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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIN-E

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESEISTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'." visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
índice

Pág.

HOMEM DE PALAVRA, HOMEM DA PALAVRA, HOMEM-PALAVRA ... 233

"Insaciavelmente saciado" (S. Agostinho)


FiEL CRISTAO, QUE ESPERAS EM DEFINITIVO? 235

Faio inédito?
CRISE NA IGREJA... QUE SIGNIFICA? 246

Respeilo á consciéncia alheia e missáo:


A IGREJA AÍNDA É MISSIONÁRIA?
PROMOVER OU EVANGELIZAR?
"CRISTÁOS ANÓNIMOS"? 252

Na a'ual renovacáo da Igreja:


ROMARIAS E PEREGRINACÓES JUSTIFICAM-SE? 263

Na escola da historia:
OS ANTIGOS CRISTÁOS BATIZAVAM CRIANCAS? 271

CARTAS AOS AMIGOS 262 279

COM APROVA5AO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO :

A Cristo com Igreja ou sem Igreja? O «terceiro ho-


mem». Evangelho e dignidad* da mulher. Israel,
q-uem és após a vinda de Cristo? Jerusalém, a Cidade
da Paz, e os nossos dias.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual CrS 30'00


Número avulso de qualquer mes CrS 4,00
Volumes encadernados do 1958 e 1959 (proco unitario) CrS 35,00
índice Gcral de 1957 a 1904 Cr$ 10,00
índice de qualquer ano CrS 3,00

EDITORA LAUDES S. A.
REDACAO DE PR ADMINISTRADO
Caixa
Caixa Postal
Postal 2 666
¿.bbb Rita Sao
2oooo ^ Rafael.
^ ^^ 33. ZC-09
(QB)

20000 Rio de Janeiro (CB) Teto. : 2680981 e 268-2796


HOMEM DE PALAVRA
HOMEM DA PALAVRA
HOMEM-PALAVRA
Quando se diz a alguém «Seja homem!», o interpelado ime-
diatamente compreende que se trata de assumir as suas res
ponsabilidades e enfrentar problemas e desafios com denodo,
até as últimas conseqüéncias. O brío, a honra, a lealdade da
pessoa humana sao assim interpelados, levando-a a reagir de
pronto.
Quem nao responde ao apelo «Seja homem!», refugiando-
-se na covardia, ñas semiatitudes, nos «arranjos» ambiguos ou
traigoeiros, é vulgarmente tido como «banana, Maria-vai-com-
-as-outras»... (o leitor desculpará os ecos da giria).
Estas observagóes nos ajudam a ver profunda verdade: há
urna atitude que caracteriza o homem pela base. Tal é o «ir
até o fim», a coeréncia que nao tem medo do sacrificio, o amor
á verdade ainda que esta exija renuncia, o horror á indefinigáo
covarde... Quem cultiva tal atitude, de certo modo reconhece
que existe algo maior do que o próprio cu; esse algo é a Ver
dade e o Bem. Tal pessoa é capaz de se dobrar para servir a
um ideal; ela nao se faz centro do universo.
Mais: se tal pessoa tem fé em Deus, ela encontrará mais
e mais a Deus, pois Deus é a VERDADE e o BEM. — Se tal
pessoa nao tem fé, sua atitude humana ainda lhe será de gran
de valia: admitindo bens maiores do que o próprio eu, ela se
vai encaminhando para Deus. Essa pessoa aceita ao menos,
como ditame superior, a voz de sua consciéncia reta, sincera,
aberta para a verdade...; ora a voz da consciéncia destituida
de preconceitos vem a ser, em última análise, a voz de Deus
para o respectivo individuo. Diz muito sabiamente Henry
Bordeaux: «Um coragáo sincero está mais próximo da verdade
do que o mais rico cerebro».
A mais lamentável de todas as situagóes em que se possa
achar alguém, é a de se fazer centro do mundo, ou seja, a de
identificar a Verdade e o Bem com o que serve aos seus interes-
ses particulares, evitando assim dobrar-se e servir. Tal r-essoa
é realmente «amorfa» ou sem definigáo. Esta ausencia de
compromisso pode talvez parecer cómoda; todavía vem a ser
motivo de tormento e angustia. Pode-se afirmar que o relati
vismo nao é atitude humana propriamente dita, pois o homem
(queira-o ou nao) foi feito para o Absoluto, para algo maior
do que ele mesmo ou, ainda, para sair de si ir.esmo. É em

— 233 —
Outro, em Deus, que o homem encontra sua verdadcira razáo
de ser e sua realizagáo.
É na base destas reflexóes que desejamos comunicar aos
nossos leitores um íeliz jogo de palavras, através do qual se
exprime gradativamente o ideal do homem e — mais aínda —
o do cristáo: HOMEM DE PALAVRA, HOMEM DA PALA-
VRA, HOMEM-PALAVRA.1

HOMEM DE PALAVRA... Estamos no plano básico.


Homem de palavra é o homem de que falávamos atrás: sincero,
dotado da coragem devida para tirar as últimas conseqüéncias
de suas atitudes e opgóes... Homem para quem Sim é Sim,
Nao é Nao (cf. Mt 6,37).
HOMEM DA PALAVIÍA... Geralmente o artigo definido
anteposto a «Palavra» significa a PALAVRA de Deus, que é
a paiavra por excelencia,... aquela que, tendo ressoado atra
vés dos Profetas e de Jesús Cristo, se acha hoje viva ñas Es
crituras Sagradas e na S. Igreja. O homem da Palavra é aque-
le que, atingido pelo Evangeiho e pela regenerado batismal,
se torna arauto dessa Palavra. De modo especial, o apostólo
leigo, Religioso ou Sacerdote — vem a ser homem da Pala
vra.
HOMEM-PALAVRA... Caiu a partícula intermediaria,...
parecem coincidir homem e Palavra! Esta nova expressáo de
signa o máximo gran possivel de identificagáo com a Palavra
de Deus,... com aquela Palavra que se fez carne e habitou
entre nos: Jesús Cristo. Homem-Palavra é o cristáo (ou a
crista) que viva até as últimas consecuencias a sua fiiiagáo
divina, de modo a í'aiar realmente (s^m afetagáo e com humil-
dade) por todo o seu teor de vida. Penetrado profundamente
pela graga divina, tal cristáo em tudo irradia o Cristo. — O
sacerdote, que em sua alma recebeu o caráter (ou a marca sa
cramental) de Cristo Sacerdote, é, de modo especial, chamado
a ser HOMEM-PALAVRA.
Ao leitor amigo fica entregue nestas poucas linhas todo o
programa de construgáo do homem (Homem de palavra) e do
cristáo (Homem da Palavra e Homem-Palavra).
O mes de junho é tradicional mente devotado ao Cristo
Jesús, cujas riquezas intimas sao simbolizadas pelo Coragáo,...
Coragáo manso e forte como nenhum outro. Que o Coragáo de
Cristo, especialmente celebrado nestes dias, se torne modelo
e penhor de plena realizagáo humana e crista para todos quan-
tos nele contemplaren! o seu ideal!
E.B.

Esta trilogía já lem sido explanada em Retiros Espiriluais.

— 234 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XIV — N' Ió2 — Junho de 1973

"insaciavelmente saciado" (S. Agostinho)

fiel cristáo, que esperas em definitivo?


Em sintese: A Escritura Sagrada aprésenla a sorte postuma dos justos
(purificados de todo resquicio do pecado) como sendo a vida eterna. Um
dos elementos principáis desta é a visáo de Deus face-a-face, visáo que
nao se reduz a urna atitude meramente intelectual ou platónica, mas implica
um Inlerrelacionamento pessoal entre a criatura e o Criador. Note-se, alias,
que nao o acume da inteligencia, mas a intensldade do amor a Deus abrirá
o olho da mente para a visao da Beleza Infinita; o amor dará a medida
da visSo — o que mostra quao distante está a concepcSo crista do pla
tonismo e do intelectualismo. Pode-se, pois, dizer que a vida eterna signi
fica a entrega mutua da criatura ao Criador e do Criador á criatura, en
trega que dará resposta ás aspiracSes mais espontáneas do ser humano.

A posse de Deus por parte da criatura já comeca aqui na térra, pois


a graca santificante, existente nos justos, é dita "a sementé da vida eterna"
(cf. 1 Jo 3,9). Esta sementé tende a se desenvolver, levando o cristSo á
experiencia mística — o que nao quer dizer visoes e éxtases, mas, sim, o
conhecimento deleitoso de Deus que se deriva da afinidade da alma com
Deus. A vida celeste nSo será senao a consumacSo da vida de uniSo com
Deus iniciada nesta peregrinagSo terrestre.

• * •

Comentario: A fé promete ao cristáo (purificado de qual-


quer resquicio de pecado) o que se chama «céu» ou a vida
eterna sumamente feliz. Todavía a maneira de se conceber a
bem-aventuranca postuma é, por vezes, vaga e insuficiente.
Daí a impressáo de que o céu possa ser fastidioso, quando na
realidade é a posse deleitosa do Sumo Bem. Faz-se mister, por-
tanto, tragar com clareza as grandes linhas com que a Sagra
da Escritura e a teología apresentam a recompensa eterna dos
justos.

T. «Vida» nes páginas bíblicas


A Escritura Sagrada designa enfáticamente o estado final
dos justos como «vida» ou posse da vida.
1) No Antigo Testamento, «vida» é um dos termos que
mais freqüentemente caracíerizam Deus. Este é o Deus vivo

— 235 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 1G2/J973

(cf. Dt 5,23; Jos 3,10; Jer 23,36), o eternamente vivo (cf. Dt


32, 40; Dt 12,7; Eclo 18,1), em oposicáo aos ídolos, que sao
mortos (cf. SI 134, 15-17. Hab 2,19). O israelita jura pela
vida de Deus (43 vezes ocorre a fórmula no Antigo Testa
mento) e Deus mesmo antropomorficamcnto jura por sua vida
(cf. Is 49,18).

Em conseqüéncia, o homem que procura a Deus, vive e


vivera. Tenha-se em vista a palavra do profeta Amos:

"Asslm diz o Senhor á Casa de Israel: "Buscai-Me e vi veréis';...


Buscal o Senhor e vivereis...
Buscal o be.m e nao o mal, para que viváis" (S, 4.6.14).

Vida, neste contexto, tem sentido pregnante: nao designa


apenas existencia, mas um conjunto c'o bens que tornam a
vida feliz.

Nos últimos escritos do Antigo Testamento ocorre mesmo


a idéia de que os justos ressuscitaráo para a vida eterna:

"Multo» dos que dormem no pó da Ierra, acordaráo, uns para a vida


eterna, outros para a ignominia, para a reprovacáo ete:na" (Dan 12,2).

«Vida eterna», nesta passagem, nao é somente vida sem


fim, mas é vida em plenitude de bens e em intimidade com
Deus. Note-se também a afirmacáo do salmista:

"Ensinar-me-eÍ9 o caminho da vida; dlanle de Vos, há plenilude de


alegría; á vossa destra, delicias eternas" (SI 15,11).

2) Nos Evaníjelhos, a expressáo «vida eterna» c freqücnte


Observa-se, porém, que os sinóticos (Mt, Me e Le) a apresentam
como algo de futuro ou postumo (cf. Mt 19,16; 25,46; Me
10,17), ao passo que Sao Joáo acentúa que já na térra se inicia
a vida eterna:

"Quem eré no Filho, possui a vida eterna" (Jo 3,36);


"Quem eré, tem a vida eterna" (Jo 6,47).

Merece atencáo o comentario de A. Charue:

"Urna vfda nova nos invadlu, principio permanente de aüvidade sobre


natural, que tende ao desabrochamento celeste. Nosso Senhor fala déla
sob o símbolo de urna fonte de agua que jorra para a vida eterna (el. Jo
4,14). Joio adota a imagem da sementé, do germen, que sugets a idéia
de urna atlvldade oculta, aínda comprimida, embora já orientada para o
seu desabrochar e radicalmente incapaz de efeilos contrarios á sua na'u-
reza" ("Les Epilres Catholiques", em "La Sainte Bible" de Pirot-CIamer,
t. XII, París 1951, 3? ed., p. 538).

_ 236 —
A VIDA ETERNA

Ta] é o paradoxo da vida crista: a vida eterna já nao é


futura, mas presente; é um comego, porém, que ainda deve
chegar á plenitude.

A vida eterna, possuída neste mundo, implica a ressurrei-


cáo dos corpos no di a do juizo final:

"Esta é a vonlade de meu Pai: que lodo aquele que vé o Filho e nele
eré, tenha a vida eterna, e eu o ressuscltarel no último día" (Jo 6,40).

"Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eteina,
e eu o ressuscilarei no último dia" (Jo 6, 55).

Esta doutrina é ilustrada, em Sao Joáo, pela imagem da


sementé. A vida eterna, aqui na térra, é como um germen que
se vai desabrochando em árvore:

"Todo aquele que nasceu de Deus, nao comete pecado, porque a se


menté de Deus permanece nele" (1 Jo 3, 9).

Vejamos agora como os autores do Novo Testamento con-


cebem a posse da vida eterna.

2. A vida consumada segundo o Novo Testamento

Podem-se depreender, no Novo Testamento, alguns ele


mentos que caracterizan! a vida eterna consumada.

1) Inlimidade com Deus

A vida eterna, no Antigo Testamento, consiste em ser


arrebatado por Deus (cf. SI 72,23-26). No Novo Testamento
é «estar com Cristo» (Flp 1,23) ou «estar sempre com o
Senhor» (1 Tes 4,17).

2) Visóo de Deus face-a-fcice

A intimidade com o Senhor implica a intuicáo direta da


Beleza Infinita. Notem se os dois textos clássicos:

a) 1 Jo 3,2: "Caríssimos, desde agora somos filhos de


Deus, mas ainda nao se manifestou o que seremos. Sabemos,
porém, que, quando se manifestar, seremos semelhantes a Ele,
porque O veremos como Ele é".

— 237 —
6 tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

Os exegetas indagam qual seja o sujeito da frase «quando


se manifestar»: será o mesmo dos dizeres anteriores («o que
seremos») ou Cristo? — Em qualquer hipótese, o texto prediz
explícitamente um «ver a Deus como Ele é», ou seja, sem in
termediario, sem véu.

b) 1 Cor 13,12: "Agora contemplamos através de um espe-


Iho, confusamente, mas depois veremos face a face. Agora
conheco em parte; depois conhecerei perfeitamente, da mesma
maneira como eu sou conhecido".

Este texto tem sentido nítidamente escatológico (isto é,


tem em vista uma realidade que só se dará no fim dos tempos),
pois opóe duas vezes «agora» e «depois». «Contemplar por
meio de um espelho» designa o conhecimento de Deus a que
os homens chegam mediante as criaturas (o mundo visível é
como que um espelho do Criador). A esta contemplacáo me
diata opóe-se a visáo face-a-face, ou seja, a visáo de Deus em
si mesmo, visáo nao confusa, mas clara, que pode ser ilustrada
pela intuigáo que Deus tem de cada uma das suas criaturas
(«como eu sou conhecido por Deus»). — De resto, a expressáo
«face-a-face» ocorre já no Antigo Testamento para designar
proximidade e intimidade; leve se em conta Éx 33,11: «Javé
falava com Moisés face-a-face, como um homem conversa com
seu amigo».

3) Amor a Deus

A intimidade com Deus será possibilitada e nutrida pelo


amor a Deus (que supóe na Biblia o amor de Deus ao homem).
«A caridade jamáis acabará», diz Sao Paulo (1 Cor 13,8), ao
passo que a fé e a esperanga desaparecerlo. A fé cederá á
visáo; a esperanga, á posse, enquanto a caridade nao mudará
de natureza, quando atingirmos a gloria definitiva.

4) Complacencia e deleite

As idéias de felicidade e alegría decorrem dos elementos


anteriores. Estar unido a Deus é fonte de ¡menso deleite, se
gundo a Biblia. Tenham-se em vista os textos seguintes:

Mt 25,21: «Entra no gozo do teu Senhor». Esta expressáo


alude provavelmente á imagem das nupcias ou do banquete

— 238 —
A VIDA ETERNA

nupcial para o qual sao convidados os fiéis servidores do


Senhor.

Em Le 22,29s, a imagem do banquete (símbolo de prazer


e felicidade) ocorre explícitamente: «Eu vos preparo o reino,
como o Pai o preparou para mim, para que comáis e bebáis á
mincha mesa, no mcu reino». O banquete, em outros textos, é
banquete de nupcias, como na parábola das dez virgens (cf.
Mt 25,1-10).

A felicidade do cristáo resultante da uniáo com Cristo deve


comunicar-lhe equanimidade face as tribulagóes que o cercam:
«Nao se perturbe o vosso coragáo. Crede em Deus; crede tam-
bém em Mim» (Jo 14,1).

5) Perenidade

A duracáo, sem fim, dessa felicidade é repetidamente ates


tada pela Escritura. Além da expressáo «vida eterna», mere-
cem atengáo os dizeres de Sao Paulo:

"Sabemos que, se esta tenda, nossa morada terrestre, (or destruida,


temos urna casa que é obra de Deus, morada que n3o ó felta pela mao
dos homens, mas é eterna e está no céu" (2 Cor 5,1).

"Todos aqueles que tomam parte no certame, abstem-se de tudo. Eles,


para obter urna coroa corruptivel; nos, pelo contrario, urna coroa Incorrup-
tível" (1 Cor 9,25).

Vejam-se também 1 Pe 5,4; 1 Tes 4,17; Apc 21,4 e Le


16,9 («moradas eternas»).

A Tradigáo crista e a teología procuraram penetrar os


dados fornecidos pela S. Escritura a respeito da bem-aventu-
ranga final. O Magisterio da Igreja fez eco á voz constante
dos cristáos em algumas definigóes de fé, que passamos a con
siderar.

3. O testemunho do Magisterio

O Papa Bento XII promulgou em 1336 a Constituigáo


«Benedictus Deus», em que afirmava:

"Os bem-aventurados vlram e véem a esséncla divina em visáo Intui


tiva ou face-a-face, sem que a vIsSo de alguma criatura se interponha; a
esséncla divina se Ihes mostrará [mediatamente sem véu, clara e aberta-

— 239 —
8_ «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

mente. Vendo-a, nela se deleltam; por tal visao e fruicáo, as suas almas
sao realmente fellzes; possuem a vida e o repouso eterno" (Denzinger*
•SchSnmetzer, Enquirfdio n? 1.000s).

O Concilio de Florería em 1439 promulgou semelhante de-


claragáo, acrescentando-lhe alguns pormenores:

"Os bem-avenlurados véem claramente o próprlo Deus em sua Uni-


dade e Trindade, como Ele é; uns, porém, véem mals perfeilamente do que
outros, conforme a diversidade de méritos de cada qual" (ib. n? 1.305).

Os documentos posteriores do Magisterio, ao tratar do


assunto, referem-se a essas duas declarares fundamentáis.
Assim, por exemplo, o Concilio do Vaticano II faz eco ao de
Florenca:

"Até que o Senhor venha em sua majestade,... alguns dentre os seus


discípulos peregrinam na térra, outros, terminada esta vida, sao purificados,
enquanto outros sao glorificados, vendo claramente o próprio Deus Trino e
Uno, assim como Ele é" (Const. "Lumen Gentlum" n? 49).

A idéia de «visáo de Deus», táo insistentemente incutida


pelo textos bíblicos e pelo magisterio da Igreja, suscita agora
ulteriores reflexóes.

4. Ver. . . : alegría ou tedio ?

O desejo de ver a Deus moveu o homem religioso em todos


os tempos; tanto as tribos primitivas como os povos civilizados
pré-icristáos manifestaram tal aspiragáo. Em Israel mesmo,
Moisés pediu certa vez ao Senhor: «Mostra-mc a tua gloria!»
Ao que o Senhor respondeu: «Fago graga a quem a fago, e fago
misericordia a quem a fago... Nao poderes ver meu semblan
te, pois o homem nao me pode ver e permanecer em vida» (Éx
33,18-20).

Eis, poróm, que Jesús Cristo anunciou: «Bem-avcnturados


aqueles que tém o coragáo puro, porque veráo a Deus!» (Mt
5,8).

O homem contemporáneo, porém, nem sempre se deixa


empolgar por tal perspectiva. «Ver a Deus» parece-lhe ter um
sabor estático e platónico, que bem correspondía a índole e as
aspiragóes dos antigos, mas já nao satisfaz ás tendencias do
homem moderno, que é dinámico e difícilmente se contenta com
mera contemplagáo.

— 240 —
A VIDA ETERNA

O filósofo espanhol Miguel de Unamuno fez-se intérprete


desse modo de pensar:

"Urna vlsao beatílica, urna contemplado amorosa, na qual a alma este


ja absorvlda em Deus e como que perdida nele, aparece ao nosso modo
natural de sentir como o aniquilamento do ser humano ou como um tedio
prolongado. Dai a atitude que observamos com freqüéncla a que já se
formulou mals de urna vez em oxpressSes satíricas, nao Isenlas de irreve
rencia e mesmo do Impledade,... exprassfies segundo as qual» o céu da
gloria eterna ó urna morada do eterno aborrocimento. N3o adianta querer
menO3prezar estes sentlmentos táo espontáneos e nalurals, nem p<e!ender
recriminá-los" ("Del sentimiento trágico de la vida" c. 10).

Diante destas observagóes deve-se salientar o seguinte:

Entre os elementos constitutivos da vida eterna, está a


intimidade com Deus ou a intima posse de Deus por parte da
criatura. Este elemento é de importancia capital. — Ora
Deus nao é urna coisa ou um ente neutro, mas um Ser pessoal.
Urna coisa, um objeto neutro podem ser possuídos desde que
encerrados á chave em um aposento ou cubículo. Quem ten-
tasse possuir desse modo urna pessoa, nao a possuiria como
pessoa, mas como coisa. As pessoas só se possuem mediante
um interrelacionamento, em conhecimento e amor mutuos.
Por conseguirte, Deus há de ser possuído de tal modo na vida
eterna: o conhecimento e o amor que desde toda a eternidade
Deus tem a respeito de cada criatura, suscitam, da parte desta,
urna resposta viva, direta, que envolve toda a personalidade
do ser humano. Esse interrelacionamento — que é doacáo mu
tua — é o que possa haver de mais correspondente a estrutura
o as aspiragóes espontáneas da alma humana.

Ponha-se, pois, de lado o conceito de que a vida eterna,


no sentido cristáo, seja algo de enfadonho. Ela nao se equipara
ao ideal platónico meramente intelectual, mas significa plena
realizacáo do ser humano.

Deve-se mesmo observar o seguinte: a capacidade de ver


a Deus face-a-face estará condicionada nao pelo acume intelec
tual da criatura (pois, neste caso, as criaturas dotadas de
inteligencia mais aguda seriam no céu mais premiadas do que
outras, de inteligencia menos penetrante). O que habilita a
criatura a entrar em contato face-a-face com Deus, é o grau
de amor a Deus e ao próximo com que essa criatura termina
a presente peregrinaráo. Onde há mais amor a Deus, há mais
desejo de ver e possuir a Deus, e é a este desejo que o Senhor
se digna corresponder, manifestando-se a criatura no céu.

— 241 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 162/1973

Estas verdades nos habilitam a dizer que no céu há graus


diversos de bem-avenluranga, ou seja, de posse e visáo de
Deus: aqueles que morrcm mais ricos de amor, veráo a Deus
com mais perspicacia § nitidez e se deleitaráo nessa intuigáo,
ao passo que as criaturas menos ricas de amor menos pene-
traráo em Deus. É, de resto, o que ensina o Evangelho quando
diz: «Na casa de meu Pai, há muitas mansóes» (Jo 14,2).

De maneira geral, pode-se afirmar: frente a Deus é o


amor que mais e mais abre o olho da alma e apura o conhe-
cimento. Homens de capacidades naturais muito limitadas po-
dem chegar a eminente grau de intuigáo de Deus, neste mundo
e na vida celeste, ao passo que criaturas muito talentosas, do
ponto de vista humano, pouco entendem das coisas de Deus:
o grande amor sobrenatural existente naqueles, e nao nestas,
abre o olho da mente para os misterios de Deus.

Estas proposigóes seráo ulteriormente esclarecidas no pa


rágrafo que se segué:

5. Questoes complementares

Restam algumas observagoes a fazer sobre o assunto.

5.1. Todo, sim ; totalmente, nao !

Deus é infinitamente perfeito, por definigáo. Sendo as-


sim, a inteligencia criada deveria possuir urna capacidade infi
nita para poder conhecer a Deus tanto quanto Ele pode ser
conhecido. Ora capacidade infinita numa criatura é algo de
contraditório, já que toda criatura é limitada.

Em conseqüéncia, diz a teología:

Na visáo celestial, os justos véem Deus todo, mas nao o


véem totalmente.

Expliquemo-nos:

Véem Deus todo... Deus nao tem partes (toda parte signi
fica limitacáo); é simplicíssimo. Por isto nao se pode ver Deus
flm parte no face-a-face celeste. Ve-se Deus todo.

Nao totalmente... Deus também é infinitamente perfeito;


por isto é inteligivel em grau infinito. Em conseqüéncia, ne-

— 242 —
A VIDA ETERNA 11

nhuma inteligencia criada está á altura de conhecer a perfeigáo


divina de maneira exaustiva; somente a inteligencia divina é
apta a conhecer exaustivamente a infinita perfeicáo de Deus.

Com outras palavras: nada há em Deus que nao seja con


templado pelos justos no céu, mas nada há em Deus que seja
contemplado táo perfeitamente quanto é contemplável, em toda
a sua riqueza de ser. Os bem-aventurados véem o Infinito,
sabem que Ele é o Infinito, mas nao O conhecem de maneira
infinita. Isto quer dizer que Deus so nao é novo para Si; para
qualquer criatura Ele é e será eternamente novo e surpreen-
dente, como insinúa S. Agostinho: «Serás insaciavelmente sa
ciado pela verdade! — Iiisatiabiliter satiaberis veritate».

5.2. Vida eterna iniciada no tempo

Como foi dito atrás, a vida eterna, em seu estado consu


mado, nao é senáo a posse de Deus, que se dá á criatura como
objeto imediato de visáo, amor e deleite. Ora a mesma reali-
dade já ocorre, em face inicial ou embrionario no homem justo
posto em peregrinacáo na térra; Deus, o dom incriado, se dá a
todo ser humano que esteja em graca santificante (isento de
pecado grave).

As virtudes ditas «teológicas», que acompanham a graca


santificante, póem a criatura em contato com Deus de modo
sobrenatural (ou de modo que ultraassa as exigencias da na-
tureza):

— a fé eleva a inteligencia do homem a ver as coisas


como Deus as vé;

— pela esperanza, a vontade do homem se dirige para


Deus como objeto de seu desejo;

— pelo amor, a vontade se volta para Deus como objeto


de benevolencia.

Durante a peregrinacáo do homem sobre a térra, o ger


men da graga santificante (com suas virtudes concomitantes)
deve desenvolver-se paulatinamente, de modo que o «possuir a
Deus» se torne cada vez mais saboroso. Todo cristáo é nor
malmente chamado a fazer a experiencia mística de Deus; esta
nao significa éxtases, nem visees, mas urna profunda tomada
de consciéncia de que Deus habita na alma do justo. Esta

— 243 —
12 <PERGUNTE R RESPONDEREMOS- 162/1973

tomada de consciencia é possibilitada pelo amor crescente; é o


¡.■mor que dá afinidade com Deus e assim proporciona novo
modo de conhecer o Sonhor (conhccimenlo por afinidadc ou
por naturalidade). Todo este processo terrestre desemboca na
visáo celestial face-a-face. Notc-se que entre a bem-avcnluran-
ga dos justos no cóu e a vida em graga na térra nao há diferen-
ca essencial, pois tanto numa como noutra Deus é a Grande
Presenga, capaz de deleitar e saciar o cristáo na medida em
que este se converte para Deus e se torna, por sua vez, presente
a Ele mediante a sua fé viva e o seu amor ardente1.

Deve-se, pois, dizer que, para os justos, a vida eterna co-


mega no tempo presente. Quando ola estiver consumada, a fé
se converterá em visao de Deus, a esperanga (désejo) se mu
dará em deleite derivado da plena posse de Deus. Quanto ao
amor, permanecerá (intensificado, porém, pois corresponderá
ao conhecimento mais claro que o justo terá de Deus).

5.3. Vida eterna e consciéneia pessoal

Hoje em dia, por influencia do budismo e do panteísmo,


póe-se a pergunta: conserva-se a consciencia pessoal do indivi
duo na gloria eterna?

A resposta crista é positiva. Se a vida eterna é comunháo


entre pessoas, ela supóe a realidade das pessoas relacionadas
entre si, realidade que incluí consciencia pessoal.

Mais: nao ficará apenas um núcleo de consciencia pessoal


(ou a alma só) na eternidade, mas posso dizer que, após a
consumagáo dos séculos, todo o meu eu (também com sua par
te corpórea ou material) entrará em comunháo pessoal com
Deus. O Cristianismo afirma que também o corpo humano —
urna vez ressuscitado, — participará da bem aventuranga eter
na.

O panteísmo, afirmando que a consciencia individual se


dissolve na substancia neutra do universo, dei.xa de correspon
der a aspiragáo mais espontánea do instinto de conservado:

1 Deus está presente, de modo próprio, a toda alma em graca santifi


cante. Infelizmente, porém, multas vezes a criatura nao Lhe dá a atencáo
devida; vive longe de si mesma, distraída, sem jamáis entrar em si pelo
recolhimento. Reconhendo-se, a criatura encontra-se consigo mesma e com
Deus.

— 244 —
A VIDA ETERNA 13

permanega eu! Se me dissolvo em urna realidade neutra «super-


consciente», nao permaneeo eu, mas deixo de existir eu.

Conservando sua consciéncia pessoal, o justo no céu con


servará os vínculos de amor e afinidade espiritual que o pren-
dem a seus familiares, amigos, mestres, discípulos, etc.

Eis, em grandes linhas, o que corresponde á afirmagio de


Sao Paulo: «O olho nao viu, o ouvido nao ouviu, jamáis passou
pelo pensamento do homem o que Deus preparou para aqueles
que O amam» (1 Cor 2,9).

Estas páginas muito devem ao estudo de C. Pozo: "Teología del más


allá", em "Biblioteca de Autores Cristianos" n° 282. Madrid, 1968, pp.
136-172.

Cf. também E. Bettencourt, "A vida que comeca com a morte". Rio
de Janeiro 1958, pp. 61-79.

Palavras-desaffo de Valéry, incrédulo, em seus "Carnets":

"SE DEUS EXISTISSE, SE EU PUDESSE CRER QUE ELE


EXISTE, EU SERIA PERPETUAMENTE FELIZ. EU NAO ME
PODERIA INTERESSAR POR OUTRA COISA QUE NAO ELE.
EU ME SENTIRÍA CERCADO DE TERNURA E PROTECÁO. OS
PRAZERES DO MUNDO NADA SERIAM, A MORTE NADA
SERIA. SE EU SOUBESSE QUE DEUS EXISTE, SE MINHA VIDA
FOSSE APENAS O DIFERtMENTO DO MEU ENCONTRÓ COM
ELE, MESMO QUE ESSA VIDA FOSSE DOLOROSA, ELA SE
RIA SUAVE, COMO A LONGA ESPERA DE UMA MULHER
BEM-AMADA, DE QUEM EU ESTARÍA CERTO DE QUE ELA
CHEGARIA. SE DEUS EXISTISSE, PARECE-ME QUE EU SERIA
NATURALMENTE BOM PARA TODOS... SE DEUS EXISTISSE,
PARECE-ME QUE AS MINHAS FALTAS SERIAM ABSORVIDAS
NELE E PERDOADAS DESDE QUE EU AS RECONHECESSE
COMO FALTAS... MAS TUDO OCORRE NO MUNDO, E
MESMO ENTRE AQUELES QUE CRÍEM EM DEUS, COMO SE
DEUS NAO EXISTISSE".

— 245
Fato inédito?

crise na igreja.., que significa?

Em síntese: Nao é esta a primeira fase difícil que a S. Igreja conhece


na sua longa historia: os séc. IV/V, X, XVI e XIX também foram arduos;
Deus, porém, quis, precisamente nessas fases, suscitar numerosos santos,
que, pela sua prece e sua acáo, marcaram a respectiva época. Em con-
seqüéncia, pode-se dizer que atualmente a resposta que a Igreja pode e
deve dar á sua crise incluí necessariamente urna exortacáo dirigida a seus
filhos para que procurem tornar-se mais santos. Esta exortacáo, alias, foi
enfáticamente formulada pelo Concilio do Vaticano II. A Igreja precisa de
santos: santos sabios e técnicos, ou santos sem titulo humano algum. A
santidade tem suas notas constitutivas constantes: espirito de oracáo, amor
a Deus e ao próximo, abnegacáo e renuncia a si mesmo.

Comentario: Sao muito freqüentes as observagóes de


pessoas surpresas em vista da situacáo religiosa de nossos dias.
Nao poucas mostram-se perplexas e acabam por abandonar a
S. Igreja. Outras procuram luz e torga para prosseguir no ca-
minho encetado e viver com alegre convicgáo a sua vocagáo
crista.

Ñas páginas que se seguem, proporemos algumas conside-


ragóes ao problema, que poderáo contribuir para se configurar
urna resposta á problemática religiosa de nossos tempos. Nao
pretendemos abordar o assunto sob todos os aspectos, mas
apenas propor algumas reflexóes aptas a orientar o comporta-
mentó dos fiéis católicos.

1. Urna observa gao curiosa

Inegavelmente, a S. Igreja passa por urna fase difícil de


sua historia. A crise resulta de fatores diversos e inéditos, que
concorrem para tornar mais impressionante o quadro geral.

Todavía note-se que nao é esta a primeira crise que a


Igreja atravessa. Fale a historia:

Nos sáculos IV e V a Igreja sofreu o abalo da heresia


ariana1, a respeito da qual dizia S. Jerónimo em termos hiper-

'O chamado "arianismo" (doutrina de Ario de Alexandria) negava que


o Verbo ou o Filho de Deus fosse Deus como o Pai; subordinava o Filho
ao Pai.

— 246 —
CRISE E SANTIDADE NA IGREJA 15

bólicos: «Ingemuit totus orbis et arianum se esse miratus est.


— O mundo inteiro gemeu, admirando <se por se ter tornado
ariano» («Contra Luciferianum» n« 19).

O séc. X foi chamado «o século obscuro» ou «o sáculo de


ferro» da historia da Igreja, porque o Papado foi vítima das
familias nobres de Roma e dos arredores e o nivel de vida
moral dos cristáos baixou consideravelmente. O Sínodo de
Trosly, perto de Laon, celebrado em 909 lamentava: «O mundo
está cheio de imoralidade e de adulterio, de devastagáo de
igrejas, de assassinios e de opressáo dos pobres».

No séc. XVI deu-se a crise do humanismo naturalista e da


Reforma protestante.

Ainda no séc. XIX a Igreja conheceu a borrasca do ra


cionalismo e do materialismo; a ciencia parecía estar em con-
flito com a fé.

Ora observa-se que a Providencia Divina quis suscitar


precisamente nos mesmos periodos um número relevante de
santos. Com efeito, os séculos referidos foram dos mais ricos
em santos na historia da Igreja.

Os séculos IV e V, por exemplo, foram marcados por gran


des doutores da Igreja e bispos, como S. Ambrosio, S. Agos-
tinho, S. Jerónimo, S. Hilario, S. Leáo Magno, S. Atanásio,
S. Basilio, S. Gregorio de Nazianzo, S. Efrém, S. Cirilo de
Alexandria, S. Joáo Crisóstomo, que deixaram obras teológicas
fundamentáis.

No século X Deus quis suscitar grandes vultos que manti-


veram viva a consciéncia moral dos cristáos. Tais foram os
bispos S. Ulrico de Augsburgo, S. Conrado e S. Gebardo de
Constanca, S. Adalberto de Praga, S. Burcardo de Vórmia, os
abades de Cluny S. Odáo, S. Majólo, S. Odiláo, S. Hugo...
No século XVI foi particularmente notável o surto de san
tos, entre os quais figuram S. Carlos Borromeu, S. Filipe Néri,
S. Inácio de Loiola, S. Francisco Xavier, S. Tomás Moro, S.
Pió V, S. Joáo da Cruz, S. Teresa de Ávila, S. Ángela Mérici,
S. Antonio María Zacarías... Contam-se mais de trinta santos
canonizados nessa época.

Também o séc. XIX conheceu grandes figuras como S.


Joáo Bosco, o Santo Cura D'Ars, S. Teresa de Lisieux, Frede-
rico Ozanam...

— 247 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS^ 162/1973

Nao se poderia dizer que os santos foram a resposta dada


por Deus ás angustiosas crises da Igreja? Os santos dáo o tes-
temunho de que a fó autentica e o amor generoso colocado por
Deus em sua Igreja nao pereceram, mas, apesar de todos os
obstáculos, continuam a existir e frutificar. Mais ainda: os
santos sao os grandes amigos de Deus, aqueles que pela oracáo
intima e a renuncia a si mesmos puderam e podem obter de
Deus a grac.a e os auxilios sobrenaturais inatingíveis a sagaci-
dade humana.

Em última análise, as crises da Igreja nao sao senáo as


pectos da luta entre a linhagem da mulher e a da serpente (cf.
Gen 3,15), entre o Cristo e o Anticristo; por isto elas se resol-
vem, antes do mais, pelo emprego de meios sobrenaturais, entre
os quais a oragáo e o sacrificio ocupam lugar primacial.

Pode-se entáo dizer que os tempos atuais, justamente por


serem cheios de interrogacóes, significam para todos os cristáos

2. Um apelo de Deus

1. Precisamente quando tanto se fala de «sinais dos tem


pos» e de «saber ler os sinais dos tempos», é lícito perguntar se
a crise atual da Igreja (além de ter outros significados) nao
pode ser entendida também como um convite do Senhor nao
ao desanimo e á perplexidade, mas á santidade mais consciente
mente procurada e vivida.

É interessante notar a énfase com que, justamente nesta


época agitada, o Concilio do Vaticano II quis lembrar a todos
os cristáos o dever de tender a santidade:
"0 Senhor Jesús, Mestre e Modelo Divino de toda pe:feicSo, a todos
e a cada um dos seus discípulos de qualquer condicao progou a santidade
de vida, da qual Ele mesmo é o Autor e Consumador, dizendo: 'Sede per-
feitos como vosso Pai Celeste ó perteito' (Mí 5,45)...

Todos os fiéis cristáos de qualquer estado ou ordem sao chamados á


plenitude da vida crista e á períeicáo da caridade" (Const. "Lumen Gen-
tium" n? 40).

Com vistas aos sacerdotes em particular, diz o Concilio:

"Sede perleitos como vosso Pai Celeste é perfello (Mt 5,45). Os pres
bíteros estáo obrigados, a titulo especial, a tender á peíteicáo, pois, con
sagrados a Deus de novo modo pelo sacramento da Ordem, sao chamados
r. ser instrumentos vivos de Cristo Eterno Sacerdote, a fim de prosseguirem
no longo dos tempos a obra admirável de Cristo" (Decreto "P.-esbyterorum
Ordinls" n? 12).

— 248 —
CRISE E SANTIDADE NA IGREJA 17

Referindo-se aos Religiosos, diz o Concilio:

"O Religioso entrega-se todo a Deus sumamente amado, de tal modo


que por novo e peculiar titulo ó ordenado ao servico e á honra de Deus...
Pela prollssao dos conselhos evangélicos na Igieja, procura llberlar-se dos
impedimentos que O possam afastar do fervor da caridade e da perfelcáo
do culto divino" (Const. "Lumen Genlium" n? 44).

Donde concluí o Concilio:

"Todo aquele que é chamado á prolissáo dos conselho3 evangélicos,


cuide diligentemente de permanecer e destacar-se na vocacfio ¿ qual fol
chamado por Deus para mals rica santidade da Igreja, para malor gloria
da santa e Indivisa Trindade, que em Cristo e por Cristo é (onte e origem
de toda santidade" (ib. n? 47).

2. Pode-se, porém, perguntar: em que consiste hoje em


dia a santidade?

Quais as exigencias que se impóem a quem queira tender


hoje á perfeigáo crista? Parece que principios, formas e crite
rios de santidade tidos como válidos em sáculos passados hoje
já nao o sao. A mentalidade do homem moderno já nao os
aprecia nem aceita, pois estáo em aparente contraste com a
cvolucáo por que tem passado o género humano. Hoje em dia
a descoberta da psicología e de valores íntimos da personali-
dade, a nova dimensáo dos problemas sociais, a repulsa de todo
formalismo fazem que o ideal da santidade nao seja concebido
com as características que outrora tinha. Os homens de hoje
aspiram a ser santos «novos» na Igreja, ricos de graca, sim,
mas também ricos de valores humanos, cheios de amor a Deus,
mas também abertos ao mundo e profundamente engajados na
historia.

Como resolver o problema?

Poderia alguém responder: libertemo-nos do ideal de


santidade que os sáculos passados acariciaram na Igreja e pro
curemos inspirar-nos únicamente no Evangelho, ou seja, no
exemplo e nos ensinamentos de Cristo. Encontraremos no
Evangelho as normas necessárias para sermos santos hoje.

Tal resposta nao estaría exata senáo em parte. Nao se


pode pretender ficar somente com o Evangelho escrito, pondo
de lado a tradigáo da santidade ou a linha ascético-mística da
Igreja. Esta tradigáo é a maneira segundo a qual, sob a inspi-
raráo e a guia do Espirito Santo, o ensinamento de Cristo foi
vivido pelos santos ñas sucessivas fases da historia. Pode-se
dizer que Cristo sem a Igreja é, de certo modo, mutilado, como

— 249 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

urna Cabega sem corpo; Cristo sem os santos é empobrecido


em suas manifestagóes, como urna árvore privada de seus ra
mos, de suas flores e de seus frutos é empobrecida na expressáo
da sua vitalidade. Por conseguinte, em vez de rejeitar a tra-
digáo ascético-mística da Igreja, importa nela distinguir os
elementos que sao expressáo viva do espirito do Evangelho e,
por conseguinte, tém valia até hoje, dos elementos que sao
manifestaqüo da mentalidade c do gosto de um determinado
período da historia e que, por isto, podem ou devem hoje ser
deixados de lado.

Para se saber o que é hoje a santidade, ó necessário, sem


dúvida, indagá-lo no Evangolho, mas no Evangelho como ele
foi compreendido e vivido pelos santos. Descobre-se entáo que
a santidade crista tem algumas constantes, sem as quais nao
existe — nem pode existir — a santidade auténtica. Essas
constantes sao, inegavelmente, o amor a Deus, o espirito e a
prática da oracáo, o dom de si no servigo ao próximo, a luta
contra o egoísmo e as paixóes do velho homem mediante a pe
nitencia, a pureza de coragáo, o desapego dos bens deste mun
do, o exercício da humildade, da paciencia, o amor á Cruz de
Cristo...

Hoje, como no passado, a santidade constitui-se dessas


constantes. Por isto seria ilusorio pretender atingi-la pondo de
parte tais elementos a fim de procurar fórmulas inteiramente
novas.

Inspirando-se em Cristo e nos seus discípulos — e somente


assim —, os cristáos poderáo dar á Igreja os novos santos de
que Ela tem urgente necessidade.

3. Aínda urna observacáo:

A crítica e a contestacáo estáo atualmente em voga. En-


traram na Igreja, nem sempre de maneira construtiva e bené
fica . Na verdade, o diálogo critico pode ser útil á renovacáo da
face humana da Igreja. A fim de que o seja realmente, ou a
fim de que a crítica soja construtiva, nao degenerando em po
lémica e irreverencia, é para desejar que quem deseje contestar
os outros comece por contestar a si mesmo. Cada membro da
Igreja, por seus méritos ou deméritos, é responsável pelo bem
comum do povo de Deus. Somente quem contesta a si mesmo,
tem o direito de contestar os outros. Ora a santidade é a for
ma mais auténtica e radical de contestacáo de nos mesmos. O
cicsejo de reformas na Igreja deve ser acompanhado pela re-

— 250 —
CRISE E SANTIDADE NA IGREJA 19

forma da vida de cada membro da Igreja; se esta reforma se


der, é de crer que as outras se daráo, de modo a beneficiar
realmente o povo de Deus.

A Igreja de Cristo tem promessa de duragáo perene; Ela


nao acabará enquanto se desenrolar a historia da humanidade.
Verdade é que, para subsistir em nossos tempos, Ela precisa de
elementos novos, suscitados pela vida moderna: mestres espe
cializados, técnicos, psicólogos, planejadores, equipes trei nadas
em dinámica de grupo... Ela precisa, porém, ácima de tudo,
de santos.

Os santos tém gcralmenle a reta intuigáo das coisas de


Deus; estáo particularmente habilitados a ver como Deus vé
e amar como Deus ama. Por conseguinte, que os filhos da
Igreja especializados em disciplinas técnicas, procurem ser sa
bios e também santos, homens e mulheres de doutrina e erudi-
Cáo, como também homens de oragáo e caridade.

4. Por último, note-se: a santidade nao chama a atencáo


em nossos dias, talvez menos ainda do que outrora. Mais fre-
qüentemente também se contam casos perplexos e escandalosos
do que casos de edificagáo; aqueles, por sua índole e suas con-
seqüéncias, dáo mais na vista do que estes.

Nao é necessário, porém, que' os homens reconhec.am a


santidade. O que importa, é que ela exista na Igreja. Também
os alicerces de urna casa sao invisiveis, mas isto nao importa;
o que se requer, é que baja alicerces, e alicerces sólidos, pois da
sua solidez depende a solidez da casa. Algo de semelhante se
pode dizer no tocante á Igreja; alicergada sobre Cristo e seu
Vigário, Pedro, Deus quis que tenha também consistencia e
eficacia na medida em que Ela incluí santos em seu gremio.

A Igreja de hoje olha para o seu futuro com serenidade.


Ela tem confianga no Senhor Jesús, que lhe prometeu indefec-
tível assisténcia até a consumacáo dos sáculos (cf. Mt 28,20);
Ela confia também no dom da santidade que Cristo nao permi
tirá venha a lhe faltar. Todavía, dada a inclemencia dos tem
pos em que vive, a Igreja pede a Deus novos Santos e exorta
seus filhos a que se coloquem generosamente no caminho da
santidade; dir-se-ia que a Igreja senté que deve responder á
sua crise com um novo surto de santidade.

As consIderacSes destas páginas foram, em grande parte, inspiradas


pelo artigo "La Chlesa oggi ha bisogno di santi" (editorial) de "La Civilitá
Cattolica", qu. 2866, de 15/XI/1969, pp. 314-318.

— 251 —
Respeito á consciencia alheia e missao:

a igreja ainda é missionária?


promover ou evangelizar?
"cristáos anónimos"?

Em sin tese: A necessidade de levar a fé crista a todos os homens tem


padecido dúvidas nos últimos lempos, em parte talvez por causa de mal
entendidas declaracoes do Concilio do Vaticano II sobre a liberdade reli
giosa e o ecumenismo. Todavia quem leve em conta exata os documentos
do Concilio, verifica que este, ao lado da proclamado de respeito ás cons-
ciencias individuáis, incutiu repetidamente a Índole missionária da Igreja.
De resto, o amor a Deus c ao próximo impele, como que naturalmente,
iodo crlstáo a evangelizar; quem ama a Deus, sofre porque Deus nao é
conhecido e amado devidamente; quem ama o próximo, sofre por vé-Jo
aberto para o Infinito, sem saber onde encontrar o Bem Infinito.

O desenvolvimento humano e a evangelizagao sao tarefas distintas urna


da outra, embora geralmente devam ser exercidas simultáneamente. Para a
Irjreja, nao há auténtico alendimento ao próximo que se preocupe apenas
ou preponderantemente com interesses terrestres; é para levar Deus aos
homens que se exerce toda a atividade missionária da Igreja.

"CrlstSos anónimos" é expressáo ambigua, que nao encontra base em


:ex!os bíblicos. Na verdade, ser cristSo ó mais do que ser homem perfeito
com o neme de cristác; supóe urna elevacáo ontológica ou a comunicacao
de urna nova natureza e um novo ser á criatura humana. Esta elevagáo é
normalmente concedida por Deus mediante a pregacáo da palavra do Evan-
gelho, que suscita no ouvinle a fé e, conseqüentemente, o pedido de ba-
íismo.

Comentario: Tem-se verificado um arrefecimento da tem


pera missionária em certos ambientes ou, ao menos, em certos
porta-vozes do Catolicismo. A nova atitude é talvez sugerida
por declarares (mal interpretadas) do Concilio do Vaticano II
referentes á liberdade religiosa e ao ecumenismo; o táo reco
mendado respeito á consciencia alheia possivelmente vem sus
citando o esmorecimento do zelo missionário católico.

É ao problema assim esbozado que dedicaremos as páginas


seguintes.

— 252 —
A IGREJA É MISSIONÁRIA? 21

1. A problemática

Nos últimos anos, a diminuigáo do interesse dos fiéis cató-


Jicos pela evangelizagáo do mundo nao cristáo pode ser atribui
da a tres causas:

1) Invoca-se o principio segundo o qual Deus tem nume


rosas vias para salvar os homens; mesmo que nao pertengam
visivelmente á Igreja de Cristo, podem chegar á patria eterna,
caso vivam de boa fé em seus erros filosóficos e religiosos.

Eis, por exemplo, urna passagem do decreto do Vaticano II


sobre a atividade missionária da Igreja:

"Se bem que Deus possa, por vias que só Ele condece, levar á fé os
homens que, sem culpa de sua parte, ignoram o Evangelho..." ("Ad Gen*
les" n? 7).

A Constituigáo «Lumen Gentium» observa:

"Aqueles que sem culpa ignoram o Evangelho de Ciisto e sua Igreja,


mas buscam a Deus de coracao sincero e tentam, sob o iniluxo da graca,
cumprir por obras a sua vontade conhecida através do ditame da cons
ciénda, podem conseguir a salvacáo eterna A Divina Providencia nao nega
os auxilios necessários á salvacáo aqueles que sem culpa aínda nao che*
ga/am ao conheclmenlo expresso de Deus e se esforcam, nao sem a di*
vina graca, por levar urna vida reta" (? 16).

2) Em continuidade com as idéias ácima, tem-se difun


dido o conceito de «cristáos anónimos»... Todo homem, dizem,
é um cristáo em potencial ou um cristáo que ignora o seu no-
me; o papel da evangelizagáo seria apenas o de fazer com que
o homem se encontré consigo mesmo ou o de revelar o nome
a esses cristáos anónimos. Em outros termos: a evangelizagáo
apenas faria chegar á plena consciénda crista esse Cristianis
mo adormecido e latente; daria a expressáo auténtica á fé que
todo homem já traz dentro de si.

Quem adota esta tese, nao pode deixar de concluir que a


evangelizacáo perdeu boa parte da sua importancia e necessi-
dade.

3) Os problemas do subdesenvolvimento (miseria, fome,


doenga...) ás vezes impressionam mais do que a ignorancia
religiosa; em conseqüéncia, a promo~áo dos homens tem sus
citado, nao raro, mais interesse do que a evangelizagáo pro-
priamente dita ou a pregagáo das verdades da fé.

_ 253 —
22 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 1Ü2/1973

0 Card. Pignedoli, da Congregacáo para a Evangeliza-


cáo dos Povos, escrcvcu a propósito:

"Há pessoas táo entusiastas do desenvolvimento que elas sao tentadas


a reduzis toda a Boa-Nova (do Evangelho) unica-nente á t-olucáo dos pro
blemas sociais" ("L'annonce de l'Évangile et le monde en volé de développe-
meni", er.i "Omnis Yerra", ab.il 1970, p. 302).

Um missionário do Alto Volta (África), o Pe. Pierre Dc-


letoille, escrevia oportunamente:

"Hoje o ministerio pastoral... é comprometido porque os paises que


nos devem ajudar, parecem dar mais ¡mportánci.i as ¡eatizacóes sociais e
materiais do que á picgacao do Evangelho. Vi.cines com :ecii.-jos tao
exiguos que nao chegamos a cumprir nossas ob.iga:6e> prima ¡as. . .

Quem ajudará o missionário nesse trabalho primordial da evangeliza-


cao? Quem o ojudará a formar e entreter catequistas?... a dotar as no
vas comunidades cristas nao de igrejas dispendiosas, nta3 de luga:es de
culto convenientes e dignos?" (cf. "Le Christ su mcn'Je" 1339, vol. 4,
n? 6, p. 571).

Para justificar o desinteresse pela pretracáo da fé, há quem


diga: «Devemos ajudar os homens a tornar-se homens por in-
teiro; é preciso auxiliá-los sem u'terior interráo, isto ó, sem
procurar converté-los». — A evangelizacáo propriamente dita
c, por vezes, tida como agáo constrangedora ou como violagáo
das consciéncias.

Do seu lado, — alias, já há mais de vintc anos — Mon-


tuclard, no livro «Les événements et la foi», defendía a seguinte
tese: as massas populares nao podem atualmente sor levadas a
Cristo: é preciso nao lhcs falemos do rcligiño no decorror de
duas ou tres geraqóes. Para ora, contentar-nos-emos com urna
colaboracáo que proporcione a essas massas um mais elevado
nivel material de vida. '

Ora o arrcfecimenio do espirito apostólico aparece parti


cularmente grave desde que se leve em conta eme cada ano o
número de nao católicos no mundo cresce de 23 milhóes, ao
passo que o número de católicos aumenta de 5 milhóes.
Tal situacáo, improssionante como é, tem incitado os teó-
Iotos católicos á reflexáo. Seriam realmente justificadas as
tres razóes ácima apontadas para provocar o arrefecimento do
fervor católico?

Examinemos cada urna de per si.

1 De passagem diga-se que as idéias de Montuclard foram condenadas


pela Santa Sé em 1953.

— 254 —
A IGREJA É MISSIONARIA? 23

2. Igrejo e evangelizagáo

1. O Concilio do Vaticano n reconheceu que Deus pode


salvar os homens por vias a nos desconhecidas, de sorte que
quem vive de boa fé no erro religioso pode estar-se encami-
nhando para o único Deus, do qual nos fala o Evangelho. Note-
-se, porém, que esse encaminhar-se nao se faz sem o auxilio da
graga de Deus, como diz o Concilio nos textos citados á p. 353
p. 21 deste fascículo. Isto quer dizer:... nao se faz sem aplicagáo
dos méritos redentores de Cristo; nao se faz portanto senáo
por Cristo, e nao porque o homem tenha em si mesmo os meios
de se salvar.

Tais verdades sao de importancia capital. Reconfortam-


-nos quando consideramos os milhóes e milhóes de homens que
hoje em dia nao professam a fé católica por ignorarem o Cristo,
enquanto outros sao educados sob regime ateu.

2. Nao obstante, o Concilio do Vaticano II incute instan


temente a necessidade de se pregar a fé a todos os homens.
Nao é lícito á Igreja e aos seus membros cruzar os bragos
diante do mundo que nao conhece o Evangelho, pois o Evange
lho e a Eucaristía sao os meios normáis que o Senhor instituiu
para a salvagáo da humanidade. Eis o contexto (quadro com
pleto) da passagem do decreto «Ad Gentes» atrás citada:

"O motivo da atividade misslonárfa da Igreja é a vonlade de Deus,


que quer que todos os homens sejam salvos e venham ao conhecimento da
verdade... É necessário que pela pregacao da Igreja todos reconhecam
Cristo e a Ele se convertam e pelo batismo sejam incorporados nele e na
Igreja, seu Corpo... Embora Deus possa, por vías que so Ele conhece,
levar á fé os homens que, sem culpa da sua parte, ignoram o Evangelho,...
cabe á Igreja o de ver e lambém o direlto sagrado de evangelizar. Por isso
a atividade mlssionária, hoje como sempre, conserva integra sua torca e
necessidade" (n? 7).

A própria Declaragáo sobre a Liberdade Religiosa, embora


reconhega a cada homem o direito de livre opgáo em materia
religiosa, nao deixa de afirmar:

"Cremos que a única e verdadeira Religiio se encontra na !g eja Ca


tólica e Apostólica, a quem o Senhor Jesús conliou a tarefa de transmiti-la
a todos os homens, quando disse aos Apostólos: 'Ide, pois, e enslnai os
povos todos, batizando-os em nome do Pal, do Fllho e do Espirito Santo
e enslnando-os a guardar tudo quanto vos mande!' (Mt 28,19s)".

É por isto que «a Igreja peregrina é, por sua natureza,

— 255 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/J973

missionária» («Ad Gentes» m. 2); «a atividade missionária


decorre do íntimo da natureza mesma da Igreja» (ib., m 6).
Caso arrefecesse o zelo missionário da Igreja, poder-se-ia dizer
que ela entraría em declínio por ter sido infiel á sua natureza.
Os métodos de conservaqáo da fé ñas regiócs já cristianizadas,
aplicados exclusivamente, seriam incapazcs de mnntcr a Igreja
no seu nivel, pois esta sem missáo seria uma Igreja mutilada ou
privada de algo de cssencial. A Igreja nao ó somonte uma
organizagao, mas é também um organismo vivo e, como todo
corpo em boa saúde, ela deve tender a crescer.

3. Mesmo em relacáo aos cristáos separados da Igreja


Católica (protestantes, ortodoxos) existe o dever de Inés pro-
por a fé católica ein sua integridade. Verdade é que tais irmáos
já possuem muitos e auténticos valores do Evangelho, mas de-
ve-se reconhecer que lhes faltam outros elementos necessários
e que carecem da plena comunháo com a única Igreja de Cristo. *

Eis por que aos fiéis católicos incumbe o dever de nao


ocultar aos irmáos separados os bens que os possam levar á
plena comunháo com a Igreja. — Entende-se, porém, que o
fa?am em ocasióes oportunas e sem polémica.

4. O que o Concilio do Vaticano II rejoita explicitamente,


é o emprego de meios coercitivos para provocar a profissáo de
fé de alguém. Seja sempre salvaguardado o primado da cons-
ciéncia, a quem compete definir livremente as suas posigóe?
religiosas (cf. Declaraeáo sobre a Liberdade Religiosa, n" 4).

De resto, deve-se dizer que nao sao os homens que con-


vertem seus irmáos á fé. é Deus quem os converte, servindo-se
do ministerio dos arautos do Evangelho. Apañas sabemos que
Deus quer precisar dos homens e, por isto, pede aos mensa-
geiros que anunciem celosamente a Boa-Nova.

i Sao palavras do Concilio do Vaticeno II:

"Os IrmSos separados de nos... n5o gozam daquela unidade que


Jesús Cristo quls prodigalizar a todos aqueles que regenerou e convivlllcou
num só Corpo. Somente através da Igreja Católica de Cristo, auxilio geral
de salvacfio, pode ser atingida toda a plenltude dos meios de salvacSo.
Cremos que o Senhor confiou todos os bens do Novo Testamento ao
único Colegio apostólico, a cuja testa está Pedro, a fim de constituir na
térra um só corpo de Cristo, ao qual é necessárlo que se Incorporem
plenamente todos os que de alguma forma pertencem ao povo de Deus"
(Decreto sobre o Ecumenlsmo, n? 3).

— 256 —
A IGREJA É MISSIONARIA? 25

3. A raiz da missáo

1. O Concilio nos diz que a Igreja tem o dever de evan


gelizar. .. Esse dever há de ser entendido como urna necessi-
dade espontánea ou vital, que brota do intimo de todo cristáo
que tenha o senso de Deus.

Com cfeito. O cristáo para quem Deus nao seja urna pa-
lavras, mas, sim, urna realidade viva, nao pode deixar de amar
a Deus e de sofrer por verificar que Deus nao ó devidamente
conhecido e amado. O coragáo que ama, sofre por ver que o
Amor nao é amado. É essa dor que suscita e alimenta o apos
tolado; era ela que movia Sao Paulo quando exclamava: «Ai
de mim, se eu nao evangelizar!» (1 Cor 9,16). Foi ela que
moveu Francisco de Assis, Francisco Xavier, Vicente de Paulo,
D. Bosco, D. Orione, Teresa de Ávila, Teresa de Lisieux...

2. Nao somente o amor a Deus, mas também o amor ao


próximo leva o cristáo a querer ser apostólo. O cristáo sabe que
em todo homem existe um apelo para o Bem Infinito; sabe
também que nenhuma criatura humana se realiza definitiva
mente caso nao se volte para o Infinito (como a agulha magné
tica nao repousa enquanto nao se volta para o seu norte).
Por isto o cristáo nao pode deixar de sentir o tormento de
Deus que tantos de seus irmáos sentem sem saber como o háo
de apaziguar... Isto nao pode deixar de impressionar e mover
o discípulo de Cristo. O cristáo deve amar seus semelhantes a
ponto de compreender que eles tém fome e sede do Infinito;
compreendendo-o, o discípulo de Cristo é levado a satisfazer a
esta suprema necessidade de seus irmáos.

Seria erróneo crer que a mensagem do Evangelho, devida-


mente apresentada, nao tenha acesso na mente dos homens de
hoje. A neurose, doenga do século presente», é nao raro o indi
cio do desequilibrio que nossos contemporáneos padecem por
terem esquecido a Deus. A experiencia ensina que mesmo as
pessoas aparentemente mais indiferentes aos assuntos de fé se
deixam interessar por estes em ocasióes oportunas que a Provi
dencia Divina nao deixa de suscitar (ocasióes em que o homem
se torna sincero consigo mesmo, pois toca o fundo do seu ser).
É preciso, pois, tenha o apostólo cristáo confianca no valor e
na eficacia da Palavra de Deus, que o Senhor quis confiar a
seu zelo. É necessário que nao se deixe levar do triunfalismo
para o derrotismo ou para o que se chamou «o complexo do
antitriunfalismo»...

— 257 —
2G «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

3. Está claro, porém, que o zelo apostólico do cristáo de-


ve ser adaptado á realidade de nossos tempos. Evite rixas,
preconceitos, anatematizagóes precipitadas... O cristáo deve
saber compreender ludo que haja de válido e bom ñas novas
formas de vida do século XX. Deve saber despojar-se de coisas
que lhe sao familiares e caras, mas em si secundarias, para poder
entrar no mundo de hoje como este é. Diz muito bem o Car-
deal Daniélou em seu estilo um tanto poético:

"Temos de nos opor, com urna recusa total, a ludo que neste mundo
seja antagónico a Jesús Cristo; mas, de outro lado, devenios testemunhar
um amor auténtico a ludo que seja o desdobramento da criacáo de Jesús
Cristo neste mundo, em cujo coracáo nos compete plantar a cruz" ("Amout
de Dieu et apostóla!", em "Le Christ au monde" 1970, vol. XV, n? 4,
p. 303).

4. Evangelizo$ao e desenvolví mentó

Além das razóes teológicas, devem-se levar em conta, na


problemática missionária, as preocupacóes suscitadas pela pro-
mocáo dos homens subdesenvolvidos. A promogáo humana,
pergunta-se, nao se poderla equiparar á evangelizagáo? As
prementes necessidades físicas de tantas criaturas aínda dei-
xam clima para se lhes falar de Deus?

O Santo Padre Paulo VI tem-se ocupado intensamente


com tais questóes, principalmente em suas alocucóes anuais
preparatorias do Día das Missóes. Abaixo tentaremos repro-
duzir o pensamento de S. Santidade expresso aos 5/VI/70 (cf.
SEDOC, vol 3, n" 27, cois. 158-162).

1. Procuremos, antes do mais, delimitar os conceitos.

Que vem a ser propriamente «evangelizagáo»?

"Por evangelizacáo entende-se a agio propriamente religiosa, dedicada


ao anuncio do Reino de Deus, do Evangelho, como revelacáo do designio
salvilico em Cristo Senhor, mediante a acao do Espirito Santo, que encon-
tra o seu veiculo no ministerio da Igreja, a sua finalidade na edificacao
da mesma, e o seu termo na gloria de Deus" (ib. 159).

E «desenvolvimento»?

"Por desenvolvimento entende-se a promoclo humana, civil e temporal


daqueles povos que, em contato com a clvlllzacáo moderna e com a ajuda
que esta lhes pode dar, lomam nova consciSncia de si e se encaminham para
níveis superiores de cultura e prosperidade" (ib. 159s).

— 258 —
A IGREJA É MISS10NÁRIA? 27

Como se vé, evangelizagáo e promogáo distinguem-se níti


damente urna da outra. A primeira é urna atividade propria-
mente religiosa, ao passo que a segunda se sitúa no plano
humano, civil e temporal. O cristáo nao está evangelizando,
aínda que se encontré em territorio de missáo, caso se contente
cc;n trabalno em plano meramente humano.

Embora distintas entre si, evangelizacáo e promogáo estáo


longe de se excluir mutuamente. Ao contrario, elas se com-
plementam, constituindo um todo sintético. O apostólo cristáo,
de um lado, nao pode deixar de «procurar levar a todos os
homens a luz da fé, regenerá-los por meio do batismo, associá-
-los ao Corpo Místico de Cristo, á Igreja, educá-los para a vida
crista e infundir-lhes a esperanca da vida ultíaterrena». De
outro lado, o mesmo cristáo «nao pode esquecer a solene ¡igáo
do Evangeiho sobre o amor ao próximo sofredor e necessitado»
(ib., col. 160).

2. P5e-se, porém, a questáo: das duas grandes atividades,


qual a que ocupa o prime ¡ro lugar na escala dos valores inten
cionados por Deus?

A resposta é assim encaminhada por Paulo VI:

"É ¡ndiscutível que a atividade missionária tem por flm, antes de ludo,
a evangelizado, devendo manter esta prloridade, quer na concepteo que
a inspira, quer nos modos como é organizada e exercida".

E continua de maneira enfática:

"A atividade missionária perderla a sua lazáo de ser se se alastasse do


eixo religioso que a sustenta ácima de tudo, o Reino de Deus... entendido
em sentido vertical, teológico e religioso, que liberta o homem do pecado,
Ihe aprésenla o amor como mandamento supremo e a vida eterna como
destino último" (ib., col. 159).

3. Acontece, porém, que a prioridade da evangelizagáo na


escala dos valores nao excluí que os primeiros contatos com
urna populagáo nao crista, em alguns casos, se fagam mediante
o emprego de meios de ordem temporal ou promocional. Este
servico humano possibilita um relacionamento cordial ou fra
terno entre o apostólo e os nao cristáos, abrindo o caminho
para contatos na linha da fé.

Deve-se lembrar também — continua o S. Padre — que


a comunicacáo do Evangeiho de Cristo pode ter lugar nao so-
mente mediante pregagóes, aulas de catequese e atos de culto,

— 259 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

mas igualmente através do contato humano que se estabelece


em escolas, hospitais, na assisténcia social e na educagáo dos
jovens ou adultos para o exercicio de determinada profissáo.
De maneira especial, os fiéis leigos sao chamados a evangelizar
através do desempenho de suas fungóes seculares; o Concilio
do Vaticano II recordou que os leigos sao chamados a «pro
curar o Reino de Deus precisamente através da gerencia das
coisas temporais»; «podem e mesmo devem, ainda quando se
entregam as suas tarefas de ordem temporal, exercer urna agáo
preciosa para a evangelizagáo do mundo» (Const. «Lumen
Gentium» n' 31 e 35).

Requer-se, pois, que o apostólo de Cristo — sacerdote ou


leigo — avalie devidamente cada urna das situagóes em que se
veja colocado e procure atender eficazmente as necessidades
de seus irmáos — necessidades espirituais e materiais. Em
conseqüéncia, evangelizagáo e promogáo, em muitos casos, se
exerceráo simultáneamente.

4. Observe-se ainda: pode-se crer (fora eventuais exce-


góes) que os homens nao tém menos necessidade de Deus e do
pao da Palavra do que do pao do corpo; o ser humano nao é
mero animal vegetativo e sensitivo, mas é também um vívente
racional, para quem as questóes «por qué?», «para qué?» «don
de?», «para onde?»... tém valor capital. Mesmo o indigente
encontra seu eixo ou a razáo de ser de sua vida na oragáo
ao Pai Celeste. O contato com Deus é característico do ho-
mem desde que este é homem na historia; elevar-se a Deus
corresponde a urna das aspiragóes e necessidades mais genuínas
da natureza humana.

Estas observagóes se comprovam pelos seguintes fatos: se


os homens subdesenvolvidos nao sao levados ao Evangelho,
deixam-se fácilmente atrair pelas pseudomísticas do espiritis
mo ou das mais recentes seitas protestantes. Os arautos do
protestantismo nao hesitam em pregar o Evangelho aos mais
indigentes dos seus irmáos, que lhes dáo acolhida grata e en
tusiasta (tenha-se em vista a extraordinaria propagagáo do
pentecostalismo ñas classes mais humildes de nossa popula-
cüo). Os mensageiros católicos podem apreciar o destemor na
pregagáo e a confianca na eficacia da Palavra de Deus que
animam os irmáos separados.

Evangelizar é, pois, elevado ato de caridade. Omitir a evan


gelizagáo, sob qualquer pretexto que seja, vem a ser grave
detrimento ao amor fraterno.

— 260 —
A IGREJA É MISSIONÁRIA? 29

5. Cristáos anónimos

Sobre a tese dos «cristáos anónimos», podem-se fazer as


seguintes ponderales:

Tal tese é fruto de equivoco ou de otimismo excessivo: Em


todo homem existe, sim, urna natureza racional apta a receber
a graga de Deus através do Evangelho (trata-se de mera apti-
dáo: a natureza racional é capaz de receber a graga ou a filia-
gáo divina). A graga, porém, nao é simplesmente a natureza
aperfeigoada ou levada ao seu auge natural; a graga é de ordem
sobrenatural. O que quer dizer: ela implica urna elevagáo da
natureza ácima de si mesma; ela torna o homem participante
da vida divina (cf. 2 Pe 1,4) e desfinado a ver a Deus face-a-
-face (cf. 1 Cor 13,12; 1 Jo 3,2).

De resto, notam os comentadores da tese dos cristáos


anónimos» que os seu arautos carecam de base escriturística;
nao tentam mesmo fornecer argumentagáo bíblica para as suas
ir'éias; partem apenas do que lhes parece ser «principios teo
lógicos» .

Em suma, pois, pode-se dizer que evangelizagáo é mais do


que descobsrta de um nome, é mais do que «tornar os homens
conscientes de urna realidade que eles já possuem inconsciente
mente». Evangelizagáo é um principio de elevagáo ontológica;
é a comunicagáo de urna nova natureza ou de um novo ser á
criatura humana: «Vede com que amor nos amou o Pai, ao
querer que fóssemos chamados filhos de Deus. E de fato o
somos!» (1 Jo 3,1).

Bibliografía:

A revista "Le Christ au monde", que aparece em quatro edicdes (fran


cesa, inglesa, espanhola e italiana), vem tratando do assunto (missáo hoje)
com notável riqueza de documentos e dados históricos. Aparece blmes-
Iralmente, tendo por endereco: Via G. Nicotera, 31, 00195 Roma, Italia.
É altamente instrulivo o material apresentado nos artigos desse periódico
com referencia tanto aos pafses de missSo como ás nacóes tradicional-
menie cristas.
Sobre os "cristáos anónimos", leia-se:
K. Rahner, "Schriften zur Theologie" t. VI. Einsiedeln 1965 (favorá-
vet á tese).
Hendrik Nys, "Le salut sans l'Évangile". Paris 1966 (favorável...).
F. X. Durrwell, "Le salut par l'Évangile" (réplica ao livro anterior) na
revista "Spirltus" vol. 32, dezembro 1967, pp. 380-395.
P. Stassen, "Les Chrétlens anonymes", em "Le Christ au monde" vol.
XIII, 1968, p. 254s (o autor faz reservas á tese dos c. an.).

— 261 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

Jean Rennes, em "The International Revlew of Missions", vol. 57, jan.


1968, p. 126 (recensáo e critica do livro de Nys).

Aquí no Brasil, seja mencionada a posigáo (avorável assumida por


Leonardo Boff no livro "Jesús Cristo Libertador". Petrópolis 1972, pp.
268-285.

carta aos amigos


Jerusalém, 12 de maio de 1973
Caros leitores,

Os amigos permitirao que, em lugar da habitual resenha


de livros que enccrra cada fascículo de PR, seja aquí colocada
urna resenha de acontecimentos e hnpressoes dcsta Térra Santa,
onde, por graca de Dcus, me encontró desde margo pp., num
cstágio de reciclagem neccssária e altamente proficua.
Realmente viver com calma e profundidadc na Térra em
que se desenrolaram os grandes feitos da Redencao do género
humano, é presente do céu, precioso, inestimável... Sondando
as riquezas desse presente, vamos hoje continuar as reflexóes
iniciadas em PR de maio pp. Quatro pontos muito me tém
impressionado últimamente:
1) Como é obvio, na Térra Santa a Biblia fala com énfase
particular. Os cenários geográficos, os reinos, as cidades, os
personagens que ela menciona, tornam-se como que redivivos
ao peregrino e estudioso; os nomes complicados c de sabor orien
tal que ela encerra, perdem todo possivcl colorido mitológico ou
lendário, para tornar-se realidade pujante e pugente; os qua-
dros bíblicos, com sua mensagem, entram pelos olhos e os sen
tidos do observador.
Ao norte a Galiléia, assmalada. por seu lago grandioso, suas
montanhas de tracados suaves, seus monumentos e santuarios,
tala muito da infancia traqüila tío Senhor Jesús em Nazaré,
onde María e José lhe assistiam, como também comunica de
novo modo a alegría que a Boa-Nova veio despertar nos homens
(¡liando Jesús a anunciou em Cafarnaum, em Cana, em Naím,
em Cesaréia de Fib'pc... — Ao sul, a Judéia, com a sua. grande
cidade de Jerusalém, faz contraste, pois se reveste de austeri-
dade. . . O deserto está perto e, com ele, o Mar Morto, a quase
400 m abaixo do nivel do mar, regiáo de calor pesado e ¡nos-
pito. Jerusalém é marcada pelos sinais da disputa e dos vai-e-vem
da historia. Sente-se bem que os povos afluíram incessantemen-
(Continun na pág. 279)

— 262 —
Na atual renovacáo da Igreja:

romarias e peregrinajes justificam-se?

Em sfntese: As romarias ou peregrinajes sao urna forma de piedade


sujeita a desvirtuamentos (exploracSo comercial, turismo...), em conseqüén-
cia dos quais muitos modernos mestres de espiritualidade tém perdido a
estima por tais formas devocionais.
Todavia as peregrinajes tém forte fundamento na Escritura Sagrada
(tenham-se em mente os santuarios de Jerusalém, Betel, Da...) e na Tradl-
c§o crista. Correspondem a um movimento espontáneo do homem religioso
e, em particular, do cristao. Nao se deveria, pois, pleitear a extincáo dessa
forma de piedade, de que o povo de Deus tem necessidade, mas, sim, dar
fundamentacáo teológica e mistica ás romarias, de modo a conservá-las
em nivel estritamente cristáo e evitar o seu desvirtuamento. Para se obter
esse objetivo, recomendam-se algumas atitudes características do auténtico
peregrino: amor a Deus e ao próximo, penitencia e oragao.

Quanto aos santuarios de origem hoje em dia discutida, a Igreja nao


faz questáo de afirmar sua autenticidade (outrora nao era discutida a ques-
táo). Poderáo deixar de ser procurados pelos fiéis. O que importa, porém,
é que a piedade do cristao possa ter sempre suas formas sensíveis e orto
doxas de expansSo.

Comentario: Após o Concilio do Vaticano II (1962-65), os


mestres tém procurado dar fundamentacáo mais sólida á pie
dade crista. Em conseqüéncia, a leitura e meditacáo da Biblia
tém tomado grande incremento entre os fiéis católicos. Ao
contrario, as formas de piedade de índole mais popular tém sido
postas á margem em alguns ambientes (ás vezes, de maneira
um tanto .drástica, de modo a deixar os fiéis mais simples desti
tuidos de alimento espiritual).

Entre as expressóes clássicas da fé crista, estáo as roma


rias ou peregrinagóes. Estas costumam ser realizadas até hoje
com freqüéncia e notoria participacáo dos fiéis; em grande nú
mero e com fervor as caravanas se dirigem aos principáis san
tuarios do Brasil, destacando-se em primeiro lugar o de Apare
cida do Norte (SP).

É evidente que tais romarias tém beneficiado profunda


mente os fiéis católicos e poderáo continuar a fazé-lo. Todavia,
já que tais atos de piedade háo de ser considerados em pers-

— 263 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

pectiva teológica, a fim de nao se desvirtuaren!, proporemos


abaixo algumas reflexóes que visam a tornar ainda mais fru-
tuosas as romanas do povo de Deus.

A respeito já publicamos algo em PR 24/1959, pp. 521-528.

1. Fundamento doutrinário

A Escritura Sagrada dá a ver que Deus quis, desde re


motas épocas, tornar-se presente de maneira sensível aos ho-
mens, assinalando certos lugares com testemunhos de sua
presenca e sua misericordia. Tais foram os santuarios do
Antigo Testamento: Jerusalém, Betel, Dá...

No Novo Testamento ou após a vinda de Cristo, continua


a haver lugares em que a acáo de Deus parece patentear se de
maneira mais flagrante: tais sao

— as térras e cidades em que Jesús Cristo realizou sua


obra de Encarnagáo, pregacáo e Redengáo: a Térra Santa e
seus santuarios;

— as cidades em que viveram ou labutaram os grandes


santos: Assis, Ars, Lisieux, Ávila...;

— as cidades em que se achem famosos despojos ou reli


quias dos santos: Roma, Compostela;

os locáis em que, com certo fundamento (embora nao


certeza de fé), se eré que apareceu o Senhor Jesús ou a Vir-
gem SS.: Paray-Le-Monial, Aparecida do Norte, Fátima, Lour
des, La Salette. . .

Em tais lugares (cidades ou santuarios) Deus se deu urna


vez a reconhecer em termos mais evidentes, visto que o ho-
mem, sendo criatura psicossomática, necessita de manifesta-
cóes, a fim de que pela percepeáo dos elementos visíveis se eleve
á contemplacáo dos bens invisiveis. Pode-se crer que Deus con
tinué a se patentear ai, derramando gracas sobre as pessoas
que lá váo orar: gracas principalmente de ordem espiritual
f conversóos do pecado a auténtica vida crista, afervoramento
de almas tibias...) e também gracas de teor material (cura
de doencas, paralisias, éxito em determinado empreendimen-
lo...).

— 264 —
AS PEREGRINAC6ES NA PIEDADE CRISTA 33

Ora, desde que alguém julgue dever reconhecer que real


mente em tais lugares Deus quer comunicar mais amplamente
os seus dons aos homens, comprende-se que tal pessoa procure
esses santuarios para ai adorar a Deus e impetrar os beneficios
espirituais e temporais de que precise. O Senhor, em sua sabe-
doria, quer assim proporcionar as criaturas ocasióes de se con-
verterem, emendaren! a sua vida e se afervorarem.

Partindo de outro principio, pode-se dizer: «Procurar a


Deus» sempre foi o programa do homem religioso de qualquer
credo. Essa procura de Deus faz-se, antes do mais, no plano
espiritual, pois o Senhor é Espirito e é com o espirito que o
homem o atinge. Entende-se, porém, que os homens procurem
a Deus também no plano físico ou visível, pois a criatura hu
mana está vinculada aos sinais materiais.

Tais consideragóes explicam que, desde os primeiros sé-


culos, os cristáos tenham praticado peregrinagóes: Jerusalém
e os lugares da vida terrestre de Jesús, Roma, Éfeso, Tours
(Gália)... foram lugares em que Deus e os homens se encon-
traram mais sensivelmente nos antigos tempos... Hoje estes e
outros locáis sao ainda marcados pelo testemunho da benevo
lencia divina; por isto merecem igualmente o aprego dos cris
táos do séc. XX.

Assim posta a base teológica das chamadas «romanas» ou


peregrinagóes, indagamos:

2. Como serei romeiro ?

O que hoje talvez lance o descrédito sobre as peregrina


góes, é o fato de que muitas pessoas nao as executam mais em
espirito religioso: as peregrinagóes tornaram-se nao raro via-
gens de turismo; junto aos santuarios, encontram-se comer
ciantes que procuram explorar ao máximo a oportunidade de
vender suas mercadorias; espalhafatos e exterioridades sufocam
o espirito religioso dos peregrinos. Acontece, de outro lado,
que muitos empreendem peregrinagóes levados por ideias um
tanto supersticiosas, julgando que no santuario seráo quase
mágicamente beneficiados pelo Santo ou a Santa de sua de-
vogáo.

Por isto requer-se, da parte das autoridades religiosas e


dos próprios peregrinos, zelo e vigilancia, a fim de que nao se

— 265 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

desvirtué a prática das peregrinagoes, mas, ao contrario, so


corrobore o espirito religioso dos que as empreendem.

Eis, em conseqüéncia, algumas das exigencias que o autén


tico peregrino .deve impor a si mesmo:

1) Partir em toda a accepgáo da palavra. Toda viagem


(qualquer que seja o seu motivo) predispóe psicológicamente o
homem a ser mais verdaderamente ele mesmo; fazendo-o mu
dar de ambiente, liberta-o da rotina ou de hábitos e convencóes
que podem ser verdadeiras amarras em seu quadro de vida
cotidiano.

Ora a peregrinagáo, sendo urna viagem, deve ser também


urna libertagáo, libertagáo do cristáo em relagáo ao seu espi
rito rotineiro. O peregrino deve colocar-se em atitude de fervor
e de disponibilidade para Deus e os homens.

Muitas vezes, em peregrinagáo tem-se observado o seguinte


fato: pessoas que, días antes, se mostravam fechadas, prontas
a se defender contra o próximo e a convivencia fraterna, mu-
daram por completo; bastou-lhes para tanto sair de seu habitual
quadro de vida; tornaram-se surpreendemente generosas em
suas palavras e em seus atos.

2) Urna genuina peregrinagáo comporta sempre urna certa


caminhada.

Verdade é que transportes confortáveis podem levar os


interessados aos principáis santuarios da Europa e da América;
nao é auténtico peregrino, porém, aquele que se esquece de
fazer parte da estrada a pé. Um peregrino é sempre um pouco
viandante, como Cristo foi viandante ñas estradas da Palestina
e os medievais eram caminheiros ñas diversas vias da Europa.
É para desejar, portanto, que os veículos transportadores de
peregrinos em nossos dias se detenham definitivamente a certa
distancia da cidade santa ou do santuario, termo da peregri-
nagáo.

E por que se deve desejar que os romeiros percorram a pé


parte do seu caminho?

— Nao porque o caminhar seja finalidade em si, mas por


causa de um terceiro elemento inerente a toda genuina peregri
nagáo:

— 266 —
AS PEREGRINAJES NA PIEDADE CRISTA 35

3) Penitencia- Quem caminha expóe-se ao cansago, ao sol,


á chuva, á fome e á sede; desta forma, penitencia-se e purifica-
-se (isto é, liberta-se dos resquicios de comodismo e covardia
que caracterizam o «velho homem»).

De modo geral, nao há verdadeira peregrinacáo sem um


mínimo de ascese. Isto quer dizer que carece de espirito pere
grino o viajante que, de bolsos cheios, procura bons albergues,
pratos finos e bebidas famosas; o genuino viandante de Cristo
deve dispor-se a comer e beber sobriamente e dormir pobre
mente, se necessário.

Alias, as peregrinagóes suscitam geralmente numerosas


ocasióes de praticar virtudes mortificantes, como abnegacáo,
pobreza, simplicidade... Por isto outrora os novicos da Com-
panhia de Jesús eram obrigados a fazer a «experiencia da pe-
regrinagáo»: durante algumas semanas deviam, em pequeños
grupos, percorrcr estradas que levassem a algum santuario. O
Pe. Mestre lhes entregava urna lista de casas religiosas onde
poderiam pedir hospitalidade... Assim se exercitavam os jo-
vens no dominio de si e na renuncia. No decorrer dos tempos,
porém, as circunstancias da vida tornaram esse exercício assaz
difícil ou mesmo inexeqüível.

4) Amor fraterno. As peregrinagóes nao sao atos de de-


vocáo individual, mas, sim, comunitaria. Os peregrinos devem
constituir urna comunidade coesa entre si. Isto exige que cada
romeiro pense em seus companheiros e procure prestar a cada
um os oficios do caridade que lhe estiverem ao alcance.

Em viagem e, mais ainda, nos lugares santos os peregrinos


fazem a experiencia viva do que é a Igreja Católica: postes em
presenga de irmáos provenientes das mais diversas regióes,
portadores de seus trajes característicos, os fiéis tém a ocasiáo
de perceber o que é o Corpo Místico de Cristo e tomam cons-
ciéncia do que é ser filho da S. Igreja Católica. O estímulo e o
exemplo dados polo próximo nao pode deixar de beneficiar
valiosamente cada um dos peregrinos.

5) Enfim, a exigencia máxima que se impóe ao peregrino,


é a oracao.

Os numerosos preparativos de viagem, o inevitável vozerio


e a alegría ruidosa das aglomeragóes, as grandes solenidades
podem constituir urna ameaga para o espirito de uniáo com
Deus e de contemplaqáo. É preciso, porém, que cada peregrino

— 267 _
36 -PERGUNTK E RESPONDEREMOS* 1G2/1973

se compenetre de que ele se pos a caminho exclusivamente para


procurar a Deus; o que lhe interessa, em sua «aventura» reli
giosa, é converter-se um pouco mais ao Senhor; por isto saberá
observar método e disciplina que lhe permitam realmente orar,
confessar-se e comungar por ocasiáo de sua peregrinagáo.

Pode um peregrino pór-se a caminho de algum santuario no


intuito de obter determinada graga temporal como a cura de
urna doenga. É lícito, sim, aos filhos de Deus pedir ao Pai o
pao nosso de cada dia (pao que supóe ou incluí saúde e bens
temporais). Todavía ó preciso que o cristáo saiba apreciar as
gragas da alma mais aínda do que as do corpo. Ao pedir bens
temporais, pega sempre e ardentemente a maior de todas as
gragas, que é a conversáo do espirito, a mudanga de vida, o
amor generoso a Deus e ao próximo. A experiencia ensina que
o Senhor Deus nao frustra as expectativas daqueles que O
procuram devotamente através das estradas desta vida.
Assim explanadas as exigencias que se impóem ao genuino
peregrino, vem a propósito urna bela passagem de Henri Engel-
mann:

"Há, portante, na Ierra lugaies privilegiados em que a presenca de


Deu3 se fez, e continua a fazer-se, mais tangivel. Em alguns pontos do
espado e do lempo,... foi levantada urna ponta do véu que nos encobre
o Deus tres vezes santo, o Deus leriivelmente 'oculto'. É preciso creíamos
que esses lugares sao 'santos' e que a iniciativa, muito pessoal e total
mente gratuita, de Deus em demanda do homem nos incita a pór-nos a
caminho para O encontrarmos. A peregrinado é tim desses lugares ou um
desses momentos em que o céu toca a térra.

O que nos impede de colocar-nos a caminho, • talvez a nossa falta


de humildade. Os 'espertes' (malins) de que falava Péguy (iioje dinamos
'os intelectuais') cacoam fácilmente das peregrinajes e da simploriedade
ciossa 'corrida aos lugares santos'. Talvez fosse oportuno lembrac-lhes que
Descartes, querendo agradecer a Deus a descoberta do 'Pensó, portanto
existo', fez a pereg.-inacáo de Nossa Senhora de Lo re ¡o, e se ajoelhou
multo devotamente no mesmo lugar em que, anos antes, se ajoelhara
Montaigne.

Os intelectuais se beneficiatiam — nos todos nos beneficia!¡amos —


relendo o que Madame Périer nos refere a respeito dos unimos anos de
Pascal:

'Já que nao podía trabalhar, o sen principal divertimento era o de


ir visitar as igrejas em que havia reliquias expostas ou alguma solenidade;
para tanto, efe possuia um almanaque religioso que o informava a propó
sito dos lugares em que havia especiáis práticas de devocáo; ele realizava
isso tudo táo devota e simplesmente que aqueles que o viam ficavam sur-
presos ...'

— 268 —
AS PEKEGRINACOES NA PÍEDADE CRISTA 37

P. nole-se quo (ol esse Paacal peregrino que.ni proclamou que 'toda a
desgrana dos horneru provém de uma só colsa: nao sabem permanecer em
repouso num quaito1" ("Pélerinages", col. "Je sais-Je crois". Paris 1959,
p. 15).

Engelmann, no texto ácima, sugere a falta de humildade


como uma das causas que detém os homens de empreender pe
regrinagóes aos lugares santos... Na verdade, o espirito dos
intelectuais (Engelmann cita Pascal, Montaigne, Descartes),
como o espirito da gente simples, precisa de expansóes religio
sas vivas e espontáneas pois o ser humano quer naturalmente
vibrar diante de Deus com uma afetividade sadia. É impossível
querer reduzir a piedade dos fiéis em geral apenas a atos da
Liturgia oficial da Igreja (sacramentos e alguns sacramentáis);
essa reducáo sufocaría simplesmente a vida de oragáo de mui-
tos católicos. O que importa, é suprimir os desvíos que se
tenham introduzido ñas peregrinagóes (entre os quais, uma
comercializagáo exagerada), e tornar os fiéis cada vez mais
conscientes do profundo significado religioso que tem uma
auténtica romaria. Quem assim instruí o povo de Deus, pode
ajudá-lo a ser auténtico peregrino ou a ir visitar os lugares
sagrados para ai orar mais devotamente.

3. E os santuarios históricamente duvidosos ?

Certos santuarios tiveram origem em relatos de fenóme


nos maravilhosos (aparigóes ou milagres...). Alguns desses
relatos sao hoje controvertidos, a ponto que certos historiado
res os consideram como espurios ou nao históricos. Tal é o
caso do santuario da Virgem SS. em Loreto, que teria sido
trasladado do Oriente pelos anjos;... é também o caso da
«Scala Santa», escada do pretorio de Pilatos que haveria sido
maravilhosamente transportada para Roma.

Tais relatos foram concebidos pela piedade popular dos


medievais com toda a boa fé. Ninguém duvidaya de sua auten-
ticidade. Por isto é que surgiram os santuarios referentes a
essas Crónicas.

A S. Igreja incentivou a devogáo a tais santuarios sem


iamais se definir sobre os pretensos feitos milagrosos que lhes
deram origem. As peregrinagóes a tais santuarios ocasionaran!
numerosos beneficios espirituais e corporais para os fiéis; eratn
um fator de afervoramento do povo de Deus. O Senhor cor-
respondeu as preces dos fiéis realizadas em tais lugares. Era

— 269 —
38 "PERGUNTK K RESPONDEREMOS,, KJ2/1973

isto o que as autoridades eclesiásticas tinham em vista ao pa


trocinar as peregrinagóes a Loreto ou a subida da «Scala
Santa».

Em nossos días, quando se langam serias dúvidas sobre a


autencidade dos mencionados santuarios, a S. Igreja nao
oculta tal situac;ño aos seus fiéis, pois a piedade há de ser ba-
seada na verdade e nao na vá fantasía. Por conseguinte, se os
fiéis católicos mais esclarecidos abandonam a devogáo a Loreto
e á «Scala Santa», ninguém os pode censurar; a S. Igreja, po-
rcm, até hoje nao extinguiu as peregrinacóes a esses lugares
santos nao porque ainda deseje insinuar a autenticidade dos re
latos controvertidos, mas porque tais peregrinagóes ainda sao
ocasiáo para que se afervore o povo de Deus. É possível que no
decorrer do tempo sejam supressas tais devogóes populares (a
Liturgia oficial da Igreja, alias, já suprimiu nos últimos anos
festas de origem controvertida). O que interessa á S. Igreja,
nao é a aparigáo (como tal) de Nossa Senhora neste ou naquele
santuario, mas a oragáo e o fervor que tém lugar em tal san
tuario .

A respeito do santuario de Loreto, veja-se PR 12/1958, pp.


508-514.

Bibliografía:

A. Beckhauser, "Os santuarios, manifestacóes do Misterio de Cristo",


em "REB", vol. 30 (1970), pp. 392-395.

H. Engelmann, "Pélerinages", col. "Je sa¡s-Je crois" n? 43, París 1959.

P. Deffontaines, "Géographie et Religions". Paris 1948.

R. Poussel, "Les pélerinages á travers les siécles". Paris 1954.

J. Folliet, "La spiritualité de la route". Paris 1939.

J. Madaule, "Pélerins comme nos peres". Paris 1959.

— 270 —
Na escola da historia:

os antigos cristáos batizavam enancas?

Em sfntese: O presente artigo apresenta os principáis testemunhos de


bispos, escritores e epitafios dos séc. 11/ IV em favor do Batismo das
enancas. Insinuam que este constituía uma praxe táo antiga quanto a pró-
pria geracáo dos Apostólos; é, pois, a execucio germina da mente do
Senhor Jesús, que quis associar, via de norma, o renascer da agua e do
Espirito com a salvacSo eterna (cf. Jo 3,5). As crlancas sao balizadas em
vista da fé da Santa Máe Igreja, suficiente para que nfio flquem privadas
da grasa santificante até o uso da razao.

A titulo de complemento necessário, deve-se dizer ainda que os teó


logos reconhecem hoje em dia o valor salviflco do Batismo de desejo ou do
desejo (explícito ou apenas Implícito) de Batismo por parte de pessoas que
nao possam receber o Batismo de agua.

Comentario: Já em PR 129/1970, pp. 382-397 e 140/1971,


pp. 347-356, abordamos a questáo da oportunidade de batizar
criangas. Depois de ter exposto os textos do Novo Testamento
concernentes ao assunto, propomos agora os testemunhos dos
antigos escritores da Igreja; tém valor especial, porque fazem
eco imediato a quanto disseram e fizeram os Apostólos e o
próprio Jesús. É obvio que os escritos do Novo Testamento,
referindo o primeiro anuncio do Evangelho a judeus e pagaos,
nao podiam supor familias cristas e o batismo dos respectivos
filhos. Somente ñas geracóes posteriores ao ámbito do Novo
Testamento é que se pode esperar encontrar testemunhos de
batismo de criangas.

Pergunta-se, pois, com grande interesse: Será que real


mente as familias cristas batizavam outrora os seus filhos? Ou
será o batismo de criangas uma instituigáo tardia e desproposi
tada da Igreja? .

Os documentos respectivos seráo propostos e brevemente


comentados segundo a devida ordem cronológica.

— 271 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

1) Sóo Policarpo, bispo de Esmirna na Asia Menor


(t 167)

As «Atas do Martirio de Policarpo» referem o interrogato


rio que precedeu o martirio, destacando-se ai o seguinte:

"Já que o procónsul Insistía dizendo: 'Jura, e eu te libertare!; amaldi-


coa o Cristo!', Policarpo respondeu: 'Há oitenta e seis anos que sirvo ao
Cristo, e Ele nunca me fez algo de mal; como entáo poderla eu blasfemar
o meu reí, aquele que me salvou?'" (Atas n? 9).

Oitenta e sois anos... Tal devia sor a idade aproximativa


do anciáo em 167. Com efeito, entre 157 e 161, Policarpo em-
preendera uma viagem a Roma para tratar com o Papa Ani
ceto do calendario da celebragáo da Páscoa. Ora tal viagem
nao lhe teria sido possivel, se entáo tivesse 80 anos ou mais.

«Servir a Cristo» ou «ser o servidor de Cristo» sao ex-


pressóes sinónimas de «ser batizado» na linguagem dos antigos
cristáos. Donde se depreende que Policarpo recebeu o batismo
em sua primeira infancia, ou seja, por volta do ano de 81; foi
discípulo dos Apostólos, como refere S. Ireneu (Adv. Haer. III
3s). Vé-se assim que a própria geragáo dos Apostólos adminis-
trava o sacramento as criancas.

2) Sao Justino, apologista cristao (t 165)

Em sua «Apología I» dirigida em 150 ao Imperador Anto-


niño Pió em favor dos cristáos, diz S. Justino:

"Muitos homent e mulheres, atualmente sexagenarios e septuagenarios,


foram discípulos da Cristo desde a sua Infancia e se conservam castos.
Tenho o garbo de vos citar exemplos disto em todas as classes".

«Ser discípulo de Cristo» é fórmula equivalente a «ser ba


tizado», conforme S. Justino mesmo (cf. «Diálogo com Trifáo»
39, 2), o qual se baseia no texto de Mt 28,19: «De todos os
povos fazei discípulos, batizando-os. .. >

Por conseguinte, o depoimento de S. Justino nos atesta o


batismo de criancas por volta de 80/90 d. C.

3) Polícrato, bispo de Éfeso (t cerca de 190):

Em 190 ou 191 este bispo escrevia ao Papa Vítor:

— 272 —
ANTIGOS CRISTAOS BATIZAVAM CRIANCAS? 41

"Vivo segundo a tradlcSo de meus familiares, dos quals seguí alguns.


Sete membros de mlnha parentela foram btspos e eu sou o ollavo...
Quanto a mlm, portante, Irmáos, tenho soásenla a cinco anos no Senhor"
(na "Historia da Igreja" de Eusébio V, 24, 6-7).

Destas palavras pode-se depreender que Polícrato devia


descender de familia profundamente crista e que a sua adian-
tada idade indicava simultáneamente a data de seu nascimento
e a de seu batismo. Trata-se de suposicáo,... suposicáo, porém,
assaz provável.

4) S. Ireneu, bispo de Liño, na Gália (t cerca a*e 202)

Em seu volumoso escrito «Adversus Haereses», datado de


180 aproximadamente, diz S. Ireneu:

"Cristo sanltficou todas as idades unlndo a si a natureza dos homens.


Com efelto, velo salvar todos os homens: todos aqueles, digo, que renas-
cem (renascuntur} em Deus por Cristo, pequenlnos e crlancas, adolescentes,
adultos e mals velhos. Fol por Isto que Ele percorreu todas as Idades e
se fez pequenlno para os pequenlnos, sanlllicando os pequeninos; crlanca
entre as crlancas, santificando aqueles que tlnham a mesma Idade" (II 22,4).

No verbo «renascuntur» do período ácima há urna alusáo


ao batismo ». S. Ireneu, portento, atesta que o batismo se apli
ca a todas as idades, tentó á primeira como a todas as outras;
é justamente nessa universalidade do batismo que insiste a
frase: «todos aqueles, digo, que renascem em Deus por Cristo».

5) «Tradicao Apostólica» de Hipólito (redígida antes


de 215)

Trata-se de urna coletánea de preceitos para a celebragáo


do culto sagrado, redigida em grego na cidade de Roma no
inicio do séc. III. Reproduz usos litúrgicos anteriores, fazendo
o leitor retroceder até a segunda metade do sáculo II.

No tocante ao batismo, eis o que ai se lé:

"No momento em o.ue o galo canta, far-se-á em prlmeiro lugar ora$áo


sobre a agua, seja agua córrante da fonte, seja agua que desea do alto.

i é o que S. Ireneu mesmo incute quando escreve alhures: "Dando a


seus discípulos o poder de fazer renascer para Deus, dlzia-lhes Jesús: 'Ide,
ensinai a todas as nacfies, batizando-as...'" (II 17,1).

— 273 —
42 <PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

Tal será o caso normal. Todavía, desde que haja necessidade urgente,
utilizar-se-á a ¿gua que se encentra. Os candidatos se despojarao de suas
vestes, e seráo balizados primeiramenle os pequeninos. Todos aqueles que
puderem falar por si mesmos, falaráo. Quanlo aqueles que nao o puderem,
seus pais (alargo por eles, ou algum de seus familiares. A seguir, seráo
balizados os homens, e por fim as mulheres..."

A «Tradigáo Apostólica» prevé o batismo de criangas que


ainda nao possam falar por nao ter o uso da razáo. Note-se
também que na «Tradigáo Apostólica» se trata do batismo so-
lene conferido na noite de Páscoa e nao do batismo adminis
trado em perigo de morte. Assim se depreende que o costume
de batizar crianzas já era normal e codificado no séc. II.

ó) Sao Cipriano, bispo de Carrago (t 258)

Em fins de 211, S. Cipriano escrevia urna carta ao bispo


Fidus, da África Setentrional, que o consultara a respeito do
batismo das crianzas.

Fidus nao rejeitava o pedobatismo (batismo de criangas),


mas julgava nao poder batizar as criangas desde o primeiro dia
de su a existencia. Os motivos alegados nao eram de índole
propriamente doutrinária, mas, sim, assaz secundarios. Com
efeito, Fidus lembrava que a circuncisáo entre os judeus só era
conferida no oitavo dia; por conseguinte, nao se deveria ante-
cipar o batismo... Mais ainda, dizia Fidus: a crianga nos seus
primeiros dias tem aspecto repelente, de modo que é difícil os-
culá-la (como mandava o rito batismal da época). Donde
concluía ser melhor protelar o batismo até que o pequenino to-
masse configuragáo mais atraente!

S. Cipriano, tendo ouvido a opiniáo de seus colegas no


episcopado reunidos em Sínodo regional, resolveu incutir a Fi
dus a praxe tradicional. Fazia-lhe ver que nao se tem o direito
de recusar a quem quer que seja, a graca de Deus, criando
obstáculo á salvagáo do próximo; existe entre as criaturas hu
manas perfeita igualdade diante de Deus, sem preconceito de
idade. E, a fim de ajudar a vencer a repugnancia de Fidus,
Cipriano o incitava a urna visáo mais sobrenatural das coisas:
beijar urna criancinha vem a ser o mesmo que beijar as máos
de Deus que acabam de formar essa criancinha. Nem sequer é
necessário esperar os oito dias prescritos pelo Antigo Testa
mento para a circuncisáo. pois esta foi ab-rogada (como as de-
mais figuras do Antigo Testamento) pela realidade crista.

Eis as palavras do santo bispo de Cartago:

_ 274 —
ANTIGOS CRISTAOS BATIZAVAM CRIANCAS? 43

"No tocante as crianzas, dizes que nao devem ser balizadas no segun
do ou no tercetro día, mas que seria necessário tomar como modelo a lei
antiga da circuncisáo e, por conseguinte, nao balizar nem santificar o reeém-
-nascldo antes do oitavo día. Nossa assembléia pensou de modo totalmente
diverso. O procedimenlo que preconizas, nao obteve um sufragio; todos
tomos da oplniáo de que nao se devem recusar a misericordia e a graca
de Oeus a alguém que venha á existencia. O Senhor diz no Evangelho:
O Filho do homem nao velo para peider as almas, mas para salvá-las'
(Le 9, 56). Por conseguinte, na medida em que de nos depende, nao de-
vemos perder alma alguma...

Numa palavra, a Escritura Divina nos mostra que todos, pequenlnos ou


pessoas idosas, recebem Igualmente o dom de Deus... As dlferencas de
idade e de estatura corporal valem dlante dos homens apenas, nao dlante
de Deus... o Espirito Santo é dado igualmente a todos, nao segundo me
dida proporcional a cada um, ma3 segundo bondade e benevolencia pater
nas. Pols Deus nao faz accepcSo nem de idade nem de pessoa (At 10,34;
1 Pe 1,17), mas, ao distribuir a gtaca celeste, ó para todos um Pai aue
reparte de modo igual.

Acrescentas, porém, que o pó de urna crlanca, nos prlmeiros dias


após o seu nascimento, nao é puro e causa repugnancia a quem o oscule.
— Nem Isto deve ser obstáculo a que se Ihe confira a grapa divina. Na
verdade, está escrito: 'Tudo é puro para os que sao puros' (Ti 1,15). Nln-
guém deve ter horror ao que Deus se dignou de fazer... A crlanca nao é
tal que se deva... ter horror de a oscular; cada um de nos, ao befjar o
pequenino, deve pensar... ñas máos de Deus, das quais ele acaba de satr
e que nos beijamos de certo modo nesse ser humano recém-lormado e
vlndo á luz, pois abracamos a obra de Deus.

Quanlo ao fato de que a circuncisáo judaica se admlnistrava no oitavo


dia, era Isso um símbolo e como que um esboco, urna figura, que se devla
cumprir quando viesse o Cristo... Essa figura cessou quando velo a reall-
dade plena, a qual nos fot entregue com a circuncisáo espiritual.

Por isto eremos que nSo se deve Impedir alguém de receber a graca
segundo a leí que fol e?tabeteclda; Julgamos que a circuncls&o espiritual
nao deve ser Impedida pela circundado carnal, mas aue é preciso admitir
todo homem á graca de Cristo, porquanto Pedro observa nos Atos dos
Apostólos: 'O Senhor me disse que homem algum devla ser chamado sujo
e impuro' (10,28)...

Els por que, lrmáo carissimo, nosso Concillo foi do atvitre de que
ninguém deve ser por nos afastado do batlsmo e da grapa de Deus, que
para com todos é misericordioso, benévolo e manso" (eplst 64).

7) Orígenes, mestre e pregador em Alejandría


(t 253/254)

Orígenes de Alexandria, tendo estado em Roma e na Pa


lestina, é testemunha abalizada do pensamento e da praxe da
Igreja antiga. O depoimento desse escritor vem a ser parti
cularmente importante por afirmar que o batismo das criangas

— 275 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 162/1973

é algo de indiscutível na Igreja, devendo ser atribuido aos pró-


prios Apostólos. Ademáis o mestre alexandrino justifica tal
costume apelando para a existencia de urna mancha original
nos pequeninos.

Eis as palavras do mestre:

"A crianza recém-nasclda pode ter pecado? Todavía hé um pecado...


do qual ninguém é isenlo, mesmo que viva um dia aó (cf. Jó 14,4). É de
crer que Davi falava desse pecado quando dizia: 'Mlnha mié me concebeu
em pecado' (SI 50,7). Ora a historia nao refere pecado atgum da máe
de Davi. Foi por causa desse pecado que a Igreja recebeu dos Apostólos
a tradl$áo de dar o Batismo aos pequeninos. Com efeilo, aqueles a quem
foram confiados os misterios divinos, sabiam que todo homem traz em si,
ao nascer, a mancha do pecado que deve ser lavado pela agua e pelo
Espirito (Cf. Jo 3,5)" (In Rom I. 5, 9 PG 14, 1047).

"As crianzas sao batizadas para o perdáo dos pecados. De que pe


cados se trata? Quando puderam elas pecar? Como se pode Justificar o
batismo das criancas, se nao se admite a Interpretacáo que acabamos de
dar; 'Ninguém é Isento de mancha, mesmo que a sua vida na Ierra dure
apenas um dia'? (cf. Jó 14,4). É porque a mancha com que nascemos é
apagada pelo misterio do batismo, que se batlzam mesmo as criancas,
visto que 'ninguém poderá entrar no Reino de Deus se nao renascer da
agua e do Espirito' (Jo 3,5)" (In Le h. 14).

Orígenes assim atesta a consciéncia que a Igreja tinha no


séc. III (e teria cada vez mais claramente no decorrer dos tem-
pos), de que todos os homens nascem herdeiros da nódoa ou
da perda que os primeiros pais contrairam para si e todos os
seus descendentes (cf. Gen 3). Os judeus anteriores a Cristo
sabiam que o mundo foi desordenado pelo pecado; todavia nao
lhes era claro até que ponto essa desordem havia penetrado
dentro do homem.

Os textos de Jó 14,4 e SI 50,7 citados por Orígenes nao


tinham, para os seus leitores judeus, todo o significado que se
patenteou aos leitores cristáos. A mancha mencionada por Jó
e pelo salmista é entendida, no contexto judaico, em sentido
ritual (cf. Lev 15,19s; 12,2s). Contudo essa mancha ritual
estava, na realidade, associada a urna fraqueza moral e a urna
propensáo para o pecado, que se vai manifestando na manga
á medida que cresce.

Sao Paulo, em Rom 5,12, desenvolveu genuinamente tais


conceptees dando base explícita a doutrina crista do pecado
original. Convicto desta proposigáo de fé, Orígenes ensina a
necessidade do batismo para todas as criancinhas.

— 276 —
ANTIGOS CRISTAOS BATIZAVAM CRIANCAS? 45

8) As inscribes funerarias dos séc. III e IV

Os epitafios dos túmulos de enancas, freqüentes em Roma


e na Italia, redigidos tanto em grego como em latim, atestam,
por sua vez, o batismo de criangas. É difícil assinalar a data
precisa de cada urna dessas inscricóes; todavia sabe-se que re-
cobrem os séc. III e IV. Nao poucos desses epitafios dizem
claramente, seja em termos explícitos, seja em termos equiva
lentes, que a crianza foi batizada, que é um «fiel», um «neófito»;
cm mais de um caso, percebe-se que o sacramento lhe foi
administrado em artigo de morte.

Tenham-se em vista os seguintes dizeres:

"Tiquó, a suave, vlveu um ano, dez meses, quinze días; recebeu [o


batismoJ aos oilo das calendas...; enlregou [a alma] no mesmo día"
(Roma, séc. III).

"A Flávia, dulcisslma menina, que recebeu a graca da (onte gloriosa


de modo normal no día salular de Páscoa, e sobrevlveu cinco meses após
o sanio batismo. Viveu tiés anos, dez meses, sele dias. Flavlano e Arque
táis, seus genitores, á sua mui cara filhinha.

Sepultura aos quinze das calendas de setembro" (Salona, séc. IV).

"A Julia Florentina, multo suave e Inocente crlanca, que se tornou


fiel, seu genitor mandou fazer [este epitafio]. Nascida paga na vigilia das
nonas de marco ao despontar do dia, sendo Zoila cotetor da provincia.
Tornou-se liel dezoito meses e vinte e dob días mais larde, na ollava hora
da noite, estando a ponto de morrer; sobreviveu aínda quatro horas, de
sorte que recebeu de novo o que é costumelro1. 5 morreu em Hibla no
sétimo dia das calendas de outubro, na primelra ¡hora do dia... Seu corpo
foi sepultado com o caixáo respectivo no quarto dia das nona? de outub-o,
pelo sacerdote, junto aos mártires" (Calamá, na Sicilia, inicio do séc. IV).

"Aquí repousa Fortúnla, que vlveu cerca de quatro anos. Seus geni
tores mandaram colocar fe3te epitafio] em memó-la de sua dulcfsalma filha.
Recebeu fo batismo] no sexto día... e foi sepultada no oltavo día das
calendas de anosto, sob o consulado de Graciano (segunda vez) e do
Probo" (Cápua, ano de 371).

"Aquí jaz Mauro, menino de cinco anos e tres meses; recebeu [o ba-
tlsmo] na idade de dols ou tres ano9, no dia das nonas de agosto" (Roma).

"Chelo de Inocencia, de bondade gene-osa e adml^vel talento. Flá»lo


Aurelio Leo, neófito, viveu seis anos, oilo meses, onze día?. Repousou em
paz no sexto día das nonas de Julho, sob o consulado de Filtpe e Salla.
Leo, seu pa] e... sua genitora manda-am fazer [este túmulo] para seu
dulcfssimo filho e para si meamos" (Roma, ano de 348).

'O viático ou a S. Comunhgo.

— 277 —
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS:* KÍ2/1973

"Aquí jaz Zósímo, fiel Lnascido] de genitores liéis, com a idade de


dois anos, um mes, quinze días" (Roma, sec. III).

"Aqui jaz Aurelio Melicio, menino cristio, fiel, pereg.ino, que viveu
quatro anos e dois dias. Morreu na noite de Páscoa, no decorrer da vigi
lia, durante a quinta oracáo. Entregou a alma e foi sepultado no dia oo
sol, sexto das calendas de abril" (Cniusi, 27 de marco de 354 ou 363 ou
376).

9) Sao Sirício, Papa, em 385

Muito digno de nota é o seguinte trecho da carta que S.


Siricio dirigiu ao bispo Himério, aos 10 de fevereiro de 385:

"Prescrevemos que se administre sem demora o batismo as criancas


que, por eleito de sua idade, ainda nio podem talar, ou as pessoas que
se encontrem numa necessidade qualquer de receber o santo batismo.
Desejamos assim que nao decorra detrimento para nossas almas se, em
conseqüéncia de denegamos o batismo a quem o pede, certos moribundos
venham a perder o Reino e a Vida" (PL 13,1134-1135).

Este texto supóe, para a salvacáo eterna, a necessidade


do batismo de agua. Tal suposicáo é válida até nossos dias; a
Igreja a reafirma na base de Jo 3,5. Todavía, com o decorrer
dos tempos, tal doutrina foi sendo aprofundada; com efeito, os
teólogos, sob a guia do magisterio da Igreja, foram reconhe-
cendo que o batismo de desejo ou o desejo de receber o batis
mo pode bastar para salvar a quem nao possa ter acesso a agua
sacramental.

A doutrina do batismo de desejo foi ulteriormente desdo-


brada, de modo que hoje se admite a validade nao somente do
desejo explícito do batismo (o candidato quer conscientemente
receber o batismo de agua), mas também do desejo implícito
do batismo (tal é o caso de urna pessoa que ignore a existencia
e a necessidade do sacramento do batismo, mas viva táo fiel
mente a sua consciéncia ou á voz de Deus que Ihe fala pela
consciéncia rota, que, se soubesse da necessidade do batismo de
agua, ¡mediatamente o pediría).

Eis quanto se pode coligir de mais eloqüente na documen-


tacáo crista dos séc. II/IV a respeito do batismo das criancas.
Tais textos revelam suficientemente que se trata de costume
antiqüíssimo, atribuivel mesmo á época dos Apostólos. Nao
pode senáo corresponder á mente do Senhor Jesús, que, á guisa

— 278 —
ANTIGOS CRISTÁOS BATIZAVAM CRIANCAS? 47

de norma (suscetivel de excegóes, sem dúvida), quis associar


batismo e salvagáo eterna, sem distinguir idades: «Se alguém
nao nascer da agua e do Espirito, nao poderá entrar no reino
de Deus» (Jo 3,5).
Os antigos escritores, assim como os teólogos posteriores,
compreenderam e compreendem que a enanca é batizada em
vista da fé da Santa Máe Igreja; esta é suficiente para que os
pequeninos nao fiquem privados da graga santificante antes do
uso da razáo.
Veja-ise o desenvolvimento teológico da doutrina do batis
mo das criangas nos artigos de PR citados no inicio deste artigo
(P. 271).
Para confeccionar este trabalho, muito nos valemos da coletánea de
textos apresentada por J.-Ch. Didier com o título "Faut-il baptiser les
enfants? La réponse de ta Tradition". Paris 1967.

Estevao Bettencourt O.S.B.

carta aos amigos


(Continuado da pág. 262)

te para. Jerusalém através dos sáculos, movidos por aspiracoes


aparentemente diversas, mas no fundo convergentes, pois pro-
curavam a Deus. Na Cidade Santa, toma-se consciéncia de que
nao ha amor nem ideal sem cruz: Jesús selou a sua Boa-Nova
com o sanguc e, consecuentemente, todo cristáo há de compro-
var a sua autenticidade acompanhando o Senhor em sua Faixáo
e Morte para participar da sua Ressurreicao.
Mas nao só o texto bíblico fala de modo próprio na Térra.
Santa. Dir-se-ia, mais, que é todo o plano salvífico de Deus que
o cenário local traz a mente do observador. Com efeito, diz a
Biblia que Abraao teve dois filhos: Isaque e Ismael. Do primeiro
procede Israel ou o povo judaico, cujas expectativas se consu-
main no Cristianismo; do outro, Ismael, fiího de Agar, proce-
dem os árabes (ismaelitas, agarenos) muculmanos. Pois bem;
os tilhos de Abraao — uns segundo a carne, outros segundo o
espirito se cruzam e encaram, nerplexos, interrogativos ou
interessados, ñas rúas de Jerusalém. Ao vé-los, o visitante é lem-
brado de auc aínda há muito que fazer na historia da humani-
dade: é oreciso que os homens convirjaan entre si nao somente
por motivos geográficos ou físicos (que por vezes sao cegos e
brotáis), mas também pelo afeto fraterno. O plano de Deus
ainda se vai desenrolando e apela para a colaboracáo de todos
os homens... Mas oue poderia fazer um cristáo, individuo na
grande massa, dianté dos ingentes problemas que o cenário de

— 279 —
Jerusalém propoe ao observador? — £m última análise, a res-
posta que me volta cozn insistencia, ó aqueta que a Biblia mes-
raa faz ressoar tanto na Antiga como na Nova Lei: «Sede san
tos, porque Eu sou santo» (Lev 11.44) e «Sede perfeitos como
vosso Pai celeste é perfeito» (Mt 5, 48). Como se vé, é esta a
medula da mensagem bíblica tomada de ponta a ponta, medula
que se poderia assim parafrasear: «Fazei o que o Pai pede de
vos hoje e aquí, sem covardia, com amor, até as últimas con-
seqiiéncias, e assim vos estaréis configurando ao exemplar que
Ele tem a respeito de cada um de vos». É de tais instrumentos
que o Divino Artífice da historia quer precisar para realizar
Seus designios. Ele sabe o que ha de fazer; todo cristáo sabe,
ou procure saber, o que suas possibilidades lhe permitem fazer.
2) No cenário de Jerusalém, a Semana Santa de 1973 foi
altamente significativa. Note-se que este ano o número de pe
regrinos esteve particularmente elevado. Sim. a Páscoa dos ju-
dus caiu no dia 17 de abril (e teve sua oitava); a Grande Se
mana de católicos e protestantes foi a de 15 a 22 de abril, ao
passo que os cristáos ortodoxos tiveram sua Semana Santa de
22 a 29 de abril. As ruelas da Velha Cidade foram entao palmi-
lhadas pelos mais diversos grupos de fiéis, que por vezes ora-
vam alto em inglés, francés, alemao, espanhol, italiano, polonés,
árabe, armenio; na sexta-feira santa 20 de abril varios grupos
carregaram a cruz pela Via Dolorosa, percorrendo as quatorze
estacóes d«o Pretorio de Pilatos ao Monte Calvario.
Entre murtas outras coisas, o quadro geral lembrava quan-
to a psicología humana precisa de sinais sensíveis. Estes lhe sao
espontáneos, de tal modo que dessacralizacao e secularizado
no sentido de apagamento dos símbolos religiosos sao algo de
antinatural e desumano. Aqui no Oriente aprende-se a reva-
lorizar os sinais do transcendental, que no Ocidente muitos pre-
tendem abolir como se fossem algo de arcaico ou um obstáculo
á auténtica mensagem do Evangelho. O homem oriental jamáis
se reconheceria num ambiente despojado das marcas da fé e da
eternidade; basta ver, pelas mas de Jerusalém, os homens e as
mulheres árabes com seus turbantes, véus, túnicas, os judeus
ortodoxos com seus chapéus e suas trancas, os monges cristáos
gregos, etíopes, coptas com suas cogulas, para sentir o senso
místico dos orientáis, dos quais os ocidentais muito podem
aprender.
A esta altura, nao poderia deixar de mencionar o sábado
em Jerusalém. Desde a sexta-feira, as primeiras horas da tarde,
até o por do sol de sábado, cessa o tráfego de ónibus; poucos
carros continua m a circular na cidade, de modo que até os es-
trangeiros sao obrigados (por vezes, a contra-gosto) a parar.
Os judeus se dirigem, na sexta-feira á tarde, para o Muro das

_ 280 —
Lamentacoes, onde vao orar com fervor, agitando todo o seu
corpo; no sábado de manhá, pelas rúas tranquilas da cidade,
véem-se numerosos homens, com a Biblia envolvida em bolsa
de veludo bordado, a dirigir-se para a sinagoga (existem 600
sinagogas em Jerusalém; naturalmente militas sao pequeñas, sao
saldes de urna residencia); nao raro, pai e filho assim caminham
apressados para a assembléia de oracao... — O que importa
ao observador neste contexto, é apreciar a presenca viva, mar
cante, dos valores religiosos mima cidade que atingiu o nivel de
civilizacáo e conforto de qualquer outra grande cidade cosmo
polita.
S) Depois de Pascoa, de 24/IV a 2/V, tive a ocasiáo de
participar de urna viagem bíblica, á península do Sinai. Éramos
42 pessoas, quase tocios estudiosos de S. Escritura, que deseja-
vam reviver um pouco as etapas da cam ¡uñada do povo de Deus
narradas pela. Biblia em Éxodo, Números e Deuteronómio. A
experiencia d;o deserto é luna escola... Entre outras coisas,
ensina a apreciar a agua (aparentemente táo banal) como ele
mento vital, do qual cada gota entáo se poupa e cobica; o de
serto faz sentir também a necessidade da solidariedade absoluta
dos homens entre si, pois mostra de nerto como todos devem
poder contar com todos; faz outrossim experimentar o perigo
(mencionado pela Biblia) da murmura cao, do descontentamen-
to, da impaciencia (principalmente quando o ónibus atóla na
areia, o que é quase inevitável; quando o próprio guia hesita
entre diversas passagens lacónicas através de areias e monta-
nhas; quando se atrasa o horario em conseqüéncia de impre
vistos, quando a poeira se acumula sobre as faces, as roupas,
a comida...). Mas, muís particularmente, o deserto faz sentir
a presenca de Deus: o silencio, a solidao, a pujanca das linhas
de montanhas e córregos secos, a luta da mísera vegetacáo que
tenta brotar ou sobrevivir onde e quando possível, um ou outro
raro tronco de palmeira atirado ao solo por violenta temnestade
de veráo... tudo isto conjuntamente faz que o espirito do vian
dante se volte para o Eterno, o Definitivo, em suma, para o
que o fica deoois aue se deixam para tras fantasías e varieda
des .. . Deus parece defrontar-se entao maís pujante e eloqüen-
temente. Mas por que nao dizer também que a face do deserto
lembra bastante a face da Lúa misteriosa, vista em fotogra
fías? ... No día 30/IV, as 6 h da manha, concelebramos a S.
Missa no cume do D.iebcl Mousa (Monte de Moisés) a 2.200 m
de altura, onde se julga que Moisés recebeu as tábuas da Leí;
a ascensáo, em parte por degraus dispostos na rocha, fora ar
dua, mas teve magnífica, compensacáo pela vista ampia, marcada
por montanhas ondulantes e jogo de luzes que a cumiada ofere-
cia ao espectador. Durante as preces comunitarias da Liturgia,
um dos companheiros elevou a voz para nos convidar a dar
gracas ao Senhor pelas montanhas, pelo sol, pela luz, pelo de
serto, em suma, pelas obras die Deus que se expandiam aos nos-
sos olhos... Mais do que nunca tal prece me parecía, vir a pro
pósito! — Alias, desde os séc. III/IV o Sinai é um lugar ininter-
ruptamente habitado por monges, cujas ermidas e mansSes ,(das
quaies a principal é o Mosteiro de S. Catarina) ainda se podem
ver esparsas na regiáo em pequeños oasis. A historia do Cris
tianismo mostra que no Sinai os homens sempre procuraram
ouvir a voz de Deus (que desencadeou o povo bíblico) e res
ponder com generosidade a essa. voz.
4) Aos 7/V/1973, o Estado de Israel celebrou com soleni-
dade e grande exultacao o 25' aniversario de sua existencia:
houve imponente desfile militar e sucessivas demonstragSes de
autoafirmacáo, em meio a fortes tensóos no Próximo Oriente.
Mesmo abstraindo do ponto de vista, político, as celebrares da
Independencia eram aptas a lembrar ao observador alguns fa-
tos significativos da historia passada. Com efeito, Jerusalém,
constituida por Davi capital de Israel no séc. X a. C, foi arre
batada aos judeus em 587 a. C. por Nabucodonosor da Babilo
nia, que destruiu a cidade. Reconstruida a partir de 538 a. C,
Jerusalém foi de novo arrancada, aos judeus, desta vez pelos
romanos, em 70 e 135 d. C. — Ora o povo de Israel sempre viu
nesses reveses ou ñas quedas de Jerusalém em máos alheias um
sinai religioso: de tal maneira Deus visitava o seu povo, exor-
tando-o á conversáo, diziam os mestres de Israel... Em 1973
Israel se senté senhor, de novo, em Jerusalém e o afirma sole-
nemente. Deus parece sorrir ao seu antigo povo, atendendo a
urna de suas mais profundas aspiracoes. Por que nao dar ao
acontecimiento tambem um significado religioso? Os judeus tc-
ráó sua maneira de interpretar a data. Nos, cristaos, os acom-
panhamos, fazendo votos para que Israel possa compreender o
sentido de sua misteriosa historia; possa. reconhecer que o por
tento de Israel é, em última análise, obra de Deus, que quer
assim Droporcionar a Israel mesmo e ao mundo um dos mais
eloqüeñtes sinais em favor do Cristo Jesús, pois, na verdade,
parece que nao se pode entender a reaJidade de Israel senao
.em funeao do Cristo Jesús. É para preparar a vinda do Messias
c para dar-Ihe testemunho atraves dos sécalos que Israel existe.
Por hoje é preciso terminar aquí urna narracao que iría
longe. Possam ao menos estas linhas ou breves memorias servir
de líame fraterno entre todos os que labutam em torno de PR!
Aos amigos que me proporcionaran» o presente deste contato
com a Térra Santa atualmente, mais urna vez a minha profun
da gratidáo. A todos os leitores de PR agradecemos a colabora-
cao em orol da revista; possa ela, por intermedio de seus amigos,
ajudar a muita gente! Aquí ficam as saudades efusivas e a
promessa de oracóes deste irmáo, que em julho espera estar de
novo no Brasil, levando para ai urna grande porgáo do céu de
Jerusalém, que é um céu sempre azul, céu de paz e de sorriso
inspirado peía fé ou pela consciéncia de que Deus está presente
em meio aos homens!
Estéváo Bettencourt O.S.B.

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