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Novo plano para a dinamização da fileira oleícola alentejana

São campos e campos a perder de vista…mares de verde seco com reflexos aveludados

de prata velha quando o vento lhes revira a folha dura, afiada, persistente. São exércitos

de bondade em perfeito alinhamento na lisura dos campos ou bandos de velhos

sacerdotes da luz mediterrânica inclinando as vetustas colunas para contrabalançar o

peso das desgrenhadas cabeleiras no escorregadio dos declives. Cansa-nos o olhar a

monotonia rectilínea do seu compasso de xadrez ou fustiga-nos o assombro da sua

improvável sobrevivência no aperto uterino de qualquer penedo seco e estéril. E são

assim os nossos olivais…e os nossos olivais são feitos de oliveiras, o que não é de

estranhar. E as nossas oliveiras que são das árvores mais belas que há, se bem que assaz

temperamentais – porque não há bela sem senão, – estão hoje condenados à

mendicidade, à dependência das dietas comunitários, aos caprichos dos nutricionistas,

aos interesses mercenários das grandes superfícies, às podas extemporâneas das

economias de escala, às preia-mares e baixa-mares da cultura dos primores…enfim, a

oliveira está a tornar-se numa árvore reduzida aos frutos espremidos, sem aquelas fortes

raízes que o Virgílio recomendava que se oferecessem aos ardentes rigores da canícula

estival.

Mas esta situação não é apenas resultado do desvario dos homens, não senhor. Senão,

reparem: Nossa Senhora de Fátima revelou-se sobre uma oliveira? É o revelaste…

Achou a azinheira mais digna e foi do alto da sua copa esgarçada que disse aos três

pastorinhos: um dó li tá quem está livre livre está azinheira azinheirinha vento vai e

vento vem e vocês meus pequeninos vão ver se eu estou em Ourém.

A propósito disto, permitam-me que resgate aqui às injustas trevas do esquecimento a

memória anónima de uma senhora que, pela mesma época em que ocorreram os

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prodígios acima mencionados e movida pelas mais altas e nobres intenções subiu, toda

in albis, a uma oliveira ali para os lados de Estremoz, disposta a despertar nesta

malfadada terra de além Tejo a comiseração das potências divinas.

O desfecho? Um pastor que por ali andava a incomodar uma meia-dúzia de miseráveis

badanas velhas amandou-lhe uma pedrada nos cornos e, como se isso não bastasse, a

pobre ainda acabou a sarar o lanho nos calabouços da PIDE porque o doutor Salazar

tinha em relação aos santos da casa a mesma firme convicção que o animava no que aos

partidos políticos dizia respeito: um, era ordem, paz e trabalho; dois, um desatino do

que vós sabeis.

Ora, a decadência da olea europaea não é fruto da falta de interesse. A verdade é que se

queimaram cérebros de agrónomos, existências de pedologistas, casamentos de

economistas e tempos livres de gestores para chegar à amassadura do papo-seco já há

séculos endurecido na taleiga de qualquer rústico da era dos afonsinhos: os custos da

apanha são o grande icebergue, sempre em rota de colisão com o Titanic da nossa

olivicultura e, vai daí, eis que metade dos nossos olivicultores se agarrou ao vibrador…

Porém, com os preços do crude em acesa competição para ver qual chega mais alto, já

quase todos eles perceberam que o consumo suplementar de gasóleo é, cada vez mais,

um contra-senso mas, como são bastantes e falam alto, lá vão conseguindo uns preços

mais em conta.

E perguntam-me vocês: será que isto não tem solução?

Ora, eu tenho lido e pensado muito sobre o assunto. Escutei as opiniões mais

esclarecidas, analisei o problema de todos os ângulos, enchi-me de teoria e estafei-me

na prática e cheguei à peregrina conclusão que a única e derradeira hipótese de

sobrevivência do nosso olival tem de passar, inevitavelmente, pela expansão da cultura

da vinha.

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Eu não digo que se arranquem as oliveiras e se plantem cepas. Não, não é isso que eu

advogo.

O que eu proponho é que se ponha fim às culturas extremes e se consociem as duas

culturas. Assim, logo à partida, teremos uma vantagem: enquanto os burocratas da

União decidem se aquilo são vinhas ou olivais, nós diremos que não temos nada a ver

com isso, protestaremos que o problema não é nosso, juraremos a pés juntos que o

queremos é que nos deixem trabalhar e vamos metendo os papéis para dois subsídios…

Depois, é apenas uma questão de calendarização e de apoios estatais. E digo isto

porque, como bem sabeis, as vindimas precedem a apanha da azeitona. Ora – e é aqui

que o Estado entra, – no início da primeira destas campanhas, o governo anunciará, com

pompa e circunstância, o lançamento de um Programa Ocupacional de Reabilitação e

Reinserção de Alcoólicos (PORRA), presidido por uma comissão gestora, provida de

poderes de excepção, que constrangerá todos os seus potenciais beneficiários - que,

graças a Deus, são mais de um milhão – a participar naquela terapia ocupacional.

A montante deste processo, as nossas adegas cooperativas disponibilizarão

gratuitamente os restos da colheita do ano anterior, em regime de tripa forra, a todos os

participantes.

Matar-se-ão, deste modo, dois coelhos com uma só cajadada: fica assegurada a

satisfação dos trabalhadores, reduzindo drasticamente os riscos de quaisquer

reivindicações laborais e, simultaneamente, libertam-se as associações de produtores

dos pesados encargos com a armazenagem da zurrapa a que nem os hipermercados

tinham conseguido dar vazão.

Finda a safra, o que deverá ter lugar pelas bainhas de Novembro, atam-se firmemente os

ex-vindimadores aos troncos, retira-se-lhes, súbita e totalmente, a ração de álcool,

cobrem-se-lhes as cabeças com bonés publicitários do projecto e deixam-se ali a

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marinar quarenta e oito horas. Escoado esse prazo, se os meus cálculos não estiverem

errados, começarão a tremer que nem varas verdes, provocando a queda da galega, da

verdeal, da cobrançosa e das outras contas do nosso rosário de arrelias.

Ó, terra ditosa que poderás assistir à epopeia de um milhão de Ulisses presos aos

ubérrimos mastros do teu chão sagrado, lutando heroicamente contra o canto enfeitiçado

das sereias de etanol!...

Vencida a odisseia, cruzado o doloroso mar da privação, eis tombado o cobiçado fruto -

sem poluição, sem máquinas, sem custos adicionais.

Agora aqui chegados, estou mesmo a ouvir-vos perguntar: e quem a apanha do chão?

Ora, então é assim: libertos os trabalhadores dos nós que os prendiam às árvores,

anuncia-se-lhes que quem assim o desejar poderá tomar um mata-bicho mas que, dadas

as circunstâncias, terá que entregar um quilo de azeitona por cada copo de vinho que

beber, independentemente de ser branco ou tinto…

Aposto convosco que nem um só bago ficará para semente e ilumina-me a esperança

que num dia já não muito distante, rendidos ao sucesso do programa e almejado o

caminho para a salvação do mundo rural português, os produtores de pêra rocha do

Oeste e os fruticultores da Cova da Beira, os citricultores do Algarve e os conserveiros

da Estremadura juntarão, enfim, as suas vozes e exigirão: PORRA! PORRA! Também

queremos PORRA!...

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