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Afinal, o que é Educação?

Hosaná Dantas

Sempre acreditei ser da máxima importância o profissional estabelecer um


conceito daquilo a que se propõe fazer. Independente da sua área de atuação, seja
ela lógica ou humanística. É imprescindível saber o que se pretende, onde se quer
chegar, mensurar os obstáculos, estabelecer alternativas (de desvios ou de
enfrentamentos), quantificar metas e comprometer-se com elas, conhecer a
história daquilo a que se compromete, saber ler as variáveis que compõem o seu
campo de trabalho.

É exatamente a busca de apontamentos para aquelas e outras questões que,


decerto, surgirão, que definirão um conceito para o seu desenvolvimento
profissional.

Em Educação, não poderia ser diferente. Até hoje, onde quer que eu passe e
experimente “sensações pedagógicas”, fico pensando: “Como será que fulano de tal
definiria a Educação?”.

E você, que se interessou por este artigo – e, talvez, seja educador -, afinal,
como conceituaria essa coisa que nos move, diuturnamente, ideologicamente ou
não, aos recônditos mais extremados, cheios de livros nas mãos e de revoluções na
cabeça, o casaco marcado pelo pó de giz, para ensinar aqueles que devem
aprender?

Se possível, desfaça-se daquelas definições teóricas, decoradas para passar


na prova de História da Educação. Quer dizer, nada contra tais definições teóricas.
O problema é que elas, de uma maneira envolvente, acabaram nos aprisionando
em uma camisa de força. E esse foi o mal. Destituíram-nos de voz e de condições
ativas, deixando-nos a repetir, por vezes sem mesmo compreendê-las, fórmulas
prontas, responsáveis até, mas quase sempre impróprias às realidades com que
nos defrontamos. Viramos bons teóricos, entretanto sem muito vínculo a uma
prática afirmativa.

Então, a questão se faz assim: “Com suas palavras...” - parece enunciado de


avaliação, não é? – “... por um viés que contemple a sua prática e pensando em
uma realidade contextual, que você conhece ou deveria conhecer, como
estabeleceria um conceito para Educação?”.
Para não pensar que sou injusto com os estabelecimentos teóricos, recordo-
me de um texto que li, há tempos, do Luís Camargo, um arte-educador, em que lá
pelas tantas, ele proclama: “Educação é o processo de desenvolvimento do ser
humano”. Parece-me um bom começo para buscarmos o tal conceito a que me
refiro.

Antes de qualquer coisa, vou dizer uma obviedade. Repare que o objeto final
do nosso empenho é o ser humano. Está bem, reconheço que não é lá muito
original, mas deixe-me apontar algumas coisas sobre essa obviedade. Tenho
notado atitudes, sistemas, metodologias que parecem ter sido criadas esquecendo-
se exatamente de que é o ser humano o alvo da nossa energia. O principal deles é
a tentativa sempre constante de padronização dos alunos. Padroniza-se em uma
sala, em uma série, em um escalonamento quantitativo de avaliação, em um
modelo de comportamento e de posturas... Já nessa referência de padronização,
parece-me claro o esquecimento do que é o ser humano. Uma instituição
inconstante, múltipla de formação, e de características diferenciadas, a quem não
cabe processos de pasteurização; e lá estamos nós determinando essa ou aquela
conformidade segundo critérios que julgamos certos e imperiosos. Lembro-me de
ter visto, perdidas as contas, professores sacramentando definições a um ou outro
aluno, pela simples razão daquele não atender a um determinado padrão de
comportamento atribuído como condizente ao que se espera do estudante. E
segue-se com o dito processo pedagógico, na crença irresponsável de que se está
fazendo Educação.

Quer um outro dado para refletir? Seja franco, quantas vezes já mandamos
para a Diretoria, Coordenação ou qualquer outra instituição assemelhada em
nossos espaços pedagógicos, aquele aluno quieto, que mal se mexia na carteira,
mas que só tirava boas notas? Aposto que você deve ter se perguntado “Ora, se ele
tirava boas notas, por que cargas d’água eu o mandaria para a Diretoria?”. Veja aí
se não cometemos mais erros. Não importa muito o que fazia aquele aluno ficar
quieto, não se mexer, às vezes até nem sabíamos como era o tom de sua voz, se
suas notas eram as melhores da classe. Pensamos em rótulos: alunos
“problemáticos” são aqueles que tiram notas ruins. E esses, sim, devem visitar o
Diretor para uma “conversinha”. Nunca quisemos enxergar que, mesmo aqueles
quietinhos, também precisavam da tal “conversinha” – precisávamos saber o que
se passava com eles, o que os angustiava, porque ficavam assim... Puxemos na
memória. Lembra-se de que aqueles alunos, normalmente, eram os mais tristes de
toda a classe? Ora, se estivéssemos preocupados com o processo de humanização
embutido no viés pedagógico, decerto eles seriam também alvo de nossa
preocupação. Mas não, posso até parecer injusto, mas duvido muito de que naquele
momento estávamos preocupados com a idéia de que lidamos com seres humanos.
Acho que estávamos mais interessados em nos livrar de um problema, ou melhor,
em não acrescentar mais problemas à nossa já imensa lista do que fazer.

Perdia-se ali a possibilidade de buscar uma consciência mais holística no


trato com a questão da variável humana no contexto pedagógico.

Não podemos perder de vista a idéia de formarmos um conceito, não é?


Depois de chamarmos a atenção para o objeto do nosso trabalho, vale pensar em
outro fragmento do dito do Luís Camargo: desenvolvimento. Percebeu mais uma
obviedade? Nossa missão é promover o desenvolvimento do ser humano. E a
questão fica mais simples: estamos realmente envidando esforços para que se
manifeste o tal desenvolvimento?

A questão me incomoda porque, mais uma vez, observa-se uma certa


inconsistência nas práticas e pensamentos. Que desenvolvimento estamos
promovendo? A primeira inquietude vem de uma contradição bastante comum nos
espaços escolares. Se tiver tempo e paciência, faça uma enquete para confirmar
minha exposição. Pergunte a alguns professores qual o objetivo do trabalho
pedagógico. Prometo-lhe um doce se grande parte das respostas não for algo do
tipo: “o objetivo é formar alunos críticos, pensantes, capazes de elaborar o seu
próprio aprender etc etc etc”. Corta para a prática. Lá na sala de aula, o aluno,
desavisado desse princípio – mas, intuitivamente, desejoso dele – resolve fazer um
comentário, à sua maneira, reconheço, mas perfeitamente atinente ao que se está
expondo, e ouve alguma coisa parecida com “eu já não falei para não interromper a
aula?”; ou, ainda, mal maior, em um exercício de verificação de aprendizagem
outro aluno até descobre uma forma alternativa de se chegar ao mesmo resultado
apontado pelo professor no gabarito, mas descobre também que, se não fizer como
o professor ensinou, a resposta está errada.

Percebeu a contradição? De um lado, queremos formar alunos críticos e


pensantes; de outro, não deixamos os alunos serem pensantes e críticos. Tínhamos
que pensar em desenvolvimento – criar condições para existir o tal
desenvolvimento, promover alternativas, estabelecer estratégias, rever planos,
modificar posturas e atitudes, enxergar horizontes de atuação em que essa variável
seja base do trabalho.

Não sei se você já viu isso nas suas andanças, mas existem professores que
punem moralmente os alunos que não se coadunam com suas propostas de
trabalho. Sabe aquela coisa de humilhar o aluno, ou de criar situações de
constrangimento, muito comuns nos primórdios da Educação? Pois é, ainda existem
hoje em dia, e talvez sejam até mais freqüentes do que imaginamos. Decerto,
esses mesmos professores responderiam à sua hipotética enquete que estão
fazendo de tudo para “formar pessoas melhores, alunos mais conscientes”.

Sabe o que é mais curioso? Eles acreditam, realmente, que estão


contribuindo para o desenvolvimento dos alunos. Na maior das vezes, não é má fé,
nem desinformação. Há um dado cultural que chega a ser interessante estudar.
Esse mesmo professor também foi formado acreditando na estratégia da
humilhação como pressuposto para se alcançar o desenvolvimento. Quer dizer,
acredita-se que se o aluno for desafiado em sua integridade, ele cria mecanismos
de defesa e de segurança, o que, em certa medida, é variável de desenvolvimento.
Pode até ser, mas não é uma teoria confiável, já que os efeitos colaterais, via de
regra, são desastrosos. Sabe aquele sujeito que não dança nada só porque quando
participou de uma aula de dança alguém fez um comentário jocoso sobre o seu
jeito de dançar? Pois é, a comparação é pertinente. Jamais teremos idéia de o
quanto estaremos contribuindo para podar talentos...

Outra coisa, faz-se ainda preciso aprofundar o conceito de desenvolvimento.


Parece que o associamos apenas à referência intelectual. Entretanto, o indivíduo
precisa experimentar variáveis diversas de desenvolvimento: sócio-afetivo,
relacional, comportamental, profissional. E é preciso que admitamos: às vezes,
pouco contribuímos para o desenvolvimento intelectual, o que se dirá em relação às
outras variáveis? Penso que grande parte do nosso esforço deveria ser voltada a
essa problemática. Não basta ter alunos inteligentes, é preciso pensar neles como
uma instituição global e buscar alternativas para que a convivência nos espaços
escolares pressuponha uma garantia de que outras áreas também sejam
desenvolvidas. Até imagino que você deva estar pensando no quanto eu estou
maluco. “Se mal temos tempo para cumprir os programas, como vamos analisar o
aluno nessas referências todas?”.

Confesso-lhe que fico preocupado com esse posicionamento dos professores


em relação ao cumprimento dos programas. Penso em Paulo Freire e na sua
metáfora contida na expressão “Educação Bancária” – acho que você já deve ter
lido algo a respeito; aquela idéia de depositarmos a qualquer custo conhecimento
na cabeça dos alunos. Perceba, por favor, que não estou aqui tentando decifrar
enigmas da Educação. A minha fala tem que ser compreendida a partir de um
distanciamento, através do qual possamos ter uma idéia maior do problema. Ora,
será que o cumprimento normatizado dos programas é um ganho? Novamente,
vem-me a imagem de que nos distanciamos do que possa ser associado ao ser
humano. O cumprimento do programa parece uma atitude robotizada de um
sistema que esquece níveis de complexidade da constituição dos alunos – até
mesmo da nossa. Assim, se alcançarmos uma evolução sobre a discussão dos
temas que se relacionam com os programas de ensino, decerto estaremos criando
espaços para que o conceito de tempo nas atividades pedagógicas propicie-nos
novos posicionamentos e posturas na elaboração de propostas que visem ao
desenvolvimento global do aluno.

Quase ia me esquecendo. É preciso voltar à frase do Luís Camargo, pois há


ainda um componente interessante lá: a palavra “processo”.

Quando dizemos que Educação é “o processo de desenvolvimento do ser


humano”, deveríamos nos convencer de que há algo aí inconcluso, de natureza
processual, não acabada. E não é curioso que, via de regra, enxergamos o nosso
trabalho como um produto? Depois que o aluno aprender determinado conceito –
verificado por intermédio de um sistema de avaliação ineficiente -, logo já temos
outro conceito para que ele aprenda; no final do ano, termina-se um ciclo, para ser
recomeçado no ano seguinte; e assim vai. É como se tivéssemos em mãos
pequenos produtos, com os quais elaboramos o nosso plano de trabalho. Quando
temos a idéia de processo, ela dura o tempo estabelecido naquele plano: uma aula,
um mês, um bimestre, um trimestre. E, com raras exceções, esse processo nem é
analisado quando se faz uma leitura avaliativa do aluno.

É a compreensão desse termo “processo”, que faz parte, naturalmente, do


desenvolvimento humano que nos propiciará, espero, uma reflexão maior do nosso
comportamento, já que ele traz uma realidade que alguns professores nem gostam
de pensar. A de que, a bem da verdade, os alunos nem precisam muito de nós para
o seu amadurecimento. A nossa permanência na vida deles tem uma importância
muito curta – é claro que alguns professores tornam essa permanência
inesquecível, fazendo-se verdadeiramente importantes. Os alunos vão receber
influências de outras instituições: a família, os amigos, a sociedade, o trabalho, as
mídias, as convicções religiosas etc. E todas estas influências, somadas à nossa,
constituirão o tal processo de desenvolvimento.

A idéia é que criemos uma consciência dos nossos limites. E, sobretudo, que
aprendamos a conceituar o nosso trabalho. Por que princípios eu vou caminhar?
Quais são as bases que constituem o meu método? Quando se estabelecem
algumas diretrizes que fundamentam aquilo que se está fazendo, no mínimo há
uma consciência profissional responsável que fornecerá respaldo ao que se
pretende.

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