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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESEMTAQÁO
DAEDigÁOON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).
Esta necessidade de darmos
conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
Responderemos propoe aos seus leitores-
aborda questoes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.


Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR


Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e
passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempíe alual
ScnnnH * ™'Sta te0'Ó9ÍC0 " filosófica "P^nte e
Responderemos , que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados yenerosraaae e
índice
pas

EUREKA 229

O brado do "homem eterno":


VALORES TRANSCENDENTA1S NA LITERATURA RUSSA 231

Homicidio ou benevolencia ?
MATAR PARA LIVRAR O ENFERMO? 246

Questio delicada:
OBSTINAR-SE CONTRA A MORTE OU HUMANIZAR A MORTE ? .. 259

AÍNDA A MORTE DO CARDEAL DANIÉLOU 271

LIVROS EM ESTANTE 274

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO •.

Psiquiatría, ¡deologia e contrapsiquiatria. — Método Billings


para limitar prole. — Escolha de sexo dos filhos. — Reno-
vagáo carismática.

AMIGO, NAO SE ESQUECA DE RENOVAR SUA ASSINATURA!


DESEJAMOS CONTINUAR A SERVIR COM O AUXILIO DOS
NOSSOS COLABORADORES.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

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Número avulso de qualquer mes Cr$ 6,00
Volume encadernado de 1975 Cr$ 85,00

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20.000 Rio de Janeiro (RJ) Tels.: 268-0981 e 268-2796
EUREKA
No séc. IH a.C. vivia em Siracusa um homem chamado
Arquimedes; era um pesquisador, que ia descobrindo conclusóes
de geometría e de fisica.

Um dia foi chamado ao palacio pelo rei Hieron. Este sus-


peitava que um ourives a quem encomendara urna coroa de
ouro, tivesse mesclado a este metal urna dosagem de prata.
Perguntou, pois, a Arquimedes se era possívél descobrir a even
tual fraude, sem desfazer a coroa.

O sabio refletiu por muito tempo sobre o problema, que lhe


parecía insolúvel... Todavía um dia no banho Arquimedes
observou que seus membros, mergulhados dentro da agua,
perdiam notavelmente o seu peso. Assim concebeu o famoso
principio de Arquimedes: um corpo mergulhado num fluido
sofre pressáo de baixo para cima igual ao peso do fluido des
locado. Aplicando esse principio, o sabio resolvería o problema
lancado pelo rei Hieron. Entusiasmado por tal descoberta, saiu
logo para as rúas exclamando : «Eureka! Eureka!», isto é,
«Encontrei!»
Perguntamo-nos agora : desde quando Arquimedes se pre-
parava para resolver o problema ? — Por certo, nao foi ao
receber a solicitagáo do rei que comegou a indagar e pesqui
sar... Já muito jovem seguirá os cursos do grande geómetra
Euclides em Alexandria. De volta á sua patria, ele questionava,
aplicava-se á pesquisa... Desde que o rei Hieron lhe fizera o
pedido, nada distraía a sua mente: ao contrario, tudo lhe era
ocasiáo de viver e revirar o problema. Mesmo quando este nao
estava no plano de sua consdéncia, continuava presente e influia
subconscientemente no seu espirito.
Em conseqüéncia, hoje se fala da psicología do eureka.
Esta sonda o complexo embate dos fatores psicológicos, cons-.
cientes e subconscientes, que atuam dentro do homem que
procura ansiosamente a Verdade.

Todo ser humano tem seus anseios... E nao os tem


ñas no plano das ciencias naturais ou da profissáo ou da eco ■
nomia... Ele os tem — as vezes rnuito mais fortes — tambér i
no plano do sentido da vida : de onde venho? para onde vou'
por que o sofrimento? por que a morte? Essas interrogacóe;
fermentam dentro de toda criatura normal que aínda nao lhe i
tenha encontrado a resposta satisfatória. Podem constituí:
verdadeiro tormento, que perdura até o sujeito descobrir 03
porqués capitais da sua existencia. — A caminhada que leve.

— 229 —
a essa descoberta, nao é calma, nem retilínea; passa pelos altos
e babeos, pelos desvíos á direita e á esquerda, pelas curvas e
os dilemas, que caracterizam o processo de maturagáo e a exis
tencia de todo homem; nao há descoberta nem aprofundamento
sem crises, sem quedas e reerguimentos, sem resistencias e
encruzilhadas angustiantes... É isto tudo que justifica a. ex-
pressáo psicología da descoberta.

Mais : mesmo aqueles que descobriram ou julgam ter des-


coberto, nao estáo seguros. Também aqueles que encontraram
a Deus, vivem na procura constante de maior coeréncia e mais
profundidade ; Deuá tem sempre novas facetas e novas riquezas
do seu Ser e da sua Providencia a mostrar aos homens; e estes
tém sempre que se libertar do «velho homem», com suas cobicas
e seu egoísmo, para realizar em si a «nova criatura».
Estas idéias nos colooam diante da perspectiva da insegu-
ranga, da fome e da sede de justiga, ou seja, fome e sede de
conformagáo ao ideal e de plenitude de vida... É impossível
abordá-las sem pensar em decisáo, opgáo e coragem. Voltar
a mente para essas realidades incomoda e inquieta. Trata-se,
porém, de sadia inquietagáo, que todo cristáo sabe assumir
com virilidade. A coragem de procurar, de sair da rotina, de
se incomodar é algo que deve marcar permanentemente a vida
do cristáo peregrino. Feiizes aqueles que nao recusam covar-
demente a busca e a desinstala;áo ! «Os santos nao sabem
aquilo de que sao capazes, mas o que os caracteriza é que
sabem comegar e correr o risco» (J. le Couedic).
O que importa a todo homem, é conceber a vontade de
procurar e jamáis cessar de por em prática essa procura coe-
rente da Verdade e da Vida.
Os temas abordados neste fascículo ajudaráo o leitor a
conceber essa salutar angustia : os escritores russos contem
poráneos, sófregos do Infinito e da Vida em plenitude, repre-
sentam típicamente o homem do sáculo XX ou também o
homem eterno; dáo testemunho de como o homem pode sofrer
o tormento do processo de descoberta,... tormento e processo
estes que sao inevitáveis a quem queira ser realmente homem.
A presenga cada vez mais perceptível da «Dama Consumagáo»
(que vulgarmente, mas inadequadamente, se chama «Morte»)
mostra como a existencia do homem é um caminhar que só
tem sentido se é o antegozo, cada vez mais sápido e livre, do
Bem Infinito, Bem Infinito que nao é postumo, mas nos é
presente, e sem o qual nao se explicaría o misterio do homem!
— Ver a oragáo da nossa 4* capa.
E. B.

— 230 —
«PERGUHTE E RESPONDEREMOS»
Ano XVI — N» 198 — Junho de 1976

O brado do "homem eterno":

valores transcendentais na literatura russa


Em síntese: A literatura de flcgfio russa é o vefculo pelo qual se
exprimem as Idélas dos pensadores soviéticos nSo-conformlstas. Tal ó a
maneira de escapar á severa censura do Estado Soviético sobre as publl-
cacSes feitas no pafs.

Ora nessa literatura depreendem-se tres notas características, que


sao principios de urna filosofía nova, aberta para os valores transcendentais
e religiosos:

1) A existencia humana já nSo pode ser elucidada em funcSo de


criterios socio-económicos, mas tem que ser explicada a partir do próprio
homem, com tudo que este tem de imprevisivel e de misterio.

2) As categorías da experimentado, da ciencia e a da raz§o sfio


útels para explicar certos fenómenos da vida humana; todavía sSo Inca-
pazes de dizer a última palavra sobre o proolema da existencia humana.
A intuicSo (a qual multo recorrem o poeta e o artista) penetra mals longe
do que a razao e revela algo mata; é esse algo mals que pode elucidar
mals cabalmente o sentido da existencia humana.

As metas propostas pelo Partido Comunista aos cldadáos soviéticos


{paz permanente, sociedade perfelta, fratemidade dos povos. Igualdade,
Vitoria sobre a dor e a tristeza...) sSo Importantes, mas. nfio podem ser
a resposta definitiva á variada gama de esperances do ser humano.

3) O problema da morte é elucidado pela consciéncia de que o


homem nao perece totalmente. É-lhe reservada urna Vitoria sobre a morte
ou a posse da Imortalldade. Os termos em que esta tese é apresentada,
sao assaz vagos na literatura soviética; todavía bastam para exprimir a
consciéncia, Inata em todo homem, de que a vida presente serla um
absurdo se nao houvesse contlnuldade após a ruina do corpo.

Comentario: Numa entrevista concedida ao jornal «Le


Monde», Jean-Paul Sartre relatou um diálogo que teve com
um escritor soviético. Este (que Sartre deixou no anonimato)
lhe teria dito que, no dia em que o comunismo triunfar defi-

— 231 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 198/1976

nitivamente, proporcionando á sociedade o almejado bem-


-estar económico, comegará a existencia trágica do homem,
pois entáo se colocará de forma crucial a questáo do sentido
da vida, questáo que até hoje nao pode ser devidamente expla
nada por falta de tempo. — Esta dedaragáo significa que a
questáo do sentido da vida nao se resolve por reformas sócio-
-económicas, mas é de índole diversa e ainda mais angustiante
do que as questóes de teor material. Ora o contato com a lite
ratura russa dos últimos anos manifesta quanto os pensadores
soviéticos se vém preocupando com os porqués e para qués
da vida humana; essas preocupagóes e$táo, em última análise,
muito ligadas aos valores religiosos e místicos. Eis por que,
ñas páginas que se seguem, procuraremos percorrer os tra
gos mais interessantes da literatura soviética contemporánea
concernentes ao sentido da existencia.

Comecaremos por tecer algumas observagóes gerais sobre


a literatura de ficgáo russa.

1. A literatura de f¡c$oo

Distinguem-se tres tipos de obras de ficgáo: existem, sim,


as de ficcáo científica e técnica, como, por exemplo, as de Jules
Veme. Há também as de ficgáo social, que concebem novas e
mirabolantes formas de estrutura social, como as de H. G.
Wells; e, por último, registram-se as obras de ficgáo filosó
fica. Ora é principalmente este terceiro género que vem sendo
cultivado na Rússia com extraordinario sucesso. Os leitores
das obras desse género discutem-nas horas a fio e com prazer
assistem a palestra sobre as mesmas. O segredo de tal éxito
consiste em que a ficgáo se torna um veículo para a expressáo
e o intercambio de idéias filosóficas de autores e leitores nao
conformistas- num país como a Rússia Soviética, em que a cen
sura é táo rigorosa, a literatura de ficgáo torna-se o canal
dos pensadores que contestam o «status quo».

A obra de ficgáo filosófica associa geralmente idéias e


emogóes; os conceitos filosóficos abstratos sao ai «encarna
dos» em imagens e situagóes concretas. Por isto há. quem
compare, e com razáo, a fungáo das obras de ficgáo (princi
palmente na Rússia) á fungáo que o drama clássico grego
exercia na concretizagáo das teses filosóficas dos pensadores
gregos. É isto que torna importantes as obras de ficgáo rus-
sas, fazendo-as merecedoras de especial estudo por parte de

— 232 —
TRANSCENDENCIA NA LITERATURA RUSSA 5

quem deseja penetrar na filosofía russa contemporánea; esses


escritos nao contém meros devaneios da fantasía, mas, sim,
verdades profundas e expressóes valiosas da alma russa.

É nessa literatura de ficgáo filosófica que. vamos acom-


panhar o aesenvoivimento ae aiguns grandes temas.

2. Ter ou ser?

Um dos primeiros tragos que o estudioso descobre na fic


cáo russa, é a ideia de que a viaa nao pode ser encarada ape
nas do ponto de vista do ter (ou dos bens materiais e da üis-
tribuigáo dos mesmosj, mas deve, antes, ser aterida pelos
valores do ser.

1. A propósito pode-se citar Igor Jefimov, autor do


romance: «Vede quem chegou». O herói principal, o jovem
Oieg, aparece refietindo sobre a felicidade e verifica que os
homens se esforgam quase desesperadamente para conseguir
ser felizes (o que supostamente consistiría em ter casa, segu-
ranga material, bem-estar sensível...); todavía a felicidade
que eles assim alcangam, é quase insignificante. E por qué?
— «Sentí que todos esses grandes estoroos em demanda da
felicidade nao bastavam. A felicidade nao se tornara urna
realidade. O porqué deste fracasso se prendía a certas coisas
nao definidas... que ninguém conhece,... a causas veladas
mesmo em mim e nos outros» (Junostj I, 1965, p. 50).

Essas «coisas nao definidas» e essas «causas veladas» sig-


nificam precisamente, no caso, os valores da personalidade,
que nao se identificam com posses materiais. Para ser feliz, é
preciso, por vezes, perder em vez de lucrar materialmente;...
perder, isto é, entregar-se ao ocio, ao silencio aparentemente
improdutivos. e esteréis; é entáo que se percebe o misterio da
existencia e se tem a intuicáo ou a experiencia de valores que
nao se enquadram ñas categorías do ter ou do possuir mate
rial. Merece atengáo a seguinte passagem do mesmo autor no
romance citado, em que fala Oleg:
"Precisamente porque eu tinha tanta pressa, eu estava teso Interior
mente... Parecia-me que eu la chegar tarde demais, e que, se eu nao
resolvesse todos esses negocios 'importantes', se desencadearia um grande
desastre. Eu me preclpitava para a cldade, passando de um dnlbus para
outro, aproxlmando-me, aproximando-me... sem poder alcancar... qué?
Nao o sel."

Esse desatino provoca urna reagáo positiva:

— 233 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

"Que quer dizer Isso tudo ? é preciso que eu me apresse em de


manda de determinado luger... Mas será Isto realmente necessérlo?...
Por que, de repente, se faz aquí um tal silencio? Eu nSo podia imaginar
como é benfazejo... Ponho-me a escutar todos os pensamentos que
emergem desse silencio; como sSo imprevistos e agradávels I De um
modo ou de outro, a minha vida é por demals agitada! é preciso que
agora eu pare para compreender todas as coisas, absolutamente todas.
Esta conscldncla me enche de alegría, embora eu nao entenda claramente
o que todas as colsaa pode significar. Quando voce se senta com calma,
sem se precipitar em demanda de colsa alguma, tudo se torna claro:
as criancas, os velhinhos, eu mesmo..." (Junostj 1,1965, p. 50).

2. Se a vida nao Consiste apenas em ter, mas em desco-


brir valores que nao se medem segundo criterios de materia-
lidade, entende-se que se coloque na literatura russa também
a questáo do sentido da vida ou do porque e do para que
da existencia. Esta indagagáo transparece nítidamente no
romance Golubka de A. Pristavkin:

Duas senhoras, ainda na flor de seus anos, discutem o sig


nificado da existencia. Zienka sente-se interpelada pela reali-
dade da morte, com suas incertezas, e pergunta (exprimindo
o pensamento do autor A. Pristavkin):

"Por que vivemos? Por que é que o homem vive? Vocé o sabe, Vera?

— Evidentemente, os homens vivem para os homens.

— Ora, isto, eu o ouvl multas vezes, repllcou Zienka... A biología,


a contlnuacSo da especie... exigem que vivamos... Pergunto entSo:
vivemos a fim de procriar?

— Fomos procriados; é por isto que vivemos.

— Também um gato nasce; e ele vive porque nasceu, disse Zienka.


Mas o homem... ?

— Mas ter filhos, Isso, aflnal de coritas, traz fellcldade... Basta


pouca colsa a urna mulher para que delxe de se preocupar. Déem-lhe um
diva, um marido que trabalhe, um berco para seu filho, e ela estará feliz 1
Será que Isso falta a voce, Zienka?

— O que me falta, é que nSo sel por que vivo I", termlnou Zienka.

Mais adiante, em urna reuniáo, Zienka voltou ao assunto:

"As pessoas perdem tempo de maneira Irracional. Escutem como


nos tagarelamos. Nao temos mals tempo de pensar, de tal modo nos apres-
samos por dlzer tudo. Mas as pessoes nfio sabem nem mesmo por que
vivem... 1
— Quals pessoas ?, perguntou um professor que estava presente
na sala.

— 234 —
TRANSCENDENCIA NA LITERATURA RUSSA 7

— Eu e todos os outros, dlsse Zlenka desesperada.

— NSo vivemos nos para o comunismo ?, perguntou o professor,


rindo da slmplorledade de Zlenka.

Suspirando, dlsse Zlenka:

— Sim. Urna vez realizado o comunismo, todos compreenderfio. E


encontrarSo novos melos de transmitir as Idélas e terio multo tempo para
refletlr sobre o sentido da vida" (Znam)a 3, 1967, pp. 54-55).

O que neste texto importa, é a afirmacáo de que a filo


sofía do materialismo nao responde ás interrogacóes funda
mentáis do ser humano.

Quase na continuacáo destas indagac.5es, encontra-se


outro tópico importante na literatura russa: a vida tem pers
pectivas de infinitude.

3. Um olhar que ultrapassa limites

Quem folheia os periódicos da literatura soviética dos últi


mos anos, surpreende-se por verificar como poetas e escritores
procuram urna resposta para o sentido da vida, voltando-se
para o infinito. Verdade é que essa nogáo de infinito nao
parece muito clara na mente de tais autores; tentam esbogá-la
de um modo ou de outro; mas o que importa, é a expressáo
de que o destino do homem é melhor e maior do que aquilo
que a materia lhe pode fornecer.

1. A propósito pode-se mencionar o contó alegórico ou


a parábola de Georgii Guglia intitulada «A geofobia de Andrej
Butjba», cuja súmula é a seguinte:

Um cientista de grande renome, Andrej Butjba, é impres-


siunado pela imensidáo do universo. Concebe a vaga nogáo do
infinito e compreende que o espirito humano, como que encar-
cerado na cela estreita e sufocadora da vida terrestre, deve
penetrar dentro do universo. Quase nenhum dos seus contem
poráneos o compreende. Consideram-no, antes, como afetado
por urna doenga mental, que seria a «geofobia».

O filósofo e matemático Butjba aparece assim obcecado


pelo infinito, simbolizado pelo cosmo; a contemplacáo deste se
torna, para ele, um apelo ao homem para que rompa o ciclo
da sua existencia. Quando o Secretario local do Partido lhe
pede oficialmente que «retome o seu trabalho cotidiano», ele
responde:

— 235 —
g «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 198/1976

"Eu nao o poderla, nao; eu nao o poderla, mesmo arrlscando-me a


ser espancado por voces... Compreendam-me; estou sufocado aquí, estou
angustiado, isto me oprime".

O oficial lembra-lhe entáo que, «apesar de tudo, a térra


é urna mansáo agradável», ao que Butjba replica:

"Isso é um erro. Voces vlvem em uma cela. Nos nos acostumamos


demais a esta restrlcio mortal, nao levando em conta que existen) espacos
Imensos em torno de nos..."

Nlnguém compreende Butjba:

"Tornou-se louco...; nao adianta discutir com ele..., o caso dele


está liquidado".

Apenas um pastorzinho, informado das ocorréncias, parece


compreender o que se dá na mente de Butjba. Dizem, porém,
a esse homem modesto:

"Um pastor nSo se deve extasiar diante do firmamento. Deve con


templar a erva e vigiar o gado... Uma estrela e a nolte sSo belas, ó
jovem, mas uma vaca é necessária ao homem dia e noite... Se nao há
estrelas, vocé pode acender uma lámpada a óleo ou urna larelra no
acampamento e, com isto, regozijar-se. Mas, se o leite falta, vocé nio o
pode substituir por agua. Compreendeu ?"

— "Compreendo multas coisas mals dlflce's aínda, é por Isto que


nao estou de acordó com voces. Para mlrn, sem o cóu e a térra, nSo
haverla vida... Céu e térra... O homem n&o se deve arrastar por térra
como um verme. Deve plainar ácima da térra como a águia. O homem
deve procurar penetrar o misterio do universo I"

O contó termina com a sugestáo, um tanto vaga, de que


com o tempo os homens chegaráo a compreender essa «ano-
malia» do dentista Butjba e do pastor. Cf. Zuamja 5, 1966,
pp. 115-139.

2. Entre os poetas russos, ocorrem freqüentemente as


expressóes «eterna inquietude do espirito», «luta eterna»,
«avanco constante», sendo especialmente enfatizado o adjetivo
«eterno». Essa inquietude e essa luta eternas sao a conse-
qüéncia da tensáo permanente entre o ideal (as aspiragóes
congénitas do homem) e a realidade que o homem vive. De-
preende-se, em alguns escritos russos, a consciéncia de que as
geragóes vindouras estaráo mais próximas dos ideáis a que
tambán os homens do século XX aspiram. Admitir que nunca
a humanidade chegará a plenitude das suas aspiragóes signi
fica tirar todo sentido ao sofrimento das geragóes passadas e

— 236 —
TRANSCENDENCIA NA LITERATURA RUSSA 9

da presente. Toda essa luta afinal deverá ter sua compensa-


gáo satisfatória; cf. Robert Rojdestvenskij, em Junostj 10,
1963, p. 1.

A conseqüéncia de que o ser humano foi feito para algo


que nao tem fim (embora confusamente concebido), é expressa
pelo poeta Gennady Bor:

"Diante de fronte!ra alguma temos o dlreito da dlzer: 'Nao podemos


passar além deste limite' ou 'Já atingimos o termo'. A vida nunca para.
Ela continua a te maravllhar por suas novldades e te arrasta para mais
longe, em direcüo de maiores profundidades. Mesmo se tu entrasses ñas
esferas celestes, tu ainda poderlas dizer: 'Nao basta, n§o basta 1'"

Fazendo eco a estas idéias, Ljudmila Popova vé o género


humano em marcha numa estrada sem comego e sem fim
(Zvezda 4, 1962, p. 34s) e Vladimir Michanovskij recorre á
imagem de urna espiral sem fim (Zvezda 11, 1962, p. 7).

NDcolai Braun, por sua vez, manifesta a nostalgia do infi


nito ao escrever:

"Frente a esse universo eu me coloco com a alma totalmente aberta.


E respiro diretamente em direcSo do futuro.

Eu me comunico com os tempos que foram e com aqueles que vlráo.

E esses sonhos que voam para o futuro, essa procura de luz — que
flzeram respirar também os meus antepassados —, eu os transmito aqueles
que háo de sonhar durante os séculos vindouros".

3. O mesmo tema volta num poema de Roberto Rojdest


venskij, que recorre a urna comparagáo a fim de ilustrar a
realidade (ou o misterio) da vida humana. — Pensemos, diz
ele, numa crianga que estuda piano com grande esforgo todos
os dias, fazendo seu solfejo, seus acordes, suas escalas e oita-
vas. Os exercícios podem parecer-lhe inúteis ou destituidos
de sentido... Eis, porém, que chega o dia do concertó, em
que o pequeño pianista vai tocar para o grande público...
Entáo que acontece? — Responde Rojdestvenskij: «Como que
numa revelagáo, e em recompensa pela sinceridade dos esfor-
gos realizados, a eternidade nasce do contato dos dedos com
as teclas». Ora, diz o poeta, os esforgos que os homens efe-
tuam em meio á dor e á dúvida, seráo coroados numa eterni
dade; a eternidade levemente percebida através da música é
apenas um pálido preludio daquela eternidade que coreará os
esforgos dos homens. A historia da térra está voltada, desde

— 237 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

as suas origens, para a eternidade. E Rojdestvenskij termina


com um apelo a todos os homens para que se abram ao
infinito:

"A térra está confusa. Os seus pés estfio cobertos de poelra. Sede
pacientes, (ilhos; tocai ainda os vossos acordes I é preciso esforcar-se
ainda. Eu so cantare! os vossos louvores quando eles puderem ser lou-
vores eternos!" (Zvezda I. 1961, p. 46).

É particularmente, bela a comparagáo da vida humana,


dura e atormentada, cóm os exercicios do jovem pianista. Os
homens colheráo na sinfonía eterna os resultados dos arduos
esfor¿os que eles sinceramente váo realizando...!

Merecem atengáo ainda as interrogagóes do poeta


M. Markaryan:

"Sede de luz, sede de felicidade... Donde vem o teu poder de


atralr os coracdes dos homens? Para que regides has de levar os homens?
Nenhuma geracSo humana jamáis conseguiu acalmar-te. Ó heranca des-
confortável I Perfil Inevitável da vida, onde está o teu flm ? Onde está a
tua origem, sede de luz, sede de felicidade?" (texto extraído de "Infor-
matlons..." pp. 18s¡ ver bibliografía).

O «tormento» assim expresso por Markaryan lembra o


«tormento de Deus» ou «... em demanda de Daus» (Unruhe
zu Gott) de que falava o pintor Vilibrordo Verkade, ao nar
rar a sua conversáo do ateísmo para a fé crista e a vocagáo
beneditina: Deus «atormenta» todos os homens, mesmo aque
les que O ignoram, pois todos foram marcados pelo sinete do
Infinito.

4. Ainda nesta serie de testemunhos vale a pena citar


de novo o poeta Gennady Gor. Está persuadido de que os
homens passaráo por verdadeira metanóia ou por urna revira-
volta total de mentalidades, em conseqüéncia da qual descobrí-
ráo perspectivas de infinito. Essas perspectivas, Gennady Gor
as descreve metafóricamente, retomando frases de Fyodorov:

"Eu contemplava as pessoas que passavam ; contemplava os seus


semblantes que sonlam e que riam. E eu pensava: 'Voces ainda nao sabem
que em breve a porta se abrirá bruscamente e entáo cada um de voces
se encontrará á beira do abismo, sem fundo, do espaco. Voces farSo a
experiencia de Cristóvao Colombo, que se encontrou diante do océano
imenso e desconhecldo no día em que ele empreendeu a sua aventura.
EntSo cada um de voces se apressará por esquecer todos esses negocios
que n6o podem esperar*. Os homens se apressaráo por sacudir o torpor
cotidiano e rotlnelro, a fim de atingir o futuro, cujo esplendor desconhecldo
fala ao coracfio".

— 238 —
TRANSCENDENCIA NA LITERATURA RUSSA 11

Este trecho talvez lembre a algum leitor a «visáo face-a-


-face da Beleza Infinita» de que fala o Cristianismo. É táo
eloqüente e significativo que a obra de Fyodorov donde foi
extraído («Filosofía o Shchego», Filosofía da questáo geral)
nunca mais foi reeditada na Uniáo Soviética!

A necessidade de tomar consciéncia da missáo que cabe


ao homem e de a realizar ciosamente, faz Lyudmila Tatjani-
seva exclamar: «É grande a responsabilidade de ser homem>
(Oktjabrj 10, 1963, p. 4).

Continuando a desenvolver a temática, passamos agora


a outro trago marcante da literatura russa contemporánea.

4. A conquista ¿a morte ou a vitória sobre a morte

O pensamento russo volta-se freqüentemente para a morte,


que é, como se diz, a única coisa certa que o homem tem desde
que nasce. Nos escritos literarios respectivos, transparece a
idéia de que o retorno definitivo ao nada seria um absurdo
intolerável. A reagáo diante da morte é, por vezes, original:
muitos autores soviéticos entrevéem a possibilidade de que o
próprio homem venha a conquistar ou superar o tempo e a
morte: os fundamentos desta perspectiva seriam a tese de que
a mente humana nao conhece limites e é feita para o combate
continuo.

1. Eis o que a propósito escreve o bioquímico W. Stibnev:

"O principal problema da cISncla o da filosofía é o da vida e da


morte. A morte ó um paradoxo. O contraste que existe entre as grandes
posslbilldades de urna inteligencia nao obscurecida e o corpo material tfio
frágil preocupa, já há multo, o espirito humano. É preciso, a justo titulo,
considerar o problema da vida e da morte como o mais cruclante e o
mals dramático de todos os problemas com os quais o homem jamáis se
defrontou".

Os autores russos prevéem o momento em que a ciencia


descobrirá o misterio da vida e o homem poderá «reger o
processo do organismo vivo». Pois um dia, enfatiza Stibnev,
«o homem chegará realmente a vencer a morte, por mais
estranha que esta idéia possa parecer neste momento... Pela
ciencia atual, esta questáo ainda nao foi estudada formal
mente, mas abrem-se perspectivas de urna solucáo fantástica
do problema da vida e da morte» (Almanach naucnoj Faa-
tastíka 1964, pp. 910s).

— 239 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

2. A literatura soviética frisa freqüentemente a contra-


digáo existente entre a mortalidade do ser humano e as aspi-
racóes deste a urna vida imortal ou a urna Vitoria sobre a
morte. Sao palavras de E. Parnov e M. Emcev:

"Quando de repente o homem tomou consciencla de ser um homem,


a natureza Ihe dlsse: 'Homo sapiens, tu és mortal I...' Ora isto ó urna
injusta I A consciencia de existir é Incompatível com a Idéia da morte I
Aquele que compreende a natureza, deve ser Imortal 1" (Bunt tridcatl
Irilllonov, em Almanach naucnoj Fantastlka 1964, p. 52).

Mais urna vez, um dos autores que mais desenvolverán!


as aspiracóes do homem 'á imortalidade é Gennady Gor. Este
concebe a imortalidade nao como a continuagáo ilimitada do
tempo; ele eré, antes, que a eternidade deve ser de índole
diversa da do tempo; deve ter urna profundidade singular que
se manifesté já no momento presente:

"Nos libertaremos o homem do deterninismo rígido do tempo; nos


o tornaremos atemporal" ("O peregrino e o tempo", em "Fantastlka", Mos
cou 1962, p. 53).

"Voces procuram a mansSo desse astronauta, desse vencedor do


tempo e do espago. Éu sel onde ela se encontra: neste mundo interior
de cada um de nos. £ em nossos coracSes que dormita esse desejo de
vencer todos os obstáculos e de realizar esse sonho I" ("Vera" p. 167).

Nao há dúvida, ainda sao bastante obscuras as concep-


cóes dos autores citados no tocante á imortalidade; talvez
alguns a pretendam conquistar simplesmente por recurso a
ciencia. Como quer que seja, através das expressóes de tais
escritores percebe-se a consciencia de que a morte nao pode
ser o termo final e definitivo da passagem do homem sobre
a térra.

. 3. O autor lija Selvinskij, nascido em 1899, é tido como


excelente poeta, cujas obras ainda sao pouco estudadas. Em
determinada passagem, Selvinskij entrevé a sua própria morte,
que Ihe parece próxima... Considera entáo a tese segundo
a qual o homem se torna imortal pelas obras que deixa; nisto
táo somente consistiría a imortalidade do ser humano, segundo
o materialismo dialético. Observa entáo :

"Desde o meu segundo enfarte do miocardio, estou convicto de que


n8o sobreviverel a um terceiro, e comecel a adaptar a minha psique á
perspectiva da morte. Em mlnha Juventude, quando eu gozaya de saude
próspera, velo-me a Idéia: 'Quero adquirir, através dos meus versos, a
Imortalidade, a flm de acolher a hora da morte como um anfitrlSo acolne

— 240 —
TRANSCENDENCIA NA LITERATURA RUSSA 13

o seu convidado...' Mas com o passar do tempo essa coragem velo a


íaltar-me... O espectro da morte próxima faz-me recear que eü já nfio
possa empreender urna grande obra... NSo; a amea?a da morte nfio
nos excita a, criar. Quando Alexej Tolstol e Sergio Prokofiev trabalhavam
literalmente ató o último suspiro contra o parecer formal dos médicos, eles
nio o faziam pelo fato de estar o Nada a bater as suas portas, mas porque
n8o podiam proceder de outro modo; era-lhes necessárlo criar; nisto con
sistía toda a vida deles, todo o sentido da sua existencia...

Adoro a vida e tenho horror á morte. Nunca me pude reconciliar com


esta e jamáis o poderel fazer. Mas Isto nSo quer dizer que construí levla-
namente urna teoría por causa desse ódlo á morte. Na base do meu modo
de pensar existe urna hipótese científica".

Selvinskij expóe essa hipótese, lembrando que Robert


Wiener, o fundador da cibernética, escreveu um dia, na base
da teoría de Einstein: «Nos nao somos materia, mas forma
da estrutura da materia». Selvinskij dai deduz que nao é a
materia como tal, mas a forma que determina a natureza da
pessoa humana. Ora, continua Selvinskij, segundo Wiener «a
forma procura perpetuar-se». É sobre estes dados que o escri
tor russo constrói a sua fé na imortalidade; diz que eré em
urna nova manifestacáo de seu Eu no futuro.

Nao se pode definir melhor o que entende Selvinskij com


tais afirmacóes; nem o próprio autor tinha nogáo multo clara
do assunto. A sua tese lembra a doutrina escolástica do hile-
morfismo: a alma é a forma do corpo e goza de imortalidade,
mesmo quando a materia respectiva se destrói. Todavía seria
temerario equiparar Selvinskij a um filósofo escolástico. Como
quer que seja, é urna testemunha da certeza da imortalidade
da pessoa humana. Alias, o mesmo autor escrevia a Lev
Ozerov que, como professor de literatura, ele propunha a seus
discípulos a fé na imortalidade pessoal; muitos dos mesmos a
compartilhavam. E concluía:
"Nao quero impor a mlnha teoría a nlnguém, mas creio firmemente
nela. é Isto que me ajudará a ficar nobre e puro diante da morte" (Lltera-
turnala Rossla rfi 39, 23/IX/1966).

4. Nao poderíamos deixar de mencionar ainda dois auto


res de vulto neste setor.

O poeta Vadim Chriljev sugere que se considere a morte


como urna maturagáo espiritual ou urna libertagáo em vista
do Infinito e do Eterno. Cf. Neva 11, 1961, p. 77.
A poetisa Margarita Aliger vai ainda mais longe, pois
admite que no ser humano existe um principio espiritual que
a própria autora chama «alma». Ao fazer o balarco da sua

— 241 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 198/1976

vida, reoonhece que está envelhecendo; todavía Margarita tem


consciéncia de que tal nao é o caso da alma; esta, latente
dentro do homem, com o passar do tempo ganha riqueza e
profundidade, amadurece e rejuvenesce ao mesmo tempo, e
— mais ainda — «estreita os liames com a vida». Para desig
nar o contraste entre esses dois processos (o declínio do corpo
e o crescimento espiritual), Margarita Aliger emprega a pala-
vra «luta». Nesta luta, o corpo quer convencer a alma de que
ele a suplantará, de modo que nao haverá continuidade de
vida para ela; a poetisa, porém, toma partido pela alma, ape-
sar de todos os argumentos em favor do corpo, pois é indubi-
tável que a alma escapará á destruicáo. Ela exorta os leitores
a socorrer a alma nessa «luta sem fim» até que a alma obte-
nha a Vitoria. Em virtude dessa esperanca na Vitoria, a poe
tisa afirma que a vida é um caminho através da floresta,
tendo no seu ponto de chegada «urna luz imperecível» (Den!
Poczii 1980, p. 11).

Outro tema que a literatura russa contemporánea nao


podia deixar de considerar, é o do sofrimento, alias, insepara-
velmente associado á morte.

5. O problema do sofrimento

Esta questáo sempre atraiu fortemente a atencáo dos


pensadores.

Também os escritores russos de nossos dias se interrogam


a respeito- pode-se justificar a dor? Podem-se fechar os olhos
aos sofrimentos de tantas geracóes passadas e de tantas popu-
lacóes de nossos tempos? A térra seria táo cóncava que neces-
site de tanto sangue derramado?

Alguns autores na Rússia assumem, diante de tais pergun-


tas, urna atitude de revolta, pois nao encontram sentido para
o sofrimento. Outros procuram entrever ai alguma significa-
cáo, ainda que pálida e latente. E como?

1. Tenha-se em vista o romance «A Rabujenta» de Lidia


Ohuchova. Em determinado trecho, a autora diz que a vida
marcada pelo sofrimento é «a grande vida», a vida sem ilu-
sóes, a vida que estimula a magnanimidade. Para aceitar essa
«grande vida», sempre trágica, é necessária muita coragem.

— 242 —
TRANSCENDENCIA NA LITERATURA RUSSA 15

Por isto também a escritora dirige-se a quem parece alque-


brado pelo trágico da vida, desejando-lhe que «Deus te dé essa
grandeza de alma» («Neva>, 2, 1961, p. 70).

2. Nao é só o individuo que deve seguir a estrada da


cgrande vida»; todo o género humano há de passar por ela.
Para Semjon Kirsanov, a peregrinagáo da humanidade nao é
simplesmente urna via triunfal, mas, sim, e talvez mais ainda,
um caminho da cruz. Este autor chega a ver na figura do
Cristo Jesús o símbolo de todo o sofrimento do mundo — o
que realmente é novo e estranho na literatura soviética.
Quem de nos, pergunta Kirsanov, nao foi ferido pelas pedras
das injurias? Quem de nos nao conhece as mordidas dos caes,
os labios umedecidos por vinagre, os cravos ñas palmas das
máos ? Cr. Znamja 11, 1962, p. 136. Kirsanov ilustra a sua
própria vida, assaz marcada pela dor, com as palavras bíbli
cas de Jónatas, filho de Saúl: «Apenas proveí um pouco de
mel, eis que já devo morrer...» (ISm 14,43). Meditando sobre
a sua vida passada e a morte que se avizinha, o autor conse-
gue superar o sarcasmo que Ihe aflora á mente e vislumbra a
possibilidade de elucidar o problema do sofrimento: o calvario
da humanidade é a «grande via», na qual talvez se possa des-
cobrir um sentido profundo. Kirsanov ainda nao o vé com
toda a clareza, mas pressente-o; a aproximacáo do sofrimento
do mundo e da figura de Cristo é, para ele, «a revelacáo mais
importante» feita ao mundo (cf. Znamija 11, 1962, p. 136).

Também no romance de S. Snegov «Vai até o fimb encon-


tra-se a imagem de Cristo como símbolo do sofrimento. Este
trago literario, de resto, tem raízes na piedade popular russa,
que, principalmente na poesia anterior a 1917, identificava o
sofrimento do povo com o de Cristo. Snegav tem como pro
tagonista do seu romance o herói Terentjev; este possui tanta
experiencia do sofrimento que foi cognominado «o pequeño
Cristo»; sente-se atraído para o Cristo sofredor, que provou
urna tragedia humana muito triste, mas, por isto mesmo, se
tornou cativante e encantador (Znamja 4, 1962, p. 20). Te
rentjev é a encarnacáo de virtudes mais cristas do que mar-
xistas: mansidáo, brandura, simplicidade, humildade, confianca
nos semelhantes e, principalmente, entrega ao sofrimento em
vez de revolta.

3. Também a Virgem María, que sempre foi muito cara


á piedade crista, aparece ñas obras dos poetas russos contem
poráneos que abordam o sofrimento. Para Leonid Chaustov,

— 243 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

a ícone (imagem de arte oriental) da SS. Virgem de Roubljov


é, por sua vez, o símbolo do sofrimento universal como tam-
bém da nostalgia da felicidade e da redengáo, nostalgia ex-
pressa na oragáo pela luz e a saúde... (Neva 2, 1961, p. 13).
Vsevolod Rojdestvenskij vé simbolizada no mosaico da Santa
Máe de Deus da catedral de Santa Sofía de Kiev a «Esperanca
da Térra». Esquecendo os incendios, os devastacóes e as guer
ras, a Virgem paira sempre na ábside da catedral e do alto
contempla os homens como Rainha da Paz. Quanto á ícone
da SS. Virgem de Roubljov, Vsevolod Rojdestvenskij considera
o seu semblante como '«o semblante fulgurante» de um futuro
remoto e perfeito, para o qual se volta, ao longo dos séculos,
a nostalgia religiosa do povo russo (Zve2ida I, 1962, p. 46).

Estas passagens demonstram que a fé, e até mesmo a fé


crista mais tradicional e auténtica, aínda existe entre os pen
sadores russos contemporáneos; ela brota, tímida e contro
lada, mas viva e terna, da mente de escritores que represen-
tam a genuina alma russa.

Eis o momento de procurarmos sintetizar quanto acaba


mos de percorrer, em urna

6. Condusao

Poderíamos compendiar em tres ítens as grandes preo-


cupacóes e indagacóes expressas na literatura de ficgáo filosó
fica da Rússia contemporánea:

1) O sentido da vida já nao é elucidado a partir de fato-


res sócio-econdmicos ou puramente materiais, mas, sim, a par
tir do homem, com tudo o que este tem de profundo, original,
imprevisível ou mesmo misterioso. Assim, em vez de se dar
primazia aos valores sócio-económicos, enfatiza-se, antes do
mais, o ser humano em sua singularidade — o que já constituí
urna ruptura com a ideología do Partido.

Em conseqüéncia, muitos pensadores russos já nao acei-


tam a interpretagáo do sentido da vida a partir dos objetivos
conhecidos e prescritos pela ideología do Partido. Por muito
ponderosos que possam ser esses objetivos, os escritores rus-
sos percebem que nao podem dar a resposta definitiva á rica
escala de expectativas, esperanzas e de idealismo que marcam

944 _
TRANSCENDENCIA NA LITERATURA RUSSA 17

indelevelmente o ser humano. Essa resposta definitiva, para


muitos, se coloca além de todas as finalidades estabelecidas
pelo Partido e mesmo para lá de tudo o que se possa exprimir
em termos concretos: sociedade perfeita, fratemidade entre
todos os povos, paz permanente, igualdade, Vitoria sobre a dor
e a tristeza...

3) O problema do sofrimento e da morte é envolvido


numa perspectiva de imortalidade. O conceito desta Vitoria
sobre a morte é, certamente, ainda vago; todavía é, como dis-
semos, suficiente para demonstrar que o bom senso e a intui-
£áo inatos em todo homem o levam a descobrir que a morte
do corpo nao pode por termo final á existencia da pessoa
humana; esta só pode ser devidamente entendida se se Ihe atri-
bui urna sobrevivencia ou urna vida sem fim. A lógica das
coisas parece postular tal afirmagáo.

Estas tres notas do pensamento russo contemporáneo vém


a ser um embriáo filosófico que tende a se desabrochar, dando
origem a novas e novas conclusóes. Em síntese, elas fazem eco
a urna frase de Dostoievskij: «O homem só é capaz de lutar
por algo que seja infinitamente grande» ; essa aspiragáo ao
infinitamente grande reaparece e reaparecerá sempre, apesar
de todos os esforcos e as pressoes feitas para «canalizar as
tendencias do homem em diregáo de objetivos limitados e fini
tos» (F. M. Dostoievskij, «Jornal de um escritor»).

Bibliografía:

M. A. Lathouwers, "La llttérature sovlétique á la recherche de la


vérltó", em "Irónikon" XXXIX. 1966, pp. 325-354.

ídem, "Le sens de l'exlstence humaine dans la littérature sovlétique


contení poralne", em "Irónikon" XLI, 1S68, pp. 509-542.

Idam, "Llttérature sovlótlque". Utrecht 1968.

ídem, "Les ócrivains sovlétlques s'lnterrogent sur le mystére de


l'homme", em "Informatlons Catholiques Internatlonales" 482, 15/VI/1975,
pp. 13-21.

PR 197/1976, pp. 201-216 (surto religioso na Rússia de nossos días).

— 245 —
Homicidio ou benevolencia ?

matar para livrar o enfermo?

£m sfntese: Chama-se eutanasia "a morte suave ou Indolor". Pode-se


provocar tal tipo de desfecho num paciente que esteja gravemente enfermo
ou mesmo condenado; tern-se entio a eutanasia direta. Pode também acon
tecer que se deixem de'ministrar os recursos que entretenham a vida do
paciente, permitlndo que a doenca o devore naturalmente; dá-se entáo a
eutanasia índireta. A eutanasia direta ou positiva equivale a um homicidio,
e, por Isto, é sempre Ilícita. Quanto á eutanasia ¡ndireta, observe-se: nio
há obrlgagSo de recorrer a meios extraordinarios para conservar a vida
de alguém ; torna-se, pois, licito deixar de aplicar recursos extraordinarios
no tratamento de um paciente. Nao há dúvida, é difícil avallar o que seja
"extraordinario" em medicina, visto que os progressos desta vSo posslbili-
tando sempre mals o emprego da técnicas outrora raras: a avaliacáo do
extraordinario deve apoiar-se nao sonriente em criterios meteríais (viagens,
aparelhagem...), mas também em criterios pessoais (proporgáo entre sofrl-
mentos acarretados pelo tratamento para o paciente e esperanca de recupe-
racáo dal decorrente).

Comentario: O problema da eutanasia esteve mais urna


vez em foco nos últimos tempos. Nos Estados Unidos a
menina Karen Ann Quinlan já estava em coma havia seis
meses, quando seus pais pediram a um tribunal norte-ameri
cano permitisse aos médicos suspender o respectivo processo
de respiragáo artificial; assim ela morrena mais rápidamente,
visto que estava afetada de lesóes cerebrais, que pouca ou
nenhuma esperanca de recuperacáo deixavam. Cinco meses
mais tarde (mareo 1976), as Cortes norte-americanas respon-
deram afirmativamente ao pedido dos genitores, desde que os
médicos fossem favoráveis ao desligamento da aparelhagem
que entretinha a vida da menina.

Este e outros casos, que aparecem sempre mais comple


xos, pois a medicina tem sempre novos e novos recursos para
prolongar a vida, tém levado os estudiosos a comentarios
diversos sobre a eutanasia hoje. Abaixo proporemos algumas
reflexóes sobre táo candente assunto, inspiradas na bibliogra
fía mais recente.

— 246 —
MATAR PARA LIVRAR O ENFERMO ? 19

1. O problema

Antes de entrar na questáo propriamente dita, devenios


esclarecer as nogóes em foco e os debates que em torno délas
se travam.

Eutanasia, etimológicamente, quer dizer «morte suave»;


é a supressáo indolor da vida de um enfermo gravemente ator
mentado pela dor.

A eutanasia direta ou positiva ocorre quando se provoca


diretamente a morte do paciente mediante algum recurso
mortífero.

A eutanasia indireta ou negativa/ decorre da subtragáo


dos meios (medicamentos, aparelhagem...) que entretém a
vida tenue e dolorosa do paciente.

Num passado ainda próximo, os casos ocorrentes eram


raros e provocavam geralmente o repudio da opiniáo pública.
Assim em 1959 um pai de familia de cerca de 50 anos de idade
matou sua filha de 15 anos nos arredores de Paris, porque
era enferma de nascenga e sofría sem esperanga de cura.

Aos 23/IV/1961, Luigi Faita foi da Italia á Franga visi


tar seu irmáo Giuseppe, que sofría de esclerose lateral amio-
trófica; julgando-o incuravelmente enfermo, matou-o com tres
tiros de revólver. Foi absolvido por um tribunal francés.

Em maio de 1962, urna senhora de Liége (Bélgica), Su-


zana Coipel Vandelput, deu veneno (por consciente indicagáo
do médico) á sua filhinha Corina, que nascera mutilada pela
talidomide. Também foi absolvida por tribunal de Liége.
a. PR 66/1963, pp. 235-246.

Nos últimos anos, tanto a prática do aborto como a da


eutanasia tém encontrado adeptos em número crescente. Tres
dentistas Premio Nobel, como Jacques Monod, Linos Pauling
e Georges Thompson publicaram em julho de 1974, juntamente
com trinta e sete expoentes da cultura mundial, um manifestó
em favor da eutanasia. Partindo da premissa de que «é imo
ral tolerar, aceitar ou impor o sofrimento», escreveram:

"Oremos que a conscléncla moral está bastante desenvolvida em nossa


sociedade para poder elaborar urna regra de conduta humanitaria no tocante
6 morte e aos moribundos. Deploramos a moral tasenstvel e as restrlcfies

— 247 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

legáis que impedem o exame do caso ético da eutanasia. Fazemos apelo


á opinlao pública esclarecida para que supere os tabus tradicional» e
tenha compaíxáo dos que sofrem Inútilmente na hora da morte".

E concluiam:

"Todo Individuo tem o direlto de morrer com dignidade. Por Isto


recomendamos a todos os que compartilham esta opiniSo, lancem por
escrito a sua última vontade quando aínda ostiverem com boa saúde, de
clarando que tenclonam fazer respeitar o seu direito de morrer com
dlgnidade".

Este Manifestó, foi acolhido com simpatía nos Estados


Unidos da América e em outros países por aqueles que se
julgam pioneiros do progresso, libertos da moral tradicional.

Na Alemanha, recente inquérito sobre a eutanasia acusava


53% de vozes favoráveis á eutanasia, 33% de votos contra
rios e os restantes incertos. Os professores de Medicina decla-
raram ter praticado freqüentemente a eutanasia; em certos
hospitais alemáes deseobriu-se que a prática nao era rara.
Nos Estados Unidos parece que se dá algo de semelhante; em
tres hospitais da cidade de Louisville (Kentucky), o Prof.
P. Cameron, de Psicología, verificou que sao freqüentes os
casos de eutanasia.

Em 1974 na Italia a Dra. B. Allocca matou o pai doente


e a irmá desequilibrada. Comegou por aplicar-lhes urna inje-
Cáo de Valiura e urna de Luminal, que os adormentaram;
depois cortou-lhes as veías. Em seguida, tentou o suicidio;
mas, apavorada, desistíu e foi levada para um hospital de
psiquiatría. Por último enforcou-se no cárcere. Este era pro-
vavelmente um caso de demencia; todavia nem sempre todos
os que se manifestam em favor da eutanasia, podem ser tidos
como dementes.

A seguir, procuraremos analisar o fenómeno, distinguindo


entre eutanasia direta e eutanasia indireta.

2. Eutanasia direta

Pergunfamo-nos, antes do mais:

2.1. Por que a eutanasia ?

Certamente um dos motivos mais aduzidos em favor da


eutanasia direta (e é somente desta que agora falamos) é a

— 248 —
MATAR PARA LIVRAR O ENFERMO ? 21

compaixáo. O paciente sofre tanto que pode alguém julgar


melhor dar-lhe urna injecáo nao somente para aíiviar-lhe a
dor, mas para extinguir-lhe a existencia.

Esse sentimento de compaixáo encontra eco propicio nos


sistemas materialistas da filosofía contemporánea: o neoposi-
tivismo, o existencialismo ateu, o marxismo, o mecanicismo
contribuem para apagar em muita gente a crenga na vida
postuma. A única existencia do homem seria a terrestre: se
esta acarreta prazeres e satisfacóes, vale a pena vivé-la; Be
traz sofrimento e dor, convém extingui-la... Tal é a lógica
do materialismo. G. Siegmund, em estudo sobre o suicidio,
verificou que há relacionamento estreito entre incredulidade
e sucídio. Quem nao eré em Deus, julga poder dispor da sua
vida e da vida do próximo segundo criterios imediatistas e
meramente humanos.

Prosseguindo nossas reflexóes, indagamos:

2.2. Nao estaría isto eerto ?

1) A lei natural ensina que o homem nao é senhor nem


da sua vida nem da vida de seus semelhantes. Ninguém tem
o direito de exercer dominio sobre a sorte alheia. Todos os
seres humanos se encontram ñas mesmas condigóes naturais
de dependencia em relaeáo ao Criador; por isto ninguém está
habilitado a tirar a vida a um inocente. É por isto que a
eutanasia, extinguindo a existencia de um inocente, é grave
mente ilícita. Note-se mais: o direito á vida é o direito fun
damental, condigáo para que alguém possa gozar de qualquer
outro direito. Ninguém tem direito á propriedade, á honra, ao
trabalho..., se nao existe. Por isto quem nega o direito á
vida, nega qualquer outro direito. Em conseqüéncia, um aten
tado contra a vida é delito capital.

Há, porém, quem indague: existe realmente a lei natu


ral? — Em resposta, observamos que no plano biológico o
organismo tem certamente suas leis naturais (comer, respirar,
dormir., r), cuja observancia é condicáo de vida ou morte;
paralelamente, no plano ético ou moral, a consciéncia humana
tem suas leis naturais, cuja observancia é condigáo de reali-
zacio ou nao de auténtica personalidade (nao matar, nao
roubar, honrar pai e máe...). Existe, pois, urna ordem de
conduta objetiva e natura] á qual o ser humano se deve con-

— 249 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

formar para ser humano no sentido próprio da palavra. Os


pensadores de todos os tempos tém reconhecido esta verdade.

Deve-se acrescentar que, fazendo eco a esse consentimento


universal, a doutrina da fé católica repudia a morte infligida
a um inocente por parte dos homens. Por «inocente» enten-
de-se, no caso, aquele que nao perdeu o direito a vida; nao é
inocente, por exemplo, o injusto agressor, pois, atentando
injustamente contra a vida alheia, perdeu eventualmente o
direito a sua própriá vida.

Diz, por exemplo, a S. Escritura em nome do Senhor


Deus:

"Nao matarás o inocente e o justo, porque ocíelo o ímpio" (Ex 23,7)1.

O sangue do homem injusticado clama ao Senhor Deus


(cf. Gn 4,10), pois todo ser humano é feito á imagem e seme-
lhanca de Deus (cf. Gn 9,5s).

A Igreja, através dos sáculos, fez eco constante a essas


palavras bíblicas. Limitando-nos aos mais recentes pronun-
ciamentos, citaremos o de Pió XH aos 12/XI/1944, dirigido
á «Uniáo Italiana Médico-biológica Sao Lucas»:

"Enquanto o homem nSo é culpado, a sua vida é intocável; por isto


é Ilícito todo ato que tenda dlretamente a destruí-la, quer esta destrulclo
seja intencionada como f!m, quer apenas como meló orientado á um fim;
quer se trate de vida embrionaria, quer seja vida plenamente desenvolvida,
quer esteja chegada ao seu termo final" (Pió XII, "Discorsi ai medid",
Roma 1959, vol. I, p. 51).

O mesmo Pontífice dizia num discurso as Parteiras:

"Nao há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma cien


cia, nenhuma Indlcacáo médica, eugdnica, social, económica, moral, que
Dossa dar válido titulo jurídico a um ato de direta e deliberada disposicSo
sobre urna vida humana inocente" ("Acta Apostólicas Sedls" 43 [1951]
p. 838).

O Concilio do Vaticano II (1962-1965) proclamou solene-


mente:

"Tudo que é contrario a vida, como toda especie de homicidio, o


genocidio, o aborto, a eutanasia e o suicidio voluntario... sSo coisas
realmente vergonhosas, e, enquanto degradam a cMlizacSo humana, mais

JA palavra "odeio" há de ser entendida como hipérbole, usual entre,


os semitas. Deus nao se compraz no ato mau, mas guarda sempre o seu
amor a qualquer criatura.

— 250 —
MATAR PARA LIVRAR O ENFERMO ? 23

ainda manchan) aqueles que asslm se comportam do que aqueles que


padecen) tais males; ferem grandemente a honra de Deus" (Constitulcáo
"Gaudium et Spes" n"? 27).

Pode-se notar também que algumas Conferencias Episco-


pais se pronunciaran! abertamente contra a eutanasia, adu-
zindo para tanto razóes de ordem natural, como também deri
vadas da fé; assim a da Inglaterra, a da Irlanda, a da Alema-
nha Ocidental...

2.3. E se o paciente pede a eutanasia ?

Há quem rejeite a eutanasia quando cometida sem o con-


sentimento do enfermo. Aceitam-na, porém, se este a pede.

A propósito, observe-se que a eutanasia nao deixa de ser


ilícita, ainda que o paciente a deseje, pois nem este é senhor
da própria vida.

Mas qual o sentido de urna vida humana imersa no


sofrimento?

Considerando tal vida do ponto de vista cristáo, devemos


dizer que nao há sofrimento destituido de significado e valor.
Padecendo e morrendo na Cruz, o Fílho de Deus feito homem
quis dar a todo tipo de dor — mesmo á mais hedionda e
atroz — urna fungáo salvífica e redentora. Quem suporta a
sua cruz em uniáo com Cristo, configura-se ao Senhor, puri-
fica-se e santifica-se, contribuindo outrossim para a salvagáo
e santificagáo dos homens; é esta a grasa que toca a todo
enfermo cristáo, mesmo aos mais acabrunhados e esquecidos.

Passando para o plano meramente natural ou psicológico,


também se verifica que o sofrimento nao é o inimigo número 1
do género humano. É, sim, urna verdadeira escola, que ensina
paciencia, magnanimidade, coragem, desprendimento; quebra o
egoísmo, a mesquinhez, a infantilidade... Se nao fora o sofri
mento, a personalidade humana nao se libertaria do egocen
trismo e da cobiga, nem se elevaría aos altos píncaros da per-
feigáo. Eis palavras do psiquiatra J. J. Lopez-Ibor:

"Sob o aspecto psicológico, o sofrimento exerce um papel funda


mental na formacSo da nossa personalidade. O sofrimento ou a dor — mais
do que qualquer outra sensacáo — dá-nos o sentido da nossa dualidade:
a esplrltualidade (o eu), que se contrapee á dor. Mais do que qualquer outra

— 251 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

sensacáo, a dor serve á crianza para dlstlnguIr-so do mundo e dar-lhe o


sentido da sua personalIdade. O prazer despersonaüza, esvazia... ao
passo que a dor interioriza".

Por sua vez, escrevia Frederico Nietzsche (f 1900), que


certamente nao era dado á compaixáo:

"A escola da dor, da grande dor I Nfio sabéis que somente essa
escola permitiu ao homem certas atltudes: fortaleza, engenhosldade,
coragem, que se manifesta no suportar, no perseverar, no Interpretar, no
aproveitar a desgrana. Tudo o que a alma adquire em profundldade, dis-
crlcáo, espirltualidade, grandeza, nao o adquire sob o jugo da dor, na
escola da grande dor?" ("Al di la del bene e del male". Milano 1924,
pp. 112-113).

Mais aínda: se o sofrimento é motivo justificado para por


termo á vida de alguém, somos sujeitos a cair na arbitrarle-
dade. Com efeito, todo ser humano, nasce, cresce e se autoa-
firma em meio a padecimentos e renuncia; nao há quem
esteja isento disto. Perguntar-se-ia entáo: e qual seria o cri
terio para se dizer que o sofrimento já é insuportável e exige
a eutanasia? Quando é que a morte comeca a ser preferivel
á dor?

Alguns responderiam: «... urna grave deformado ou


mutilacáo», enquanto para outros bastaría urna desilusáo ou
simplesmente a perda da saúde habitual. Na impossibilidade
de se estabelecer uní criterio objetivo que justificasse a euta
nasia, a arbitrariedade tornar-se-ia lei. Daí resultariam cla
morosos absurdos, e desmoronaría o fundamento da conviven
cia entre os homens.

Todavía alguém dirá:

2.4. E crs doencas incuráveis ?

Lembram nao poucos que há doengas incuráveis, que tor-


nam intolerável a vida do respectivo paciente. Por que nao
permitir a eutanasia ao menos e — e táo somente — para
esses casos? Nao seria esta urna atitude humanitaria?

Respondemos que há, sim, doengas incuráveis, embora


seja difícil, por vezes, indicá-las. Quanto ao qualificativo de
«intoleráveis», seja lícito fazer tres observagóes:

a) A medicina possui hoje os mais variados recursos


para aliviar os sofrimentos de um enfermo. É lícito ministrar

— 252 —
MATAR PARA LIVRAR O ENITSRMO ? 25

analgésico e outras substancias que tornem o paciente insen-


sível á dor, aínda que tais remedios possam abreviar a dura-
gáo da vida ou desencadear mais rápidamente a morte do
enfermo. Sabe-se que há certas dores que só podem ser ate
nuadas mediante o emprego de substancias que, além do efeito
principal de suavizar o sofrimento, tém como efeito secundario
o apressar a morte do paciente; tal é a morfina. Em tais
casos, a intengáo em virtude da qual se ministram os analgé
sicos, nao é a de diminuir a duragáo de vida de alguém, mas
apenas a de lhe mitigar as dores. Em conseqüéncia, torna-se
licito o emprego de tais recursos.

A propósito observou o Dr. F. Anderson, professor de


medicina geriátrica na Universidade de Glasgow, perante tre-
zentos médicos e enfermeiros, aos 27/1/1973 em Londres:

"Nunca dispusemos de tantos meios para aliviar o sofrimento e acal


mar a Intraqüilidade. Mesmo que antes tivessem existido motivos para
defender a eutanasia, ]á nao existem. Em virtude do atual estado da geiia-
tria, estamos em condicSes de ajudar todos os anclaos doentes; muitoa
destes podem ser curados, aopasso que aqueles que sofrem de detengas
Incurávels podem ser preparados para urna morte tranquila e sem dor"
("Informations Cathollques Internationales" rfl 427, 1/IU/1973, p. 26).

Há, porém, quem diga: os analgésicos contribuem para


tornar tolerável a vida de alguém dolorosamente enfermo.
Mas há o caso das criancas atetadas de taras hereditarias
(como o mongolismo, a esquizofrenia e outros males) e con
denadas a viver assim durante toda a sua existencia. Que
dizer de tais casos de desgrasa permanente?

— Pondere-se o seguinte:

b) Embora tais casos sejam profundamente dolorosos,


pode-se indagar: será que as pessoas marcadas por um mal
congénito sao realmente infelizes?

Em verdade, pode-se crer que sao infelizes, caso se vejam


rejeitadas ou menosprezadas por seus concidadáos. Nao sao
necessariamente infelizes desde que sintam atencáo e afeto
por parte dos seus semelhantes. Varias pessoas que nasceram
como excepcionais, mas foram educadas com carinho, pude-
ram adquirir urna cultura superior, tornando-se personalida
des notáveis; é conhecida, por exemplo, a figura de Helen
Keller, que se tornou cega, surda e muda poucos meses após
ter nascido: com ó auxilio de urna mestra boa e inteligente:

— 253 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

(com a qual outros mestres colaboraram), nao somente con-


quistou os graus académicos, mas se tornou escritora concei-
tuada. Também se pode mencionar o caso de Denise Legrix,
que, nascida sem bracos nem pernas, contou com o carinho
de pessoas compreensivas, de modo a conseguir aprender a
escrever, pintar e ajudar os seus.

É claro que nem todos os excepcionais podem chegar a


tanto. Contudo deve-se dizer que lhes é possível levar urna
vida humana e serena, desde que se vejam cercados de cuida
dos e afetos. Caso isto nao se dé, geralmente parte da respon-
sabilidade toca á sociedade que pouco se interessou por tais
pessoas.

De resto, note-se que o conceito de felicidade é muito


relativo e que ninguém, mesmo em gozo de saúde, é plena
mente feliz.

Observa sabiamente G. Perico, no seu livro «L'aborto»:

"A felicidade é um sentlmento que está no fundo de nos e nSo


depende, senSo em mínimas parcelas, das condlcSes físicas. Os fatores
que sobre ela Influem, sSo de outra fndole: Incompreensñes, remorsos,
desonras, desllusees, mal-entendidos, Incapacldade. Serla terrlvel, se, para
matar, para suprimir ou n§o um ser humano, tlvéssemos que recorrer aos
criterios da felicidade. Estaríamos obrlgados a suprimir multa gente ató
mesmo entre as pessoas sadias" ("L'aborto". Milano 1975, p. 32).

c) A doenca parece intolerável nao somente ao enfermo,


mas também, e muitas vezes, aqueles que o cercam. Estes
nao podem deixar de participar do sofrimento de alguém que
inspire compaixáo, principalmente se sao familiares. Mais:
os cuidados, por vezes, exaustivos e os gastos monetarios exi
gidos por urna grave enfermidade afetam pesadamente as
pessoas que cercam o paciente. Compreende-se entáo que, as
vezes, de maneira inconsciente ou mesmo consciente, estas pos-
sam desejar ver-se livres de táo penosa situacáo. Esse desejo
será inspirado por compaixáo para com o enfermo... ou para
com os próprios familiares e demais responsáveis pelo trata-
mento do paciente? Esta pergunta, por mais cruel que seja,
tem fundamento, e costuma ser levantada por quem trata do
problema da eutanasia direta ou positiva.

Transcrevemos aqui as ponderacóes do Pe. Marc Oraison,


que é também médico psiquiatra:
"Jamáis se poderá dizer com veracldade que se mata um doente
Imerso em sofrlmentos atrozes únicamente por causa dele. De resto,

— 254 —
_. MATAR PARA LIVRAR O ENFERMO ? 27

observemos o que acontece nos enterres. Quando é sepultado alguém que


tenha sofrido por multo tempo, os amigos e familiares apresentam suas
condolencias: 'Meu infeliz amigo I Como ele sofreu I Slm ; fol urna llber-
tacSol' Jamáis se define a quem essa libertagSo favoreceu.

Coloco a pergunta: imaginemos urna sogra fdosa, de temperamento


difícil, avarenta e um tanto totalitaria, atingida por urna doenca que n8o
admite cirurgia e que comeca a sofrer. Prevé-se o desfecho dentro de
seis meses... Se se pratlca a eutanasia, pode-se afirmar que nao a
estfio matando para desembaracar-se déla e compartilhar mals rápida
mente a heranca? As realidades humanas sSo, multas vezes, mals ou
menos mescladas de sordidez de manelra consciente ou inconsciente"
(art. citado na bibliografía, p. 9; ver p. 270 deste fascículo).

Consideremos ainda

2.5. As conseqüéndas da eutanasia positiva

1) Admita-se a hipótese de que a eutanasia seja reco-


nhecida por alguma lei ou algum artigo de Constituicáo ou
de Código Legislativo. Restará sempre aberta, como variável
oscilante e delicada, a questáo dos criterios que permitam a
aplicagáo da eutanasia: Que tipos de enfermos seráo passivos
de eutanasia? ... E a partir de que momento o seráo? A
filosofía dos governantes (que se sucedem regularmente no
exercício do poder) o decidirá. Tenha-se em vista o ocorrido
sob o regime nacional-socialista na Alemanha.

Em fins de outubro de 1940, Adolf Hitler promulgou um


decreto na Polonia; datou-o de 1« de setembro de 1939, pro-
vavelmente para que fosse acolhido como medida de emer
gencia de guerra.1 Estava assim concebido:

"O Relchtelter Bühler e o doutor em medicina Brandt estáo, sob a


sua próprla responsabltidade, encarregados de estender a autorldade de
certos médicos a fim de que concedam a MbertacSo mediante a morte ds
pessoas que, dentro dos limites do julgamento humano e em conseqüéncla
de meticuloso exame médico, tiverem sido declaradas Incurávels.

(a) Adolf Hitler"

Na aplicacáo deste decreto, os responsáveis julgaram pas-


síveis de eutanasia «todos aqueles que sofrem de urna doenga
contagiosa e nao podem ser empregados em trabamos no esta-
belecimento em que estáo hospitalizados, ou aqueles que só
podem ser empregados em trabalhos mecánicos: tais sao os

iA guerra entre a Alemanha e a Polonia comegou precisamente a


1? de setembro de 1939.

— 255 —
28 ePERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

que padecem de esquizofrenia, sífilis, demencia, encefalite,


doenca de Huttington, epilepsia, molestias neurológicas ter
mináis. ..»

Foram também considerados «beneficiarios» da eutanasia


os que já tivessem cinco anos de internagáo em um
hospital;
os que tivessem sido internados como Ioucos crimi
nosos; :
— os que nao tivessem a nacionalidade alema (!);
— os que nao tivessem o sangue alemáo»;

Tendo sido «lógicamente» a eutanasia assim legitimada,


as autoridades nacional-socialistas exterminaram, em termos
brandos e suaves, todas as pessoas que entravam em urna das
categorías de irrecuperáveis; assim milhóes de judeus pas-
saram pela cámara de gas.

Se os tempos do nacional-socialismo já estáo distantes de


nos, devemos reconhecer que aínda somos contemporáneos de
regimes totalitarios, que arrogam a si o direito de manipular
a pessoa humana segundo interesses partidarios.

Levem-se em conta ainda outros graves inconvenientes da


eutanasia:

2) A legitimacáo da eutanasia positiva pode também


acarretar inseguranca nos enfermos, ñas familias e na socie-
dade, esvaziamento da dignidade da profissao médica, atenua-
gáo do senso de solidariedade entre os homens.

Com efeito» urna vez legitimada a eutanasia positiva, o


doente poderia conceber a impressáo de ser egoísta se nao
pedisse a morte para libertar os seus parentes e enfermeiros
de um fardo inútil. Paderia sentir-se moralmente coagido a
pedir a morte.

Mais: a eutanasia pesaría sobre a consciéncia dos médicos


e enfermeiros; além do que, afetaria o bom relacionamento
entre o médico e seu paciente. Com efeito; a primeira tarefa
de um médico é a de salvar a vida e tentar recuperar a saúde;
nao se entende, pois, que um médico aplique seus conhecimen-
tos precisamente a objetivo contrario como sería o de provo-

> Assim eram atingidos judeus, negros, mesti;os, clganos, etc.

— 256 —
MATAR PARA LIVRAR O ENFERMO ? 29

car a morte rápida. Ademáis, se ao médico fosse legitimo


recorrer á eutanasia, poderla deixar de parecer, aos olhos do
paciente, um amigo e servidor, mas ser visto como figura
perigosa e possivel colaborador da morte. A confianca do
paciente no seu médico estaría assim abalada; precisamente
urna das mais duras provagóes dos enfermos e dos anciáos é
o fato de se sentírem na total dependencia da boa vontade e
do afeto de outras pessoas. A inseguranga, a suspeita de serem
indesejados aumentariam essas apreensóes até o desespero.

Por último: urna vez aceitas os principios da eutanasia,


as autoridades poderiam ser tentadas a recomendá-la ou tole-
rá-la a fim de diminuir a clientela dos hospitais, ou utilizar
instrumentos e pegas que poderiam servir para outras aplica-
góes terapéuticas. A natureza humana é vulnerável, prestan*-
do-se 'ás mais surpreendentes atitudes inescrupulosas.

Passemos agora a examinar a

3. Eutanasia ¡ndireta

Em antitese á eutanasia direta, coloca-se a distanásia


(dys = difícil, em grego), ou seja, a morte difícil. Esta pala-
vra, em linguagem técnica, significa o combate, a todo custo,
contra a morte, combate que faz seja esta ardua e penosa.

Conhecem-se casos famosos de distanásia. O mais recente


parece ter sido o do Generalíssimo Francisco Franco, que
esteve mais de trinta días em agonía, assistido por dezenas
de médicos. Outro caso notorio é o do Presidente Traman,
que aos 88 anos de idade foi sucessivamente acometido por
diversos males físicos; prestaram-lhe seus cuidados cerca de
vinte especialistas (médicos, professores, assistentes e outros),
que lutaram contra deficiencias renais, infecgáo pulmonar,
esclerose cerebral, pressáo arterial, equilibrio eletrolítico — o
que ocasionou urna agonía de dois meses ao ilustre paciente.

Diante de tais casos, deve-se dizer que, em sá consciéncía


crista, nao há obrigacáo de aplicar meios extraordinarios para
sustentar a vida de alguém ou debelar a morte. Por «recur
sos extraordináríos> entendem-se tratamentos altamente espe
cializados.

Por certo, nao é fácil distinguir entre recursos ordinarios


e extraordinarios, pois, dado o progresso da medicina, mesmo

— 257 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

os meios extraordinarios tendem a se tornar cada vez mais


ordinarios. Todavia ainda há fundamento para se fazer tal
distingáo.

O motivo pelo qual a eutanasia indireta se torna legítima,


é o seguinte: a vida presente, por muito valiosa que seja,
aínda nao é o bem supremo do homem; ela está ordenada
para a vida eterna. Em conseqüéncia, para o cristáo a morte
nao é o mal maior do homem; pode mesmo ser considerada
como um bem, pois é a porta para a vida eterna e a visáo
de Deus face-a-face; aceita em uniáo com a morte de Cristo,
torna-se a via de salvagáo para o homem. Por isto, como o
homem tem direito á vida terrestre enquanto Deus lha con
cede, tem também o direito de morrer com dignidade quando
a morte se lhe apresenta como um passo que seria desarra-
zoado ou inútil tentar postergar.

Eis o que a propósito dizia o S. Padre Pió XII em dis


curso proferido aos 24/XI/1957 perante um grupo de profes-
sores e médicos (principalmente anestesistas) que lhe haviam
proposto a questáo da reanimagáo por meios extraordinarios:

"Se é evidente que a tentativa de reanimagáo na realidade constituí


para a familia um tal fardo que em conscléncla Isto nSo lhe pode ser
imposto, os familiares podem licitamente Insistir em que o médico inter-
rompa as suas tentativas, e o módico pode licitamente atender a esse
pedido.

Em tal caso, ninguém dlspSe diretamente da vida do paciente, nem


há eutanasia, o que nunca seria licito. Mesmo que acarreto a cessacSo
da circulacSo do sangue, a Interrupgao das tentativas, de reanimagáo nao
é senao indirectamente causa da cessacSo da vida; devem aplicar-se neste
caso o principio do duplo efeito e o do volunta, lum In causa" ("Discorsl e
Radiomessaggi di S. S. Pío XII". Roma 1958, vol. XIX, p. 6201.

Todavía, mesmo que estejam claros os principios relativos


á eutanasia direta e á eutanasia indireta, fica sempre urna
interrogacáo aberta cuja importancia é capital para se aplica-
rem devidamente tais principios: a partir de que momento se
pode dizer que nao há mais esperanza na luta contra a morte
iminente? Quais os sistemas que indicam ser irreversivel o
fato da extingáo da vida no caso do paciente A, no do pa
ciente B, no do paciente C ? Quando é que se pode «abando
nar» um paciente, do ponto de vista médico? De que necessita
um enfermo em perigo mortal ?

A estas perguntas tentaremos responder no artigo que se


segué.

— 258 —
Questáo delicada:

obstinar-se contra a morfe


011 humanizar a morte?

Em sínlese: Até hoje os estudiosos julgam difícil indicar o momento


preciso em que se dá a morte de alguém. Principalmente os diversos graus
do estado de coma suscitam questoes. A moderna técnica da reanimacüo
tem provocado respiracSo artificial e pulsacSes do coragáo mesmo quando
o cerebro parece irreversivelmente lesado. Em tais circunstancias, pode-se
dizer, em sá consciéncia, que nSo há obrigacfio de "obstinacáo terapéu
tica", ou seja, de entreter a todo custo esses síntomas (respiracáo, pulsa-
cees...), desde que isto seja gravemente penoso e nfio naja esperanca
de resultados compensadores para a vida do paciente.

O que importa, antes do mais, é humanizar a morte, isto é, prestar


assisténcia ao enfermo a (¡m de que nos seus últimos momentos sinta nSo
apenas o esmero da técnica, que por vezes é fría e mecánica, mas também
a benevolencia e o apoio moral dos familiares, dos médicos, dos enfermei-
ros e dos auxiliares de enfermagem.

Comentario: Os recentes casos de reanimagáo e conser-


vagáo artificial da vida tém levantado freqüentemente a per-
gunta: quando é que alguém morre? Outrora receava-se
muito ser sepultado vivo ou sofrer a lenta asfixia dentro do
caixáo na sepultura em conseqüéncia de um erro na verifica-
C&o da morte. Hoje em día o problema é inverso: corre-se o
risco de julgar vivas, e tratar como tais, pessoas que já há
muito deixaram de viver.

Durante sáculos eram criterios de cessagáo da vida a


paralisacáo dos movimentos cardiacos e respiratorios. Hoje
em dia a reanimagáo consegue provocar a respiracáo artifi
cial e as massagens cardíacas movimentam o coragáo, mesmo
quando o organismo parece destituido de vida, de tal modo
que os antigos criterios de cessagáo da vida tém que ser
reformulados. Gragas as técnicas da reanimagáo, o médico
pode atualmente assegurar, durante semanas e meses, a cir-
culagáo, a respiragáo e a nutrigáo de um organismo sem que
o próprio médico possa dizer se o paciente ainda está vivo.

— 259 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

Por ocasiáo do Congresso de Ética Médica realizado em


París no ano de 1966, o Prof. Jean Hamburger, pioneiro dos
transplantes renais, citou o caso de urna jovem de 17 anos
de idade, afetada de faringite aguda, grave infecgáo geral,
convulsóes, coma e perturbagóes respiratorias. Pouco depois
de chegar ao hospital, a paciente foi submetida ao regime de
respiragáo artificial.

"Depois de alguns días de duracSo desse processo, diz o Dr. Ham


burger, nio se manllestava sinal de reatlvacáo neurológlca. EntSo pedí ao
Prof. Francote Lhermitte, neurologista de renome, que examlnasse o caso.
Permaneceu por multo tempo río quarto, examlnou a enferma com o máximo
de atengSo; a seguir, passando para o corredor, disse-nos estas palavras,
das quals me recordare! sempre: 'Crelo que esta enferma está morta há
varios días1".

Caso semelhante é o de Karen Quinlan,. ncs Estados Uni


dos, apenas com a diferenga de que, mediante o eletroencefa-
lograma, ainda se pode detectar na paciente certa atividade
vital. É isto que leva os médicos a hesitar no caso.

Eis por que nos voltaremos, a seguir, para a questáo dos


«síntomas da morte real», procurando apenas abordar algu-
mas facetas do problema. A isto acrescentaremos certas pon-
deragóes sobre a assisténcia humana (e nao somente técnica)
a ser ministrada a um paciente.

A questáo do momento preciso da morte de alguém tem


sido colocada últimamente em fungáo do estado de coma (tal
é, por exemplo, o caso de Karen Quinlan, que há meses se
acha em coma, a ponto de se perguntar se ainda está viva).
Pergunta-se: quando é que um organismo em coma perde, por
completo, a vida que tinha?

Vejamos, pois, o que é o coma.

1. Estado de coma

O coma é um estado caracterizado pela perda (total ou


parcial) da consciéncia e a cessagáo mais ou menos total das
fungóes de sensibilidade e motricidade. Subsistem, porém, as
fungóes vegetativas (respiragao, circulagáo, nutrigáo).

Distinguem-se diversos graus de coma, segundo a respec


tiva profundidade e gravidade. Desses, mencionaremos espe-

— 260 —
HUMANIZAR A MORTE 33

cialmente: o coma leve ou de vigilia, o coma de gravidade me


dia, o profundo, o irreversível e o uitrapassado («dépassé»,
segundo Mollaret).

1) No coma leve ou de vigilia, a consciéncia permanece,


embora obnubilada;, também se registram reacóes aos estí
mulos, embora nao sempre adequadas; nao se notam pertur-
bagóes ñas fungóes vegetativas.

2) No coma de gravidade media, extinguem-se por com


pleto a consciéncia assim como as fungóes sensitivas e motri-
zes; as da vida vegetativa apresentam-se um tanto irregulares.

3) No coma profundo, já ocorrem graves perturbagóes


do sistema vegetativo. O fato, porém, de que se exercem
espontáneamente, significa que a regiáo de base do cerebro
ainda funciona. O cerebro, pois, conserva-se vivo.

Do coma irreversível trataremos em último lugar nesta


lista; cf. p. 263.

4) Quanto ao coma uitrapassado, já nao é propriamente


coma, pois nele a vida vegetativa central está extinta. O cere
bro já nao funciona. As pupilas se acham fortemente dilata
das e nao reagem á luz. Nao há respiracáo espontánea nem
deglutinacáo. A temperatura do individuo passa de 40 a 35
ou mesmo 34. O eletroencefalograma se conserva constante
mente liso. O colapso é total. Em contraste com esse quadro
dramático, o coragáo bate; tais pulsagóes, porém, nao sao
coordenadas pelos centros de base do cerebro; constituem um
residuo local de vida vegetativa. Tal é o caso típico do «cadá
ver vívente». — Nessas circunstancias, os estudiosos já ten-
taram, de todos os modos, restabelecer as funcóes cerebrais;
mas em váo. O paciente, no decorrer dos dias, vai dando sinais
de progressiva degenerescencia; as extremidades do corpo
assumem as características próprias do cadáver. Em autop
sia, tais individuos apresentam lesóes cerebrais táo graves e
extensas que se pode ter a certeza moral de que nao há re-
cuperacáo.

Contudo os casos de coma uitrapassado sao raros e, antes


que possam ser reconhecidos claramente, requer-se certo
espago de tempo; o cerebro já deixou de funcionar antes que
se produzam os fenómenos atrás descritos.

— 261 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 198/1976

Em conseqüénda, hoje como outrora, pode-se dizer que


é possivel averiguar que determinada pessoa está morta, mas
aínda nao se consegue «individualizar» ou precisar o momento
em que morre.

Foi em 1959 que os médicos fizeram a primeira descrígáo


de coma ultrapassado; estavam reunidos na XIII Assembléia
Internacional de Neurología, onde o assunto foi abordado com
clareza até entáo inédita. Esse estado pareceu, na ocasiáo,
ser mais do dominio dos fisiologistas do que dos clínicos, pois
aprésente o curioso fenómeno da morte do cerebro enquanto
se dáo respiragáo e circulagáo por meios artificiáis. Esse pri-
meiro relatório sobre o assunto se terminava prevendo, de
um lado, os múltiplos problemas que decorreriam do estado
de coma ultrapassado, e definindo, de outro lado, a ética do
médico, que deveria persistir ñas tarefas de reanimagáo até a
total cessagáo das pulsacóes cardiacas.

Em tal data, vc-se que o conceito de vida estava ligado


ao de pulsagóes do coradlo e a morte era caracterizada pela
extingáo destas. Talvez nao se levasse em conta suficiente o
fato de que, no coma ultrapassado, o cerebro estava destruido
e, por conseguinte, o paciente já nao tinha possibilidade de
consciéncia, sensibilidade e relacionamento com o mundo ex
terno... Somente aos poucos os estudiosos foram avaliando
o significado da reanimagáo artificial; deixaram de atribuir a
esta o valor e a importancia que a principio lhe eram atribuí-
dos em todo e qualquer caso. Todavía dentro dos dez próxi
mos anos após o Congresso de 1959 os especialistas foram
tomando consciéncia mais exata do alcance e das limitagóes
da reanimagáo artificial. Foram principalmente as pesquisas
no setor eletroencefalográfico que permitiram definir melhor
os criterios técnicos irrecusáveis da destruigáo do sistema ner
voso central; os médicos foram averiguando que nem sempre
importa entreter as pulsagóes do coragáo a todo custo e em
qualquer estado geral do organismo.

Com outras palavras, pode-se dizer que hoje o coma


ultrapassado é, na verdade, um estado de morte do organismo;
a destruicáo do conjunto do sistema nervoso faz que os órgáos
caregam de regulagáo central; o corpo deixa de ser um todo
estruturado, para tomar-se urna justaposigáo de órgáos que
somente os meios artificiáis podem manter em estado de fun-
cionamento. Por conseguinte, o coma ultrapassado já nao é
realmente coma, visto que o coma propriamente dito nao sig-

— 262 —
HUMANIZAR A MORTE 35

nifica a extingáo da regulagáo do organismo, mas é principal


mente a perda prolongada do estado de consciéncia, perda
que pode ser transitoria (se se lhe aplicam os tratamentos
adequados). Sao notorios os casos de pessoas que, após sema
nas inteiras de coma profundo, voltaram a urna vida mais
ativa; em tais casos, como se compreende, as lesóes cerebrais
e neurológicas nao sao irreversíveis.

Comentando esta situagáo da medicina, observa milito a


propósito o Dr. J. P. Cachera um fato de que os estudiosos
se váo conscientizando cada vez mais:

"Os progressos da leanimacáo médica de certo modo diluíram o


momento da morle, que, á diferen;a do que se dava outrora, já nSo
aparece ao médico como um breve instante fácil de ser reconhecldo úni
camente por síntomas clínicos, mas, ao contrario, se apresenta como um
periodo de passagem de duracao variável e de limites oscilantes de um
estado para outro... Trata-se de definir os criterios atuais da morte,
sabendo que os de ontem tal vez já nSo sejam válidos e os de arrianhS
posslvelmente já nSo serio os de hoja" ("Dons d'organes et róanlmatlon
medícale", em "Réanimatlon et éthique medícale", p. 50).

5) Hoje em día, além dos tipos de coma até aqui apon-


tados, conhece-se o chamado coma irreversível. No coma
irreversivel há algo de ambiguo: as lesóes neurológicas graves
sao irreversíveis (o cerebro está definitivamente morto, sem
possibilidade de qualquer recuperagáo). Todavia algumas fun-
góes vegetativas se conservam; há respirado espontánea, dr-
culagáo próxima á regulagáo térmica no organismo... Estes
dados podem-se conservar durante meses e anos, desde que
se apliquem minuciosos cuidados a tal organismo. Entremen-
tes a familia do paciente vive geralmente um drama profundo:
os parentes acompanham día por dia durante seis meses, um
ano, dezoito meses... o enfermo, espreitando o mínimo sín
toma de reacáo positiva; vivem o conflito extenuante que
resulta de urna esperanza sem limites e do desejo (mais ou
menos traumatizante) de «acabar logo com tal situagáo».

Um ponto obscuro persiste no tocante ao coma irrever


sível; trata-se de averiguar quando as lesóes cerebrais sao
realmente irreversíveis,... quais os síntomas da irrecupera-
bilidade do cerebro e, por conseguinte, do caráter definitivo
do coma respectivo. — Em alguns casos, é possível averiguar
essa irreversibilidade simplesmente com olho clínico: urna
queda, urna contusáo podem de tal modo afetar o cerebro que
se torna evidente a irrecuperabilidade de tal órgáo. Na maio-
ria dos casos, porém, isto nao se dá. As lesóes cerebrais nao
sao fácilmente perceptíveis.

— 263 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

É precisamente sobre este fundo de cena que se coloca


o problema em sua configuragáo mais recente: nos casos de
dúvida a respeito da irreversibilidade das lesóes do cerebro,
estáo os médicos e familiares obrigados em consciéncia a apli
car ao enfermo ingentes e dispendiosos cuidados durante
meses e anos? — A resposta a esta pergunta é, sem dúvida,
negativa: basta o fato de só se poder entreter a vida de alguém
mediante recursos objetivamente tidos como extraordinarios
para que cesse o dever. moral de conservar tal vida. Nem
todo e qualquer trataménto médico é apropriado á situagio
de todo e qualquer doente; nao se faca do paciente um «objeto»
das técnicas médicas ou do «ativismo e da febre terapéuticos»,
diferindo a sua morte num combate exaustivo, mas de ante-
máo já decidido em favor da irrecuperabilidade. Está claro
que, para que o médico deixe de aplicar ao enfermo algum
recurso extraordinario, ele deve obter do próprio paciente (ou
dos familiares e responsáveis destes, se o enfermo nao pode
responder) o consentimento ou mesmo a ordem necessária
para desistir de trataménto extraordinario; se nao, o médico
se arriscará a cometer arbitrariedades ou procurar seguir o
seu alvitre mais cómodo... De resto, é muito difícil a um
médico saber qual o resultado dos tratamentos aplicáveis a
um paciente gravemente afetado; muitos processos terapéuti
cos modernos constituem um verdadeiro desafio, deixando o
médico inseguro a respeito do éxito dos mesmos. Convém,
pois, sempre levar em conta a proporgáo existente, em cada
caso, entre a aplicacáo de recursos humanos, financeiros, tec
nológicos, de um lado, e as probabilidades de se obter o éxito
almejado, de outro lado.

2. Humanizar a morte

Os casos de coma prolongado e ambiguo sao relativa


mente raros. A grande dificuldade será sempre a de definir
a hora precisa da morte e os casos de incondicional irreversi
bilidade das lesóes cerebrais. Em geral, porém, a constatacáo
da morte nao encontra dificuldades de grande monta. Muitas
vezes aquilo de que o paciente necessita, nao sao recursos
técnicos extraordinarios, mas, sim, cuidados e benevolencia
humanitarios. Para numerosas pessoas, o encaminhamento
para a morte vem a ser urna das crises mais penosas que
elas tenham jamáis atravessado. Donde a pergunta: será que
os familiares, amigos e a própria sociedade tomam realmente

— 264 —
HUMANIZAR A MORTE 37

a peito a tarefa de levar alivio aqueles que fazem a expe


riencia da caminhada para a morte ou, nuraa linguagem
crista, para a Casa do Pai?

É certo que se tomam providencias em favor de tais pes-


soas sofredoras. Mas parece falso dizer que nada mais há a
fazer neste particular. Examinemos, pois, o que se podería
preconizar em materia de atendimento aos enfermos próximos
da morte.

2.1. Solidáo

As vezes, mais do que custosos recursos técnicos, o


enfermo para quem a morte se torna uma realidade concreta
e iminente, deseja ser acompanhado, ouvido e sustentado por
uma presenca humana.

Sirva de testemunho uma carta dirigida por uma jovem


aluna de enfermagem as enfermeiras que a tratavam:

"Aínda tenho de um a seis meses de vida, talvez mesmo um ano...,


mas nlnguém gosta de abordar este assunto. Ve]o-me, portento, dlante de
um muro sólido e deserto, que é tudo quanto me resta. Sou o símbolo do
medo de voces, ... medo de algo que, apesar de tudo, todos sabemos
que teremos de enfrentar um día. Voces se Introduzem esguias no meu
quarto para me trazer remedios ou tomar a mlnha pressSo e se ecllpsam,
uma vez cumprlda a tarefa. Será que voces assím procedem porque sou
aluna de enfermagem ? Ou simplesmente é na quaildade de ser humano
que tenho consciéncia do medo de voces e sel que o seu medo aumenta
o meu ? De que é que voces tém medo ? Sou eu que estou a morrer. NSo
fujam. Tenham paciencia. Apenas necessito de saber que haverá alguém
para segurar-me a mSo quando eu precisar disto. Tenho medo. Talvez
voces já tenham superado o recelo da morte; mas, para mlm, ela é algo
de novo. Morrer é coisa que nunca até hoje me aconteceu" (citado por
Kübler-Ross em "Rencontre avec les mourants", conferencias publicadas
em "Górontologie" nn. 9, 10 e 11).

Em última análise, deve-se dizer que cada um vive


uma vida pessoal, individual, inconfundível com os currí-
culos de vida de outras pessoas; essa inconfundibilidade
faz que cada seg humano esteja cercado de uma solidáo
fundamental. O amor, as tarefas e as distragóes tendem a
atenuar tal solidáo e a fazé-la esquecer, principalmente en-
quanto a pessoa se pode relacionar normalmente com outras.
Todavia, aproximando-se a velhice ou a doenca, os relaciona-

— 265 —
38 «tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

mentos váo sendo. cortados e o ser humano se encontra de


novo brutalmente diante de si mesmo numa visáo cada vez
mais realista; essa impressáo de solidáo se aumenta ñas pro
ximidades da morte quando o paciente se vé diante da pers
pectiva de tudo perder e de ser arrancado aos seus entes
queridos. A angustia da solidáo ainda é intensificada quando
o enfermo verifica os dados novos que ocorrem no seu orga
nismo desfalecente: incapacidade de se mover, de se alimentar,
de controlar seus reflexos naturais, cansago e fraqueza exte
nuantes. ..; em suma, dá-se a experiencia do novo, do desco-
nhecido, do inquietante,'que prenunciam talvez novas prova-
cóes. Ora frente ao desconheddo cada um se senté só, terri-
velmente só; todavía aspira a nao ser solitario nem abandonado
pelos seus semelhantes; ele deseja com todas as fibras do seu
ser urna presenga amiga.

2.2. O despreparo para ajudar o paciente

Verifica-se que na realidade nem as pessoas nem as ins-


tituicóes hospitalares parecem estar adequadamente preparadas
para ajudar o paciente a vencer a sua solidáo. E isto por
mais de um motivo:

1) Muitas vezes, diante de um ser humano angustiado


ou moribundo a tecnología sugere medidas de ordem técnica
e mecánica que aliviem o sofrimento do paciente. Tais medi
das sao indispensáveis. Todavía podcm fazer esquecer as ati-
tudes mais simples e mais humanas da escuta paciente e da
disponibilidade humilde. Diante da morte próxima, o doente
espera da parte dos seus familiares e enfermeiros um rela-
cionamento interpessoal e nao meramente funcional ou pro-
fissioiíal.

A «obstinagáo terapéutica», que merece, por vezes, ser


encarada com reservas, pode ser precisamente o derivativo
que dispense ou impega o persoal atendente do hospital de
entrar em contato auténticamente humano com o enfermo;
tais recursos obstinados exigem as vezes a distancia entre o
doente e os seus familiares ou amigos; ora ninguém é mais
indicado para acompanhar um paciente do que os seus fami
liares estes náo.podem ser substituidos por técnicos (especia
listas, médicos, psicólogos...).

— 266 —
HUMANIZAR A MORTE 39

Os técnicos tém a fungáo de informar os familiares a


respeito da evolugáo da molestia do paciente. Os familiares
náp deveriam sonegar sistemáticamente ao enfermo a verdade
a respeito do seu estado de saúde, mas, ao contrario, tenderáo
a comunicá-la oportunamente ao interessado para que este se
disponha como ser humano e inteligente para o desenlace final,
e nao seja colhidó~pela morte como um animal. Pertence á
dignidade do ser humano saber que está morrendo e dar um
sentido, por sua livre disposigáo, a esse ato último (desde que
isto nao lhe seja impossível) K Sonegar ao paciente a verdade
ou mesmo incutir-lhe a crenca numa mentira significa cortar
as auténticas relacóes entre o doente e os seus familiares e
condená-lo a maior solidáo.

2) Observa-se que as familias, as vezes, se deixam aba


lar demais pelos sofrimentos de seus membros enfermos e,
por isto, se tornam incapazes de lhes prestar o devido auxilio
de sua presenca reconfortante.

3) Em outras ocasióes, os parentes rejeitaram o doente,


principalmente se idoso, abandonando-o no hospital ou na
clínica.

4) As vezes, nota-se também que o paciente nao tem


familiares nem amigos; é um indigente.

Nestes tres últimos casos, faltando por um motivo qual-


quer os familiares, o atendimento humano e benévolo do
enfermo fica a cargo dos capeláes e dos apostólos leigos que
em nome de Cristo visitam os doentes, ou também a cargo
dos técnicos que trabalham nos hospitais: médicos, enfermei-
ros, auxiliares de enfermagem, serventes...

Estes muitas vezes nao tém a plena no;áo da responsa-


bilidade humana que lhes toca; nao raro se desempenham de
suas obrigagóes profissionais com esmero técnico exclusiva
mente, como se se esquecessem de que sao pessoas a tratar
de pessoas. A técnica torna-se freqüentomente urna cortina e

i é certo que a prudencia recomenda sobriedade ao falar da molestia


ao doente. á preciso ás vezes que os Informantes preparen» o terreno e
aguardem o momento mals conveniente. Todavía nao delxem de tencionar
dlspor o paciente para que enfrente o seu desenlace final com a cons-
clencla esclarecida, como ser humano e nao como animal Irracional. Os
casos em que Isto nfio possa ser atingido, deverfio flcar sendo excecSes.

267 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

urna barreira entre o enfermo e os seus médicos ou enfer-


meiros. É mais fácil ministrar cuidados físicos, mesmo peno
sos, do que participar do sofrimento do enfermo. Quanto ao
doente mesmo, é por vezes tornado incapaz de se comunicar
com quem o cerca; a técnica corta a comunicagáo, como se
verifica era centros de reanimacáo de alta eficiencia, nos
quais o doente é amarrado, perfurado, ligado a aparemos
registradores..., de modo a só se poder comunicar precaria
mente mediante o olhar.

Refere o Dr. Philippe Deschamps o caso de «urna pa


ciente de 27 anos de idade, professora de Letras, que fora
subitáneamente parausada em sua caixa torácica; passou por
urna traqueotomia e permaneceu presa a um aparelho de res-
piragáo artificial durante semanas. Tinha apenas quinze mi
nutos diarios de independencia respiratoria. Escreveu-me entáo
sobre urna lousa: 'Nao se passava urna hora da noite ou do
dia sem que alguém do servigo entrasse em meu quarto, ano-
tasse alguns dados do aparelho registrador e os transcrevesse
no meu mapa de enfermidade1 (era um mapa imenso, que ela
tinha sempre ante os olhos e em que sua vida — aquilo a
que ela estava reduzida — estava descrita por algumas cur
vas; técnicamente era algo de perfeito). 'Se eu vi desfilar
urna multidáo de gente, nao encontrei pessoa alguma. Tenho
a impressáo de estar fora do circuito'. E, tendo de ser trans
portada para outro servigo de reanimagáo, escreveu ainda:
'Vou deixar urna prisáo luxuosa, certamente para entrar em
outra luxuosa prisáo...'; nesta, pouco tempo depois, ela fale-
ceu. Teria preferido experimentar um pouco de calor humano,
ser reconhedda como pessoa, como sujeito e objeto de rela-
cionamentos» (texto transcrito do artigo «La mort á l'hópi-
tal», em «Projet» 98, septembre-octobre 1975, p. 929).

Estas reflexóes nos levam a falar diretamente da figura de

2.3. O médico

O médico fica sendo, sob muitos aspectos, a figura cen


tral entre os responsáveis pelo hospital; a sua presenga junto
ao doente é insubstituível. Ora eis que geralmente a sociedade
confia ao médico únicamente urna fungáo técnica: curar, supri
mir a molestia, afastar a morte... Sendo assim, é «normal»
que o médico desaparega desde o momento em que «nada

— 268 —
HUMANIZAR A MORTE 41
■ ■

mais haja a fazer», ficando o paciente entregue quase exclu


sivamente as enfermeiras; o médico apenas de longe continua
a acompanhá-lo, quando na verdade lhe compete tentar redu-
zir o desconforto e a dor do paciente nao só mediante recur
sos técnicos, mas também através de suas palavras e de seus
gestos de benevolencia humana e crista. Quando a doenga já
nao é suscetível de tratamento, o sofrimento e a dor ainda
o sao.

É interessante a propósito o depoimento da Dra. Cicely


Saunders, diretora do «Saint-Christopher's Hospice» de Lon
dres:

"Para o médico, a dtficuldade de ficar em relaclonamento com o


doente incurável ou próximo da morte provém nio somonte do medo que
ele mesmo experimenta diante da morte, mas também, e multas vezes, da
sua incompetencia no tocante aos cuidados a administrar ao doente nessa
fase da molestia, é muito difícil abordar um doente em favor do qual
nada mais se pode fazer. Ora haveria sempre muita coisa por fazer. Por
¡sto tentamos formar os estudantes e os jovens médicos em relacSo ao
tratamento da dor e aos outros cuidados a ser ministrados aos que
estao perto da morte, de modo quei tomem consciéncia de que no plano
médico mesmo eles podem realizar muita coisa em prol desses doentes.
Tais conhecimentos Ihes daráo a confianca indispensável para que se
aproximem do doente incurável e o escutem" ("L.aénnec et Medecine de
l'homme", octobre 1975).

Mesmo em se tratando táo somente de aliviar dores cró


nicas, o bom relacionamento médico-enfermo é elemento indis
pensável. A doenga e a morte tém facetas diversas que estáo
intimamente ligadas entre si. Assim o sofrimento é urna rea-
lidade muito complexa; nao a podemos reduzir ao seu aspecto
neurofisiológico; por isto nenhum analgésico basta para supri-
mi-la adequadamente. Dor física, sofrimento moral e angus
tia estáo de tal modo entrelacados entre si que nao podem ser
considerados e aliviados «de per si», isoladamente. A menos
que se queira perturbar a personalidade do doente e renunciar
a salvaguardar a sua integridade intelectual e afetiva, a tera
péutica da dor nao se pode limitar á aplicagáo de drogas; ela
exige, da parte dos técnicos e dos próximos do enfermo, aten-
Cáo, ausculta e presenga.

Alias, se o médico sabe criar um clima de bom relacio


namento humano entre médico e paciente, se evita dar infor-
masóes erróneas e procura aproximar-se o mais possível da
verdade (na medida em que o doente é capaz de suportá-la),

— 269 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 198/1976

o próprio paciente irá aos poucos descobrindo a verdade no


tocante ao curso da sua molestia.

Seja lícito repetir: todo homem tem o direito de «viver


a sua morte». Seria anormal que o médico e os familiares
deixassem um paciente ser colhido pela morte como que «de
surpresa>. Todo homem, no fim da sua vida, tem o direito de
recapitular a sua existencia, e de fazer da sua morte um
passo de homem ou da sua personalidade; o paciente tem o
direito de ser ele mesriio até o fim. Está claro que essa ati-
tude há de ser promovida com discricáo, levando-se em conta
as disposicóes psicológicas do enfermo e a necessidade real de
se lhe ministrarem analgésicos e tranquilizantes (que costu-
mam atenuar a consciéncia psicológica).

Veja-se a propósito:

Alexandre Dorozynskl, "Comblen de temps peut-on faire survlvre un


homme ?". em "Sclence et Vle" 700, Janv. 1976, pp. 26-34.

Patrick Verspleren, "La mort et le mourlr a l'ére technologlque", em


"Pro|et" 98, sept.-oct. 1975, pp. 911-923.

Phillppa Deschamps, "La mort á Phopltal", Ib., pp. 924-933.

Marc Oralson, "L'euthanasle et le mystére de l'homme", em "Cahlers


LaSnnec" n? 4, décembre 1963, pp. 5-19.

Vlttorlo Marcozzl, "II cristiano di fronte alPeutanasla", em "La Civiltá


Cattollca" 3010, 15/XI/1975, pp. 322-336.

Mlchelle Gazet, "Le procés de Lulgl Faita et quelques journaux", em


"Cahlers Laennec". n? 4, décembre 1963, pp. 21-39.

J.-M. Blond, "Le sens de la souffrance et de la mort", Ib. 47-66.

PR 66/1963, pp. 235-246 (o "crlme misericordioso" de Suzana


Vandeput).

PR 137/1971, pp. 193-203 (quando é que alguém morre ?).

— 270 —
A MORTE DO CARDEAL DANIÉLOU 43

AÍNDA A MORTE DO CARDEAL JEAN DANIÉLOU

Sabe-se quanto as circunstancias em que faleceu aos


20/V/74 o Cardeal Jean Daniéiou, deram lugar a comentarios,
nem sempre fundamentados e objetivos. A propósito veja-se
PR 178/1974, pp. 405-408. As suspeitas maldosas que recaí-
ram sobre a pessoa do venerando prelado, foram sendo aos
poucos dissipadas por um exame mais preciso do caso: obser
vadores destituidos de preconceitos puseram-se a fazer a aná-
lise minuciosa dos acontecimentos; desse trabalho resultou,
entre outras, a declaracáo seguinte, datada de 22/TV/75 e
assinada pelo Pe. André Costes S. J., Provincial de Franca
da Companhia de Jesús, e pelo Prof. Henri I. Marrou, Pre
sidente da Sociedade dos Amigos do Cardeal Daniéiou. Publi
cando tal declaracáo em traducáo portuguesa, PR espera pres
tar servico aos seus leitores, contribuindo para que melhor
possam julgar o assunto.

"Após a publicacáo feita pelo Sr. Tournoux, no 'Journal


Secret', Plon, pp. 120-131, dos documentos da policía con-
cernentes á morte do Cardeal Daniéiou, julqamos necessário
trazer as precisSes seguintes, que permitem completar as
informacóes e sltuá-las em perspectiva exata.

No dominao 19 de malo, o Cardeal Daniéiou presidia em


Tréguler ao 'Perdáo de Santo Ivo' \ Por ocasiao da Missa
Solene. pregou durante vinte minutos, e ainda, por ocasiao
das Vésperas, durante quarenta minutos; ñas Vésperas, se
gundo um sacerdote de Tréguier, o Cardeal sentiu um mal-
-estar passageiro. Por ocasiao da longa procissáo até Minihy,
fez questáo de carregar pessoalmente o relicario que con-
tinha as reliquias de S. Ivo durante urna parte do trajeto,
apesar do cansago observado por um médico entáo presente.
Tomou o trem de volta para Paris, e chegou em casa aproxi
madamente á meia-noite.

Na seaunda-feira 20 de maio, depois de ter celebrado a


Missa ás 8 h, como de costume, passou a manhá em seu
escritorio a trabalhar e a receber visitas. Almocou num res
taurante da Praga 25 de agosto com o Professor Osborne, de
Queen's College, Melbourne. Levou-o, a seguir, á casa de
um professor da Sorbona, perto da estacáo de metro Duroc.
Depois de ter passado ás 14 h 30 min aproximadamente na
sede da revista "Études" (Rué Monsieur 15), onde apanhou

^Trata-se de tradicional festá local.

— 271 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

o seu correio, voltou á residencia (Rúa Notre-Dame-Des-


-Champs 39), onde entrou precisamente ás 15 h. Saiu de
novo ás 15 h 15 min, deixando a noticia de que voltaria
ás 17 h.

A Poiícia de Emergencia foi alertada ás 15 h 48 min por


um chamado de Madame Santoni, que morava no 4? andar
do predio da Rué Dulong 56, ao norte do Boulevard des
Batignolles : o Cardeal Daniélou, lá chegado entre 15 h 35 min
e 15 h 40 min, acabáva de ser acometido de mal-estar. Os
agentes da Poiícia chegaram poucos minutos depois do aviso.
Encontraram o Cardeal ainda em vida, mas inconsciente, tendo
a tez roxa. Abriram o vestuario para tentar a reanimacao — o
que foi continuado pelos bombeiros e pelo Servigo de Assis-
téncia Médica de Urgencia, que chegaram ás 16 h 07 min.
Em váo, porém. Cessaram as tentativas de reanimagáb ás
16 h 45 min. Alertado pelo comunicado do radio que ás
17 h anunciava o falecimento do Cardeal (note-se que a
mengao de morte na rúa, que apareceu em certos noticiarios,
nao emana das autoridades eclesiásticas), o Provincial de
Franga da Companhia de Jesús foi ao local com o Provincial
de París, seguindo-se-lhes em breve o Nuncio Apostólico.
Este asststiu á remogao do cadáver, que foi de novo levado
á sede de "Études" ás 18 h 10 min. Lá algumas Religiosas
da vizinhanga, logo chamadas, nao conseguiram realizar a
toalete fúnebre; o cadáver já eslava rígido.

Estes fatos sugerem as observagóes complementares


seguintes:

Entre o momento em que o Cardeal Daniélou saiu da


Rúa Notre-Dame-des-Champs e aquele em que Madame San
toni chamou a Poiícia de Emergencia, decorreram 33 minutos.
É evidente que nesse breve intervalo teve apenas o tempo
de fazer o referido trajeto, assaz longo, em pleno coragáo
de Paris, em hora de grande tráfego, e de cair no chao ao
chegar ao destino. A ni pótese segundo a qual o corpo teria
podido ser vestido de novo antes da chegada da Poiícia, é
desmentida por esse horario, como também qualquer malé
vola interpretagáo desse tipo de morte.

Madame Santoni, prostituta em um bar-hotel da Rúa de


Douai, nao exercia o seu mister em seu domicilio. O seu
marido, que devia ser condenado no dia 20 de julho como

— 272 —
A MORTE DO CARDEAL DANIÉLOU 45

proxeneta pela 12? Cámara Correctonal de Paris, fora preso


aos 17 de maio, isto é, tres dias antes da morte do Cardeal
Daniélou. Estaría em relagáo com essa prisáo a visita do
Cardeal a Madame Santoni, ocorrida logo depois que o pre
lado voltara de Tréguier? Sabe-se que o prelado conhecia
tal senhora desde algum tempo e que, segundo ela mesma
confessou, ele a procurava arrancar ao seu género de vida.
Tal hipótese é plausível. Como quer que seja, é certo que
naquela época ele dedicava parte do seu tempo a prostitutas
e mulheres postas em situagáo difícil. O testemunho dado
por urna délas, auxiliada pelo Cardeal, esclarece o sentido
desse tipo de ocupacáo. Mais amplamente, as pesquisas
que fizemos permiten) afirmar que as ¡nsinuacóes, ou seja, a
imputacáo de vida dupla, langadas a propósito desse rela-
cionamento apostólico, nao repousam sobre fundamento algum.

Desejamos acrescentar o seguinte: o Cardeal Daniélou


era intensamente sensível á realidade do combate espiritual.
Com pro mete ra-se por inteiro, com plena lucidez de conscién-
cia. Sabia que a condigáo fundamental para isto era a recusa
de qualquer compromisso com o mal. As suas obras e o
testemunho daqueles que melhor o conheceram, provam que
ele estava consciente do prego que devia estar pronto a
pagar para realizar essa vocacáo: até mesmo a perda da
própria reputagáo. Tal é para nos o sentido dessa morte
caluniada".

Táo.minucioso relatório dos fatos parece constituir o me


lhor fundamento para se interpretar a tragedia da morte do
Cardeal Daniélou. A figura deste prelado há de ser ilustrada
principalmente pela lucidez e a profundidade de seus escritos,
que revelam um espirito cheio de fé e de amor a Deus e ao
próximo. Esses escritos do Cardeal explicam bem o interesse
apostólico que o prelado tinha pelas pessoas marginalizadas
da sociedade. É próprio de um grande arauto de Cristo, cheio
de zelo e santidade, procurar ajudar tais pessoas, que geral-
mente sao reduzidas á condigáo de «coisas» e desprezadas pela
sociedade.

Estévao Bettencourt O.S.B.

— 273 —
Irnos em estante
Vivamos nosoa fé. Iniciado crista para adultos, preparada pela equipe
de "Publicaciones Pastorales Argentinas". Traducfio do espanhol e adapta-
cao por Lulz Carlos MagalhSes. — Ed. Paulinas, SSo Paulo 1976.
140 x 205 mm, 164 pp. .

Freqüentomente os fiéis católicos indagam a respeito de llvros que


aprosentem urna slntese da fé. Els mals uma obra desse tipo, proposta ¿
consideracfio dos estudiosos e do público.
Trata-se de compendio assaz sintético, que propSe o essenclal de
cada tema da teología, comecando pelo conceito de Deus e terminando
na escatoiogia; cada capitulo se abre com um texto bíblico e se encerra
com uma oracSo, Inclulndo perguntas para a reflexfio em grupo. Deve-se
observar, porém, que o llvro n6o fala do pecado original em parte alguma,
nem ao abordar a orlgem do mal, nem ao tratar do sacramento do Batismo
(cf pp 27-30; 122-125). O fato é assaz estranho; n§o se explica pela
Intencfio de sintetizar, pols em qualquer compendio da fé deveria haver
a exposicfio do que seja o pecado original no entender da Igreja de noje;
esta se manifestou a respeito, por exemplo, no Credo do Povo de Deus,
redigldo pelo S. Padre Paulo VI precisamente para que nSo houvesse mals
motivos de dúvldas por parte dos fiéis católicos. Verillca-se também que
os autores do llvro n§o menclonam o purgató:io, o qual constituí outro
artigo da fé católica; nfio o negam, mas simplesmente silenciam-no onde,
serla de esperar a mencSo do mesmo (cf. p. 156); também este fato é
Inexpllcável, se se levam em conta o Credo do Povo de Deus e a Tradigao

Os sabios leitores poderSo aproveitar tudo quanto de bom aprésente


o livro em foco, mas estarSo conscientes de suas lacunas. Pelo fato de
se tratar de agradável leltura, nfio se delxe de advertir que é incompleta.

Ética c:bta para um tempo de sécula-Izacao, por Bernhard Háring.


TraducSo de Ubenai Lacerda Fleury. Col. "Homem em questao" ri> 5. —
Ed. Paulinas, S8o Paulo 1976, 130 x 170 mm, 204 pp.

O Pe Bernardo HSrlng é conhecldo no Brasil por diversas obras de


Teología Moral, setor de sua espedalldade. Tem-se empenhado por renovar
a Teología Moral católica, questlonada em nossos dias por problemas que
a vida moderna coloca, e por correntes filosóficas heterogéneas. O presente
estudo é um fruto desse programa de trabal ho.
O autor expee brevemente o fenómeno da secuiarizacfio, Insplrando-se
na Constltulcáo "Gaudium et Spes" do Concilio do Vaticano II. Dal deduz
que a atengfio do teólogo católico há de levar em conta a nova problemá
tica lancada pelas circunstancias em que vive o crlstSo de nossos dias;
Importa, slm, testemunhar que o discípulo de Cristo cultiva a caridade
efellva a fustiga, a veracldade, a simpllcldade e mesmo a adoracSo de
Deus em espirito e verdade (cf. p. 90). Em suma, a ética crista se volta
para os afazeres temporals, nos quais crlstaos e nSo crlstaos se encontram
Uido a lado; é necessário que o Evangelho se faca especialmente presente
nos setores em que os nao crlstaos se encontram empenhados na cons-
trucSo da sociedade do século XX e da humanidade futura. O Pe Hárlng
se compraz em mostrar as diferencas entre o comportamento do cilstao no
passado e a conduta exigida por nossa época no tocante á política e as
relacdes da Igreja com o mundo, Nao há dúvida, é mister que os disc pulos
de Cristo abram os olhos para os problemas que hoje em día se eoloeam

— 274 —
LIVROS EM ESTANTE 47

para a humanidade; todavía ó para desejar que a Insistencia no desem-


penho dessa tarefa nSo os leve a desprezar o passado do Cristianismo com
seus valores essencials (oracao, consciéncla do significado transitorio dos
bens terrestres, esperanca na vitória final de Cristo sobre a desordem
desencadeada pelo pecado no mundo...). O Pe. Háring mantém-se em
posigSo de equilibrio; apola suas reilexdes em fatos históricos, que reve-
lam sua grande cultura.
O livro é útil; nSo contém casuística, mas conserva-se no plano da
reflexao.

Procuram-se pecadores, por Bernard Bro. TraducSo de M. Cecilia de


M. Duprat. Col. "Oracfio e Acao", Tercelra Serie — 10. — Ed. Paulinas
1976, 110 x 190 mm, 210 pp.

O sacramento da ConflssSo tem sido "maltratado" tanto em livros


como na prática. Reina certa confusao sobre o seu valor e a sua oportun!-
dade. A Igreja já se definlu a propósito, de tal modo que os fiéis que o
queiram se podem informar com clareza; cf. PR 175/1974, pp. 289-303.
Todavia tiá grande necessidade de livros de espirltualldade que aprofun-
dem as nocóes de pecado, penitencia e reconciliagao sacramental; vé-se
mais o lado jurídico ou o psicológico dessas realidades do que o seu
signiiicado teológico e típicamente cristáo. Justamente para amainar essa
ruga foi publicado o livro do Pe. Bro, que apresenta em termos claros e
vivos os conceitos fundamentáis atinentes á culpa, á misericordia de Deus
e ao sacramento da Penitencia. Analisa sinceramente as dlflculdades que
os fiéis encontram na freqüentacáo da ConfissSo sacramental: "Por que
se abiir a um homem ? Tenho sempre as mesmas faltas i Confesso-me
diretamente a Deus". Ilustra as nocdes de inferno e misericordia de Deus
e aponta como fazer exame de consciéncla, quando e como é oportuno
confessar-se, como repaiar as faltas, etc.
O livro é excelente nSo só pelo seu conteúdo teológico, mas também
pelos textos e episodios que cita, tirados da historia universal e da lite
ratura em geral.

Na busca de ser. A angustia de nao ser, por Hitarlo DIck. — Ed. Vozes,
Petrópolis 1976, 131 x 210 mm, 159 pp.

Este livro se origina do trabalho de Pastoral da juventude realizado


pelo autor no Rio de Janeiro. O Pe. Hilario fol realmente Incansável apos
tólo dos jovens durante os anos passados nesta cidade. As palestras e
as poesías que marcaram a sua acSo pastoral, acham-se englobadas nesse
livro, que, de um lado, carece de concatenacio rígida entre as suas partes,
mas, de outro lado, é rico de calor e vivencia humana; o Pe. Hilarlo sabe
falar aos jovens, comentando-lhes a Biblia e os acontecimentos da historia
de cada dia. O I ¡vi o é prefaclado por R. C. Barbleii, que dá testemunho
do autor da obra nestes te.mos: "Mostrel a pessoas sem vinculo religioso,
aínda no texto original, alguns parágrafos e textos deste livro. A reagSo
deles nSo me surpieendeu: todos quoiiam conhecé-lo, 'mesmo depois'
de sabé-lo sacerdote. Pensó eu que, na situacSo deles, teria cortamente, a
mesma reacao" (p. 6s).

A qualquer hora... a qualquer Idade, por E. M. Ménard. TraducSo


do francés por M. Cecilia de M. Duprat. — Ed. Paulinas, SSo Paulo 1976,
160x205mm, 133 pp.

— 275 —
48 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 198/1976

Fite livro é obra de um sacerdote que o termina, afirmando "ser


padre há mals de trlnta anos e jamáis ter-se arrependido de haver abracado
o sacerdocio" (p. 139).
Destlna-se aos Jovens e aos agentes da Pastoral das VocagSes, pols
tenclona apresentar a dlgnldade da vocagSo sacerdotal, segulndo de perto
textos do Novo Testamento, oportunamente comentados e Ilustrados. Ofe-
rece, pols, explanacoes bíblicas e reflexOes teológicas de valor. No flm do
livro, o autor considera problemas de atualidade como pobreza, celibato,
desapeqo... na vida sacerdotal. — Els urna obra clara e profunda, que
transmite convlccSo, alegría e entusiasmo pelo sacerdocio ministerial, é
para desejar que encontré ampia difusao.

Juventude e opcáo vocaclonal, peto Pe. Milton Paulo de Lacerda S. J.


ColegSo "Juventude e cresclmento na fé" — 3. — Ed. Paulinas, Sao Paulo
1976, 110 x 190 mm, 172 pp.

É este o quinto livro do Pe. Lacerda, tendo em vista, como os ante


riores, a Juventude, suas asplrac6es e seus problemas. O mestre, ¡á bas
tante experimentado, propSe reflexSes oportunas sobre disponlbllldade,
amor e comoromlsso, vocagSo (chamado de Deus), opcio (resposta do
jovem). psicología da graca, orlentagSo vocaclonal, etc. é com orazer que
o público ledor vé aumentar-se a bibliografía próprla para a Pastoral da
juventude, máxime puando orientada por seguras linhas teológicas e psi
cológicas. O presente livro é fruto de experiencia, destinado a frutificar
aínda mals copiosamente.

O que Deus unlu, por Hugo Wast. TradugSo de JoSo Herrero. — Edi-
cSo dos Secretariados Diocesanos das Vocag3es Sacerdotals de Brasilia
e Petrópolls, 1976, em 2? edigao revista e anotada, 130 x 180 mm, 300 pp.

Hugo Wast é o pseudónimo de Gustavo Martínez Zuvlrla, escritor


nascldo em Córdoba (Argentina) em 1883 e falecldo em 1962. Advogado
e professor de Economía na Unlversldade de Santa Fé (Argentina), foi
deputado federal e Ministro da Justlca e da Educagáo. é um dos escritores
arqentinos mals famosos do séc. XX; de algumas de suas novelas, como
"Flor de Pesseguelro", foram vendidos mals de 1.000 exemplares, tendo
sido varias délas traduzldas até em oito Ifnguas.
O presente livro é um romance..., nao, porém, romance de amor,
como o poderla Insinuar o titulo. P6e em relevo a grandeza da vida con
sagrada a Deus no sacerdocio ministerial ou no mostelro ou aínda no
casamento; mostra os lados belos da oragao, da penitencia e da vida
crista em geral. De manelra agradável, o autor comunica estima e entu
siasmo pelo servlgo a Deus, concorrendo para esclarecer o leitor em
questóes de esplritualidade e, particularmente, de vocagüo ou de opgSo
de vida.
A obra merece ser recomendada aos jovens e a todos quantos se
Interessam pelas vocagSes sacerdotals e religiosas. Pedidos e pagamentos
sejam dirigidos aos seguintes enderegos:

Pe. Vittorlo Lucchesl, Calxa postal 07-0661, 70.000 Brasilia (DF) ou


Pe. Jorge Facchin, Obra das VocagSes Sacerdotais, 25.840 Correas
(Petrópolls) RJ.

— 276 —
CURSO DE ATUALIZACÁO FILOSÓFICA
EM NIVEL DE PÓS-GRAOUAQÁO
DE 25/VII A 7/VIII/1976

TEMA GERAL: IDEOLOGÍA E FILOSOFÍA, COM AS SEGUINTES


ARTICULARES :

25 e 26 de julho :
ANÁLISE HISTÓRICO-CULTURAL DO CONCEITO DE IDEOLOGÍA
Prof. Dr. Sergio Cotta
Universidade de Roma — Italia

27 e 28 de julho:
LINGUAGEM IDEOLÓGICA E LINGUAGEM FILOSÓFICA
Prof. Dr. Carlos Huber S.l.
Pontificia Universidade Gregoriana de Roma

29 e 30 de julho :
A IDEOLOGÍA CIENTIFICISTA E TECNOCRÁTICA
Prof. Dr. Evandro Agazzi
Universidade de Genova — Italia

2 e 3 de agosto :
MARXISMO COMO FILOSOFÍA E IDEOLOGÍA
Prof. Dr. Alberto Caturelli
Universidade de Córdoba — Argentina

4 de agosto :
PRESENQA DE FREUD NA MITOLOGÍA SEXUAL CONTEMPORÁNEA
Ensaio sobre a génese das ideologias
Prof. Dr. Eduardo Abranches de Soveral
Universidade do Porto — Portugal

5 de agosto :
UNIVERSIDADE BRASILEIRA E FILOSOFÍA
Um especialista brasileiro

6 de agosto :
DIAGNOSE DAS INFLUENCIAS IDEOLÓGICAS NA ATUAL
UNIVERSIDADE LATINO-AMERICANA
Um especialista brasileiro

7 de agosto:
SINTESE CONCLUSIVA

Este curso de caráter intensivo será realizado pelo Conjunto de Pesquisa


Filosófica, patrocinado pela Companhia de Jesús, tendo a colaboracSo da
AssoclacSo Latino-Americana de Filósofos Católicos e de outras entidades
culturáis. O local do curso será : Via Anhanguera, Km 26, S5o Paulo, SP,
Campus das Faculdades Anchieta, dos Padres Jesuítas. As InformacSes
quanto as condicSes de inscricSo, objetivos e hospedagem podem ser obtl-
das visitando pessoalmente a sede do Conjunto de Pesquisa Filosófica no
Km. 26 da Via Anhanguera, telefonando (tel.: 260-7680) ou entSo escre-
vendo á Diretoria do Curso (Caixa Postal 11.587 — 01000 SSo Paulo, SP).
ENTREGO-ME A TI1

SENHOR,

FAZE DE MIM O QUE QUISERES.

NAO PRETENDO REGATEAR.

NAO IMPONHO CONDICÓES,

NEM TENCIONO VER AONDE ME LEVARÁS.

SEREI SIMPLESMENTE AQUILO QUE TU QUISERES.

E NAO DIGO QUE TE SEGUIREI PARA TODA PARTE,

PORQUE SOU FRACO;

TODAVÍA ENTREGO-ME A TI

PARA QUE ME LEVES AONDE QUEIRAS I

Cardeal Newman

(tradugao livre)

1 Ver nosso editorial pp. 229-230.

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