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A FEBRE
por Fernando Correia Pina

Sei que vou num comboio e é tudo. Sei-o pelo ruído metálico e regular do aço das rodas
ao transpor as juntas de dilatação entre os carris; sinto-o pelo modo como as curvas
suaves empurram o meu corpo para um e outro lado e isto é tudo e tudo o resto é
estranheza: a carruagem tem paredes de pedra e cal, sem portas, com uma janela apenas,
uma pequena janela apenas, junto ao tecto, escondida atrás de um cortinado sem cor
certa, comido pelo tempo e pelo tédio. Do tecto pende uma lâmpada, na extremidade de
um fio que já foi branco, uma lâmpada solitária que se esforça para encher o
compartimento com uma luz soturna de anemia. Estou sozinho.
Subitamente, alguém corre o cortinado. É um som familiar aquele, o das argolas de
latão a deslizar sobre o varão de ferro. Levanto a cabeça. O revisor olha-me fixamente
lá do alto. Muito polidamente diz-me: desculpe-me se interrompo os seus pensamentos
mas é só para o informar que está morto, caso ainda não tenha reparado. E volta a correr
o cortinado.
Agora, ao rés do tecto, flutua uma mulher – ocorre-me esta definição - em decúbito
ventral aéreo, com os braços abertos em cruz e os cabelos longos caídos, ensombrando-
lhe o rosto e os seios; uma mulher completamente nua, à excepção de um sapato de
salto alto, finíssimo, que lhe calça o pé esquerdo. Do sexo timidamente aberto, do
vértice da púbis coberta de minúsculas algas verdes, macias como o humilde musgo de
Dezembro escorre, até ao chão, um fio de mel perfeitamente translúcido que mais se
assemelha a uma estalactite de vidro que a algo que extrai toda a sua existência do fluir.
O mel forma uma poça corrosiva no chão e abre um buraco insondável no pavimento
de lajes antigas. Ajoelho-me para melhor olhar lá para dentro enquanto a minha mãe,
surgida não sei de onde nem por onde, se bem que isso não me cause qualquer espanto,
me põe, com ar preocupado, a mão na testa.
Só então me apercebo do ruído, semelhante ao de uma broca de dentista, algures por
cima de mim. Levanto a cabeça. O tacão da mulher prendeu-se numa racha da parede e
o seu corpo rodopia vertiginosamente sobre o eixo maior, reduzindo-lhe a anatomia a
uma longa tira espiral, como uma casca de laranja tirada, de um só corte, de pólo a pólo.
Só depois, cessado o movimento, me apercebo que na longuíssima tira de pele o acaso
escrevera, a sangue, em toda a sua extensão, a tabuada do oito.
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Olho de novo o buraco no chão. A medo, mergulho nele até aos ombros perscrutando o
azeite espesso das trevas.
A sala, de que só podia ver um dos ângulos, diluía-se na distância e na escuridão e lá
estava eu, com um rosto estranho, sentado, imóvel, num sofá de veludo roxo, segurando
uma vela de estearina negra, na mão direita que tremia.
Ao norte de mim, com as velas feitas em farrapos, como pendões de pele seca pendendo
de ossos descarnados, um galeão espanhol jazia tombado para bombordo, levantando
sob o seu peso o pavimento xadrez de mosaicos de mármore numa onda de pedra
estilhaçada, imóvel. Pelo rombo aberto no forro do costado derramava-se uma torrente
de esmeraldas e dobrões de ouro com a efígie irreconhecível do Deus verdadeiro. O
comandante do navio, único sobrevivente do naufrágio, arrastou-se até mim com as
pernas esmagadas pela queda da mezena, deixando atrás de si um rasto de sangue e,
chegado ao alcance da minha mão que prometia a ressurreição da carne, disse, a cantar:
et in arcadia ego.
A vela consumiu-se. Não sei qual delas. As palavras febris trocam de vazios. O coto
arde ainda dentro da concha da minha mão. O calor penetrou-me as entranhas. Suo.
Com a roupa colada à pele e a língua seca como um monólito de sal erguido no deserto,
arrasto-me na fila interminável dos recém-chegados ao Inferno. Os guardas perguntam-
me o nome entre dois golpes de chicote. Não me lembro, respondo-lhes, mas é algo
como a frase oposta ao corrimão das escadas. Um profeta – exclamam eles, furiosos,
rebentando num pranto convulsivo. Convoquem os Colectores!
Este é o meu quarto, penso eu, enquanto os louva-a-deus recolhem entre os seus
fémures verdes as gotas de suor para as juntar, como contas, num imenso rosário de
onde pendem três dedos de criança. Este é o meu quarto. A cama está no meio de uma
mesa de snooker infinita. Bolas vertiginosamente grandes, como planetas, passam,
rodopiam, entrechocam-se. Todas ostentam símbolos estranhos que sei serem os antigos
números côncavos-inteiros que orbitavam em redor do sete nos primeiros dias da
Criação.
Ei-lo que chega. Todos se curvam e afastam para lhe dar passagem. Senta-se ao meu
lado e perscruta-me a chaleira do peito, com ar ausente de cego. Quarenta e um –
murmura - e mete-me na boca a ambrosia, um pó cuja embalagem proclama ter sido
feito das clavículas trituradas de Adão e Eva.
A custo, engulo a essência branca diluída em água. O líquido traz-me um alívio efémero
apesar do seu sabor amaríssimo que me obriga a cerrar apertadamente os olhos. Quando
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volto a abri-los estou de novo na escola, sentado na carteira da frente. Atrás da


secretária, sobre o estrado alto, de madeira, ambos os cotovelos apoiados no tampo do
móvel, o professor lê um texto hebraico. Sobre a sua cabeça, girando lentamente, paira
a letra aleph. Finda a leitura, enrola cuidadosamente o pergaminho que oculta num
buraco da parede após o que se põe em pé, empunhando uma lança que arremessa na
minha direcção. A ponta de ferro oxidado penetra, certeira, sem qualquer dor ou
desconforto, no flanco direito do meu peito. É a Lança do Destino.
Tentando em vão estancar a hemorragia com a pressão da palma da mão, dirijo-me para
a saída, ao som insistente da campainha.
Para lá da porta uma leve brisa azul aflora-me o rosto empalidecido. O mar está por ali,
algures. Vagueio pelo areal, erraticamente. Entre os destroços paridos pelas marés do
delírio avisto o meu candeeiro de cabeceira, a estante dos meus livros, um ou dois rostos
familiares, meio enterrados na areia quente e húmida dos pesadelos. Vozes amigas soam
ao longe chamando-me pelo meu nome. Com esforço consigo mover os lábios e
articular a palavra água.
Depois, há uma cãibra no tempo. Todos os seus filamentos se entretecem de novo num
único fio, num mesmo sentido. Estou deitado na cama, no meu quarto. No espelho onde
o quadrado da hipotenusa começara a masturbar-se, vejo agora apenas o meu rosto e
saio devagar dessa louca viagem entre o sonho e a realidade, renasço coberto de penas e
placenta das entranhas dementes desse útero fecundado pela febre, da fornalha do Sol
desse horóscopo escrito a cinábrio e canela na esponja do cérebro aquecido ao rubro.
Estou deitado na minha cama, no meu quarto. A benção da frescura desce sobre mim.
Olho, uma vez mais, o meu reflexo exausto no espelho e penso – sou eu.
E, como uma âncora, a palavra eu desce até ao mais fundo de mim, reconstruindo o
círculo e o centro.

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