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ERA DIGITAL: O CONHECIMENTO EM AÇÃO

ERA DIGITAL

O conhecimento
em ação
A
gestão do conhecimento é um campo em rápida evolução. Con-
ceitos e teorias foram criados por autores identificados com várias
especializações e já há notícias de vários projetos implementados
com sucesso, no exterior e no Brasil. De fato, muitas empresas realizam uma
infindável lista de atividades relacionadas à gestão do conhecimento. Suas
iniciativas, porém, padecem de três defeitos: baixa sintonia entre as ações,
pouca ou nenhuma vinculação com os objetivos estratégicos e ausência de
controle de resultados. Falta-lhes um modelo geral para a gestão do conheci-
mento. É essa lacuna que procuramos preencher neste artigo.

por Jean Jacques Salim FGV-EAESP

Imaginemos os seguintes cenários: grupo, para dedicar-me com exclusividade às ações sociais
Cenário 1. O Sr. Antônio Ermírio de Moraes convoca os e a escrever peças de teatro...”.
membros do Conselho da Votorantim para uma reunião
extraordinária a fim de anunciar uma decisão da maior im- Cenário 2. Alguns especialistas em programas de computa-
portância: “Comunico, em caráter pessoal e irrevogável, dor, que há anos trabalham para a Microsoft, um dia so-
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que deixarei imediatamente as funções de presidente do frem um surto de amnésia. Não se lembram de mais nada:

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quem são, de onde vieram ou para onde vão, que dirá dos metade da década passada também está presente na agenda
códigos e senhas de acesso aos softwares que a empresa de acadêmicos e da comunidade empresarial.
planejava lançar em breve no mercado! Se estamos todos conscientes de que vivemos em uma
nova sociedade, em perene mudança, cada vez mais
Cenário 3. Os dirigentes de uma tradicional indústria bra- globalizada e competitiva, cabe investigar quais foram os pro-
sileira reúnem-se em um seminário, às voltas com um gressos alcançados pelas organizações na gestão do conheci-
tema de prioridade máxima: o que fazer diante do avan- mento, mapeando também os principais entraves por elas
ço do principal concorrente, que acaba de fechar uma encontrados. Nossa experiência de cinco anos de trabalho
aliança com o maior fabricante estrangeiro do ramo, vi- em situações de treinamento e de consultoria permite-nos
sando sobretudo à transferência de know-how e acesso a recomendar um modelo geral capaz de servir de guia ao pla-
novas tecnologias? nejamento, implementação e monitoramento para as organi-
O que esses cenários têm em comum? De imediato, de- zações que ainda não acharam o caminho.
duzimos que uma grande reviravolta, de conseqüências pre-
visíveis e funestas, estará ocorrendo nas vidas confortáveis Progressos alcançados. Os projetos de gestão do
dos administradores dessas empresas. Contudo, o menos conhecimento têm sido lançados por muitas empresas. Os
óbvio e mais importante é que nas três situações descobre- casos mais bem-sucedidos costumam estar associados a
se, repentinamente, que o conhecimento, no sentido amplo multinacionais sofisticadas e de grande porte, organiza-
da palavra, é um recurso de valor estratégico para as organi- ções de serviços altamente especializados e empresas in-
zações. Embora os gestores dependam dele o tempo todo, tensivas em inovação e tecnologia de ponta. Mas também
nem sempre se dão conta de que é preciso valorizá-lo ade- há várias entidades brasileiras que têm demonstrado ini-
quadamente, mapeá-lo na medida certa, compartilhá-lo com ciativa, criatividade e progressos satisfatórios nesse cam-
inteligência... administrá-lo, enfim. po, dentre as quais a Natura, a Petrobrás, a Promon, a
Foi por razões parecidas com essas que a gestão do Embrapa e o Banco do Brasil.
conhecimento, Knowledge Management, ou simplesmente De fato, parece que estamos esgotando a etapa inaugural
KM, transformou-se em tema recorrente de livros, revistas, da discussão de conceitos, para entrar de forma mais genera-
congressos, cursos, sites e seminários. Desde a segunda lizada na fase da experimentação. Acreditamos que a impre-
cisão inicial na definição de expressões como “capital inte-
lectual”, “ativos intangíveis” e “ativos ocultos” é questão su-
perada. Hoje estamos mais interessados em executar a gestão
do conhecimento de modo consistente, simples e adequado
ao perfil da organização.
Um dos focos atuais de dificuldade decorre da forma
como surgiu a literatura da área. Os primeiros livros publica-
dos não nasceram de investigações criteriosas, com a finali-
dade de compreender o que estava ocorrendo no mundo
dos negócios e de apresentar uma “teoria” sobre a natureza
das mudanças. É certo que os sinais da economia do conhe-
cimento já haviam sido captados bem antes por autores con-
sagrados como Peter Drucker e Alvin Toffler, mas foram as
publicações de cunho jornalístico que incendiaram o inte-
resse, como duas reportagens de capa da revista Fortune:
“Brainpower” (1991) e “Intellectual Capital” (1994), escritas
por Thomas Stewart.

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Agora que as noções sobre a gestão do conhecimento cação, surge outra constatação: as ditas iniciativas de KM dis-
adensaram-se e se expandiram, trabalhos teóricos robustos tribuíam-se pelas quatro dimensões de forma desigual, con-
foram gerados e lições extraídas dos erros do passado ajuda- firmando o que foi dito antes, de que se tratava de esforços
ram a reduzir dificuldades de compreensão, é a vez de ven- dispersos, assistemáticos e sem controle formal.
cer os obstáculos operacionais. O que sugerimos agora é uma extensão aprimorada des-
se modelo. Inicia-se com a definição de objetivos e a
O modelo proposto. Consideremos então o seguinte institucionalização de mecanismos de monitoramento. Sua
ponto-chave: os gestores somente podem desenvolver uma estrutura assenta-se em cinco processos: (1) mapear; (2) ge-
abordagem integrada de KM se conseguirem, em primeiro rar; (3) disseminar; (4) usar e assimilar; e (5) manter conhe-
lugar, dispor de uma moldura conceitual que lhes permita cimento (confira a Figura abaixo). Vejamos como se caracte-
visualizar o circuito a ser percorrido para, depois, avaliar riza cada elemento:
sua situação atual e traçar um plano de metas a serem
alcançadas no futuro. O cuidado com os aspectos estratégi-
cos e operacionais, a clareza de linguagem e a utilização de
mecanismos de feedback para acompanhar o progresso das (1)
iniciativas são outros itens importantes para a elaboração MAPEAR
do esquema. Cabe também considerar que a gestão do co-


nhecimento é uma área multidisciplinar por definição, guar-



dando intimidade com iniciativas nos âmbitos de treina-


(5) (2)


mento e desenvolvimento, tecnologia de informação, e pes- ○○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○


MANTER ○ ○
GERAR

○ ○

quisa e desenvolvimento.


○ ○


○ ○

Em inúmeras ocasiões solicitamos aos participantes de ○ ○



○ ○


nossos workshops que arrolassem em uma folha de papel o ○ ○



○ ○



maior número possível de iniciativas que, praticadas em suas
empresas, poderiam ser relacionadas à gestão do conheci- (4) (3)
mento. As listas produzidas quase sempre surpreendiam pela USAR/ DISSEMINAR
ASSIMILAR
quantidade e diversidade de ações. Fazíamos, então, a per-
gunta incômoda: podemos considerar tais organizações pra-
ticantes da gestão do conhecimento? Depois da natural hesi- Figura – Os Cinco Processos do Modelo de Gestão do Conhecimento

tação, a resposta geral era “não”. E por que “não”? Após al-
guns instantes de reflexão, as justificativas convergiam para Fixar objetivos e monitorar o progresso. Uma
os mesmos pontos: primeiro, porque os esforços não eram vez convencidos da importância estratégica do conhecimento
sistemáticos e intencionais; segundo, porque parecia haver para a sobrevivência e competitividade da empresa, os gesto-
uma grande redundância de atividades, espalhadas no tem- res devem assegurar-se de que o uso e a difusão desse capital
po e sem conexão; terceiro, porque não havia mecanismos sejam tratados de modo objetivo. Da mesma forma que ne-
formais de estabelecimento de metas nem de avaliação de nhum administrador responsável admitiria deixar os recursos
resultados, apenas a implementação. financeiros ou os ativos imobilizados da organização ao acaso,
Propúnhamos, então, que os participantes visualizassem o conhecimento, para produzir frutos, precisa ser planejado,
a gestão do conhecimento de acordo com um sistema circu- identificado, adquirido ou desenvolvido, inventariado, avalia-
lar e seqüencial, que contempla quatro dimensões funda- do e preservado. É preciso formular uma política geral, traçar
mentais: gerar, codificar, disseminar e assimilar conhecimentos. objetivos e desenvolver uma “contabilidade” para o conheci-
Isso já era suficiente para servir de referencial e para classifi- mento, de modo que haja consistência com a visão, os valores,
car em categorias as atividades inventariadas. Feita a classifi- a missão e demais metas operacionais da empresa.

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Mapear conhecimento. Toda organização dispõe de nhecimento não for usado e absorvido amplamente por
uma base de conhecimento. A conhecida frase “ah, se sou- todos os segmentos da organização. É aqui que se observa a
béssemos o que sabemos” resume a importância de serem gestão do conhecimento em ação. Porém, tanto do ponto
criados mecanismos e incentivos para dar visibilidade aos de vista individual quanto organizacional, há uma grande
conhecimentos possuídos pelas pessoas, imersos nos di- diferença entre adquirir conhecimentos e aplicá-los efetiva-
versos subsistemas e nas redes externas. Saber onde encon- mente. As resistências podem ser atenuadas se for dada aten-
trar aquilo de que se precisa, de forma rápida e eficiente, ção a aspectos técnicos de acesso ao conhecimento, a ques-
pode ser mais importante do que acumular informações, tões culturais e psicológicas, até mesmo a impedimentos
sobretudo nestes tempos de conectividade em tempo real e relacionados ao processo de aprendizagem (assimilação).
em escala global.
Manter conhecimento. Recurso em permanente mo-
Gerar conhecimento. Esse processo compreende tanto dificação, o conhecimento fica obsoleto se não for reciclado,
a aquisição externa de conhecimento, quanto sua produção perde-se nos sistemas de armazenamento se não for regis-
interna deliberada. Há muitos tipos de conhecimentos que trado, torna-se indisponível quando cessam as parcerias ou
as empresas podem comprar no mercado ou mesmo obter quando os funcionários saem da empresa. Há conhecimen-
livremente, em vez de tentar reinventar a roda. Por outro to impossível de ser codificado e também aquele cujo regis-
lado, criar conhecimento que ainda não existe dentro ou fora tro é inconveniente, por razões de proteção, custo ou tem-
po. Em contrapartida, as tecnologias recentes
para triagem, armazenagem e recuperação de
Criar conhecimento que ainda não informações estão cada vez mais potentes e
acessíveis.
existe dentro ou fora da empresa
Fatores críticos para o sucesso. A ges-
constitui uma das formas mais eficazes tão do conhecimento é uma forma de dar co-
erência e direção a um amplo conjunto de in-
de se obter vantagens competitivas. tervenções organizacionais: para isso, requer
um modelo conceitual, que pode se assentar
da organização constitui uma das formas mais eficazes de em diferentes premissas. Nossa experiência sugere que o
obter vantagens competitivas. Em ambos os casos, como na formato clássico – formulação de objetivos ou metas, im-
tradicional opção entre fabricar versus comprar/terceirizar, re- plementação e monitoramento – é um bom guia. Os cinco
quer-se a avaliação dos efeitos econômicos e estratégicos. processos sugeridos podem ser implementados a partir de
um conjunto de ações, aqui chamados de oportunidades,
Disseminar conhecimento. O desenvolvimento das tec- enquanto nos mantemos atentos para as dificuldades cor-
nologias de informação e telecomunicações oferece muitas opor- respondentes. O Quadro ao lado dá uma idéia de como
tunidades para a difusão do conhecimento, mas as transferên- relacionar esses itens.
cias de informações entre pessoas, entre escalões diferentes e Por fim, devemos lembrar que “conhecimento” é um
de uma área funcional para outra continuam sendo os grandes vocábulo escorregadio. Para fins práticos, sugerimos que o
desafios. As barreiras ao intercâmbio irrestrito são dos mais empreguemos de maneira ampla, abarcando habilidades,
variados, envolvendo desde questões de poder e motivação competências técnicas, experiência, atitudes e até mesmo
até empecilhos relacionados à hierarquia e infra-estrutura. informações estruturadas. Se for conveniente desdobrá-lo em
categorias, recomendamos as seguintes: saberes gerais – re-
Assimilar e aplicar conhecimento. Todo o esforço pertório de conceitos, teorias e instruções normalmente ob-
despendido nos módulos anteriores será em vão se o co- tidos por meio da educação formal –; saber fazer – habilida-

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Quadro: Processos, oportunidades e dificuldades em projetos de gestão do


conhecimento
PROCESSOS OPORTUNIDADES DIFICULDADES
(1) Mapear conhecimento Guia “páginas amarelas” de especialistas; Desnível de formação e experiências dos funcionários;
Mapas ou árvores ou bases de conhecimento; Explicitação da ignorância;
Estímulo a agentes informais; As pessoas mais informadas poderão se sentir
Projetos de benchmarking; “exploradas”;
Construção de Intranet e portais corporativos. Risco de perda de controle sobre informações
sigilosas ou estratégicas.
(2) Gerar conhecimento Recrutamento de pessoas; Reações defensivas ao conhecimento novo
Consultorias especializadas; ou de fora;
Investimentos em T&D; Baixo grau de absorção do conhecimento
Investimentos em P&D; de especialistas;
Apoio a institutos de pesquisa; Clima pouco favorável à criatividade e à
Parcerias e alianças; experimentação;
Workshops com clientes. Sobrecarga de trabalho.
(3) Disseminar conhecimento Espaços de convivência: feiras, seminários, reu- Barreiras individuais e culturais;
niões, cantinas, happy-hours, salas de estudo etc. Clima de desconfiança;
Redes de conhecimentos; Rigidez da hierarquia;
Comunidades de prática; Possibilidade de vazamento de informação
Educação corporativa; confidencial;
Atividades de mentoria e coaching. Excesso de formalismo nas relações interpessoais.
(4) Assimilar/Aplicar On-the-job training; Baixa tolerância ao erro;
conhecimento Trabalhos por projetos; Autoritarismo;
Estímulo ao empreendedorismo; Apego à rotina;
Educação continuada (ensinar, aprender Fontes de informação pouco estruturadas ou
a aprender e a desaprender); difíceis de acessar;
Learning space; Dificuldades de aprendizagem.
Estações de trabalho amigáveis.
(5) Manter conhecimento Retenção de talentos; Planos de demissão voluntária;
Preparação de substitutos; Perda de conhecimentos quando terminam as co-
Gerenciamento de arquivos; operações;
Gerenciamento de documentos; Ambiente de trabalho pouco desafiador;
Banco de lições aprendidas; Poucas oportunidades de aprendizagem;
Biblioteca e videoteca; Falta de reconhecimento e apoio.
Memória institucional: vídeos, livros, cases.

des básicas, específicas e de gestão normalmente desenvolvi- espírito democrático, tolerância ao erro, oportunidades de
das com a experiência e a prática – e saber agir – conjunto de aprendizagem e desenvolvimento, estímulos à responsabili-
valores, crenças e modelos mentais construídos ao longo da dade, à criatividade, à espontaneidade e à autonomia. Equi-
vida, porém mais difíceis de mudar. vale dizer que são necessários novos princípios de organiza-
Diferentemente dos recursos tradicionais – dinheiro e ção – uma espécie de cidadania organizacional. Conhecimen-
máquinas, força física e recursos naturais –, o conhecimento to, outra vez entendido no sentido amplo e para as finalida-
tende a desenvolver-se, ser compartilhado e dar frutos em des organizacionais, diz respeito a pessoas, estruturas e tec-
ambientes favoráveis, onde devem ser cultivados valores como nologias. Achar o equilíbrio adequado entre esses elementos
confiança mútua, abertura para a pluralidade de opiniões, pode ser difícil, mas é fundamental.

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