
Nesse sentido considera que a Ciência Jurídica deve estudar o seu objeto, consistente
das normas jurídicas, com indiferença de se saber se a conduta que prescreve a norma ocorra
ou não no mundo fenomênico. Em outros termos, não deve estudar a conduta efetiva dos
destinatários da norma, mas tão-somente se limitar a descrever as normas jurídicas que
integram o ordenamento jurídico. Para Kelsen, a ciência se caracteriza pela descrição da
realidade através de enunciados que revelam as relações de causa e efeito entre os fenômenos.
Dessa forma, o ato de conhecimento da Ciência do Direito é considerado tal como nas
ciências da natureza, como ato eminentemente descritivo, no caso, descrição das regras
jurídicas postas pelo órgão competente. A crença positivista é de que simplesmente, através da
descrição, se pode chegar ao conhecimento científico, conforme observado nas ciências
naturais.
A Ciência Jurídica, em face de ser normativa, implica atividade descritiva das normas
jurídicas, ou seja, cinge-se a enunciar as normas mediante proposições jurídicas. Ciência
normativa no sentido de que o Direito deve ser visto como um sistema de normas, que
conhece normas, através da descrição. Analogamente às ciências da natureza (que descreve os
fatos naturais), a Ciência do Direito tem a função de descrever as normas jurídicas, rejeitando
considerações de ordem valorativa como o ideal de justiça ou o fim da norma, pois a crítica
das normas não é função da Ciência.
De acordo com Kelsen, na descrição de uma ordem normativa da conduta dos homens
entre si, é aplicado o princípio da imputação, diferente do que é aplicado na descrição de uma
ordem natural, que é o princípio da causalidade. Enquanto se diz na proposição jurídica que se
A é, B deve ser, mesmo quando B não venha efetivamente ocorrer, na lei natural se afirma que
quando A é, B é ou será.
Outra diferença observada consiste em que toda causa é, ao mesmo tempo, efeito de
outra causa, e todo efeito, a sua vez, causa novo efeito. Essa relação tende a se projetar em
uma escala infinita. A mesma cadeia de sucessão ao infinito não ocorre em face do princípio
da imputação, visto que não há derivação alguma. A hipótese de incidência da norma resulta
de uma específica definição normativa, não gerando necessariamente a sanção novo contexto
de imputação.
Explica Kelsen:
Bem por isso, a crítica que foi dirigida por Alf Ross (2003) à teoria kelseniana,
tachando-a de idealismo formal, posto que o fundamento do Direito é baseado numa hipótese
teórica que passa a ser considerada como o critério de determinação do jurídico.
Destarte, as normas como substrato de atos de vontade, não são verdadeiras ou falsas,
porém válidas ou inválidas. As proposições jurídicas, como juízos hipotéticos, são verdadeiras
se reproduzem fielmente as regras em trato, ou falsas, no caso contrário. Para Kelsen o
conjunto de normas jurídicas, ou seja, o ordenamento jurídico, não possui lógica interna, já
que as regras podem ser somente válidas ou inválidas, não sendo apropriado atribuir-lhe o
epíteto de verdadeiras ou falsas, não cabendo a sujeição das relações entre regras de uma
mesma ordem jurídica aos preceitos da lógica formal. Nesse sentido, segundo o binômio do
falso e do verdadeiro, pode-se dizer que as normas jurídicas são emanadas das autoridades,
simplesmente em razão da competência atribuída pela ordem jurídica, sem, todavia, se
verificar uma necessária compatibilização lógica entre as normas. As normas são simples
comandos, atos de vontade.
Cumpre observar que essa dicotomia entre o que é Direito (norma) e o que é Ciência
(proposições jurídicas) se revela bastante questionável, haja vista a linguagem que veicula a
descrição jurídica não ser portadora de sentido unívoco, da mesma forma que é imprecisa a
linguagem que exprime as normas jurídicas dada a multiplicidade da linguagem natural.
Ademais, na descrição da natureza, a causalidade ocorre independente da vontade do cientista,
ao passo que, na descrição das proposições jurídicas, a vontade do cientista intervém na
formulação da proposição jurídica, em face da necessária interpretação que realiza.
Com efeito, não nos parece possível a separação rígida entre sujeito cognoscente (o
cientista) e o objeto (o Direito), sendo a “contaminação” entre ambos muitas vezes inevitável,
principalmente, nos chamados casos difíceis (hard cases), quando o ato de subsunção do fato à
norma não é um ato passivo, mas antes de participação criativa do intérprete, realizando ao
mesmo tempo obra de cognição e criação jurídica.
Além disso, cumpre lembrar que ao operador jurídico lhe é conatural ter de responder
a casos concretos na sua prática diária, de onde a inevitável escolha que há de proceder
sempre sobre um valor de justiça. A dificuldade da formulação kelseniana se agiganta, a nosso
ver, quando se sabe que o Direito, como técnica de controle social, é estatuído por razões
essencialmente operativas e não teóricas e formais, momento em que a pragmática assume
valor proeminente fundamental na realidade social.
Como é sabido, a dogmática jurídica se dirige aos Juízes e aos demais operadores
jurídicos, propondo soluções juridicamente corretas para casos concretos. Entretanto, o
positivismo jurídico kelseniano nega esta atividade como científica por exceder ao
conhecimento descritivo do Direito. A atividade prática de resolução dos problemas jurídicos
não é aceita como sendo atividade científica porque não seria suscetível de racionalização por
meios puramente lógicos. Para ele o jurista, que sustenta uma determinada interpretação como
a única correta, não cumpre uma função científico-jurídica, mas sim uma função jurídico-
política.
Como se sabe, a pretensão primeira perseguida pela Teoria Pura do Direito é de ser
uma ciência teorético-cognoscitiva exata do Direito Positivo, desvencilhada de toda política,
como assim de outras ciências. Para alcançar esse objetivo concentra Kelsen sua atenção no
sistema de normas válidas, entendendo como direito positivo aquilo que está disposto de
forma normativa. Não inclui ainda, nos seus estudos a Constituição, base de todas as leis, nem
tampouco se detém sobre a esfera de aplicação das leis, por não perceber nestes momentos
uma etapa de produção de direito. Até então seu sistema de Direito Positivo era um sistema
estático de apreensão do Direito como ordem do dever ser.
Tal distinção entre teoria estática e teoria dinâmica serve para delimitar qual o papel da
Ciência Jurídica perante o estudo das normas. A teoria estática se preocupa com as normas
reguladoras do comportamento humano pelo prisma do conteúdo. Pela teoria estática, uma
norma é válida quando o seu conteúdo tiver sido logicamente originado de uma norma
hierarquicamente superior ou mais abrangente. Tal teoria é afeiçoada mais à moral, ao passo
que se preocupa a teoria dinâmica com a regulação da conduta humana pelas normas jurídicas
sob o prisma da validade. Por essa teoria, uma norma é válida desde que tenha sido
formalmente produzida consoante autorização prevista em uma norma superior.
Nesse ponto, Kelsen deixa bem claro qual é o objetivo da Ciência Jurídica: descrever o
direito por meio das proposições jurídicas, estudando a conduta humana estabelecida pelas
normas, oferecendo uma interpretação normativa da conduta humana. A norma jurídica surge
como o conceito principal do objeto da Ciência Jurídica e a proposição jurídica como o
resultado da apreciação científica desse objeto, o Direito. Com o estabelecimento das
categorias da norma jurídica e da proposição jurídica, Kelsen estabelece a diferença entre a
atividade do aplicador do Direito e a desempenhada pelo cientista jurídico:
A Ciência Jurídica, porém apenas pode descrever o Direito; ela não pode, como o
Direito produzido pela autoridade jurídica (através de normas gerais ou individuais),
prescrever seja o que for. Nenhum jurista pode negar a distinção essencial que existe
entre uma lei publicada no jornal oficial e um comentário jurídico a essa lei, entre o
código penal e um tratado de Direito Penal. (KELSEN, 2003, p. 82).
Afirma Kelsen que o sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurídica
tem essencialmente um caráter dinâmico. De tal sorte, para o cientista não lhe importa, no
estudo do Direito, o conteúdo da lei, mas o conhecimento do ato que produz a regra jurídica.
A Ciência do Direito não deve preocupar-se com o conteúdo das normas, mas com a sua
dinâmica, ou seja, com a validade, a unidade lógica da ordem jurídica, a norma fundamental
do sistema jurídico, as lacunas, etc; temas esses relativos à produção e aplicação do Direito. À
Ciência Jurídica, segundo a doutrina kelseniana, cabe tão-somente descrever o objeto (a
norma) e não participar de sua produção e aplicação; visto que à autoridade jurídica se lhe
adjudica estabelecer a norma, ao passo que ao cientista jurídico cumpre tão-somente descrevê-
la sob a forma de uma proposição jurídica. Destarte, a norma prescreve, a doutrina descreve.
A Ciência do Direito, esclarece Kelsen, não pode fazer outra coisa senão estabelecer as
possíveis significações de uma norma jurídica, através das proposições jurídicas. E como as
normas jurídicas, mediante enunciado das proposições jurídicas, fazem parte de um sistema
essencialmente dinâmico, não importa o conteúdo para a definição de validade das normas.
Como síntese do que foi exposto, ou seja, do discriminen entre teoria jurídica estática e
teoria jurídica dinâmica resulta que o sistema jurídico comporta duas análises,
respectivamente, quanto ao conteúdo e quanto à produção do Direito. Ilustrativamente, poderá
ocorrer uma situação em que o texto constitucional poderá ter sido desobedecido do ponto de
vista estático, mas obedecido do ponto de vista dinâmico, ou obedecido do ponto de vista
estático, porém desobedecido do ponto de vista dinâmico.
Nesse passo, a norma fundamental surge como o instrumental manejado para resolver
a questão do fundamento de validade das normas jurídicas, independentemente de valoração
sobre o conteúdo da ordem jurídica. Ela não prescreve nenhum conteúdo específico. Desta
forma, qualquer ordem jurídica tornase válida desde que haja uma norma fundamental que dê
suporte a esta validade e, assim, por uma lógica de raciocínio, todas as normas componentes
da ordem serão válidas também.
Para Kelsen, a norma fundamental é aquela que não baseia sua validade sobre outra
norma superior e que não é posta por nenhum órgão competente, ou seja, por nenhuma
autoridade. Ela é uma norma pressuposta, porquanto não é posta nem é ditada por nenhum
legislador. Se precisasse buscar o seu fundamento em outra norma, evidentemente que não
poderia ser fundamental. Essa norma pressuposta, que não pode ser derivada de uma norma
mais elevada, é a norma fundamental. Ela é a que, em última análise, confere validade a todas
as normas que compõem todo o arcabouço jurídico:
Dado que o fundamento de validade de uma norma somente pode ser uma outra
norma, esse pressuposto tem de ser uma norma: não uma norma posta por uma
autoridade jurídica, mas uma norma pressuposta, quer dizer, uma norma que é
pressuposta sempre que o sentido subjetivo dos fatos geradores de normas postas de
conformidade com a Constituição é interpretado como o seu sentido objetivo. Como
essa norma é a norma fundamental de uma ordem jurídica, isto é, de uma ordem que
estatui atos coercivos, a proposição que descreve tal norma, a proposição
fundamental da ordem jurídica estadual em questão, diz: devem ser postos atos de
coerção sob os pressupostos e pela forma que estatuem a primeira Constituição
histórica e as normas estabelecidas em conformidade com ela. (Em forma abreviada:
devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve.). (KELSEN, 2003, p. 224).
Esclarecendo melhor, para a Teoria Pura, o Direito não é nada mais que um conjunto
de normas intrinsecamente vinculadas por relações de validade, sendo o seu suporte
derradeiro também uma norma. Essa norma oferece, em última instância, o fundamento de
validade a todas as normas componentes do conjunto jurídico, razão pela qual se denomina de
norma fundamental, por permitir que o sistema jurídico seja autofundado, extraindo do
próprio sistema sua validade. Nesse sentido, importa perquirir qual a relevância para a Ciência
do Direito positivo da existência da norma fundamental? E por que deve haver uma única
norma fundamental?
A importância do tema da norma fundamental advém do fato de que se não se puder
encontrar nenhuma base para a justificação da validade da norma fundamental, não apenas a
validade dessa norma restará comprometida, mas também a própria validade de todas as
normas da ordem jurídica. Com efeito, todas as normas pertencentes a um ordenamento
jurídico terão validade somente se existir uma norma fundamental reputada válida para
fundamentar tal ordenamento. Assim, a norma fundamental aparece como um pressuposto
indispensável, porquanto sem ela não poderia ser estabelecido o caráter normativo da
Constituição positiva. Demais disso, a norma fundamental evita que o pensamento jurídico
fique lançado em um raciocínio de regresso ao infinito, em que sempre se poderá perguntar
pela norma fundante. Para pôr fim a semelhante atitude, Kelsen concebe a norma fundamental
como um limite último. Com ela, chega-se ao ponto de partida de um processo de criação do
Direito Positivo no qual se pode fixar-se. A função da norma fundamental é igual à dos
axiomas ou postulados das demais ciências, porquanto representa o ponto de partida que
possibilita a construção e demarcação do objeto do conhecimento, tal como o zero faz na
Matemática, ao evitar que a Matemática perca-se num infinito de valores mínimos e condene-
se a si própria como algo ilógico.
d) Serve para identificar e dar unidade a todas as normas do sistema. Esta função da norma
fundamental opera na constituição do sistema jurídico, porquanto sendo a norma fundamental
“o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem jurídica,
ela constitui a unidade na pluralidade dessas normas”. Tratase, pois, da identificação das
normas que integram um sistema jurídico positivo.
e) É uma norma pressuposta, significando que a norma fundamental não é o resultado de um
ato de vontade, mas decorre de uma posição epistemológica. É uma norma pressuposta para
poder interpretar certos fatos com conseqüências normativas. Pela necessidade de unificar o
sistema, de impedir o regresso ao infinito nos parâmetros de validade e também pela
necessidade de conferir estatuto de ciência ao direito, a norma fundamental é pressuposta. Do
exposto, exsurge, em nosso espírito, a pergunta relativa à razão pela qual se deve pressupor
que a norma fundamental seja ela mesma válida, ao ponto de, inclusive, legitimar a validade
de todas as normas positivas do sistema jurídico. Nesta quadra, vamos deter-nos nas respostas
oferecidas pelo próprio Kelsen. A primeira, encontrada na Teoria Pura do Direito, faz analogia
da norma fundamental com as categorias do entendimento de Kant e; a segunda, esboçada na
“Teoria Geral das Normas”, remete à “Teoria do Como Se” de Hans Vaihinger.
Vejamos:
[...], a teoria pura recusa-se a ser uma metafísica do Direito. Conseqüentemente, ela
procura a base do Direito, isto é, o fundamento da sua validade, não num princípio
metajurídico, mas numa hipótese jurídica, isto é, numa norma fundamental a ser
estabelecida por meio de uma análise lógica de pensamento jurídico efetivo.
(KELSEN, 2000, p. XXIX-XXX).
Destarte, pode-se licitamente deduzir do pensamento kelseniano que sendo
pressuposta uma norma fundamental a uma só vez é possível: a) dar unidade a um aglomerado
de normas que até então era considerado de modo fragmentário, o que poderia comprometer a
certeza e a segurança jurídicas; b) julgar a validade dessas normas, ou seja, existe a
possibilidade de interpretação de certos sentidos subjetivos de atos de vontade, como sendo
também seus sentidos objetivos; c) conferir um estatuto de cientificidade ao Direito, ou seja,
legitimar epistemologicamente o objeto do conhecimento científico do Direito.
Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é,
purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural,
uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade
específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a
Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em
raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do
espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do
Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do
Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a
ciência: objetividade e exatidão. (KELSEN, 2004, p. 251).
Desse modo, vê-se que Kelsen passa a adotar novo entendimento segundo o qual a
norma fundamental, como ficção, não é nada mais do que um artifício de que se lança mão
quando não se pode alcançar o fim do pensamento com o material existente. Para o autor, a
norma fundamental é uma ficção e não mais uma hipótese, como anteriormente entendida,
visto que se assim considerada estar-se-ia admitindo a hipótese de ela ter sido posta por um
ato de vontade; contrariando a função da Ciência do Direito que é de apenas descrever o seu
objeto: o direito.
Com esse novo enfoque, passa a aceitar que a Ciência Jurídica se vale da ficção para
pressupor a norma fundamental. Como ficção, a norma pressupõe uma autoridade superior
que a estabelece, embora se saiba de antemão que esta autoridade não existe.
Nesse momento, pode-se dizer que, concebendo a norma fundamental como ficção,
está abandonando Kelsen toda a objetividade pretendida à estrutura do Direito, porquanto já
não há e nem pode haver concordância entre a norma fundamental e a realidade jurídica. No
uso do artifício da ficção, não há mais preocupação alguma em eliminar contradições, mas ao
reverso a ficção encarna em si mesma contradições lógicas. Com isso, resta inviável o projeto
kelseniano de ser a norma fundamental essencialmente e objetivamente algo exclusivamente
jurídico e imunizado contra qualquer tipo de elemento ideológico ou político. Nesse sentido
último de ficção, a norma fundamental poderá ser entendida – nada impede – inclusive como
a própria idéia de justiça do jusnaturalismo, já que a norma fundamental, a exemplo do valor
justiça, também se situa fora do Direito posto. Assim, resta claro que Kelsen não se limitou a
descrever o ordenamento jurídico, mas através da ficção acaba construindo um conceito do
Direito Positivo mítico e irreal. Tal como na aceitação da norma fundamental como hipótese,
na admissão da norma fundamental como ficção estaria igualmente a Ciência saindo de sua
função, posto não ser seu papel criar ficções, mas somente descrever normas. Permanece,
pois, a aporia em Kelsen, porquanto, apesar da pretensão racionalista de pureza metódica,
vislumbra-se um certo grau de metafísica na sua construção teórica da norma fundamental.
Afinal a Ciência Jurídica tem como função o conhecimento do Direito. A criação de normas
jurídicas está reservada aos órgãos especialmente competentes para tal fim. Kelsen, no
entanto, persevera em aduzir que a norma fundamental é uma pressuposição. O problema
remanesce pendente, porquanto não é papel da Ciência Jurídica pressupor uma norma, ou
melhor formulando, não é função da Ciência Jurídica criar presuposições, mas apenas
descrever normas, conforme sentença Kelseniana.
A Teoria Pura do Direito não se resume à teoria da norma fundamental. É sabido que
um ordenamento jurídico não se apresenta como um conjunto de normas justapostas umas as
outras, mas como um conjunto de normas vinculadas por um mesmo fundamento de validade.
Assim, as normas estão vinculadas à norma fundamental de uma maneira sistêmica, de forma
que guardam entre elas uma relação. Este vínculo decorre de que uma norma dá validade à
outra que, por sua vez, retira sua validade de uma outra norma, até que no ápice nos
deparamos com a norma fundamental. Nesse ponto, Kelsen (1986), conforme sobredito
alhures, adota, em seu sistema como componente essencial da teoria pura do direito, a tese
desenvolvida por Adolf Merkl do escalonamento da ordem jurídica.
As normas de uma ordem Jurídica cujo fundamento de validade comum é esta norma
fundamental não são – como o mostra a recondução à norma fundamental
anteriormente descrita – um complexo de normas válidas colocadas umas ao lado
das outras, mas uma construção escalonada de normas supra e infra-ordenadas umas
das outras.
Desta maneira, nota-se que uma norma pode estar em relação de inferioridade,
igualdade ou de superioridade em face das demais. Assim, o ordenamento jurídico se concebe
não como um simples agregado de normas que regulam o comportamento humano, mas como
um conjunto sistemático e orgânico de normas. No ápice, se encontra a Constituição como Lei
Maior e, à medida que se vai descendo, as leis complementares, as leis ordinárias, os decretos,
etc, até ubicar na base da pirâmide normativa, na qual se encontram as normas individuais.
Mais acima, inclusive da primeira Constituição histórica se encontra – já fora da
própria pirâmide normativa, como norma pressuposta e hipótese lógicotranscendental −
sobrepairando à constituição no sentido positivo, a denominada norma fundamental
kelseniana. Tratar-se-ia de uma norma não posta, pensada, fruto de um ato intelectual e não de
um ato de vontade.
Todas as normas da pirâmide estarão unidas entre si pelo conceito de validade, que
cada norma recebe da superior. A validade consiste assim na vinculação de uma norma
jurídica ao ordenamento jurídico em virtude de se ajustar aos critérios formais desse
ordenamento. Trata-se então de que cada norma tenha sido produzida pelo sujeito ou órgão
competente e, em virtude do procedimento previsto na norma imediatamente superior, e
assim, de grau em grau, até ubicar na norma fundamental, não-histórica, mas pressuposta. A
esta validade meramente formal do Direito corresponde, como já reiteramos alhures, uma
concepção do Direito como sistema dinâmico, em face da concepção jusnaturalista da
validade não formal, mas material, vinculada com o conteúdo do particular ao geral, própria
dos sistemas normativos estáticos.
De tal arte, a validade de cada norma jurídica se sustenta na validade da norma jurídica
superior. Mas, cumpre perquirir: em que se apóia, por sua vez, a validade da norma
fundamental?
Neste passo, para se manter com uma teoria positivista e realista, diz-se que se apóia
não em uma norma, que não mais se poderá supor, mas em um fato, aquele que faz com que o
ordenamento jurídico seja efetivamente observado e aplicado em seu conjunto. A razão está
em que um ordenamento jurídico, como um todo, é válido à proporção que é eficaz, ainda que
uma de suas normas, singularmente, não tenha que ser por sua vez eficaz. De tal forma que a
eficácia do ordenamento jurídico global é assim condição necessária de validade de cada uma
das normas que o integram. Mesmo que a teoria kelseniana não acolha a idéia, a relação
mantida entre a validade e a eficácia se poderá equiparar à relação que existe entre Direito e
poder, porquanto o Direito (a validade) não pode existir sem o poder (a eficácia). Relação esta
que se nos afigura ser do tipo dialético, não se separando tão radicalmente, como defende
Kelsen, o plano da eficácia (do ser) do plano da validade (do dever ser).
A questão da justiça em Kelsen assume especial relevo, tendo em conta a firme
posição do autor em fazer o Direito Positivo valer independentemente do grau de justiça ou
injustiça contido em seu conteúdo. Ele afirma que a validade das normas do Direito Positivo
não depende da relação estabelecida com a norma de justiça. O direito positivo vale de per si,
ou seja, somente da norma positivada é extraída a sua validade subjetiva. Se a norma
ingressou sem vícios no sistema jurídico, daí ela retirará sua validade subjetiva. Despiciendo
invocar sua adequação a um ideal de justiça.
Para o jusfilósofo não se pode extrair de um ideal, como o de justiça, que se arvora em
absoluto – mas que para ele não o é – uma norma do dever-ser. O mundo do ser, de onde se
pode conceber um valor absoluto não se comunica com o mundo do dever-ser. Diz ele:
De tudo isso, percebe-se que, em face da ciência positiva, predomina uma postura
relativista, porquanto para Kelsen a Ciência Jurídica:
Não tem de decidir o que é justo, isto é, prescrever como devemos tratar os seres
humanos, mas descrever aquilo que de fato é valorado como justo, sem se identificar
a si própria com um destes juízos de valor. (KELSEN, 1998, p. 16).
Nesse sentido, ao vincular a teoria positivista, a uma teoria realista, Kelsen ampara-se
no relativismo axiológico, na inexistência de valor absoluto e na variação das normas de
justiça reputadas como válidas. Nas palavras do jusfilósofo:
Uma teoria do direito positivista, isto é, realista, não afirma – e isto é importante
acentuar sempre – que não haja nenhuma justiça, mas que de fato se pressupõem
muitas normas de justiça, diferentes umas das outras e possivelmente contraditórias
entre si. (KELSEN, 1998, p. 70).
Para Kelsen a única coisa que se pode afirmar é que um Direito Positivo foi elaborado
em consonância com uma determinada norma de justiça originária do direito natural. Não se
pode fazer daí um juízo de valor sobre a vantagem ou desvantagem de determinada ordem
positiva.
Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer,
porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico, do de
uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma
determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental
pressuposta.
Segundo o seu ponto de vista, a validade de uma norma jurídica se estabelece a partir
de uma referência à norma de nível superior adequada, cuja própria validade se
estabelece, sucessivamente, com relação à correspondente norma de nível superior a
ela e assim sucessivamente, até que se alcance a norma de nível mais alto no sistema
jurídico, a nível de constituição. Mais além do nível constitucional, não é possível
haver mais referências. Todavia, uma referência a um nível mais alto de normas de
Direito positivo se exclui “ex hypothesi”. E uma referência a algum tipo de fato está
impedida pela forte e firme distinção entre “ser” e “dever-ser” como reflexo do
dualismo metodológico. Uma terceira via de referência, a da moral, está também
excluída pela tese da separação. Como se estabelece, então, a validade das normas
no nível constitucional? A falta de qualquer outra referência se assume a sua
validade. E a assunção toma a forma da norma fundamental. (DINIZ, 2000, p. 194).
O que importa para a Ciência do Direito são as normas jurídicas positivas, sendo que
são válidas se inseridas dentro do ordenamento de um sistema positivo, independentemente de
seu conteúdo. No sistema normativo do tipo dinâmico, a norma fundamental fornece o
fundamento de validade das normas da ordem jurídica, sendo-lhe estranha a questão do
conteúdo das normas. O fundamento de validade é simplesmente formal, não vinculando o
conteúdo da ordem jurídica.
Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer,
porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do de uma
norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada –
em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta.
Por isso, e somente por isso, pertence ela a ordem jurídica, cujas normas são criadas
de conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo
pode ser direito.
Nesse ponto, cabe mencionar a relação entre validade e eficácia da norma jurídica. De
acordo com Kelsen, para a existência da norma não basta o atendimento aos critérios formais
de validade da norma, porquanto um mínimo de eficácia se faz necessário: “Uma ordem
jurídica é considerada válida quando as suas normas são em uma consideração global,
eficazes, quer dizer, são de fato Losano (1993), conhecido estudioso do pensamento
kelseniano, surpreende nesse momento uma aporia que nos revela um Kelsen contraditório no
tocante à defesa do dualismo intransitável e intransigente entre as categorias do “ser” e do
“dever”. Kelsen, segundo Losano, teve que admitir esta ligação com a realidade, quando
percebeu que uma norma jurídica perde validade quando deixa de ser eficaz. Nesse ponto faz-
se a vinculação com a realidade, com o mundo do ser, negado por Kelsen em sua pureza
científica.
Depois de construir essa estrutura hierárquica para manter a distinção entre o mundo
do “ser” e o do “dever-ser”, a Teoria Pura do Direito encontra-se diante de uma
dificuldade: a coerência com o seu pressuposto metodológico de pureza é
inconciliável com a realidade jurídica que ela quer descrever. Realmente, para que
uma norma jurídica seja válida, é preciso que ela também seja eficaz: ou seja, não
basta o respeito a certas formalidades no estabelecimento da norma, mas é preciso
que, de fato, a norma assim estabelecida seja também efetivamente aplicada. Kelsen
é obrigado a admitir que “tanto uma ordenação jurídica como um todo, quanto uma
norma jurídica isolada perdem a validade quando deixam de ser eficazes.” Em outras
palavras, para responder a questão em torno da qual constrói toda a sua doutrina (ou
seja, quais são os pressupostos formais para a validade de uma norma jurídica), Hans
Kelsen precisa renunciar à rigorosa separação entre mundo natural e mundo
normativo, entre “ser” e “dever-ser”.
De igual sorte, critica Larenz (1997) a teoria pregada por Kelsen, ao observar que ao
fim e ao cabo a relação entre eficácia e validade implica a passagem do “ser” ao “dever-ser’.
Entretanto, diga-se, a bem da verdade, que Kelsen, na “Teoria Pura do Direito”, não pregou a
separação absoluta entre “ser” e “dever-ser”, conforme se vê do seguinte trecho: “Este
dualismo de ser e dever-ser não significa que ser e dever-ser se coloquem um ao lado do outro
sem qualquer relação” (KELSEN, 2003, p. 224).
Nada obstante remanesce a aporia tendo em vista ter a “Teoria Pura do Direito” por
objeto a normatividade e não a realidade. É que, conforme admitido pelo próprio Kelsen, a
Teoria Pura não pode deixar de lado a realidade (o “ser”) no momento em que deve definir o
fundamento de validade da regra jurídica (o “deverser”).
Para encontrar a validade das normas, diz ele, é preciso recorrer a uma hierarquia de
normas, o que conduz Kelsen a uma norma básica – grundnorm – acima da própria
constituição, cuja única função é outorgarlhe validade, validando, assim, todo o
conjunto. A norma básica ou norma fundamental é mera hipótese (do pensamento
dogmático), desprovida de qualquer conteúdo ético ou empírico. Uma norma é
válida no interior de um ordenamento válido, cuja validade repousa no postulado de
que esta ordem possui validade. A explicação é idealista e formal: o ordenamento é
válido porque teoricamente o postulamos como válido.
Ora, se a eficácia (ser) é uma condição de validade (dever-ser) e para que uma norma
possa ser considerada como válida é preciso que seja efetiva, resulta a inconsistência da
metodologia kelseniana que tem que admitir o ser no dever-ser, donde não ser autônoma a
validade, precisando da eficácia. A esfera autônoma da validade necessita da eficácia e esta é
uma condição daquela.
Assim, um homem, para viver, tem de nascer: mas, para permanecer com vida,
outras condições tem ainda de ser preenchidas, v.g., tem de receber alimento. Se esta
condição não é satisfeita, perde a vida. A vida, porém, não se identifica com o fato
de nascer nem com o fato de receber alimento.
Ora, se a condição, com efeito, não se identifica com o que é condicionado, o fato é
que sem a condição não existe o que condicionar, logo, como reconhecido pelo próprio autor,
se a condição não é satisfeita nada subsiste, tudo estará perdido. De forma que pode-se dizer,
sem medo de errar, se a norma jurídica deixar de ser aplicada e cumprida, perdendo a sua
eficácia, evidentemente que a regra deixará igualmente de ter validade. Ou, em outras
palavras: se uma norma nunca é observada, nem aplicada, deixará de ser considera válida. De
resto, impende não olvidar que a validade da norma jurídica em Kelsen é de ordem
meramente formal, de maneira que o fundamento de validade da norma não pode transigir
com critérios formalísticos, nem permitir mesclagem de extração substancial. De fato – diz
Kelsen (2003, p. 236):
De algo ser não pode seguir-se que algo deve ser; assim como do fato de
algo dever ser não pode seguir que algo é. O fundamento de validade de
uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma.
De efeito, a tese de que o fundamento de validade de uma norma nunca pode ser um
fato (o ser) contradiz a tese de que a norma para ser válida (o deverser) deva ser eficaz.
Conforme nos lembra Afonso (1984, p. 268):
Finalmente, caso se rejeite radicalmente toda censura ética, como faz Kelsen, e se
aceite simplesmente como direito a ordem que tem efetividade, a validade específica
como categoria formal se transforma em algo supérfluo. Kelsen faz uma tentativa de
determinar a natureza do direito positivo prescindindo da realidade psicológica e
social. A impossibilidade disso se patenteia ao chegarmos à hipótese inicial (norma
básica ou Grundnorm). Enquanto permanecermos nos degraus inferiores do
ordenamento jurídico, será possível retardar o problema da validade da norma nos
remetendo a uma norma superior. Entretanto, este procedimento não pode ser
empregado ao chegarmos à hipótese inicial. A essa altura a questão da relação da
norma com a realidade se torna inevitavelmente urgente. Se se pretende que o
sistema faça sentido, está claro que a hipótese inicial não poderá ser selecionada
arbitrariamente. O próprio Kelsen afirma que esta tem que ser escolhida de tal modo
que esbanja o sistema que se acha efetivamente em vigor. Mas então fica claro que,
na realidade, a efetividade é o critério do direito positivo; e que a hipótese inicial,
uma vez que sabemos que é direito positivo, apenas cumpre a função de outorgar-lhe
validade que é exigida pela interpretação metafísica da consciência jurídica, embora
ninguém saiba no que consiste tal validade. A hipótese inicial é a fonte última de que
emana a validade, que se estende através de todo o sistema. Poderse-ia passar tudo
isso por alto como uma construção supérflua mas inócua se dela não resultasse o
fechamento dos olhos a uma rigorosa análise do critério de afetividade. Ao fazer da
validade uma relação internormativa (a validade de uma norma deriva da validade de
outra), Kelsen se impediu, desde o começo, de lidar com o cerne do problema da
vigência do direito: a relação entre o conteúdo ideal normativo e a realidade social.
(ROSS, 2003, p. 96-97).
Em que pese às críticas dirigidas contra Hans Kelsen, principalmente em face da sua
pretensão metodológica de pureza da Ciência do Direito, não há negar que sua teoria da
interpretação descortinou verdades até então encobertas pela teoria tradicional da
interpretação, mostrando Kelsen que a interpretação e aplicação de uma norma a um caso
concreto não se resume a um mero processo de dedução e subsunção, próprios de um
silogismo lógico, nesse ponto revelando-se bastante avançada a sua formulação.
A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os
aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora
maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior
tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o
caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem a
mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma
pluralidade de determinações a fazer. (KELSEN,, 2003, p. 388).
Com este entendimento, Kelsen delimita o papel do Cientista do Direito que, como
estudioso e não aplicador de direitos, deve-se limitar a interpretar objetivamente a norma
através de um ato de intelecção racional:
Demais disso, não esqueçamos a difícil exigência formulada por Kelsen para que o
jurista - como Cientista do Direito - se abstenha de valorar o Direito, quando se sabe que esta
é uma ciência social eminentemente pragmática voltada para equação de problemas humanos
concretos.
Kelsen (apud LOSANO, 1993, p. XV) - não sem uma certa ironia - adverte para o
caráter algo fantasioso desse ponto da teoria de Kelsen ao querer desqualificar a atividade da
prática jurídica como não-científica:
Uma vez que o Direito é estatuído por razões operativas e não teóricas, todo o
discurso de Kelsen vale apenas para um setor marginal dele. A diferença no peso da
teoria e da prática do Direito é eloqüentemente qualificável quando se confronta o
magro punhado de filósofos e teóricos do Direito com o gordo continente de juízes,
advogados e consultores jurídicos.
Parece-me que todos os paradoxos da Teoria Pura do Direito, assim como todas as
suas implicações filosóficas, derivam de uma teoria do conhecimento que só dá valor
senão a um saber não controverso, inteiramente fundamentado nos dados da
experiência, e da prova demonstrativa, desprezando totalmente o papel da
argumentação. Com efeito, nem a experiência nem a demonstração lógica permitem
a passagem do ser para o dever-ser, da realidade para o valor, de comportamentos
para normas. Por conseguinte, como toda justificação racional das normas parecem
excluídas na perspectiva kelseniana, estes dependem efetivamente de imperativos
religiosos, de revelações sobrenaturais. As metafísicas racionalistas que buscaram
um fundamento puramente humano para nossas normas e para nossos valores não
são de fato, senão ideologias, que se esforçam em vão para substituir-se ao
fundamento religioso não racional. E, sobre este ponto, é difícil não seguir o nosso
autor [Kelsen]: se nos recusamos a considerar probatórias intuições controversas,
não existe, no campo das normas e dos valores que nos regem a ação, provas
demonstrativas e coesivas. Mas cumprirá, a mingua de prova demonstrativa,
renunciar a justificar mediante uma argumentação, tão convincente quanto o
possível, nossas escolhas e nossas decisões, nossos valores e nossas normas? E
cumprirá, com a ambição de constituir uma ciência e uma Teoria Pura do Direito,
considerar como juridicamente arbitrário tudo quanto não pode ser justificado senão
por meio de uma argumentação assim? (PERELMAN, 1999, p. 476-477).
Como conclusão de tudo o que foi dito, parece-nos lícito deduzir que a atitude
positivista de Kelsen se mostra insuficiente diante dos aspectos múltiplos da realidade, visto
que deixa de fora do seu modelo científico todo um contexto social não enquadrável como
saber científico por se qualificar como irracional. Teríamos então de nos conformar com o
fato de que a prática jurídica, em sua quase totalidade, não serviria para outra coisa se não
para cobrir com um manto de respeitabilidade aquilo que os interesses e paixões impõem pela
força. De resto, a objeção kelseniana de incorporar a sua teoria do Direito Positivo o problema
da justiça deixa sem resposta os desafios concretos com que depara o jurista em seu trato com
a experiência do Direito e, portanto, com os valores.
Todavia, sem embargo do amplo prestígio de que gozou a “Teoria Pura do Direito”, os
juristas quando têm que dar solução a um caso concreto ao invés de elencar as várias
possibilidades interpretativas da norma jurídica, fazem, na verdade, a opção por defender a
interpretação que lhes seja mais defensável. Entretanto, nesta função, como entende Kelsen,
não exerceriam uma atividade de interpretação científica do Direito Positivo, mas uma função
política similar à que compete ao legislador.
Afirmava Hans Kelsen ser a questão das lacunas no Direito uma ficção jurídica. Se,
porventura, dada questão não encontrava solução em uma norma do ordenamento jurídico, tal
fato significava que semelhante questão se afigurava despicienda, visto que o sistema jurídico,
por definição, era hermético e completo. Fundando-se na premissa de que “tudo aquilo que
não está proibido, está permitido” (corporificando esta máxima a descrição de uma liberdade
jurídica negativa), Kelsen repelia a idéia de existência de lacuna no Direito. A aplicação do
ordenamento jurídico não ocorreria apenas de forma positiva, mas também, de forma
negativa, neste último caso existindo uma norma secundária implícita nas normas vigentes
que regem todas as situações.
Para ele, toda e qualquer conduta humana restará sempre regulada, donde inexistirem
condutas juridicamente indiferentes, porquanto tudo aquilo que não estiver imposto ou
proibido estará necessariamente facultado, seja positiva, seja negativamente, do que resulta a
impossibilidade de existência de lacunas. Quando, ilustrativamente, o aplicador rejeitava a
demanda sob o pretexto de que não havia regra incidente à espécie na verdade estava
aplicando o Direito vigente, debaixo do postulado de que “tudo aquilo que não está proibido
está permitido”, ou, melhor, estava lançando mão do postulado de que ninguém deve ser
obrigado a adotar certa conduta se esta não está prevista no Direito Positivo. De forma que,
implícito ao sistema, existe uma norma que reza que tudo o que não se encontra proibido, nem
é obrigatório, restará perdido, sendo que essa norma conterá todo e qualquer comportamento
para o qual não haja especificamente uma regra que o autorize ou proíba.
Para o autor, a lacuna era a diferença entre o Direito Positivo e uma ordem reputada
melhor e mais justa. De forma que só há lacuna quando se compara o Direito que é com o
que, na opinião do aplicador, deveria ser. É que, embora exista uma solução no ordenamento
jurídico, tal solução é considerada, sob o ponto de vista axiológico, insatisfatória. A lacuna
consistiria não na ausência de uma solução, mas na falta de uma solução satisfatória, assim
entendida a realização do ideal de justiça adotado pelo intérprete. A assertiva de que o Direito
possui lacunas, para Kelsen não passava de uma afirmação de caráter político-jurídico, uma
vez que tal não significa que o Direito não regulou o fato em questão, mas sim que não o
regulou como deveria ter regulado.
Nesse sentido, para Kelsen os órgãos judiciários somente se deparam com a questão
das lacunas, quando a resolução da demanda não coincide com os seus valores ético-políticos,
nada obstante o Direito Positivo pudesse ser perfeitamente aplicado. Se se dispusesse poderia
o aplicador se ater ao Direito vigente e rejeitar a demanda, valendo-se da máxima geral da
permissão das condutas não proibidas. Não o faz por reputar, sob o ponto de vista ideológico,
desacertada ou insastisfatória a solução prevista no ordenamento jurídico. O que, na verdade,
ocorre é que, sob o pretexto de colmatar a ordem jurídica, o que se faz é eliminar a norma
específica e substituí-la por uma outra, criando-se, na realidade, um Direito novo,
estabelecido livremente pelo convencimento do aplicador contra norma por ele tida por
injusta. Em que pese não admitir a existência de qualquer situação em que no ordenamento
jurídico não exista a norma que proíba, nem que permita certo comportamento, entende o
autor que se pode conceber a lacuna como uma ficção manejada pelo legislador, com o fito de
disciplinar o poder de interpretação e integração feita pelos intérpretes. Para Kelsen, a
plenitude do ordenamento é uma realidade, e a aceitação das lacunas uma ficção necessária
para limitar o arbítrio do juiz:
Por isso, o legislador, para limitar a atribuição deste poder aos tribunais, atribuição
essa considerada por ele como inevitável, recorre à ficção de que a ordem jurídica
vigente, em certos casos, não pode ser aplicada - não por uma razão ético-política
subjetiva, mas por uma razão lógica objetiva -, de que o juiz somente pode se fazer
de legislador quando o direito apresente uma lacuna. (KELSEN, 2003, p. 276).
Tal teoria se revela falha exatamente pela circunstância de que também o Direito cuida
das atividades permitidas, a par das atividades proibidas ou obrigatórias. O fato de ser livre a
atividade não quer dizer que tal atuação esteja à margem do âmbito de interesse do Direito.
Quanto à teoria da norma geral exclusiva, a falha apontada consiste em se constatar que, ao
contrário do que ela afirma, nem todas as situações não tratadas por uma norma particular são
equacionadas com o sinal contrário, mas, amiúde, é a solução semelhante à da norma escrita
que irá regular de modo mais satisfatório aquela situação não prevista. Olvidou a teoria de
dizer que:
O equívoco da teoria foi não ter em conta que paralelamente à norma especial e à
norma geral exclusiva, haveria uma terceira norma que autoriza o juiz - inexistindo regulação
específica de determinada situação – a lançar mão do recurso à analogia, na busca de
encontrar a solução do problema em casos similares. De tal maneira, conclui Bobbio (1999),
pela permanência da aporia da teoria das lacunas, não lhe parecendo possível excluir as
lacunas jurídicas do sistema nem por uma teoria nem por outra. Só que a questão agora se
desloca, segundo o autor, para a decisão de se saber se são análogas ou não as situações
deixadas ao intérprete.
Nesse caso, o problema deixa de ser a ausência de solução jurídica e passa a ser a
existência de mais de uma solução possível sem que haja um critério para aplicação da
solução, seja da norma geral inclusiva, seja da norma geral exclusiva. A lacuna ganha nova
feição: já não é a ausência de uma norma que possa ser aplicável, mas a ausência de critério
que possibilite escolher qual será a norma aplicável entre as que estão disponíveis. Ao
intérprete restará a liberdade de colmatar à lacuna do ordenamento jurídico, conforme ensina
Bobbio (1999, p. 139):
Mas agora sabemos que em muitos casos podemos aplicar tanto a norma que quer os
comportamentos diferentes regulamentado de maneira oposta ao comportamento
regulamentado, quanto a norma que quer os comportamentos semelhantes
regulamentados de maneira idêntica ao regulamentado. E não estamos em condições
de decidir mediante regras do sistema se o caso é semelhante ou diferente. E, então,
a solução não é mais óbvia. O fato de a solução não ser mais óbvia, isto é, de não se
poder tirar do sistema nem uma solução nem a solução oposta, revela a lacuna, isto
é, revela a incompletude do ordenamento jurídico.
No capítulo sobre Direito e Ciência do seu livro Teoria Pura do Direito, Kelsen (2003)
deixa bem claro que sua doutrina tem pronunciada tendência antiideológica sobremodo pelo
fato de sua descrição do Direito Positivo procurar manter-se afastada de qualquer confusão
com um Direito justo ou ideal. Bem por isso, proclama que é a Teoria Pura uma teoria do
positivismo jurídico, eis que se recusa a valorar o Direito Positivo. Somente assim, assegura o
jusfilósofo, se manifesta o caráter científico do Direito.
A Teoria Pura do Direito tem como objeto as normas jurídicas (o deverser) e não os
fatos da ordem do ser, ou seja, concentra a sua atenção sobre as normas jurídicas como
conteúdos de sentido de quaisquer fatos por elas apreendidos. Para ele, o termo “ideologia” de
acordo com o sentido que lhe é conferido pode ser aceito ou rejeitado pela Ciência Jurídica.
Pode ser entendida “ideologia” como oposição à realidade dos fatos da ordem do ser, ou seja,
tudo o que não seja uma descrição da realidade determinada por lei causal. Nesse sentido, o
Direito pode ser entendido como uma ideologia, por ser um ‘complexo sistemático’ diferente
da natureza. Existiria, assim, uma acepção positiva do termo ideologia aplicável ao Direito,
por indicar este como um sistema de relações distinto da natureza, estudado por nexos de
imputação e não de causalidade.
Entretanto, existe um segundo significado do termo ideologia correspondente a uma
representação não objetiva da realidade, influenciada que é por juízos de valor subjetivos, que
esconde e desfoca o objeto do conhecimento. Esta é a acepção negativa da ideologia, por
traduzir um querer que escamoteia a realidade, desfigurando-a em nome de interesses outros
que não a busca da verdade. Para Kelsen, o entendimento do Direito Positivo, como sendo
uma ordem normativa em contraposição a uma ordem fática, pode ser aceito pela Teoria do
Direito sem maiores preocupações; podendo ser concebido como ideologia nesse sentido.
Essa estrutura acaba por transformar-se em mais um instrumento que vai ser
manipulado pelos donos do poder, ou ao menos pelo grupo social hegemônico e no
seu próprio interesse. [...] aqui identificamos a ideologia próxima, subjacente à
“Teoria Pura do Direito”, a qual também reflete o espírito positivista, de que essa
racionalidade imanente se expressa na ordem social, a qual é fundamentalmente boa
e merece ser preservada, cabendo ao jurista sua descrição sob as categorias gnósicas
que define – o dever ser – mas alheia a qualquer juízo crítico-valorativo, eis que a
ordem social não deve ser julgada, mas aceita como tal, embora passível de
aperfeiçoamento.
No que se refere ao segundo aspecto, também a Teoria Pura sofreu críticas, pelo fato
de que não estava trabalhando com um sistema a partir de um objeto dado, um a priori, mas ela
própria construindo um objeto que suportasse um tipo de conhecimento que se auto-
reivindicava neutro, como requisito de cientificidade. Kelsen (apud COELHO, 1983, p. 180),
“não se deu conta de que a ordem cuja estrutura a Teoria Pura descrevia, não era uma ordem
que se antepunha ao conhecimento, mas o resultado da criação do espírito cognoscente.”
Sobre ser assim, conforme já ressaltado antes, a concepção de Ciência Jurídica acolhida pela
Teoria Pura deixa de lado e sem justificativa a atividade do aplicador do Direito já que Kelsen
limita a função do jurista à verificação da validade formal das normas, sem considerações
valorativas. Para ele, existe a interpretação que é feita pelo Cientista do Direito e a
interpretação que é feita pelo juiz. O cientista, ao interpretar, descreve a norma como parte da
ordem jurídica, de acordo com os princípios lógicos, ao passo que a interpretação do juiz cria
norma nova na busca de um ideal de justiça subjetivo, fora, portanto, dos parâmetros da
ciência.
Entretanto, para ele, o traço diferencial pode ser encontrado, no “como” as duas ordens
sociais prescrevem ou proíbem. Direito e moral se diferenciariam pela forma como se proíbe
ou prescreve determinada conduta. Enquanto as normas do Direito permitem o uso organizado
da força, quando as normas não são espontaneamente cumpridas; as normas da ordem moral,
quando descumpridas, acarretam sanções de ordem transcendental ou imanente, conforme
sejam aplicadas em outro plano mais além ou se produzam neste mundo, ambas sem a
interferência da força física. Kelsen sustenta que a única forma de distinguir o Direito de
outras ordens normativas é pelo tipo específico de sanção:
O que diferencia, pois, a ordem jurídica da ordem moral é o fato de que aquela regula
a conduta humana por meio de uma técnica específica. Essa técnica específica só pode ser
concebida se definirmos o Direito como uma ordem coercitiva. As normas sociais que
organizam a coação e estão institucionalizadas são normas jurídicas, enquanto as que não têm
organizada e institucionalizada a coação não são normas jurídicas. Assim, enquanto o Direito
sanciona as condutas das pessoas com o uso da força física, a moral apenas expede
recomendação, aprovando ou desaprovando as condutas.
Para Kelsen, é necessário delimitar as relações entre Direito e Moral. A distinção entre
os campos da moral e do jurídico deriva de sua busca pela autonomia da Ciência Jurídica.
Kelsen quer afastar a Ciência Jurídica das preocupações com a justiça ou com a injustiça.
Preocupar-se com a justiça constitui objeto da Ética, ciência voltada para estudar as normas
morais sob os aspectos do justo e do injusto. Para ele, essa questão quando não bem
equacionada é fonte de grandes equívocos. O maior deles consiste em querer fundamentar a
ordem jurídica numa ordem moral, invalidando as normas do Direito que forem contrárias às
normas morais. Baseia-se tal modo de pensar em se pressupor a existência de uma moral que
seja a única válida e de caráter universal. Não existem valores morais absolutos e universais
para o jusfilósofo, visto que em diversas épocas, nos diferentes povos e até mesmo dentro de
diferentes categorias, classes e profissões predominam sistemas morais diferentes e
contraditórios entre si, variando o entendimento do que se toma por bom e mau, justo e
injusto em todas as circunstâncias possíveis.
a) O Direito Natural tem como característica a universalidade, por ser válido em toda e
qualquer parte, ao passo que o Direito Positivo tem validade em apenas alguns lugares
determinados;
b) O Direito Natural se apresenta com o caráter de imutabilidade temporal por ser eterno e
constante, enquanto o Direito Positivo é essencialmente mutável e contigente. O Direito
Natural é aquele Direito dado, que se revela por meio da supressão dos elementos
contingentes do Direito, em contraponto ao Direito Positivo que é forjado, isto é, que se
constrói intelectualmente.
c) O Direito Natural distingue-se no referente à fonte do Direito, por ser o Direito Natural
proveniente da “natureza das coisas”, da natureza racional do homem ou da vontade divina,
enquanto o Direito Positivo se funda apenas na vontade declarada de um legislador, “tout
court”;
d) Conforme o critério pelo qual os destinatários tomam conhecimento do Direito, o Direito
Natural é aquele que tomamos ciência por meio da razão, ao passo que o Direito Positivo é
dado conhecer por meio de uma declaração de vontade alheia;
e) O Direito Natural, no que atina aos comportamentos regulados, entende que estes são bons
ou maus intrinsecamente, enquanto que, para o Direito Positivo os comportamentos se lhes
apresentam intrinsecamente indiferentes, somente assumindo uma qualificação apenas porque
foram regulados, de uma certa maneira pelo ordenamento jurídico. Em uma palavra: é justo,
porque ordenado; injusto porque vetado;
f) Por derradeiro, outra distinção reporta-se ao critério de valoração das ações. Para o Direito
Natural, deve ser valorado aquilo que se apresenta como bom, ao passo que para o Direito
Positivo prevalece aquilo que for considerado útil.
Essa dicotomia entre Direito Natural e Direito Positivo que acompanhou ao longo da
história o pensamento jurídico, contemporaneamente, porém perdeu força como instrumento
operacional, quer dizer, enquanto técnica para a descrição e classificação de situações
jurídicas passíveis de uma decisão normativa. Consoante se observa o Direito Natural jaz
positivado por meio de normas constitucionais que, com status de cláusulas pétreas, são
portadoras de direitos fundamentais do ser humano. Com efeito, os princípios fundamentais
positivados passaram a albergar as verdades supremas do Direito, outrora identificados como
Direito Natural. Tal fato concorreu para o enfraquecimento da dicotomia aludida, em face da
trivialização do Direito Natural, desde o momento em que todo Direito passou a ser
reconduzível a direitos outrora tidos por naturais. Ferraz Júnior (1996, p. 171) de há muito
vem denunciando esse fato explicando que:
Há mais de duas décadas que empreedi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é,
purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de Ciência Natural,
uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade
específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a
Jurisprudência, que - aberta ou veladamente - se esgotava quase por completo em
raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do
espírito. Importava explicar não as suas tendências endereçadas à formação do
Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do
Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a
ciência: objetividade e exatidão. (KELSEN, 2003, p. XI).
Dessa forma, a pureza metodológica apenas poderá ser atingida pelo banimento dos
elementos estranhos à sua essência. Com efeito, deve ser afastado qualquer apoio na ciência
dos fatos, assim como em reflexões de natureza sociológica e política. Na visão kelseniana, o
elemento extra ou meta jurídico está automaticamente fora dos limites da Ciência do Direito.
Estão assim englobados nessa perspectiva as considerações de juízos axiológicos sobre o
conteúdo da norma jurídica, vez que a preocupação do Cientista do Direito está direcionada
apenas ao aspecto formal da norma. Quanto ao debate envolvendo a justiça no interior de sua
visão científica, parte Kelsen da idéia de que se o valor justifica, não pode ser expresso em
termos objetivos, não será o justo ou injusto contido na norma que conferirá o caráter jurídico
da norma, mas apenas a forma como ela é produzida. Essa é a proposta kelseniana
consolidada na Teoria Pura do Direito, pretendendo escoimar o Direito de toda e qualquer
influência de elementos que lhe são estranhos, pelo fato de ser uma ‘teoria jurídica consciente
da sua especificidade, porque consciente da legalidade específica do seu objeto’, conforme
transcrito acima.
Como postura positivista, pode-se apontar quem concebe a dogmática jurídica como
um conhecimento do Direito que se limita à sua descrição e sistematização por meio de
operações lógico-dedutivas, permanecendo este conhecimento autônomo em face dos juízos
de caráter político ou moral. Marcel Waline (apud AZEVEDO, 1989, p. 45), assim bem define
o positivismo jurídico, formal, dentro da concepção filosófica do Direito, dizendo que é a
doutrina que:
Só admite como critério de valor jurídico de uma norma sua conformidade formal e
material com outra norma, tomada como padrão dos valores jurídicos num sistema
determinado, e a que se chama norma jurídica fundamental, assim como com outras
normas regularmente promulgadas pelas autoridades qualificadas por essa norma
primeira, que é, no tocante ao Direito de um Estado, a Constituição desse Estado.
Almeja o positivismo jurídico formal com isso uma análise não-valorativa e não-
crítica do Direito, animada que é do propósito de converter o Direito numa ciência objetiva,
tal como as Ciências Naturais. Entende que, sendo a ciência composta de juízos de fato e não
de valor, a realidade deve ser encarada de forma meramente descritiva, sem qualquer
influência do observador para com o objeto em estudo. Subsumida a essa visão não-valorativa
está o formalismo jurídico, de acordo com o qual o Direito deve ser concebido em função de
sua estrutura formal, sem preocupação com o conteúdo de que o Direito seja portador:
Situa-se aí o positivismo normativista de Kelsen que prega aviso ao anunciar que quer
limitar-se ‘ao conhecimento e interpretação do Direito positivo’. A exclusão da Filosofia da
justiça é expressamente apontada no prefácio à segunda edição da “Teoria Pura do Direito”:
“O problema da justiça, enquanto problema valorativo, situa-se fora de uma teoria do Direito
que se limita à análise do Direito positivo como sendo a realidade jurídica” (KELSEN, 2003,
p. XVIII). A visão de Kelsen, focalizando seu interesse no aspecto gnoseológico e
epistemológico, na tentativa de construir uma Ciência do Direito metodologicamente pura,
culminou por desembocar num formalismo jurídico que, ao pretender afastar todas as
ideologias, acabou demonstrando sua capacidade de absorver qualquer uma delas, conforme
admitido pelo próprio Kelsen:
Essa neutralidade axiológica que busca apenas conhecer e descrever a ordem jurídica,
sem valoração, na opinião dos críticos de Kelsen, conteria uma ideologia disfarçada,
consistente, justamente, em consagrar toda e qualquer ideologia. Entretanto, a crítica mais
mordaz à concepção kelseniana advém do fato de que, ao reduzir o universo jurídico à norma
pura, em todo o seu formalismo abstrato, esta teoria destrói o que há de essencial no Direito,
ou seja, a matéria social regulada, não sendo mais uma teoria do Direito Positivo, mas uma
teoria lógica do Direito, “tout court”.
8 A QUESTÃO DA JUSTIÇA
Essa idéia de justiça tem sido atualmente criticada por oferecer um conceito de Direito
puramente formal e vazio de conteúdo, e por implicar uma atitude reducionista ao pretender
afastar outras análises complementares à compreensão do Direito. Nessa linha de pensamento,
situa-se o entendimento de Azevedo ao dizer que:
Este enfoque reconhece que o Direito é norma, porém entende que a juridicidade não
se limita ao modelo lógico-formal de conduta corporificada pela lei, mas resulta da referência
das estruturas normativas a todo o sistema jurídico; assumindo os princípios, como
transfiguração dos valores, plena normatividade. A atitude kelseniana de querer reduzir toda
idéia de justiça ao conteúdo inserido nas normas jurídicas, strito sensu, não condiz com o
pensamento de que os princípios fundamentais possuem normatividade, e mais, que os
princípios são identificados e equiparados com valores, sendo a expressão mais alta da
normatividade que fundamenta a ordem jurídica.
9 CONC LUSÃO
Da análise empreendida, resulta claro que, embora o positivismo sob qualquer de suas
faces apontadas aqui, limite-se ao estudo da realidade empírica, teve o mérito de haver
promovido o conhecimento do lado existencial e humano do Direito, deixando ver,
contrariamente à concepção jusnaturalista, que antes de ser positivado o Direito não existe
como ordem jurídica, sendo inquestionável a relevância das normas jurídicas. Nesse sentido, a
teoria positivista parece bastante realista ao apresentar o fenômeno jurídico como sendo as
normas produzidas pelo Estado.
Com efeito, não remanesce dúvida de que o jurista deve priorizar as normas positivas,
bem como deve se dedicar ao trabalho de perquirição e interpretação das normas jurídicas.
Entretanto, não devem as normas constituírem empecilhos para que o jurista possa propugnar
pela consecução do justo, máxime em situações em que o apelo aos princípios fundamentais
possa ser invocado para a resolução do caso concreto.
Com esse sentimento, impende desenvolver esforços contra os excessos logicistas que
desembocam no formalismo jurídico, que até pode ser de grande valia para o jurista afeito às
disputas acadêmicas e cerebrinas, mas que não guardam nenhuma serventia para a sociedade.
Esta, afinal de contas, a grande destinatária desse labor, mas que não entende, não tem
interesse, e nada lucra desse refinado exercício teórico, que obstina por ignorá-la, por não
atentar para o contexto social em que se gera e desenrola o Direito.
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