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PLENARIUM

SUMÁRIO
4 APRESENTAÇÃO
5 EDITORIAL
8 ENTREVISTA
Dom Paulo Evaristo Arns
EM FOCO - Poder Legislativo & Democracia Contemporânea
26 1. A Reforma do Poder Legislativo no Brasil - Fabiano Santos
41 2. Modelos de Legislativo: O Legislativo Brasileiro em Perspectiva - Fernando
Limongi / Argelina Cheibud Figueiredo
57 3. Representação e Democracia no Cone Sul - Carlos Ranulfo Melo / Fátima Anastasia
78 4. Parlamento Transnacinal e Integração: A Experiência do Parlamento Europeu e as Li-
gações que a América Latina tem para o Mercosul - Susanne Gratius / Delfet Nolte
98 5. Fragilidade da Democracia no Parlamento Contemporâneo - Bonifácio de Andrada
112 6. Processos de Integração dos Legislativos no Mercosul - Gustavo Fruet
115 7. Política, Parlamento, Democracia - Mauro Santayana
123 8. O Impacto da Reforma Política sobre a Câmara Federal - David Fleischer
142 9. A Câmara dos Deputados e a Democracia Brasileira no Séc. XXI - João Paulo Cunha
152 10.Sobre a Reforma Política - Arlindo Chinaglia / Athos Pereira
OLHAR EXTERNO
162 1. A Segunda Década da América do Norte - Robert A. Pastor
T
PENSAR
174 1. A Armadilha do DLSP/PIB - Antonio Delfim Netto
180 2. O Desafio da Geração de Trabalho - Ariosto Holanda
IDÉIAS & LEIS
188 1. Estatudo do Idoso - Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.
210 2. Vida Nova para os Idosos - Paulo Paim
215 3. O Acesso do Idoso ao Judiciário - Fátima Nancy Andrighi
PALAVRAS E HISTÓRIA
220 1. Os Profetas do Amanhã - Discurso de Abertura da Assembléia Nacional Cons-
tituinte de 1987/1988 - Ulysses Guimarães
228 2. Receita Tropicalista de Constituição pelo Mestre Constituinte Ulysses Silveira
Guimarães - Luiz Gutemberg
IMAGEM HISTÓRICA
236 Foto de Arsênio da Silva por PedroVasques
240 PERFIL - Carlota Pereira de Queirós, por Ricardo Oriá
248 CHARGE - Bordalo Pinheiro, por Paulo Caruso
250 FOLCLORE POLíTICO - Sebastião Nery
256 LEITURAS - Alca: O Gigante e os Anões, por Paulo Roberto de Almeida
PLENARIUM

MESA DA CÂMARA SECOM CONSELHO EDITORIAL


Márcio Marques de Araújo
PRESIDENTE DIRETOR
João Paulo Cunha Jorge Henrique Cartaxo
Márcio Marques de Araújo Ricardo Oriá
1º VICE PRESIDENTE
DIVULGAÇÃO Paulo Roberto Almeida
Inocêncio Oliveira
Mauro Di Deus Carlos Henrique Cardim
2º VICE PRESIDENTE
Fabiano Santos
Luiz Piauhylino RELAÇÕES PÚBLICAS
David Fleischer
1º SECRETÁRIO Sílvia Mergulhão Athos Pereira
Geddel Vieira Lima RÁDIO CÂMARA Valter Costa Porto
2º SECRETÁRIO
Humberto Martins Luiz Alberto Moniz Bandeira
Severino Cavalcanti
3º SECRETÁRIO TV CÂMARA DIRETOR
Nilton Capixaba Sueli Navarro Jorge Henrique Cartaxo
4º SECRETÁRIO AGÊNCIA CÂMARA (61) 216 1803
Ciro Nogueira Paulo César Santos APOIO
SUPLENTES
Gonzaga Patriota COORDENADOR DE JORNALISMO Heloísa Pinheiro
Wilson Santos Cid Queiroz (61) 216 1805
Confúcio Moura e João Caldas JORNAL DA CÂMARA Thaís Alves de Lima
PROCURADORIA PARLAMENTAR Roberto Seabra (61) 216 1805
Luiz Antônio Fleury
DIAGRAMAÇÃO/ILUSTRAÇÃO
OUVIDORIA PARLAMENTAR
Luciano Zica Jonatas Bonach / Wagner Castro
DIRETOR GERAL TRADUÇÕES
Sérgio Sampaio Contreiras de Sérgio Bath
Almeida
CAPA
SECRETÁRIO-GERAL DA MESA
Mozart Vianna de Paiva Ely Borges - Sedes do Poder
Legislativo no Brasil
FOTO E ARTE SOBRE FOTO
Edy Ferreira / Agência Estado
REVISÃO
Mônica Mulser Parada
ENDEREÇO ELETRÔNICO

revistaplenarium@camara.gov.br
Câmara dos Deputados, Secretaria de Comunicão, Praça do Três Poderes / Brasília - DF - CEP: 70.160-900 TELEFONE
(61) 216 1803 / 216 1810
APRESENTAÇÃO
ENTREVISTA

Talvez o maior desafio de uma política de comunicação para a Câmara dos Deputados
seja equacionar a dissintonia entre a crescente importância do Poder Legislativo brasileiro
na estabilidade institucional e na legitimação de políticas públicas governamentais, e a
não percepção desse valor, de forma explícita e contínua, pelo conjunto da sociedade
brasileira.

Um olhar mais exigente poderá observar que esse problema, de certa forma, se dá
na maioria dos países ocidentais, consideradas as nuances políticas, culturais, jurídicas
e conjunturais de cada nação. Essa aparente ausência de identidade dos Parlamentos é,
certamente, uma das conseqüências da crise do estado-nação contemporâneo, em que a
globalização constitui sua expressão jornalística mais bem acabada.

Daí o conjunto de reformas estruturais que se verificam em todos os continentes,


sugerindo, inclusive, uma releitura do papel dos legislativos nacionais. Instrumentos
jurídicos consagrados no século XX são hoje revistos e readaptados aos desafios sociais,
tecnológicos e econômicos contemporâneos. Se na Europa, existe o Parlamento Europeu,
na América Latina, apesar das institucionalidades distintas, foram criados o Parlamento
Latino-Americano (Parlatino), o Parlamento Centro-Americano (Parlandino), e já surgem
algumas discussões em torno de um futuro Parlamento do Mercosul.

É com essa percepção que temos procurado estimular o trabalho dos nossos veículos de
comunicação na Secom – televisão, rádio, jornal e agência - e foi com essa inspiração que
percebemos a necessidade de se ter, na Casa, uma publicação de referência. A PLENARIUM,
em boa hora, vem se somar aos nossos instrumentos de comunicação, agregando à nossa
tarefa uma atribuição a mais: a de trazer, de forma sistemática e orgânica, a reflexão da
academia, dos pesquisadores e da inteligência nacionais para os debates que a sociedade
brasileira, por meio dos seus representantes, remete para a Câmara dos Deputados. E, claro, é
importante sublinhar, PLENARIUM será, sobretudo, mais um espaço para os parlamentares
e servidores da Casa contribuírem para esse instigante desafio do nosso tempo que é o debate
para a construção do futuro.

Certamente, não será nessa publicação que iremos equacionar e documentar os


desafios que nos despertam, a cada dia, esses tempos de grandes transformações. Mas
estamos seguros de que oferecemos ao Poder Legislativo e ao País uma publicação que será
uma referência no mercado editorial brasileiro, estimulando a participação e a presença dos
centros de excelência brasileiros nos temas que animam as atribuições e responsabilidades
institucionais e constitucionais da Câmara dos Deputados.

Márcio Marques de Araújo


Diretor da SECOM
EDITORIAL
DOM PAULO EVARISTO ARNS

Dotar a Secretaria de Comunicação da Câmara dos Deputados de uma publicação


periódica de referência. De forma objetiva, foi essa a tarefa que o Diretor da SECOM, Márcio
Araújo, me confiou ao convidar-me para integrar sua equipe, no início de 2003.

Para definir e conceber esse projeto editorial, considerando as especificidades da


nossa instituição, trabalhamos com o seguinte conceito: PLENARIUM terá como objetivo
central divulgar, documentar e estimular a reflexão sobre os desafios contemporâneos
que a sociedade brasileira remete ao Poder Legislativo. Dessa forma, a nova publicação
abrigaria textos e ensaios, não apenas dos parlamentares, dos técnicos e consultores do Poder
Legislativo, mas, sobretudo, dos pesquisadores da academia e dos centros de excelências de
todo o País.

Diante da profusão de assuntos que integram a pauta do Congresso Nacional,


prevaleceu o entendimento de que cada edição abordaria um tema dominante, que se
buscaria aprofundar com os textos e reflexões de vários especialistas. Nesse primeiro número
tratamos, em dez ensaios, do Poder Legislativo na Democracia Contemporânea. Além da
reforma política que está sendo discutida no Congresso Nacional, a globalização e a criação
dos blocos regionais estão impondo uma redefinição do papel dos estados nacionais, com
grande repercussão nas atribuições e funções dos legislativos em todo o mundo.

A definição desse conceito nos remeteu a uma outra reflexão: PLENARIUM precisava
ter uma singularidade, uma identidade própria, algo que fosse a marca da sua origem.
Seria insuficiente, ainda que plenamente justificável, uma publicação apenas temática. A
reprodução difusa das experiências – muitas, extraordinárias –, das publicações regulares
existentes em vários departamentos universitários, não acolheria a dimensão que um
periódico de referência, editado pela Câmara dos Deputados, necessariamente deve ter.

Assim, além do tema principal, acrescentamos uma série de seções com o objetivo
de construir a identidade que buscamos. A primeira seção constará de uma entrevista.
Mas não a entrevista clássica, jornalística e conjuntural. Inspiramo-nos na experiência da
Documentation Française, que sempre convida uma figura importante da história da França
para uma reunião com jornalistas e estudiosos da vida e/ou da época do entrevistado,
para juntos fazerem uma reflexão sobre o personagem e sua obra. Esse primeiro número da
PLENARIUM traz a figura extraordinária de Dom Paulo Evaristo Arns.

Com o objetivo de não engessar o espaço editorial da revista, subordinando todos os


ensaios ao tema central, percebemos que seria importante uma outra seção que acolhesse
também textos com temas livres. O relator de um projeto importante, o líder de uma bancada,
o presidente de uma Comissão, um pesquisador, um servidor do Congresso, enfim, qualquer
personalidade que se interesse em dividir com a Casa a complexidade de determinado tema
será plenamente atendido nesse espaço de expressão, ainda que seu texto não se enquadre
no tema central da edição. Nesse primeiro número publicamos ensaios dos deputados Defim
Netto e Ariosto Holanda.

Incluímos, também, a publicação de um texto de um pesquisador estrangeiro, inédito


ou não, cujo tema de alguma forma enriqueça o nosso debate. Esse espaço deve acolher,
ainda, as reflexões dos brasileiros que estão no exterior, a estudo ou a trabalho. A experiência
e o olhar dessas pessoas, nesse momento de grandes e rápidas transformações no cenário
brasileiro, constituem-se numa importante contribuição aos que dele fazem parte. Nessa
primeira edição, apresentamos um texto do professor americano Robert Pastor.

Como a Câmara dos Deputados é sobretudo a “Casa das Leis”, achamos ainda que
seria interessante a publicação comentada de uma lei, em cada edição da PLENARIUM.
Dessa vez, trazemos o Estatuto do Idoso, com as observações do senador Paulo Paim, autor
do projeto, e da ministra do STJ, Fátima Nancy Andrighi. Da mesma forma, pretendemos
publicar e comentar o Estatuto do Desarmamento, a Lei de Falências, o novo Código das
Águas, entre outros.

Como dispomos de um acervo extraordinário de documentos e imagens, onde estão


guardadas todas as falas importantes da história do nosso Parlamento e, de certa forma,
da história política do Brasil e, ainda, podemos e devemos estabelecer uma conexão com
os demais acervos do País, percebemos aqui uma rica oportunidade de se contribuir para
o resgate do papel de grandes atores e momentos específicos da construção da Nação
brasileira. Com esse objetivo, foram criadas outras cinco seções na PLENARIUM.

A primeira delas resgatará os grandes pronunciamentos da nossa história, devidamente


comentados por personalidades à altura do desafio. Nessa edição, publicamos o discurso
do ex-deputado Ulysses Guimarães na solenidade de instalação da Assembléia Nacional
Constituinte de 1987-88. A fala do emblemático parlamentar paulista é analisada pelo
jornalista Luiz Gutemberg. Com o mesmo objetivo, traremos sempre o perfil de um
personagem destacado da história brasileira. Nesse número, o historiador Ricardo Oriá nos
fala da vida e da obra da primeira deputada da América Latina, Carlota Pereira de Queirós.
A seção Imagem e História trará sempre uma fotografia histórica, acompanhada de uma
apresentação. Essa edição apresenta a foto do Largo do Paço Imperial no dia do casamento
da princesa Isabel, com o texto do colecionador Pedro Karp Vasques. Nas duas seções
seguintes, traremos sempre uma charge escolhida e comentada pelo Paulo Caruso e as
saborosas histórias do jornalista Sebastião Nery, com seu Folclore Político.
Para terminar, teremos o espaço para as resenhas, onde nossos colaboradores poderão
dar conta das últimas publicações, no Brasil e no mundo, que correspondam ao nosso
universo de interesses. Dessa edição, consta um comentário do diplomata Paulo Roberto
Almeida.

Não poderíamos encerrar esse editorial sem agradecer a todos aqueles que acreditaram
no projeto enviando seus trabalhos e textos, ao apoio e confiança da administração da
Câmara dos Deputados mas, sobretudo, àqueles que participaram da construção dessa
publicação, com suas idéias, trabalho e sugestões, desde a elaboração do seu projeto
editorial, até o encaminhamento para a gráfica.

São eles: os professores Carlos Henrique Cardim, Fabiano Santos, David Fleischer,
Mauro Santayana, Wanderley Guilherme dos Santos, Costa Porto, Ricardo Oriá, Mônica
Mulser Parada, Paulo Motta e Paulo Roberto Almeida. Os colegas da SECOM, Márcio
Araújo, Tarcísio Holanda, Mauro Di Deus, Flávio Elias, Alexandre Rios, Frederico Campos,
Sueli Navarro, Pedro Noleto, Ademir Malavazzi, Gentil Sbarddelloto, Raquel Mello, Heloísa
Pinheiro, Thaís Alves Lima e Ely Borges.

O protocolar agradecimento à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, nesse projeto


representada pelo presidente João Paulo Cunha, se reveste de uma satisfação toda especial. O
entusiasmo e apoio do presidente João Paulo à revista Plenarium, desde o início da discussão
do projeto, se fez acompanhar de uma notável elegância e percepção intelectual dignas de
referência nesse momento.

Boa Leitura!

Jorge Henrique Cartaxo


Diretor da Plenarium
ENTREVISTA DOM PAULO EVARISTO ARNS

“Meus amigos, a teologia da


libertação me fez sofrer, mas eu
ainda acredito nela, e acho que
ela é que vai salvar a América
Latina e – quem sabe? – também
a Europa dessa crise terrível em
que está entrando”.

Momentos, Críticas e História


D om Paulo Evaristo Arns não é um homem comum. Sua presença na história
contemporânea brasileira redimensiona valores e conceitos que se traduzem nas
palavras bondade, generosidade, coragem e virtude. Símbolo da luta pelos direitos humanos
no Brasil, esse filho de colonos do interior de Santa Catarina enfrentou, com sobriedade e
destemor, subordinados, oficiais, generais e presidentes que trouxeram o horror da tortura
para a vida política brasileira, sobretudo no período sombrio do governo Médici (1970/73).
Nessa entrevista para o primeiro número da revista PLENARIUM, Dom Paulo fala da sua
formação religiosa, dos seus embates contra a ditadura militar (1964/1984), da sua relação
com Paulo VI e do seu encontro com o então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter.
Ainda nessa reunião, que teve lugar no Convento São Francisco, em São Paulo, e contou com
a participação do Monsenhor Dário Bevilacqua, do vice-prefeito de São Paulo, ex-deputado
e ex-Procurador Hélio Bicudo, do Padre Beozzo, do jornalista Mauro Santayana e do diretor
da PLENARIUM, jornalista Jorge Henrique Cartaxo, Dom Paulo recomendou ao presidente
Lula “ uma reforma completa na política” e explicou como a Igreja deve se posicionar frente
à complexa e polêmica evolução da engenharia genética.

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

Padre Beozzo – Dom Paulo, pen- cinco ou seis primeiros séculos, que são um
sei na sua formação. O senhor nasceu tesouro escondido, que não é conhecido
em Forquilinha, em Santa Catarina. Seus no Brasil nem na Europa. Você sabe grego.
pais, Gabriel e Helena, constituíram uma Então, estude mais grego, arranje um bom
família grande com muitos filhos e filhas. professor, e você vai poder publicar obras
Quais valores desse mundo familiar o importantes para a história da cultura cristã
senhor trouxe para a vida pública? Depois, da Antiguidade”.
o senhor transformou-se em franciscano.
No mesmo dia, eu fui procurar o
Frei Leonardo Boff me pediu que eu lhe
Prof. Frei Tito, que, aliás, trabalhou em
perguntasse como essa figura seminal de
São Paulo também, por algum tempo, e
São Francisco inspirou sua vida e sua ação
lhe disse que gostaria de ler um livro da
pastoral.
Antiguidade, começando pelo latim. Ele
Depois, o senhor estudou patrística me respondeu: “A obra mais bonita que
e letras clássicas na Sorbonne. O senhor conheço em toda a literatura cristã, em
gosta de ser um bom escritor, é capri- latim, são as cartas de São Jerônimo para
choso no estilo. O senhor escreveu sobre suas amigas e seus amigos, em todo o
Clemente de Roma, Inácio de Antioquia, mundo. Se você quiser, vou buscá-la na
Ambrósio de Milão, freqüentou muito biblioteca”.
São Jerônimo, estudou a técnica do livro
Fomos juntos à biblioteca, eu trouxe
naquela época, e o senhor foi professor de
o livrinho, e daí em diante posso dizer
patrística. Como os padres da Igreja, que
que nunca mais deixei de cultivar o
enfrentaram o poder político com audácia
latim, o grego e, sobretudo, a história da
e firmeza, também acabaram inspirando o
Antiguidade para poder produzir qualquer
senhor na sua luta contra a opressão e a
coisa. Infelizmente, como você bem o disse,
ditadura?
só tive ocasião de publicar meia dúzia de
Como o senhor explica esse mundo de livros e de artigos a esse respeito, mas
formação em sua casa, como franciscano, não cheguei nunca a exprimir aquilo que
e como encara a sua experiência na estava no meu coração – ou seja, como, a
patrística para a sua vida pública? partir do Cristo, o cristianismo se expandiu
Dom Paulo Evaristo Arns - Para res- e conquistou as almas mais generosas
ponder, rapidamente, deveria dizer que daquele tempo. Infelizmente, não fiz
decidi seguir a carreira literária, que cul- aquilo que desejava, porque me nomearam
minou com o doutorado na Sorbonne, em Bispo, Arcebispo e Cardeal... E como,
Paris, na França, onde fiquei cinco anos envolvido por tantas responsabilidades, eu
como aluno, incentivado por carta de meu teria tempo para me dedicar aos estudos e
irmão. Um pouco mais idoso do que eu, a outras coisas que queria fazer?
ao se formar ele me escreveu uma carta em Monsenhor Dário Bevilacqua – O
que me incentivava a continuar os estudos senhor foi nomeado Bispo, Dom Paulo,
e, em particular, os estudos clássicos. em momento muito vivo da vida da Igreja.
Ele assim dizia: “Você gosta de Estávamos vivendo o Concílio Vaticano II,
latim, já tem seis anos de latim; você pode as grandes reformas que o Papa João XXIII
agora passar a vida inteira estudando latim tinha promovido para a Igreja, que devia
e publicando as obras daqueles padres dos estar em dia com o mundo, e o senhor

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ENTREVISTA

foi nomeado Arcebispo de São Paulo, no condição de Bispo-Auxiliar e, depois, de


começo da década de 70, permanecendo Arcebispo na Arquidiocese de São Paulo,
nesse cargo por 25 anos. que começou realmente no Brasil a luta
A formação cultural que o senhor pelos direitos humanos. O senhor, quando
construiu na base fundamentou as grandes criou a Comissão Justiça e Paz, num
opções pastorais pelas quais o senhor foi o primeiro momento enfrentou a ditadura
grande responsável em São Paulo, como, militar, as torturas, as eliminações físicas,
por exemplo, a opção pelos pobres, pelos as prisões ilegais. O senhor ia pessoalmente
trabalhadores e pelos direitos humanos. aos responsáveis por esses fatos, por
essas violações, e os interpelava.
Dom Paulo Evaristo Arns - Não Muitas vezes, o senhor conseguiu
há dúvida nenhuma, Monsenhor fazer com que as coisas não
Dário. Posso dizer que, desde “Com os caminhassem como a ditadura
o começo, desde a hora em militar gostaria.
que cheguei a São Paulo,
estudantes, os jor-
interessei-me por todas nalistas e os operários, Lembro-me da sua
as lutas que havia em atuação quando da morte
essas três classes, podemos do operário Manoel
torno dos direitos e da
dignidade da pessoa dizer que os intelectuais de Fiel Filho, do jornalista
humana. Logo que São Paulo demonstraram que Vladimir Herzog e de
assumi, eu fui visitar os todos os presos que
eles constituem, realmente, corriam à Cúria de
presos políticos, fui me
informar sobre o que uma elite mundial capaz de São Paulo em busca de
fazia o regime militar, enfrentar a força do Exército seu socorro, que era
como procediam os juízes fundamental para todos
e como procediam aqueles sem derramar sangue e nós, cristãos ou não, para
a quem se confiavam os sem prejudicar pessoa que não houvesse violação
presos. dos direitos humanos
alguma”. durante todo esse período.
A minha vida, ao menos
pela metade, foi ocupada em Portanto, o senhor encarna
socorrer aqueles a quem eu podia a marca inicial, no Brasil, pela
dar uma pequena ajuda. Eu fui Bispo- defesa dos direitos humanos.
Auxiliar, de 1966 a 1970; foi uma ajuda Dom Paulo Evaristo Arns - Acredito
pequenina, depois ela foi crescendo em que o senhor está atribuindo a mim o que
dimensão, até eu chegar a debater com os compete ao senhor (risos dos presentes).
Presidentes da República sobre a maneira Isso é muito interessante, porque o senhor
de proceder com o povo no Brasil. escreveu contra o Governo e protestou
Hélio Bicudo - Dom Paulo, lembro- contra a prática das torturas. E não pôde
me de que, no início da década de 70, publicar um livro. Então me perguntou:
quando o senhor assumiu a Arquidiocese “Como é que vamos publicar esse livro”?
de São Paulo, recebi uma carta sua – o Consegui que esse livro fosse lançado e
senhor mal me conhecia – sobre a luta tivesse o condão de acordar as consciências,
que eu estava tendo com o Esquadrão da ao menos daquelas pessoas que confiavam
Morte. Acredito que foi com o senhor, na em nossa ação e que sabiam que devíamos

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

agir quando tivéssemos um incentivo e por esse caminho, quando se renovou a


uma obrigação para tanto. E o senhor democracia mais ou menos vacilante. Em
nos obrigou a entrar nessa luta decisiva e todo caso, há democracia, em vez de se
importante. derramar o sangue de irmãos.
Com os estudantes, os jornalistas e Mauro Santayana - Eu me permitiria
os operários, essas três classes, podemos fazer apenas outra pergunta ao senhor.
dizer que os intelectuais de São Paulo Estamos hoje diante de um problema muito
demonstraram que eles constituem, grave. Procura-se criar uma falsa guerra
realmente, uma elite mundial capaz de santa entre o islamismo e o cristianismo.
enfrentar a força do Exército sem derramar Isso se desenvolve de maneira muito
sangue e sem prejudicar pessoa alguma. difícil e perigosa. Na Alemanha, vimos o
O senhor é quem começou o movimento problema da proibição do uso de crucifixos.
e me lançou para ele. Aceitei-o de muito Na França, há o problema do impedi-
bom grado. Era minha obrigação como mento de as meninas muçulmanas irem
pastor da Igreja e era esta, também, a à escola com o véu. Hoje, em um artigo
vontade do povo a quem eu servia. que publico, afirmo que se dá a impressão
Mauro Santayana - Dom Paulo, de que os petroleiros do Texas querem
minha pergunta é simples. O senhor está colocar Cristo em sua folha de pagamento
satisfeito com sua presença no Brasil, no com o fundamentalismo protestante da
século e no mundo de hoje? Igreja Batista de Bush.
Dom Paula Evaristo Arns - Santayana, Dom Paulo Evaristo Arns - Santayana,
você é um filósofo, que pensa muito a há dois anos fui nomeado Conselheiro da
respeito da vida. Aliás, escreveu uma Universidade do Estado de São Paulo, USP.
pequena biografia da minha pessoa e Propus, logo como primeiro tema, o enten-
revelou-se conhecedor profundo da alma dimento entre as religiões. Participei, qua-
humana. Nunca estamos satisfeitos com tro vezes, de grandes reuniões. Chegamos
o que realizamos. O meu desejo era a 39 religiões, que se juntaram para falar
promover, em São Paulo, uma verdadeira sobre a paz no Oriente, em Jerusalém,
evolução dos estudos para compor toda sobre a fome e a má distribuição das rique-
a história e relatar o trabalho das missões zas na Terra. O primeiro artigo que propus
para o futuro. Isso era fundamental para foi: as religiões devem unir-se para criar
mim. Não consegui quase nada do que um só e grande ideal – o ideal da paz e da
pretendia. Os livros publicados, os artigos solidariedade. E, tudo o mais, cada religião
lançados pelos jornais, as alocuções e cultiva por si mesma para chegar à meta
as grandes reuniões do povo, imensas e que o fundador propôs ou que ela mesma
grandes reuniões, deixaram claro que o propunha.
povo conscientizou-se de que deve tomar Padre Beozzo - Dom Paulo, o Papa
a história na mão e caminhar com os que Pio XI afirmou que o grande drama da
sabem que é possível abrir um caminho. Igreja foi ter perdido a classe operária.
Qual é o caminho? O senhor foi um Muitos intelectuais também se afastaram
dos que nos ajudou a buscar o caminho da Igreja no Brasil. Por exemplo, a geração
que deveríamos seguir. O povo acabou, de 1870, formada na Faculdade de Direito
com muito custo e trabalho, nos seguindo de São Paulo, dos quais os mais conhecidos

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ENTREVISTA

foram Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, pertencer a uma outra classe: a classe
todos se afastaram da Igreja, praticamente dos estudiosos”. Ele era colono, não tinha
houve uma ruptura. O senhor acabou de nem um ano de estudo. Aprendeu a ler e
dizer que foi convidado para entrar no a escrever. Tornou-se até um intelectual
Conselho da USP. a partir de esforço próprio. Ele me disse:
O senhor viveu momento de grande “Parta para as maiores escolas do mundo,
aproximação com o mundo intelectual, mas não esqueça uma coisa: você é filho
quando o Governo fechou as portas das de colono. Nunca negue que é filho de
Universidades públicas para a realização trabalhador. Sempre defenda os trabalha-
da reunião da SBPC (Sociedade Brasi- dores”.
leira para o Progresso da Ciência), Essas palavras vieram-me à
o senhor abriu as portas da mente no exato instante em que
PUC (Pontifícia Universida- “Quantas me entregaram o diploma na
de Católica de São Paulo). vezes eu tive de Sorbonne com a maior dis-
Quando desejou fazer um tinção, ao mesmo tempo
estudo mais abrangente entrar pessoalmente? em que me felicitaram.
sobre São Paulo, foi pro- Eu colocava todas as ves- Eu disse aos professores:
curar o CEBRAP, o Fer- “Sou filho de um colono”.
nando Henrique Cardo-
timentas de um Cardeal, Mandei um telegrama
so e outros intelectuais aparecia lá como alguém para o meu pai em que
para escrever trabalho estranho a esse mundo (risos) dizia: “O filho do colo-
intitulado “São Paulo: no foi hoje agraciado
Crescimento e Pobre- e subia, ia diretamente ao com o maior diploma
za”. Posteriormente, gabinete do diretor, sem pedir da Universidade mais
o senhor fez da PUC
licença a ninguém, abrindo eu célebre do momento
um espaço aberto para na Europa. Não leve a
acolher Florestan Fer- mesmo as portas, entrando e mal, porque continua-
nandes, Otávio Iani, os dizendo: “Senhor Diretor, rei a ser filho de um
professores então cassa- colono”. Por isso, qual-
dos. Desejo que o senhor
venho aqui reclamar por quer luta que haja entre
fale do encontro entre a causa da tortura deste, operários e a sociedade,
classe operária e a classe deste e deste ope- sempre, em primeiro lugar,
intelectual, no trabalho que acho que devo tomar posi-
o senhor teve oportunidade de rário ”. ção em favor do mais fraco,
realizar em São Paulo. daquele que enfrenta dificuldade
Dom Paulo Evaristo Arns - para obter os meios de defesa, tanto
Você formulou uma pergunta sumamente na imprensa quanto em outros setores da
importante para o futuro, não só da Igreja, vida social.
mas também da humanidade. Devemos Uma coisa destaco: quando o
nos entender com os operários. “Quando operário tem razão em suas reivindica-
sai de casa, meu pai me disse: “Você ções e reconhecemos isso – para tanto,
agora pode estudar. Só que, a partir de Monsenhor Dário pode dar uma prova
agora, vai pensar diferente de nós e vai – temos o Conselho de Presbíteros.

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

Perguntava eu, ao Conselho, se deveria Afinal, Dalmo Dallari, que em crian-


entrar ou não nas lutas, e sempre me ça foi um boy de rua e que conhecia todas
aconselhavam a ir com Dom Cláudio e as entradas de São Paulo, veio e sentou-se
os operários Lula e companhia no ABC. à minha mesa. Quando eu expus-lhe a
Posteriormente, São Paulo inteiro entrou minha agonia de estar sozinho no meio de
na luta e levou caminhões de comida para uma luta gigantesca, ele disse: “Eu aceito,
as famílias não desanimarem. Levamos só que não tenho prestígio para aglomerar
tudo o que pudemos, sobretudo o apoio toda essa gente que o senhor quer. Mas
jurídico – o Dr. Hélio Bicudo sabe do vou ajudá-lo. Muita gente vai ajudá-lo”.
apoio que demos à classe operária, naque- Muitos padres ajudaram-me, sobretudo
le momento. Sempre que colocavam um Monsenhor Dário (Bevilacqua).
chefe na cadeia, íamos lá, pessoalmente, Posso dizer então que conseguimos,
reclamar e o tirávamos de lá. aos poucos, uma equipe que poderia
Quantas vezes eu tive de entrar pes- enfrentar qualquer outra equipe na Europa
soalmente? Eu colocava todas as vesti- ou no mundo, tão bem-preparada estava,
mentas de um Cardeal, aparecia lá como tanto para escrever, para falar, quanto para
alguém estranho a esse mundo (risos) e entrar em um processo já iniciado. Vale
subia, ia diretamente ao gabinete do dire- a pena e, quando fiz a última reunião,
tor, sem pedir licença a ninguém, abrindo dela participaram 51 intelectuais, entre
eu mesmo as portas, entrando e dizendo: os maiores que conheci no Brasil, na
“Senhor Diretor, venho aqui reclamar por Europa ou em qualquer lugar do mundo.
causa da tortura deste, deste e deste operá- E fico muito satisfeito em dizer: “Essa
rio”. Eu tinha a lista na mão e a mostrava gente descobriu a Igreja pela luta operária,
para ele. Portanto, essa luta com os ope- pela igualdade e dignidade de todos os
rários foi, de fato, imprescindível – e essa homens”.
luta assim será até o fim do mundo. Temos Para dizer também sobre como os
de lutar para que todos sejam operários, jovens se comportavam, devo confessar que
operários de coração, ajudando uns aos diversas vezes tive de entrar diretamente na
outros, uns talvez mais pelo pensamento, luta. Um exemplo ilustrativo disso foi uma
outros talvez mais pelas mãos, outros, revolta, ocorrida em 1973, na USP, em
ainda, descobrindo novos métodos para o que mataram um estudante de Sorocaba,
futuro. Vanucchi Leme, que teve de ser levado à
Já com os intelectuais, a coisa era Catedral. Eles queriam que o levassem lá
mais difícil. Quando precisei recorrer à na escolinha deles para ter uma satisfação.
nossa Associação de Defesa dos Direitos Eu disse: “Não, não. É uma coisa que
Humanos, Dr. Hélio, o senhor me desculpe, precisa penetrar no Brasil. Nós precisamos
eu tive de falar com onze pessoas e ir para o centro de São Paulo e, se vocês
oferecer-lhes um almoço, para então pedir todos vierem e se animarem, vamos levar
que fizessem uma equipe de defesa de essa idéia de insatisfação a todo o Brasil”.
toda a população de São Paulo e imaginar E não demorou para a Polícia invadir
um novo Brasil, um Brasil diferente, um a nossa PUC, e os estudantes de todo o
Brasil que todo mundo quisesse. Não deu Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, em
certo. Ninguém aceitou. 1968, realizarem aquele forte movimento.

13
ENTREVISTA

Eles ajuntaram-se e de fato produziram atravessando o Rio de Janeiro, olhando


uma reação formidável. Assim, podemos todas as partes, mas muito mais para dentro
dizer que a conquista se faz através de si e respondendo às minhas perguntas
de um objetivo claro, que convença o sobre a responsabilidade dos Estados
homem de sua responsabilidade perante Unidos. Eu lhe disse que, para haver uma
a humanidade, sobretudo diante dos nação pacífica, esta não poderia proceder
temas mais delicados: a liberdade e a a guerras, como estiveram fazendo agora
responsabilidade. com o Iraque. Isso é uma loucura. É
Dário Bevilacqua - Os resultados da simplesmente contra o próprio espírito
luta em que o senhor se empenhou foram americano. Eles devem ir ajudar, como
reconhecidos internacionalmente, não povo pacífico, a todos aqueles que de
só pelos milhares de títulos Doutor fato precisam, contribuindo para o
Honoris Causa que recebeu – e bem-estar da humanidade, e não
“Precisamos
que não saberia dizer quantos apenas em prol do interesse
são... de justiça, de do próprio país.
Dom Paulo Evaristo solidariedade. Temos Padre Beozzo - Dom
Arns - Uns vinte e poucos de construir a história de Paulo, vou lembrar um
(risos)... pouco sobre a luta dos
forma totalmente diferente:
Dário Bevilacqua - direitos humanos. O
Mas também por orga- sem fuzis na mão, sem milita- senhor não só recebeu
nismos internacionais res exercendo seu ofício, mas, o reconhecimento uni-
de grande prestígio. versal de seu trabalho
sim, com homens que sabem em prol dos direitos
Uma vez o senhor
recebeu do presiden- levar o povo de novo a crer em humanos no Brasil e
te da República dos si, em Deus e na igualdade de no mundo, como tam-
Estados Unidos, Jimmy bém um prêmio que,
Carter, uma condecora- todos os homens. Só dessa para mim, equivale ao
ção. Qual foi essa con- maneira chegaremos a ven- Prêmio Nobel da Paz, o
decoração? Prêmio Niwano da Paz.
cer o terrorismo, e nunca
Dom Paulo Evaristo Gostaria que o senhor nos
por meio de uma dissesse alguma coisa sobre
Arns - Foi a de Doutor
Honoris Causa e, naquele guerra”. como foi a recepção desse
momento, ele levou aquilo tão prêmio e que destino o senhor
a sério que me prometeu, como deu a ele, em decorrência de sua
novo Presidente dos Estados Unidos, que luta pelos direitos humanos.
estaria daí a um ano no Brasil para exa- Dom Paulo Evaristo Arns - De fato,
minar as questões e também impor toda a no Japão, eles abriram uma espécie de
força dos Estados Unidos contra a tortura. paralelo ao prêmio Nobel. Portanto, a cada
Provavelmente, ela passou dos Estados ano, eles dão 250 mil dólares, pagam-nos
Unidos para o Brasil – e que ela seja, tam- todas as despesas de viagem, durante uma
bém, eliminada nos Estados Unidos. dúzia de dias naquele país, e tratam-nos
O presidente Jimmy Carter veio e com uma dignidade e uma fineza que são
ficou comigo no carro, durante uma hora bem raras no mundo.

14
DOM PAULO EVARISTO ARNS

Eu recebi, de repente, o convite: “O pobres. Fui entrando e, quando cheguei


senhor está convidado a receber o prê- perto do altar, estavam nos degraus todos
mio e para isso perguntamos se o senhor os pobres e todos aqueles que tinham
o aceita”. No começo, pensei: nunca fiz bebido cachaça durante o dia, que tinham
nada de especial para o Japão, e como se feito suas poesias, composto seus cantos.
lembraram do meu nome? Mas respondi- Estavam deitados, roncando, cantando ou
lhes: “Se for para a paz, estou disposto a falando entre si.
tudo”. Eles responderam : “É para a paz. Mas, quando chegou a hora do
É uma organização de cinco milhões de sermão, todos se calaram. Eu disse que
japoneses que treinam em escolas fecha- tinha decidido dar o prêmio de 250 mil
das, durante a semana, para saberem tra- dólares que ganhei no Japão para as pessoas
tar-se mutuamente com respeito e também da rua e, para isso, nomeava o Padre
progredir juntos com a comunidade”. Júlio Lancelotti para fazer uma consulta
Estudei a Constituição do país e sobre o que queriam fazer com aquele
disse: “Sim, eu vou”. Fui lá e fiz uma dinheiro, que significava muito em relação
conferência para cinco mil budistas. Todos à moeda brasileira. Todos se assustaram,
tinham tradução simultânea em japonês e bateram palmas e disseram: “Opa, um
me entenderam imediatamente. Sempre padre oferecendo dinheiro!” (Risos).
respondiam com muito entusiasmo a tudo O Padre Júlio Lancelotti consultou
quanto eu dizia. Naquela oportunidade, todos os pobres que podia e indagou o
eu lhes disse: “Amai os vossos inimigos; que queriam. Responderam que queriam
rezai por aqueles que vos perseguem e uma catedral. Mas, além de já termos
vos caluniam; fazei o bem a todos, assim uma catedral, não se constrói uma obra
como quer que façam a você”. daquela envergadura com esse dinheiro.
Quando conclui a conferência, o Eles disseram que a catedral seria de
presidente levantou-se e perguntou, à frente madeira, construída em um lugar bem
da estátua de Buda: “Podemos publicar central, perto da igreja São Cristóvão. Teria
essas palavras de Jesus para todo o mundo embaixo uma parte onde eles poderiam
ou é reservada”? Respondi que a palavra tomar banho, mudar de roupa, fazer a barba
de Jesus é para ser difundida o máximo e se enfeitarem, no caso das mulheres.
possível. Ele então respondeu que garantia Depois, poderiam subir as escadas para
que a palavra de Jesus seria reimpressa, ao fazer as reuniões, pensar sobre a vida,
menos cinco milhões de vezes no Japão, discutir sobre o que se fez e o que farão
das maneiras mais diversas. Depois que no futuro.
voltei para casa, pensei nos 250 mil dólares Em poucos meses, a Cúria
que tinha ganhado. Como franciscano não Metropolitana cedeu o terreno e cons-
preciso de nenhum dólar para viver, porque truímos aqueles dois andares da catedral
me dão comida, vestimenta e locomoção dos homens da rua, que está lá para visita
de um lugar para o outro. O que iria fazer constante dos pobres que vêm para, em
com 250 mil dólares? primeiro lugar, limpar-se e aparecer como
Era dia de Natal. Que Natal! Ia gente, depois aparecer como filho de Deus
começar a Santa Missa, à meia noite, na e dizer que veneram o Cristo pobre. O
Catedral de São Paulo, repleta de pessoas Cristo sempre está pronto para encontrar-se

15
ENTREVISTA

com o Pai, com o coração todo voltado presente, mas também pelo passado e pelo
para Deus e com o corpo preparado para futuro da humanidade.
encontrar seus irmãos. Isso acontece desde Precisamos de justiça, de solidarie-
que a catedral foi inaugurada até os dias de dade. Temos de construir a história de
hoje, e está funcionando sob a direção do forma totalmente diferente: sem fuzis na
Padre Júlio Lancelotti. mão, sem militares exercendo seu ofício,
Mauro Santayana - Dom Paulo, fala- mas, sim, com homens que sabem levar o
mos há poucos instantes sobre o proble- povo de novo a crer em si, em Deus e na
ma do cristianismo. Temos um problema igualdade de todos os homens. Só dessa
importante, hoje, a discutir, que é o ter- maneira chegaremos a vencer o terrorismo,
rorismo, que passou a equivaler a uma e nunca por meio de uma guerra.
execração. Entre os grandes atos Dário Bevilacqua - Durante
de terrorismo do século XX, o
“Como muitos anos, conforme seu
senhor incluiria o bombardeio relato, o senhor trabalhou,
de Hiroshima? Lembrei-me a mulher é
como Arcebispo de São
desse fato quando o senhor forte! Como a mulher Paulo, com uma equipe de
falou do Japão. bispos. O senhor tinha o
nos surpreende muitas
Dom Paulo Evaristo seu grupo do colégio epis-
Arns - Evidentemente. O vezes! Como ela merece copal. A idéia era cons-
bombardeio de Hiroshima louvor todo especial tam- truir um governo diferen-
foi um ato terrível, embo- bém no campo da ciência, te para a diocese de São
ra não se pudesse medir Paulo, em que houvesse
as suas conseqüências, da pesquisa e no do incen- dioceses interdependen-
naquele tempo, porque foi tivo para a juventude tes, de tal modo que cada
a primeira experiência com região episcopal tivesse um
a bomba atômica. Assim
encontrar seu cami- nível de responsabilidade
mesmo, foi um ato imper- nho”. e atuação. Essa experiência
doável. A história nunca vai valeu a pena, Dom Paulo?
esquecer disso. Quando estava Dom Paulo Evaristo Arns -
no Japão, referi-me a esse ato, com Valeu a pena. Só lastimo que o senhor
grande respeito diante do povo japonês. atribua o mérito e mim. O mérito é de
Os americanos, que também estavam pre- Paulo VI, o Papa. Quando fui visitá-lo pela
sentes, causaram esse drama para a huma- primeira vez, em 1973, na qualidade de
nidade. Acho terrível. Arcebispo, para expor a situação de São
Há outra coisa, Santayana: terrorismo Paulo, ele me disse: “Precisamos mudar
não se combate com guerra. Foi um erro o completamente a ação da Igreja nas gran-
fato de o presidente americano George des cidades. Então vou pedir um grande
Bush convidar a Espanha, a Inglaterra e favor ao senhor. O senhor agora vai visitar as
outros países a participarem da guerra grandes cidades, e quando tiver visitado 3
contra o Iraque. Foi um crime contra a ou 4 cidades, o senhor volta e me conta
humanidade, semelhante ao de Hiroshima como cada uma delas está procedendo,
e a outros crimes que não esquecemos. porque precisamos fazer uma divisão nas
Todos somos responsáveis, não só pelo cidades, mas também precisamos levar

16
DOM PAULO EVARISTO ARNS

todas as pessoas a assumirem as suas res- o senhor e eu”. (Risos). “Então, nós vamos
ponsabilidades de cristãos, quer dizer, de nos levantar daqui e vamos para o fundo
propagar o cristianismo e de fazer o Cristo da sala, atrás dos livros da biblioteca, e
conhecido e amado. Então, Deus será vamos ficar lá para o Secretário não nos
conhecido e amado, e os homens serão descobrir e chamar outra pessoa aqui para
respeitados, porque são filhos adotivos de dentro”.
Deus”.
E fomos para lá, ficamos por 55
Eu viajei por muitas cidades. Fui minutos discutindo como é que deveria
até São Francisco, nos Estados Unidos, ser o nosso trabalho em São Paulo. (Risos).
fui à Irlanda, fui à Polônia, que estava Combinamos todas as coisas e elaboramos
sob regime comunista. E lá fiquei durante um plano inteiro, que, infelizmente,
duas semanas, pregando em alemão para não pôde ser executado por causa das
os poloneses comunistas. Depois, fui ao circunstâncias e da morte do Papa, em
Japão, à Austrália, a muitos lugares. Foram 1978, logo depois que isso aconteceu.
trinta e tantos países, sempre com a idéia
de que o Papa Paulo VI queria mudar Padre Beozzo - Dom Paulo, quando
a pastoral das grandes cidades, queria estava aqui em São Paulo, o senhor viveu
conhecer todos os modelos e todas as um momento de grandes mudanças na
experiências já realizadas. teologia. A teologia era a base da formação
dos padres, dos clérigos. E a sua faculdade
E ele estava confiando-me aquela se abriu para os leigos, para as mulheres,
tarefa. Assim, anotava todas as coisas que admitindo, inclusive, professoras mulheres,
os bispos, os padres e os leigos de diversas como a Ana Flora e outras. O senhor
organizações me comunicavam. Levava promoveu uma grande mudança, o senhor
essas informações sempre que ia a Roma. assistiu o nascer de uma teologia pensada
Eu ia três ou quatro vezes por ano a Roma, em função da libertação e do mundo, e
e levava sempre essas novidades ao Papa, não apenas em função da Igreja. E, depois,
que se interessava muito por elas. Certa teve grandes problemas. O senhor, em um
vez, ele me disse: “Elabore um sistema momento de crise, com Leonardo Boff, foi
que seja mais ou menos o resultado de sua até Roma.
pesquisa. Então, você volta e me diz como
devemos fazer”. Gostaria que o senhor falasse dessa
função da teologia, da liberdade e da
O Papa Paulo VI tinha realmente um pesquisa. Além disso, falamos dos operários
grande coração. E quando falei com ele
intelectuais que tiveram uma crise com
pela última vez, em 1976, ele já não podia
a Igreja. E o risco, hoje, o da crise das
mais conversar. Então, o seu Secretário me
mulheres com a Igreja. Assim, gostaria
disse: “O Papa não pode mais conversar por
que o senhor falasse sobre a teologia
muito tempo. O senhor fique cinco minu-
feminista, a Teologia da Libertação.
tos com ele, dê-lhe um abraço, conforto, e
diga que estamos rezando por ele. Depois, Dom Paulo Evaristo Arns - Vamos
o senhor se retire”. Aí, eu entrei e disse ao começar, então, com a questão das mulheres.
Papa: “Já que temos pouco tempo, vou- Em primeiro lugar, a Universidade Católica
lhe dar tudo por escrito. Depois, o senhor nunca tinha colocado uma mulher como
manda ler, ou lê quando puder”. O Papa reitora. Então, eu perguntei quais eram as
disse: “Quem é que manda no Vaticano? É mulheres que mais se distinguiam, para

17
ENTREVISTA

que eu tivesse condições de propor aquela nos surpreende muitas vezes! Como ela
idéia a Roma. Mas seria muito difícil, merece louvor todo especial também no
porque não existia universidade pontifícia campo da ciência, da pesquisa e no do
– quer dizer, que depende diretamente incentivo para a juventude encontrar seu
do Papa e do Arcebispo, mas do Papa caminho.
sobretudo – e todos os professores eram O senhor fala da teologia em geral.
confirmados em Roma. Então, eles me De fato, eu apanhei muito por causa
disseram que a Dra. Kfouri era indicada da teologia da libertação. Mas o senhor
para isso, porque ela era solteira, não tinha pode ler na minha autobiografia – que
se casado. infelizmente tive de escrever – onde digo
Dessa forma, poderia dedicar-se que nós mandamos para Roma um
inteiramente à ciência, e também documento muito bem-elaborado
à sua família, à sua mãe e ...“a fé e a pelos teólogos do Ipiranga sobre
a toda a sua incumbência a teologia da libertação,
na Universidade. Assim
ciência têm de dizendo por que a teologia
sendo, eu mandei para evoluir com a huma- da libertação precisa
Roma simplesmen- nidade. Cristo nos deu procurar na Grécia as
te a comunicação da expressões, a metafísica
nomeação da Dra.
a essência para tudo, para toda, etc., para dizer,
Kfouri como reitora da responder a todas as pergun- em palavras difíceis,
Universidade Católica, tas, mas confiou à inteligência o que Deus, que é
“escolha do Arcebispo simples e bom, quer
de São Paulo”. Eu pen-
humana a elaboração de todas eliminar para ser
sei que ia voltar uma as respostas para cada tempo, amado pelos homens,
carta incendiando São para cada época e tam- em vez de apenas ser
Paulo, e dizendo para o apreciado com palavrões
Arcebispo que era hora
bém para os momentos que se encontram
de criar juízo. (Risos). Mas cruciais da humani- nos dicionários mais
foi o contrário: veio a res- dade”. completos.
posta de que ela estava nome- Então, mandei aquilo
ada, que era a nova reitora da para Roma e o único que me
Universidade Católica. respondeu foi o Cardeal Danneels. Eu
Logo na fase seguinte, já havia a nunca contei isso. Foi o Cardeal Danneels,
possibilidade de eleições para reitor – de Bruxelas, na Bélgica, que me respondeu
que, aliás, eu introduzi nas universidades em um cartão, dizendo: “Eu o felicito pelo
católicas. Depois, esse sistema foi que o senhor mandou escrever pelos seus
introduzido em todas as universidades. teólogos”. E assinou, em nome de toda a
Eram feitas eleições por meio de cidade de Bruxelas, dizendo que a teologia
professores, alunos e funcionários, cada começa com o pobre, com o pequeno, e
qual com um peso diferente, é claro. depois vai subindo até o coração daquele
Mas o fato é que a Dra. Kfouri foi reeleita que sabe ser humilde e pequeno, mesmo
como reitora da Universidade Católica. sendo sábio, mesmo tendo estudado, mesmo
Como a mulher é forte! Como a mulher sendo esse homem de grande projeção.

18
DOM PAULO EVARISTO ARNS

Danneels me escreveu um cartão tão me entregou um volume em que estão


bonito que eu o guardo até o dia de hoje. mais de 500 pessoas indicadas pelo nome,
Meus amigos, a teologia da libertação me profissão, pelo lugar onde sofreram torturas
fez sofrer, mas eu ainda acredito nela, e e onde foram enterradas, a data e todas as
acho que ela é que vai salvar a América coisas juntas. Este homem trabalha pela
Latina e – quem sabe? – também a Europa humanidade”.
dessa crise terrível em que está entrando. Então, 150 mil pessoas me aplaudiram,
Dr. Hélio Bicudo - Dom Paulo, depois sem saber quem eu era. (Risos). Eu vinha
da Comissão de Justiça e Paz, o senhor, do Brasil. Coitado, um homem pequenino
naturalmente, em face da evolução dos em estatura e pequenino também
acontecimentos – estávamos no período intelectualmente, como vai aparecer
do término da ditadura militar – criou, diante de um público de 150 mil pessoas
em São Paulo, o Centro Santo Dias de e apresentado pelo Papa?
Defesa dos Direitos Humanos. Gostaria
Mas o Centro Santo Dias tem uma
que o senhor nos contasse como e por
coisa ainda melhor. Ele nasceu do coração
que foi criada essa Comissão, e como são
da criança. A criança era perseguida na
os trabalhos que ela vem desenvolvendo a
Praça da Sé (São Paulo), em todos os
partir de então na defesa dos direitos dos
outros lugares, pela polícia e pelas pessoas
mais pobres.
que não sabiam respeitar as crianças,
Dom Paulo Evaristo Arns - Essa que, muitas vezes, premidas pela fome,
proposta de falar sobre o Centro Santo roubavam uma banana, uma laranja,
Dias muito me agrada. Nós, na Argentina, ou qualquer outra coisa. Depois que se
conseguimos unir 12 grupos inter- alimentavam, brincavam na rua. Então,
religiosos. No Uruguai também há outro não sabíamos o que fazer.
grupo, no Paraguai e, depois, no Chile,
no tempo de Pinochet. Fizemos o possível O Dr. Hélio (Bicudo), e sua equipe,
para descobrir quem era torturado, como me propôs que formássemos uma Comissão
e quando, dizendo qual é a influência do chamada Santo Dias – o operário Santo
Brasil na tortura. Levei o resultado daquela Dias é o patrono de todos os operários,
pesquisa para Roma. Era justamente uma porque ele deu a vida pelos operários.
quarta-feira, quando o Papa ia anunciar Então, chamamos de Santo Dias, e essa
sua grande mensagem para o ano santo de associação, de fato, trabalhou dia e noite,
1975. Os jornalistas brasileiros começaram com cinco advogados, às vezes, com três,
a brincar comigo, dizendo: “Hoje, o senhor o quanto nos permitiam os nossos bens
vai ganhar um pito em público, e nós financeiros para manter essa gente, para
estamos aqui para registrá-lo”. Eu respondi socorrer na hora certa e com a rapidez
a eles: “Não faz mal, se o pito vem do necessária.
Papa ou vem do povo, é Deus que fala”. Os juristas apoiavam sempre a ação
O Papa me chamou lá para cima daqueles que trabalhavam no Centro Santo
– eu estava todo de Cardeal – e disse: Dias. Conseguimos defender milhares de
“Este é um homem que defende os direitos crianças e criamos casas para elas poderem
humanos até em outros países, como na dormir, lugares para elas poderem ficar
Argentina, no Uruguai, etc. Ontem, ele durante o dia. Depois, coisas assim se

19
ENTREVISTA

propagaram pela cidade e, felizmente, humana a elaboração de todas as respostas


começaram a contagiar a alma do povo. para cada tempo, para cada época e
Hoje, amo as crianças e, Oxalá, confio nas também para os momentos cruciais da
crianças como o futuro do Brasil. humanidade.
Mauro Santayana - Dom Paulo, eu Então, as duas devem continuar
lamento muito, mas queria chamar o pesquisando. A Igreja precisa se atualizar
senhor para as chamadas “obrigações em todas as questões físicas, químicas,
do dia”. Por exemplo, temos hoje uma etc., onde há elementos morais, éticos,
discussão muito séria com relação ao onde existe a possibilidade de se ferir a
nosso comportamento com a natureza. Há dignidade humana. E os cientistas devem
o problema, sobretudo, dos transgênicos, fazer a mesma coisa. Eles devem respeitar
que nos preocupa muito hoje, porque a humanidade e o futuro da humanidade.
estamos tocando nas coisas mais profundas Eles devem respeitar o homem como ele
da natureza. Estamos tocando nos códigos é hoje, como será amanhã. Eles devem
da Criação. O que o senhor diria aos respeitar, sobretudo, a convivência humana
cristãos, hoje, com relação a isso? acreditando na possibilidade de o futuro
Nós devemos, em nome da ciência, ser bem melhor e bem mais pacífico para
admitir que permaneça essa soberba do toda a humanidade.
homem, que viola, vamos dizer assim, um Portanto, os dois têm de se encontrar
contrato essencial que temos com Deus? sempre e de novo para andar juntos.
É o contrato da nossa fé. É o contrato que, Naturalmente, haverá crises para cá
com a nossa fé, pedimos a sua proteção. e para lá. Vai haver Papa que é tido
O senhor acha que nós devemos, neste como conservador, e vai haver Papa
momento, ir adiante nessas pesquisas? considerado avançado. Mas todos eles
Estamos vendo sérios problemas e doenças têm a incumbência de atualizar a palavra
novas, como a doença da vaca louca, e de Deus sem mudá-la, ficando com o
coisas que não sabemos se virão depois fundamento que o Evangelho nos traz, que
disso. a revelação nos transmite, fazendo aquilo
O que o senhor diria aos cristãos, que Deus quer para a humanidade,
que reflexão o senhor recomendaria aos mas também sabendo que os homens
cristãos diante disso? Nós devemos agir podem melhorar a sua situação e devem
contra isso ou devemos aceitar? melhorá-la.
Dom Paulo Evaristo Arns - Mauro É importante o que fizemos uma vez,
Santayana, o senhor está tocando em em nome da ONU. Andamos, durante
um problema que será discutido durante quatro anos, em todos os continentes para
dezenas de anos ainda. Mas já sabemos ver o que se faz a respeito das questões
mais ou menos o que os católicos devem humanitárias. Andamos por toda parte
fazer. Não é apenas minha opinião, mas – África, Ásia, América e Europa – e
de muitos na Igreja – talvez de toda a ficávamos 15 dias ou três semanas com
Igreja: a fé e a ciência têm de evoluir os assessores que lá trabalhavam a vida
com a humanidade. Cristo nos deu a inteira. Ouvíamos deles e levávamos para
essência para tudo, para responder a todas a ONU aquilo que achávamos que era
as perguntas, mas confiou à inteligência contra o costume e a crença daqueles

20
DOM PAULO EVARISTO ARNS

povos, ou contra a possibilidade de eles qualquer palavra que não tenha efeito
executarem as coisas, porque estavam político. Político quer dizer que atinge mais
muito avançados ou eram retrógrados. que uma pessoa, atinge muitas pessoas,
Acho que a união da fé e da ciência pode transformar o ambiente e pode até
é a grande missão da Igreja para o futuro criar um novo sistema para orientar a
da humanidade e para o bem de cada um humanidade em relação ao futuro. Mas,
de nós. Mas ela não se faz de uma hora meus amigos, a política no Brasil foi muito
para outra e não se faz sem controvérsia. difícil no tempo da repressão. Eu entrei,
em 1966, justamente quando a repressão
Padre Beozzo - O senhor falou de começava a cassar os Governadores.
fé e ciência, mas o senhor foi um mes- Quando cassaram Juscelino Kubitschek,
tre na sua vida nas questões também eu pensei: “Meu Deus, agora acabou
de fé e política. O senhor este- tudo. Agora vão cassar todo
ve com muitos Governadores
“Posso mundo e cassaram também...”
aqui em São Paulo: Paulo
Maluf, Franco Montoro, dizer que com os Padre Beozzo - O
Orestes Quércia, Luiz (Carlos) Lacerda, o (João)
políticos, no final, eu Goulart...
Antônio Fleury, Mário
Covas, que foi seu sempre me entendi, quan-
Dom Paulo
grande amigo, Geraldo do não eram militares. Os Evaristo Arns - O
Alckmin, depois militares não queriam o enten- Lacerda, o Goulart e
com os Prefeitos, os tanta gente. De manei-
Presidentes, de Médici dimento, mas oposição. Eles ra que pensei que o
a Lula. O senhor con- achavam que a Igreja era dos Brasil não teria mais
viveu com essas figu- solução. Mas tem. É
ras e sempre teve uma
pobres, portanto, comunista
preciso que todo mundo
palavra para a questão e contra o regime. Por isso sempre diga: “Nós vamos
da ética na política, da eles não respeitavam de esperança em espe-
democracia, da cidada- rança. Nunca vamos dei-
nia. Gostaria que o senhor nossa opinião”. xar morrer a esperança do
comentasse um pouco sobre brasileiro, que não é homem de
isso. pegar o fuzil e atirar”. O que está
O senhor deu atenção especial, em acontecendo, no que se refere à violência,
São Paulo, ao quarto poder, à imprensa, é totalmente contra o espírito brasileiro, a
à televisão. O senhor já teve um jornal, mentalidade do povo e a nossa história.
perdeu a Rádio 9 de Julho. O senhor Nunca fomos violentos como estamos
mesmo é um jornalista. Gostaria que o sendo neste momento. Mas o papel da
senhor falasse de sua boa relação com a política consiste em conduzir essas ques-
imprensa, da questão da política, da ética tões de tal maneira que sejam favoráveis
e do papel da imprensa. ao povo.
Dom Paulo Evaristo Arns - Em É isso que sempre procurávamos
primeiro lugar, a política. Eu, de fato, na fazer. Qualquer queixa contra um governa-
minha vida, sempre achei que ninguém dor, mesmo Mário Covas... – o Covas era
poderia fazer qualquer ação ou expressar muito difícil no que se refere ao seu rela-

21
ENTREVISTA

cionamento, mas fui eu o último que deu aceitar nossas propostas, feitas em nome,
a mão a ele na hora da morte. E ele ainda muitas vezes, do Conselho de Presbíteros,
teve forças para me dizer: “Eu tive mil ao qual pertencia Monsenhor Bevilacqua,
pessoas que me chamavam de amigo, mas que está ao meu lado, do Colégio dos
uma eu sei que era e é meu amigo, é Bispos. Fui algumas vezes ao gabinete
Paulo Evaristo Arns”. Eu disse para de Médici levar a opinião dos bis-
ele: “Deus te abençoe nessa “Todos pos do Estado de São Paulo. Ele
caminhada onde iremos nos me pôs para fora e disse: “O
que estão aqui
encontrar de novo”. senhor cuide da sacristia que
nesta mesa são gran- nós cuidamos da ordem
Posso dizer que com
os políticos, no final, des lutadores pela trans- pública”. Eu disse: “Mas
eu sempre me enten- formação do Brasil, sobretu- a ordem pública está
sendo violada”. E foi a
di, quando não eram do, para não deixar apagar a despedida de Médici
militares. Os militares
não queriam o enten-
chama da esperança. Precisamos para sempre.
dimento, mas oposi- ter esperança para chegarmos à Jorge Henrique
ção. Eles achavam utopia que todos desejam. E vai ser Cartaxo - Dom
que a Igreja era dos realizada em breve, se Deus quiser, Paulo, minha gera-
pobres, portanto, ção cresceu sob a
comunista e contra ao contrário do que predizem os ditadura militar e
o regime. Por isso pessimistas. Somos um povo que amadureceu na
eles não respeita- vive de esperança. Devemos unir democracia. Os
vam nossa opinião. problemas funda-
Só a respeitavam em
nossas forças num governo que mentais, aqueles que
ocasiões nas quais aceita ou não, psicologicamente nos animaram a lutar
isso era muito fácil e ou politicamente, mas quer o contra a ditadu-
visível para o povo. bem do Brasil e vai fazer o ra, não foram resol-
E o povo, no início, vidos em vinte anos
também a c r e d i t a v a bem, se Deus quiser, com a de democracia. Ainda
na revolução. Quando ajuda de todos. O Brasil que possamos apresen-
falávamos na revolução, é responsável por si tar explicações técnicas e
o povo reclamava. Aos históricas para isso, a sen-
poucos, ele foi entenden- mesmo”. sação que se passa, no senso
do que a revolução trabalhava comum, é que essa inviabilida-
para uns poucos e não para todos de permanente é muito incômo-
os brasileiros. Não trabalhava para o da. O que V. Excia. tem a dizer sobre
futuro nem para o presente, mas para um isso?
passado que já deveria ter sido enterrado Dom Paulo Evaristo Arns - O senhor
há muito tempo. acha que não temos democracia, não é?
Dizer como era nosso comportamen- Temos apenas um arremedo de democracia
to é uma tarefa difícil, porque cada momen- ou uma tentativa de fazer o povo participar
to era diferente, cada pessoa tinha seu tipo, por meio das eleições e por mais alguma
seu caráter, seu modo de nos receber e coisa. Mas considero muito pouco.

22
DOM PAULO EVARISTO ARNS

Jorge Henrique Cartaxo - É o que metáfora no cristianismo é a distribuição


me parece. Veja, se considerarmos que do pão e dos peixes – apesar de ser um
democracia significa eleições, participa- pouco diferente, considero-me cristão.
ção política e formalidade jurídica, creio Como podemos agir neste momento para
que temos democracia. Entretanto, per- que a economia realmente sirva ao povo
cebo que o resultado que isso poderia e não aos interesses do sistema financeiro
trazer, em termos de qualidade de vida, internacional aqui representados?
bem-estar e aspiração, parece impossível.
Dom Paulo Evaristo Arns - V. Sª.
A sensação que se passa é essa.
mesmo respondeu à sua pergunta, no
Dom Paulo Evaristo Arns - Na minha início. De fato, enquanto deixarmos esse
opinião – eu não costumo dizer em públi- grupo, em Brasília – um grupo novo e
co – o atual presidente da República deve inexperiente, em um governo democrático
fazer uma reforma completa na política, de um novo presidente da República – agir
sobretudo em relação aos cargos essen- sozinho, sem o apoio de cada estado...
ciais que vão orientar a Nação. Assim, Cada estado deve realizar aquilo que é
poderemos acreditar em uma verdadeira próprio do povo, porque temos mais de
democracia, porque o povo vai receber, 300 Brasis. Cada estado é um Brasil, por-
da parte daqueles que são mais amigos, que tem uma mentalidade própria e um
aquilo que se espera. jeito de realizar as coisas e sabe como
É preciso dizer sempre ao presidente fazê-lo. Nosso País é inventivo, com uma
da República que o Brasil não é dele. O grande capacidade de transformação. Se os
Brasil é de todos os brasileiros. E todos eles estados começarem a transformar o Brasil
são representados por um grupo de pesso- e o Governo Federal aceitar as propostas
as escolhido pelo presidente da República. de baixo para cima, certamente teremos
Essas pessoas devem ser escolhidas para um outro Governo, outro sistema e um
servir o povo e não pelo fato de que são resultado bem mais condizente com o que
amigas ou foram amigas do presidente em deseja a maioria do povo brasileiro.
épocas difíceis. Dr. Hélio Bicudo - Dom Paulo, não
Mauro Santayana - Dom Paulo, como vou fazer uma pergunta, mas uma consta-
V. Excia. tocou nesse assunto, chegamos a tação. Creio que essa entrevista é da maior
dois graves problemas: a política econômi- importância, pois V. Excia. é bastante
ca brasileira e as instituições brasileiras. O conhecido. Mas suas palavras, na medida
primeiro problema reside na deterioração em que voltam ao povo, têm, na realidade,
paulatina do sistema federativo nacional um retorno excepcional para que o povo
com a concentração excessiva do poder tenha esperança. V. Excia. tem sido, é e vai
em Brasília. Em conseqüência, a economia ser sempre o bispo de nossa esperança.
brasileira está nas mãos de três ou quatro Dom Paulo Evaristo Arns - Muito
pessoas, que estão em Brasília, que não obrigado, Dr. Hélio. Considero que fize-
conhecem a história do País, a miséria mos um grande esforço. Todos que estão
do povo e não têm compromisso com os aqui nesta mesa são grandes lutadores pela
brasileiros. transformação do Brasil, sobretudo para
Essas pessoas estão ditando a polí- não deixar apagar a chama da esperança.
tica econômica. A meu ver, a melhor Precisamos ter esperança para chegarmos

23
ENTREVISTA

à utopia que todos desejam. E vai ser


realizada em breve, se Deus quiser, ao
contrário do que predizem os pessimistas.
Somos um povo que vive de esperança.
Devemos unir nossas forças num governo
que aceita ou não, psicologicamente ou
politicamente, mas quer o bem do Brasil
e vai fazer o bem, se Deus quiser, com a
ajuda de todos. O Brasil é responsável por
si mesmo.

24
ENSAIO * FABIANO SANTOS

A Reforma do Poder
Legislativo no Brasil
1) Introdução provisória, impedindo que estas sejam
reeditadas indefinidamente, ao mesmo
O Poder Legislativo é certamente
tempo que forçando o pronunciamento
a instituição governamental que mais
do plenário sobre as que foram enviadas
reformas tem feito no sentido de aumentar
pelo Executivo, emenda essa que veio a ser
a transparência de suas atividades e
ratificada pelo Senado Federal.
ampliar sua capacidade de controle sobre
as ações dos demais poderes. Um primeiro Um efeito claro da medida, já
passo importante foi dado no início da observado, foi o de diminuir o ímpeto do
legislatura passada, com a inauguração Executivo em governar por decreto. Além
das TV´s Câmara e Senado, por assinatura, disso, foi criada uma Comissão Participativa
responsáveis pela transmissão de sessões destinada a receber projetos formulados
deliberativas de comissões e plenário. No por entidades representativas da sociedade
final desta mesma legislatura, por iniciativa e fornecer-lhe a devida tramitação. Se
do então deputado federal pelo PSDB de eficaz, tal comissão fornecerá visibilidade
Minas Gerais, Aécio Neves, presidente da aos projetos que pela Câmara tramitam,
Casa, a Câmara dos Deputados aprovou visibilidade que pode significar importante
emenda constitucional que confere nova estímulo a deputados e senadores para que
regulamentação ao instituto da medida invistam parcela maior de seu tempo em

* Cientista Político, Professor e Pesquisador do IUPERJ (Instituto Universitário do Rio de Janeiro)

26
FABIANO SANTOS

projetos e emendas do próprio Legislativo, Legislativo no sistema político brasileiro –


e diminuam a proporção das energias este é o objeto da próxima seção, restando
parlamentares dedicadas à agenda do para as duas últimas a discussão conceitual
Executivo. e as propostas de reforma.
O início da legislatura atual não
modificou o ânimo dos líderes da Câmara
2) O Poder Legislativo no
em aprofundar o processo de desenvolvi- Presidencialismo de Coalizão
mento institucional do Legislativo. Tanto o Para melhor contextualizar o tema,
número quanto o formato das comissões faz-se necessário identificar como o debate
permanentes sofreram alterações, tendo em torno da assim chamada reforma do
em vista a necessidade de acompanhar a Poder Legislativo se inscreve no contexto
estrutura do Poder Executivo – até pouco mais geral das mudanças institucionais
tempo, o sistema de comissões contava em curso no país. O sistema político
com 16 destes órgãos, número que se institucional do estado democrático
elevou para 20 ao final do ano de 2003. pode ser entendido como composto
Ademais, estudos estão sendo feitos no de dois conjuntos de elementos: os
intuito de restringir a criação de comis- elementos constitucionais e os elementos
sões especiais e os pedidos de urgência procedimentais1.
constitucional, mecanismos que amesqui- a) a dimensão constitucional é com-
nham o poder das comissões permanentes, posta por dois conjuntos de variáveis: as
principal instrumento de intervenção dos variáveis relacionadas aos sistemas elei-
representantes no processo decisório e de torais e partidários, vale dizer, às regras
implementação de políticas e programas mediante as quais votos são transformados
do governo. em cadeiras parlamentares, e as variáveis
No texto que segue, mostrarei que referentes ao sistema de governo. Sabe-se
estas mudanças institucionais estão no que, no Brasil, adota-se o sistema propor-
caminho certo, se o que se deseja é cional de lista aberta e sistema presiden-
o fortalecimento do Legislativo. Farei cial. Se juntarmos a estas instituições o
isto mediante a exposição de alguns federalismo e o bicameralismo, conclui-se
pontos conceituais derivados de avanços que a democracia brasileira, pelo menos
teóricos e empíricos conquistados ao no que tange a seus elementos constitu-
longo das últimas décadas pela ciência cionais, é altamente difusora do poder
política, especialmente na área de estudos político, no sentido de que maximiza a
legislativos. Além disso, proponho um participação do eleitor na configuração
conjunto de alterações institucionais, a dos loci de exercício do poder.
meu ver compatíveis com o espírito que b) a segunda dimensão, a procedi-
vem animando os legisladores no que mental, trata dos poderes de agenda do
concerne a estas últimas decisões, de Governo e da organização interna do
natureza procedimental, e que têm sido Legislativo, vale dizer, as regras e proce-
tomadas, principalmente, no âmbito da dimentos de formulação da agenda par-
Câmara dos Deputados. Antes de prosseguir lamentar, os núcleos de elaboração das
nesta direção, é preciso esclarecer algumas políticas, não só propostas, mas também
questões relativas à inserção do Poder efetivamente aprovadas, e os agentes de

27
ENSAIO

maior influência nesse processo. Uma pastas ministeriais entre membros dos
questão central, quando se verifica este principais partidos, na esperança de obter
conjunto de elementos, é a capacidade do em troca o apoio da maioria do Congresso.
Poder Executivo de iniciar e influenciar o O impacto desta prática institucional para
processo legislativo e até que ponto este o desempenho do órgão representativo
poder amesquinha tanto a extensão dos é significativo, e o exemplo do início
direitos parlamentares dos deputados sem do atual governo ilustra perfeitamente o
postos na burocracia parlamentar, quanto sentido deste impacto3.
as prerrogativas de poder das comissões A tabela abaixo compara o tamanho
permanentes do Poder Legislativo. Sabe- da base de apoio ao governo na Câmara dos
se, por exemplo, que existe uma alta Deputados em dois momentos distintos:
concentração do poder decisório e de logo após o pleito de 2002 e ao fim de 6
agenda em mãos do chefe do Executivo meses de governo do presidente Lula4.
e das lideranças partidárias no interior do
Congresso2. Tabela 1
Para nossos propósitos, o que importa
assinalar é que a conjugação dos elementos Força Parlamentar da Coalizão
constitucionais do sistema político, Governista em Dois Períodos Distintos
baseada em uma concepção difusora do Lula 1 Lula 2
poder, com seus elementos procedimentais, PT - 0,17 PT - 0,18
de inspiração concentradora, dá origem a
PL - 0,05 PL - 0,06
um modelo institucional cuja essência pode
ser condensada na seguinte expressão: PTB - 0,05 PTB - 0,09
“presidencialismo de coalizão”, com PSB - 0,04 PSB - 0,06
amplos poderes de agenda depositados PDT - 0,04 PDT - 0,03
no Executivo. Tal modelo, complexo em PPS - 0,02 PPS - 0,04
sua concepção e operação, comporta PCdoB - 0,02 PC do B - 0,01
certos desequilíbrios no modo pelo qual o PV - 0,01 PV - 0,01
poder político se distribui entre as diversas
PMDB - 0,13
instâncias do sistema. Veremos que a
reforma do Poder Legislativo pode cumprir 0,40 0,62
Fonte: Câmara dos Deputados
a importante função de re-equilibrar o
balanço entre os Poderes. Vejamos
O novo governo seguiu a rota
porque.
habitual da política brasileira: por um
O ponto de partida, portanto, de lado, estimulou a troca de legendas de
toda análise sobre o Legislativo deve partidos originariamente de oposição
ser o conceito de “presidencialismo em direção a partidos aliados, embora
de coalizão”. A combinação de o PT tenha se preservado desta dança,
sistema presidencialista, representação e, por outro, convidou o PMDB, grande
proporcional de lista aberta e sistema partido de centro, para fazer parte da base
parlamentar fragmentado leva o chefe do formal de apoio ao presidente5. Ao fim de
Executivo, na intenção de implementar sua diversas negociações, envolvendo cargos
agenda de políticas públicas, a distribuir na estrutura da liderança do governo

28
FABIANO SANTOS

no Legislativo, a concessão imediata de Opiniões correntes sobre nossa vida


cargos de segundo e terceiro escalão, além partidária afirmam que esta funciona
da promessa de postos ministeriais em razoavelmente bem no interior do
futuro próximo, a bancada peemedebista Legislativo, sendo a atividade parlamentar
decide aceitar fazer parte da coalizão coordenada pelas lideranças, com taxas
governamental. Com estes movimentos, de disciplina relativamente altas e alguma
o governo Lula, que havia iniciado sua estabilidade no que concerne ao perfil
administração controlando apenas 40% das coalizões vencedoras e perdedoras
das cadeiras na Câmara dos Deputados, no plenário. Todavia, grande ceticismo
termina seus primeiros 6 meses com o prevalece quanto à capacidade dos partidos
apoio de 62% destas. Qual o significado se comunicarem com os eleitores no sentido
político institucional desta mudança de de definirem uma imagem minimamente
cenário? distinta das demais agremiações, com base
Relevante, neste contexto, é o fato na defesa de determinados pontos da
de o PMDB ter apoiado a candidatura agenda pública e a maneira de encaminhá-
contra a qual Lula se bateu no segundo los. A crônica deste início de governo Lula
turno das eleições presidenciais, além de sugere a proposição de que a opção mais
ter sido a agremiação que forneceu a fácil de montagem de coalizões majoritárias
candidatura a vice-presidente nessa mesma no parlamento tem também contribuído
chapa. Em uma palavra, um dos partidos para este curto circuito entre partidos
que concorreu nas eleições majoritárias e eleitores, cuja manifestação empírica
defendendo o governo e em oposição vem estampada em taxas de identificação
à candidatura e coligação de partidos partidária minimalistas.
vitoriosos no pleito, depois de 6 meses de A rationale da decisão do governo de
governo, torna-se parceiro da coalizão de incorporar o PMDB ao governo é bastante
apoio ao novo presidente. evidente. O cenário, no início da atual
Dois pontos são particularmente administração, foi o de uma aposta na
importantes aqui: em primeiro lugar, o viabilidade de um governo de minoria.
presidente Lula optou por reduzir os custos A inclusão daquele partido na base
de transação no Legislativo montando uma aumentaria a folga numérica no plenário
coalizão de ampla maioria, tornando a da Câmara, mas, assim pensava o governo,
cooperação de partidos como o PSDB poderia gerar desgaste eleitoral por
e o PFL desnecessária para definição e manter no governo um partido altamente
aprovação da agenda governamental; comprometido com a chapa derrotada
em segundo, decide enfrentar os custos no pleito e com o antigo governo. Além
políticos de incluir uma agremiação disso, conceder ministérios a um partido
tida como “excessivamente pragmática” pragmático como o PMDB traria consigo
por amplos setores da opinião pública o risco de abdicar de determinadas áreas
e de próprios membros da base aliada. de políticas públicas sem a garantia da
O trade-off, custos de transação versus contrapartida em votos disciplinados em
custos políticos, foi resolvido em favor do plenário (lembrar que este partido foi
primeiro, isto é, sanou-se o primeiro com o a agremiação da base de FHC menos
conseqüente agravamento do segundo. disciplinada em plenário, com média, no
Várias são as implicações desta período 2002, de 85%). O que significava,
decisão, algumas delas já conhecidas. àquela altura, a aposta de Lula?

29
ENSAIO

Tratar-se-ia de um governo de minoria do ponto de vista do funcionamento do


e, como tal, não poderia contar somente presidencialismo de coalizão, qual o
com seus próprios votos para aprovar ensinamento desta decisão? A primeira e
a agenda de governo. A experiência de fundamental lição é a de que os benefícios
governos minoritários na Europa e nos de fazer parte do governo são muito
EUA indica que a governabilidade neste elevados. E em segundo, os custos de
tipo de governo pressupõe a montagem de negociar com os grandes partidos em torno
coalizões tópicas, negociadas caso a caso. de uma agenda de policies são também
Com freqüência, um pacote de projetos é bastante altos.Tratemos de cada uma destas
negociado ex ante, apoiado por setores da lições separadamente.
sociedade e lideranças partidárias nacionais O poder de nomear e demitir,
e sociais que se viabiliza exatamente por o poder de reter e liberar recursos
ter sido legitimado em ambiência externa orçamentários, além do enorme poder
ao Congresso. de definição do conteúdo e timing da
A negociação pode se dar também agenda de decisões governamentais são
no interior da própria instância represen- os principais instrumentos de atração
tativa, ocasião na qual o caráter minori- dos partidos e representantes para o seio
tário assume feições mais nítidas. Neste da coalizão governista no Legislativo
contexto, organismos suprapartidários do brasileiro. Para um partido qualquer, duas
Legislativo deverão ser valorizados, tais alternativas se colocam de maneira muito
como as comissões técnicas, posto que a clara: a primeira consiste em correr o
participação institucionalizada de mem- risco de participar de um governo que
bros da oposição no desenho dos projetos pode eventualmente fracassar e, por
é de fundamental importância. O desa- conseguinte, arcar com os custos políticos
fio neste contexto seria o de fortalecer o de ter alguma responsabilidade no processo;
Congresso como ator proativo, propositor, e a segunda é a de decidir permanecer
dotado de visão própria sobre os rumos do lado de fora da coalizão, assumindo
da agenda governamental. O pressuposto o papel de opositor. Este pode ser de
desta aposta do PT seria a adoção, por natureza construtiva, ou sistemática.
parte dos principais partidos de oposi- A adoção de um ou outro tipo
ção, aí incluído o PMDB, de uma postura dependerá de variáveis como popularidade
policy oriented. A pergunta passaria pois a do presidente, tamanho e coesão da base
ser: seria a orientação programática capaz parlamentar do governo, capacidade de
de vencer a orientação patrimonialista, comunicação para os eleitores de um curso
presente em boa parte da vida de nossas de ação cooperativo, etc. O fato é que, nas
agremiações? condições atuais da política brasileira, a
Como sabemos, a decisão final do atração exercida pelo Poder Executivo
governo foi a de convidar o PMDB para é considerável e isto ficou mais do que
fazer parte da base, além de estimular comprovado com a decisão do PMDB de
o troca-troca de legendas em favor dos aderir à coalizão governamental, além da
partidos aliados. Com isso, encurta-se enxurrada de parlamentares que trocaram
o caminho para a obtenção de maioria de partidos em direção a agremiações da
parlamentar em apoio à sua agenda. Mas, base aliada.

30
FABIANO SANTOS

Os custos de transação para um Em suma, uma reforma do Poder


governo que precisa negociar uma agenda Legislativo, com vistas a uma vida
com partidos de oposição são altos porque partidária mais estável, além de uma
estes se vêem inteiramente desprovidos distribuição mais equilibrada do poder
de meios para implementar políticas de em nosso sistema político, deve atacar
governo. Como qualquer liberação de os seguintes dois pontos: a) elevar os
recursos orçamentários exige uma decisão custos políticos de fazer parte do governo;
do Executivo, e como fazer políticas b) aumentar os benefícios de se manter
públicas é liberar recursos, então toda na oposição. Antes de dar continuidade
e qualquer política pública no país só à dimensão procedimental do debate, é
pode ser feita pelo governo. Partidos de importante observar de que maneira a
oposição não percebem nenhum ganho ciência política, especialmente a área de
em cooperar com um presidente que irá estudos legislativos, avalia o desempenho
“faturar” de forma quase monopólica do Legislativo no Brasil.
os benefícios de implementação de
programas governamentais. Daí a virtual 3) O Legislativo Brasileiro e os
impossibilidade de se contar com a Estudos Legislativos
cooperação de partidos oposicionistas Existem duas tradições na área
e, por conseguinte, de se governar com de estudos legislativos. A primeira, de
minoria no parlamento. extração funcionalista, procura detectar
É esta alienação dos partidos par- o papel, ou papéis, que o parlamento
lamentares dos programas de alocação de cumpre em determinado país. A segunda,
recursos orçamentários que torna essencial desenvolvida a partir da abordagem neo-
para o governo montar coalizões majori- institucionalista, verifica os objetivos
tárias, eventualmente supermajoritárias, o de carreira dos parlamentares, as regras
que depende da natureza da agenda e da sob as quais interagem com os colegas
disciplina esperada de seus parceiros origi- e demais atores políticos, para então
nais. Em outras palavras, para o presiden- explicar fenômenos relevantes relativos
te, governar com minoria, ou até mesmo à vida parlamentar, tais como disciplina
partidária, produção legislativa, maior ou
maiorias mínimas, é muito custoso, pois,
menor predominância do Executivo, etc.
do ponto de vista dos partidos de opo-
sição, não há incentivo para cooperar; Segundo a abordagem funcionalista,
por outro lado, participar do governo um parlamento pode ser ativo, reativo
é altamente benéfico, pois fora dele não ou “carimbador”6. Um legislativo ativo é
há como alocar. Contudo, ao decidir pela aquele que possui a iniciativa do processo
incorporação de partidos originalmente de decisório. Além de predominante quanto
oposição à base aliada, o governo interfere à origem dos projetos aprovados, é ator
na comunicação que estes tentam estabele- fundamental também na implementação
cer com os eleitores – eis um dos desafios dos programas governamentais e alocação
institucionais de nosso sistema político e de recursos. Alta complexidade interna,
que tem sido enfrentado pelas reformas que se expressa em ampla divisão do
institucionais implementadas na Câmara trabalho legislativo em comissões técnicas,
ao longo dos últimos anos. permanentes, altamente especializadas,

31
ENSAIO

é a marca deste tipo de parlamento. parlamento, enquanto instituição distinta


Ademais, é comum observar a prevalência do governo, socializar os parlamentares
de carreiras legislativas exclusivas, ou seja, na vida pública e fornecer quadros para
o alvo principal da ambição dos políticos os ministérios e secretarias de governo. A
é a conquista de cargos na hierarquia carreira de um legislador nestes casos é
interna do Legislativo, como presidência dedicada ao parlamento até o ponto em
de comissões importantes, liderança de que este consegue a nomeação para um
bancada ou postos na mesa diretora. ministério, este sim, o verdadeiro alvo da
Um legislativo reativo é aquele ambição política.
que delega a iniciativa das proposições O Legislativo brasileiro é reativo. Em
legais mais importantes para o Executivo. trabalho recente, Santos e Amorim Neto
A definição da agenda, assim como as (2002) observaram que em um universo de
prioridades no que tange à ordem de mais de duas mil leis aprovadas de 1985
apreciação dos projetos, é transferida para o a 1999, apenas 336 tiveram a iniciativa
governo e negociada, posteriormente, com de parlamentares. Além disso, constatou-
os parlamentares que lideram o partido se que, embora relevante para grupos e
ou coalizão legislativa majoritária. A setores da sociedade, tais leis não afetam
atividade fiscalizatória destes parlamentos o status quo econômico e social do país,
é, em geral, bastante bem difundida. sendo mais propriamente intervenções
Todavia, a complexidade interna não é tão tópicas em questões pertinentes à
desenvolvida, o que torna o parlamento até vida do cidadão comum. O processo
certo ponto dependente das informações orçamentário, ademais, é controlado pelo
processadas por agentes fora do âmbito Executivo e organizado para favorecer as
legislativo, como a burocracia do Executivo, prioridades estabelecidas pela coalizão de
o Judiciário, ou grupos de interesse. Além partidos que dominam o governo, sendo
disso, os políticos não conferem prioridade a intervenção dos parlamentares apenas
à carreira no Legislativo, preferindo, na marginal (Figueiredo e Limongi 2002). A
medida do possível, concorrer, através do complexidade interna, embora crescente,
voto ou nomeação, a postos no governo, como atesta a recente elevação do número
ao nível nacional ou local. de comissões técnicas da Câmara de 16
Um legislativo “carimbador” é aquele para 20, ainda é insuficiente para fazer
que funciona inteiramente a reboque do frente à máquina de produzir informações
governo. As matérias que tramitam no do Executivo. Finalmente, com relação às
Legislativo o fazem de modo quase que carreiras dos legisladores, vários estudos
inteiramente pro forma, cabendo aos órgãos mostram que estas se caracterizam pelo
internos do parlamento apenas arrematar o perfil “zigue-zague”, freqüentemente tendo
projeto em seus aspectos técnicos. Uma postos eletivos do Executivo ao nível local
vez definida uma coalizão legislativa como prioridade. (Samuels 2003; Santos
majoritária, todo o poder decisório e 2003b).
alocativo é delegado ao governo que passa Uma vez constatado o perfil reativo
a dar o tom dos trabalhos legislativos. do Legislativo brasileiro, dois pontos
Ocorre uma fusão entre os Poderes merecem tratamento mais cuidadoso: 1)
Legislativo e Executivo, sendo o papel do se é desejável conferir um perfil mais

32
FABIANO SANTOS

ativo ao Congresso; e, 2) que medidas dos representantes em distribuir benesses


de reforma poderiam contribuir para localizadas, de visibilidade para os eleitores,
avançarmos nesta direção. Antes de atacar esforço cuja origem remonta à necessidade
estes pontos, passemos para a abordagem de reprodução eleitoral do congressista.
neo-institucionalista aplicada ao estudo do
Onde a subcorrente distributiva
Legislativo.
observa particularismo, a informacional
Os estudos nessa área, predomi- vê eficiência coletiva8. A organização
nantemente voltados para o Congresso do Congresso em torno de comissões
norte-americano, se subdividem em dois altamente especializadas seria um meio
grandes grupos: existem aqueles que não de atender às demandas dos congressistas
vêem relevância na ação dos partidos e os por expertise – demanda que advém da
que consideram os partidos o ator chave tentativa de redução da incerteza que
na organização e processo decisório do circunda necessariamente o trabalho de
Congresso. formulação e implementação de políticas
A corrente que não considera os públicas. Tanto a regra da antiguidade,
partidos como instituição relevante quanto as regras de restrição de emendas
se desdobra em duas subcorrentes: a às proposições enviadas ao plenário pelas
distributiva e a informacional. A primeira comissões seriam, na verdade, incentivos
postula que a organização do Congresso para o desenvolvimento das próprias
serve aos interesses de reprodução comissões. Os riscos de particularismo,
eleitoral de seus membros7. Uma vez que a inerentes a um processo decisório
conquista do voto é função da capacidade compartimentado em pequenos núcleos
do representante de atender aos interesses decisórios, ver-se-iam reduzidos na
radicados no distrito eleitoral pelo qual medida em que as diversas tendências de
se elegeu, este procurará se especializar opinião existentes no plenário, isto é, sua
em temas de políticas públicas de grande heterogeneidade, tivesse correspondência
impacto neste distrito. É importante lembrar na composição das próprias comissões.
que o mesmo problema é enfrentado A corrente partidária discorda
pelos demais representantes, o que os frontalmente com a assertiva, presente na
leva a desenvolver instituições internas corrente anterior, de acordo com a qual os
que permitam aos deputados adquirirem partidos não seriam instituição relevante
expertise nas políticas públicas pertinentes de organização e decisão congressual9.
e distribuírem benefícios concentrados em Pelo contrário, segundo os defensores
favor dos eleitores de seu distrito. desta corrente, as instituições do legislativo
O sistema de comissões especializa- expressam os dilemas de ação coletiva e
das, dotadas de amplos poderes de agen- conflitos internos ao partido ou coalizão
da, a regra da antiguidade como meca- majoritária. Os partidos cumpririam
nismo de acesso a posições de hierarquia duas importantes funções: serviriam de
nas mesmas e os instrumentos regimentais veículo para a tomada de decisão do
que protegem os projetos, aprovados nas eleitor e mecanismo de coordenação do
comissões, de modificações em plenário comportamento dos parlamentares, uma
seriam mecanismos mediante os quais o vez eleitos. Vale dizer, os políticos extraem
processo decisório atenderia ao esforço benefícios da existência dos partidos,

33
ENSAIO

porque isto facilita sua atuação como e coletivos de uma mesma coalizão de
candidato ao sinalizar seu posicionamento congressistas.
em questões de interesse público, assim A literatura recente sobre o
como sua atuação enquanto parlamentar, Congresso brasileiro tem verificado a
ao balizar suas decisões relativamente às coexistência de elementos distributivos e
matérias que chegam a voto em plenário. partidários no comportamento legislativo
Contudo, o interesse que subsidia de nossos parlamentares10. Indicadores
a emergência e força dos partidos é como pesquisas de opinião, produção
um interesse coletivo, ao passo que os legal, processo orçamentário e disciplina
parlamentares também se elegem por conta partidária revelam pelo menos dois
de seus esforços individuais no sentido de pontos fundamentais: existe amplo
atender às demandas de seus eleitores. reconhecimento sobre a importância de
O dilema coletivo dos políticos face aos se constituir, junto aos eleitores, reputação
partidos surge exatamente no momento pessoal, ou seja, a tarefa da representação
em que há o risco da imagem do partido se política no Brasil está fortemente ancorada
desgastar, seja pela falta de investimento na figura individual do político; todavia,
dos parlamentares nos temas e políticas que o espaço de atuação do parlamentar,
conferem a marca coletiva da agremiação, tomado individualmente, é muito reduzido
seja pelo sobre-investimento nas matérias no parlamento; vale dizer, a atividade
de alcance meramente paroquial. legislativa, sua organização e processo
de decisão, se encontra centralizada na
A solução clássica para problemas de
liderança dos partidos, em particular dos
ação coletiva é delegar para indivíduo ou
partidos que formam a base aliada ao
grupo de indivíduos a tarefa de coordenar,
governo.
canalizar os esforços individuais na direção
do bem público, vale dizer, dotar este Ademais, e o que é mais relevante
grupo de indivíduos de poder e conceder- para fins da presente discussão, é que
lhe incentivos para que assuma o ônus de também existe amplo consenso de que
organizar o comportamento individual e faz falta ao Congresso brasileiro, em sua
realizar o interesse coletivo – na vida dos forma de atuar, regras e procedimentos que
partidos e parlamentar, este agente atende incentivem o desenvolvimento de expertise
pelo nome de lideranças partidárias. O e capacitação dos parlamentares para a
papel das liderança dos partidos seria, formulação e implementação de políticas
não propriamente ou unicamente o de públicas. Em uma palavra, o Congresso
disciplinar a conduta da bancada, mas ainda está por desenvolver mecanismos
o de não permitir que a ação individual informacionais.
prejudique sobremaneira a imagem Em resumo, os estudos sobre o
coletiva da agremiação, por um lado, Legislativo brasileiro, e levando-se em
e, por outro, não permitir que conflitos consideração as diversas perspectivas que
de interesse e de opinião no interior da avaliam o papel e comportamento do par-
bancada levem a seu amesquinhamento lamento na democracia contemporânea,
eleitoral e político. Em uma palavra, a indicam ser esta uma instituição de perfil
função da liderança partidária é a de reativo que se organiza e toma decisões
compatibilizar os interesses individuais mediante uma combinação de elementos

34
FABIANO SANTOS

partidários e distributivos. Por conseguin- ano pelo Legislativo, imperativo e não


te, a discussão sobre possíveis pontos apenas autorizativo. Retirar o poder de
de reforma deste Poder no Brasil passa, contingenciar o gasto da União é vital
necessariamente, pela indicação de como para conferir maior responsabilidade às
é possível conferir a ele um perfil mais decisões dos congressistas, assim como
ativo, além de aumentar sua capacidade para redistribuir o poder político da
informacional. burocracia do Ministério da Fazenda em
favor da dimensão representativa do regime
4) Conclusão e Proposta de democrático. Por óbvio, não devemos
Reforma pensar que se trata de decisão simples
Conferir um perfil mais ativo ao que possa ser tomada imediatamente.
Poder Legislativo no Brasil, assim como Assim sendo, e mantido o desiderato
reforçar os elementos informacionais de da mudança, é relevante a discussão
sua estrutura institucional, nos conduz ao sobre formas de negociação do próprio
início do texto, em particular à proposição processo de contingenciamento, isto é, ao
básica do argumento nele defendido - a Congresso deveria caber papel mais ativo
reforma do Poder Legislativo visando ao na definição das prioridades e timing de
seu fortalecimento deve, primordialmente, liberação de recursos para programas e
desenvolver regras de organização interna atividades governamentais.
que aumentem os benefícios de se estar b) A segunda medida essencial no
na condição de oposição parlamentar, ou sentido de se aumentar o poder de alocação
diminuam os custos de não fazer parte do do Congresso diz respeito à própria forma
conjunto de partidos que possuem cargos pela qual a peça orçamentária é discutida
no ministério. e aprovada no Congresso. Atualmente, o
Aumentar os benefícios de ser opo- processo é concentrado em uma comissão
sição parlamentar significa multiplicar as mista, sendo de vital importância a figura
possibilidades de intervenção dos parla- do relator do projeto, em geral escolhido
mentares, independentemente de sua con- entre os mais confiáveis membros da base
dição de aliado ao governo, no processo aliada ao governo. Embora importantes
de formulação de políticas públicas. A modificações tenham sido introduzidas
meu ver, três dimensões são de funda- nos últimos anos, visando tornar a decisão
mental importância para se avançar nesta sobre o Orçamento mais transparente e
direção: 1) aumentar o poder de alocação descentralizado (Figueiredo e Limongi
de recursos do Congresso; 2) aumentar 2002), ainda é fato que as comissões
o poder decisório das comissões técni- permanentes se encontram praticamente
cas permanentes; 3) alterar a estrutura de alijadas do processo.
oportunidades com a qual se defrontam os Uma maneira de contornar esta situ-
políticos no Brasil. ação é dividir o projeto orçamentário por
Quanto ao primeiro aspecto, trata- áreas e enviar os diversos subprojetos
se de discutir a inserção do Congresso para comissões pertinentes, fornecendo a
no processo orçamentário brasileiro. estas o poder de modificar as estimativas
Duas medidas são essenciais: a) tornar de receitas e despesas ali contidas11. Uma
o orçamento, que é aprovado a cada vez aprovada a proposta da comissão

35
ENSAIO

temática, esta a envia para a comissão de A questão das comissões especiais é


orçamento e suas subcomissões, que trata- mais um mecanismo de amesquinhamento
riam de apreciar a proposta de substitutivo das atribuições das comissões permanentes.
daquela. Relevante ressaltar que tal divisão Projetos de emenda constitucional e proje-
de tarefas implica modificar a forma de tos de código não tramitam em comissões
tramitação do projeto de Orçamento, que permanentes. Ademais, matérias comple-
deixaria de ser unicameral, passando a xas, apreciadas por mais de 3 comissões
tramitar simultaneamente nas duas Casas permanentes, podem ser retiradas destas
do Congresso. e enviadas para uma comissão especial,
A segunda dimensão relevante encarregada unicamente de proferir pare-
consiste no problema do ritmo e lócus cer sobre tais matérias. Uma comissão
de tramitação das matérias enviadas às especial difere de uma permanente pelo
comissões permanentes. Duas questões fato de ser constituída apenas para dar
básicas devem ser consideradas: a) a conta da tarefa especificada no momento
questão da urgência; e b) a questão das de sua criação, isto é, trata-se de comissão
comissões especiais. Existem dois tipos de ad hoc cuja membership é escolhida caso
urgência, a constitucional, de prerrogativa a caso.
unilateral do chefe do Executivo, e a O ponto central é que a composição
regimental, que pode ser solicitada por das comissões especiais pode ser mani-
parlamentares, segundo vários critérios, mas pulada pelos líderes, responsáveis pela
cuja aprovação depende da concordância indicação de seus membros, independen-
do plenário. Em comum nos dois casos, temente de expertise no tema em apre-
o fato de uma matéria sob tramitação ciação, apenas para dar aquiescência às
urgente ter necessariamente de estar em finalidades do governo. As decisões de
plenário para votação em 45 dias, tendo uma comissão permanente, contudo, para
ou não sido apreciada pela comissão de cuja montagem algum grau de dedicação
mérito. e especialização nos temas pertinentes é
O ponto central é que os principais pressuposto de seus membros, não são de
projetos de interesse do Executivo, exce- fácil manejo por parte das lideranças do
tuando-se projetos de emenda constitucio- bloco governista.
nal, recebem o carimbo de urgentes, seja A facilidade de se pedir urgência
mediante pedido do próprio presidente, para a tramitação dos projetos de interesse
utilizando-se de sua prerrogativa cons- do governo e a prática de montagem de
titucional, seja pela via de acordo entre comissões especiais diminuem dramati-
líderes. camente os incentivos para que os par-
Não é difícil entender que o recurso lamentares, governistas ou de oposição,
sistemático do instrumento do pedido de participem do processo decisório, despro-
urgência, incidindo especialmente sobre vidos que são de um lócus a partir do qual
matérias importantes, acaba por enfraque- sua contribuição possa ser levada em
cer o trabalho das comissões permanentes, consideração. Impõe-se, portanto, por
diminuindo, por conseguinte, os incen- um lado, rediscutir os critérios tanto de
tivos para uma participação mais ativa indicação de tramitação especial para pro-
nestes órgãos. jetos, restringindo, por exemplo, o número

36
FABIANO SANTOS

destes que podem tramitar com urgên- Evidentemente, não se está propondo
cia em um mesmo intervalo de tempo, pura e simplesmente que os parlamentares
ou o tamanho do apoio necessário para que vierem a aceitar convites para ocupar
aprovar a urgência constitucional; e, por postos no Executivo desistam de seus man-
outro, permitir, às comissões permanentes, datos, mas sim que regras mais restritivas
a apreciação de projetos de emenda cons- sejam estabelecidas, tais como, limitar a
titucional e de código, além de aumentar quantidade de vezes que um parlamen-
os requisitos de complexidade, tendo em tar poderá se licenciar do exercício do
vista criar uma comissão especial. mandato sem perder a cadeira. Em suma,
Por último, a questão dos incentivos de o que se pede é a delimitação mais clara
carreira. Como vimos nas primeiras seções das fronteiras entre o mundo da represen-
deste trabalho, a prática do presidencialismo tação e outros lócus de exercício do poder
de coalizão leva o chefe do Executivo a político, tornando maior o incentivo para
compartilhar com vários partidos, e não que políticos que logram obter mandatos
apenas o seu, a formação do ministério. A representativos canalizem suas energias,
consolidação da aliança entre partidos se seu tempo e inteligência no fortalecimento
faz, freqüentemente, mediante a nomeação do Poder Legislativo.
de líderes partidários para os postos de Em suma, ampliação das prerroga-
primeiro escalão no Executivo – é comum, tivas das comissões permanentes, assim
corriqueiro, que parlamentares deixem como o aumento do poder de alocação
sua cadeira no Legislativo para cumprir do Congresso e a delimitação das carreiras
funções como ministro. A Constituição legislativas devem informar o espírito de
brasileira permite que um deputado ou uma eventual mudança institucional no
senador se licencie do mandato a fim de Poder Legislativo, tendo como desiderato
exercer cargos no ministério; da mesma a configuração de um perfil mais ativo,
forma, um parlamentar pode concorrer assim como o incremento de sua capa-
às eleições municipais, através do mesmo cidade de gerar, armazenar e distribuir
mecanismo da licença, sem por em risco informações pertinentes ao processo deci-
sua cadeira no Congresso. sório em políticas públicas.
O baixo custo com que os congres-
sistas podem, mediante a disputa eleitoral
ou nomeação, se lançar a experiências
políticas alternativas ao Legislativo reduz
a taxa de permanência dos políticos no
órgão representativo. Menores taxas de
permanência levam a menor investimento
dos membros na própria Casa. Uma Casa
legislativa forte depende de representantes
comprometidos com a tarefa de repre-
sentar, compromisso que advirá como
decorrência natural do estabelecimento de
critérios mais rígidos de licenciamento do
Legislativo.

37
ENSAIO

NOTAS
1
Nos próximos parágrafos, sigo a análise que consta em Santos, 2000 e 2002.
2
Ver, a respeito, Pessanha, 1997, e Figueiredo e Limongi, 1999.
3
O estudo pioneiro sobre o presidencialismo de coalizão é de Abranches, 1988. Desenvolvimentos recentes podem
ser encontrados em Figueiredo e Limongi, 1999; Amorim Neto, 2000; Meneguelo, 1998 e Santos, 2003b.
4
O texto que segue é inspirado em Santos, 2003a .
5
A literatura sobre o troca-troca de partidos já é bastante consolidada. Bons exemplos são Lima Jr.,1993, Nicolau
1996 e Melo, 2000; Meneguelo, 1998 e Santos, 2003b.
6
Ver, nesta linha de análise, Polsby, 1968; Packenham, 1970; Loewenberg e Patterson, 1979, Mezey, 1985.
7
Os principais trabalhos nesta linha são Mayhew, 1974; Ferejohn, 1974; Fiorina, 1977; Shepsle, 1979; Weingast e
Marshall, 1983; e, Cain, Ferejohn e Fiorina, 1987.
8
Ver Gilligan e Krehbiel, 1987; Krehbiel, 1991; Brady e Volden, 1998.
9
Os trabalhos mais importantes nessa tradição são Kiewiet e McCubbins, 1991; Rohde, 1991; Cox e MacCubbins,
1993; e, Sinclair, 1995.
10
Ver Figueiredo e Limongi, 1999; Pereira e Mueller, 2000; Carvalho, 2003; Amorim Neto e Santos, 2003.
11
Percebam que não se trata apenas de permitir que as comissões proponham emendas, mas de conferir a elas a
prerrogativa de avaliar os programas de receita e despesa existentes e que vierem a ser propostos para todos os
ministérios, segundo a área de especialização de cada comissão.

38
FABIANO SANTOS

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40
* FERNANDO LIMONGI / ** ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO ENSAIO

Modelos de Legislativo:
o Legislativo Brasileiro
em Perspectiva Comparada
Tipologias são difíceis de construir. Por isto mesmo, tipologias são tão
Tão difíceis de construir quanto fáceis de facilmente criticadas, posto que acabam
serem criticadas e rejeitadas. Em geral, por evidenciar as limitações e fraquezas
tipologias não conseguem dar conta de dos modelos teóricos que estão na origem
todas as dimensões e variações do obje- de sua construção. Na medida em que
to sob estudo no interior da teoria que a precisam abarcar todo o universo de casos
informa. A construção de tipologias pede a sob consideração, acabam por ser um
identificação de características essenciais desafio para as pretensões das proposições
do objeto, características capazes de estru- teóricas ao testarem sua capacidade de
turar e dar sentido à diversidade da rea- enfrentar os casos difíceis ou limites.
lidade observada. Trata-se de organizar o
mundo empírico no interior de um modelo Não faltam tipologias do Poder
teórico abrangente. O marco teórico sugere Legislativo. Cada uma delas organizadas a
- quando não determina - a escolha das partir de um referencial teórico específico
características relevantes para distinguir e e, desta forma, enfatizando certas caracte-
classificar os casos. rísticas como distintivas dos modelos ou

* Professor livre docente do CEBRAP / ** Cientista Política CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise a
Planejamento)

41
ENSAIO

tipos de legislativo existentes. Neste artigo, que as variáveis chaves para entender a
não pretendemos fazer uma resenha crí- variação dos legislativos, aqui como nos
tica das tipologias disponíveis. Tampouco países que são tomados como modelos
proporemos ou defenderemos uma tipo- paradigmáticos, estão ligadas à distribuição
logia própria. Nossos objetivos são bem dos direitos e recursos no interior do
mais modestos. Pretendemos, tão somente, legislativo, especialmente, aqueles que
resgatar uma das tipologias disponíveis, garantem o controle da agenda legislativa.
possivelmente a mais consagrada e citada, O essencial é saber quem define o que,
a saber, aquela proposta por Polsby (1975). como e quando matérias serão objetos de
Após discutirmos esta tipologia, mostramos deliberação.
como propostas mais recentes, como as de As decisões em assembléias legislati-
Cox e Morgenstern (2002), se defrontam vas são tomadas de acordo com o princípio
com dificuldades similares. majoritário, isto é, em última instância pre-
Nosso objetivo não é o de submeter valece a vontade da maioria do plenário.
essas tipologias a um exame detalhado. No entanto, ainda que a vontade soberana
Como dissemos, não é difícil criticar tipo- resida no plenário, é raro que as delibera-
logias. Nosso objetivo é usar as tipolo- ções, no sentido forte do termo, tenham
gias propostas para aprendermos algo lugar ali. Em geral, o plenário tão somente
relevante sobre modelos de organiza- referenda decisões tomadas em uma outra
ção dos trabalhos legislativos. Assim, instância ou instâncias. Nestes termos,
após reconstituir as tipologias propostas pode-se dizer que o plenário delega o
por Polsby e, com menor atenção, a de poder deliberativo, permanecendo com o
Morgenstein e Cox, mostramos as limita- poder de intervir e afirmar sua prerrogativa
ções e as conseqüências de ambas para sempre que a maioria acreditar que sua
nosso entendimento de como funcionam e vontade esteja sendo contrariada.
que papel desempenham os legislativos no De maneira geral os trabalhos legis-
interior de regimes democráticos. lativos se organizam em torno de duas ins-
Nossa discussão, no entanto, a tituições básicas: as comissões parlamenta-
despeito de se iniciar com estas abordagens res e as organizações partidárias. Cada uma
mais abrangentes, será direcionada para o dessas instituições torna possível cumprir
debate nacional. Isto é, nossa principal as funções básicas das assembléias legis-
preocupação é derivar deste exercício de lativas: a representativa e a propriamente
análise comparada algum conhecimento legislativa, isto é, a produção de leis que
relevante para o entendimento do nosso – vão definir as políticas públicas.
o brasileiro – modelo de poder legislativo. Em tese, a divisão do trabalho por
Para tanto, será necessário deixar o debate comissões permitiria maior especialização
dos modelos teóricos para examinar sua e o desenvolvimento de capacidade téc-
prática. nica, visando aumentar a qualidade das
A partir deste exame empírico e com decisões legislativas. A atuação das orga-
base nas críticas derivadas das discussões nizações partidárias, por outro lado, garan-
dos modelos resenhados, passamos a tiria a correspondência entre as decisões
considerar a forma de organização do tomadas e as preferências da sociedade
legislativo brasileiro. Argumentaremos aí representadas. Em termos ideais, essas

42
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

duas instituições se complementariam ponto de partida é a associação entre


para garantir que as decisões tomadas pela legislativos organizados em torno do
assembléia legislativa sejam as melhores e sistema de comissões, com o presiden-
as mais representativas. cialismo, e aqueles em que prevalecem as
organizações partidárias, com o parlamen-
Em assembléias específicas, porém, o
tarismo.
papel de uma ou outra dessas instituições
tende a preponderar, embora essa pre- Como mostraremos adiante, esta
ponderância nunca chegue à eliminação associação entre modelos de legislativo e
do elo mais fraco. A conhecida tipologia formas de governo é indevida. Pior: car-
de Polsby (1975) se ancora, justamente, rega consigo expectativas e preconceitos
na contraposição entre legislativos cujos que enviesam as análises. As conseqüên-
trabalhos se baseiam mais fortemente nas cias destes equívocos são evidentes no
comissões, àqueles em que o elo mais forte caso brasileiro, uma vez que as expectati-
é controlado pelos partidos. Como notado vas geradas pelas concepções subjacentes
acima, cabe observar que em ambos os à tipologia de Polsby estão na raiz dos
casos o poder decisório é deslocado do modelos de legislativo que habitam as
plenário para uma outra instância, quais mentes e os corações de analistas e atores
sejam, as comissões ou os partidos. Em políticos. Na realidade, ao aprofundar-
outras palavras, o plenário delegaria a mos o entendimento destas concepções,
estas instâncias o poder deliberativo em podemos notar suas ambigüidades com
sentido forte e funcionaria, em ambos os relação ao papel que reservam ao legis-
casos, apenas como uma instância que lativo em um sistema presidencialista. Ao
apenas referendaria as decisões tomadas tempo que se espera um legislativo forte
nos verdadeiros loci de poder. e independente como uma conseqüência
necessária da separação de poderes, credi-
Como uma parcela considerável
ta-se ao legislativo, sempre que ele afirma
das análises comparativas, a tipologia de
sua independência, o papel de obstáculo
Polsby parte do contraste entre formas de
conservador e paralisante às ações do
governo:
Executivo.
“Nas democracias modernas, os legisla- Nestes termos, como já salientamos
tivos variam significativamente de acordo acima, recorreremos a uma discussão da
com as diferentes maneiras que estão tipologia de Polsby para aprofundar o
inseridos nos seus sistemas políticos. A tratamento que dispensamos ao modelo
diferença mais óbvia é, naturalmente, a brasileiro, buscando assim afastar precon-
constitucional, a distinção entre os sis-
ceitos a seu respeito. No entanto, para
temas parlamentaristas e os sistemas de
demonstrar este ponto, se faz necessário
separação de poderes”. (Polsby, 1975:
274/275). aprofundar a apresentação dos dois modelos
polares considerados por Polsby.
Como é usual na literatura compa- A tipologia proposta por Polsby
rada, os Estados Unidos e a Inglaterra são combina a distinção das formas de governo
tomados como os casos paradigmáticos, com a variação da influência que forças
respectivamente, de presidencialismo e externas exercem sobre o corpo legislativo.
parlamentarismo1. A conseqüência deste O autor acredita que é possível dispor as

43
ENSAIO

legislaturas de governos democráticos em operação, o autor relaciona os traços


um contínuo, de acordo com o grau de distintivos dos parlamentos dos Estados
influência externa que sofrem. Unidos e da Inglaterra à sua tipologia.
Por exemplo, quanto aos Legislativos
Em um extremo do espectro se encon-
Transformativos, Polsby nota que “um
trariam os Legislativos Transformativos,
sistema efetivo de comissões pode bem
aqueles que:
ser um pré-requisito para a independên-
cia de um corpo legislativo, uma vez que
“Possuem, e exercem com freqüência, por meio dele o legislativo pode colher
capacidade independente de moldar e
transformar em leis propostas de qualquer
os benefícios de uma divisão de trabalho
origem. O ato de transformação é crucial – por exemplo, continuidade de interesse
porque ele postula o significado da estru- e expertise – ao colocar sua marca sobre a
tura interna do legislativo, da sua divisão, política pública” (278)2.
interna de trabalho e das preferências
de políticas dos vários legisladores. Para Os termos empregados nesta pas-
explicar a produção legislativa não basta sagem – um sistema de comissões efetivo
apenas saber quem propôs o que e quão e independente – pedem comentários adi-
imperativamente, mas também quem pro- cionais. Um sistema de comissões efetivo é
cessou o que no interior do legislativo,
quão entusiasticamente e — quão compe-
aquele em que o plenário desempenha um
tentemente”. (Polsby, 1975: 277) papel limitado na elaboração legislativa. O
verdadeiro trabalho legislativo, a delibera-
Em oposição a este modelo, ção em sentido forte, ocorre nas comissões
Legislativos Arenas são definidos como na medida em que estas controlam a tra-
aqueles que: mitação das matérias sob sua jurisdição. O
plenário tem poderes limitados para avocar
a si uma matéria, retirando-a da comissão
“Servem como espaços formalizados para
a interação das forças políticas relevantes para a qual foi inicialmente distribuída.
na vida de um sistema político; quanto Sendo assim, legisladores sabem que
mais aberto o regime, mais variada, mais pertencer à Comissão de Agricultura, para
representativa e mais responsivas as forças
que têm entrada nessa arena. Essas forças dar um exemplo, é a condição necessária
têm origem no sistema de estratificação para ser capaz de influenciar a política
social ou mesmo, como na idade média, agrícola. A distribuição dos parlamentares
nos estamentos do reino (...) pelas comissões é ditada pelo interesse
A existência de legislativos arenas deixa eleitoral de cada um, com pequena ou
sem resposta a questão de onde reside o nenhuma influência dos partidos. Assim,
poder que de fato se expressa nos atos para continuar com o exemplo, buscam
legislativos - se no sistema partidário (como – e conseguem – fazer parte da Comissão
é o caso nos vários sistemas democráticos
de Agricultura os parlamentares eleitos por
modernos), ou no sistema de estratificação,
na burocracia ligada ao rei, nos barões, no distritos em que estes interesses são real-
clero, ou em qualquer outro grupo”. (pág mente relevantes para seus eleitores. Não
277/278) seria de se esperar que um deputado eleito
por um distrito primordialmente urbano,
Tendo definido estes dois tipos digamos a cidade de Nova York, queira
polares, Polsby passa a caracterizá-los de fazer parte da Comissão de Agricultura. É
forma mais detalhada e completa. Nesta apenas razoável supor que este deputado

44
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

hipotético procure entrar na comissão que do Legislativo Arena também eleja o


trate de assuntos bancários. Parlamento inglês como seu tipo mais
Parlamentares, portanto, se distri- acabado, Polsby discute outros casos de
buem pelas comissões de acordo com países parlamentaristas europeus, como
seus interesses eleitorais. Os partidos não Holanda, Suécia, Alemanha, França e
controlam a entrada ou a permanência Bélgica. Admite assim que os legislativos
dos membros nas comissões. A tendência em regimes parlamentaristas podem variar,
é o parlamentar ter uma longa carreira afastando-se do caso inglês. É difícil entender
no interior de uma comissão. Sobretudo que os casos discutidos possam de fato ser
porque o poder no interior das comissões dispostos em um contínuo como quer nos
é distribuído de acordo com o tempo de fazer ver Polsby. Voltaremos à variação de
permanência nas mesmas. Vale a regra da legislativos sob parlamentarismo adiante.
seniority. No momento, por ser mais relevan-
Combinadas essas duas coisas, o te para a discussão do Brasil, cabe frisar
controle sobre a iniciativa legislativa na que o contínuo imaginado por Polsby seja
área de sua jurisdição com o incentivo habitado apenas por países parlamentaristas.
à permanência dos parlamentares em Na linha que vai da Inglaterra (Legislativo
uma comissão, entende-se porque as Arena) aos Estados Unidos (Legislativo
comissões se tornam os centros de poder. Transformativo) não há casos de países
Parlamentares, ao longo de suas carreiras, presidencialistas. A sugestão é clara: o
se especializam nas matérias que estão único modelo possível de legislativo sob
sob a jurisdição de sua comissão. As presidencialismo é aquele presente nos
comissões reúnem especialistas e se Estados Unidos.
tornam depositárias de experiência e A sugestão é tanto mais forte quando
conhecimentos nas suas respectivas áreas se atenta para o fato de outros países
de políticas. presidencialistas não estarem totalmente
A independência, portanto, por con- ausentes de sua discussão. Polsby faz
traste ao caso inglês, se refere às influên- apenas algumas poucas referências a
cias externas: aos partidos e à estratificação outros países presidencialistas quando
social. A elaboração da legislação é ques- discute o papel de legislativos em regimes
tão interna corporis. Mas envolve algo autoritários (em sua tipologia, o termo é
mais: a independência frente ao Executivo. regimes fechados e especializados). Nestes
Nestes termos entende-se porque Polsby casos, legislaturas não têm propriamente
as vê como condição necessária para a um papel a desempenhar na elaboração
independência do legislativo vis a vis os das leis, são meras carimbadoras das
partidos e, sobretudo, o executivo. decisões tomadas em outras instâncias, em
geral, pelo executivo. São legislativos de
Cabe notar que o tipo Legislativo
fachada e a grande indagação acaba sendo
Transformativo é inteiramente construído
entender porque não são simplesmente
tomando por base o caso norte-americano.
abolidos.
Polsby chega inclusive a discutir detalhes
do papel desempenhado pelos Rules Ou seja, o que fica implícito é que
Committee nos anos sessenta e setenta para o presidencialismo sob democracia requer
bloquear reformas como as relacionadas legislativos “institucionalizados”, para
aos direitos civis. Conquanto a discussão usar um termo caro a Polsby, como o

45
ENSAIO

americano. Se o legislativo não afirmar sua cialismo, o legislativo e o executivo são


independência frente ao executivo e aos eleitos por regras eleitorais específicas, de
partidos, organizando-se, então, de acordo onde segue que representam interesses
com o modelo de comissões, este poder não diversos. Assim, quaisquer sejam estes
desempenhará seu papel constitucional. interesses, conflitos entre o executivo e o
Esta perspectiva se torna problemática legislativo são praticamente inevitáveis.
quando levamos em consideração a A probabilidade de que o executivo não
tendência da literatura especializada em encontre apoio para suas iniciativas no
países do terceiro mundo a atribuir ao interior do legislativo cresce com a frag-
poder legislativo um papel conservador. mentação partidária. Presidencialismo e
Legislativos, para usar a linguagem da multipartidarismo são uma “combinação
época, constituem-se em obstáculos à difícil” (Mainwaring, 1993).
mudança social. Isto porque as forças
Na elaboração da tipologia de legisla-
conservadoras são sobre-representadas no
tivos na América Latina, Cox e Morgenstern,
legislativo. De acordo com Packenham:
como Polsby, partem dos tipos polares
relacionados aos dois sistemas “puros”
“No mundo inteiro, legislativos tendem a de governo: o parlamentarismo inglês e
representar interesses mais conservadores o presidencialismo norte-americano. Em
e paroquiais do que os executivos, mesmo
nas sociedades democráticas... Nas socie- contraste com Posby, no que se refere
dades que precisam e querem mudanças ao parlamentarismo, os autores descon-
(...) pode não fazer sentido fortalecer o sideram suas variações internas. Dada a
poder decisório de uma instituição que presença do voto de confiança e a possibi-
provavelmente resistirá mais a mudanças”. lidade de queda do governo, há, em todo e
(citado por Mezey, pag 750) qualquer legislativo sob parlamentarismo,
incentivos para que os partidos assegurem
Esta tese, na realidade, é bastante a unidade nas votações em plenário. Para
conhecida no Brasil e figura com destaque isso, os líderes dispõem de instrumentos
nas explicações para a própria crise de controle da agenda no parlamento
de 1964. O conflito político entre um – definem quando e quais projetos serão
Congresso conservador e um Executivo votados. Ou seja, os partidos da coalizão
modernizante e reformador foi considerado majoritária atuam como “coalizões pro-
por muitos analistas como um dos motivos
cedimentais” que lhes permitem proteger
centrais que teria levado à queda do
os seus membros de votos embaraçosos
regime de 1946. Desde então, esta tese
e evitar divergências públicas no interior
tem sido reformulada e adaptada às mais
da coalizão, garantindo, assim, unidade
diversas contingências.
no plenário. Dessa forma, “os partidos
Nas últimas décadas, no interior do parlamentares unificam o executivo e
movimento neo-institucionalista, este argu- a assembléia, refletindo, de um lado, a
mento perdeu sua tradução social imedia- confiança que os parlamentares têm nos
ta para se transformar em um modelo líderes que escolheram (...) e, de outro,
de conflito puramente institucional. O a necessidade de se organizar fortemente
regime presidencialista seria inferior ao em apoio ao executivo. (...) O executivo,
parlamentarista porque não teria formas e não apenas atores legislativos, exercem
institucionais de resolver o conflito entre o poder de agenda” (Cox e Morgenstern,
o legislativo e o executivo. Sob presiden- 2002: 462-64).

46
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

Quanto ao presidencialismo, os auto- executivo. Temos, dessa forma, os legisla-


res distinguem dois tipos, o dos Estados tivos “recalcitrantes”, “viáveis” (workable),
Unidos e os da América Latina. Quanto “venais ou paroquiais” e “subservientes”.
ao primeiro, haveria completa separação Os autores não esclarecem o que deter-
de poderes e o controle da agenda seria mina essa disposição, mas argumentam
exercido por atores legislativos no interior que ela varia em função da composição
do próprio congresso. Está claro que há partidária do legislativo, mais especifica-
estreita correspondência deste caso com o mente, do nível de apoio ao presidente
legislativo transformativo conforme definido que, por sua vez, determina as estratégias
por Polsby. Da mesma forma, o Legislativo do presidente.
Arena é generalizado para todos os gover- Tendo em vista o tamanho de sua
nos parlamentaristas. Há, tão somente, um base parlamentar, o presidente antecipa as
deslocamento do elemento externo, que reações do legislativo e utiliza, em função
em Polsby era o partido e em Cox e disso, os poderes de que dispõe. Para os
Morgentern é o executivo. Ou seja, nesta autores, a estratégia ótima do executivo
última tipologia, o elemento chave é dado varia de acordo com os seguintes pode-
pela relação entre o legislativo e o execu- res: 1. autoridade para regulamentar ou
tivo. No presidencialismo americano, o interpretar; 2. autoridade para indicar
poder de alterar o status quo legal, a capa- ministros, juízes e outros altos postos, em
cidade transformativa, estaria nas mãos do geral com a aprovação do congresso; 3.
próprio legislativo. No parlamentarismo, o delegação explícita do poder de legislar; 4.
executivo que deteria esse poder. As carac- poderes de decreto com força de lei, inclu-
terísticas básicas desses sistemas de gover- sive para situações de emergência, quando
no determinam a capacidade de cada um pode suspender as liberdades civis; 5.
dos poderes de fazer leis. poderes pára-constitucionais de decreto,
A contribuição mais original dos “que permitem ao presidente mudar leis
autores, portanto, estaria na tentativa de usando a caneta ou a espada” (Cox e
acomodar legislativos da América Latina Morgenstern, 2002: 460-1).
a esta tipologia. Isto se faz pela criação de Combinando o tipo de presidente
um terceiro tipo, um tipo intermediário, ao tipo de legislativo, formam-se pares
os Legislativos Reativos. A característica de tipos de executivo-legislativo: 1. “pre-
distintiva do presidencialismo latino- sidente imperial-legislativo recalcitrante”;
americano, em contraposição ao dos 2. “presidente nacionalmente orientado-
Estados Unidos, é que a separação de legislativo paroquial”; 3. “presidente de
poderes não é total. Nesses países, à coalizão-legislativo viável”; e, finalmente,
semelhança dos países parlamentaristas, 4. “presidente dominante-legislativo sub-
o executivo participa diretamente do serviente”. Nos extremos estão presidentes
processo legislativo: tem o poder de propor sem maioria parlamentar ou com ampla
e, além disso, pode agir unilateralmente. maioria. Os que enfrentam maiorias hostis,
Os legislativos latino-americanos, os presidentes imperiais, adotam estraté-
portanto, reagem ao executivo. Não rea- gias de ação unilateral, usando seus pode-
gem, porém da mesma forma. Cox e res “de formas constitucionalmente pro-
Morgenstern elaboram quatro subtipos de vocativas”. No outro extremo, presidentes
legislativos que são classificados de acordo dominantes, antecipando assembléias sub-
com a sua disposição em negociar com o servientes, ditam as regras e as políticas.

47
ENSAIO

Os dois tipos intermediários referem- legislativo e executivo poderes distintos,


se a presidentes que contam com apoio devem ter vontades políticas distintas. Os
médio no legislativo e, por essa razão, poderes são constitucionalmente separa-
procuram negociar com o legislativo o dos e deveriam permanecer ou evoluir
curso das políticas. O que diferencia os nesta direção. Se não o fazem é porque,
dois tipos são as moedas de troca utiliza- ou o poder executivo é demasiadamente
das na barganha pelo apoio parlamentar. forte, ou o legislativo fraco, ou ambos. A
Estas compreendem: benefícios particu- possibilidade de cooperação ou identi-
laristas (patronagem e pork); posições ficação política entre ambos os poderes,
ministeriais; concessões sobre políticas tomada como natural e óbvia sob parla-
e poderes de agenda. Assembléias com- mentarismo, é concebida como expressão
postas por parlamentares clientelistas de uma patologia.
delegam ampla autoridade ao executivo Tome-se como exemplo o recurso
para que este defina políticas nacionais. aos poderes de decreto presidencial, como
Por sua vez, a combinação de “presi- as Medidas Provisórias no Brasil. Os auto-
dente de coalizão” com assembléias res desconsideram a possibilidade do exe-
“viáveis” ocorre quando presidentes lide- cutivo recorrer a esse mecanismo institu-
ram coalizões que incluem atores legislativos, cional com apoio majoritário, ou quase
buscam implementar políticas de coalizões majoritário, especialmente em governos
por meio de legislação ordinária e desenham de coalizão. O poder de legislar por decre-
estratégias que visam aprovar leis por meio to pode ser visto como um instrumento útil
de seus aliados no legislativo. O legis- para solucionar problemas de “barganhas
lativo, deste modo, se envolve no pro- horizontais” entre o governo e a maioria
cesso de formulação de políticas (Cox e parlamentar que o apóia. Assim, em vez
Morgenstern, 2002: 451-455). de se configurar como um mecanismo
Sendo assim, para esses autores, no institucional para contornar a vontade da
presidencialismo latino-americano não maioria ou subjugar o legislativo, pode ser
existe a possibilidade de que uma maio- um poderoso dispositivo em prol das maio-
ria parlamentar dê seu apoio ao execu- rias governistas, protegendo-as dos efeitos
tivo pela simples razão de pertencer ao de medidas impopulares, que afetem bases
mesmo partido e, portanto, ter os mes- eleitorais específicas, e preservando os
mos interesses em políticas. Da mesma acordos políticos entre o governo e a coa-
forma, poderes institucionais de agenda lizão que o apóia no legislativo. Aliás, é
não podem ser utilizados por delegação assim que poderes de agenda em governos
de uma maioria parlamentar. O uso de parlamentaristas são tratados por Cox e
poderes unilaterais, como o poder de Morgentern. Por que maiorias só poderiam
decreto com força de lei, é associado delegar poderes ao executivo em governos
a governos minoritários, a presidentes parlamentaristas?
“politicamente fracos” (2002: 450). Do ponto de vista normativo, isto é,
Há, portanto, uma dificuldade analí- dos modelos almejados de poder legisla-
tica de se trabalhar com presidencialismos tivo, desenha-se, desta forma, uma expec-
que se distanciam do caso norte-ameri- tativa ambígua, quando não pura e sim-
cano. O suposto é que, sendo os poderes plesmente contraditória, quanto ao papel

48
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

a ser desempenhado pelo poder legislativo capacidade para ser a fonte independente
em regimes presidencialistas. O legislativo e autônoma das iniciativas de alteração do
é forte, institucionalizado, independente status quo legal. Isto é, se há separação de
quando se constitui em uma força autô- poderes, cabe ao legislativo legislar, afir-
noma capaz de se opor ao executivo. mando assim sua preponderância sobre o
Ao mesmo tempo, considera-se que o poder executivo. Mas se for assim, e aqui
Legislativo é um obstáculo às mudan- o outro lado da moeda se revela, o conflito
ças, barrando as propostas presidenciais. entre poderes leva a um impasse institu-
Assim é que, quando o legislativo afirma cional que não teria solução no interior
seu poder e sua independência, rejeitando do modelo de separação de poderes. Este
propostas do executivo, teríamos o que conflito será tanto maior quanto maior o
normalmente se nomeia como crise de número de partidos com representação no
governabilidade. Se o legislativo aprova Congresso e quanto mais as forças con-
as propostas do executivo, teríamos um servadoras forem capazes de controlar o
Legislativo subserviente e atrofiado. processo decisório. Em sendo as comissões
O fato é que os juízos sobre o fortes, tanto maior a capacidade das mino-
Legislativo no Brasil são marcados pelas rias de barrar as pretensões da maioria.
ambigüidades dos modelos usados como A previsão, dentro deste quadro, é que o
referência. O Legislativo no Brasil é, por conflito institucional, sobretudo quando
vezes, rotulado de fraco por não participar presidentes são fortes, resolva-se de duas
decisivamente da elaboração das leis, formas: ou por um golpe de estado ou
sendo visto como um mero carimbador pela subordinação do poder legislativo ao
das iniciativas do Executivo. Por vezes, executivo3.
a visão se inverte completamente e o As tipologias resenhadas não usam
Legislativo passa a ser visto como um as mesmas variáveis quando passam do
obstáculo instransponível. Se as “reformas” parlamentarismo para o presidencialismo,
não avançam, o problema é a resistência e quando passam dos Estados Unidos para
do Legislativo, quaisquer sejam as reformas a América Latina. A análise do Legislativo
e seu estágio de elaboração. O Legislativo norte-americano toma como relevante a
chega a ser responsabilizado por deter sua organização interna, a forma como os
até mesmo as reformas que nem sequer direitos legislativos de propor, emendar,
são formuladas. A lei da antecipação dos determinar o ritmo da tramitação das maté-
resultados explicaria tal fato: se o Executivo rias e usar a informação são distribuídos de
antecipa que suas propostas serão barradas forma a tornar as comissões os verdadei-
pelo Legislativo, por que apresentá-las? ros focos de poder. A descentralização
O ponto, portanto, que estamos pro- é vista como a resposta ótima de um
curando deixar tão claro quanto possível é Legislativo que se pretende autônomo,
que há uma ambigüidade no interior dos capaz de resistir e se opor ao Executivo.
modelos com que usualmente se trabalha No caso do parlamentarismo, o foco
ao pensar legislativos em regimes presi- se volta, em uma versão, para referências
dencialistas. Ao tomar os Estados Unidos externas ao legislativo: partidos e classes
como paradigma, acredita-se que, sob sociais. Na outra versão, o poder legis-
presidencialismo, legislativos deveriam ter lativo se reduz ao poder de manter ou

49
ENSAIO

derrubar o governo. A sua participação como o controle da agenda pelo executivo


efetiva na elaboração das leis ou a estrutu- trocam de sinais, passam de positivas para
ra interna do poder legislativo são descon- negativas, conforme o caso. A organização
sideradas. Estes pontos não são discutidos interna do legislativo, a forma como esta se
porque, talvez, se dê como necessário relaciona com a definição das agendas do
que sob parlamentarismo o Legislativo trabalho, o que, quando e como se votam
seja necessariamente centralizado, e que as matérias é a variável central para enten-
a participação no processo decisório seja der a variação dos modelos. A forma de
necessariamente indireta4. governo é menos importante.
O fato é que legislativos sob parla- Passemos à apresentação dos traços
mentarismo não são todos iguais. Há varia- que caracterizam o Poder Legislativo
ções em aspectos fundamentais, mesmo no Brasil. Nosso objetivo é mostrar, de
no que se refere ao direito de introdução forma tão sucinta quanto possível, como
de moções de censura ou confiança pelo o processo decisório é organizado e,
plenário. Da mesma forma, o completo com base nesta descrição, apontar para
controle que o Gabinete inglês tem sob uma forma de entender a participação
a agenda dos trabalhos não é encontra- do Legislativo no processo decisório que
da em todos os regimes parlamentaristas. escape das ambigüidades notadas acima.
Os casos mais conhecidos de executivos O caso brasileiro não corresponde quer
sem este poder sob parlamentarismo são ao modelo norte-americano, quer ao
Itália do pós-guerra e a Terceira e Quarta modelo inglês. Como discutido acima, o
República na França. expediente de classificá-lo como híbrido
Já no caso dos legislativos latino-ame- ou intermediário de um Legislativo Reativo
ricanos, a caracterização é feita a partir de deve ser rejeitado. Trata-se simplesmente
sua participação no processo de elabora- de um modelo organizacional diverso.
ção de leis. Como em geral a proposição Para que o ponto fique claro, é útil
de leis cabe ao executivo, os legislativos retornar ao momento histórico em que este
latino-americanos são definidos como rea- modelo se estruturou, o final dos trabalhos
tivos. Varia a forma como reagem ao exe- constituintes, quando ganham corpo duas
cutivo e esta variação independe de seu tendências contraditórias. De um lado, a
formato organizacional, sendo atribuída Constituição de 1988 procurou fortalecer
apenas às preferências partidárias e por o sistema de comissões, dotando-as da
tipo de políticas da maioria dos legislado- prerrogativa de aprovar legislação “ter-
res induzidas pelas leis eleitorais. Ou seja, minativamente”. Pelo chamado “poder
a tipologia desconsidera os aspectos inter- terminativo das comissões”, certas maté-
nos ao próprio legislativo. Considera ape- rias podem ser definitivamente aprovadas
nas o efeito das leis eleitorais para definir o pelas comissões permanentes sem a mani-
tipo de reação às propostas do executivo. festação explícita do plenário. Ou seja, por
Como se vê, as classificações pro- meio deste expediente, o texto constitucio-
postas são antes descritivas que analíticas. nal procurou explicitamente descentralizar
Para cada caso, identifica-se a variável o processo decisório, dotando as comis-
que melhor o descreveria e a tipologia é sões de poder autônomo.
adaptada de forma a aproximar o modelo No entanto, tal tentativa chocou-se
daquilo que o conhecimento convencional frontalmente com a prática centralizado-
estabelece sobre os casos. Características ra que se estabeleceu ao final do próprio

50
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

processo constituinte. A agenda de vota- O fato é que a grande maioria das


ções passou a ser coordenada pela Mesa matérias transformadas em lei tramita em
e pelo Colégio de Líderes. O papel de regime de urgência. De 1989 a 2001, 50%
destaque destas duas instâncias na estrutu- das leis aprovadas tramitaram em regime
ração do processo decisório foi incorpora- de urgência do legislativo. Esta proporção
do pelo Regimento Interno da Câmara dos aumenta para 56% se considerarmos ape-
Deputados, votado em 1989. nas os projetos do Executivo. Este faz uso
De um lado, portanto, uma ten- bem mais comedido da urgência constitu-
dência à valorização das comissões e de cional a que tem direito: apenas 10% das
seu trabalho autônomo, de outro, uma leis sancionadas tramitaram em regime de
centralização dos trabalhos legislativos urgência por solicitação do Executivo. A
a partir de uma agenda decisória acor- grande maioria das urgências solicitadas
dada pelos líderes dos partidos. A questão pelos líderes partidários ocorreu sem que
é saber qual destas duas tendências as comissões tivessem concluído os seus
prevaleceu. A reposta é clara: a centralização pareceres. No período de 1989 a 1994,
dos trabalhos prevaleceu em detrimento 85% das leis que tramitaram em regime de
do desenvolvimento das comissões como urgência foram votadas em plenário sem
instâncias decisórias autônomas. que pareceres emitidos pelas comissões
tivessem sido apresentados. Além disto, a
A preponderância do poder dos líde- aprovação de um requerimento de urgên-
res partidários sobre as comissões se reve- cia corresponde, praticamente, à aprova-
la de maneira clara quando se analisa o ção da matéria. De outra parte, o poder
papel do Colégio de Líderes e das comis- terminativo das comissões raramente é
sões na tramitação das matérias. Comissões usado. Apenas 10% das leis são aprovadas
têm impacto sobre o resultado do processo por poder terminativo.
legislativo quando se constituem em rota
obrigatória para a aprovação das matérias. Ou seja, o processo legislativo no
De fato, matérias tramitando em regime Brasil é centralizado na Mesa e no Colégio
ordinário são remetidas às comissões a de Líderes. O plenário referenda o que é
quem, em primeira instância, caberia defi- decidido pelos líderes. A decisão crucial diz
nir seu destino. A autonomia das comis- respeito à escolha dos projetos que serão
sões é afetada quando as matérias sob sua objeto de um requerimento de urgência.
jurisdição são avocadas pelo plenário, Neste momento decide-se que matérias
por meio da aprovação de um requeri- passarão a integrar a pauta dos trabalhos
mento para tramitação urgente. Aprovado e quais, portanto, têm chances de serem
o requerimento, o projeto é retirado da aprovadas. Matérias que não recebem
comissão e, independente desta ter ou não tratamento diferenciado dos líderes têm
iniciado a apreciação da matéria, votado chances escassas de se tornar lei. Em uma
em poucos dias com fortes restrições à palavra: a deliberação, em sentido forte, se
apresentação de emendas em plenário. dá no interior destas instâncias decisórias.
Em geral, os requerimentos de urgência No interior da Câmara dos Deputados,
são acordados em reuniões do Colégio de a Presidência da Mesa é, sem dúvida algu-
Líderes, coordenadas pelo Presidente da ma, o cargo politicamente mais importan-
Mesa. Submetidos ao plenário, raramente te. O presidente detém quase que exclu-
são rejeitados. sivamente a coordenação dos trabalhos

51
ENSAIO

legislativos. As prerrogativas do presidente que contrariam os interesses diretos e ime-


da Mesa na coordenação dos trabalhos diatos dos seus eleitores. No entanto, no
legislativos e na direção das sessões plená- caso das matérias em que o regimento não
rias são amplas e extensas, garantindo-lhe obriga a ocorrência de votações nominais,
grande influência nos resultados do pro- somente os líderes partidários têm condi-
cesso legislativo, pois podem afetar o fun- ções de apresentar requerimentos forçan-
cionamento das comissões e o desenrolar do a que a decisão seja por voto nomi-
dos trabalhos em plenário. nal. Mesmo os líderes não podem fazê-lo
Duas dessas prerrogativas o presi- indiscriminadamente. Para que sucessivos
dente da Mesa compartilha com os líderes pedidos de votação nominal não sejam
de bancadas: a designação dos membros usados para obstruir os trabalhos, em favo-
das comissões e a definição da agen- recimento à minoria, requerimentos só são
da legislativa. Em realidade, os líderes acolhidos uma hora após o encerramento
partidários controlam a composição das da última votação nominal. A oposição,
comissões, uma vez que são responsáveis portanto, deve escolher as medidas que
pela indicação e substituição, a qualquer quer ver votadas nominalmente e a situ-
momento da legislatura, dos membros ação conta com recursos para se proteger
das comissões permanentes e de todos as de votações embaraçosas.
demais comissões temporárias, inclusive Portanto, os líderes partidários,
as Comissões Parlamentares de Inquérito. incluindo o Presidente da Mesa entre
Nomeiam também os membros da Câmara os líderes partidários, contam com armas
e do Senado para a formação das comis- poderosas para definir a agenda dos tra-
sões mistas que apreciam as medidas pro- balhos. Com os recursos regimentais com
visórias e o orçamento. que contam, são eles que definem o que,
O papel de destaque dos líderes quando e de que forma matérias chegam
partidários não depende exclusivamen- e são votadas pelo plenário. Estes poderes
te do Colégio de Líderes. Sua influência de agenda decorrem da forma como o
na determinação da pauta dos trabalhos Poder Legislativo é organizado. São desta
depende também das vantagens que lhe forma independentes, do ponto de vista
são conferidas para efeitos de apresenta- institucional, dos poderes legislativos do
ção de requerimentos, pedidos de des- Executivo. Ainda assim, seus efeitos só
taques, apresentação de emendas etc. podem ser compreendidos quando ana-
Nestes casos, a manifestação do líder é lisados no interior das relações entre o
tomada como manifestação de sua ban- Executivo e o Legislativo.
cada. Assim, os líderes se encontram em
O Executivo brasileiro é institucio-
posição privilegiada para influenciar na
nalmente forte. A Constituição lhe con-
direção dos trabalhos legislativos.
cede a prerrogativa exclusiva de propor
O poder dos líderes se expressa ao alterações do status quo legal nas princi-
longo de toda a tramitação das matérias. pais matérias, como taxação, orçamen-
Por exemplo, votações nominais são tação e alteração da burocracia. E onde
testes cruciais para a unidade das coa- não tem poder exclusivo, o presidente não
lizões legislativas. Muitas vezes, membros está impedido de iniciar legislação. Ou
de uma coalizão têm que votar medidas seja, nas demais matérias, o Executivo e

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FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

o Legislativo têm prerrogativa concorren- nada pelo Executivo: do total de 3043 leis
te para propor legislação. Mesmo nestes aprovadas entre 1989 e 2001, 86% foram
casos, o Executivo é dotado de vantagens propostas pelo Executivo.
adicionais, dadas pela urgência constitu- Os dados relativos a sucesso e domi-
cional5 e poder de decreto (as medidas nância do Executivo em países parlamen-
provisórias). taristas não são muito diversos. Isto signi-
Portanto, o presidente é de jure o fica que eles não devem ser lidos como
principal legislador do país, em que pese indicativos de que o Legislativo brasileiro é
este ser um sistema em que os poderes meramente reativo ou atrofiado. O sucesso
são separados no que se refere à sua ori- presidencial depende da sua capacidade
gem e sobrevivência. O direito de propor, de obter cooperação do Legislativo, de
no entanto, não assegura automaticamen- contar com o apoio da maioria dos legis-
te sucesso. Matérias são aprovadas pela ladores.
maioria dos legisladores e, por extensos Já notamos o papel da Mesa e dos
que sejam os poderes legislativos presiden- Líderes na tramitação das matérias. Em
ciais, este não pode aprovar legislação sem realidade, no mais das vezes o poder de
a aprovação expressa da maioria. agenda dos líderes é usado em favor do
Nem mesmo a reedição continuada Executivo. Isto pode ser visto quando se
de MP`s, possível até a promulgação da nota que a maioria dos projetos aprovados
Emenda Constitucional 32, em setembro em tramitação urgente foi proposta pelo
de 2001, permitia ao presidente ir contra Executivo. A agenda de propostas legisla-
os interesses da maioria. Pedia o apoio tivas do Executivo conta com o poder de
tácito da maioria, uma vez que esta sempre agenda dos líderes para ser aprovada.
poderia rejeitar uma MP. Tal possibilidade O fato dos líderes e do Executivo
não é uma mera hipótese, uma vez que em contarem com poderes que lhes permite
momentos cruciais, como na apreciação definir e controlar a agenda dos trabalhos
do Plano Collor, o PMDB conseguiu reunir não lhes permite usurpar o poder da maio-
maiorias dispostas a rejeitar MP`s tidas por ria. O Executivo tem sucesso em suas
fundamentais pelo governo. O fato é que iniciativas legislativas porque conta com
nem mesmo o poder de decreto permite o apoio da maioria. Empiricamente, este
que o Executivo legisle sem o apoio da apoio se traduz em votos de acordo com
maioria. a indicação do líder do governo nas vota-
Os dados relativos à produção legis- ções nominais. Desde a promulgação da
lativa no Brasil falam por si só. O Executivo Constituição, deputados filiados a partidos
é não apenas o principal legislador de jure. que fazem parte da base de sustentação do
É também o principal legislador de facto. governo votam com o governo em 90%
Desde a promulgação da Constituição das votações. As variações por governo e
de 1988, a taxa de sucesso do Executivo, partido são pequenas.
isto é, a proporção de projetos aprovados A base de sustentação do governo
sobre o total de enviados, gira em torno é formada pelos partidos que recebem
de 90%. Rejeições pelo Legislativo dos pastas ministeriais. Em outras palavras,
projetos enviados pelo Executivo são fatos presidentes “formam governo” de maneira
raros: não mais que 10%. Além disto, a análoga a primeiros ministros em siste-
produção legislativa é claramente domi- mas parlamentaristas pluripartidários. Ao

53
ENSAIO

receber uma pasta ministerial, um partido Os poderes constitucionais do


passa a participar da definição da política Executivo, juntamente com a organização
do governo e, desta forma, enquanto mem- centralizada do Legislativo, permitem a
bro do governo deve apoiar estas mesmas ação concertada do Executivo e dos líde-
políticas quando elas são votadas pelo res partidários que pertencem à coalizão
Legislativo. de governo. Isto porque os poderes de
Nestes termos, a centralização do pro- agenda, nos dois sentidos apontados por
cesso decisório no interior do Legislativo e Cox, ou seja, como “o poder de colocar e
os poderes legislativos do presidente são tirar projetos de lei da agenda do plenário”
traços institucionais independentes. No e como “o poder de proteger esses proje-
mais das vezes, funcionam como elemen- tos de emendas” (2000) são controlados
tos complementares, fornecendo as bases pelo Executivo e pelos líderes partidários.
institucionais do que em outra oportuni- Com isto, a coalizão governista tem os
dade chamamos de presidencialismo de meios institucionais necessários à promo-
coalizão6. ção da cooperação entre o Legislativo e o
Do ponto de vista do Legislativo, a Executivo, neutralizando o comportamen-
centralização dos trabalhos aumenta o seu to individualista dos legisladores.
poder de barganha. Ao delegar poderes Não há dúvidas de que o sistema
aos líderes partidários, os membros do partidário brasileiro é fragmentado e que
Legislativo estão coordenando suas ações, a legislação eleitoral cria incentivos para
canalizando suas demandas de uma forma que os deputados persigam objetivos par-
centralizada7. Muito provavelmente, nego- ticularistas. No entanto, tomados individu-
ciações caso a caso e levadas a cabo de almente, os legisladores não têm acesso
maneira descentralizada levariam a solu- aos meios necessários para influenciar
ções inferiores. legislação e as políticas públicas. Só podem
O Legislativo brasileiro não se apro- fazê-lo como membros de partidos que se
xima de qualquer dos modelos clássi- reúnem em dois grandes grupos: situação
cos. Comparadas às comissões legislativas e oposição.
norte-americanas, nossas comissões são Tipologias ou modelos de legislativo,
fracas. Estão longe de ser unidades autôno- como procuramos mostrar, são fortemente
mas e responsáveis pela gestação de polí-
influenciados pelos casos tidos como
ticas na área de sua jurisdição. Tampouco
clássicos: Inglaterra e Estados Unidos.
cabe se falar em um modelo em que todo
Aspectos normativos confundem-se com
o poder de propor é monopolizado pelo
traços descritivos. O que é se confunde
executivo, como é o caso do gabinete
com o que deve ser. O parlamento inglês
inglês.
é visto como o modelo de legislativo em
Como vimos, se alguma coisa, o governos parlamentaristas. O americano,
modelo brasileiro se aproxima mais do com sua forma acabada em sistemas
último caso do que do primeiro. É um presidencialistas. Para a maioria dos
modelo diverso de preponderância do exe- analistas, é difícil compreender os casos
cutivo que repousa sobre a centralização que evoluem em direção diversa.
dos trabalhos legislativos. Reconhecer tal
fato não implica em defini-lo como uma
forma deturpada de presidencialismo.

54
FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

NOTAS
“O contraste entre legislativos transformativos e arenas captura muitas das diferenças que os estudiosos observam
1

na discussão dos dois grandes legislativos que servem de modelo para os legislativos da maioria dos países no
mundo, o britânico e o americano. Sendo os legislativos nos demais países mais frequentemente uma adaptação do
que uma cópia, acho que é útil contemplar esses dois casos clássicos como tendendo a extremos de um continuum
mais do que metades de uma dicotomia como é frequentemente proposto” (Polsby, 1975: 280/281).
Em outra passagem, Polsby afirma: “A existência de um sistema de comissões pode ser uma condição necessária
2

para a independência legislativa” (1975: 279).


3
Alguns autores acreditam ainda que o presidencialismo só será viável onde e quando presidentes forem
constitucionalmente fracos, isto é, dotados de limitados poderes legislativos. Somente sob esta condição presidentes
teriam incentivos para negociar e ou se submeter às vontades do Legislativo. Esta é a posição de Shugart e Carey,
1992.
4
Indireta, porque se dá por meio da ameaça do voto de censura que pode levar à queda do governo. Logo, o
governo, ao propor, deve levar em consideração a vontade da maioria.
5
A urgência constitucional difere da urgência legislativa discutida acima. É uma decisão unilateral do executivo,
que define prazos limites para a apreciação das matérias.
6
Ver o Capítulo 1, “Bases institucionais do presidencialismo de coalizão”, de Figueiredo e Limongi, 1999.
7
O argumento completo sobre as estratégias de cooperação do parlamentar individual e seu interesse em fortalecer
o partido e votar disciplinadamente pode ser encontrado no mesmo capítulo citado acima (Figueiredo e Limongi,
1999: 34-35).

55
ENSAIO

Referências

COX, Gary. 2002. “On the Effects of Legislative Rules”. Legislative Studies Quarterly. 25 (2).

COX, Gary e MORGENSTERN, Scott. 2002. “Epilogue: Latin America’s Reactive Assemblies
and Proactive Presidents” in Scott Morgenstern e Benito Nacif (orgs.), Legislative Politics
in Latin America. Cambridge, Cambridge University Press.

FIGUEIREDO, Argelina C. & LIMONGI, Fernando. 1999. Executivo e Legislativo na nova


ordem constitucional. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas.

MEZEY, Michael L. 1983. “The functions of Legislatures in the Third World” in Gerhard
Lowenberg, Samuel C. Patterson e Malcolm E. Jewell (orgs) Handbook of Legislative
Research, Cambridge, Harvard University Press.

POLSBY, Nelson W. 1975. “Legislatures”in Fred I. Greenstein e Nelson W. Polsby. (orgs.)


Handbook of Political Science. Reading, Mass.: Addison-Wesley.

56
CARLOS
* CARLOS RANULFO MELO RANULFO
/ ** FÁTIMA ENSAIO
MELO / FÁTIMA ANASTASIA
ANASTASIA

Representação e Democracia
no Cone Sul
Introdução é possível recorrer ao formato do arranjo
representativo para que, à maneira de
Este artigo discute a democracia em
Dahl, possamos estabelecer distinções entre
quatro países da América do Sul, a saber,
o grau de poliarquização das democracias
Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, sob
contemporâneas. Se “uma característica
o ângulo da representatividade de seus
chave da democracia é a contínua respon-
arranjos institucionais1. O fato de que as
sividade do governo às preferências dos
democracias contemporâneas sejam regi-
cidadãos” (Dahl,1997:25), segue-se que,
mes representativos não nos deve fazer
quanto maior o grau de inclusividade no
esquecer que democracia e representação
que se refere a atores/conteúdos e formas
são fenômenos analiticamente distintos.
de organização de determinado arranjo
No mínimo, como bem chama a atenção
representativo, mais democrático poderá
Santos (1998:208), não se pode ignorar a
ser considerado o regime.
hipótese “de que existam pelo menos duas
descendências de regimes representativos Neste texto, procuraremos verificar o
– oligárquicos e democráticos – com carac- quão densamente democrático é o arranjo
terísticas e dinâmicas próprias”. Mais ainda, representativo nos países em questão. Por

* Cientista Político da UFMG / **Professora do Departamento Político da UFMG (Universidade


Federal de Minas Gerais)

57
ENSAIO

densidade democrática da representação política pode ser um objetivo dos arran-


entendemos “um atributo da democracia jos democráticos. Para o autor, a escolha
que envolve duas dimensões: a primeira do arranjo institucional deve levar em
refere-se ao método de constituição do conta as condições sob as quais tais ins-
órgão decisório e à sua composição tituições deverão operar. Uma vez que se
(Sartori, 1994); a segunda relaciona-se aos trate de processar conflitos em sociedades
instrumentos e procedimentos através dos complexas, heterogêneas e marcadas por
quais a representação é exercida. Quanto profundas desigualdades, regimes de tipo
maior for a densidade democrática da consociativo/consensual seriam recomen-
representação, mais a ordem política se dáveis, inclusive do ponto de vista da esta-
aproxima da realização dos princípios bilidade. O aparente paradoxo explica-se
centrais da democracia, a saber: igualdade uma vez que, em tais tipos de sociedade, a
política e soberania popular” (Anastasia e manutenção da ordem democrática reivin-
Melo, 2002). dicaria arranjos mais inclusivos e capazes
de incorporar a diversidade e a pluralidade
Como se sabe, a ciência política de interesses e preferências existente.
registra um profícuo debate entre o que
se convencionou chamar de duas visões As democracias sul-americanas
de democracia. De um lado, autores sempre foram mais tendentes à disper-
como Schumpeter (1984) e Sartori (1996) são do que à concentração de poder.
argumentam que os arranjos institucionais Historicamente prevaleceram a separação
formal de poderes, a representação propor-
de tipo majoritário, por propiciarem, com
cional, o bicameralismo e os governos de
muito mais freqüência que os de tipo
coalizão. Recentemente, a tendência foi
proporcional, governos unipartidários,
acentuada com a emergência de sistemas
legislativos pouco fragmentados e
multipartidários e a introdução de elei-
maior concentração de poderes nas
ções diretas para prefeitos e governadores
mãos da maioria vitoriosa, seriam mais
em diversos países3. Em conseqüência, a
conducentes à estabilidade política e à
combinação entre presidencialismo, repre-
eficácia governativa. Lijphart (2003), por sentação proporcional e multipartidarismo
sua vez, sustenta que arranjos conducentes tornou-se comum, sem que necessaria-
à dispersão de poderes entre os atores mente se registrassem os efeitos perver-
políticos, como os de tipo consensual, não sos previstos na literatura4.
necessariamente devem ser vinculados à
ineficácia governativa e à instabilidade, Neste texto tomamos como ponto de
ainda que seja correto associá-los a regimes partida que a estabilidade da democracia
mais representativos ou, como mostra nas complexas sociedades sul-america-
Powell (2000), a regimes políticos nos quais nas encontra-se associada ao grau de
o quantum de representação autorizada pluralidade e institucionalização de seus
presente nas decisões é significativamente instrumentos de participação e represen-
mais expressivo2. tação política. Isso implica em assumir a
necessidade de um arranjo representativo
Na visão de Lijphart (2003), a dis- densamente democrático, ou seja, capaz
persão de poderes entre a pluralidade de de distribuir recursos de poder entre os
atores que se constituem na dinâmica atores relevantes no processo decisório
societal e se fazem representar na arena – executivo, legislativo e cidadãos.

58
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

Nas duas próximas seções compara- mos um breve comentário sobre a questão
mos a densidade democrática da represen- da reforma política no Brasil.
tação nos países selecionados. Primeiro,
examinamos a extensão em que o mecanis- Eleições e constituição dos
mo eleitoral é utilizado para a designação órgãos decisórios
de governantes e legisladores nos diversos O primeiro indicador a ser analisado
níveis, bem como o método de constitui- refere-se à extensão com que o mecanismo
ção dos poderes Executivo e Legislativo da eleição direta é utilizado para a escolha
nacional. A seguir, analisamos a relação dos tomadores de decisão nos diversos
existente entre as Câmaras Alta e Baixa e a níveis. Como lembra Manin (1997), um
maneira como são compostas as comissões governo representativo tem como primeiro
permanentes no Congresso. Na conclusão, princípio que os governantes sejam eleitos
ordenamos os países segundo a densidade pelos governados. Através da Tabela 1
democrática de seus arranjos representati- podemos verificar até que ponto tal princípio
vos e, à luz da discussão realizada, tece- é adotado nos quatro países em questão.

Tabela 1
Sistemas de governo, organização política e poderes de constituição de governantes

Existência de eleições diretas para:

Todas Todas
Sistema de Organização as as
País Executivo Executivo Executivo cadeiras cadeiras
governo política
Nacional Estadual Municipal na na
Câmara Câmara
Baixa Alta

Argentina Presidencial Federalismo Sim Sim Sim Sim Sim

Brasil Presidencial Federalismo Sim Sim Sim Sim Sim

Chile Presidencial Unitário Sim Sim Sim Sim Sim

Uruguai Presidencial Unitário Sim Sim Sim Sim Sim

59
ENSAIO

Os quatro países em questão são que informam a constituição dos poderes


presidencialistas e possuem um Congresso Executivo e Legislativo no plano nacional.
bicameral. Enquanto Argentina e Brasil são Na Tabela 2 encontram-se organizados
federações, Chile e Uruguai são unitários. os dados sobre o processo de escolha
Em todos os casos, os presidentes são do Presidente da República. O primeiro
eleitos diretamente. Na Argentina, a eleição ponto refere-se à adoção das primárias.
direta é recente; até 1989, o presidente era Eleições internas, fechadas ou abertas, para
eleito de forma indireta por um colégio a escolha de candidatos a presidente, além
eleitoral cujos eleitores eram escolhidos de diminuir a concentração de poderes
em 24 distritos plurinominais, sob as das mãos das lideranças partidárias – em
mesmas regras vigentes para a Câmara dos especial em países que utilizam a lista
Deputados (Jones, 1997). No que se refere fechada e bloqueada – atuam no sentido
ao poder Legislativo, o Chile se destaca de adensar a representação. A medida
por possuir uma Câmara Alta dotada de torna mais inclusivo o regime democrático
baixa legitimidade democrática: são 9 ao aumentar o número de pessoas com
senadores escolhidos de forma indireta algum poder na definição das alternativas
para um mandato de 8 anos, além dos
colocadas à votação. O caso mais notável
ex-presidentes que tenham exercido o
é o do Uruguai onde, desde 1996, a lei
cargo por seis anos ininterruptos, estes,
determina que todos os partidos realizem
em caráter vitalício. Também quanto a
eleições internas no último domingo do
este aspecto, a Argentina mudou após
mês de abril anterior às eleições gerais
a reforma constitucional de 1994. Até
então os senadores eram eleitos de forma (Freidenberg e López, 2002). Na Argentina
indireta, pelas assembléias provinciais, o mecanismo chegou a ser aprovado no
para um mandato de nove anos. Senado, mas teve a efetivação suspensa
no contexto da crise que se seguiu ao fim
Brasil e Argentina têm os seus do governo De La Rua. No Chile e no
executivos estaduais e municipais eleitos Brasil, a questão não é regulamentada,
diretamente. Entre os portenhos, merece mas a Concertacion por la Democracia
destaque a instituição de eleições diretas tem realizado primárias abertas desde 93,
para a prefeitura de Buenos Aires, a enquanto no Brasil, o PT costuma utilizar
partir de 1994. No Uruguai, os governos
o mecanismo para definir candidatos
departamentais (correspondentes aos
a governador e/ou prefeito. Em 2002 o
estados brasileiros) são diretamente eleitos
partido realizou prévias para definir o
e possuem autoridade sobre os executivos
candidato presidencial.
municipais5. No Chile, a constituição
determina que os governadores são de
exclusiva confiança do Presidente da
República. A não realização de eleições
diretas para governadores e prefeitos, além
de restringir os espaços de disputa política,
concentra poderes nas mãos do Presidente
da República, negando-os aos cidadãos.
As próximas tabelas irão permitir que
iniciemos a análise dos procedimentos

60
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

Tabela 2

Mecanismo de constituição da Presidência da República

Mecanismo Coincidência Coincidência


País de escolha do Mandato Fórmula com eleições com eleições Reeleição
candidato legislativas subnacionais
Internas 4 anos 2º turno, se Não Não Sim
abertas ninguém
Argentina normatizadas alcança
por lei 45% dos
válidos
Não há 4 anos Maioria Sim Apenas para Sim
Brasil definição legal absoluta governador
Não há 6 anos Maioria Não Não Não
Chile definição legal absoluta

Internas 5 anos Maioria Sim Não Não


abertas absoluta
Uruguai
normatizadas
por lei
Fonte: Banco de Dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul

Naquela que foi a única modificação político, uma vez que estimula a operação
destinada a reduzir a concentração dos de mecanismos de accountability.
poderes nas mãos do Executivo chileno, a Os quatro países utilizam o segundo
duração do mandato presidencial diminuiu turno nas eleições presidenciais. De acordo
de oito para seis anos, após o fim da com a literatura (Carey e Shugart, 1992;
ditadura pinochetista. Na Argentina, como Mainwaring e Shugart, 1997), eleições em
resultado do “Pacto de Olivos”, firmado dois turnos podem diminuir o efeito redutor
entre Raul Alfonsin e Carlos Menem, o da eleição majoritária sobre o número
mandato presidencial passou de seis para efetivo de partidos no Congresso. Mas,
quatro após 1994, ao mesmo tempo em por outro lado, a medida contribui para
que foi admitida a reeleição do presidente. a representatividade do sistema e confere
No Brasil, as duas medidas não foram maior legitimidade aos eleitos. Chile e
articuladas. O mandato de quatro anos Brasil adotavam a eleição por pluralidade,
foi definido por Emenda Constitucional de no período democrático anterior a
Revisão, em 1994, e a reeleição, para todos seus respectivos regimes militares. Na
os cargos executivos, em 1996, durante o Argentina, o segundo turno foi introduzido
primeiro mandato de Fernando Henrique em 1994. No Uruguai, a novidade data de
Cardoso. Não obstante a reeleição haver 1996, quando o país alterou o seu sistema
sido, nos dois países, introduzida de modo eleitoral, abandonando o chamado “duplo
a beneficiar governos em curso, a medida voto simultâneo”. Até então, o eleitor
pode se mostrar benéfica ao sistema escolhia um partido e, no interior deste,

61
ENSAIO

uma das listas apresentadas. As listas com que a disputa majoritária não tenha
competiam entre si e eram capitaneadas qualquer influência na conformação do
pelo seu candidato à Presidência da número efetivo de partidos no Congresso.
República, secundado pelos postulantes Por outro lado, um calendário eleitoral
ao Senado e à Câmara dos Deputados. assim organizado permite que os eleitores
Os votos das diversas listas eram então maximizem diferentes clivagens e/ou
somados e computados a seus partidos, de diferentes identidades em diferentes
acordo com a “ley de las lemas”. A disputa pleitos, com impacto positivo sobre a
presidencial era vencida pelo partido que representatividade.
conquistasse a maioria simples dos votos, A não coincidência das eleições
depois de feito o somatório das listas pode ter impacto ainda sobre a formação
(Nohlen, 1993). O procedimento gerava e manutenção das coalizões governativas.
distorções acentuadas. Em 1994, a soma Dependendo do desempenho do(s)
dos votos dados aos candidatos do Partido partido(s) no governo, eleições solteiras
Colorado permitiu que Julio Sanguinetti para o legislativo podem acarretar a perda
fosse eleito com 24,7% dos votos, contra da maioria numérica necessária para a
30,6% de Tabaré Váquez, da Frente Ampla. aprovação de sua agenda. Obviamente,
Após a reforma eleitoral, cada partido o inverso é também verdadeiro: um
passou a lançar um candidato, escolhido presidente minoritário pode ter sua base
em eleições internas abertas. legislativa ampliada via eleições, como
Um último traço institucional que conseqüência do reconhecimento de um
merece atenção no âmbito das eleições bom governo por parte dos cidadãos.
presidenciais é o calendário eleitoral, que Novamente, o ponto pode ser lido sob outro
pode ser organizado de forma a propiciar ângulo, que não apenas o da estabilidade.
a realização de eleições concomitantes Como afirmam Santos, Anastasia e Melo
ou não, para diferentes cargos executivos (2004), “eleições intercaladas facultam aos
e/ou legislativos. No Brasil e no Uruguai, cidadãos maiores chances de utilizarem as
as eleições para Presidente e Congresso urnas como mecanismos de accountability
são realizadas no mesmo dia. No primeiro vertical, já que lhes permitem sinalizar
caso, a coincidência estende-se ainda suas avaliações para os representantes no
às eleições para governadores, de forma momento em que alguns mandatos ainda
que apenas os pleitos municipais são estão curso, e não apenas quando todos os
realizados em data distinta. No Uruguai, cargos estão em disputa. Os governantes
eleições nacionais e departamentais poderão ‘ouvir as urnas’ e, se possível,
foram separadas após 1996. No Chile, fazer as correções de rumos que estão
as eleições para os poderes Executivo sendo “demandadas pelos eleitores”.
e Legislativo coincidem apenas a cada As Tabelas 3 e 4, a seguir, permitem
doze anos, uma vez que a duração dos introduzir a discussão sobre o método de
mandatos é diferenciada. Na Argentina, constituição das duas casas legislativas.
como a renovação do Congresso se realiza Tradicionalmente, os quatro países aqui
em duas etapas, existe uma coincidência analisados sempre utilizaram a represen-
parcial. tação proporcional na sua Câmara baixa,
Assim como na questão do segundo ficando a diferença para a composição
turno, e de acordo com os mesmos autores, do Senado. Sob a ditadura militar, o Chile
eleições não coincidentes entre os poderes mudou o sistema eleitoral utilizado para a
Executivo e Legislativo nacionais fazem Câmara dos Deputados.

62
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

Tabela 3

Eleições para a Câmara dos Deputados


Tipo de
Sistema Estrutura do voto e Cláusula de
País circunscrição e
eleitoral fórmula barreira
magnitude
Representação 24 distritos Lista fechada e 3% do
proporcional. correspondendo bloqueada (definida eleitorado na
Argentina às províncias. nas províncias). província.
Magnitude entre 2 D´Hondt.
e 35.
Representação 27 distritos Lista aberta. D’Hondt. Quociente
proporcional. correspondendo aos eleitoral
Brasil
estados. Magnitude estadual.
entre 8 e 70.
Majoritário 60 distritos Lista aberta.Lista Inexistente
com binominais. majoritária obtém 2
Chile mecanismo cadeiras se conseguir
de correção mais que o dobro de
proporcional. votos da segunda lista.
Representação 19 distritos Lista fechada e Inexistente.
proporcional. correspondendo bloqueada. D’Hondt
Uruguai aos departamentos. modificada.
Magnitude entre
2 e 47.
Fonte: Banco de dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul.

Tabela 4

Eleições para o Senado

Tipo de circunscrição e Estrutura do voto e


País Sistema Eleitoral
magnitude fórmula
Majoritário, com 3 senadores por Segunda lista recebe a
Argentina correção proporcional. província e 3 por terceira cadeira.
Buenos Aires.
Majoritário. 3 senadores por estado, Votação preferencial.
Brasil com renovação parcial Sem mecanismo de
(dois e um). transferência.
Majoritário com 2 por região + 9 Lista majoritária obtém
correção proporcional. membros nomeados. 2 cadeiras se conseguir
Chile mais que o dobro de
votos da segunda lista.

63
ENSAIO

Representação 30 cadeiras em um Lista fechada e


proporcional. distrito nacional. bloqueada por facção
endossada pelos líderes.
Uruguai
Transferência de voto
no âmbito do partido.
D’Hondt modificada.
Fonte: Banco de dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul.

Uruguai e Chile são casos de bica- um terço dos votos. A classificação do


meralismo congruente, ou seja, utilizam sistema eleitoral chileno é controversa.
o mesmo método eleitoral para a consti- Nicolau (1996) prefere tratá-lo como pro-
tuição das duas casas legislativas, repre- porcional, apesar de reconhecer o seu viés
sentação proporcional no primeiro caso e majoritário. Autores como Nohlen (1993),
majoritário com correção proporcional no Tavares (1994) e Blais e Massicote (1996)
segundo. Em ambos os casos, as circuns- classificam-no como uma variante dos
crições eleitorais são diferentes para cada sistemas majoritários devido aos distritos
câmara. No caso do Uruguai, os senadores de baixa magnitude, os quais, como se
são eleitos em uma única circunscrição sabe (Shugart e Taagepera, 1989), ten-
nacional, enquanto a Câmara Baixa é dem a gerar resultados menos proporcio-
constituída a partir de circunscrições ter- nais. De fato, o valor de D nas eleições
ritoriais correspondentes aos departamen- para a Câmara dos Deputados chilena,
tos. Na constituição do Congresso chileno, desde 1989, atinge uma média de 14,2,
são delimitadas circunscrições – 19 para valor muito elevado se comparado ao do
o Senado e 60 para a Câmara – que não Uruguai e superior àqueles encontrados
correspondem a divisões territoriais. para o Brasil e a Argentina, no mesmo perí-
odo – 8,4 e 13,5, respectivamente (Santos,
Os dois países destoam flagrante- Anastasia e Melo, 2004).
mente no que diz respeito ao sistema
eleitoral adotado para as duas casas. No Optamos por classificar o sistema
Uruguai temos uma representação quase eleitoral chileno como majoritário, ainda
perfeitamente proporcional, uma vez que que reconhecendo a existência de um
no complexo processo de distribuição de mecanismo de correção proporcional. A
cadeiras (Nohlen, 1993) os votos dados aos razão para tanto, ademais da pequena
partidos são computados nacionalmente magnitude do distrito, está nos resultados
e não existem cláusulas de barreira – o gerados pelo sistema. Tal como nos regi-
valor médio do índice de desproporciona- mes distritais puros, onde a magnitude é
lidade (D) para as eleições da Câmara dos igual a 1, o sistema eleitoral chileno induz
Deputados após a redemocratização é de a uma estrutura de competição bipolar e à
apenas 0,766. conformação de uma maioria e uma mino-
ria. A diferença é que, nos primeiros, a con-
O Chile utiliza distritos binominais formação dos dois grandes blocos deve-se
com a peculiaridade de que a segunda à distribuição do eleitorado, enquanto no
cadeira pertence ao segundo partido mais caso chileno, graças à existência de duas
votado, sempre que este obtiver mais de cadeiras e ao método de distribuição ado-

64
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

tado, o espaço para a minoria encontra-se partidos que não o tenham alcançado
preservado desde o distrito7. são excluídos da disputa pelas sobras.
Brasil e Argentina possuem um A legislação brasileira permite ainda a
bicameralismo incongruente, sendo o realização de coligações para as eleições
Senado composto por meio de diferentes proporcionais, com a peculiaridade de
modalidades de majoritarismo. Nos dois que as cadeiras conquistadas não são
casos, as circunscrições para ambas as distribuídas proporcionalmente à votação
casas são coincidentes e correspondem de cada membro da coligação – os partidos
aos estados. Os dois países elegem três coligados contam como uma só legenda e
senadores por estado e pela capital, mas a transferência de voto é realizada em seu
os mecanismos são distintos. No Brasil interior indistintamente, o que permite que
a renovação do Senado se realiza em a manifestação do eleitor por um partido
duas etapas, de forma que ora é eleito seja computada em benefício de outro8.
um representante por estado, ora são Finalmente, cabe mencionar as
escolhidos dois. Neste último caso, o diversas modalidades de voto adotadas. O
majoritarismo é atenuado, uma vez que a Uruguai adota a lista fechada e bloqueada,
eleição não se realiza em bloco: embora composta de forma distinta, caso se trate
cada partido lance dois candidatos, não do Senado ou da Câmara dos Deputados.
há transferência de voto no interior da Para o primeiro, ainda prevalece a “ley de
legenda, sendo considerados eleitos os las lemas”: os partidos podem apresentar
candidatos que individualmente obtiverem mais de uma lista, cabendo ao eleitor esco-
mais votos, independentemente da sigla lher uma delas. O mecanismo das sublis-
partidária. Na Argentina, o sistema admite tas foi abolido para a Câmara Baixa9. Na
um mecanismo de correção proporcional: Argentina, para a Câmara dos Deputados,
das três cadeiras em disputa, duas são a lista é ordenada nas províncias e não
reservadas ao partido que obtenha o maior nacionalmente. Utilizando os critérios de
número de votos e a terceira cadeira, ao Carey e Shugart (1995), a estrutura do voto
segundo colocado. nestes países seria a que menos incenti-
Nos dois países, a proporcionalidade vos forneceria a que os congressistas se
para a Câmara dos Deputados é restringida preocupassem com a reputação pessoal
pelo fato de que os cálculos para a vis a vis a reputação partidária. Os líderes
distribuição das cadeiras são realizados – nacionais, no caso uruguaio, e regionais,
com base nos votos obtidos nos estados, no caso argentino – possuem completo
não sendo prevista uma cota extra que, a controle sobre a lista: ao eleitor é permi-
partir da votação nacional dos partidos, tido apenas um voto no partido de sua
possa compensar as distorções. A Argentina escolha, e a transferência dos votos é rea-
adota ainda uma cláusula de barreira de lizada no âmbito do partido, favorecendo
3% no nível das províncias. No Brasil, o os primeiros colocados na lista.
quociente eleitoral estadual – que varia Chile e Brasil adotam a lista aberta.
de 1,4% em São Paulo até 12,5% nos 11 Os líderes partidários possuem controle
estados de menor magnitude – funciona sobre sua elaboração, mas não a ordenam.
como uma cláusula, uma vez que os No caso chileno, tanto para o Senado

65
ENSAIO

como para a Câmara, trata-se de uma lista Para tanto, serão mobilizados os seguintes
composta por dois candidatos, cabendo ao indicadores: a) grau de simetria entre as
eleitor escolher um dos nomes. A votação duas câmaras; b) caráter congruente ou
de cada candidato é computada para o incongruente do bicameralismo quanto ao
partido e os que conseguirem mais votos método de constituição das Casas Legislativas;
em cada lista serão eleitos – feita a ressalva c) composição e tamanho dos mandatos das
de que o nome mais votado da segunda duas câmaras; d) organização dos sistemas
lista ganha a segunda cadeira, se esta de comissões.
obtiver mais de um terço dos votos. No De acordo com Lijphart (1984,
Brasil, as listas são formuladas nos estados 2002), o bicameralismo pode ser simétrico
e podem conter tantos nomes quantas ou assimétrico. A condição de simetria
forem as cadeiras em disputa, mais 50%. ocorre quando prevalece uma distribuição
O eleitor pode votar no candidato de sua equilibrada de poderes e de atribuições
preferência ou marcar a legenda partidária. entre as duas casas. Tal equilíbrio, por sua
De toda forma, o voto é computado para o vez, não pressupõe que sejam conferidas as
partido para efeito da definição do número mesmas atribuições a ambas as câmaras.
de cadeiras, sendo eleitos os mais votados
em cada lista estadual 10. Dado o grande
número de competidores nas listas – nos
menores estados cada partido pode lançar
até 12 candidatos e em São Paulo, mais de
cem – o sistema brasileiro fornece muito
mais incentivos que o chileno para que o
deputado procure cultivar sua reputação
individual junto aos eleitores.

Relação entre as Câmaras,


comissões e organização interna
do poder legislativo
Como se pode perceber na seção
anterior, os quatro países aqui analisados
revelam diferentes combinações entre
o tipo de divisão política – unitarismo
ou federalismo – e o bicameralismo.
Trata-se, agora, de buscar avaliar quais
são os padrões existentes de interação
entre as duas câmaras e como são
distribuídos atribuições e recursos
entre os parlamentares, explorando-se
tais relações do ponto de vista de seus
possíveis efeitos sobre a distribuição dos
poderes de agenda e de veto entre os atores.

66
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

Tabela 5

Indicadores de Simetria/Assimetria entre as duas Câmaras

Atribuição Argentina Brasil Chile Uruguai


Iniciativa Legal Simétricas Simétricas Simétricas Simétricas
Convocação Privativo da Prerrogativa das A convocação Privativo do
de Plebiscito, Câmara dos duas Câmaras de plebiscito Congresso
Referendo Deputados. em sessão é atribuição Nacional.
e Consulta conjunta. exclusiva do
Popular. presidente da
República.
Autorização para Privativo do Prerrogativa das Prerrogativa das Sem informação.
o presidente Senado. duas Câmaras duas Câmaras
declarar Estado em sessão reunidas em
de Sítio, conjunta. sessão conjunta.
Emergência ou
Calamidade
Pública.
Nomeação e Compete ao Compete ao Sem informação. Ambas as Câmaras
Destituição de Senado aprovar Senado aprovar em Assembléia.
Autoridades a escolha de a escolha de
Públicas. autoridades autoridades
públicas. públicas.
Autorização para Privativo da Privativo da Privativo da Privativo da
instauração de Câmara dos Câmara dos Câmara dos Câmara dos
processo contra Deputados. Deputados. Deputados. Deputados.
Autoridades
Públicas.
Processo e Privativo do Privativo do Privativo do Privativo do
julgamento de Senado. Senado. Senado. Senado.
Autoridades
Públicas.
Atribuições de Simétricas. Simétricas. Comissão Mista Ambas as
Revisão de e desequilíbrio a Câmaras, em
Matérias. favor da Senado. Assembléia.

Exame e Simétricas. Prerrogativa das Simétricas. Prerrogativa das


Derrubada duas Câmaras duas Câmaras
do Veto reunidas em reunidas em
Presidencial. sessão conjunta. assembléia geral*.

Fonte: Banco de Dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul


* O Art. 38 da Constituição uruguaia diz que “ Cuando um proyeto de ley fuese devuelto por el Poder Ejecutivo[...] se convocará a la
Asamblea General y se estará a lo que decidan los tres quintos de los miembros presentes de cada uma de las Cámaras, quienes podrán
ajustarse a las observaciones o rechazarlas, mantendo el proyeto sancionado”.

67
ENSAIO

Como se pode perceber através da do julgamento de autoridades: em todos


leitura da Tabela 5, não há variações os países a autorização para instauração
quanto ao grau de simetria entre os países de processo é competência exclusiva da
em tela no que se refere ao quesito da ini- Câmara dos Deputados, ao passo que o
ciativa legal: esta se encontra distribuída processo e o julgamento, propriamente
de forma simétrica entre as duas câmaras, ditos, são atribuições do Senado.
nos quatro países, ainda que em todos os A Argentina se distingue do Brasil e do
casos sejam designadas atribuições exclu- Chile na questão relacionada à autorização
sivas a uma das câmaras, como ocorre, para que o presidente mobilize os poderes
por exemplo, com a apresentação de leis emergenciais previstos nas Constituições
tributárias e sobre recrutamento de tropas, desses países – estado de sítio, emergência
cuja iniciativa é prerrogativa exclusiva da ou calamidade pública. Enquanto na
Câmara dos Deputados, na Argentina e no Argentina tal recurso é privativo do Senado
Chile, e com as leis sobre anistia e sobre Federal, no Brasil e no Chile ele pressupõe
indultos gerais, que, no Chile, só podem a deliberação em reunião conjunta das
ter origem no Senado. duas câmaras.
No que se refere à convocação de As atribuições de revisão das maté-
plebiscito, referendo ou consulta popular, rias iniciadas na outra câmara talvez sejam
observam-se variações dignas de menção: os mais relevantes indicadores dos graus
na Argentina esta é uma atribuição priva- de simetria entre as duas casas legislativas.
tiva da Câmara dos Deputados, enquanto Na Argentina e no Brasil essas atribuições
no Brasil e no Uruguai ela envolve neces- são distribuídas de forma equilibrada entre
sariamente ambas as câmaras – reunidas as duas Câmaras, como se pode constatar
em sessão conjunta, no primeiro caso, pela leitura do Artigo 78 da Constituição
e em Congresso Nacional, no segundo. da Argentina, e dos Artigos 65 e 66 da
O Chile apresenta, neste quesito, uma Constituição brasileira11. No Uruguai, o
peculiaridade que afeta negativamente processo é conduzido pelas duas casas,
o atributo da densidade democrática da em Assembléia. Já no Chile verifica-se a
representação, uma vez que apenas o pre- instituição de uma comissão mista, com-
sidente da República detém a prerrogativa posta de igual número de senadores e de
de convocar estes mecanismos de partici- deputados, que tem a atribuição de propor
pação direta dos cidadãos, nos interstícios soluções para os impasses que possam sur-
eleitorais, o que desequilibra sensivelmen- gir na tramitação das matérias (conforme
te a distribuição dos poderes de agenda a Artigos 67 e 68 da Constituição chilena).
favor do Poder Executivo. “O Chile, novamente, merece destaque:
Já o exame dos quesitos relacionados lá, a matéria de autoria do presidente que
à nomeação, à instauração de processo, ao tiver sido rejeitada pela Câmara de origem
julgamento e à destituição de autoridades poderá ser enviada à outra Câmara, por
públicas permite constatar graus bastan- solicitação do presidente, diferentemente
te expressivos de simetria entre as duas dos demais projetos que, uma vez rejeita-
câmaras, nos quatro países, ademais de dos, não poderão ser reapresentados senão
padrões similares e/ou idênticos de proce- após um ano. Se a Segunda Câmara apro-
dimentos, especialmente quando se trata var o projeto por dois terços de seus mem-

68
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

bros presentes, ele voltará à Câmara de origem e este somente será considerado rejeitado se
esta Câmara o reprovar com dois terços dos membros presentes (Artigo 65). Considerando
a peculiar composição do Senado, que conta com nove membros indicados, parece correto
afirmar que tal dispositivo desequilibra os poderes revisionais a favor do Senado sempre que
este constituir a Câmara revisora” (Santos, Anastasia e Melo, 2004).
A Tabela 6 ajuda a caracterizar melhor o bicameralismo em cada um dos países. Nela,
são agregados os dados sobre a composição numérica, os mandatos, o grau de simetria na
distribuição de poderes e congruência ou não dos procedimentos que presidem a constituição
das duas casas.

Tabela 6

Nº de membros, mandato, grau de simetria e congruência entre as casas legislativas


Câmara Baixa Câmara Alta Distribuição Método de
Nº de Mandato Nº de Mandato de poderes constituição
Países membros membros e atribuições das Câmaras
entre as
Câmaras
Argentina 257 4 anos 63 6 anos Simétrica Incongruente
Brasil 513 4 anos 81 8 anos Simétrica Incongruente
Chile 120 4 anos 47 8 anos Assimétrica Congruente
Uruguai 99 5 anos 31 5 anos Simétrica Congruente
Fonte: Banco de Dados Instituições Políticas da América do Sul (IUPERJ/UFMG).

O bicameralismo uruguaio combina com a distribuição equilibrada de poderes


simetria e congruência. No Brasil e na entre as duas câmaras. Por outro lado, e
Argentina verifica-se a presença de um discordando de Lijphart (2002:239), con-
bicameralismo simétrico e incongruente, sidera-se que o arranjo mais conducente
enquanto no Chile as duas câmaras são ao incremento da densidade democrática
congruentes quanto ao método de sua for- da representação é o bicameralismo con-
mação e assimétricas quanto à distribuição gruente proporcional, por garantir mais e
de poderes, recursos e atribuições. melhor a expressão plural das preferências
Algumas ponderações importantes que se organizam em torno de cada uma
merecem ser desenvolvidas quanto às pos- das clivagens que se fazem representar em
síveis combinações entre graus de simetria cada câmara.
e a congruência ou incongruência do Argumenta-se, aqui, que a simetria
método de constituição do órgão decisó- de atribuições entre câmaras que sejam
rio. Por um lado, e seguindo os passos de muito incongruentes quanto ao método
Lijphart (1984, 2002), parte-se do suposto de sua formação, que apresentem grandes
de que o bicameralismo simétrico é mais discrepâncias numéricas e diferentes cir-
compatível com arranjos consociativos e cunscrições eleitorais pode, na verdade,

69
ENSAIO

ser indicativa de algum tipo de distorção proporcional; 2) bicameralismo simétrico,


que favoreça a expressão de clivagens incongruente; 3) bicameralismo assimétri-
e/ou identidades representadas em uma co e incongruente; 4) bicameralismo assi-
das câmaras, em detrimento daquelas cuja métrico e congruente majoritário (Santos,
expressão institucional se dê através da Anastasia e Melo, 2004).
outra câmara. Mais uma vez, o caso chileno revela
Como afirmam Anastasia e Melo (2002: maior tendência à concentração de poderes.
26), ao analisar o caso brasileiro, “a Câmara À assimetria observada a favor do Senado
dos Deputados, considerados o número – casa que, como já foi dito, admite entre
de seus membros e sua heterogeneidade, seus membros um contingente expressivo
advinda da eleição via sistema de de membros não-eleitos – se soma a
representação proporcional, é muito mais operação do método de representação
expressiva da diversidade e da complexidade majoritário com viés proporcional em
presentes na sociedade brasileira do que o ambas as casas, configurando, portanto, o
Senado Federal, constituído como fórum único caso de bicameralismo assimétrico
de processamento das clivagens regionais. e congruente majoritário, arranjo que
Portanto, ao conceder ao Senado poderes afeta negativamente o grau de densidade
revisores equivalentes àqueles concedidos democrática da representação. Por
à Câmara dos Deputados, a Constituição contraste, o Uruguai é o exemplo mais bem
brasileira permite ao primeiro o poder acabado de um bicameralismo conducente
de vetar decisões tomadas no âmbito da ao incremento da representatividade: ao
segunda, imiscuindo-se desta forma, em mesmo tempo simétrico e congruente
issues que não lhe são pertinentes. Desde proporcional.
este ponto de vista, seria mais aconselhável Dando seqüência à análise das
que houvesse uma delimitação mais estrita características do bicameralismo em
das atribuições de revisão entre as duas presença nos quatro países, vale chamar
Câmaras, especificando-se os assuntos nos a atenção para a distribuição das cadeiras
quais seria prudente limitar estes poderes, legislativas entre as duas câmaras e para o
tomando-se por parâmetro as características tamanho dos mandatos em ambas. Brasil
e as atribuições conferidas pelo texto e Argentina são os países que apresentam
constitucional a cada uma delas.” as maiores diferenças no que se refere
Enfatiza-se, ademais, que o tipo de ao número de cadeiras existentes em
congruência que favorece a representati- cada câmara: no primeiro, a Câmara dos
vidade é aquele baseado no método pro- Deputados é seis vezes maior do que o
porcional, situando-se no extremo oposto Senado Federal; no segundo, quatro vezes.
o bicameralismo congruente majoritário. Isso significa, por um lado, que nestes
Portanto, pode-se sugerir uma tipologia que países, quando as casas deliberam em
busque classificar os efeitos combinados sessão conjunta, o peso relativo da Câmara
do grau de simetria com a observância Alta revela-se menor do que no Uruguai
ou não de congruência quanto ao méto- e no Chile. Por outro lado, significa que
do de formação das casas legislativas: quando os poderes e atribuições são
bicameralismo simétrico, congruente distribuídos de forma eqüitativa entre as

70
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

duas câmaras, especialmente os poderes da accountability e da representatividade


revisionais, os membros da câmara menor, no interior do legislativo.
em termos do número de cadeiras, acabam Um sistema de comissões pode estar
tendo maior peso nas decisões legislativas estruturado de forma a concentrar ou a
do que aqueles da câmara numericamente dispersar poderes de veto e de agenda entre
maior, o que conduz à suposição da sobre- os parlamentares. O exame do método de
representação dos issues e das clivagens constituição das comissões permite verificar
presentes na primeira, em detrimento se ele é mais conducente à formação de
daqueles que se fazem representar na comissões heterogêneas – e, portanto,
segunda. mais expressivas da pluralidade de
No que se refere ao tamanho do identidades e interesses presentes na Casa
mandato, pode-se verificar que no Uruguai e mais conducentes à influência política
há coincidência na duração dos mandatos das oposições – ou, alternativamente, mais
de deputados e senadores, mais um fator homogêneas e, portanto, mais passíveis
a falar a favor da ampliação dos graus de de controle pelas maiorias situacionistas.
representatividade em presença. A idéia A possibilidade de que partidos e/ou
aqui é a de que mandatos mais longos em coalizões oposicionistas tenham acesso a
uma das Casas, e passíveis de renovação recursos de poder no interior do parlamento
indefinida, favorecem a hipótese da é, de acordo com Powell (2000), um
ocorrência de graus maiores de assimetria seguro indicador de quão densamente
informacional entre senadores e deputados, representativos são os processos decisórios
o que certamente produz impactos sobre nos regimes democráticos.
o comportamento e sobre os resultados Na Tabela 7, a seguir, com vistas a
legislativos. Já mandatos coincidentes identificar as formas de organização do
entre os membros das duas casas lhes sistema de comissões, serão examinados o
oferecem chances similares de aquisição número e o perfil das comissões legislativas,
de expertise. Nos outros três países, os com especial atenção para o método
senadores têm mandatos mais estendidos: de sua constituição, no que se refere à
no Brasil e no Chile, os mandatos na observância ou não de algum critério
Câmara Alta são o dobro daqueles nas de proporcionalidade da participação dos
Câmaras Baixas, e na Argentina, uma vez partidos relativamente ao tamanho de sua
e meia. bancada na Casa13.
Um último aspecto a ser analisado
nesta seção refere-se ao papel das comissões
que, ao lado dos partidos, são as mais
importantes instâncias a serem consideradas
na análise dos trabalhos legislativos. Ainda
que diferentes modelos de organização
legislativa possam ser concebidos12, as
comissões, na medida em que facilitam – ou
dificultam – a vocalização das preferências
dos diversos atores, uns perante os outros,
contribuem para a afirmação dos atributos

71
ENSAIO
Tabela 7

Comissões Permanentes nas casas legislativas


Nº. de Nº Mínimo
Nº. de Nº. de Constituição*
Câmara Membros nas de Comissões
Membros Comissões
Comissões por Legislador
Alta 63 47 IL 07 a 21 5
Argentina
Baixa 257 45 EP ou DP 15 a 45 2a3
Alta 81 08 IL e DP 17 a 29 1a2
Brasil
Baixa 513 19 IL e DP 25 a 57 1
Alta 47 19 EP 05 2
Chile
Baixa 120 19 EM e EP 13 2
Alta 31 16 IL e DP 05 a 09 2a3
Uruguai
Baixa 99 16 IL e DP 03 a 15 1
Fonte: Banco de Dados Projeto Instituições Comparadas na América do Sul (IUPERJ/UFMG).
* EP = Eleição pelo Plenário; DP = Designação pelo Presidente; IL = Indicação de Lideranças Partidárias; EM= Eleição pela Mesa.

O primeiro aspecto que merece men- designação pelo presidente ou eleição


ção, relativamente ao método de consti- pela Mesa, sua composição tenderá a ser
tuição das comissões legislativas, é a mais expressiva dos setores majoritários
prevalência do critério partidário: na maio- da Casa, o mesmo ocorrendo quando as
ria dos países estudados, os regimentos se comissões forem formadas a partir de elei-
referem, de forma mais ou menos explícita, à ção pelo plenário, através da mobilização
necessidade de observância, tanto quanto de regra de maioria relativa ou absoluta.
possível, na composição das comissões, da Nestes casos, conseqüentemente, dimi-
proporcionalidade existente na distribui- nuem as chances de influência das oposi-
ção das cadeiras da Casa Legislativa entre ções na definição da agenda e no desen-
as diferentes agremiações partidárias. Tal volvimento dos trabalhos das comissões,
ocorre no Senado argentino, em ambas as como ocorre na Câmara dos Deputados
Casas, no Brasil e no Uruguai. da Argentina, e em ambas as Câmaras do
Este ponto é relevante porque contri- Chile.
bui para conferir às comissões um caráter
mais heterogêneo, permitindo que as mes- Conclusão
mas se aproximem mais de uma configu- Nas duas seções anteriores deste arti-
ração assemelhada à de “microcosmo do go, foi possível verificar a extensão com
plenário” e, portanto, mais coerente com que Argentina, Brasil, Chile e Uruguai
o modelo informacional (Krebhiel, 1990) utilizam o mecanismo da eleição direta
e mais condizente à expressão política das para a escolha dos tomadores de decisão
oposições. nos diversos níveis de poder, que méto-
Por contraste, ali onde a constituição dos utilizam para constituir os poderes
das comissões obedece prioritariamente Executivo e Legislativo no plano nacio-
à influência das lideranças da Casa, via nal, como organizam as relações entre as

72
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

Câmaras Alta e Baixa e, finalmente, como no Uruguai. A razão está não apenas na
são compostas as comissões no interior do adoção de variantes do método majoritário
Congresso. para o Senado, mas também na existência
A análise dos indicadores utilizados de diversos mecanismos, analisados na pri-
deixa claro que, do ponto de vista que meira seção deste artigo, que fazem com
aqui nos interessa, qual seja, o da densida- que os resultados obtidos para a Câmara dos
de democrática da representação, Uruguai Deputados sejam consideravelmente menos
e Chile podem ser apontados como casos proporcionais do que no último país.
extremos, ao passo que Argentina e Brasil Finalmente, vale mencionar que, no
situam-se em posição intermediária. caso do Brasil, alguns aspectos do arranjo
Exceção feita à indicação dos prefei- institucional encontram-se em discussão
tos, todos os aspectos do arranjo institu- a partir de Projeto de Lei apresentado
cional uruguaio aqui analisados são mais ao Congresso pela Comissão Especial de
conducentes ao incremento da densidade Reforma Política, em dezembro de 2003.
democrática da representação. Eleições Dentre as diversas modificações propostas
diretas são utilizadas para a escolha do pelo Projeto, cabe comentar, ainda que
presidente, dos governadores e de todos brevemente, aquelas que afetam dispositi-
os membros do Congresso. Primárias aber- vos aqui analisados, quais sejam: a) o fim
tas são obrigatórias para a definição dos das coligações nas eleições proporcionais;
candidatos presidenciais. A representa- b) a revogação do dispositivo que determi-
ção proporcional com lista fechada é na que apenas os partidos que atingem o
adotada para as duas câmaras que, ade- quociente eleitoral podem concorrer à dis-
mais, são simétricas no que se refere à tribuição das cadeiras; c) a instituição de
distribuição de poderes e atribuições. A uma cláusula nacional de barreira de 2%;
simetria, no caso uruguaio, estende-se até d) a adoção do sistema de lista fechada e
mesmo ao mandato de seus congressistas pré-ordenada nos pleitos proporcionais .
– cinco anos tanto para deputados como
Conforme analisado na primeira
para senadores. Finalmente, no interior do
seção, as coligações nas eleições propor-
poder legislativo, o critério para a compo-
sição das comissões é proporcional. cionais e a utilização do quociente elei-
toral como cláusula de barreira afetam de
No Chile, governadores e parte do forma negativa a representatividade das
Senado não são diretamente eleitos. As eleições para a Câmara dos Deputados.
duas câmaras são constituídas por método Mas, caso sejam aprovadas as propostas
majoritário e a distribuição de poderes referentes aos dois itens acima, o ganho
e atribuições é assimétrica, favorecendo obtido tende a ser contrabalançado pela
o Senado – a menos representativa das introdução da cláusula de 2%. Vale ressal-
casas. No que se refere à composição das tar, no entanto, que o “prejuízo” poderia
comissões, trata-se do único país que em ser maior: a cláusula agora proposta vem
nenhuma das casas adota o critério pro- substituir aquela definida pela Lei. 9.096,
porcional.
com vigor previsto para 2006, e que defi-
Os arranjos institucionais de nia como requisito para o funcionamento
Argentina e Brasil geram resultados menos parlamentar a obtenção de no mínimo 5%
representativos do que aqueles vigentes dos votos nacionais.

73
ENSAIO

Finalmente, uma eventual adoção do conclusão de que o eleitor acaba sendo


voto em lista provocará uma significativa levado a designar o agente errado (Anastasia
modificação no sistema político brasileiro. e Melo, 2002). Dada a maneira como se
A medida tende a reforçar os partidos estruturam os órgãos decisórios no Brasil, o
em um país onde estes são sabidamente eleitor teria mais facilidade de acompanhar
frágeis, e a fornecer poderoso instrumento o processo legislativo se designasse o
disciplinar para as lideranças partidárias partido, e não o candidato individualmente,
no Congresso. Mas o aspecto que aqui como o seu agente. Esta é a principal razão
importa remete à relação entre eleitor e pela qual a introdução da lista fechada
representante e à possibilidade de que o contribuirá para tornar mais representativa
primeiro controle o segundo. a democracia no Brasil.
Sabe-se que a votação em lista
aberta, como adotada no Brasil, incentiva
a definição do voto com base nas
características do candidato e não do
partido. A partir daí, pode-se supor que
o posterior acompanhamento do trabalho
parlamentar será realizado, quando o for,
de forma personalizada, mais do que em
termos partidários. Dito de outro modo,
a maioria do eleitorado brasileiro faz do
deputado, e não do partido, o seu agente,
supondo que este seja capaz, a partir de seu
desempenho individual, de levar à frente
suas propostas. Mas o eleito, ao chegar à
Câmara depara-se com um cenário no qual
os poderes legislativos estão concentrados
nas mãos do Executivo e dos líderes
partidários (Limongi e Figueiredo, 1999).
Dito de outra forma, o representante eleito
com base em uma relação na qual os
compromissos assumidos com os eleitores
são de ordem pessoal encontrará no
legislativo um contexto institucional que
inibe a perseguição de tais compromissos
ou que, pelo menos, faz com que estes só
possam ser atingidos se compatíveis com as
preferências dos líderes partidários. Pode-
se dizer que, de certa forma, o cenário
parlamentar “corrige” um problema do
cenário eleitoral, ao introduzir com mais
clareza os partidos. Mas a comparação
entre os dois cenários permite chegar à

74
CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

NOTAS
* Professores e pesquisadores do Departamento de Ciência Política da UFMG.
1
Os dados utilizados neste texto foram extraídos do banco de dados do Projeto Instituições Políticas Comparadas na América
do Sul. Ademais, no presente artigo são reproduzidas alguns trechos do livro (no prelo) que resultou dessa pesquisa. O projeto
foi resultado de convênio firmado entre a Fundação Konrad-Adenauer, o IUPERJ e o DCP-UFMG. A pesquisa foi coordenada
pelos professores Fabiano Santos (IUPERJ), Fátima Anastasia e Carlos Ranulfo (DCP/UFMG). Integraram o grupo de pesquisa os
estudantes Magna Inácio, Cristiane Batista, Éder Assis, Paulo Magalhães Araújo, Luciana Santana, Allan Nuno, Daniela Nunes e
Ricardo Alexandre F. de Lima.
2
Argumenta-se, ademais, que arranjos de tipo majoritário, por apontarem de forma mais clara de quem é a responsabilidade
governativa, tornariam mais fácil ao eleitorado controlar governos eleitos (Powell, 2000).Tampouco há consenso quanto a este
ponto, ou seja, quanto a que a concentração de poderes conduza a ganhos em termos de controle sobre governos eleitos. Sistemas
políticos baseados em mecanismos de checks and balances tendem a potencializar os mecanismos de accountability horizontal.
Como mostra Strom (2000), os mecanismos de controle institucional são muito mais evidentes no presidencialismo do que no
parlamentarismo. Da mesma maneira, em arranjos institucionais nos quais prevalece um maior grau de dispersão de poder, é mais
provável que a oposição atue como um agente da sociedade, criando melhores condições para o exercício da accountability no
plano vertical.
3
Para uma análise da evolução recente dos sistemas partidários na América do Sul, ver Santos, Anastasia, e Melo (2004). A
introdução de eleições subnacionais ocorreu tanto em repúblicas federais, como a Venezuela, como em países unitários, como
Colômbia e Bolívia. Cabe mencionar, no entanto, que iniciativas em sentido contrário também ocorreram, como a supressão do
Senado e a diminuição do número de membros do Congresso, no Peru e Venezuela, ou a introdução de deputados eleitos em
distritos uninominais, neste último país e na Bolívia.
4
De acordo com Mainwaring (1993) tal combinação institucional é conducente à instabilidade. Para uma discussão deste ponto,
à luz da recente evolução dos países sul-americanos, ver o volume organizado por Jorge Lanzaro (2001).
5
Os governos locais no Uruguai são exercidos pelas Juntas Locais. A Constituição uruguaia determina que é função do Intendente
Municipal “Designar los miembros de la Juntas Locales, con anuencia de la Junta Departamental”. Contudo, quando o Governo
Departamental assim decidir, a junta local poderá ser eleita diretamente. Veja-se o art. 288 da Constituição “La ley determinará
las condiciones para la creación de las Juntas Locales y sus atribuciones, pudiendo, por mayoría absoluta de votos del total de
componentes de cada Cámara y por iniciativa del respectivo Gobierno Departamental, ampliar las facultades de gestión de
aquéllas, en las poblaciones que, sin ser capital de departamento, cuenten con más de diez mil habitantes u ofrezcan interés
nacional para el desarrollo del turismo. Podrá también, llenando los mismos requisitos, declarar electivas por el Cuerpo Electoral
respectivo las Juntas Locales Autónomas”.
6
Desproporcionalidade calculada de acordo com o índice proposto por Loosemore e Hanby (1971).
7
Incapazes de alterar o altamente restritivo sistema binominal arquitetado no período ditatorial, os partidos chilenos passaram a
operar como em um sistema bipartidário, articulando-se em torno das duas grandes coalizões que, desde 1989, têm disputado os
rumos do país. Aqueles, como os comunistas, que não quiseram ou não puderam proceder desta maneira, viram-se rapidamente
privados de representação no Congresso Nacional (Santos, Anastasia e Melo, 2004).
8
Um quarto fator compromete a proporcionalidade dos resultados eleitorais no Brasil. Trata-se da migração partidária no interior
do poder legislativo, fenômeno que faz com que a distância entre o que dizem os votos depositados nas urnas e a distribuição das
cadeiras entre os partidos na Câmara dos Deputados continue a aumentar depois de iniciada cada legislatura, com o agravante
de que deixa de existir qualquer interferência do eleitor no processo. Simulações feitas por Melo (2004), para a eleição de 1998,
revelam que as mudanças de partido são o fator que isoladamente mais afetam a proporcionalidade no sistema representativo
brasileiro.
9
O artigo 88 da Constituição uruguaia diz que “la Cámara de Representantes se compondrá de noventa y nueve miembros
elegidos directamente por el pueblo, con arreglo a un sistema de representación proporcional en el que se tomen en cuenta los
votos emitidos a favor de cada lema en todo el país. No podrá efectuarse acumulación por sublemas, ni por identidad de listas de
candidatos”. Já os artigos 95 e 96 determinam que “los Senadores serán elegidos por el sistema de representación proporcional
integral” e que “la distribución de los cargos de Senadores obtenidos por diferentes sublemas dentro del mismo lema partidario,
se hará también proporcionalmente al número de votos emitidos a favor de las respectivas listas”.
10
Carey e Shugart (1995) afirmam que os líderes partidários no Brasil não possuem controle sobre os membros da lista. Mas a
legislação foi alterada em 1998, com o fim do chamado “candidato nato”. Até então, de fato, todo deputado tinha presença
garantida na lista independentemente da vontade de seu partido.
11
“Artigo 65. - O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado
à sanção ou promulgação se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. Parágrafo Único - Sendo o projeto emendado,
voltará à Casa iniciadora. Artigo 66. - A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da
República, que, aquiescendo, o sancionará”.
Como se sabe, segundo o modelo distributivista, as comissões devem estar estruturadas de forma a facilitar a obtenção de
12

“ganhos de troca”, enquanto o modelo informacional enfatiza a possibilidade de consecução de “ganhos de informação”.
13
Os parágrafos que se seguem, até a conclusão desta seção, foram reproduzidos de Santos, Anastasia e Melo (2004).

75
ENSAIO

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77
ENSAIO * SUSANE GRATIUS / ** DELFET NOLTE

Parlamento Transnacional
e Integração: A experiência
do Parlamento Europeu e as
ligações que a América Latina
tem para o Mercosul
“Quando os estados (democráticos) “Sempre que a capacidade da União
se empenham em compartilhar e delegar Européia de usar o poder público se amplia
soberania a instituições supranacionais, de algum modo, o Parlamento Europeu
os problemas de representação e respon- é um meio necessário (embora não
sabilização democrática tendem a adqui- necessariamente suficiente) para prevenir
rir importância. Assim, podemos esperar, o seu abuso.” (Coombes 1999: 52)
por exemplo, que o tipo e a força das
assembléias parlamentares na ordenação 1. O Parlamento Europeu: um
política internacional se correlacionem
com o grau em que os estados comparti-
caso único
lham e delegam soberania. Neste sentido, A União Européia, que desde maio
o Parlamento Europeu é um “elemento de 2004 conta com 25 Estados membros, é
externo”, porque a Comunidade é um elemento uma organização internacional sui generis.
externo.” (Rittberger 2003: 221). O mesmo pode-se dizer do Parlamento

* ** Colaboradores científicos do Instituto de Hamburgo / Tradução: Sérgio Bath

78
Europeu, já que se trata de um Parlamento supranacional único no mundo no que se refere à
sua legitimidade democrática e ao seu poder de decisão. Dos seus 624 integrantes, eleitos por
voto direto antes mesmo da ampliação da União Européia, o número de deputados deverá
aumentar para 732, representando cerca de 450 milhões de habitantes. Com a inclusão da
Bulgária e da Romênia na União Européia, prevista para 2007, o Parlamento Europeu contará
com 786 parlamentares no fim da atual década.
Número de mandatos por país
(por ordem alfabética do nome de cada país, na respectiva língua oficial)
1999-2004 2004-2007 2007-2009
Bélgica 25 24 24
Bulgária – – 18
Chipre – 6 6
República Checa – 24 24
Dinamarca 16 14 14
Alemanha 99 99 99
Grécia 25 24 24
Espanha 64 54 54
Estônia – 6 6
França 87 78 78
Hungria – 24 24
Irlanda 15 13 13
Itália 87 78 78
Letônia – 9 9
Lituânia – 13 13
Luxemburgo 6 6 6
Malta – 5 5
Países Baixos 31 27 27
Áustria 21 18 18
Polônia – 54 54
Portugual 25 24 24
Romênia – – 36
Eslováquia – 14 14
Eslovênia – 7 7
Finlândia 16 14 14
Suécia 22 19 19
Reino Unido 87 78 78
(MAX) TOTAL 626 732 786
Fonte: http://www.europa.eu.int/institutions/parliament/index_pt.htm.

79
ENSAIO

As características do Parlamento riores, como por exemplo, o dos anos


Europeu tornam muito difícil chegar a con- 1960 e 1970. Complementarmente, pode
clusões ou extrair lições para instituições do ser útil analisar também o desenvolvimento
mesmo tipo (como por exemplo a Comissão institucional das assembléias parlamentares
Parlamentar Conjunta do Mercosul) com em outros sistemas de integração existentes
base no seu desenvolvimento histórico. na América Latina. Dessa perspectiva, pare-
Além disso, as funções e o funcionamento ce útil resumir brevemente os fatos mais
de um Parlamento dependem do conjun- importantes da história do Parlamento
to das instituições de um regime político Europeu, como também o desenvolvi-
nacional ou supranacional. Não existe mento das assembléias parlamentares
hoje no mundo nenhuma união de Estados da Comunidade Andina e do Mercado
soberanos com estruturas supranacionais Comum Centroamericano, para depois
tão elaboradas e poderosas como a União chegar a algumas conclusões a respeito
Européia. da Comissão Parlamentar Conjunta do
Quando comparamos o Parlamento Mercosul.
Europeu com as instituições parlamen-
tares do Mercosul surge outro problema. 2. Breve história do Parlamento
Se incluímos a assembléia parlamentar Europeu
da Comunidade Européia do Carvão e do
A Comunidade Européia do Carvão
Aço, que se reuniu pela primeira vez em
e do Aço, antecessora da Comunidade
1952, o Parlamento Europeu é uma insti-
Econômica Européia, tinha uma assembléia
tuição “adulta”, já que tem mais de cin-
parlamentar planejada como contrapeso
qüenta anos1. Ora, a Comissão Parlamentar
das autoridades executivas supranacionais,
Conjunta do MERCOSUL, que se reuniu
pela primeira vez em 1992, é uma institui- que teve também a função adicional de
ção “adolescente”, que se encontra ainda corrigir um possível deficit de legitimidade
em uma fase de aprendizado e de cresci- democrática das novas estruturas de inte-
mento institucional. gração econômica (ver Rittberger 2003:
211-3).
Não há dúvida de que o Parlamento
Europeu pode servir como estímulo ou De acordo com o Tratado de Roma,
exemplo para a Comissão Parlamentar do de 1957, o Parlamento Europeu repre-
Mercosul, e as duas instituições já fazem senta “os povos dos Estados reunidos na
contatos institucionais regulares, que no Comunidade”. O Parlamento Europeu
futuro poderão ser ainda mais aprofun- (denominação adotada em 1962), dos seis
dados. No entanto, as possibilidades de países fundadores da Comunidade, tinha
aprendizagem irão depender do desen- 142 integrantes, ou seja, mais do dobro
volvimento institucional do Mercosul, em do número atual de integrantes da CPC
especial das suas estruturas supranacio- do Mercosul (64). Era composto por par-
nais. Em lugar de comparar o Parlamento lamentares procedentes dos parlamentos
Europeu como existe hoje com a Comissão dos Estados-Membros da Comunidade,
Parlamentar do Mercosul, pode ser mais nomeados pelos seus pares, e mantidos
útil adotar como ponto de referência o seus mandatos nos respectivos parlamen-
Parlamento Europeu de períodos ante- tos nacionais.

80
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

Número de mandatos no Parlamento em uma decisão da Corte Suprema de


Europeu, por país (1957) Justiça, o Parlamento conquistou um certo
direito de retardar a aplicação da legislação
País Mandatos elaborada pela Comissão, antes da sua
Alemanha 36 aprovação pelo Conselho.
Bélgica 14
Um passo muito importante no desen-
França 36 volvimento institucional do Parlamento
Itália 36 Europeu foi a primeira eleição dos seus
Luxemburgo 6 membros por sufrágio universal direto,
Países Baixos 14 em junho de 1979, interpretada como
uma mudança constitucional da maior
A princípio, o Parlamento Europeu
envergadura (Corbett et al 2003: 355).
era um órgão consultivo do Conselho da
Desde então, a composição do Parlamento
Comunidade, tendo por tarefa principal o
Europeu é renovada a cada cinco anos. É
controle da Comissão como principal órgão
preciso acrescentar que a eleição direta já
comunitário supranacional. O Parlamento
estava prevista no tratado constitutivo que
Europeu tinha o direito de debater a respeito
deu origem à Comunidade, em 1957. Com
das atividades da Comissão, censurando-a
a eleição direta, o Parlamento passou a ser
se necessário (hipótese em que a Comissão
um órgão corporativo de atividade con-
deveria renunciar). Nos anos 1950 e 1960,
na fase de infância e adolescência do tínua, tendo surgido uma nova classe de
Parlamento Europeu, quase não houve parlamentares transnacionais, cuja carreira
mudança nas suas atribuições, mas política depende da sua atuação no âmbi-
nos anos e décadas que se seguiram to europeu. Os parlamentares europeus
aumentaram as atribuições legislativas e se esforçaram por ampliar a infra-estru-
de controle exercidas pelo Parlamento tura técnica e de apoio administrativo do
Europeu com respeito à Comissão Européia Parlamento Europeu.
e ao Conselho, aumentando também a sua Os novos deputados europeus, elei-
legitimidade democrática. tos de forma direta, foram muito mais ati-
Com a assinatura do Tratado de vos do que os seus antecessores, em todos
Luxemburgo, em 1970, foi introduzido os aspectos da atividade parlamentar2.“Dos
na Comunidade um sistema de recursos questionamentos parlamentares às audi-
próprios, sendo também ampliados os ências públicas; da exploração de pro-
poderes orçamentários do Parlamento cedimentos para pressionar a Comissão
Europeu (ver Rittberger 2003: 213-7). ao exame dos Comissários e seus funcio-
Para evitar conflitos entre as instituições nários; das ações na Corte de Justiça às
interessadas e bloqueios no processo nomeações para o Tribunal de Contas; dos
legislativo, em 1975, o Conselho e o comitês de investigação ao congelamento
Parlamento Europeu criaram, mediante de fundos, o Parlamento eleito foi mais
declaração conjunta, um sistema de vigoroso, mais sistemático e incisivo do
arbitragem para os casos de divergência que o nomeado.” (Corbett 1998: 129). Os
em matérias jurisdicionadas ao Parlamento. eurodeputados utilizaram o regulamento
Não obstante, a última palavra cabia do Parlamento Europeu para experimen-
sempre ao Conselho. Em 1980, com base tar e explorar a elasticidade dos tratados

81
ENSAIO

comunitários, ampliando a sua área de atuação, mas só dentro de certos limites, representa-
dos pela institucionalidade vigente da Comunidade. Em conseqüência, o Parlamento Europeu
atuava também na promoção das reformas da Comunidade Econômica Européia e, depois da
União Européia, enfatizando uma maior legitimidade parlamentar das decisões tomadas.
O Parlamento Europeu dispõe de três sedes, fato que por vezes complica o trabalho
parlamentar e a interação com os outros órgãos da União Européia. O Protocolo número
8, anexo ao Tratado de Amsterdam, de 1997, precisa: “O Parlamento Europeu tem sede
em Estrasburgo, onde são realizadas as doze sessões plenárias mensais, inclusive a sessão
orçamentária. As sessões plenárias suplementares são realizadas em Bruxelas. As Comissões
do Parlamento Europeu se reúnem também em Bruxelas. A Secretaria-Geral do Parlamento
Europeu e os seus serviços permanecem em Luxemburgo.” O Parlamento Europeu organiza
o seu trabalho com base em 17 comissões parlamentares permanentes e conta atualmente
com sete comissões temporárias.
Os deputados do Parlamento Europeu não se integram em blocos nacionais. A
despeito de predominar um ambiente de cooperação na defesa dos interesses institucionais
e europeus, formaram-se grupos políticos ligados por afinidade ideológica, que reúnem os
principais partidos políticos dos Estados-Membros da União Européia. Esses grupos políticos
do Parlamento Europeu constituem o núcleo e a coluna vertebral dos partidos transnacionais
europeus.

QUADRO: Número de mandatos por grupo político, em 1º de Abril de 2003


Grupo político Sigla Nº de
mandatos
Partido Popular Europeu (Democrata-Cristão) e PPE-DE 232
Democratas Europeus
Partido dos Socialistas Europeus PSE 175
Partido Europeu dos Liberais, Democratas e ELDR 52
Reformistas
Esquerda Unitária Européia / Esquerda Nórdica Verde GUE/NGL 49
Verdes / Aliança Livre Européia Verdes/ALE 44
União para a Europa das Nações UEN 23
Europa das Democracias e das Diferenças EDD 18
Não-inscritos NI 31
TOTAL 634
Fonte: http://www.europa.eu.int/institutions/parliament/index_pt.htm

Graças à nova legitimidade Os próprios parlamentares europeus, eleitos


democrática, com a assinatura de cada de forma direta, defenderam o aumento
novo tratado o Parlamento Europeu viu das atribuições do Parlamento Europeu
ampliada sua competência e o papel nas próximas revisões institucionais,
político que lhe cabe na União Européia. argumentando que a perda de controle

82
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

dos parlamentos nacionais, no processo ser nomeados sem a aprovação do


de integração da Europa, deveria ser Parlamento. Além disso, ampliou-se
compensada pela maior competência novamente o procedimento de decisão
atribuída ao Parlamento Europeu. conjunta do Conselho e do Parlamento
A assinatura da Ata Única Européia de Europeu, simplificou-se o processo
1986, para completar o mercado comum até legislativo e fortaleceu-se a posição do
o ano de 1992, deu um grande impulso ao Parlamento como contraparte equivalente
desenvolvimento institucional comunitário. do Conselho, abrangendo agora quase
O Conselho modificou suas normas todas as matérias às quais se aplica no
internas no relativo ao procedimento de Conselho o critério da maioria qualificada,
votação, criando-se pela primeira vez um como as que aparecem pela primeira vez
mecanismo co-decisório entre o Conselho no novo Tratado. Por outro lado, o Tratado
e o Parlamento. O impulso dado a essas de Nice, de 2001, reforçou o papel co-
duas decisões decorreu da necessidade legislador do Parlamento Europeu, que
de promulgar um grande número de leis desta forma se converteu, no transcurso
comunitárias (cerca de trezentas) até da última década, em legislador conjunto
1992. Para acelerar o processo de decisão, com o Conselho da União Européia.
os Estados-Membros estavam dispostos A participação do Parlamento
a transferir e a somar suas soberanias, Europeu nas decisões do Conselho, como
ampliando cada vez mais a participação órgão máximo da União Européia, abarca
do Parlamento Europeu (ver Rittberger diferentes formas e graus de influência.
2003: 217-20). Foi o rumo retomado nos Para certas matérias é necessário o
tratados seguintes: o Tratado da União consentimento do Parlamento para
Européia (Maastricht, 1992) e o Tratado que o Conselho possa decidir. Em caso
de Amsterdam, de 1997, que converteram de consulta, a Comissão submete uma
o Parlamento Europeu em uma autêntica proposta ao Parlamento. Se a consulta é
assembléia legislativa, com competência facultativa, a proposta não pode converter-
comparável à dos parlamentos nacionais. se em lei por voto do Conselho, a menos
No entanto, nem todas as ampliações que o Parlamento tenha emitido um
das políticas comunitárias levam a uma parecer favorável. Nos casos de co-decisão,
maior participação do Parlamento Europeu Parlamento e Conselho compartilham o
que, para dar um exemplo, exerce pouco poder legislativo, e a Comissão envia
controle e influência no campo da Política sua proposta às duas instituições que,
Exterior e da Segurança Comum. se não chegam a um acordo, submetem
Não obstante, depois do Tratado sua divergência a um “comitê de
de Maastricht, as áreas das políticas conciliação”, integrado por igual número
comunitárias isentas de ingerência do de representantes do Conselho e do
Parlamento Europeu diminuíram de 72% Parlamento3.
(segundo o Tratado de Roma) para 40% As áreas abrangidas pelo processo
(Maurer 2002: 132). Com o Tratado de de parecer favorável são: algumas missões
Amsterdam, de 1997, ganhou força a específicas do Banco Central Europeu;
alterações nos estatutos do Sistema Europeu
posição do Parlamento Europeu frente
de Bancos Centrais / Banco Central
à Comissão. O Presidente e os outros Europeu; fundos estruturais e Fundo de
membros da Comissão não podem

83
ENSAIO

Coesão; processo eleitoral uniforme para Européia e pode rejeitá-lo. Além disso,
o Parlamento Europeu; alguns acordos desempenha funções de controle:
internacionais; adesão de novos Estados deve aprovar a gestão orçamentária
membros. da Comissão; pode criar comissões
As áreas abrangidas pelo processo temporárias de investigação. Por outro
de consulta são: cooperação policial e
lado, seus deputados, grupos ou comissões
judicial em matéria penal; revisão de
Tratados; discriminação em razão de parlamentares, podem formular perguntas
sexo, raça ou origem étnica, convicções à Comissão ou ao Conselho, oralmente ou
religiosas ou políticas, deficiência, idade por escrito4.
ou orientação sexual; cidadania da UE;
agricultura; vistos, asilo, imigração e outras Em resumo, constata-se que, desde
políticas relacionadas com a liberdade de a criação da Comunidade Econômica
circulação de pessoas; transportes (sempre Européia, a participação do Parlamento
que haja um significativo impacto em certas nas decisões comunitárias se ampliou,
regiões); concorrência; fiscalidade; política especialmente com base nos Tratados de
econômica; “cooperação reforçada” - ou
Maastricht e Amsterdam, que criaram o
seja, a disposição que permite que um
grupo de Estados-Membros trabalhem mecanismo de co-decisão. É preciso assim
conjuntamente num domínio específico, concordar com as palavras de Richard
mesmo sem a participação dos demais. Corbett (1998: 367), deputado socialista
do Parlamento Europeu: “Subestimado
As áreas abrangidas pelo processo
de parecer de co-decisão são: não por muitos, nos primeiros anos, depois
discriminação com base na nacionalidade; das eleições diretas o novo Parlamento
direito de circulação e residência; liberdade de tempo integral, surgido em 1979, tem
de circulação de trabalhadores ; seguridade sido, de modos nem sempre previstos, um
social para os trabalhadores migrantes; fator importante na aceleração do ritmo da
direito de estabelecimento; transportes;
integração européia ocorrida a partir de
mercado interno; emprego; cooperação
aduaneira; luta contra a exclusão social; meados dos anos 1980.”
igualdade de oportunidades e igualdade
de tratamento; decisões executivas 3. A experiência latino-
relacionadas com o Fundo Social Europeu; americana com parlamentos
educação; formação profissional; cultura; regionais e subregionais
saúde; defesa do consumidor; redes
transeuropéias; decisões executivas Além da Europa, a América Latina
relacionadas com o Fundo Europeu de é, em todo o mundo, a única região que
Desenvolvimento Regional; investigação; conta com parlamentos transnacionais,
ambiente; transparência; prevenção e luta tanto em nível regional como subregional.
contra a fraude; estatística; instituição
de um órgão consultivo para a proteção Em 2004, a história da América Latina
de dados. Fonte: http://europa.eu.int/ nesse terreno completa vinte anos. O
institutions/decision-making/index_pt.htm Parlamento Latino-Americano (Parlatino),
fundado em 7 de dezembro de 1964,
Ao lado da sua participação no em Lima, foi o antecessor e um fator
processo legislativo, o Parlamento importante para a criação posterior do
Europeu tem igualmente outras atribuições Parlamento Andino (Parlandino) e do
tipicamente parlamentares: participa na Parlamento Centro-Americano (Parlacen),
elaboração do orçamento da União no quadro dos respectivos processos de

84
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

integração subregional. O Parlamento só 14% da população apóia os partidos


Latino-Americano nasceu há quarenta políticos, e os Congressos figuram entre as
anos, durante as comemorações dos 140 instituições mais desacreditadas da região
anos da batalha de Ayacucho, em memória (Latinobarometro 2003, Santiago, Chile).
das idéias de integração do Libertador
Não obstante, o Parlatino continua
Simón Bolivar. O objetivo principal dessa
primeira assembléia parlamentar regional funcionando. Em duas oportunidades
foi promover a união política da América sua estrutura foi reformada e, em 1992,
Latina. Nos primeiros anos do Parlatino foi instalada em São Paulo sua sede
foram discutidas e aprovadas propostas permanente. Em comparação com o
ambiciosas de integração, tais como a Parlamento Europeu, o Parlatino é, como
criação de uma bandeira regional comum, instituição, muito mais simples. Seu
de um passaporte latino-americano e a órgão principal é a Assembléia Geral.
abertura de uma universidade regional – Há uma pequena secretaria executiva,
propostas que até hoje não foram levadas um comitê diretivo e sete comissões
à prática. parlamentares permanentes. Como
não existe um processo de integração
A criação do Parlatino, em Lima,
regional, as funções do Parlamento Latino-
resultou de uma primeira onda de integração
latino-americana com enfoque regional. Americano são meramente deliberativas,
Sua meta final era integrar toda a América inexistindo um instrumento legislativo:
Latina, em conformidade com as idéias do seus principais instrumentos são resoluções
pan-americanismo inspiradas em Simón e recomendações não vinculantes.
Bolivar. A função principal do Parlatino O segundo poder legislativo
foi dar um impulso político ao processo transnacional criado na América Latina
de integração econômica da América foi o Parlamento Andino (Parlandino),
Latina. O Parlatino nasceu em uma época que surgiu dez anos depois do Pacto
extremamente difícil do ponto de vista Andino, em 1979. Hoje, o Parlandino é
político, em que muitos países do continente parte do complexo sistema supranacional
eram governados por regimes militares. Essa da Comunidade Andina. Assim como o
conjuntura política contrária à integração Parlatino, o Parlandino está composto
dos estados da região reduziu desde o
por deputados nacionais nomeados pelos
princípio as repercussões do Parlamento
parlamentos de cada país membro. Ao
Latino-Americano, que nunca conseguiu
contrário do Parlatino, o Parlamento
transformar-se em um foro político de
Andino inclui uma cláusula democrática,
peso, e atualmente é uma assembléia
parlamentar sem maior transcendência. que condiciona a participação dos
Os seus membros se reúnem por alguns Estados-Membros ao “exercício efetivo” da
dias, cada dois anos, e o impacto político democracia, razão pela qual no passado
da sua atuação se acha consideravelmente a presença do Chile como Observador
reduzido. O pouco poder do Parlatino está foi suspensa. Pouco depois da ratificação
vinculado estreitamente com a crise do do seu Tratado constitutivo, em 1984, o
sistema de partidos políticos na maioria Parlandino estabeleceu em Bogotá a sua
dos países participantes, e na imagem sede permanente. Por outro lado, seguindo
negativa dos Congressos nacionais. Por o exemplo da União Européia, o então
isso, segundo o Latinobarometro de 2003, Pacto Andino preferiu não concentrar os

85
ENSAIO

foros de coordenação na mesma cidade, não se transformou em realidade.


mas criou sedes diferentes para todas as Há dez anos (o debate teve início em
suas instituições: a Secretaria está em 1994) estão previstas eleições diretas
Lima, o Tribunal de Justiça, em Quito, o para o Parlandino, possibilidade que já
Parlandino, em Bogotá e a Corporação estava prevista no Tratado constitutivo
Andina de Fomento, em Caracas. Essa e especificada no Protocolo Adicional,
dispersão representou, desde o início, um assinado em 1987. Não obstante, até hoje
sério obstáculo à coordenação política e só a Venezuela e, há pouco mais de
ao próprio processo de integração sub- um ano, o Equador, realizaram eleições
regional. diretas para o Parlamento Andino. Os
O Parlandino está composto por outros países receberam um novo prazo,
cinco representantes nacionais e dez até 2005, para seguir esse exemplo. Diante
suplentes, havendo sido criadas cinco do pouco dinamismo da integração dos
comissões temáticas permanentes. O países andinos, a debilidade dos Estados
Parlamento se reúne uma vez por ano, interessados e os problemas bilaterais
podendo, além disso, ser convocadas entre Colômbia e Venezuela, surgem sérias
sessões extraordinárias, desde que contem dúvidas sobre a viabilidade do projeto e as
com o apoio de um terço dos Estados- suas perspectivas futuras. Embora o processo
Membros. De acordo com seu avançado de integração andino tenha criado o quadro
processo de integração (a Comunidade institucional mais amplo e complexo,
Andina constitui uma união aduaneira baseado em foros supranacionais, devido à
incompleta), sua abrangência é mais ausência de vontade política dos governos
ambiciosa do que a do Parlatino e, inclui o e a endêmica falta de vigor institucional
prosseguimento do processo de integração, dos Estados-Membros, o Parlandino tem
cooperar com os parlamentos nacionais tido pouca visibilidade e efetividade na
para incorporar o direito comunitário sub-região.
andino e formular propostas de integração. O balanço que se pode fazer do
O Parlandino exerce seu poder através de Parlamento Centro-Americano (Parlacen)
recomendações e decisões que entram em está longe de ser melhor. O Parlacen foi
vigor mediante o apoio de dois terços dos instituído em 1987, no contexto do processo
deputados; elege um Presidente e quatro de paz centroamericano, como parte dos
Vice-Presidentes, que exercem o mandato Acordos de Esquipulas II. Vinicio Cerezo, o
durante um ano e representam diferentes então Presidente da Guatemala, promoveu
países. É esse grupo de representantes que essa idéia, em janeiro de 1986, para
nomeia o Secretário Geral, e juntos eles criar um clima de paz, consenso político
constituem o foro executivo, ou “Mesa e democracia na sub-região afligida
Redonda” parlamentar. por guerras civis, violência e violações
No quadro do processo de constantes dos direitos humanos. Uma
transformação do Pacto Andino em vez superada a crise centro-americana, o
Comunidade Andina, o Parlandino foi Parlacen abriu suas portas em 1991, na
reestruturado, autorizando-se a eleição Cidade da Guatemala, com a participação
direta dos seus representantes. Não de quatro países: Guatemala, Nicarágua,
obstante, por falta de vontade política El Salvador e Honduras. O Panamá se
e devido ao atual estancamento do integrou alguns anos mais tarde. Costa
processo de integração, o projeto ainda Rica foi o único país a formular reservas

86
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

constitucionais, e nunca chegou a ratificar fórmula heterodoxa e única que distingue


o Tratado constitutivo. Havia outros motivos o Parlacen de qualquer outro parlamento,
para retardar a sua participação: o respeito nacional ou transnacional. A razão inicial
predominante à soberania nacional e para a participação de importantes figuras
a situação especial do país, devido à políticas nacionais foi o fortalecimento
relativa estabilidade democrática, social e da coordenação política entre o Parlacen
econômica. e os Poderes Executivos nacionais. Não
Assim como o Parlandino, o Parlacen obstante, em vez de aumentar a importância
se reúne uma vez por ano, podendo política do Parlacen na região, essa prática
ser convocadas assembléias plenárias tem sido seriamente questionada, já que
extraordinárias. Seu órgão executivo é a integração dos antigos Presidentes e
mais complexo e está composto pelo Vice-Presidentes na assembléia regional
Presidente, quatro Vice-Presidentes e cinco lhes conferiu automaticamente imunidade
Secretários. O Parlacen adota decisões perante a Lei.
por maioria de sete votos, e funciona com Hoje, discute-se uma profunda
doze Comissões temáticas. Sua estrutura reforma na estrutura do Parlacen. As
está muito orientada para o modelo maiores críticas, formuladas por Oscar
europeu. Sua estrutura supranacional foi Berger, atual Presidente do país que fundou
adotada desde o início prevendo a eleição o foro, são dirigidas contra a cláusula
direta dos seus representantes, com os que prevê a participação de todos os
partidos políticos reunidos em diferentes ex-mandatários nacionais, que se tornou
grupos parlamentares. Procurou-se, um aspecto altamente controvertido
assim, criar uma verdadeira assembléia desde a incorporação do ex-Presidente
parlamentar transnacional, favorecendo guatemalteco Alfonso Portillo e, antes
a integração sub-regional em vez do disso, com a do ex-Presidente Arnoldo
predomínio dos interesses nacionais. Alemán, da Nicarágua. No contexto de
A importação do modelo europeu de uma renovação política na Nicarágua e
parlamentarismo transnacional esteve na Guatemala, e de um combate mais
relacionada estreitamente com o papel intenso às práticas corruptas nos governos
destacado assumido pela Comunidade dos países membros, o Parlacen tem uma
Européia na pacificação regional, através imagem particularmente negativa, além
do denominado Processo de San José, de ter perdido relevância como foro de
as Conferências entre Europa, América integração política. Cabe lembrar, porém,
Central e o Grupo de Contadora (e mais que durante o processo de pacificação
tarde o Grupo de Apoio ampliado). centroamericana ele cumpriu importante
Até hoje o Parlacen é o único função simbólica e política. Por outro
parlamento transnacional da região lado, também é certo que fracassou como
com deputados eleitos diretamente promotor da integração sub-regional e
pela população, à semelhança do como plataforma para promover a
Parlamento Europeu. O mandato dos seus democracia na América Central.
representantes é de cinco anos. Além dos De modo geral, o balanço do
vinte deputados eleitos diretamente pelos parlamentarismo regional na América
cidadãos, integram-se automaticamente Latina é ambíguo. Todos os parlamentos
no foro os ex-Presidentes e Vice- transnacionais criados até hoje têm em
Presidentes dos Estados-Membros: uma comum sua pequena capacidade decisória

87
ENSAIO

e uma influência limitada sobre os contrário do Parlamento Europeu, nem o


parlamentos nacionais, mantendo funções Parlacen nem o Parlandino optaram pela
puramente deliberativas. Seu único distribuição proporcional de representantes
instrumento para influir nos processos do país, e em ambos prevalece o princípio
políticos regionais, bilaterais ou nacionais, da igualdade, independentemente do
são resoluções ou recomendações que não tamanho e do peso econômico dos
têm qualquer impacto concreto porque países-membros. Finalmente, os três foros
não são vinculantes. As funções das três analisados são assembléias parlamentares
assembléias regionais são semelhantes: unicamerais.
servem como plataformas políticas
Quanto à sua função política,
pluralistas e como vínculo entre democracia
cabe dizer que sobretudo as reuniões
e integração. Tanto o Parlatino como o
do Parlatino têm sido, em termos gerais,
Parlacen contribuem para promover a
um exercício útil para promover um
coordenação e o intercâmbio entre os
consenso latino-americano em certos
diferentes partidos políticos nacionais e,
temas de interesse comum (por exemplo,
se o processo de integração está mais
a pacificação da América Central e a
avançado, promovem a união política
solução pacífica de outros conflitos) e para
entre os Estados-Membros. Os casos do
sustentar, inclusive em épocas adversas, os
Parlacen e do Parlandino demonstram
princípios democráticos, dentro de espectro
que a eleição direta dos integrantes de
político amplo e representativo das forças
poderes legislativos transnacionais (meta
políticas latino-americanas. Neste sentido,
também prevista pelo Mercosul) pode
o Parlatino é um dos poucos foros políticos
exigir mudanças na legislação nacional.
da América Latina que permitem um
Assim, a definição de um período eleitoral
intercâmbio através das fronteiras nacionais
comum exigiu, no caso do Parlandino,
e sub-regionais, entre partidos de diferente
mudanças constitucionais em alguns
orientação ideológica, procedentes de
Estados-Membros, o que, além da falta de
todos os países.
vontade política, atrasou a implantação do
sistema de eleições diretas. Em resumo pode-se dizer que
Refletindo um maior progresso na a experiência com parlamentos
integração, a competência do Parlandino transnacionais na América Latina não é
e do Parlacen é mais ampla, e suas muito alentadora, pois eles têm sido foros
estruturas são mais densas e complexas insignificantes, chegando mesmo a servir
do que a do Parlatino. Com respeito a de refúgio seguro a políticos perseguidos
este último ponto, o Parlacen é o modelo pela corrupção praticada nos seus países,
mais próximo do Parlamento Europeu, como no caso do Parlacen.
já que, diferentemente do Parlatino e do Desde o início os parlamentos
Parlandino, o Parlacen dispõe de sede transnacionais tiveram o apoio da então
permanente, seus deputados são eleitos Comunidade Européia, que lhes ofereceu
diretamente, agrupando-se de acordo assistência técnica e co-financiamento.
com as afinidades políticas, e mantêm Esses vínculos inter-regionais se refletem
uma relação indireta com o Executivo, até hoje nas Conferências bienais entre
por contar com a participação de ex- o Parlamento Europeu e o Parlatino. O
Presidentes e Vice-Presidentes. Ao primeiro desses encontros teve lugar

88
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

em 1974, e o último deles em maio a Comissão Parlamentar Conjunta, primeiro


de 2003, em Bruxelas. Houve também passo para um futuro poder legislativo
intercâmbios e reuniões esporádicas entre transnacional, sem especificar com muita
o Parlacen e o Parlandino, instituições clareza suas funções e competência (na
com as quais o Parlamento Europeu verdade o Tratado constitutivo do Mercosul
assinou também acordos de cooperação. é um instrumento bastante sucinto, de
Embora os resultados desses encontros poucas páginas). O Regulamento Interno
entre parlamentares europeus e latino- da Comissão Parlamentar Conjunta foi
americanos sejam modestos e passem aprovado também em 1991; posteriormente,
despercebidos, continuam a ser foros o Protocolo de Ouro Preto, de 1994,
importantes para promover o diálogo especifica a estrutura institucional do
entre as regiões. Ao mesmo tempo, a Mercosul, incluindo a competência dos
influência européia tem sido uma seus principais foros. Embora a Comissão
referência importante para a integração Parlamentar Conjunta seja considerada
latino-americana, seguindo muito de perto um órgão principal do Mercosul, assim
o exemplo europeu, enquanto os Estados como o Foro Consultivo Econômico e
Unidos favorecem uma abordagem Social, ela não tem qualquer capacidade
estritamente comercial no processo decisória nem exerce funções de controle
de integração. De um lado, a forte legislativo. Tanto a Comissão como o
orientação para o modelo europeu, por Foro são instituições “deliberativas”,
parte dos três parlamentos transnacionais que podem formular recomendações e
da América Latina (precursores de um “acompanham” o processo de integração,
possível Parlamento do Mercosul) os sem dele participar diretamente. Além
converteu em interlocutores idôneos disso, a Comissão não constitui um
do Parlamento Europeu; de outro, esse parlamento regional transnacional, mas
eurocentrismo reduziu sua legitimidade e continua a ser um foro determinado por
operacionalidade na América Latina, uma interesses parlamentares nacionais. Assim,
vez que nenhum dos três parlamentos um primeiro passo para promover uma
transnacionais foi ajustado às circunstâncias entidade comum além do âmbito nacional
e peculiaridades regionais. Levando em consistiria em criar grupos parlamentares
conta essas experiências, devemos esperar integrados por deputados de correntes
que o Mercosul não cometa os mesmos políticas similares.
erros, mas que, ao contrário, busque Como não existe propriamente um
um caminho próprio, independente e “direito do Mercosul”, as funções e a
adaptado às circunstâncias do seu contexto competência da Comissão Parlamentar
regional. Conjunta se limitam à formulação
de recomendações e decisões não
4. Institucionalidade e dimensão vinculantes. Entre outras tarefas, cabe
parlamentar no Mercosul à Comissão encomendar estudos sobre
O Tratado de Assunção que criou o o processo de integração e organizar
Mercosul, em 1991, prevê a criação de seminários sobre o tema. Além disso, ela
um parlamento supranacional em data não fez um importante trabalho de compilação
determinada, estabelecendo, no Artigo 24, de todos os textos legislativos do Mercosul,

89
ENSAIO

que foram publicados em dois volumes. A composição das delegações


Por outro lado, a Comissão se incumbe nacionais está orientada para os respectivos
de acelerar a incorporação das normas regulamentos parlamentares dos Estados-
do Mercosul às legislações nacionais, Membros e o Presidente da Comissão
cooperando estreitamente com os procede do país que exerce a Presidência
parlamentos nacionais. Para fortalecer a sua pro tempore do Mercosul. Ele é assistido
cooperação com os Congressos nacionais, por um Secretário Geral e um Secretário
em todos estes, nos quatro Estados-Membros Administrativo permanente, residente em
foram criadas Comissões do Mercosul. No Montevidéu. Para preparar as sessões
Uruguai, país sede da Secretaria Técnica plenárias foram criadas onze subcomissões
do Mercosul, a delegação nacional da temáticas. No quadro das relações inter-
Comissão dispõe de um escritório com institucionais entre o Mercosul e a União
representantes permanentes, situado no Européia, o Parlamento Europeu e a
Edifício Mercosul, em Montevidéu. Comissão Parlamentar Conjunta mantêm
reuniões regulares. Por outro lado,
Atualmente, a Comissão Parlamentar
são mantidas relações estreitas com o
reúne 64 deputados, 16 de cada um Parlandino e celebradas reuniões menos
dos quatro Estados-Membros. Esses 16 feqüentes com o Parlacen.
representantes e o mesmo número de
suplentes são designados pelos respectivos Assim como acontece com o Parlacen
parlamentos nacionais, e exercem o seu e o Parlandino, o balanço das atividades
mandato por um período mínimo de dois da Comissão Parlamentar Conjunta é
anos. Como em todos os Estados-Membros também ambíguo. Em um estudo sobre a
há sistemas bicamerais, os integrantes da institucionalidade do Mercosul, Roberto
Comissão procedem das duas Câmaras. A Bouzas e Hernán Stoltz (2004) criticam o
sessão plenária da Comissão se reúne pelo trabalho da Comissão e concluem que esse
menos duas vezes por ano, freqüência maior órgão “não obteve êxito ao desempenhar
do que a dos demais órgãos transnacionais um papel propositivo e de assessoria dos
da região. Essas reuniões são presididas órgãos técnicos, negociadores e decisórios
por uma mesa de quatro representantes, (...) A Comissão também não teve muito
realizando-se normalmente no país que êxito em acelerar ou facilitar as tarefas de
internalização das normas do Mercosul,
exerce a Presidência pro tempore do
ou de vencer a última linha de resistência
Mercosul. Todas as decisões são tomadas
de interesses particulares afetados por
pelo consenso das delegações nacionais.
decisões vinculadas ao processo de
Embora oficialmente não exista uma sede
integração.”
permanente da Comissão, foi criada em
Montevidéu uma Secretaria Administrativa Devido às suas limitações estruturais
Parlamentar Permanente, que coordena e características próprias, a Comissão não
as atividades das quatro seções nacionais responde a nenhuma das três responsa-
e, além disso, prepara e dá seguimento bilidades parlamentares: 1) representar a
ao trabalho parlamentar. Também foi cidadania; 2) reunir os interesses nacio-
criado, recentemente, um modesto fundo nais favoráveis a um “bem comum” e 3)
orçamentário para financiar esse órgão de supervisionar o processo de integração e
apoio da Comissão. a aplicação de normas e decisões. Uma

90
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

das causas do seu pequeno impacto no fator de legalidade para dar seguimento
processo de integração é sua competência ao processo de incorporação de normas
limitada, o caráter de foro de interesses (levando em conta que até hoje não mais
nacionais e a ausência de capacidade de 35% do “direito do Mercosul” foi
decisória e de mecanismos de sanção. incorporado às legislações nacionais).
A consciência desse deficit fez com que
No nível técnico, a criação de um
se considerasse atualmente converter a
Parlamento do Mercosul exige uma série
Comissão em um genuíno parlamento
de decisões prévias para definir um sistema
regional, para contar com uma instância
eleitoral comum sobre os seguintes pontos:
de controle democrático das instituições
• o número de deputados por país,
do Mercosul. Essa idéia foi levantada pelo
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do • a extensão do seu mandato,
Brasil, que declarou:... deveríamos insti- • a definição da(s) data(s) do sufrágio
tuir um parlamento do Mercosul, eleito universal,
mediante o voto direto dos eleitores dos
nossos países. Faremos assim com que os • a definição das funções e
cidadãos participem do processo de inte- competências,
gração regional, dando-lhe mais força e • a instalação ou não de uma sede
legitimidade.” permanente,
O aprofundamento institucional • sua relação com as outras instituições
corresponde ao fato de que o processo do Mercosul e com os parlamentos
de integração está ganhando densidade nacionais.
e complexidade, abarcando uma ampla
gama de temas de cooperação. A Comissão No contexto desse debate, autores
Parlamentar Conjunta está avaliando os originários de países do Mercosul, como
passos necessários para criar um poder Gerardo Caetano e Rubén Perina (2003:
legislativo comum, que no futuro contaria 318-9), apresentaram propostas concretas
com deputados eleitos diretamente pelos para preparar um parlamento regional
cidadãos dos Estados-Membros. Como eleito diretamente pelos cidadãos, median-
no caso do Parlandino e do Parlacen, te um futuro Protocolo de Eleições e
o Mercosul decidiu também, mais de Representação. Nessa agenda, esses auto-
uma década depois da assinatura do res consideram fundamental esclarecer a
Tratado constitutivo, a futura incorporação “questão delicada” da proporcionalidade
do Poder Legislativo ao processo de na futura assembléia parlamentar, e a
integração. A criação de um Parlamento representatividade dos Estados pequenos.
do Mercosul poderia cumprir quatro A solução para esse dilema não será
funções importantes: a) inaugurar, na fácil: o mesmo número de deputados por
integração, uma dimensão democrática, país e as decisões tomadas por consenso
de caráter partidário; b) estimular a futura representariam uma desvantagem para os
união política como meta ambiciosa sócios maiores (particularmente o Brasil),
do Mercosul; c) criar um órgão de enquanto a proporcionalidade absoluta,
controle democrático das instituições da baseada no número de habitantes, prova-
integração (até aqui predominantemente velmente seria inaceitável para os países
intergovernamentais); e d) representar um pequenos. Não obstante, como a experiên-

91
ENSAIO

cia do Parlamento Europeu pôde demonstrar, Comissão de Representantes Permanentes,


existem fórmulas para resolver esses dile- sediada também em Montevidéu.
mas. Outro desafio será o da representa- Cabe lembrar aqui que a experiência
tividade regional no futuro Parlamento da Comunidade Andina, e também do
do Mercosul, ou seja, a decisão de adotar Parlamento Europeu, mostra que dispersar
o modelo unicameral ou o bicameral. O as sedes das instituições, localizando-as
mais lógico seria optar por uma só câma- em cidades e países diferentes, não é uma
ra, seguindo o exemplo de outros parla- estratégia muito acertada, pois eleva tanto
mentos regionais. Ao reunir-se em uma só os custos logísticos como os problemas
Câmara, e levando em conta que os futu- de coordenação. No entanto, tudo indica
ros deputados do Parlamento do Mercosul que, assim como a Comunidade Andina,
seriam eleitos diretamente pelos cidadãos, o Mercosul adota também esse modelo.
pela sua estrutura, essa assembléia sub- Assim, a Secretaria Técnica e o Comitê
regional atuaria futuramente como um de Representantes Permanentes estão
autêntico foro parlamentar supra-nacional. situados em Montevidéu; o futuro Tribunal
Não obstante, para exercer essa função, a de Apelação estará sediado em Assunção;
competência do Parlamento do Mercosul e os demais órgãos não dispõem de sede
deveria incluir instrumentos eficazes para permanente, reunindo-se em diferentes
supervisionar, controlar e legislar o proces- lugares. Para reduzir os custos financeiros
so de integração. Sem essa competência, e logísticos, seria recomendável
e sem que haja um verdadeiro “direito centralizar as instituições no mesmo lugar,
do Mercosul”, esse Parlamento correria o preferentemente em um país pequeno,
risco de ser apenas mais um foro de debate com estabilidade institucional e política.
entre parlamentares latino-americanos.
A criação de um futuro Parlamento 5. Lições da Europa e da América
se enquadra em uma reforma institucional Latina para o futuro Parlamento
mais ampla do Mercosul. Diferentemente do Mercosul
de outros processos sub-regionais de inte- Antes de criar um Parlamento do
gração, o Mercosul criou uma estrutura Mercosul, seria fundamental iniciar um
institucional “ligeira”, pragmática e inter- debate sobre outras experiências com
governamental. Seus principais órgãos de parlamentos regionais ou sub-regionais. A
coordenação são o Conselho, o Grupo de referência mais importante é, sem dúvida, o
Mercado Comum, a Comissão Comercial e Parlamento Europeu, mas será igualmente
os dois foros deliberativos: CPCD e FCES. interessante aprender com os poderes
Na medida em que progride a integra- legislativos transnacionais já existentes na
ção entre os Estados-Membros, incluindo região.
tanto temas comerciais como políticos,
sociais e de segurança, a estrutura do A experiência latino-americana
Mercosul foi sendo ajustada. Após um mostra uma série de erros e de riscos que
longo período de retrocesso e estancamen- deveriam ser evitados pelo Mercosul:
to, o Mercosul foi reativado com a criação • Se não houver uma vigorosa vontade
de três órgãos adicionais, com incipien- política de todos os participantes
tes funções supranacionais: a Secretaria no processo de integração, um
Técnica, em Montevidéu, o Tribunal de parlamento regional pode converter-
Apelação Permanente, em Assunção, e a se em foro totalmente irrelevante.

92
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

• A debilidade institucional inerente ele não se considera como parte


dos Estados-Membros estará refletida acabada de um sistema institucional
também em uma assembléia par- perfeito, mas como um elemento de
lamentar conjunta. Um parlamento composição que exige uma evolução
transnacional não pode compensar ou até mesmo a sua transformação
as deficiências institucionais dos par- em algo diferente” (Corbett 1998:
lamentos nacionais. A qualidade da 368). Desta perspectiva, a futura
democracia e o poder parlamentar, evolução institucional da Comissão
no âmbito transnacional, dependem Parlamentar do Mercosul deve ser
da qualidade da democracia e dos vista como um processo em aberto.
poderes parlamentares no âmbito É preciso recordar que o Parlamento
nacional (ver Combes 1999: 18-19). Europeu começou também como
• Um parlamento regional só pode uma assembléia legislativa nomea-
existir em conjunto com outros órgãos da pelos parlamentos dos Estados-
supranacionais ou semi-supranacio- Membros, e que os representantes
nais de integração. indicados para o Parlamento Europeu
guardavam suas funções nos respec-
• Para serem efetivos e para poder tivos parlamentos nacionais.
influenciar o processo de integração,
os poderes legislativos transnacionais • Levando em conta as diferentes
requerem funções de controle sobre funções ou atividades atribuídas ao
outros órgãos de integração e sobre Parlamento Europeu ao longo da
os parlamentos nacionais. Quando sua história – como foro de debate,
só podem adotar Resoluções não as funções legislativa e de gover-
vinculantes, mal terão um impacto no e as de co-participação e influ-
perceptível. ência na tomada de decisões dos
órgãos executivos de União Européia
A despeito das peculiaridades do (ver Schmuck 1989) – atualmente
desenvolvimento institucional da União a Comissão Parlamentar Conjunta
Européia e do Parlamento Europeu, é pos- desempenha, no máximo, a função
sível chegar a algumas conclusões aplicá- de foro de debate.
veis a um futuro Parlamento do Mercosul:
• O Parlamento Europeu é parte de
• O processo da ampliação das atri- toda uma estrutura supranacional, e
buições do Parlamento Europeu não o seu desenvolvimento institucional
resultou de um plano original; com foi estimulado e governado pelos
efeito, o Parlamento Europeu foi ini- progressos ocorridos no processo de
cialmente idealizado como um órgão integração econômica e política: pela
consultivo (ver Maurer 1999: 18). cobertura cada vez mais ampla do
Não obstante, com a passagem do direito comunitário e do reforço das
tempo, suas funções foram amplia- estruturas supranacionais no âmbito
das e os seus representantes conquis- de governo da União Européia (por
taram maior legitimação democráti- exemplo, a tomada de decisões por
ca. Neste sentido pode-se constatar maioria qualificada, no Conselho).
que: “Um traço característico do Desta forma, o desenvolvimento
Parlamento Europeu é o fato de que institucional do Parlamento Europeu

93
ENSAIO

se realizou cada vez mais em um elites políticas a favor de uma maior


caminho já prefigurado pelas deci- legitimação democrática. Por outro
sões adotadas no âmbito dos gover- lado, os parlamentos nacionais não
nos. se opuseram à criação e fortaleci-
mento de uma assembléia parlamen-
• Os progressos com respeito às atri-
tar supranacional. Teria sido igual-
buições do Parlamento Europeu se
mente possível defender um cami-
deram no contexto de uma intera-
nho alternativo, reforçando o papel
ção triangular entre a Comissão, o
dos parlamentos nacionais como
Conselho e o próprio Parlamento.
órgãos de controle das instituições
Como instituição supranacional, supranacionais (ou dos representan-
a Comissão foi muitas vezes uma tes nacionais nessas instituições). No
aliada do Parlamento Europeu, fun- caso do Mercosul será preciso com-
cionando ademais como mediadora provar que os Congressos nacionais
entre o Parlamento e o Conselho. No estão realmente dispostos a criar e
Mercosul, com as instituições hoje ceder competência a um Parlamento
existentes, um parlamento suprana- supranacional.
cional entraria em confronto direto
com os órgãos intergovernamentais. • Qualquer progresso na integração
econômica e política do Mercosul
• A necessidade de uma maior legiti- que amplie o papel de um parlamento
mação dos procedimentos das deci- supranacional precisaria definir
sões comunitárias depende da cober- igualmente a função dos parlamentos
tura do direito comunitário. Uma nacionais na estrutura institucional da
associação basicamente econômi- associação regional. Assim como na
ca como é o Mercosul não precisa União Européia, os cidadãos devem
necessariamente de ter uma legitima- identificar-se primordialmente com o
ção processual, podendo bastar uma seu próprio país, antes do Mercosul,
legitimação por rendimento (output- e a política receberá sua legitimação
oriented legitimacy)5. processual principalmente no
• A ampliação das atribuições do âmbito nacional. Com uma estrutura
Parlamento Europeu foi influenciada de decisão mais diferenciada e
pela delegação de soberania a insti- complexa, o Mercosul enfrentaria
tuições supranacionais, o que provo- os mesmos desafios propostos por
cou (conforme a percepção de uma “um parlamentarismo de múltiplos
parte importante das elites políticas níveis”, que desde os anos noventa
nacionais), um deficit de legitimação vem sendo objeto de discussão na
democrática (ver Rittberger 2003). União Européia.
Esse foi o ponto de partida para • Parece pouco provável que o desen-
uma ampliação das atribuições do volvimento institucional da Comissão
Parlamento Europeu, como também Parlamentar Conjunta se aproxime,
para uma mudança nos mecanismos no futuro imediato, da trajetória ins-
adotados para a eleição dos deputa- titucional do Parlamento Europeu,
dos (de eleição indireta para direta). já que no Mercosul existem apenas
É necessário salientar que, no caso estruturas supranacionais com inde-
do desenvolvimento institucional pendência e poder de decisão, as
do Parlamento Europeu, foi muito quais tornariam necessária a criação
importante a atitude assumida pelas de algum órgão de controle parla-

94
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

mentar supranacional. No momento, integração e a ampliarem as atribuições do


as decisões dos órgãos do Mercosul Parlamento do Mercosul, mas esse cenário
são tomadas no âmbito dos governos, só será viável se houver vontade política
e ratificadas pelos parlamentos nacio- de progredir na integração econômica e
nais. Nesse quadro institucional é política por parte dos países-membros, o
suficiente um órgão consultivo como que implicaria ceder soberania a órgãos
a Comissão Parlamentar Conjunta, supranacionais. Não teria sentido criar um
que poderia funcionar como correia parlamento adicional despido de funções
de transmissão entre os governos que reais. Atualmente, os parlamentos nacio-
se reúnem no Conselho do Mercosul nais são avaliados muito negativamente
e os parlamentos nacionais. Desta nas pesquisas de opinião pública realiza-
forma, os integrantes da Comissão das na América Latina. Qualquer parla-
podem acelerar os processos legislati- mento supranacional teria que enfrentar
vos nos Estados Partes, para a pronta um grande ceticismo por parte da cidada-
entrada em vigor das normas emana- nia, que tenderia a vê-lo como mais um
das dos vários órgãos do Mercosul. mecanismo inventado pelos políticos para
Ao mesmo tempo, podem remeter enriquecerem à custa dos seus eleitores.
as recomendações dos parlamen- Em um cenário ainda pior, o Parlamento
tos nacionais para o Conselho do do Mercosul poderia ser confrontado pelo
Mercado Comum, por intermédio do desinteresse geral; como acontece com o
Grupo Mercado Comum. Parlamento Europeu, que apesar da sua
Tomando como base o desenvol- legitimidade democrática direta e das suas
vimento institucional do Parlamento atribuições ampliadas é mal percebido
Europeu, quais poderiam ser os cenários pela opinião pública e não é apreciado
futuros para a criação de um Parlamento pelos cidadãos europeus.
do Mercosul? Poderíamos imaginar um
Em suma, tudo indica que falta ainda
Parlamento eleito por sufrágio universal
direto, que contaria com maior legitimida- um longo caminho para que o Mercosul
de democrática, aumentando a identifica- possa por em funcionamento um poder
ção dos cidadãos com o processo de inte- legislativo transnacional que sirva de vín-
gração regional. O desenvolvimento insti- culo entre democracia e integração. Vale
tucional ocorrido no Parlamento Europeu, lembrar que a instalação do Parlacen
depois da eleição direta, demonstra que tomou também mais de cinco anos, da
um parlamento supranacional com uma formulação da idéia até a sua implementa-
base própria de legitimação poderia pro- ção. No caso do Mercosul, foi o Presidente
mover sua identidade institucional. Como Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, que em
o Parlamento Europeu, um Parlamento do janeiro de 2003, no princípio do seu man-
Mercosul poderia aproveitar ao máximo dato, sugeriu a criação de um Parlamento
a institucionalidade vigente. Mas os pro- do Mercosul para aumentar a participação
gressos possíveis dependem desse quadro dos cidadãos no processo de integração.
institucional vigente. Seria possível insti- Cabe esperar que essa idéia seja levada à
tuir uma classe parlamentar transnacional, prática com a possível brevidade, e que o
impulsionando os presidentes dos paí- futuro Parlamento do Mercosul não seja
ses-membros do Mercosul e os ministros demasiado ambicioso e, por outro lado,
empenhados nos diferentes órgãos do não se torne desde o princípio um foro
Mercosul a avançarem no processo de irrelevante.

95
ENSAIO

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96
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

Nota biográfica:
Susanne Gratius: Cientista política, responsável pela América Latina no Stiftung
Wissenschaft und Politik (SWP) (Instituto Alemão de Política Internacional e Segurança).
E-mail: susanne.gratius@swp-berlin.org; homepage: http://www.swp-berlin.org/forscher/
forscherprofil.php?id=1344&PHPSESSID=32c67472ae315f6bbf3a191664a6560d
Delfet Nolte: Cientista político, Subdiretor do Instituto de Estudos Ibero-Americanos de
Hamburgo; professor na área de estudos latino-americanos e de ciência política na Univer-
sidade de Hamburgo. Áreas de investigação sobre a América Latina: reforma do Estado;
descentralização; sistemas políticos; parlamentos; direitos humanos; eleições; relações
internacionais (Alemanha-América Latina; União Européia- América Latina); relações cívico-
militares. E-mail: nolte@iik.duei.de; homepage: http://www.duei.de/iik/show.php/de/content/
mitarbeiter/nolte.html

NOTAS
1
Para comemorar esse aniversário foi publicado um número especial da revista Journal of Common Market Studies, intitulado
“The European Parliament at Fifty“ (vol. 41 (2003), n. 2
2
Assim, por exemplo, nos anos 1970, o Parlamento Europeu apresentou em média menos de mil questões escritas e menos de
500 orais, por ano. Depois da eleição direta, nos anos 1980, foram apresentadas em média 2250 questões escritas e cerca de
1000 orais, anualmente. Além disso, as audiências públicas das comissões parlamentares permanentes aumentaram de duas por
ano, entre 1974 e 1979, a vinte por ano no período 1980-1989 (Corbett 1998: 124-5).
3
Até julho de 2002, foram submetidas ao Parlamento Europeu 602 propostas legislativas, no quadro do procedimento de co-
decisão; destas, 417 concluíram a tramitação legislativa. Em 65 casos, o Conselho não conseguiu por-se de acordo, e cinco
propostas foram finalmente rejeitadas pelo Parlamento. 348 das propostas legislativas resultaram em decisões conjuntas do
Conselho e do Parlamento: em 236 casos sem entrar em processo de conciliação, e em 112 com base em proposta do Comitê de
Conciliação. Além disso, o Parlamento Europeu participou em 2.566 procedimentos de consulta, em 163 casos de consentimento
e 448 procedimentos de cooperação – mecanismo que deixou de existir (Maurer 2003:232-4).
4
Cada ano mais de cinco mil dessas perguntas são apresentadas por escrito pelos deputados ou grupos parlamentares.
5
Com relação à diferença entre “procedural legitimacy“ e “output-oriented legitimacy“ ver Scharpf (1999).

97
ENSAIO * BONIFÁCIO DE ANDRADA

Fragilidade da Democracia
do Parlamento
Contemporâneo
Os avanços tecnológicos e os Uma das áreas em que a sociedade
novos patamares sócio-econômicos que projeta suas maiores preocupações, através
importantes camadas populacionais do dos seus setores mais expressivos, se
primeiro mundo estão atingindo vêm localiza nos mecanismos da democracia,
provocando generalizadas repercussões que precisam alcançar eficiências maiores
na sociedade e, sobretudo, nas instituições para conter demandas sociais, as mais
políticas. diversificadas, que resultam dos novos

* Deputado Federal

98
aparatos tecnológicos de que dispõe o planetárias que se desdobram no cenário
homem moderno. em que vivemos.
Mas, se esses avanços tecnológicos Todavia, a problemática há de ser
estão presentes em vários países enfrentada com uma procura teórica
desenvolvidos, exigindo mudanças e capacitada para viver e sentir os dados
urgentes adaptações, a maior parte do pouco conhecidos que, surgidos em nossos
mundo, vítima das investidas negativas dias e compondo novas circunstâncias,
da globalização, começa a ser cada vez pouco são entendidos e apreendidos
mais inserida em processos políticos pelas principais lideranças responsáveis
governamentais de forte tendência pelas soluções desta ordem social, tão
autocrática ou mesmo ditatorial. efervescente no cenário hodierno.
O quadro do mundo, portanto, oferece Cremos que, inicialmente, há que
alguns ângulos sombrios para a democracia, se compreender os termos abstratos da
pois que a tecnologia da globalização essência da democracia que possui, no
exige dos países desenvolvidos novas âmago da sua mensagem, valores bíblicos
instrumentalizações democráticas para a que se refere o ensinamento notável de
direitos e garantias de bem-estar do Bergson, mas que se completa nos seus
povo, enquanto que, em grandes parcelas condicionamentos práticos com a visão
populacionais do planeta, os mesmos de Lincoln e de Duguit, quando aquele
indicativos globalizantes provocam sérias define a democracia como o governo do
deficiências para as técnicas governativas povo, pelo povo e para o povo, ou como
que se baseiam nas liberdades públicas. governo dos governados, exercido pela
A democracia, portanto, precisa representação dos governantes, segundo
ser reconstruída e, logicamente, a sua aquele outro.
instituição básica, o Parlamento, há de Respeito total ao ser humano e
ser reestruturado dentro dos postulados e exercícios predominantes dos homens como
mecânicas novas que possam colocá-lo governados, delegando a alguns desses a
sob inovadores imperativos de respostas responsabilidade de governo: parece-nos
políticas adequadas ao nosso tempo. que nesse núcleo de entendimento se
A representação popular – que os situa a essência política da democracia.
romanos de certa forma forjaram em seus E, partindo dos termos desta nucleação
primeiros lances e que as instituições da essência democrática é que devemos
inglesas, na metade do milênio, vão repensar a democracia diante da fragilidade
promover com artifícios eficazes de que as forças sociais lhe impuseram no
que se valerá a Revolução Francesa nas tempo atual, repercutindo na sua principal
suas alternativas democráticas, com instituição que é o Parlamento, hoje tão
o constitucionalismo do século XIX – enfraquecido diante de elementos redutores
exige, em nossa época, uma busca de da sua plenitude.
modelos institucionais que correspondam Na realidade, em todo o mundo,
à complexidade, ao pluralismo, à os impulsores da tecnologia alteraram de
heterogeneidade, ao participacionismo maneira espetacular o ambiente psicos-
e às conscientizações ecológicas e social, onde os processos televisivos e a

99
ENSAIO

celeridade das informações computatoriais - para não dizer, colocando em situação


criam, produzem, impõem às inteligências acuada – os governados que constituem,
outras formas de realidades, que, muitas de fato, o povo, nos seus direitos de viver e
vezes virtuais, suplantam a realidade exis- de participar de alguma forma nas magnas
tencial. decisões que dizem respeito à comunida-
de em que se integram.
As TV´s tendem a fomentar a presen-
ça de situações bem distantes das realida- E o crescimento e a presença impo-
des sociais e, geralmente dominadas pelos nente do poder executivo passam a ser
núcleos econômicos, enfraquecem e infe- a solução simplificada que a tecnologia
riorizam a consciência política, de acordo moderna sustenta no seu vocacionamento
com os interesses diretos e indiretos da de celeridade e de busca da lucratividade
lucratividade. econômica.

Os grupos econômicos querem solu- Verifica-se assim, em vários países,


ções rápidas para os seus pleitos e, quando inclusive nas democracias mais clássicas
podem, atropelam ferozmente as instân- como a norte-americana, a inglesa e a
cias político-sociais. francesa, entre outras, a influência cada
vez mais intempestiva e cotidiana dos
O Parlamento, que em outros respectivos governantes executivos, dei-
momentos históricos e em diversas nações xando enfraquecidas, de certa forma, em
constituía o foco principal de poder, o maior ou menor tonalidade, as instituições
centro maior, a simbologia institucional parlamentares que não conseguem mais a
com significação elevada, hoje está aba- audiência prioritária dos seus debates, das
tido e atingido na sua expressão singular suas críticas, das suas formulações, porque
por esses produtos acabados de uma mídia tudo não alcança a área parlamentar com
poderosa, que lança sobre toda a socieda- os elevados patamares da predominância
de verdadeiros “nevoeiros” informativos, dos agentes do poder executivo.
que dominam o ambiente absorvendo É que, de um lado, os grupos eco-
(porque não dizê-lo?) mentes e corações. E nômicos voltados para a lucratividade
este espetáculo de desinstitucionalização influem no cenário informativo, e, de outro
democrática através de implementações lado, o processamento governamental do
provocadoras de alienação, com aneste- executivo impõe, por meio dos segmentos
sias psicossociais que atingem o cérebro, administrativos fiscais, creditícios, judici-
somente poderá ser superado e vencido ários e policiais, toda a processualística
com a criatividade poderosa capaz de das informações e dos fornecimentos de
defender a democracia, e dentro deste dados sobre a realidade, alterando a sua
desiderato, principalmente o Parlamento. retratação segundo os propósitos que tem
Neste quadro de fragilidades institu- em vista.
cionais, há uma tendência natural histórica Espremida nesse ambiente, a fragi-
de ocupação de espaço pelos elementos lidade do Parlamento não possui mais o
representativos dos governantes que as socorro dos Partidos Políticos que, tam-
Constituições modernas intitulam de Poder bém abatidos dentro deste “nevoeiro
executivo, cujos agentes crescem e se midiológico”, dia-a-dia se submetem a
expandem, discriminando e comprimindo uma consistente infiltração de propagan-

100
BONIFÁCIO DE ANDRADA

das bem armadas contra os titulares da As Américas, sobretudo os países


vida pública, os políticos, considerados do Caribe e do Continente Sul, vivem nes-
deturpadores e dificultadores do processo tes últimos anos, agora alimentados pela
de desenvolvimento segundo o tecnocra- tecnologia e pela globalização, situações
cismo dominante e agressivo. expressivamente autoritárias, em que as
Constituições contém técnicas excepcio-
Há também, no meio dessa men- nais de decisões autocráticas que passam
cionada complexibilidade, atores novos a ser utilizadas no dia-a-dia, como ocor-
que passam a assumir lugares de desta- re no Brasil com as chamadas “Medidas
que nesse ambiente dos nossos dias, que Provisórias”. Há de se incluir, neste mesmo
são as entidades transnacionais, super- quadro, a projeção de chefes de Estado
nacionais, formalizadas ou não, ou que que, pela sua vocação autoritária, passam
pressionam sob construção globalizante a dominar o mundo político em detrimen-
as diversas nações, geralmente ferindo to das representações democráticas, como
elites ou classes políticas, quando aquelas de certa maneira ocorre com o atual presi-
impõem roteiros perturbadores da estabili- dente norte-americano.
dade social de qualquer país. Concomitantemente com esses diver-
Também nessas situações, estranha- sificados condicionamentos, há ainda, em
mente, o Parlamento e os Partidos Políticos muitos países, outras formas de predomi-
constituem objeto de maior crítica e rejei- nância dos governantes em detrimento dos
ção por parte dos titulares tecnocráticos do governados, devido ao excesso de centra-
governo. lização político-administrativa em favor
das prerrogativas do poder executivo, com
Outro elemento a se considerar nesse reflexos nos mecanismos da Democracia,
cenário planetário de problemas, em rela- que necessitam fortalecer os governados
ção ao Parlamento e aos partidos políticos, quando estes, esquecidos e ignorados,
encontrar-se-á na sistemática de governo ficam longe dos centros de decisões insti-
adotada pela nação. Indiscutivelmente, o tucionais.
regime parlamentarista de Governo é um
Quando temos diante de todos nós
auxiliar influente para a vivência demo-
essas questões acima, verifica-se, logica-
crática, enquanto que o presidencialismo
mente, que o fortalecimento da democra-
contém dentro de si, a todo instante, uma cia, do Parlamento e mesmo dos partidos
vocação autocrática, sempre voltada para políticos que sustentam tal sistema encon-
as exceções institucionais em que se ferem trará o seu encaminhamento eficiente se
as liberdades públicas. partirmos de um novo raciocínio, de um
Nos países mais civilizados, de um repensar descritivo referencial da demo-
modo geral, prevalece o parlamentarismo, cracia, focalizando, primeiramente, os
mas nas Américas e nas áreas mais atrasa- seus dados básicos acima indicados.
das do mundo, logicamente, há prioridades Democracia são os valores evangé-
para o presidencialismo, que comumente licos na filosofia bergsoniana, que identi-
é deturpado por governantes de exercício fica tal regime político com os ensinamen-
ditatorial. tos do cristianismo. Democracia é governo

101
ENSAIO

que se envolve e se submete às dinâmicas evangélico, o qual constitui um permanen-


do povo na pregação lincolniana; e demo- te modo de pensar, conjunto de elencos do
cracia também há de ser um esquema subconsciente humano, um dado natural e
prático em que se deve institucionalizar a perene para o comportamento em todos os
predominância dos governados, o povo, momentos históricos.
em relação aos governantes no modelo Mas, além deste posicionamento de
político visualizado por Duguit. reação contra os males sociais e políticos,
De início, portanto, a reedificação da a sociedade, no Parlamento, encontra um
Democracia, segundo o postulado evan- campo de debates e de discussões das
gélico, resultará no combate ao crime e questões concretas que lhe dizem respeito,
às infrações pecaminosas que, em nossos diante das escolhas políticas e administra-
dias, são momentos cruéis como o terro- tivas, em face das encruzilhadas com que
rismo, a corrupção, o tráfico de drogas, a comunidade se depara, para a solução
além das violências e da miséria no seio da problemática sócio-governativa que lhe
de parcelas territoriais do planeta. Mas afeta.
há que se edificar instrumentos para que Ao lado disso, o Parlamento, psicos-
se possa ouvir melhor e dialogar com socialmente falando, é a transmissão, a pre-
mais desenvoltura com o povo, fora do sença, o comparecimento dos reclames e
imaginário doutrinário atualmente exis- reivindicações populares, enfim, a voz
tente. Nas comunidades maiores, cidades, do povo por delegação deste, o que, em
bairros e vizinhanças impõe-se a criação nossos dias, não ocorre como no passado,
de inovadoras técnicas de fortalecimento o que evidencia os seus aspectos deficitá-
dos governados, sobretudo por intermédio rios que o impregnam de fragilidade, pois
dos partidos políticos e, em especial, do não mais corresponde ao engajamento, às
Parlamento, com processos psicossociais e exigências, tendências, apelos, inquieta-
tecnológicos capazes de anular a neblina ções, reclames, preocupações maiores e
ou nevoeiro midiológico, impedindo-se a menores, ditames de toda espécie que a
alienação e a anestesia política generali- população, como povo, vive e incorpora
zada em favor de grupos de poder e de no seu dia-a-dia, no seu cotidiano.
atores novos da globalização.
É nesse ângulo lincolniano de ins-
Não se pode, pois, isolar do conceito trumentação do regime através da técnica
de democracia o Parlamento, que conti- institucional parlamentar, que os nossos
nua sendo o núcleo e o coração da vida dias revelam falhas de inépcia na enti-
democrática para corresponder às exigên- dade legislativa, com reflexos negativos
cias do regime de liberdade. para o modelo de liberdade política. E, na
A sociedade precisa valorizar, para medida em que esta dinâmica lincolniana
viver sob o regime dos povos livres, o se enfraquece na sociedade, há reflexos
plenário parlamentar, em que as grandes perigosos na ordem social, pois que a
questões são conhecidas e esclarecidas, visão de Duguit começa a perder o seu
tendo em vista o apoio às prerrogati- sentido, afastando-se os governados, isto é,
vas populares e impugnação às infrações o povo, dos centros de decisão, emergindo
tormentosas de desrespeito ao decálogo cada vez mais fortes as ações autoritárias

102
BONIFÁCIO DE ANDRADA

dos governantes no que desregulamenta o o fim de anular os delegados do povo,


ambiente da democracia, enfraquecendo procurando imobilizá-los e desmoralizá-
o seu conteúdo e permitindo a expansão los.
dos agentes governantes sob clara vocação Outro problema básico é o da for-
autocrática. mulação de técnicas eleitorais capazes de
Não se pode raciocinar, portanto, purificar a representação parlamentar, não
sobre a problemática do Parlamento e de só nos aspectos éticos de seus integrantes,
sua fragilidade sem valer-se das conceitu- contudo, ainda, nos ângulos de eficiência
ações de Bergson, Lincoln e Duguit, três e conhecimentos da coisa pública que pre-
pensadores que alimentam elevados pata- judicam a eficiente ação política e admi-
mares do saber na filosofia, na prática polí- nistrativa.
tica e no direito público clássico e, ainda, Mas não basta, porém, a existência
sem se utilizar de uma visão de inspirações de uma arena plenarial com bons gladia-
fenomenológicas, partindo da realidade dores para combater as feras da corrupção,
viva da democracia atual nas diversas da prevaricação, da ineficiência e da inca-
comunidades nacionais do nosso tempo, pacidade. Impõe-se, ainda, que a arena
e abstraindo os principais dados da sua parlamentar tenha ressonância no seio do
essência para repensá-la e, sob retificações povo para que esse possa ocupar as gale-
concretas, reconstrui-la com apropriadas rias maiores e expansivas, e venha a se
condições existenciais para o século XXI. integrar, vendo e acompanhando, aplau-
De fato, os três pensadores nos reve- dindo ou não, porém com pleno conhe-
lam, como acima nos referimos, três ângu- cimento das atitudes e do comportamento
los essenciais da composição democrática, dos representantes do povo, em face das
da sua substância, para construir, partindo maiores questões nacionais e das menores,
de suas referências básicas, as instituições de interesse comunitário.
necessárias e correspondentes às nossas E esta é outra problemática, pois a
aspirações, todavia, reaparelhadas, reati- tecnologia dos veículos de comunicação e
vadas e repreparadas para confrontarem-se das informações conduz os acontecimen-
com as incertezas, incoerências, disparida- tos em desfavor, comumente, do verdadei-
des e marcas enigmáticas que dominam o ro noticiário democrático.
nosso presente e mais ainda o futuro.
Se as tecnologias das informações se
O Parlamento, para acudir a demo- submeterem aos interesses da tecnocracia
cracia em nossa época, precisa edificar-se pública ou empresarial, de vocação auto-
sob rigorosas formas que venham a supe- crática, através dos nevoeiros midiológicos
rar suas acrescidas fragilidades, para ser o impedirá o povo de acompanhar, de obser-
plenário dos debates informativos da vida var e analisar as atitudes parlamentares e
governamental, apontando erros, deficiên- os debates decorrentes do convívio destes
cias, corrupções, irregularidades, defeitos, na representação popular. Também aí a
vícios e deturpações, sobre uma arena fragilidade do Parlamento pode resultar na
em que os gladiadores da representação sua anulação sob reflexos antidemocráti-
popular possam lutar contra tais demônios cos perigosos, em que o predomínio da
sociais que invadem o seu solo, com tecnocracia pública e empresarial, de nível

103
ENSAIO

nacional ou internacional, deturpará os ali- tivo maior para o povo, o que os partidos
cerces do regime de liberdade, reduzindo realmente com bases populares e núcleos
a capacidade do Parlamento em favor de políticos locais poderão alcançar através
interesses pouco confessáveis. de lideranças básicas e de engajamento
Não haverá, assim, a dinâmica lin- com o povo.
colniana, criadora da substância concreta Mas, ao lado destes influentes con-
da democracia, em detrimento da influ- dicionamentos, novos modelos ao lado do
ência da população no encaminhamento Parlamento precisam ser instituídos para
das coisas públicas. Por outro lado, a que a presença do povo se transforme em
democracia é governo dos governados, fator real de manutenção democrática, em
onde há predominância do povo. Ora, se que o cidadão possa fazer valer os seus
o povo não tem condições de se articular direitos diante de uma burocracia insu-
com o Parlamento em virtude das distor- portável, que arma fiscais do fisco com
ções das tecnologias de informação, se ele apetrechos violentos e agressivos contra
não pode estar presente, através de seus os pequenos comerciantes e correlatos
delegados, na participação decisória das segmentos sociais, enfraquecendo, ainda,
grandes tomadas de posição do gover- a cidadania, diante dos outros tipos de
no, dificilmente haverá a predominância agentes públicos sanguinolentos da área
democrática da sua presença e do seu da previdência, do policiamento geral e
comparecimento para influir e pesar na especializado, da área de vários serviços
escolha de diretrizes do governo, caindo, públicos, que se alinham no desfavor e
assim, a titularidade dos governados a um no desrespeito revoltante aos direitos dos
plano de insignificância política. integrantes da população, muitos de con-
Tudo isso nos obriga a repensar ins- dições humildes, e poucos alfabetizados,
titucionalmente a democracia através do de variadas regiões.
Parlamento, para que se possa, com urgên- Estas medidas institucionais, todavia,
cia, superar estas complexidades que difi- só podem ser concretizadas se lideranças
cultam a instituição e o regime. capazes, partidos reestruturados, sem as
Verifica-se, para tanto, que a sistemá- esdrúxulas limitações de leis conflitantes
tica de escolha dos representantes do povo da Carta Magna, possam de fato atuar com
e a formação dos partidos devem obedecer eficiência.
regras atualizadas, que venham a fortalecer Se mergulharmos na realidade con-
estes e permitir a melhor escolha daque- creta de diversos países, sobretudo na
les, em favor de delegados populares, de América Latina, no mundo africano e
comportamento ético, vinculação com a asiático, localizaremos estas deturpações
comunidade e preparação intelectual que que fortalecem os governantes, no caso
satisfaça o enfrentamento dos obstáculos ibero-americano com largas tendências
comunitários e nacionais de nossa época. à ressurreição da caudilhagem. Nestas
Há que se anularem as possibilida- nações, as fragilidades acima se desdo-
des de nevoeiro midiológico, que resulta bram em lamentáveis peculiaridades, em
em pleitos presidenciais do tipo Collor, que a vocação autoritária do passado se
permitindo-se um entendimento informa- alimenta diante da fraqueza de parlamen-

104
BONIFÁCIO DE ANDRADA

tos pouco integrados ou engajados nas por terem ligações com as autoridades
reivindicações populares. estaduais, a se filiarem às bases políticas
parlamentares do Governo Federal, aumen-
No caso do Brasil, a fragilidade do
tando, assim, a fragilidade do Parlamento
Parlamento decorre de vários fatores, quais
Brasileiro, limitando as suas manifestações
sejam aqueles de ordem constitucional, o
legislativas.
do enfraquecimento dos partidos no atual
sistema eleitoral, as práticas administrati- E essa fragilidade do Parlamento em
vas negadoras das próprias leis vigentes, a nosso país é acrescida de uma forma
perigosa situação social da população dis- estranha e exagerada, quando analisa-
criminada, além do atual nevoeiro midio- mos, amparados em Loewenstein, os Três
lógico, que tende, em termos genéricos, Poderes da República, o funcionamento
a fortalecer o Poder Executivo, apesar de cada um deles e as suas relações insti-
do problemático quadro político-governa- tucionais. O Poder Legislativo do Brasil de
mental em que nos encontramos. hoje é o mais fraco de toda nossa história
constitucional, deixando de lado a sua ine-
A Constituição de nosso país foi
xistência durante a ditadura Vargas, quan-
discutida e votada numa época desajusta-
do estava fechado, e as limitações drásticas
da, pois que a representação constituinte, que lhe impuseram os Atos Institucionais
ao contrário de se voltar para o futuro nos governos militares, embora permitindo
e preparar o País para as conquistas do o seu distorcido funcionamento.
amanhã, voltou-se em termos obsessivos
para as práticas dos governos militares que Mas, se analisarmos a Constituição
se impuseram à nação, a partir de 1964, de 1988, atualmente em vigor, e a Carta
procurando promover medidas que impe- de 1967, temos hoje um Parlamento mais
dissem a repetição daquelas, mas, curiosa- frágil diante de um Poder Executivo que
mente, por razões pouco decifráveis, man- agora é mais autocrático que o daque-
tendo e alargando técnicas constitucionais la época. O chamado “Decreto-Lei” de
e legais perigosas e impróprias para um 1967 é menos autoritário que as “Medidas
país na busca da democracia. Provisórias” de 1988, e as atribuições
legislativas do Executivo, na atualidade,
A forma de Estado adotada inspirou- são superiores em índices autocráticos
se muito mais nas engrenagens de gover- aos daquela Carta Magna, fruto do hiato
nos militares do que nas melhores tradi- constitucional do período militar. Os
ções do Federalismo brasileiro, mantendo próprios partidos políticos, embora sob as
os excessos do poder central com todas malhas estranhas de uma legislação que os
as atribuições que foram dadas à União, e tornava matéria de Direito Público, viviam
enfraquecendo as unidades federadas em debates e confrontos de melhor validade
termos discriminatórios. democrática do que em nossos dias.
No imenso país como o Brasil, não A estrutura econômica-financeira
há Federação, mas um poder central que, instituída em 1988 nos trouxe falhas de tal
pela sua fortaleza, domina politicamente gravidade que já foi modificada com mais
os governadores e as unidades federadas, de trinta Emendas Constitucionais, e o sis-
obrigando indiretamente todos os Partidos, tema constitucional tende a enfraquecer,

105
ENSAIO

neste particular, nossa democracia, porque das cláusulas pétreas, permitindo assim
dá ao Poder Executivo excepcionais com- este novo tipo de declaração de “super
petências no campo econômico-financei- inconstitucionalidade”. Não fosse o equi-
ro para anular o Orçamento por meios líbrio e a prudência dos ministros do
indiretos e oblíquos. Também as abusivas STF, graves conflitos ocorreriam entre os
atribuições que confere aos agentes fis- Poderes, o que no futuro poderá, infeliz-
cais e previdenciários, para extorquir da mente, se concretizar.
população tributos e contribuições, permi- Perigoso mal que fere as fontes da
tem, ilegalmente, o predomínio de normas legislação, enfraquecedor do Parlamento,
regulamentares em detrimento da lei e da constitui, diante de nós, o processo de pro-
Constituição. dução de normas regulamentares, detrator
Há de se acrescentar, além de tudo do Poder Legislativo ao se desrespeitar
isso, que a fragilidade do Parlamento no generalizadamente as leis, substituindo-as
Brasil também é alimentada pelo poderio por regras infralegais ou subleis advin-
do Executivo na área das informações e das da tecnocracia atuante e eficiente do
da notícia política, impondo às empresas Poder Executivo.
detentoras dos veículos de comunicação Na prática, a lei votada pelo Congresso
as principais diretrizes do noticiário polí- perde sua vigência, substituída pela norma
tico, capazes de construir os perigosos administrativa do Poder Executivo, nas
nevoeiros midiológicos alienadores da práticas do dia-a-dia da Administração.
população.
O fenômeno da subnormatividade
A Constituição de 1988 contém uma legal entre nós vem, desde os governos
técnica sem precedentes e desconhecida militares, assumindo uma situação que
do mundo ocidental no relacionamento do implementa, em termos permanentes, a
poder legislativo com o poder judiciário, deformidade da ordem jurídica, enfraque-
fragilizando também o Parlamento. No seu cendo a força da lei e a eficiência jurídi-
texto foi criada uma expressa tutela judi- ca da legislação votada pelo Congresso
ciária sobre o Legislativo, enfraquecendo- Nacional.
o por um complexo controle da consti- É uma curiosa mas triste ocorrência,
tucionalidade das leis, que se concretiza nestes últimos 30 anos, que a Constituição
de forma dupla, utilizando-se ao mesmo de 88 não soube corrigir e os governos sob
tempo a técnica da Corte norte-americana a vigência da Carta Magna atual não tive-
e, ainda, a dos Tribunais Europeus, o que ram a capacidade de retificar. Os governos
deteriora a capacidade de produzir a lei e, militares, antes da Constituição de 1967,
especialmente, a sua vigência. Não con- criaram novos tipos de normas legais,
tente com tais acúmulos de meios revoga- como os Atos Institucionais, em nível de lei
dores de lei por inconstitucionalidade, a constitucional, os Atos Complementares,
Carta Magna institui uma tutela judiciária em nível de leis complementares e os
maior, dando praticamente ao Supremo Decretos-Lei, em nível de lei ordinária,
Tribunal Federal a competência de decla- mas prestigiaram muito os Decretos, que
rar nulas as Emendas Constitucionais, pois são elementos normativos de nível regula-
o constituinte de 1988 alargou os itens mentar, e iniciaram, juntamente com este

106
BONIFÁCIO DE ANDRADA

algumas técnicas infra-regulamentares com conflitam com as leis ou substituem estas


certa força jurídica, como as Resoluções, de forma abusiva, e, em certos casos, até
as Portarias, as Instruções e outros meca- suprimem ou complementam as cláusulas
nismos reguladores que, estranhamente, constitucionais.
ganharam maior projeção após 1988. O fenômeno antijurídico é estranho,
De fato, esta área nos governos mili- mas há exemplo de contorno patológico
tares pouco a pouco deu força aos buro- de teor atraente para o cientista político.
cratas que, de assessores, se transformaram Vejamos: o fiscal ou o agente público
em técnicos burocratas e, especialmente chega diante de um contribuinte ou cida-
no setor econômico-financeiro, assumiram dão qualquer e lhe apresenta uma portaria
as principais manifestações administrati- ou resolução que contraria frontalmente
vas do governo. Cresceu, assim, no País o a lei e a Constituição, exigindo-lhe algo
seguimento tecnocrático que, no silêncio, e ameaçando-o com multas ou penalida-
se transformou na principal força políti- des perigosas e até mesmo com a prisão.
ca de influências político-administrativas O cidadão se revolta contra a portaria
dentro do poder público, com uma lin- ministerial ou departamental, cheia de
guagem ultra-racionalista que coincidia irregularidades e, de imediato, o agente do
com o falar e o modo de entender dos poder público o pune com multas e outras
militares. Esse seguimento tecnocrático, arbitrariedades.
indiscutivelmente detentor de significati- O cidadão recorre dentro dos trâ-
vas informações de interesse público, vai mites administrativos, mas as autoridades
predominar, embora com menos ênfase, superiores não recebem o recurso e até
no hiato constitucional de 67. “debocham” do “pobre coitado”. O cida-
Todavia reaparece, poderosíssimo, dão contribuinte indignado dá entrada no
após o golpe de Estado de 1969, com a Judiciário com uma providência enqua-
chamada Emenda Constitucional nº 1, drada plenamente na lei para se defender,
daquele ano, mas, o que é estranho, deve- com boas bases jurídicas e bom advogado,
rá se fortalecer mais ainda após o even- mas o Judiciário vai demorar de 5 a 10
to constitucional de 1988, e, graças ao anos para atendê-lo. E assim, na prática,
texto analítico e expansivo da Constituição a subnorma ilegal e arbitrária do fiscal
deste ano, consegue se manter assim den- da previdência ou tributário, ou de outro
tro do governo central até os dias presen- setor do governo, prevalece e predomina,
tes. Influem nas decisões maiores do País anulando o texto constitucional ou o texto
e encaminham soluções sob esta visão da lei e criando, desta forma, uma volu-
ultra-racionalista, alienada da sociedade, mosa e expressiva atividade em detrimento
dispondo também de Medidas Provisórias, das leis, isto é, em detrimento da produ-
frutos de seus escritos em diversas áreas, ção legislativa do Congresso Nacional,
especialmente no campo tributário, fis- provocando uma sinistra fragilidade na
cal, previdenciário, e de certa maneira, ordem jurídica, de efeitos graves contra o
no educacional e da saúde, conseguin- Parlamento.
do implantar “subnormas legais” sob as Há em nosso país, ao lado desses
denominações conhecidas de portarias, ângulos de deficiência, um sistema elei-
resoluções, etc., que na maioria das vezes toral que através do chamado voto uni-

107
ENSAIO

nominal deturpa e dificulta o processo Nesta crise de patologia político-


de escolha dos representantes do povo, partidária, o voto uninominal dentro do
permitindo o predomínio dos meios cor- sistema proporcional se transforma num
ruptivos e da força financeira nas eleições fenômeno de forte realidade sócio-polí-
de toda espécie ocorridas entre nós. tica, porém, ao mesmo tempo, assume
aspectos de grave deturpação antidemo-
Pelo voto uninominal o eleitor, na
crática. De fato, no passado, este sistema
prática, vota diretamente no candidato
era válido e teve seu sentido, mas agora
a deputado federal ou estadual, ficando
se transformou numa amarga experiência
esquecida e ignorada de todos a impor-
para a democracia.
tância do partido no processo eleitoral,
porque ele se torna, fatidicamente, um Entre os aspectos deprimentes da sua
inexpressivo artifício da lei. presença como instituto eleitoral, basta a
descrição dos custos da campanha eleito-
Quando os partidos eram fortes, ral e dos votos necessários para se eleger
antes de 1964, com a UDN, PSD, PTB, um candidato, dados estes que são eviden-
etc., o eleitor identificava o candidato com tes ao observador.
a agremiação partidária, e o pessedista, o
udenista e outros comportavam-se partin- Atualmente, em Minas Gerais, um
do da fidelidade à sua agremiação, para candidato, para ter a sua eleição garanti-
depois escolherem o candidato. Depois da, de um modo geral, necessita de 100
de 64, os partidos deixaram de ser um mil votos, o mesmo acontecendo no Rio
Grande do Sul, mas em São Paulo ele
fenômeno político para se transformarem
necessita de mais ou menos 200 mil votos.
numa instituição jurídica, e isto em tais
Ora, um candidato, para se eleger em plei-
termos que o Judiciário intervinha e parti-
tos deste tipo, há de organizar, seis meses
cipava do funcionamento partidário, sub-
antes do pleito, uma verdadeira empre-
metido a uma técnica de estratégia política
sa eleitoral para cuidar das providências
dos militares que procuravam disciplinar
jurídico-eleitorais, promover dezenas de
as tendências – subterrâneas, mas, ainda
comícios com shows e outros espetáculos,
vivas – das antigas agremiações (UDN,
implantar outdoors em diversos locais, edi-
PSD, etc.) que pretendiam anular, inclu-
tar milhões de cartazes pequenos e gran-
sive, com providências paulatinas como des. Deverá, ainda, reunir equipes admi-
a criação das chamadas sublegendas que nistrativas dos respectivos trabalhos, para
funcionavam dentro da ARENA e MDB, deslocá-las com veículos e outros meios
instituídas pelos governos militares. visitando, no mínimo, 50, 70 localidades.
Com o natural enfraquecimento Pessoalmente o candidato deverá
desses partidos políticos artificiais, ger- alcançar rápida mobilidade de sua presen-
minou por todo o País o descrédito que ça em muitas áreas de ação para, em deze-
hoje persiste em relação às agremiações nas de cidades e centenas de lugares, fazer
partidárias, substituídas silenciosamente, reuniões, realizar pesquisas que possam
em muitas áreas, por “forças políticas” orientá-lo no comportamento de busca de
informais como o seguimento tecnocrático votos, cuidar, inclusive, de sua segurança
e outras manifestações como os agrupa- e da mesma em relação a comícios e
mentos religiosos, etc. reuniões, além de organizar uma eficiente

108
BONIFÁCIO DE ANDRADA

equipe de gerenciamento de tudo isso. Esse Em face destas questões, urge que a
espetáculo, que é logicamente de elevadís- criatividade do pensamento político e a
simo custo financeiro, dificilmente será capacidade de novas lideranças saibam,
acessível a um político de classe média, em nosso país, promover o revigoramento
pois é inviável para as melhores vocações de nossa democracia e, em decorrência
que não tenham atrás de si adequados disto, do Parlamento, formulando modelos
recursos financeiros próprios ou de grupos capazes de exigentes adaptações nas quais
econômicos que, por razões específicas, devam predominar os governados através
desejam eleger um candidato. de seus representantes, anulando as mani-
É verdade que há exceções, mas festações autoritárias da tecnocracia, supe-
dentro do processo do voto uninominal rando o “nevoeiro midiológico” que aliena
elas tendem a desaparecer para cair numa o povo, criando formas de maior interco-
regra geral em que as Assembléias e a municação e integração com a população,
Câmara Federal tornar-se-ão um plenário mas, principalmente, afastando e punindo
inacessível e inviável para aquela grande a corrupção, as colocações terroristas, a
maioria de profissionais da classe média, chamada advocacia administrativa e impe-
isto é, aquele tipo de homem público com dindo a influência de seguimentos empre-
bom índice de capacidade e inteligência sariais inescrupulosos que preponderam
pessoal que povoou o Congresso Nacional na feitura do Orçamento e na sua própria
até a década de 80, e com o brilho dos execução em face das necessidades do
melhores debates parlamentares de nossa País.
vida republicana. Se tais questões são formuladas e
Esse problema é da maior seriedade objetos de reflexão diante do quadro bra-
e a proposta da chamada “Lista Fechada”, sileiro, o que ocorre em outros países,
ainda sob o sistema proporcional em que mesmo no mundo ocidental, pelos temas
o eleitor votará no Partido e este, interna- e pelas dificuldades sócio-políticas que
mente, escolherá a lista de seus candidatos atravessam, tudo nos revela perigosamente
preferidos, politicamente falando consti- que estamos diante de um novo século,
tui a solução encontrada e praticada no investido de graves complexidades, de
mundo europeu, como também em países incertezas, de incoerências, de enigmas,
das Américas, com êxito democrático bem de frustrações que infelizmente a Ciência
salutar. e a Tecnologia, ao contrário de nos socor-
Verifica-se, assim, que hoje no Brasil rer, abrem novas arestas e, até porque não
também o sistema eleitoral é um dos fato- dizê-lo, novos universos de preocupantes
res de fragilidade do Parlamento que, dia- indefinições.
a-dia, tende a ser ocupado por milionários, É, sob certa forma, curioso o que
por representantes de grupos econômicos, ocorreu com as gerações pretéritas de
por representantes de seguimentos sociais nossos avós do princípio do século XX em
financeiramente influentes e por compare- relação ao convívio daqueles que habitam
cimento episódico de alguns, comumente o presente. Havia muito mais, naqueles
frutos do estrelismo da mídia ou das pre- atores antigos, uma certeza, uma confian-
gações religiosas, havendo, logicamente, ça, uma visão esperançosa com o porvir e
algumas exceções que não irão perdurar. com o futuro em todos os aspectos da vida,

109
ENSAIO

do que hoje quando faltam esperanças à muito, da fé em Deus e da presença dos


atual geração, que é a nossa, tão cheia ensinamentos evangélicos que aprimoram
de temores com o presente e mais ainda o espírito humano.
com o futuro. Aliás, a tecnologia, além de A democracia precisa preexistir, con-
tudo, aumenta enfaticamente a separação tinuar ao lado da sua âncora principal que
do mundo dos muito ricos, aliás, pouco é o Parlamento, como obra fundamental
povoado, e o mundo dos mais pobres, sob para o convívio humano. Todavia, há de
excesso de população, que por razões múl- revestir-se de vestuário eficaz e moderni-
tiplas, inclusive psicopatológicas, tende a zante, utilizando as novas ferramentas da
erigir e revigorar as lideranças agressivas, tecnologia de modo que possa recons-
reivindicantes e quase sempre contestató- truir-se sob as indicações da sua essência
rias. decorrentes dos valores bíblicos, do envol-
A democracia e o Parlamento por- vimento participativo do povo e da pre-
tanto, aquela como regime político e sob dominância da vontade dos governados
certo aspecto “forma de vida”, e esse outro através dos seus representantes.
como sua principal alavanca, confrontam- Esta é a mensagem que nos deixam
se com esse cenário de sombras tecno- os pensadores maiores e a vivência políti-
lógicas do futuro, com tantas suposições ca da experiência humana.
de riquezas mecânicas e virtuais, mas sob
tantas formulações imaginárias negativas
ou nuvens cinzentas de perigos.
O homem e
o líder moderno,
o governante e o
estadista coetâneo
necessitam alcan-
çar informações
cada vez mais claras
dentro desta com-
plexidade e possuir
uma inteligência
ativa, mas treina-
da para enfrentar
esta problemática
complexa que dia-
a-dia cresce dian-
te de todos, avolu-
ma-se com riscos
e obstáculos que
não bastam apenas
a intelectualidade
humana resolver,
porque necessita, e

110
BONIFÁCIO DE ANDRADA

BIBLIOGRAFIA

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111
ENSAIO * GUSTAVO FRUET

Processo de Integração dos


Legislativos no Mercosul
Em 25 de setembro de 2003, na na consecução do projeto sul-americano
cidade de Montevidéu, aconteceu o de integração, particularmente neste
Encontro de Presidentes de Câmaras dos momento histórico em que os legislativos
Poderes Legislativos dos Estados Partes têm a responsabilidade de interagir e
do Mercosul. A organização do evento debater com seus co-irmãos os rumos das
esteve a cargo da Presidência Pro Tempore negociações da Área de Livre Comércio
do Uruguai, da Comissão Parlamentar das Américas (ALCA).
Conjunta e com apoio técnico de sua Do ponto de vista político, a interação
Secretaria Permanente e da Secretaria do dos Legislativos está em harmonia com
Mercosul. A coordenação científica foi as ações do Executivo, especialmente o
de responsabilidade do CEDI – Centro de brasileiro, que tem tido na pessoa do
Estudos de Direito Internacional. Tratou-se Presidente Lula um incansável protagonista
de iniciativa importante e indispensável do processo de integração, em face do

* Deputado Federal

112
desafio-benefício que o processo representa o faz na premissa de que haja dos seus
do ponto de vista histórico, econômico e parceiros condição de reciprocidade (inciso
social, sem ignorar o trabalho diplomático 24 do artigo 75 da referida Constituição).
realizado no governo anterior e os ganhos É importante avançar no tema da
auferidos com a reconhecida inserção criação do Parlamento para o Mercosul.
do país como importante ator no cenário Todavia, antes que venhamos a assumir
internacional. compromissos internacionais cujo mérito
Se de um lado registra-se o é importante, não podemos nos deixar
entusiasmo pela realização do evento, levar pelo entusiasmo ingênuo da palavra.
preocupa que as discussões de um futuro Eventual proposta nesse sentido deve-se
Parlamento do Mercosul não estejam sendo fazer acompanhar de providências internas,
acompanhadas de necessárias reflexões no legais e constitucionais, sem as quais não
que concerne às adaptações (modificações) se poderá atender adequadamente ao
constitucionais indispensáveis, que nos que preceitua o Tratado de Assunção e a
permitam ingressar no processo de igual vocação integracionista de que cuida o
para igual, em especial, à necessidade de parágrafo único do artigo 4º da Constituição
haver, expressa na Constituição, autorização brasileira.
para que o Brasil possa submeter-se a Na oportunidade, saliente-se que
um regime de supranacionalidade. Em a experiência européia não prescindiu
outras palavras, é premente a existência de exigir dos países-membros que se
de norma constitucional autorizativa que preparassem constitucionalmente para a
preveja a possibilidade de o país aderir a almejada integração. É verdade que existem
tratados que venham a criar instâncias (ou diferenças marcantes entre o Mercosul e a
instituições) supranacionais. União Européia. A começar, por exemplo,
O Paraguai, em 1992, e a Argentina, com o registro de que lá o mercado comum
em 1994, cuidaram de imprimir as reformas nasceu com o Tratado de Roma, de 1957,
necessárias ao objetivo integracionista, o enquanto aqui o mercado comum é um
que ainda não ocorreu entre nós e nem objetivo a ser alcançado, após vencermos
no Uruguai. A reconhecida assimetria a consolidação da união aduaneira.
constitucional existente entre os Estados Na União Européia convencionou-
Partes não é apenas uma questão se a criação imediata de instituições
acadêmica. É, induvidosamente, muito supranacionais, ao passo que no
mais do que isso, na medida em que o Mercosul seguimos o modelo clássico de
Tratado de Assunção estabelece, em seu instituições intergovernamentais, com
artigo 2º, que o Mercado Comum estará decisões tomadas por consenso e por
fundado na reciprocidade de direitos e unanimidade.
obrigações.
O sistema de solução de controvérsias
Além disso, quando a Constituição na União Européia é permanente, com
da República Argentina trata do tema delegação de competência ao Tribunal
supranacionalidade – vale dizer, quando de Justiça para deliberar soberanamente
autoriza que o Estado argentino subscreva sobre o direito comunitário, originário ou
tratados que deleguem competência e derivado (regulamentos e diretivas). No
jurisdição a organizações supra-estatais, Mercosul não se tem, ainda, um sistema

113
ENSAIO

permanente, valendo-se da arbitragem ad recém completou sua primeira década,


hoc, nos termos do Protocolo de Brasília, e, ainda, de que historicamente nosso
re-ratificado pelo de Olivos, que criou projeto de integração pautou-se pela
uma instância permanente de revisão, cuja intergovernabilidade, pergunta-se a que se
configuração é objeto de muitas críticas. propõe o Parlamento do Mercosul? Quais
As normas comunitárias, vale serão suas atribuições? Sua composição
dizer, as normas geradas no âmbito do e divisão de cadeiras observará quais
Conselho e da Comissão Européia, têm critérios: território e população?
aplicabilidade direta e imediata nos No sistema constitucional atual,
Estados Partes, enquanto que no Mercosul sobretudo no Brasil e no Uruguai, é possível
as normas editadas pelas suas instituições imaginar que uma norma aprovada pelo
demandam processo de incorporação aos eventual e futuro Parlamento do Mercosul
ordenamentos jurídicos nacionais, com produza efeitos imediatos e diretos nos
o inconveniente de que, tanto no Brasil Estados Partes?
quanto no Uruguai, não se têm norma que
Diante da nossa Constituição Federal
discipline o conflito entre tratado e norma
(artigo 17) e da legislação eleitoral, pode-
interna, o que não se compadece com a
se imaginar a existência de partidos
desejada segurança jurídica.
supranacionais? Ou ainda, é possível
Diante desse quadro, vê-se com certa imaginar a formação de grupos políticos
perplexidade essa onda que antecede a – à semelhança do que ocorre na União
discussão de um futuro Parlamento para o Européia – diante da proibição legal de
Mercosul. Como congressista, convencido que os partidos recebam doação em
de que os parlamentos constituem o seio dinheiro, ou estimável, de entidades ou
próprio de discussões da cidadania, sendo governo estrangeiro? E como fica, por
o regime de representatividade um dos exemplo, a questão do fundo partidário
pilares da democracia, os debates para brasileiro, o acesso dos partidos ao rádio
criação de um Parlamento para o Mercosul e à televisão e o sistema de financiamento
ainda são prematuros, na medida em de campanhas?
que se tem de fazer, primeiramente,
o dever de casa e dotar a Constituição Registre-se que se deve acreditar
e o ordenamento jurídico brasileiro de nos bons propósitos do projeto, com a
normas que dêem substância e amparo às realização de diversos seminários e ciclos
negociações internacionais. de conferências sobre temas instigantes,
como a imunidade de jurisdição.
Destaque-se o exemplo europeu,
mais uma vez, para assinalar que, passados Espera-se, entretanto, que as
quase 50 anos do Tratado de Roma, com autoridades envolvidas neste processo
todos os avanços que se seguiram até estejam cientes dos obstáculos de natureza
a união monetária européia, ainda hoje constitucional e legal que envolvem a
o Parlamento Europeu é uma figura criação de um parlamento para o Mercosul,
secundária e coadjuvante no processo a fim de que não se crie mais uma bolha
de integração, à míngua de poderes de expectativa que frustre o esforço que
efetivos para revelar os verdadeiros vem sendo feito em prol da integração do
interesses dos cidadãos lá representados. continente sul-americano.
Na consideração de que o Mercosul

114
MAURO SANTAYANA* ENSAIO

Política, Parlamento,
Democracia
Um dos mais antigos discursos Cícero, o grande político, jurista e
políticos é a Oração pelos Primeiros Caídos orador de Roma Antiga, em seu livro sobre
na Guerra do Peloponeso, pronunciado em a República, diz que o povo é constituído
431 AC, por Péricles, o grande estadista de pelos que se interessam pela coisa pública.
Atenas. Em sua visão, os desinteressados não faziam
Nesse discurso, que serve de modelo parte do povo, e constituíam apenas a
para todos os pronunciamentos políticos plebe.
posteriores, Péricles diz que a pólis, ou, Cícero faz essa distinção entre “povo”
seja, a comunidade, é formada somente por e “plebe”, embora até então, a plebe fosse
aqueles que se interessam pelos assuntos vista como parte do “populum” romano, e
públicos. Esses, diz o discurso, merecem o só se distinguisse dos patrícios, ou seja, da
respeito de todos. Os que assim não agem nobreza. A expressão “plebe”, em termos
devem ser desprezados. políticos, tinha significação respeitosa,

* JORNALISTA

115
ENSAIO

uma vez que os plebeus, quando queriam, Quando ele se associa aos seus
participavam da política, e contavam com vizinhos e parentes, para a segurança
seus representantes junto ao poder, os comum, essa ética passa a ser da con-
tribunos. vivência e da cooperação entre todos. É
nesse momento que nasce a consciência
Para Cícero, o povo romano era
de grupo, que irá evoluir até a idéia de
constituído dos patrícios e daquela parte
nação.
da plebe que se interessava pela política.
A outra parte era simplesmente a turba, ou Embora não tenhamos registros histó-
seja, o conjunto de indivíduos sem preocu- ricos daquele tempo, não é difícil recons-
pação com a vida coletiva. tituir a vida pré-histórica. Na verdade, o
mundo atual vive, contemporaneamente,
A distinção entre os que são cidadãos
todas as suas idades.
e os indiferentes à política é importante
quando, entre outras coisas, se discute o Há, ainda, sociedades muito primiti-
problema do voto facultativo. Definido o vas. Embora elas se reduzam rapidamen-
que seja povo, como detentor do poder, é te, certas tribos autóctones, como a dos
possível estudar a evolução da política do ianomâni, no Brasil, permitem estudos
homem. antropológicos que nos dão a idéia de
como todos os seres humanos viviam na
Os seres humanos começam a dis-
Pré-História.
tinguir-se na natureza no mesmo momento
– e um momento, em termos históricos, É assim que podemos entender o
pode durar dezenas e dezenas de milhares surgimento da política, do Estado e do
de anos – em que começam a comuni- Parlamento. Como sempre, é bom tra-
car-se uns com os outros, e aprendem a balhar pensando na linguagem. Política,
trabalhar juntos. Essa é uma etapa impor- como grande parte dos vocábulos de todas
tante, porque, nela, o ser humano também as línguas européias, é uma palavra grega.
se descobre e, nos limites da sua mente em Ela vem de “polis”, que quer dizer comu-
formação, pergunta-se sobre si mesmo. nidade citadina.
Sem entender – e continuamos a não Não é simplesmente “cidade”; é mais
entender – a razão de estar no mundo, do que isso. É o conjunto das pessoas que
o homem primitivo inventa os deuses. se interessam pela comunidade, ou seja, o
Inventar é um bom vocábulo, porque conjunto dos cidadãos. A palavra “polis”,
inventar não só significa criar alguma no léxico político grego, pressupõe a ordem
coisa, mas, sobretudo, descobrir alguma social baseada na fraternidade.
coisa. Toda criação é uma descoberta. Por isso mesmo, a palavra “politeía”,
Naquele momento, o homem passa ou, seja, república, ou ação política, que
a ser protegido pela idéia de Deus. Isso significavam a mesma coisa, era defini-
significa, também, estabelecer uma certa da por Aristóteles como “amizade entre
ética, que se funda na obrigação de manter vizinhos”.
a vida como uma concessão divina. Essa Nas sociedades primitivas, ainda que
ética se revela, em primeiro lugar, na con- ela não se manifeste de forma muito clara,
dução da vida familiar: o macho deve pro- a primeira autoridade é a dos deuses. Em
teger sua mulher e os seus descendentes. sua grande obra, que influenciou Hegel,

116
MAURO SANTAYANA

Marx e outros pensadores modernos, o de Veneza. O corpo eleitoral pode ser mais
historiador italiano Gianbattista Vico divi- amplo ou mais restrito, mas o que define
diu a História em três fases, na sua obra uma república moderna é a temporarieda-
“Scienza Nuova”, publicada em 1725. A de dos mandatos e o processo de escolha
primeira fase da História é a “Idade dos por algum tipo de eleitores. As repúblicas
Deuses”, a segunda, a “Idade dos Heróis”, podem ser democráticas ou oligárquicas.
e a terceira, a “Idade dos Homens”. A A República de Veneza, por exemplo, era
autoridade do chefe nas tribos está sempre oligárquica: as 500 famílias mais importan-
sujeita à autoridade dos sacerdotes, vistos tes constituíam o “Grande Conselho”, e o
como os portadores da vontade divina. “Grande Conselho”, que era o parlamento
Mas os antropólogos concluem que, sobre aristocrático, elegia o doge, o detentor do
as duas autoridades, sempre prevalece a Poder Executivo.
vontade do conjunto, que se manifesta no
O vocábulo “Estado” definia, no
consentimento.
Renascimento, o governo ou a corte, e não
Os membros do grupo devem con- o conjunto das instituições permanentes,
sentir em aceitar a conduta imposta como como entendemos hoje. Rapidamente, a
sendo da vontade de Deus e, em primeiro expressão ganhou nova acepção e univer-
lugar, aceitar que Deus exista e exerça esta salidade. Para o raciocínio moderno, Estado
autoridade. é toda organização política soberana, ou
Essa vontade, que muda com as seja, governada de acordo com princípios
circunstâncias do tempo e do ambien- próprios e com o consentimento de seus
te, aceitando ou rejeitando a autoridade, cidadãos, ou seja, de todos aqueles que,
surge, naturalmente, das conversas entre com a sua vontade e ação, participam das
os indivíduos e das reuniões dos conselhos decisões da comunidade.
comunitários, constituídos quase sempre O que é ser soberano? A melhor defi-
de homens mais experientes. nição, encontrada em muitos autores, de
Parlamentar é conversar. É certo que uma forma ou de outra, é a de que sobera-
a expressão “parlamento”, para designar no é aquele que não obedece a ninguém.
as instituições que conhecemos, surgiu há Um homem pode ser soberano sobre os
pouco mais de 700 anos, o que é recente, seus atos, mas, na realidade, nenhum
em termos históricos. homem, isoladamente, pode ser soberano
Tal como “parlamento”, a expressão sobre o Estado. O Estado, sim, como ser
“estado” é também recente. Aliás, mais coletivo, deve dispor da “summa potes-
recente do que “parlamento”. Antes, tas”, ou seja, de todo o poder que possa ser
os estados eram conhecidos como “rei- exercido dentro dos seus limites territoriais.
nos”, ou como “repúblicas”, ainda que, Os acordos internacionais, que limitem
fossem também estados monárquicos. A essa soberania, só são entendidos quando
palavra “Estado”, ou “Stato”, surgiu no se baseiam no princípio da reciprocidade:
Renascimento italiano, e significava, em isto é, quando os estados contratantes
sua origem, o grupo que cercava o gover- não exijam mais do que concedam, nem
nante, fosse ele um príncipe dinástico, ou concedam mais do que exijam. Em suma,
fosse um mandatário eleito, como ocorria que sejam vistos com idênticos poderes e
nas repúblicas italianas, como a República direitos na convenção estabelecida.

117
ENSAIO

Em todos os Estados, sempre tem um indivíduo pode ser o mais sábio dos
existido alguma coisa semelhante a par- homens, mas não pertencerá ao povo,
lamento. Nas monarquias absolutas, com como o povo foi definido por Cícero,
os conselhos da Coroa. Nas monarquias se não se interessar pela política. Outro
constitucionais, com a representação eleita pode ser o mais rico, ou o mais idolatrado
pelos cidadãos, ou por uma parcela dos pelos seus dotes artísticos – mas não será
cidadãos. Nas repúblicas, com a repre- cidadão. Não merecerá o reconhecimento
sentação daquela parcela de indivíduos da comunidade, dentro da visão grega
que constitua o eleitorado e que se faça da política. O camponês analfabeto ou o
representar. Como já vimos, o eleitorado trabalhador modesto, que procuram influir
pode ser universal, nas democracias, e em favor de sua comunidade – mesmo nas
reduzido, nos governos oligárquicos. E comunidades menores, como a associação
até mesmo resumido aos militares, como de moradores, ou o grupo de plantadores
ocorria no sistema espartano e no início de feijão – são cidadãos. O empresário
da República Romana e como ocorreu em rico, que só se interessa em proteger os
nosso próprio país, quando o Presidente seus próprios negócios, e não participa da
da República era escolhido pelos oficiais vida da comunidade como um todo, não
generais das Três Armas, mas tendo, no é cidadão, mesmo que, por oportunismo,
Exército, como a força mais numerosa, financie campanhas eleitorais.
o único grupo que oferecia os candida-
tos. Isso nos obriga a lembrar que um Sendo assim, a evolução do
Estado pode ser monárquico e democrá- parlamento se faz em dois sentidos: o
tico, como pode ser nominalmente repu- da legitimidade e o da ampliação de
blicano, e ditatorial. Nominalmente, tanto seu poder. Um parlamento é tanto mais
a Alemanha de Hitler, quanto Portugal, legítimo quanto mais ele se aproxime da
de Salazar, eram repúblicas, mas nada vontade nacional. E o seu poder será tanto
tiveram de democráticas. E, enquanto a mais efetivo, quanto mais ele puder impor
Itália e a Inglaterra eram nominalmente essa vontade nacional aos outros poderes
monarquias, durante os anos 20 e 30, a do Estado.
Itália estava sob a ditadura de Mussolini, Como em tudo mais, temos que
enquanto a Grã Bretanha constituía, para o recorrer aos gregos. Os setecentos anos
seu próprio povo, uma das mais avançadas que antecedem a era cristã e os dois pri-
democracias do mundo. meiros séculos de nossa era são vistos
A evolução política se faz na como a “idade axial” do homem. Sem
universalização do poder, ou seja, na remontar a períodos mais antigos, sobre os
participação cada vez maior dos indivíduos quais a documentação é ainda escassa, foi
na sociedade política. Isso significa a nesse período – a Idade dos Heróis, segun-
transformação dos indivíduos em cidadãos. do Gianbattista Vico – que, com a difusão
Por isso mesmo, a democracia pode ser da linguagem escrita e a especulação filo-
vista como o processo permanente de sófica, o Estado encontrou, no Ocidente,
adesão dos indivíduos à responsabilidade os seus fundamentos modernos. Foi um
coletiva, ou seja, a transformação da período de lutas, de paixão pelo poder, de
turba em plebe e da plebe em povo. afirmação do homem. Nesse período, os
Entendamos que, no sentido político, deuses e os heróis começam a ceder lugar

118
MAURO SANTAYANA

ao cidadão. O grande cronista dessa muta- funções, menos a de tribunal. É curioso


ção histórica é Homero, o poeta grego, registrar a origem da palavra proble-
com seus dois grandes poemas épicos: a ma, hoje usada para identificar alguma
Odisséia e a Ilíada. As duas obras são mais questão complicada. Problema vem do
do que o relato de hipotéticas gestas, mas grego “proboulema” (pro-boulema), ou,
a metáfora profética do futuro. seja, uma questão encaminhada à boule,
Boule, enfim, um projeto de lei. Essas
As ilhas e a península gregas eram,
questões podiam ser encaminhadas pelo
naquele tempo, um conjunto de pequenos
governo, ou pelas assembléias populares,
estados. Cada cidade, que compreendia
que se reuniam na praça do mercado, a
a zona rural, exercia seu próprio poder,
ágora. Outra das significações de “pro-
e a disputa entre elas crescia na mesma
boulema” é “desenho”. Na linguagem
medida em que cresciam o comércio e
legislativa moderna italiana, o projeto
o interesse econômico. Sobre todas essas
enviado pelo governo ao Parlamento é
cidades, duas se tornaram maiores e mais
chamado de “disegno de legge”. A própria
fortes: Esparta e Atenas. Em ambas, o palavra “boule” significava, originalmen-
governo era exercido por duas instâncias: te, “vontade”, ímpeto, lançamento – era,
uma, a dos reis, em Esparta, e a dos tiranos, assim, a assembléia que aferia a vontade
em Atenas – e a outra, a das instituições geral.
parlamentares. É preciso esclarecer que
tirano, em grego, não tinha o significado A “Boule” e todas as instituições polí-
moderno, de ditadura cruel, mas sim, o ticas gregas são tratadas cientificamente
do governante com grandes poderes. Em por Aristóteles e Platão em seus livros polí-
Esparta havia uma espécie de Senado, ticos, nos quais eles partem da práxis, da
constituído de 30 membros. Em Atenas experiência das diversas constituições, para
funcionava o Areópago. Esparta era um examinar as questões da “polis”, ou seja, da
estado militarizado, de fundamentalismo comunidade política.
estrito, e que serviu de modelo ideológico Constituição, na linguagem política
a algumas das piores ditaduras modernas. clássica, é o conjunto de normas e ritos,
O Areópago ateniense era instituição que podem ser escritos, ou não. É a forma
aristocrática. Dele só podiam participar os pela qual o Estado se encontra formado,
ou constituído.
“eupatridoi”, ou, seja, os bem nascidos.
O nome Areópago deriva de sua situação Os tratados de política e de ética,
geográfica. Os seus membros se reuniam tanto de Platão como de Aristóteles, for-
no monte ateniense dedicado a Ares, ou mam as idéias básicas sobre o Estado no
seja, ao deus da guerra, que tomou o nome pensamento ocidental. Mesmo sabendo-
latino de Marte. Pagos, em grego, significa se que Aristóteles foi discípulo de Platão,
a parte mais elevada, monte, colina. O os pensadores modernos consideram sua
Areópago tinha dupla função: a de legis- obra mais sistematizada, mais “científica”,
lar e a de julgar os casos de homicídio. vamos assim dizer. Provavelmente porque
Reformas sucessivas lhes foram tirando o Platão se situou mais no terreno das
poder. A constituição de um parlamento idéias, criando até mesmo a primeira uto-
popular, composto de 400 membros, a pia política com seu livro “A República”.
Boule, retirou do Areópago todas as suas Aristóteles, por sua vez, se atém mais à

119
ENSAIO

realidade, à prática, à situação da politeía, formato legal e constitucional às decisões


ou seja, da república, nos tempos imedia- populares. De uma certa forma, Péricles
tamente anteriores a ele. Ele não parte de foi um precursor do estado de bem-estar
uma doutrina própria do poder, mas, exa- social, tal como o conhecemos no século
minando a realidade política de seu tempo XX. Os persas haviam invadido e destruído
e dos tempos anteriores, propõe uma teo- Atenas, e a miséria dominava a cidade.
ria, no exato sentido grego da palavra. Péricles, usando os recursos do Tesouro,
Em grego, teoria significa contemplação, reconstruiu a cidade, criando empregos
exame, ou, melhor ainda, constatação. para os pobres. E até mesmo fez uma obra
De qualquer forma, ambos foram orien- suntuosa, como símbolo da auto-afirmação
tadores políticos da mais alta expressão. dos gregos, a Acrópole, com seus grandes
Platão esteve aconselhando os tiranos de templos, cujos restos ainda impressionam
Siracusa e Aristóteles foi preceptor de o mundo. Ao mesmo tempo, no porto de
Alexandre, o Grande. Pireu, mandou construir o primeiro con-
junto de casas populares de que se tem
Durante alguns anos, não muitos,
notícia, para uso dos marinheiros da frota
Atenas foi o exemplo da sociedade demo-
ateniense.
crática. Como, apesar da advertência de
Péricles, de que todos os cidadãos deve- A grandeza do sistema ateniense foi a
riam participar das atividades políticas, sua perdição, porque a ambição de potên-
nem todos queriam fazê-lo,foi instituído cia levou-a ao imperialismo, à guerra do
o pagamento para todos os que compa- Peloponeso, à derrota diante de Esparta e
recessem às assembléias políticas, uma à paulatina decadência. A Confederação
espécie de indenização pelo tempo gasto. de Delos, sob a direção de Atenas, surgira
Também nessa época surgiu a remunera- como aliança defensiva contra os persas,
ção para os que se dedicassem integral- mas logo se tornou um sistema de expro-
mente ao serviço público. No alvorecer priação das outras cidades do arquipéla-
do sistema democrático, os membros da go.
direção política do Estado eram sorteados, A decadência de Atenas tem sido
e muitos cidadãos pobres tinham dificul- apontada, pelos historiadores, como adver-
dade em manter as suas famílias, deixando tência importante: ninguém pode explorar
de trabalhar como artesãos ou pequenos os outros, em nome de suas virtudes, nem
comerciantes, enquanto serviam à cidade. pretender exportar as suas virtudes para
Por isso, Péricles instituiu o costume de os os outros. As virtudes podem ser imitadas,
indenizar com uma quantia aproximada à mas, nunca impostas ou vendidas.
que ganhavam em suas atividades profis-
Contra o imperialismo ateniense se
sionais. Foi assim que surgiu a remunera-
revoltaram Esparta e outras cidades, que
ção pelos serviços que os cidadãos, eleitos
derrotaram a metrópole, iniciando-se o
ou nomeados, prestam à comunidade.
processo de declínio. Antes que isso ocor-
Durante o governo de Péricles pra- resse, Atenas forneceu a Roma, e pelo
ticou-se, em Atenas e em algumas outras exemplo, os seus princípios constitucio-
cidades gregas, a democracia direta. As nais. Conforme fontes romanas, a “Lex
assembléias exerciam o poder político XII (dodici) Tabularum”, ou a Lei das 12 ,
principal. A “Boule” se encarregava de dar escrita da República Romana, inspirou-se

120
MAURO SANTAYANA

na legislação ateniense da primeira metade O sistema republicano romano


do século V antes de Cristo. A lei foi adota- começou a corromper-se quando o poder
da em Roma, depois de ser ajustada por um militar se uniu ao poder econômico e ao
grupo de estudiosos, em 450 a.C. poder político, no primeiro triunvirato.
Em Roma, desde o seu início sob César, Pompeu e Crasso eram, ao mesmo
influência remanescente da Grécia, que tempo, chefes militares, chefes políticos e
colonizara grande parte do território grandes empresários. O enriquecimento
italiano, prosperava o sistema republicano. de Roma não beneficiara todos os seus
A República se instalou por volta de 509 habitantes, e os escravos, que eram a prin-
antes de Cristo, depois da expulsão de cipal força produtiva, se haviam revoltado
Tarquínio, o Soberbo, o último rei de Roma. sob o comando de Spartacus, alguns anos
Mas, mesmo sob Tarquínio, que foi um antes. A crise era latente. Com a morte de
déspota, havia um Senado funcionando. Crassus, e, logo em seguida, a morte de
A palavra Senado deriva de “sene”, que Júlia, a filha de César casada com Pompeu,
significa “velho”. O rei detinha dois poderes o “triumvirato” se desfez naturalmente. Os
principais – o de supremo sacerdote da dois homens, que eram muito semelhantes
religião romana, e o poder militar. Com em suas qualidades e em seus defeitos, mas
o fim da monarquia, o Senado continuou sobretudo em sua ambição, defrontaram-
existindo, com seus poderes ampliados, e se em seguida, na Grande Guerra Civil.
se instituiu a eleição de dois cônsules. Um Podemos, novamente, citar Gianbattista
deles se dedicava às questões externas – a Vico, em uma frase enigmática sobre os
defesa e a expansão militar – e o outro, à dois. Ele disse que “César e Pompeu eram
administração interna. muito parecidos, especialmente Pompeu”.
Mas o poder estava nas mãos dos Vitorioso, com a morte de Pompeu,
patrícios e dos chefes militares. Só havia César se fez cônsul e, em seguida, ditador
duas formas de acesso ao Parlamento, ou vitalício. Menos de um mês depois de ter
seja, ao Senado: pelo nascimento ou pela sido eleito ditador, foi assassinado aos pés
bravura militar. A instituição do consulado da estátua de Pompeu, antes de se iniciar
não modificou a situação: os cônsules eram uma sessão do Senado. Com ele, morria a
eleitos pelas centúrias militares. Poucos República Romana e se iniciava o período
anos depois de instalada a República, a monárquico, com Augusto e os imperado-
plebe se revoltou, exigindo participação res sucessivos, e começava a lenta agonia
no poder. Como Roma se encontrava do Parlamento. Ele só será restabelecido, na
sob ameaça de seus vizinhos, o Senado forma que havia alcançado no período
concordou em dividir nominalmente o áureo da República Romana, mais de um
poder, e foi criado o Tribunato da Plebe. milênio depois, na Inglaterra.
Dois tribunos, eleitos pelos pobres (mas
geralmente procedentes da oligarquia) Um dos documentos políticos mais
podiam representá-los junto ao poder. citados nos tempos modernos é a Magna
Pouco a pouco, a plebe foi obtendo Carta, de 1215, que o Rei João Sem Terra,
maiores poderes, mas nunca chegou a da Inglaterra, foi obrigado a assinar, sob
ter um parlamento próprio, uma Câmara a pressão dos senhores feudais. Como
de Deputados, o que só ocorreria muitos todas as grandes mudanças institucionais,
séculos depois, na Inglaterra. a outorga da Great Charter foi exigida

121
ENSAIO

pelas circunstâncias econômicas internas. de obter a aprovação para o ato em que


A Coroa estava endividada, uma vez que excomungara o Imperador Frederico II, do
tivera que gastar grandes somas para o Sacro Império, Inocente IV convocou uma
pagamento do resgate de Ricardo Coração grande reunião dos poderosos em Lyon – e
de Leão, aprisionado quando regressava lhe deu o nome de Parlamento.
da Terra Santa, em 1194. Esmagados pela O Parlamento é, assim, ou assim
tributação excessiva, os barões ingleses deveria ser, o espaço para a discussão dos
exigiram do Rei certas concessões, entre grandes problemas (ou pro-boulemas) e
elas a de que os impostos fossem arbitra- para a criação de leis e processos que pos-
dos pelos próprios contribuintes, median- sam resolvê-los.
te uma representação política. A Magna
Carta inicia o processo de representação
parlamentar na Inglaterra, com o Conselho
dos 25 Barões.
Esse Conselho evoluirá para tornar-se
a Câmara dos Lordes. No século seguinte,
os comuns, ou seja os não portadores de
títulos de nobreza mas, de alguma forma
poderosos, como os grandes mercado-
res, passaram a eleger representantes ao
Parlamento – e as duas casas se separaram.
A partir do Século 17, quando a Câmara
dos Comuns se rebelou contra Carlos I,
seus direitos cresceram e, embora formal-
mente a Câmara dos Lordes detenha, até
hoje, seu poder de veto, a realidade políti-
ca confere aos comuns todo o poder políti-
co na Inglaterra moderna, e tem servido de
modelo para a representação parlamentar
no Ocidente.
A expressão parlamento para designar
essas assembléias de representação política
surgiu, como tantas outras, do vocabulário
litúrgico. Chamava-se parlamento a reu-
nião dos frades beneditinos, depois do jan-
tar, para falar sobre teologia e os assuntos
atinentes à administração dos mosteiros.
Em 1239, Matthew Paris, superior da aba-
dia beneditina de Saint Albans – situada a
30 quilômetros de Londres – decidiu abrir
estas reuniões e convocar bispos, condes e
barões, para discutir assuntos de interesse
geral. Seis anos depois, em 1245, a fim

122
DAVID FLEISCHER* ENSAIO

O Impacto da Reforma
Política Sobre a
Câmara Federal
A reforma política sempre esteve na de casuísmos que modificaram as regras
agenda do Congresso Nacional desde a políticas para produzir maiorias para o
redemocratização em 1946, com destaque governo no Congresso, como: as cassações
para: representação proporcional com lista de mandatos políticos, dois remanejamen-
aberta, cassação do Partido Comunista, tos do sistema partidário (1966 e 1980),
eleições majoritárias por maioria simples, proibição de coligações, eleições indiretas
recadastramentos de eleitores, a introdu- para presidente e governadores via colégio
ção da cédula única e um breve parlamen- eleitoral, o voto vinculado, a fidelidade
tarismo (Lima Sobrinho). Com a implan- partidária, os senadores “biônicos”, sub-
tação do período militar (1964-1985), o legendas e a tentativa de implantar o voto
Brasil passou por uma seqüência sem fim “misto” distrital-proporcional (Fleischer,

* Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.

123
ENSAIO

1994). Na nova fase de redemocratização, parecer do Relator Dep. Ronaldo Caiado


a partir de 1985, novas modificações nas (PFL-GO), em 3 de dezembro de 2003
normas políticas foram adotadas – abertu- (Quadro 2). Uma semana depois, este
ra para novos partidos políticos, o retorno PL-2679/2003 foi transmitido para a
dos partidos comunistas, novos recadastra- Comissão de Constituição e Justiça e de
mentos de eleitores, a redução facultativa Cidadania (CCJC) para acertar uma versão
da idade eleitoral de 18 para 16 anos, o cri- final antes de ser apreciado pelo Plenário
tério da maioria absoluta e a reeleição para da Casa (Cintra).
cargos executivos, cotas para candidatas Pretendo, nesta breve análise, avaliar
nas eleições proporcionais, votos brancos os quatro pontos contidos neste Projeto
contados como inválidos e a implantação de Lei e seus possíveis efeitos e impactos
da urna eletrônica (Trindade, 1992). sobre a Câmara dos Deputados.
Porém, quatro pontos com grande
potencial de impacto sobre a Câmara dos Sistema Eleitoral
Deputados ficaram de fora destes quase
O Brasil usa o sistema de repre-
60 anos de “reformas”, embora tivessem
sentação proporcional de lista aberta para
sido debatidos durante a ANC (Assembléia
eleger deputados e vereadores desde a
Nacional Constituinte) em 1987-1988:
Constituição de 1946. Durante o perío-
1) a fidelidade partidária; 2) financia-
do militar, este mesmo sistema eleitoral
mento de campanhas eleitorais; 3) sistema
continuava em vigor, embora o fosse com
de eleição proporcional; e 4) coligações
apenas dois partidos (ARENA e MDB). A
partidárias (Fleischer, 1987a e 1987b).
partir de 1985, voltou o sistema de coliga-
Em 1995, o então Presidente do ções sem sublegenda que vigorava antes
Senado, Sen. José Sarney (PMDB-AP) de 1964.
constituiu uma Comissão Especial para
Apenas em duas ocasiões houve ten-
estudar a “Reforma Político Partidária” que
tativas de mudança do sistema eleitoral
apresentou o seu relatório final em 1998
proporcional: 1) no fim de 1965, logo
(Machado; Fleischer, 1998). Os quatro
depois do AI-2 que extinguiu o então siste-
pontos acima mencionados foram incluí-
ma pluri-partidário, quando o Pres. Castelo
dos nos 14 itens votados pelo Senado, mas
Branco quis implantar o sistema majoritá-
nunca entraram na pauta da Câmara dos
rio uninominal (distrital), mas foi dissuadi-
Deputados. Inusitadamente, em 2000, do deste intento por líderes da ex-UDN;
líderes do PT e PFL conseguiram elaborar e 2) com a Emenda Constitucional nº 22
várias medidas para uma reforma política (de junho de 1982), que implantou o voto
em comum acordo, mas esta iniciativa “misto” distrital-proporcional, semelhante
também não produziu nenhum resultado. ao sistema utilizado na Alemanha, que
No início de 2003, a Câmara dos teria vigorado para a próxima eleição, em
Deputados constituiu uma Comissão espe- 1986. Porém, em 1983-1984, o Congresso
cial destinada a efetuar estudo em rela- Nacional não regulamentou este esquema,
ção às matérias em tramitação na Casa, e em maio de 1985 esta disposição foi
cujo tema abrangia a Reforma Política revogada. Mesmo assim, esta proposta
(Benevides et al.). Após vários meses de despertou debates entre políticos e acadê-
estudos e debates, esta Comissão votou o micos, o que ensejou uma edição especial

124
DAVID FLEISCHER

da Revista de Informação Legislativa, nº 78 valentes a, por exemplo, onze coeficientes


(1983). eleitorais, os primeiros onze nomes na lista
Desde então, prosperou um deba- fechada estarão eleitos, e o 12º na lista
te sobre mudanças no sistema eleitoral seria o primeiro suplente.
– algumas poucas propostas para um siste- Esta mudança causaria um grande
ma distrital e várias sugestões em favor do impacto sobre o sistema eleitoral brasi-
chamado “sistema misto” (Pinheiro Filho; leiro. Ao invés dos gastos individuais
Fleischer, 1992) de cada candidato para conseguir votos
Finalmente, em dezembro de 2003, suficientes para se eleger e não cair na
a Comissão Especial aprovou uma mudan- suplência, no sistema de lista fechada os
ça substancial no sistema de representação fatores determinantes para a eleição de um
proporcional (RP), a lista fechada. No candidato a deputado serão: 1) o seu par-
sistema atual, cada partido ou coliga- tido ou coligação ter um apelo suficiente
ção apresenta a lista dos seus candidatos para angariar um grande número de votos;
a deputado ou vereador, mas sem uma e 2) o candidato ter sido colocado numa
ordem prévia. Na eleição, o eleitor vota posição alta o bastante na lista para estar
ou na legenda (partido) preferida ou no entre os eleitos.
nome de um candidato individual. Quase Mas, como que os partidos (coli-
toda a campanha gira em torno de nomes gações) vão confeccionar as suas listas
individuais, com propaganda maciça des- fechadas? A não ser que na subseqüente
tacando o nome, foto e número de iden- tramitação do PL-2679/2003 as normas
tificação do candidato, com pouca ou para a confecção da lista sejam mais
nenhuma informação sobre sua filiação detalhadas, em cada estado, cada partido/
partidária. As pesquisas de opinião mos- coligação basicamente teria três alternati-
tram que, seis meses após o pleito, menos vas: 1) a comissão executiva ou diretório
da metade dos eleitores lembra o nome do estadual elaboraria a lista com a ordem
candidato em que votou, e muito menos predefinida; 2) a lista seria elaborada por
ainda consegue lembrar o partido. Por uma convenção estadual do partido; ou
esta e outras razões, o sistema de lista 3) cada partido teria um mecanismo de
aberta é muito raro entre os países que receber pré-candidaturas a deputado e a
usam a representação proporcional (pura). inclusão (ou não) destes (e em qual ordem)
Apenas o Brasil e a Finlândia usam este seria determinada por uma votação prévia
sistema. No resto do mundo, a (RP) utiliza de todos os filiados no estado. Além de
a lista fechada (Gallagher; Lijphart, 1991; mais participativa, esta terceira alternativa
Nicolau, 1993; Shepsle). poderia funcionar como uma “pré-campa-
No sistema de lista fechada, cada nha” de divulgação do partido junto aos
partido ou coligação apresentará à Justiça eleitores e serviria como estímulo a novas
Eleitoral uma lista de candidatos pré-orde- filiações. O Projeto de Lei prevê que a
nada – ou seja, desde o primeiro nome da lista e a ordem dos candidatos sejam defi-
lista até o número 30º ou 45º , por exem- nidas em convenção partidária. Assim, as
plo. Ao eleitor cabe apenas escolher qual “opções” 1) e 2) seriam operadas “infor-
partido ou coligação votar. Apurados os malmente” e teriam que ser referendadas
votos, se o Partido “A” receber votos equi- via convenção partidária.

125
ENSAIO

A partir de 2010, cada partido ou ciente. A articulação do Poder Executivo


“federação” definiria, através de conven- seria diretamente com os partidos e não
ção, os candidatos e a sua ordem em lista mais “um-a-um” com cada parlamentar.
única. Porém, a eleição em 2006 teria Por este raciocínio, os partidos seriam for-
“regras de transição” para acomodar os talecidos, o que, em grande parte, poderia
atuais parlamentares (eleitos em 2002). aperfeiçoar a prática da democracia no
Estes parlamentares seriam colocados nas Brasil.
primeiras posições das listas, seguindo Este sistema de (RP) com lista fechada
a ordem de prioridade de acordo com o acumularia outras vantagens: 1) o embate
número de votos obtidos em 2002: eleitoral seria entre partidos e não mais
1º – Candidatos eleitos em 2002; entre “companheiros” da mesma chapa,
2º – Suplentes efetivados; e o debate na TV seria sobre programas
e propostas e não mais de candidatos
3º – Suplentes que exerceram mandato individuais – 8 segundos de “vote em eu”;
por pelo menos seis meses; e 2) o financiamento das campanhas seria
4º – Candidatos eleitos que trocaram de muito mais fácil para a Justiça Eleitoral
legenda após a eleição de 2002. monitorar com a movimentação financeira
concentrada nos partidos e não mais nos
Esta regra de transição seria pre-
candidatos individuais; e 3) as cotas para
judicial aos deputados que trocaram de
mulheres candidatas pelos partidos/coliga-
legenda após as eleições de outubro de
ções seriam mais fáceis de operacionalizar,
2002, com maior impacto sobre os dois
como na “Ley de Cupos”, na Argentina,
partidos que receberam o maior número
onde obrigatoriamente as candidatas têm
de “migrantes” (PTB e PL).
que constar pelo menos nas 3ª, 4ª e 5ª
É claro que o partido/federação que posições nas listas (Araújo; Jones). Na elei-
tiver a melhor imagem entre os eleitores, ção logo depois da implantação da “Ley
o programa ou proposta mais atraente, de Cupos”, a proporção de deputadas na
e escolhido os seus candidatos de uma Câmara Baixa argentina subiu de 5% para
maneira mais participativa, levaria mais 21%.
vantagem na eleição proporcional. Para
O sistema de lista fechada também
os partidos/federações que não conseguis-
serviria para tolher os efeitos de “locomoti-
sem atender estes três quesitos, o sistema
vas eleitorais”, candidatos “endinheirados”
de lista fechada não renderia muitas van-
e os apoiados por certas organizações
tagens.
ou “segmentos” – como Enéas Carneiro,
No sistema de lista fechada, os man- do PRONA, que em 2002 recebeu 1,5
datos dos deputados pertencem ao partido milhões de votos para deputado fede-
e não mais aos próprios deputados. Assim, ral em São Paulo, e “puxou”/”elegeu”
o partido teria mais controle sobre os seus outros 5 candidatos com poucas centenas
eleitos, e a “migração” [“troca-troca”] dos de votos; ou candidatos ligados a seg-
deputados de uma legenda para outra mentos coletivos que têm grande número
durante o mandato não existiria mais. As de eleitores “fiéis”, filiados ou seguidores
bancadas seriam mais coesas e o trabalho – como igrejas, sindicatos e certos grupos
parlamentar se tornaria mais eficaz e efi- funcionais (como funcionários públicos,

126
DAVID FLEISCHER

policiais militares, etc.). Estes grupos não Ronaldo Caiado (PFL-GO), afirma que até
mais poderiam concentrar os “seus” votos os meados de março de 2004, 125 depu-
em candidatos destacados em diversos tados já trocaram de partido (Freitas). Sem
partidos, mas teriam que escolher um só o mecanismo da sublegenda [sublemas, na
partido/confederação para “despejar” os Argentina e Uruguai], os partidos coligados
seus votos. perdem a sua identidade perante o eleito-
Para as eleições de 2006, os atuais rado e contribuem para o enfraquecimento
deputados (eleitos em outubro de 2002) das legendas. Em muitos casos, as micro
terão que tomar uma decisão que pode ou pequenas legendas não teriam chances
ser bastante draconiana. Até 2 de outubro de eleger um só deputado sem o artifício
de 2005, terão que decidir a sua migração das coligações (Ames; Cintra; Fleischer,
partidária “final” – a legenda pela qual 2004; Melo; Nicolau, 1997; Nogueira).
disputarão a eleição em outubro de 2006 Já apareceram várias propostas para
– um ano antes, sem saber exatamente corrigir estas anomalias e atenuar os efei-
qual federação o “seu” partido vai entrar tos das coligações – desde proibir as
e nem como ficaria a sua posição na coligações totalmente [o fim dos partidos
ordem pré-determinada dos candidatos. “históricos”, como o PPS e o PCdoB], a
Possivelmente, vários deputados “migran- adoção de sublegendas [onde cada parti-
tes”, percebendo que não teriam grandes do participante teria a sua própria sublista
chances no seu então partido, optarão dentro da coligação], até a adoção de uma
para um outro partido “nanico”, justamen- “cláusula de exclusão” ou barreira (de 2%,
te para ter mais poder de barganha para 3% ou 5% dos votos válidos), como na
“acertar” a sua posição na composição Alemanha, para excluir os partidos “nani-
da lista fechada da confederação que, por cos”1. Para 2006, esta nova proposta prevê
ventura, o seu “novo” partido venha a uma “barreira” de 2% dos votos para a
integrar. Câmara dos Deputados, nacionalmente
distribuídos em 1/3 das unidades da fede-
Federação de Partidos ração, e eleição de um deputado em pelo
menos 5 destas unidades – para que os
Há muito tempo que o uso de coliga-
partidos ou federações possam ter direito
ções (sem sublegenda) nas eleições propor-
a funcionamento parlamentar. Portanto,
cionais é criticado no Brasil. Supostamente,
a “barreira” brasileira continuaria menos
este mecanismo contribui para o fato da
rígida que a da Alemanha.
maioria do eleitorado não conseguir lem-
brar o nome do candidato e muito menos Assim, a proposta de uma “federa-
o partido em que votou. Também, estimu- ção de partidos”, ao invés de coligação,
la a “migração” de deputados eleitos por chega a ser uma mudança inovadora.
uma coligação para outros partidos que Continuaria o mecanismo de uma aliança
nem participavam da coligação que ele- eleitoral entre partidos para as eleições
geu o deputado. Em 2003, mesmo antes proporcionais, mas com a lista fechada. A
da posse (em 1 de fevereiro) dos novos grande diferença é que esta “federação”
parlamentares eleitos em outubro de 2002, teria que permanecer em funcionamento
uns 40 deputados trocaram de legenda obrigatoriamente por três anos. Assim,
(Quadro 1). O relator desta reforma, Dep. não teria mais “troca-troca” de legenda

127
ENSAIO

durante este período e a “federação” fun- votos receberia e maiores chances teria
cionaria como um “bloco parlamentar”. de ser eleito (Fleischer, 2000; Samuels,
Na linguagem dos jovens, a tradicional 2001a, 2001b, 2003; Sirkis).
aliança eleitoral via coligação é uma rela-
Usualmente, a contabilidade do
ção de “ficar” (até a abertura das urnas), e
dinheiro gasto na campanha (via a cha-
a “federação de partidos” seria então uma
mada “caixa um”) apresentada à Justiça
“união estável” durante três anos. Caso a
Eleitoral não chega a um décimo do total
“federação de partidos” se dissolver antes
realmente gasto e, portanto, fora do esque-
de completar o prazo de três anos, os par-
ma de monitoramento dos TRE`s (Fleischer
tidos que a compõem perderiam o direito
e Whitaker). A grande parte destes recursos
ao funcionamento parlamentar.
vem da chamada “caixa dois” de empre-
sas e outras organizações interessadas em
Fidelidade Partidária
poder contar com deputados dispostos a
O conceito da “fidelidade” do parla- defender seus interesses. O Prof. Cândido
mentar para com a sua legenda não seria Mendes estima que foram gastos algo em
tão rígido quanto a norma que vigorava torno de R$ 10 bilhões nas campanhas de
durante o período militar, mas seria for- 2002 (Mendes).
temente inibitivo de “migrações” após as
eleições – por causa da lista fechada e A nova proposta prevê financia-
a operação das “federações partidárias”. mento exclusivamente público das elei-
Não está muito certo que a “infidelidade” ções, através de dotação orçamentária no
do parlamentar durante o seu mandato valor de R$ 7,00 multiplicado pelo núme-
poderia implicar na perda do mandato, ro de eleitores cadastrados no ano anterior
mas com certeza as lideranças partidárias à eleição (dezembro de 2005) e veda
teriam mais controle sobre o comporta- totalmente as contribuições de pessoas
mento dos seus liderados. De acordo com físicas e jurídicas às campanhas eleitorais.
L.M. Rodrigues, o eleitor não se incomo- Resta saber se o Congresso Nacional dota-
da com a infidelidade dos parlamentares ria a Justiça Eleitoral com poderes fortes o
migrantes que, em última instância, aju- bastante para realmente impedir estas con-
dam os governos a constituirem maiorias tribuições – a partidos e federações de par-
no Congresso após cada eleição. Foi tidos, em 2006. No entanto, não seriam
assim com o Presidente Cardoso, em 1995 vedadas estas contribuições para o Fundo
e 1999, e também com o Presidente Lula, Partidário. Este continuaria constituído por
em 2003. dotações orçamentárias anuais no valor
de R$ 0,35 por eleitor cadastrado no ano
Financiamento de Campanhas anterior às eleições – mas, somente nos
anos ímpares (quando não há eleições).
Depois do mecanismo da lista fecha-
da, a segunda grande mudança no sistema No caso do montante de recur-
eleitoral seriam as alterações nas regras sos públicos para financiar as eleições,
para o financiamento dos partidos e as suas para 2006, estima-se que o total dispo-
campanhas eleitorais em 2006. Tido como nível poderia chegar a R$ 966 milhões
um grande entrave na democracia repre- (138.000.000 eleitores x R$ 7,00) – ou
sentativa no Brasil, o resultado parece ser: seja, aproximadamente US$ 333 milhões.
quanto mais dinheiro o candidato tenha Este montante seria distribuído entre os
disponível para a sua campanha, mais partidos da seguinte forma:

128
DAVID FLEISCHER

1) 1%, igualitariamente, entre todos Para o partido que em 2002 não


os partidos registrados no TSE; elegeu nenhum deputado federal e não
tem representação na Câmara, o total de
1% de R$ 966 milhões = R$ 9,66
financiamento público seria apenas de
milhões
R$ 322.000,00.
2) 14%, igualitariamente, entre os
Num ano de eleições federais (como
partidos com representação na Câmara;
em 2006), a divisão destes recursos
14% de R$ 966 milhões = R$ alocados para cada partido ficaria assim:
135,24 milhões
• 30% para a administração nacional do
3) e 85%, proporcionalmente às partido, quando o partido/coligação
bancadas de deputados federais de cada tiver candidato à Presidência;
partido, eleitas no pleito anterior [outubro
• 20% para a administração nacional do
de 2002].
partido, quando o partido/coligação
85% de R$ 966 milhões = R$ não tiver candidato à Presidência;
821,1 milhões • do restante, 70% ou 80%, para as
Este mecanismo penalizaria os administrações estaduais do partido,
pequenos partidos e, principalmente, os sendo que, 50% proporcionalmente
“médios”, como o PTB e o PL que quase ao número de eleitores, e 50%
dobraram as suas bancadas com “migra- proporcionalmente às bancadas
ções” após o pleito de 2002 (Quadro 1). estaduais de cada partido na
Câmara.
Como exemplo desta distribuição
em 2006, apresentamos os cálculos para Desta maneira, ou 70% ou 80%
um “grande” [91 deputados] e um “micro- destes recursos ficariam para custear as
partido” [4 deputados] – assim, os recursos 27 campanhas estaduais (governador,
disponíveis para o “grande” seriam dez senador e deputados federais e estaduais)
vezes maiores que os disponíveis para o de cada partido, conforme o “tamanho”
“pequeno”: do respectivo partido em cada estado.
Aparentemente, não há previsão para as
PSD (elegeu 4 deputados federais em eleições com duas vagas para senador,
2002) como em 2010, por exemplo. Nos casos
1) 1/30 de R$ 9,66 milhões = R$ 322.000,00 de coligações (presidente, governador e
2) 1/15 de R$ 135,24 milhões = R$ 9.016.000,00 senador) e de federações (deputado federal
e estadual), os partidos participantes teriam
3) 4/513 de R$ 821,10 milhões = R$ 6.402.000,00
que acertar a distribuição da soma dos
TOTAL = R$ 15.740.000,00 seus recursos.

PT (elegeu 91 deputados em 2002) Tramitação


1) 1/30 de R$ 9,66 milhões = R$ 322.000,00 O Projeto de Lei nº 2679/2003
2) 1/15 de R$135,24 milhões = R$ 9.016.000,00 tramitou na Comissão Especial durante 26
3) 91/513 de R$ 821,10 milhões = R$ 145.653.000,00
sessões e 7 audiências públicas, até que
o parecer final do Dep. Ronaldo Caiado
TOTAL = R$ 154.911.000,00 (PFL-GO) foi aprovado em 3 de dezembro

129
ENSAIO

de 2003. De 3 a 5 de junho de 2003, a em favor da reforma política e sempre tive-


Comissão Especial promoveu, junto com ram um aliado velado (PT). Mas o partido
a ABCP (Associação Brasileira de Ciência de Lula nunca assumia publicamente estas
Política), um seminário para debater esta teses, como o fim das coligações nas elei-
Reforma Política – ver: ções proporcionais, para não desagradar
seus aliados. Porém, com o PT no poder,
em 2003, estes aliados (PPS, PCdoB e PSB)
www.camara.gov.br/internet/Eventos/
Sem_conf_realizados/2003/Sem_reforma_ votaram a favor da reforma na Comissão
politica.asp Especial, principalmente porque o meca-
nismo da “federação de partidos” era um
Os trabalhos apresentados neste artifício melhor do que a simples proibição
seminário estão para ser publicados em um das coligações nos pleitos proporcionais
volume, ainda em 2004. No mês seguin- – que teria sido a “sentença de morte” para
te, em 1º de julho, a Fundação Perseu estes partidos.
Abramo lançou na Câmara dos Deputados Interessantemente, o então vice-líder
(com a presença do Presidente Lula) uma do PL, Dep. “Bispo” Rodrigues (RJ), avisou
coletânea de estudos sobre a reforma polí- os petistas que se fosse aprovada a votação
tica (Benevides et al.) – resultado de uma em lista (pelo Congresso), seu partido seria
seqüência de três seminários realizados a obrigado a lançar candidato à Presidência
partir de 2001 sobre esta “mãe de todas da República em 2006. O raciocínio
as reformas”. Mesmo assim, esta reforma do “Bispo” era que o eleitor sempre dá
ficou fora da pauta da sessão extraordi- preferência [na eleição proporcional] às
nária daquele mês (Cruvinel, 2003a). No legendas que têm candidato a presidente.
mesmo mês de julho, começaram a apare- Por esta mesma razão, o PTB e o PP se
cer os primeiros sinais de que a chamada posicionaram contrários ao voto em lista
“bancada evangélica” se posicionara con- (Franco, 2003).
tra esta reforma (Braga; Cruvinel, 2003b).
Depois da divulgação, em 13 de
Finalmente, em 3 de dezembro de fevereiro de 2004, do vídeo onde o
2003, a Comissão Especial aprovou o então Chefe da Assessoria Parlamentar
parecer do relator por 26 votos contra do Governo Lula, Waldomiro Diniz, pede
11, com um ausente – mas esta decisão contribuições tipo “caixa dois” ao bichei-
deixou a base do governo Lula dividida ro Carlos Ramos [Carlinhos Cachoeira],
(Franco, 2003). Assim, ficou patente que em março de 2002, no início da sessão
a tramitação na CCJ em 2004 não seria ordinária, o Presidente da Câmara dos
fácil. O PMDB e o PFL tiveram um voto Deputados, Dep. João Paulo Cunha (PT-
contra cada, mas o “bloco dos partidos SP), tentou acelerar a tramitação do PL nº
médios” fechou questão contra a reforma 2679/2003 no primeiro semestre, justa-
política (Quadro 2). Todos os 9 deputados mente por causa do financiamento público
representando o PTB, PL e PP na Comissão exclusivo das eleições. Nisso, até o então
votaram contra. Todos os 5 deputados do Líder do Governo, Dep. Miro Teixeira (sem
PSDB votaram a favor e, dos 6 deputados partido-RJ), ficou contra – para não pare-
do PFL, apenas um votou contra. Estes cer um “casuísmo”, decorrente do “caso
dois partidos (aliados no Governo F.H. Waldomiro”, ou parte de uma “agenda
Cardoso) tradicionalmente trabalhavam positiva” (Franco, 2004).

130
DAVID FLEISCHER

Por outro lado, o cientista político tidas as eleições diretas para a Câmara”
Jairo Nicolau lembrou que “o financiamen- (Franco 2004).
to público, com fiscalização e punições, é O último lance deste embate na
a melhor opção para reduzir escândalos” Câmara foi a substituição do Líder do
(Nicolau, 2004). Na contra mão, o Prof. Governo (Miro Teixeira) pelo Dep. Prof.
Wanderley Guilherme dos Santos se posi- Luizinho (PT-SP), em 1º de abril. Ao mesmo
cionou radicalmente contra esta reforma, tempo, Miro se filiou ao PPS (partido forte-
no que concerne à lista fechada que, em mente a favor da reforma).
seu modo de ver, tolheria a “liberdade” do
eleitor de “escolher” o seu candidato:
Conclusões
O voto em lista fechada encarcera o Por volta de 2000 e 2001, após a
eleitor, o qual, hoje, pode votar na lista aprovação de vários pontos do “Relatório
partidária (a legenda do partido) ou em Sérgio Machado” pelo Senado Federal e
candidatos individuais. A proposta impede vendo a impossibilidade da Câmara tra-
o eleitor de escolher o seu representante,
incumbindo a usurpadores a tarefa de
mitar estas propostas de reforma política,
decidir a quem seu voto irá eleger. Dizem inusitadamente, lideranças do PFL e do PT
que isto elevará o padrão moral da conseguiram elaborar vários pontos em
democracia brasileira (Santos, 2004). comum para mudanças no sistema polí-
tico-eleitoral brasileiro – mas não houve
No dia 4 de março de 2004, os líde- tempo hábil para aprová-los antes do
res do PTB, PL, PP e PDT se recusaram a decurso de prazo para o pleito de 2002.
assinar o pedido de urgência para votar
Como vimos acima, novamente estes
a reforma política (Lima). Diante destas
dois partidos, em lados opostos do jogo
pressões (que incluíram ameaças do PTB,
político em 2003-2004, ainda conservam a
PL e PP de obstruir todas as propostas do
mesma comunhão de idéias quanto a esta
governo na Câmara), em 9 de março o PT
reforma. Quando o Presidente da Câmara
retirou o regime de urgência da reforma
insistiu em aprovar a urgência para votar
política (Seabra, Braga e Caetano). A
e aprovar esta reforma, ainda no primeiro
urgência até que tinha apoios suficientes
semestre de 2004, os partidos médios que
para a sua aprovação (com o apoio do
supostamente seriam lesados (PTB, PL e
PSDB e PFL), mas deixaria a base do gover-
PP) invocaram o “Caso Waldomiro” para
no rachada – coisa inoportuna, justamente
imperrar a tramitação. Por outro lado,
num momento quando o Governo Lula
muitos deputados estavam pressionando
mais precisava de união das suas forças
para a “liberação” das suas emendas [orça-
políticas. Às vésperas do Carnaval, dois
mentárias] para reforçar as campanhas de
experientes deputados do PSDB afirmaram
aliados no pleito municipal deste ano.
que o financiamento público exclusivo
é incompatível com o atual sistema de Para quase todos os observadores,
voto em listas abertas (Ferreira e Almeida). a combinação entre a votação em lista
Lembrando os senadores “biônicos” elei- fechada com o financiamento exclusivo
tos em 1978, o Líder Miro Teixeira bradou: das campanhas (especialmente as propor-
“O projeto cria o deputado biônico. Vou cionais) é inseparável. A solução “miner-
para as ruas reivindicar que sejam man- va” [ou “mineira”] dada pelo mecanis-

131
ENSAIO

mo da “federação de partidos”, ao invés estas três legendas se sintam ameaçadas


das tradicionais coligações nas eleições no próximo pleito proporcional, caso a
proporcionais, operou para “preservar” a reforma seja aprovada da maneira como
identidade (e sobrevivência) dos pequenos saiu da Comissão Especial. Resta saber se,
partidos, foi inovadora. re-estabelecida a sua liderança equilibrada
Infelizmente, a visão política e a na Câmara no primeiro semestre de 2004,
modus operandi dos partidos médios o Governo Lula teria tempo hábil para
(PTB, PL e PP) em eleger deputados via aprovar esta reforma. Ou se não seria
financiamentos maciços de pessoas físicas melhor deixar a poeira do pleito municipal
e jurídicas, apoios de certos grupos e baixar, para em 2005 empreender uma
segmentos do eleitorado a “nomes” a estes tentativa final, incluídas mais negociações
ligados, e o uso político da “migração” de políticas na CCJ em relação aos pontos
deputados para “engrossar” as suas legendas mais polêmicos.
(e a “chantagem fisiológica”) faz com que

QUADRO 1 – Migração Partidária na Câmara dos Deputados, 2002-2004


2002 2 0 0 3 2004
Partido
Out.* Fev. Junho Ago. Out. Abril**
PT 91 91 93 93 94 90
PMDB – – 68 78 78 78
PTB 26 41 48 52 53 52
PL 26 33 33 40 42 45
PSB 22 28 29 16 16 20
PDT 21 18 15 14 12 –
PPS 15 21 19 19 21 22
PDdoB 12 12 11 11 11 09
PPB/PP – – 47 48 48 54
Outros 15 08 07 07 06 09
Governo 218 252 370 378 381 379
% 57.5 50.9 29.9 26.3 25.7 26.1
TOTAL 513 513 513 513 513 513

PFL 84 76 72 68 66 63
PSDB 70 63 63 55 52 50

132
DAVID FLEISCHER

PMDB 75 70 – – – –
PRONA 06 06 06 06 06 02
PPB/PP 49 44 – – – –
PDT - – – – – 13
Outros 03 02 02 06 08 06
Oposição 285 261 143 135 132 134
% 57.5 50.9 29.9 26.3 25.7 26.1
TOTAL 513 513 513 513 513 513
* - Eleitos em outubro de 2002.
** - Em 7 de abril de 2004.

QUADRO 2 – Votação do Parecer da Comissão Especial da Reforma Política* (em


3 de dezembro de 2003).

Partido A Favor Contra Ausente

PT 7 0 0

PMDB 4 1 0
PSB 2 0 0
PPS 0 0 1
PCdoB 1 0 0
PV 1 0 0
PP 0 3 0
PL 0 3 0
PTB 0 3 0
PDT 1 0 0
PFL 5 1 0
PSDB 5 0 0
TOTAL 26 11 1
* - Câmara (2003).

133
ENSAIO

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NOTAS
1
Um mecanismo de cláusula de barreira estaria vigorando para as eleições proporcionais em 2006, mas não tão rígido como na
Alemanha onde os partidos assim excluídos não elegem ninguém.

141
ENSAIO * JOÃO PAULO CUNHA

A Câmara dos Deputados e a


Democracia Brasileira no
Século XXI
Em 2003, Câmara e Senado come- quais o Brasil, então Reino Unido, envia-
moraram 180 anos de presença do Poder ra seus delegados. Estes, porém, de lá
Legislativo no Brasil. Foi o parlamento ins- regressaram convencidos da necessidade
talado no ano de 1823, logo após o grito de a monarquia tropical também se cons-
de independência. Pouco tempo antes, titucionalizar, mas com independência de
em 1821, a Metrópole portuguesa dera os Portugal.
primeiros passos em direção ao regime de Declarada esta, convocaram-se elei-
monarquia constitucional, que superaria ções para a Assembléia Geral, Constituinte
o absolutismo. Dera-se início em Lisboa, e Legislativa do Império do Brasil, a qual
na seqüência da vitoriosa Revolução se reuniu, pela primeira vez, em sessão
Constitucionalista do Porto, às ativida- preparatória, no dia 17 de abril de 1823
des das “Cortes Gerais, Extraordinárias e e, em sessão inaugural solene, no dia 3 de
Constituintes da Nação Portuguesa”, às maio do mesmo ano. A história de nosso

* Deputado Federal / Presidente da Câmara dos Deputados

142
SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

Legislativo se confunde, pois, com a histó- Essas preocupações só fizeram cres-


ria do Brasil independente. cer ao longo daquele século, repercutindo
Não nos cabe recapitular as vicissi- em autores como Ostrogorski, Lowell e
tudes pelas quais passou a legislatura entre Bryce, que olhavam também com suspei-
ção o aparecimento das massas e dos par-
nós, ao longo de sua história. Ela sobrevi-
tidos políticos organizados que as repre-
veu aos percalços, sobretudo durante os
sentavam.
retrocessos ditatoriais. Apesar de tolhida
em suas funções, nela nunca deixaram Essas entidades, na feição assumida
de fazer-se ouvir as vozes de oposição ao com o suceder das eleições, serviam para
arbítrio e de defesa das liberdades e do agregar as demandas do crescente eleitora-
estado de direito. Que se rememore terem do. Ao fazê-lo, retiravam da classe política
as lideranças parlamentares desempenha- a liberdade de ação de que antes tinha
do, no processo de abertura, que finalizou gozado. A atuação parlamentar passou a
o último ciclo autoritário pelo qual pas- ser cada vez mais partidária, em vez de
samos, decisivo papel, como intermedia- individual.
doras eficazes nas negociações entre o Ao mesmo tempo, os novos gru-
governo e os grupos da sociedade civil. pos sociais que entravam na vida políti-
Depois de levada a bom termo a ca aumentavam suas reivindicações. Para
abertura política e a retomada da demo- atendê-las, o Estado teve de expandir-se
cracia, o Congresso tem desempenhado como entidade prestadora de serviços e
um relevante papel na consolidação e no reguladora de atividades, num vasto espec-
aperfeiçoamento do regime. Que não se tro de políticas governamentais, deixando
esqueça, por exemplo, a condução equili- para trás a imagem do Estado do “laissez
brada do processo de impeachment de um faire, laissez passer”.
Presidente da República, certamente uma Nesse contexto, os partidos não
das provas mais difíceis pelas quais pode foram apenas os portadores passivos dos
passar o sistema presidencialista. pleitos do eleitorado, mas tornaram-se,
Apesar do protagonismo do nosso também, agentes da transferência de poder
Legislativo, não raro encontra eco entre do Parlamento para o Executivo, a qual foi
nós uma expectativa resignada, até cética, gradualmente ocorrendo. A assembléia aos
quanto à função desse poder no mundo poucos cedeu lugar à burocracia pública,
contemporâneo. Aliás, não é de hoje essa comandada, nos regimes parlamentares,
visão pessimista. Já no século XIX, autores por gabinetes que as maiorias partidárias
como Walter Bagehot e Stuart Mill olha- constituíam e que, gradualmente, foram
vam com temor a crescente ampliação do relegando a assembléia a funções rela-
eleitorado na Grã-Bretanha. Segundo eles, tivamente ancilares na determinação da
esse fenômeno iria alterar a composição política pública.
do parlamento, transformando os homens Nos meados do século passado, o
até então independentes, componentes da eixo das decisões deslocou-se ainda mais
chamada classe política, em uma minoria para fora do parlamento, quando as gran-
sem poder. des centrais sindicais e patronais, em con-

143
ENSAIO

jugação com o próprio governo, passaram Inúmeros estudiosos que se têm


a constituir foros para decisões de políticas debruçado sobre os parlamentos discor-
governamentais, sobretudo as macroeco- dam do diagnóstico pessimista. Esse diag-
nômicas, mediante os chamados arranjos nóstico é, na verdade, em boa parte, uma
neocorporativistas, até hoje vigentes em reação conservadora dos que vêem na
alguns países. expansão democrática apenas prenúncio
Como conseqüência dessas mudan- de inelutável declínio das instituições. Os
ças, teríamos, no mundo contemporâneo, Legislativos modernos têm-se mostrado, ao
a substituição, no debate político, do par- contrário, insubstituíveis no desempenho
lamento pelos partidos, órgãos de classe de tarefas básicas da política democrática,
e meios de comunicação de massa, e a as quais dificilmente poderiam levar-se a
perda de algumas de suas funções-chave cabo fora do parlamento.
para os arranjos neocorporativistas. Tomemos um ingrediente inarredável
Contudo, devemos cotejar essa da democracia, ou seja, a competição polí-
verificação pessimista sobre o papel do tica, a disputa de grupos e classes sociais
Legislativo no mundo contemporâneo com para conquistar o poder e, assim, ter seus
fatos e tendências que apontam em outra interesses tomados em devida conta e
direção. Se não, vejamos. efetivamente promovidos. Não se trata de
competição desregrada, um vale-tudo. Ao
A quem acompanhou as grandes contrário, tem de desdobrar-se sob a égide
transformações do final do século recém- de regras do jogo mutuamente consenti-
terminado, não pode ter passado desper- das, para que seu desfecho seja acatado.
cebida a instalação dos parlamentos nos
países que saíram de regimes ditatoriais, Ora, o parlamento é essencial para
ou sua revitalização e renovação, quando que a competição política se dê sob esse
não tinham sido extirpados, mas tinham marco regulatório estável, antes e depois
sobrevivido precariamente, privados de do momento eleitoral. O parlamento é,
poderes. Hoje, um país não ter um parla- precisamente, a instituição, aperfeiçoada
mento funcionando com razoável desen- sobretudo ao longo dos últimos duzentos
voltura, em cujo seio se abrigue uma opo- anos, cujas regras e procedimentos per-
sição, pode tomar-se, sem medo de errar, mitem, na entressafra eleitoral, que a luta
como indicador da presença de um regime política transcorra civilizadamente, e que
ditatorial. a solução dos conflitos siga uma forma
pactuada, para que todos os competidores
Mas constituiria essa revivescência
aceitem as decisões, em vez de se engalfi-
dos parlamentos apenas homenagem ritual
nharem em combates sem trégua.
a uma velha instituição, vista, desde Locke
e Montesquieu, como apanágio dos gover- Esse papel de foro institucional para
nos constitucionais e, posteriormente, com a competição política entre governo e
a participação popular ampliada, tam- oposição tem sido sobremodo importante
bém aceita como núcleo da própria idéia na evolução das democracias, inclusive a
democrática? Ou brotaria tal fenômeno de nossa, pela capacidade que a legislatura
impulsos mais profundos? tem demonstrado de incorporar novos

144
SUSANNE GRATIUS
JOÃO /PAULO
DELFETCUNHA
NOLTE

grupos à representação política. Ela o a verdade é, ao contrário, ser bastante


faz por via de partidos que expressam as circunscrito seu papel. Há áreas da polí-
reivindicações de setores antes privados tica pública que lhe escapam, porque não
da cidadania. Dentro da assembléia, no é ele o foro adequado para decidi-las.
plenário e nas comissões, habilitam-se tais Maurizio Cotta lembra, por exemplo, não
grupos a usar dos meios institucionais para se poder pensar em fazer a política externa
fazer que sua perspectiva seja levada em por acordos neocorporativistas. E, sendo o
conta. Sem a instituição parlamentar, aqui governo um dos parceiros nas negociações
e em outras partes, a luta política seria tripartites, entabuladas mediante os arran-
uma confrontação contínua, via luta arma- jos neocorporativos, se ele quer continuar
da. A força, não o direito, iria prevalecer. como um governo democrático, sua polí-
Quando esse é o caminho tomado, dificil- tica tem de ter o próprio parlamento como
mente há desfecho democrático. partícipe decisivo. Na forte expressão de
Ao contrário, sabemos que, mesmo Cotta, um Executivo sem contrapartida de
nos sistemas políticos de participação limi- um Legislativo capaz de oferecer espaço
tada – assim se configuravam politicamen- político à oposição degeneraria em um
te as sociedades européias que primeiro se órgão autocrático.1
liberalizaram –, quando os estratos popula- Uma outra tendência contemporâ-
res adentraram a vida política, já encontra- nea merece comentário, sem embargo das
ram à sua disposição, em funcionamento, ponderações anteriores sobre a continu-
um conjunto de mecanismos para a solu- ada relevância da instituição parlamen-
ção de conflitos e a tomada de decisões, tar na democracia contemporânea. Temos
de que também puderam valer-se na defe- em mente a assunção, pelos Executivos,
sa de seus interesses. Jogando o jogo sob de acrescidos poderes legislativos, entre
as regras preestabelecidas, descobriram outros aspectos pela faculdade de legislar
que, aumentando a cada eleição seu peso por decretos, fenômeno acentuado nas
parlamentar, ganhavam poder e conse- últimas décadas do século passado.
guiam prevalecer em muitas negociações
e decisões, até, finalmente, conquistarem Guillermo O’Donnel tentou singula-
o governo. Em suma, o parlamento mos- rizá-lo para democracias como a brasileira,
trou-se um dos lugares institucionais por a argentina e outras, saídas de regimes que
excelência para, quer no parlamentaris- ele intitulou “burocrático–autoritários”.
mo, quer no presidencialismo, a oposição Tratar-se-ia da “democracia delegativa”.2
democrática ter voz e voto, e preparar-se Para O’Donnel, ganhou corpo, com
para assumir o poder. a nova onda de democratização, um “sub-
Que dizer dos arranjos neocorpora- tipo de democracia”, constituído de regi-
tivos? Apesar das críticas que a eles foram mes que não parecem prestes a regre-
dirigidas – e que entre nós se repetiram, dir para o autoritarismo, mas, tampouco,
quando o Presidente Luiz Inácio Lula da parecem caminhar para uma “representa-
Silva criou o Conselho de Desenvolvimento tividade institucionalizada” maior. Neles,
Econômico e Social – de que até esta- o Congresso e o Judiciário aparecem como
riam usurpando funções do parlamento, incômodos que se têm de aceitar para o

145
ENSAIO

país poder usufruir as vantagens internas O'Donnel se mostra particularmente


e externas de ter “um presidente demo- alérgico à gestão econômica da "demo-
craticamente eleito”. A obrigatoriedade de cracia delegativa", a qual contrastaria em
prestar contas (accountability) a outras ins- extremo com a tomada de decisões pró-
tituições seria ainda relutantemente aceita. pria da democracia representativa. Nesta,
A “democracia delegativa” pode até ser, as medidas passam pelo crivo de vários
em virtude de seu lado plebiscitário, mais poderes, cada um com poder de veto.
democrática do que a democracia repre- As decisões surgem de processos lentos,
sentativa clássica, mas certamente, obser- passo a passo, mas a implementação delas
va O’Donnel, é menos liberal que esta. é mais segura e os erros, cuja responsabi-
Os novos regimes tenderiam a insular lidade é compartilhada por muitos, podem
politicamente decisões básicas, confiando- ser detectados antes que seja tarde. Com o
as aos tecnocratas, sobretudo nos assuntos "decretismo" da democracia delegativa, as
econômicos, e a relegar e descartar as decisões são rápidas, mas não evitam erros
resistências do legislativo, dos partidos ou grosseiros e sua implementação é incerta.
das associações às medidas por eles pro- Sem dúvida, a democracia delegativa
postas. de O'Donnel descreve muitas caracterís-
As democracias delegativas parecem, ticas dos nossos regimes pós-autoritários.
assim, estar conservando traços dos regi- Seu ensaio data do auge dos pacotes eco-
mes burocrático–autoritários a que sucede- nômicos e das medidas de choque, aqui e
ram, o que tentam justificar por se estarem em outros países.
debatendo com sérias crises econômicas Entretanto, esse conceito, muito cola-
e sociais, exigentes de medidas de urgên- do a uma certa conjuntura latino-america-
cia e alta necessidade. A diferença com na, parece apenas extremar tendências
relação ao regime anterior é que, agora, o presentes nas próprias democracias con-
Congresso e os partidos podem criticar as solidadas a que O’Donnel se refere. O
políticas do governo; os tribunais podem predomínio do Executivo sobre os demais
impedir medidas flagrantemente incons- poderes extrapola de muito o subconjunto
titucionais, e os sindicatos e associações das democracias delegativas. Que se lem-
patronais não são impedidos de reclamar e bre a força dos gabinetes britânicos, que
combater as políticas de que discordarem. reduzem o parlamento, como assembléia,
Esses elementos democráticos seriam a foro de debates, ou o “decisionismo”
reais na democracia delegativa, mas, com- que vai e volta na Itália, pátria, aliás,
parada com as democracias consolidadas, das medidas provisórias, inclusive de sua
os poderes do Executivo não são devida- reedição. O semipresidencialismo francês
mente contrabalançados por outras ins- dota o gabinete de extraordinária força,
tituições relativamente autônomas, com sobretudo nos períodos em que presidente
capacidade de "questionar e eventual- e primeiro-ministro pertencem à mesma
mente punir maneiras 'impróprias' de o maioria partidária. Por toda parte, no con-
ocupante do cargo(...) cumprir suas res- tinente europeu, fala-se de “parlamentaris-
ponsabilidades". mo racionalizado”, ou seja, sistemas não

146
SUSANNE GRATIUS
JOÃO /PAULO
DELFETCUNHA
NOLTE

sujeitos à paralisia de decisões, porque é Por outra parte, instrumentos como


dada ao Executivo a capacidade de ver as “medidas provisórias”, ainda que neces-
seus projetos aprovados com celeridade sários – como o próprio constituinte de 88
e praticamente não emendados. E, na reconheceu, apesar do estado de espírito
democracia norte-americana, o uso, pelo por todas as razões avesso, à época, à
presidente, de seu poder de decreto – as preponderância do Executivo, vista como
ordens executivas – tem sido freqüente e parte do entulho autoritário – devem
sua abrangência é cada vez maior. conhecer limites, como não cessam de
alertar expoentes de nossos meios jurí-
Ao examinarmos a nova realidade, dicos. Não se pode ignorar os grandes
é preciso, primeiramente, deixar de ver problemas de segurança jurídica que um
a democracia como um regime pronto arcabouço legal construído com recurso
e acabado, que possa permanecer imu- tão abundante como as MP´s traz. Afinal,
tável quando o mundo ao redor está em normas criadas por MP´s podem também
constante transformação. O mundo glo- se modificar por novas MP´s, o que não é
balizado exige uma presteza de resposta muito tranqüilizador diante da necessida-
governamental desconhecida em outros de de normas estáveis.
tempos. Por mais bem organizado que seja
A Emenda Constitucional nº 32/2001
o Poder Legislativo, por mais centralizados
sem dúvida aperfeiçoou a sistemática das
que sejam seus mecanismos de decisão, Medidas Provisórias, em particular por
trata-se sempre de um grande colegiado, delimitar com clareza as matérias que lhe
cuja lógica de funcionamento não é, nem são vedadas e limitar-lhes a reedição. Com
pode ser, a mesma do Executivo. Por isso, essas vedações, diminuiu-se a irrestrita
é errôneo, como freqüentemente se vê, delegação de antes. Contudo, na prática, a
encarar o uso do “poder de decreto” pelos nova mecânica tem trazido problemas ao
governos como constituindo sempre uma funcionamento do Legislativo, sobretudo
usurpação e, da perspectiva da assem- pelo “trancamento de pauta” que provoca,
bléia, uma abdicação de competência. quando também outras matérias relevantes
A tendência generalizada de recurso precisam de deliberação. Ainda temos de
ao “decretismo” revela haver causas mais obter um melhor ajuste entre os dois pode-
profundas em operação do que a simples res no uso do instituto emergencial, que
volúpia de poder de governantes, em cum- deve ser mais parcimonioso por parte do
Poder Executivo.
plicidade com parlamentares pouco iden-
tificados com sua missão e pouco ciosos Os que estudam o indiscutível predo-
de sua competência legislativa. mínio do Executivo, por toda parte, na ini-
ciativa legislativa, quando não na própria
Estamos diante de um dos problemas
legiferação – pois, com os decretos com
magnos da democracia de hoje, no que
força de lei, a lei já vem pronta do próprio
diz respeito a uma redefinição dos papéis governo – têm apontado, todavia, para
dos dois poderes, num mundo em que diferenças entre as legislaturas dos países
as decisões têm de ser céleres e as crises democráticos. Algumas logram exercer um
externamente geradas se sucedem a curtos papel mais decisivo na produção legal do
intervalos. que outras.

147
ENSAIO

Esse papel decisivo já não é de Câmara não constitui, para numerosos


exclusividade na legiferação, mas signi- parlamentares, o horizonte de sua “car-
fica não ser o Legislativo apenas foro de reira” política. É apenas um estádio numa
debates, senão também instituição com carreira em geral orientada para postos no
capacidade de afetar a própria legifera- Executivo, sobretudo os de nível infrana-
ção. O Legislativo exerce, também, função cional (prefeituras e secretarias de estado).
transformativa, ao trabalhar e aprimorar os A maioria dos representantes norte-ame-
projetos que recebe, ou ao processar os de ricanos, ao contrário, pensa na carreira
sua própria iniciativa. legislativa como horizonte de longo prazo,
O que distingue os parlamentos mais uma opção de vida. Nela os deputados
efetivos, com maior capacidade transfor- investem seu tempo, esforços e ambição.
mativa, dos demais, é sua própria orga- E a comissão é o lugar fundamental para
nização interna, sua institucionalização, desenvolver a carreira parlamentar bem-
sobretudo quando contam com um forte e sucedida.
complexo sistema de comissões. Entre nós, não existe um sólido prin-
Nossa Câmara dos Deputados dispõe cípio de antigüidade, de tempo de serviço
de comissões permanentes, com juris- do parlamentar na instituição, ao contrário
dições regimentalmente definidas. Ainda do que se dá no Congresso norte-ame-
não chegamos, porém, a institucionaliza- ricano, em que a chamada seniority é
ção satisfatória nesse particular. Ainda não respeitada. Seniority significa recompensa
preenchemos algumas condições impor- ao tempo de serviço. Quando existe, o
tantes para lográ-la. Vejamos alguns dos deputado é estimulado a investir no tra-
problemas pendentes. balho de comissão, a nela permanecer
por longo tempo, pois, quanto mais nela
Para as comissões desempenharem permanecer, quanto mais dominar seu
em plenitude o papel que delas se espera, campo temático, tanto maior o seu poder
deveria haver incentivos para a especia- parlamentar. Na House of Representatives
lização dos parlamentares nos assuntos norte-americana, os presidentes de comis-
sobre os quais cada uma tem jurisdição. sões e subcomissões são os parlamentares
A especialização advém não apenas da que nela vêm servindo ao longo de vários
formação profissional, do setor de ativida- mandatos.
de social e econômica a que o deputado
está vinculado, enfim, de sua experiência No Brasil, praticamente proibimos
prévia, mas, também, do investimento de regimentalmente a carreira no âmbito da
seu tempo nos assuntos de que o colegia- comissão, pois seus cargos de comando
do trata. Esses incentivos são limitados, devem renovar-se anualmente, além de
porém, exceto no caso dos presidentes da haver grande rotatividade entre os pró-
comissão e de seus relatores. prios membros das comissões. Haveria
que repensar o problema, sem, entretan-
Diferentemente de outras legislaturas to, ignorar a complexidade de reforçar o
– sobretudo o Congresso norte-americano, sistema de comissões e ao mesmo tempo
exemplo mais relevante para nós, por se buscarmos solidificar os partidos políticos.
tratar de um sistema presidencial –, nossa As partes de um sistema político se inter-

148
SUSANNE GRATIUS
JOÃO /PAULO
DELFETCUNHA
NOLTE

relacionam. Comissões fortes, compostas dução de seus estudos. Chamo a atenção,


por parlamentares especializados e com também, para a disponibilidade, em nossa
extensa folha de serviços em suas ativida- página na Internet, dos Anais da Câmara,
des, não existirão no vazio. Ao contrário, desde os do ano de 1826. O acesso a essa
podem entrar em choque com partidos rica fonte é fácil, não havendo, doravante,
mais coesos e disciplinados, que procu- desculpa para não se pesquisar a insti-
rarão controlar a produção da comissão. tuição por dificuldade na obtenção dos
A busca do equilíbrio entre os dois desi- dados. Igualmente, o acompanhamento
deratos constitui um desafio sem solução dos projetos aqui em tramitação é sim-
fácil, que temos, porém, de enfrentar. E os ples, podendo-se obter o texto integral das
estudiosos da Ciência Política, os publi- proposições e dos pareceres em todas as
cistas e os próprios parlamentares estão fases.
desde já convocados a ajudar a Câmara Enfim, a Câmara é uma instituição
dos Deputados com suas sugestões sobre responsável e transparente, como deve
como encará-lo. ser.
Devo assinalar os notáveis pro- Muitas vezes se infere, da obser-
gressos que as modernas tecnologias de vação externa, ser o papel da Casa mais
informação nos têm propiciado, e delas passivo na legiferação, menos transforma-
nos temos valido, para o aperfeiçoamento dor, pela preponderância do Executivo na
do trabalho parlamentar e, também, da iniciativa legislativa. A despeito, porém,
transparência deste perante a sociedade. de todas as deficiências que ainda existem
Quem entrar em nossa página da Internet e da grande premência de tempo sob as
terá pleno e rápido acesso às informações quais o órgão tem muitas vezes de deli-
relevantes sobre a atividade legislativa. berar, as proposições que aqui tramitam
A imprensa pode ter amplo conhe- passam por cuidadoso escrutínio, negocia-
cimento de nossas lides, e a comunida- ção, inclusive com o outro Poder, e apri-
de acadêmica brasileira que se dedica moramento. Rara a proposição que aqui
aos estudos do Legislativo tem podido, deixa de sofrer mudanças, via emendas. A
nos últimos anos, ter acesso à abundante votação nominal, cujo dado fica registrado
massa de dados para tratar, com metodo- e tem sido objeto de estudos acadêmicos,
logia científica, o que a Casa faz. Mediante é apenas a culminância de uma complexa
análise de nossas votações nominais, por tramitação em que, em vez de simples
exemplo, têm-se feito numerosas inferên- delegação ao Executivo ou abdicação de
cias sobre o papel do Legislativo na Nova poderes, a Câmara desempenha a função
República, sobre a força dos partidos na que lhe é própria no sistema de separação
atividade parlamentar e sobre o relacio- de Poderes.
namento entre os Poderes. Neste primeiro Para preencher essa função de modo
número de Plenarium, publicam-se alguns mais satisfatório, a Câmara dos Deputados
textos de cientistas políticos, os quais se tem, ao longo dos últimos anos, inves-
têm valido do acesso rápido e confiável tido em assessoramento especializado.
aos dados da atividade legislativa na pro- Comparada com outras legislaturas presi-

149
ENSAIO

dencialistas, podemos dizer estarmos bas- guisa de exemplo, para não recuar muito
tante adiantados no assunto. De modo no tempo, citem-se, nesta Legislatura, entre
geral, as matérias sobre as quais temos de vários exemplos, a complementação da
deliberar podem ser tratadas com com- reforma da previdência social, a reforma
petência técnica, dentro obviamente das tributária ou o Estatuto do Desarmamento
limitações de tempo sob as quais temos (Lei nº 10.826/2003), e, em legislaturas
freqüentemente de funcionar, sobretudo, recentes, a Lei de Responsabilidade Fiscal,
como assinalado antes, com uma pauta acoplada com a de Crimes Fiscais, a Lei
de decisões em boa parte gerada pelo dos Partidos Políticos, a Lei das Eleições,
Executivo, e sob regime de urgência. a Lei do Refis, a Lei Complementar que
Outro ponto a realçar é a produtivi- acabou com o sigilo das instituições finan-
dade da Casa. Dos Poderes da República, ceiras, as Emendas Constitucionais de
nenhum mais exposto do que o Legislativo. Desvinculação das Receitas da União,
É fácil passar ao público uma imagem de criação da CIDE – combustíveis, das
deturpada, como se a Câmara fosse órgão Reformas Administrativa e Previdenciária,
desidioso. Focaliza-se o plenário vazio entre muitas outras peças legislativas fun-
fora do horário das discussões e delibe- damentais.
rações da “ordem do dia”, e tira-se fácil, Para concluir estas notas sobre a
mas deturpada, conclusão. É que, nesses Câmara dos Deputados, recordemos ter
momentos captados pela mídia, podem, passado nossa democracia, com as eleições
por exemplo, estar funcionando, a pleno de 2002, pelo prova crucial do regime, ou
vapor, as comissões, e isso não é mostrado. seja, a transferência do poder à oposição,
Podem estar os parlamentares em entrevis- com total respeito às regras do jogo e num
tas com autoridades do Executivo, veicu- clima de inteira normalidade institucional.
lando os pleitos de seus eleitores e regiões, Não se tratou, como em vezes anteriores,
e acompanhando-lhes o atendimento, ou de um simples rodízio de grupos das elites
recebendo líderes de seus Estados e simples governantes, extraídos das camadas altas
cidadãos, ou trabalhando em seu gabinete e médias que tradicionalmente exerceram
na redação de um complexo parecer ou o poder entre nós, mas sim da chegada à
pronunciamento. Todas essas atividades presidência de um líder popular vindo da
fazem parte de seu papel, apesar de serem classe operária.
menos visíveis. No novo patamar de nossa política,
Basta olharmos o que foi por nós neste século que se inicia, o papel da
votado nos últimos anos para vermos que Câmara dos Deputados será, mais do que
a Câmara nada fica a dever às assembléias nunca, decisivo. Ela não vai desempenhar
mais operativas. Aqui, expresso minha somente um papel reativo na elaboração
estranheza diante de uma visão quantitati- das reformas de que o País necessita, mas
vista, que julga nossa produção pelo núme- será, sobretudo, a oficina de um árduo tra-
ro de projetos apresentados, sem olhar- balho proativo, resultante dos embates, dos
lhes o teor e a relevância. O importante é acordos e das negociações entre as forças
deliberar sobre proposições significativas. políticas que, no seu interior, representam
Nesse particular, não nos saímos mal. À o diversificado eleitorado nacional. Nosso

150
SUSANNE GRATIUS
JOÃO /PAULO
DELFETCUNHA
NOLTE

Legislativo não se omitirá da missão que colaboração da pesquisa acadêmica com


dele espera o povo brasileiro nesta quadra o fazer parlamentar. Sobretudo, que consti-
tão rica de nossa história. tua mais um dos laços que unem esta Casa
Que a revista Plenarium, agora lan- à opinião pública, contribuindo, assim,
çada, seja, entre outras coisas, um foro para o reforço da democracia brasileira
fecundo de debate político, um lugar de nesse aspecto fundamental, que é a aber-
difusão e discussão de conhecimentos tura e a transparência das instituições em
sobre o Poder Legislativo e de estreita relação à sociedade.

NOTAS
(Footnotes)
1
Maurizio Cotta, verbete “parlamento”, em Norberto Bobbio, Nicola Mateucci e Giafranco Pasquino, org. Dicionário de Política, Brasília:
Editora UnB, 1986.
2
Guillermo O’ Donnel, “Democracia Delegativa?”, Novos Estudos/CEBRAP, 1991.

151
ENSAIO *ARLINDO CHINAGLIA / **ATHOS PEREIRA

Sobre a Reforma
Política
I – Diagnóstico como é o caso do sistema eletrônico de
Ninguém ignora que, desde que o votação e apuração de votos. Nesta área
povo foi às ruas, clamando por eleições construiu-se um sistema que está, sem
livres e diretas, o sistema político e elei- dúvida, na vanguarda mundial. E, se não é
toral brasileiro passou por transformações imune à fraude, certamente levanta sólidas
democráticas significativas. O país foi barreiras contra essa condenável prática
constitucionalizado, aquilo que se con- secular. Mas nem por isso o sistema polí-
vencionou chamar de entulho autoritá- tico brasileiro deixa de padecer de sérias
rio foi removido; estabeleceram-se, desde limitações. Aqui algumas delas:
então, eleições diretas em todos os níveis; No Brasil, o financiamento privado
foi instituída a liberdade partidária e de campanhas é escandaloso. Ele assegura
realizaram-se avanços até em campos uma desigualdade absoluta, não só entre
onde as expectativas eram mais modestas, os partidos, mas até dentro dos partidos,

* Deputado Federal / ** Chefe de Gabinete da Liderança do PT

152
de um candidato com relação ao outro, de entre grupos. A despolitização não contri-
uma fração partidária com relação à outra. bui em nada para a educação política do
E provoca, de quebra, as condições para a povo. As disputas proporcionais se trans-
prática do abuso do poder econômico de formam numa balbúrdia em que o que
forma que, freqüentemente, a vontade do menos conta são os programas defendidos
eleitorado sai deformada da urna, inde- pelos candidatos. As vitórias são conquis-
pendentemente das virtudes do sistema tadas na base do poder econômico ou, na
eletrônico de votação. melhor das hipóteses, pela articulação das
A ausência de regras destinadas a corporações e, só raramente, pelo chama-
assegurar um mínimo de fidelidade par- do voto de opinião.
tidária faz com que, quase sempre, as É correto considerar que as coliga-
siglas partidárias funcionem como meras ções são próprias dos sistemas democráti-
franquias e confere aos eleitos uma liber- cos. Mas também é correto considerar que
dade absoluta para trocar de sigla, sem a as coligações proporcionais mereceriam
menor preocupação em dar explicações uma normatização mais rígida. Se no
à sociedade ou, pelo menos, a seu elei- passado era aceitável que algumas corren-
torado. Essa permissividade certamente tes políticas perseguidas pela ditadura se
não contribui para fortalecer os partidos abrigassem sob o guarda chuva do MDB,
e, por conseqüência, serve para fragilizar hoje, quando todas podem se apresen-
a democracia já que, sem partidos fortes tar livremente à opinião pública, melhor
e representativos, o sistema democrático seria que cada uma se mostrasse com seu
tende a perder terreno. Ressalto que não próprio programa. Isso contribuiria para a
se trata de impor uma fidelidade partidária politização da sociedade e até para a mon-
rígida, assegurada por leis draconianas, tagem equânime de possíveis governos de
inclusive porque isso feriria a liberdade de coalizão. Já que, na inexistência de coli-
organização partidária. Além disso, nossa gações proporcionais, seria possível aferir
experiência na construção do PT ensina com precisão a força real de cada partido.
que é possível se obter um alto grau de Além disso, um dos efeitos de tirar o guar-
fidelidade partidária, independentemente da-chuva de certos partidos seria permi-
das leis, desde que se pratique a demo- tir-lhes se desenvolver sem a bengala dos
cracia interna no partido. Mas, tal como mais fortes. Andar sem bengalas fortalece
está hoje, a legislação favorece o indivi- os músculos. O PT cresceu sem usar guar-
dualismo e a corrupção, em detrimento da da-chuva nem bengala, fazendo alianças
construção de projetos que contem com o parcimoniosas, quase sempre mostrando
apoio consciente e consentido de frações sua própria cara ao eleitorado. Acho que
da sociedade. nossa experiência poderia ser tomada em
A inexistência de listas faz com que consideração.
as naturais disputas internas nos parti- Nenhum democrata pode ser um
dos, entre tendências e personalidades, se entusiasta de cláusulas de barreira. Mas
transfiram para a sociedade, o que fragiliza mesmo as democracias mais sólidas esta-
os partidos. Isso reduz a força do apelo belecem regras de representatividade para
programático e despolitiza as disputas, que os partidos consigam assentos em seus
reduzindo-as a brigas entre caciques ou parlamentos. A Constituição alemã, por

153
ENSAIO

exemplo, contém esse tipo de dispositivo nas mesmas eleições, 26.425.954 pessoas
e o Partido Verde alemão já esteve exclu- tinham direito a voto. Isto significa que o
ído do Parlamento por não ter alcançado quociente eleitoral em Roraima é 197.346
um número mínimo de votos. Quando dividido por 8, que é igual a 24.668. Ou
os verdes se viram excluídos, ninguém seja, um deputado federal em Roraima
acusou o sistema alemão de ser ditatorial. representa 24.668 eleitores. Já o quociente
Tampouco o PV alemão foi para os can- eleitoral no estado de São Paulo é obtido
tos do Parlamento choramingar por um pela divisão de 26.425.954 por 70, que é
jeitinho. Pelo contrário, foi para a socieda- igual a 377.513. Isto que significa que um
de debater suas propostas, exercitar seus deputado federal por São Paulo representa
músculos. Hoje voltou ao Parlamento e 377.513 eleitores. A divisão do quociente
participa do governo em aliança com a eleitoral de São Paulo pelo quociente de
social-democracia. Roraima mostra que o peso do eleitor de
É verdade que a lei não deve Roraima é 15 vezes maior que o peso do
prejudicar partidos que, mesmo pequenos, eleitor de São Paulo na composição da
tenham programas consistentes, história e Câmara dos Deputados.
um certo grau de inserção na sociedade. Esperamos que ninguém veja neste
Tampouco é correto que a lei seja objeto exercício algum tipo de bairrismo. Quando
permanente de burla, abrindo uma avenida falamos de eleitores de São Paulo, estamos
para a constituição de siglas cartoriais, falando com igual respeito para com todos
de aluguel, que quase sempre servem a os que moram em São Paulo e exercem seu
interesses pouco confessáveis. direito de voto naquele estado. Quando
No Brasil, a representação do povo usamos Roraima como exemplo não nos
na Câmara dos Deputados padece de move nenhuma má vontade para com os
severas deformações. Neste capítulo, a habitantes daquela unidade da federação.
Constituição de 1988 foi um retrocesso. Utilizamos o exemplo apenas para ilustrar
Antes dela, a legislação eleitoral estava um caso evidente de distorção que,
mais próxima de assegurar o princípio seguramente, não é da responsabilidade
democrático de que a cada eleitor deve dos eleitores de Roraima.
corresponder um voto. Quando estabeleceu Aos que porventura alegassem que
que a cada unidade da federação cabia esta distorção serve para dar equilíbrio
eleger no mínimo oito deputados federais político à nossa federação economicamente
e no máximo setenta, a Constituição de desequilibrada, eu lembraria que o
1988 provocou uma enorme deformação, equilíbrio político da federação é dado
através da qual discrimina quem mora no pelo Senado, onde a representação de
Centro-Sul, particularmente em São Paulo, cada unidade federada é igual. Cada uma
e assegura uma sobre-representação, tem três senadores e o Senado funciona
particularmente para os Estados do Norte como Casa revisora, por lá tramitam todas
e do Centro-Oeste. as matérias que tramitam na Câmara, o
A título de ilustração, temos um que também me parece questionável, mas
exemplo extremo: em Roraima, nas este assunto não está em pauta.
últimas eleições, tinham direito a voto
197.346 pessoas. No Estado de São Paulo,

154
ARLINDO CHINAGLIA / ATHOS PEREIRA

O quadro a seguir mostra como é a representação atual do povo, distribuído pelos


estados, na Câmara dos Deputados, e como seria se fosse aplicado o princípio democrático
de que a cada eleitor deve corresponder um voto:
UF ELEITORES DEPS_atual %/BR DEPS_IDEAL
AC 371.764 8 0,32% 2
AL 1.648.391 9 1,40% 7
AM 1.578.389 8 1,34% 7
AP 310.912 8 0,26% 1
BA 8.593.106 39 7,30% 37
CE 4.928.660 22 4,19% 21
DF 1.530.451 8 1,30% 7
ES 2.166.648 10 1,84% 9
GO 3.498.544 17 2,97% 15
MA 3.517.123 18 2,99% 15
MG 12.963.562 53 11,01% 56
MS 1.441.607 8 1,22% 6
MT 1.770.653 8 1,50% 8
PA 3.758.711 17 3,19% 16
PB 2.361.184 12 2,01% 10
PE 5.510.895 25 4,68% 24
PI 1.876.289 10 1,59% 8
PR 6.684.573 30 5,68% 29
RJ 10.432.531 46 8,86% 45
RN 1.960.717 8 1,67% 9
RO 917.657 8 0,78% 4
RR 197.346 8 0,17% 1
RS 7.412.691 31 6,30% 32
SC 3.879.940 16 3,30% 17
SE 1.183.607 8 1,01% 5
SP 26.425.954 70 22,45% 115
TO 801.184 8 0,68% 3
TOTAL 117.723.089 513 509

155
ENSAIO

Naturalmente a mediação está na foi confirmado também pela decisão de


essência da política. Por isso, não seria verticalizar as alianças eleitorais, tomada
surpresa se numa negociação sobre esta pelo TSE durante a campanha eleitoral de
matéria surgissem propostas no sentido de 2002. Possivelmente, a decisão de verti-
não se aplicar rigidamente o princípio de calizar tem seus méritos, mas foi tomada
que a cada eleitor deve corresponder um no lugar errado. Temos esperança de que
voto, mas visando a, pelo menos, reduzir a Câmara dos Deputados aprove uma PEC
as deformações atualmente existentes. que está tramitando nas comissões com o
objetivo de estabelecer regras precisas
Há ainda quem discuta a questão do
sobre o número de vereadores de cada
sistema de governo. Existem partidos que município e que, nesse movimento, dete-
são programaticamente parlamentaristas. nha a vocação legiferante de certos tribu-
Nós somos presidencialistas e conside- nais, mas incorpore as tendências morali-
ramos que esta é uma cláusula pétrea da zantes reveladas pelas cortes. O episódio
Constituição, consagrada em dois plebisci- serve também para lembrar ao Legislativo
tos pela vontade expressa da esmagadora o dever da celeridade. É inegável que
maioria da população. Consideramos, por- o Legislativo dormiu sobre esta matéria.
tanto, que não há espaço para discussão Tivesse sido mais ágil, os tribunais não
desta matéria. Recusamos também a idéia teriam tido espaço para legislar.
do voto distrital, sobretudo a idéia do voto
distrital puro, porque esta é uma forma Também caberia regular de forma
mais precisa a questão da mídia, tanto no
antidemocrática que exclui as minorias.
que diz respeito à distribuição dos espa-
Teoricamente, neste sistema, uma minoria
ços entre as diferentes correntes políticas,
expressiva pode ser completamente afas-
como no que diz respeito à propriedade
tada do parlamento mesmo que conquiste
de meios de comunicação que, freqüente-
49,9% dos votos em todos os distritos. Na
mente, são utilizados de maneira arbitrária
Inglaterra, nas eleições de 1979, o Partido
por oligarquias locais.
Conservador obteve 43,9% dos votos, com
isto conquistou 53,4% das cadeiras do par-
II – Uma reforma ampla
lamento. Os trabalhistas, com 36,9% dos
votos, ficaram com 42,2% das cadeiras; já Uma reforma política é assunto que
o Partido Liberal, tendo alcançado 13,8% concerne mais a filósofos e escritores como
dos votos obteve apenas 1,7% das cadeiras Platão, Aristóteles e Thomas Morus do que
do parlamento. Esta é uma evidente dis- a nós, militantes da política. De forma
torção. E o sistema distrital misto apenas alguma queremos menosprezar a contri-
atenua esta deformação evidente. buição desses autores; todos eles deixaram
grandes contribuições. Platão não somente
Finalmente, vale lembrar episódio foi o principal responsável pela preserva-
recente, quando dois tribunais superiores ção da memória de Sócrates, precursor de
decidiram baixar regras mais rígidas sobre toda a filosofia ocidental e que não escre-
a composição das câmaras municipais. via, como foi um grande pensador em
Inegavelmente, as decisões adotadas pelo todos os campos em que atuou, inclusive
STF e pelo TSE têm um cunho moralizador. na teoria política. Na prática política, que
No entanto, revelam uma surpreendente é espinhosa, aceitou ser assessor do tirano
vocação legiferante das duas cortes, o que de Siracusa e não se deu bem.

156
ARLINDO CHINAGLIA / ATHOS PEREIRA

Aristóteles pode ter deixado um lega- propostas de reforma política que tramitam
do de atraso para seus discípulos em maté- na Casa e reuni-las num projeto capaz
ria de ciências naturais. Seus sucessores de congregar o maior apoio possível nas
são culpados de transformar os ensinamen- diferentes bancadas partidárias da Casa.
tos do mestre em dogmas tão rígidos que, A tarefa foi levada a cabo. O projeto
ainda na Renascença, serviram para levar produzido não obteve a unanimidade dos
Galileu Galilei a renegar, para se subtrair à membros da Comissão, mas alcançou o
fogueira da Inquisição, sua correta compre- apoio de mais de dois terços dos deputados
ensão de um sistema solar em que a Terra que a compunham, o que não é desprezível.
gira em torno do Sol. Giordano Bruno não Esse placar foi alcançado porque houve o
teve a mesma sorte: por razões semelhan- esforço de todos para que se obtivesse um
tes ardeu nas labaredas inquisitoriais. Mas, mínimo divisor comum. Tal maioria foi
em ciências humanas, Aristóteles ainda construída, portanto, com concessões de
hoje é referência. todos os lados.
Thomas Morus escreveu a Utopia, O objetivo expresso na justificação
uma cidade ficcional perfeitamente justa. do projeto, produzido pela Comissão em
Morreu decapitado na torre de Londres. questão, é enfrentar os seguintes problemas
Mas seu sacrifício e seus escritos sempre do sistema político brasileiro:
representarão uma tentativa de contribuir
para melhorar o mundo. a) a deturpação do sistema eleitoral
causada pelas coligações partidárias
Fizemos esta divagação para mos- nas eleições proporcionais;
trar que considero justos os esforços teóri-
cos para compreender e para transformar a b) a extrema personalização do voto
sociedade, melhorando-a. Mas chegamos nas eleições proporcionais, da qual
a um momento da vida em que damos resulta o enfraquecimento das agre-
preferência a objetivos menos ambiciosos, miações partidárias;
mais exeqüíveis. Por isso, à luz da corre- c) os crescentes custos das campanhas
lação de forças presente, estamos lutando eleitorais, que tornam o seu financia-
para colocar em pauta uma proposta de mento dependente do poder econô-
reforma política pouco ambiciosa, mas que mico;
melhoraria substancialmente nosso sistema, d) a excessiva fragmentação do quadro
aprofundando seu caráter democrático e partidário;
conferindo-lhe maior transparência.
e) as intensas migrações entre legendas,
III – A reforma possível cujas bancadas no Legislativo osci-
lam substancialmente ao longo das
Ano passado, o deputado João Paulo legislaturas.
Cunha(PT-SP), Presidente da Câmara dos
Deputados, criou uma Comissão Especial Para fazer face à deturpação pro-
destinada a produzir uma proposta de vocada pelas coligações proporcionais
reforma política. Presidida pelo deputado oportunistas, episódicas e desprovidas de
Alexandre Cardoso (PSB-RJ) e relatada lastro programático, que contribuem para
pelo deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), uma permanente instabilidade do quadro
a tarefa desta comissão era estudar diversas político, a maioria da Comissão propõe

157
ENSAIO

a proibição das coligações proporcionais. Dada nossa cultura política, é de se


Mas adota a idéia de permitir a criação de esperar uma forte reação a esta proposta
federações partidárias. Com isso, o projeto que tem vários méritos. Alguns alegarão
mostra que quer preservar os pequenos inconstitucionalidade da iniciativa porque
partidos que têm história e programa, a Constituição assegura o voto direto e o
desde que eles aceitem fazer parte de uma voto em lista seria indireto. Essa alegação
federação permanente. procura ignorar que o voto de legenda, há
Ou, na expressão da justificação assi- muito admitido no Brasil, é uma espécie
nada pelo deputado Alexandre Cardoso: de voto em lista, e sua constitucionalidade
“Com o fim das coligações, a fórmula das nunca foi questionada. Por outro lado, a
federações, sobre a qual dispõe o projeto, Constituição reconhece a utilidade dos
permitirá aos pequenos partidos contornar partidos e seu papel de organizador da
o obstáculo do quociente eleitoral, desde vontade coletiva. Não poderia ser de outra
que haja o compromisso, legalmente esta- forma, a democracia direta dos gregos é
belecido, de estabilidade da aliança pelo inexeqüível nos dias de hoje, pela simples
período mínimo de três anos, pois funcio- razão de que vivemos numa sociedade
narão eles como um só partido.” Assim, de massas, o que requer a existência de
o legislador mostra-se disposto a criar um partidos fortes e bem organizados, capazes
quadro mais lógico para coligações parti- de organizar a expressão da vontade de
dárias, ao mesmo tempo em que cria as multidões.
condições para atenuar as exigências da Outros alegarão que a lista fechada
cláusula de barreira prevista para entrar atribui muito poder a partidos que podem
em vigor em 2006, desde que os partidos ser dominados por oligarquias ou por
se disponham a trabalhar por alianças mais caciques que, por definição, são imperme-
estáveis no seio de uma federação, o que áveis aos valores da democracia. Há que
garantiria ao eleitor a compreensão do se reconhecer que esta objeção procede.
sentido programático de seu voto. Já que Mas viver é muito perigoso, ensinava
as federações seriam entre partidos que Guimarães Rosa, pela boca de Riobaldo.
têm objetivos programáticos que se asse- Registrando que quem fala em risco e
melham e estariam dispostos a fazer alian- perigo, fala também em oportunidade,
ças duráveis, o que seria uma garantia de podemos supor que, com as listas, os
estabilidade política e, por conseqüência,
partidos tradicionais terão a oportunidade
administrativa.
de adotar práticas mais democráticas de
Com o objetivo de fortalecer as ins- administração interna. Já se disse aqui que
tituições político-partidárias e para colocar o PT, independentemente de leis, conse-
um freio ao individualismo exacerbado guiu se construir praticando a democracia,
das campanhas proporcionais, a Comissão e dentro de regras precisas. Nada impede,
resolveu propor a adoção do voto em portanto, que os partidos tradicionais
lista fechada pré-ordenada pelos partidos. venham a adotar práticas democráticas,
Desta forma, o eleitor votará no partido e se mais não fosse, porque numa sociedade
não mais em indivíduos. É assim que fun- que respira democracia, a insistência em
ciona em quase todas as democracias do práticas autoritárias certamente levaria ao
planeta. esvaziamento dessas siglas. Quem primei-

158
ARLINDO CHINAGLIA / ATHOS PEREIRA

ro perceberia isso seriam os próprios caci- A proposta da Comissão Especial


ques tradicionais. prevê a adoção do financiamento público
exclusivo das campanhas eleitorais. Tal
Portanto, a adoção da lista fechada
proposta visa estabelecer igualdade de
poderia criar a oportunidade dos partidos
condições entre os partidos envolvidos na
tradicionais adotarem práticas típicas do
disputa, facilitar a fiscalização das presta-
PT, como a realização de debates exaus-
ções de conta por parte da Justiça Eleitoral,
tivos em todos os níveis; realizar prévias
baratear as campanhas e coibir a corrup-
envolvendo o conjunto dos filiados de um
ção, a utilização da máquina do Estado e o
determinado estado, ou de um determi-
abuso do poder econômico, sobretudo por
nado município, para escolher quem será
parte dos candidatos preferidos pelos gran-
o candidato a governador ou a prefeito; des grupos empresariais, naturalmente os
escolher a direção nacional do partido mais propensos a esta prática condenável.
em eleições envolvendo o conjunto dos
filiados em todo o país, ou até decidir Muitos, baseando-se na má imagem
sobre questões políticas relevantes, como dos políticos, podem objetar que é absur-
fez o PT, quando, através de plebisci- da a idéia do financiamento público de
to nacional decidiu, em 1985, que não campanha. Já que os políticos desfrutam
compareceria ao Colégio Eleitoral que de tão grande má fama por que caberia
elegeu o Presidente Tancredo Neves e, em ao Estado financiar suas campanhas? A
1993, também em plebiscito nacional, a resposta é simples. O Estado, com a ado-
ção da lista fechada, não financiaria as
militância se pronunciou pelo sistema pre-
campanhas individuais dos políticos, mas
sidencialista de governo, contra a maioria
a campanha dos partidos, cuja fiscalização
do diretório nacional do partido, que era
seria relativamente simples. Por outro lado,
parlamentarista. Desnecessário dizer que,
é ilusório pensar que atualmente muitas
em todos esses episódios, quem ganhou
das campanhas não são financiadas, de
levou. Todos se submeteram à vontade da
maneira desregrada, pelo Estado. Todos
maioria.
deviam saber que muito do dinheiro priva-
Desnecessário dizer que, se apesar do gasto em campanhas eleitorais depois
dos argumentos acima alinhavados, não é ressarcido, via corrupção, aos doadores
for possível realizar um acordo, nada originais. Desta forma, através do financia-
impede que se busque mediações em mento público, teríamos campanhas mais
torno de uma proposta de lista através da curtas, mais baratas e mais educativas,
qual se elegeria somente a metade dos par- conduzidas pelas instituições partidárias
lamentares, enquanto a outra metade seria e sob um controle mais rígido da Justiça
eleita de forma proporcional. Este é um Eleitoral. Portanto a adoção da lista par-
método que é utilizado em alguns países tidária, acompanhada do financiamento
e que tem a virtude de permitir que o elei- público, seria um poderoso fator de politi-
tor corrija possíveis erros praticados pelas zação do debate eleitoral e de moraliza-
direções partidárias na formatação das lis- ção das disputas. Contribuiria muito para
tas. Ademais, nada impede que se aprove o avanço da democracia.
leis obrigando os partidos a funcionarem A proposta de reforma elaborada
de forma democrática. pela Comissão Especial preserva a cota

159
ENSAIO

destinada às mulheres nas listas partidá-


rias. E vai adiante quando destina trinta
por cento dos recursos do fundo partidário
ao estímulo e crescimento da participa-
ção política das mulheres e reserva, pelo
menos, vinte por cento do horário gratuito
nos meios de comunicação destinado a
cada partido à difusão da propaganda de
candidatas do sexo feminino. Com isso
procura-se ampliar no Brasil a aplicação
de experiências bem sucedidas que mos-
tram que, com estímulo, cresce a partici-
pação das mulheres na vida política, o
que quase sempre é um fator de equilíbrio
e de paz.
No tocante às pesquisas eleitorais, o
projeto da Comissão procura estabelecer
regras mais precisas com o objetivo de
coibir manipulações que freqüentemente
servem a objetivos obscuros. Com essas
novas regras, os institutos de pesquisas
terão suas responsabilidades aumentadas
e terão reduzidas suas possibilidades de
intervir indevidamente nos processos elei-
torais, como lamentavelmente é a prática
de alguns deles, pelo menos nas regiões
mais afastadas do país.
Como subentendido acima, a pro-
posta de reforma política elaborada pela
Comissão Especial pode não ser perfeita,
nem é essa sua pretensão. Ela é, no entanto,
a proposta possível para esse momento da
vida nacional. Sua aprovação pela Câmara
dos Deputados e, posteriormente, pelo
Senado Federal, representaria um grande
passo no aperfeiçoamento de nosso siste-
ma democrático e seria motivo de orgulho
para os parlamentares da atual legislatura,
porque serviria aos interesses da maioria
do povo e consolidaria a democracia em
nosso país.

160
Olhar
Externo

Salvador Dali

• Robert A. Pastor

161
OLHAR EXTERNO * ROBERT A. PASTOR

A Segunda Década da
América do Norte**
UM PRIMEIRO RASCUNHO comércio e o investimento chegaram perto
de triplicar; Estados Unidos, México e
O Acordo de Livre Comércio da
Canadá experimentaram um grau sem pre-
América do Norte (em inglês North
cedente de integração social e econômica.
American Free Trade Agreement, NAFTA)
Pela primeira vez “América do Norte” é
entrou em vigor em primeiro de janeiro
mais do que uma simples expressão geo-
de 1994, em meio a temores de perda de
gráfica.
empregos nos Estados Unidos e de gritos
revolucionários no sul do México. No Em 2000, as vitórias eleitorais de
entanto, em uma só década, as três nações George W. Bush, Vicente Fox e Jean
da América do Norte construíram um mer- Chrétien aumentaram ainda mais a espe-
cado maior do que o das quinze nações da rança de que a promessa de uma parceria
União Européia, e quase tão integrado. O trilateral poderia ser cumprida. No entan-

* Professor da Universidade da Geórgia, em Atlanta / USA. Texto publicado na Foreign Affairs, Fev/2004.
Tradução: Sérgio Bath

162
to, quatro anos depois, houve uma deterio- sentes, a América do Norte cometeu o erro
ração nas relações entre os três governos. oposto: quase não as criou.
Nenhum líder se refere à “América do O segundo choque recebido pelo
Norte” do modo como os europeus falam ente político norte-americano aconteceu
do seu continente. Com efeito, nos Estados em 11 de setembro de 2001. Se houves-
Unidos voltaram a surgir críticas e acusa- se uma parceria genuína, os líderes dos
ções à NAFTA nos debates entre os can- Estados Unidos, do México e do Canadá
didatos presidenciais. Passados dez anos, se teriam reunido em Washington, nos dias
chegou a hora de avaliar o que a NAFTA que sucederam a tragédia, para declarar
realizou e onde ela falhou, para determi- que o ataque tinha atingido toda a América
nar o caminho que deve seguir daqui em do Norte, e afirmar que responderiam em
diante. Quais devem ser as metas para a uníssono. Em vez disso, dada à ausência
segunda década da América do Norte, e o de instituições comuns, os governos rever-
que os líderes norte-americanos precisam teram a seus velhos hábitos. Agindo de
fazer para atingi-las? forma unilateral, Washington virtualmente
fechou suas fronteiras; os líderes mexicano
Na verdade, a NAFTA foi apenas o
e canadense responderam de forma ambi-
primeiro rascunho de uma constituição
valente, temendo a forma como poderia
econômica para a América do Norte:
reagir a superpotência zangada.
um documento deliberadamente sucinto,
destinado apenas a desmantelar barreiras Esses dois eventos foram oportunida-
ao comércio e ao investimento. Os seus des perdidas, e a criação do Departamento
arquitetos não fizeram planos, nem para o de Segurança Interna nos Estados Unidos
seu êxito, nem para as crises que confron- leva a América de Norte outra vez a uma
tariam. Embora a NAFTA tenha fornecido encruzilhada. Uma posição (a mais pro-
combustível para o trem da integração vável) consistiria em reforçar o controle
continental, não cedeu maquinistas para fronteiriço e impedir a movimentação,
guiá-lo. O resultado é que dois contratem- mesmo de amigos. O comércio e o inves-
pos, a crise do peso mexicano de 1995 e timento declinariam, as tensões subiriam,
os ataques terroristas de 11 de setembro de e a miríade de vantagens da integração
2001, ameaçaram descarrilar essa experi- começariam a ceder terreno.
ência de integração. Em um rumo alternativo, contu-
do, os temores na área de segurança
A crise do peso foi um golpe à eco-
serviriam como catalizadores para uma
nomia mexicana, assim como à confiança
integração mais profunda, o que exigiria
dos americanos e canadenses na integra-
novas estruturas para garantir a segurança
ção. Os autores da NAFTA haviam presu-
recíproca, promover o comércio e trazer
mido que, graças à mágica do mercado, a o México para mais perto das economias
eliminação das restrições ao movimento de primeiro mundo dos seus vizinhos. Só
de capital e mercadorias conduziria a uma pode haver progresso com uma liderança
grande prosperidade. No acordo não havia verdadeira, novas instituições cooperati-
nenhuma cláusula criando um mecanismo vas e uma redefinição de segurança que
para prever falhas do mercado ou para res- coloque os Estados Unidos, o México e o
ponder a elas. Enquanto a União Européia Canadá dentro de um perímetro continen-
criou um excesso de instituições onipre- tal, trabalhando juntos como parceiros.

163
OLHAR EXTERNO

AVALIAÇÃO DA NAFTA regiões que não comerciam com os Estados


Unidos passaram a crescer muito menos
Desde o princípio, a NAFTA foi sub- do que as outras: na verdade o problema
metida a críticas candentes, baseadas mui- não era a NAFTA, mas a sua ausência. No
tas vezes em previsões bizarras. Nos Estados México, os padrões ambientais melhora-
Unidos, o candidato presidencial Ross ram mais depressa do que os do Canadá
Perot preveniu a nação, mencionando um e dos Estados Unidos, e as eleições mexi-
“ruído gigantesco de sucção”, provocado canas de 2000 foram saudadas universal-
pelos empregos migrando dos Estados mente como livres e justas. Por outro lado,
Unidos para o México. Enquanto isso, embora o México e o Canadá se tenham
mexicanos e cana- tornado mais depen-
denses temeram que dentes do mercado
as suas economias americano, como os
fossem apropriadas opositores haviam
por empresas ameri- prevenido, o inverso
canas. Os opositores também ocorreu: o
previram que o livre comércio dos Estados
comércio iria erodir Unidos com os seus
os padrões ambien- vizinhos cresceu cerca
tais e trabalhistas de duas vezes mais
dos Estados Unidos depressa do que o
e do Canadá. comércio com o resto
Dessas pro- do mundo. De fato,
em 2000, os Estados
fecias, poucas se
Unidos importaram
transformaram em
36 por cento da sua
realidade. De fato,
energia dos parceiros
nos Estados Unidos,
mais importantes, o
os anos 1990 teste-
Canadá e o México,
munharam a maior
e as exportações para
expansão de empre-
esses dois vizinhos
go da sua história. foram 350 por cento
Embora tanto o México como o Canadá maiores do que as exportações para o
tenham atraído um volume considerável Japão e a China, e 75 por cento maio-
de novos investimentos americanos (pois res do que as exportações para a União
a NAFTA lhes dava acesso privilegiado Européia.
ao mercado dos EUA), a porcentagem
de empresas de propriedade americana Tanta coisa tem sido atribuída à
existentes nesses países não aumentou. Na NAFTA que é fácil esquecer que ela não
verdade, os investimentos canadenses nos passava de um simples acordo para des-
Estados Unidos aumentaram ainda mais mantelar a maior parte das restrições ao
depressa do que os investimentos america- comércio e ao investimento, ao longo de
nos no Canadá. dez anos. Com algumas notáveis exceções
(o tráfego de caminhões, madeiras e açú-
No México, a disparidade de renda car), onde os interesses econômicos ameri-
se ampliou, mas isso aconteceu porque as canos bloquearam um acordo, em grande

164
ROBERT A. PASTOR

parte a NAFTA teve êxito no que pretendeu do mundo, as exportações intra-regionais


fazer: barreiras foram eliminadas, houve cresceram de cerca de 30 por cento, em
um grande crescimento do comércio e dos 1982, para 56 por cento em 2001 (com-
investimentos. parado com 61 por cento para a União
Nos anos 1990, as exportações ame- Européia). Como acontece na indústria
ricanas para o México aumentaram quatro automobilística, que representa quase 40
vezes, passando de 28 bilhões de dólares por cento do comércio norte-americano,
para 111 bilhões, e as exportações para o boa parte desse intercâmbio é extra-indús-
Canadá mais do que dobraram, aumentan- tria ou extrafirma. Tanto as indústrias como
do de 84 bilhões de dólares para 179. Os as empresas se tornaram verdadeiramente
fluxos anuais de investimento direto dos norte-americanas.
Estados Unidos para o México subiram de No entanto, embora a NAFTA tenha
1,3 bilhões de dólares, em 1992, para 15 conseguido aumentar o comércio e o
bilhões em 2001. O investimento ameri- investimento, deixou de enfrentar alguns
cano no Canadá aumentou de 2 bilhões dos principais desafios do processo de
de dólares, em 1994, para 16 bilhões em integração. Falha que não só prejudicou
2000, enquanto o fluxo de investimento os três países interessados como abalou
canadense para os Estados Unidos cres- seriamente o apoio ao Acordo, impedindo
ceu, no mesmo período, de 4,6 para 27 assim que fossem aproveitadas todas as
bilhões de dólares. oportunidades para o seu progresso ulte-
As viagens e a migração entre os rior.
três países também aumentaram dramati- Em primeiro lugar, a NAFTA não se
camente. Só em 2000, as duas fronteiras voltou para o hiato de desenvolvimen-
foram cruzadas 500 milhões de vezes. to entre o México e seus dois vizinhos
Naturalmente, o impacto mais profundo setentrionais, diferença que na verdade
foi o das pessoas que cruzaram frontei- aumentou. Em segundo lugar, a NAFTA
ras e permaneceram no país visitado. O não planejou o próprio sucesso: infra-
censo de 2000 estimava existirem, nos estrutura e estradas inadequadas não con-
Estados Unidos, 22 milhões de indivíduos seguem suportar o aumento do tráfego,
de origem mexicana, dos quais cerca de e os atrasos resultantes elevaram o custo
5 milhões eram trabalhadores não docu- das transações no comércio regional mais
mentados. Quase dois terços deles chega- do que a redução causada pelas tarifas
ram aos Estados Unidos nas duas últimas eliminadas. Em terceiro lugar, a NAFTA
décadas. não se preocupou com a imigração, e nos
A América do Norte é maior do que anos noventa o número de trabalhadores
a Europa em população e território, e o não documentados nos Estados Unidos
seu produto bruto é de 11,4 trilhões de aumentou de 3 para 9 milhões (55 por
dólares, quantia que supera a da União cento deles, mexicanos).
Européia (e continuará superando, mesmo Em quarto lugar, as questões relativas
depois que a U.E. se expandir para 25 à energia não foram abordadas, falha dra-
nações, em maio de 2004): representa matizada pelo “apagão” catastrófico ocor-
um terço da renda mundial. Consideradas rido no Canadá e na região norte-ocidental
como porcentagem das exportações totais dos Estados Unidos, em agosto passado. Em

165
OLHAR EXTERNO

quinto lugar, não houve qualquer tentativa bros mais importantes são comparáveis
de coordenar a política macro-econômica, em termos de população e poder. O PNB
deixando os três governos sem um instru- per capita da nação mais rica da Europa
mento para prevenir desastres como a crise (Alemanha) é aproximadamente o dobro
do peso mexicano. Finalmente, a NAFTA da mais pobre (Grécia), enquanto o PNB
nada fez no campo da segurança, e por per capita dos Estados Unidos é quase seis
isso as conseqüências do 11 de setembro vezes o do México. O modelo norte-ame-
ameaçam agora prejudicar a integração ricano consta de um único Estado domi-
norte-americana. nante, e foi sempre movido pelo mercado;
é mais resistente à burocracia, mas mais
LIÇÕES ANTIGAS DA NOVA respeitoso da autonomia nacional do que
EUROPA acontece na Europa. São elementos que
O vínculo que une essas falhas é a irão sempre diferenciar os dois casos.
falta de uma autêntica cooperação trila- No entanto, a despeito dessas dife-
teral. Em vez de criar uma parceria con- renças, cinqüenta anos de integração euro-
tinental, o processo de integração assumiu péia são suficientes para ensinar aos norte-
quase sempre a forma de um duplo bila- americanos que eles precisam enfrentar as
teralismo: EUA-México e EUA-Canadá. falhas e externalidades de um mercado em
A recente negociação de acordos sobre integração, sejam elas crises monetárias,
“fronteiras inteligentes”, depois do 11 de degradação ambiental, ameaças terroris-
setembro, é um bom exemplo: em vez tas, impedimentos infra-estruturais ou hia-
de criar um padrão uniforme norte-ame- tos de desenvolvimento.
ricano, o governo de Washington assinou
com os seus vizinhos tratados separados, No princípio dos governos Fox e
embora quase idênticos. Em grande parte, Bush, houve um momento em que os líde-
a não adoção de instituições multilaterais res da América do Norte pareciam aceitar
tem sido deliberada. Muitas vezes os esse ponto. Em fevereiro de 2001, Fox e
canadenses pensam que sozinhos podem Bush endossaram em conjunto a Proposta
obter melhor resultado ao negociar com os de Guanajuato, que dizia: “Depois de
Estados Unidos (nada prova essa hipótese). consultas com nossos parceiros canaden-
E como atualmente Washington não está ses, faremos um esforço para consolidar
com disposição multilateral, o México tem uma comunidade econômica norte-ame-
sido o advogado solitário da cooperação ricana cujos benefícios se estendam às
trilateral. No entanto, uma integração bem áreas menos desenvolvidas da região e
sucedida exige uma nova forma de gover- aos grupos sociais mais vulneráveis dos
nança na América do Norte, baseada em nossos países”. Infelizmente, esse senti-
regras e reciprocidade. A experiência euro- mento nunca chegou a ser traduzido em
péia com integração tem muito a ensinar termos políticos (com exceção dos qua-
aos formuladores de políticas norte-ame- renta milhões de dólares da Parceria para
ricanos, desde que sejam compreendidas a Prosperidade, um programa simbólico,
as claras diferenças existentes entre os mas substantivamente trivial).
respectivos modelos.
Os três governos compartilham a
A unidade européia foi o fruto de culpa por esse insucesso. O principal obje-
duas guerras cataclísmicas, e os seus mem- tivo de Bush era abrir o setor do petróleo

166
ROBERT A. PASTOR

no México para investidores americanos, O subdesenvolvimento mexicano é uma


enquanto Chretien não demonstrou qual- ameaça à sua estabilidade, a seus vizinhos
quer interesse em cooperar com os mexi- e ao futuro da integração.
canos. De seu lado, Fox propôs uma agen- Neste particular, a experiência da
da excessivamente ambiciosa, com ênfase União Européia também é instrutiva. Entre
exagerada em uma reforma radical da 1986 e 1999, o PNB per capita dos qua-
política de imigração dos Estados Unidos. tro países mais pobres da União Européia
Sua proposta preconizava o aumento do cresceu de 65 para 78 por cento da média
número de trabalhadores temporários de todos os Estados-Membros, graças ao
legais, e a legalização de milhões de não livre comércio, ao investimento estrangei-
documentados. ro e a uma assistência
A resposta inicial generosa (0,45 por cento
de Bush foi polida, mas do PNB da União, anu-
ele não tardou a per- almente). Boas políticas
ceber que não podia por parte dos recipientes
aceitar essa proposta dessa ajuda, e o fato de
(consta que, em parte, que a assistência esta-
porque seu conselheiro va condicionada a essas
Karl Rove lembrou-o de boas políticas, fizeram
que de cada três mexi- também uma diferença
canos naturalizados, importante.
dois votavam no Partido Claramente,
Democrático). A ques- nem todos os recursos
tão da imigração ilegal assistenciais da União
continua sem solução. Européia foram bem
Em última análise, ela gastos, e a América do
é mais um sintoma do Norte pode aprender
que, uma causa: a única com essas falhas, bem
forma de reduzir a imi- como com os suces-
gração ilegal é fazer sos. Assim, a burocra-
com que a economia cia excessiva deve ser
do México cresça mais evitada, e a assistência
depressa do que a americana. deve concentrar-se em setores tais como
infra-estrutura e educação pós-secundá-
CUIDADO COM O HIATO ria, que têm um forte efeito multiplicador
sobre o resto da economia. Mas há duas
Para a segunda década norte-ameri-
lições que são básicas: o crescimento em
cana não há maior prioridade do que redu-
um país beneficia os outros, e a imposição
zir o divisor econômico existente entre o
de limites à volatilidade dos mais pobres é
México e o resto da NAFTA. Simplesmente
uma ajuda prestada a todos.
não pode haver uma parceria verdadeira
quando os habitantes de um país ganham, O México precisa de uma nova estra-
em média, um sexto do que ganham os tégia de desenvolvimento, financiada, em
indivíduos do outro lado da fronteira. parte, pelos seus parceiros norte-america-

167
OLHAR EXTERNO

nos. Para reduzir o hiato de desenvolvi- ainda piores. O Banco Mundial estima que
mento com os Estados Unidos em 20 por o México precisará gastar vinte bilhões de
cento, nos próximos dez anos, o México dólares por ano, nos próximos dez anos,
precisará sustentar uma taxa anual de para superar esse deficit na infra-estrutura.
crescimento de 6 por cento. Mesmo com Para corrigir tal disparidade, os três
essa taxa, superar completamente o hiato governos deveriam criar um Fundo de
levará décadas, mas uma estratégia susten- Investimento Norte-Americano e investir
tável que resulte em pequenas reduções duzentos bilhões de dólares em infra-estru-
anuais terá importante efeito econômico e tura, durante a próxima década. Washington
psicológico. E esse crescimento vai exigir daria 9 bilhões por ano, o Canadá 1 bilhão,
uma nova estratégia, baseada em investi- mas só com a condição de que o México
mentos públicos significativos e intensivos igualasse o montante global, elevando
de trabalho. gradualmente a receita tributária de 11
Embora em conjunto o México se para 16 por cento do PNB. No passado,
tenha beneficiado com a NAFTA, o livre Fox tentou,sem êxito, uma reforma fiscal,
comércio e o maior investimento estran- mas a oferta dos países vizinhos poderia
geiro distorceram o desenvolvimento e ajudá-lo a persuadir o Congresso a acei-
exacerbaram as tar esta e outras
desigualda- reformas. A
des existentes contribuição
dentro do país. dos Estados-
Noventa por Unidos seria
cento dos novos menor do que
investimentos se a assistência
concentraram européia dada
em quatro esta- aos Estados
dos, três deles Membros mais
no norte. Esses pobres, cor-
estados fronteiri- respondendo
ços têm crescido à metade da
dez vezes mais ajuda do gover-
depressa do que os do sul, atuando como no Bush ao Iraque.
um magneto para migrantes dessas regiões Por outro lado, o retorno do inves-
pobres. timento no México beneficiaria a eco-
A região fronteiriça pareceria ter uma nomia dos Estrados Unidos mais do que
desvantagem na atração dos investidores qualquer outro programa assistencial da
estrangeiros: o custo do trabalho é três história. Não seria necessário criar uma
vezes maior do que no sul, a reposição nova agência: O Banco Mundial ou o
anual da força de trabalho é de cem por Banco Interamericano poderiam adminis-
cento, a poluição e o congestionamento trar os fundos. Em última análise, melhores
são crônicos. Mas as estradas da fronteira estradas e melhor infra-estrutura atrairiam
para o sul estão em péssimas condições, investidores para o centro e o sul do país,
e outros aspectos da infra-estrutura são diminuindo assim a migração e as dispa-

168
ROBERT A. PASTOR

ridades de renda. As reformas tornariam Uma terceira instituição seria uma


também o México mais competitivo com Corte Permanente sobre Comércio e
a China. Investimento. A NAFTA criou “panels” para
tratar de conflitos numa base “ad hoc”, mas
PLANOS PARA A AMÉRICA DO tem sido cada vez mais difícil encontrar
expertos que não estejam envolvidos em
NORTE conflitos de interesse e, portanto, possam
A NAFTA não tem criado uma par- arbitrar disputas. Um tribunal permanente
ceria porque os três governos não muda- permitiria a acumulação de precedentes e
ram o modo como se relacionam entre fixaria as bases do direito comercial norte-
si. O duplo bilateralismo, alimentado americano. Impediria também a erosão
pelo poder dos Estados-Unidos, continua dos padrões ambientais e tornaria o pro-
a governar e a provocar irritação. O cessamento mais transparente.
acréscimo de uma terceira parte às dis-
O Canadá e o México há muito
putas bilaterais aumenta muito a possibi-
organizaram o seu governo para dar priori-
lidade de que os problemas venham a ser
dade às relações bilaterais com os Estados
resolvidos por regras, não pelo poder. Essa
Unidos. Só Washington está mal organizada
abordagem trilateral deveria ser institucio-
para abordar os temas relativos à América
nalizada em uma nova Comissão Norte-
do Norte. O Presidente Bush precisa levar
Americana. Diferentemente da Comissão em conta a medida em que os interesses
Européia, esparramada e intrometida, a internos dos Estados Unidos colidem com
Norte-Americana seria restrita, de natureza os dos seus vizinhos, designando, na Casa
consultiva, composta por apenas quinze Branca, um Conselheiro para Assuntos
personalidades eminentes, cinco de cada Norte-Americanos, que trataria de forma
país. Seu objetivo principal seria pre- inclusiva os temas da segurança geral,
parar uma agenda norte-americana a ser segurança nacional e os conselhos de
considerada pelos líderes nacionais em política interna, presidindo um grupo-
reuniões de cúpula bianuais, e monitorar a tarefa sobre a América do Norte, no nível
implementação dos acordos resultantes. do Gabinete, com a presença de todos os
Deveria, também, avaliar as formas órgãos interessados. Nenhum presidente
de facilitar a integração econômica, fazen- pode adotar uma política coerente com
do propostas específicas sobre temas de respeito à América do Norte sem essa
interesse continental, tais como a harmoni- reorganização maciça.
zação dos padrões ambientais e trabalhistas O ataque de 11 de setembro e a sub-
e a adoção de uma política sobre a com- seqüente resposta americana acentuaram
petição. O Congresso dos Estados Unidos um dilema básico da integração: como
deveria também fundir os grupos interpar- facilitar os fluxos legítimos de pessoas e
lamentares EUA-México e EUA-Canadá em mercadorias e, ao mesmo tempo, impedir
um único Grupo Interparlamentar Norte- a ação de terroristas ou contrabandis-
Americano. Isso estimularia os legisladores tas. Quando Washington virtualmente
a deixar de lançar denúncias, através das fechou suas fronteiras, depois do ataque,
fronteiras, para começarem a negociar do lado do Canadá formou-se uma fila de
buscando resolver problemas comuns. caminhões de quase quarenta quilômetros.

169
OLHAR EXTERNO

Empresas que trabalhavam com o sistema mas de transporte na América do Norte.


“just-in-time” começaram a fechar suas Conforme a conclusão de um relatório
fábricas. de membro do Parlamento canadense, de
A nova estratégia, exemplificada maio de 2000: “Na realidade, atravessar
pelos acordos sobre “fronteiras inteligen- a fronteira tornou-se mais difícil nos últi-
tes”, que já estava sendo discutida antes mos cinco anos ... Enquanto o comércio
do ataque, consiste em concentrar as ins- continental se expandiu enormemente, o
peções no tráfego de alto risco e usar uma mesmo não aconteceu com a infra-estru-
tecnologia mais eficiente para tratar com tura física que permite o deslocamento
rapidez o trânsito de pessoas e mercado- dessas mercadorias.”
rias de baixo risco. Esta abordagem, no As barreiras burocráticas à travessia
entanto, é muito limitada para resolver um de fronteiras tornam os problemas de infra-
problema tão fundamental. Agora, a criação estrutura “comparativamente menores”.
do Departamento de Segurança Interna, o Washington tem sido criticado por impor
“Department of Homeland Security”, sem aos caminhões mexicanos seus próprios
querer, é outra ameaça à integração. padrões de segurança, mas a verdade é
Superar a tensão entre segurança e ainda mais embaraçosa: há 64 diferentes
intercâmbio exige uma abordagem mais conjuntos de regulamentos de segurança,
corajosa à integração continental: uma 51 deles nos Estados Unidos. Uma sub-
união aduaneira norte-americana com comissão da NAFTA lutou para definir um
tarifa externa comum, que reduziria de padrão uniforme, tendo concluído que
forma significativa as inspeções na fron- “não há perspectiva” de se chegar a isso.
teira e eliminaria as incômodas regras A Comissão Nacional da América do
sobre a origem dos produtos, destinadas Norte deveria desenvolver um plano conti-
a negar, às mercadorias procedentes de nental integrado de transporte e infra-estru-
fora da NAFTA, o mesmo livre acesso. Os tura, que inclua novas rodovias norte-ame-
três governos precisam também repensar o ricanas e corredores ferroviários de alta
perímetro continental. velocidade. Os Estados Unidos e o Canadá
Juntamente com a tarifa externa devem desenvolver padrões nacionais de
comum, deveriam criar uma Força Norte- peso, segurança e configuração dos cami-
Americana Alfandegária e de Imigração, nhões, e depois negociar com o México
composta por funcionários treinados em para estabelecer um único conjunto de
conjunto em uma única escola profis- padrões.
sional, e formular procedimentos para
Além disso, Estados Unidos e Canadá
agilizar a documentação apresentada ao
deviam começar a fundir suas políticas de
cruzar as fronteiras. Ainda mais importan-
imigração e de tratamento dos refugiados.
te, o Departamento de Segurança Interna
Vai ser impossível incluir o México nesse
deveria ampliar sua missão para incluir a
processo até que o hiato de desenvol-
segurança continental, o que será melhor
vimento diminua. Entrementes, os três
executado se incorporar pessoal e perspec-
governos deveriam desenvolver um passa-
tivas do México e do Canadá nas etapas de
porte norte-americano, disponível sucessi-
planejamento e operação.
vamente, cada ano, a um grupo maior de
Mas os obstáculos de segurança cidadãos.
constituem só o princípio dos proble-

170
ROBERT A. PASTOR

Finalmente, os governos norte-ame- monitoramento externo das suas eleições;


ricanos podem aprender com os esforços os Estados Unidos, como desculpa para
desenvolvidos pela União Européia para privilegiar os “direitos dos Estados”, em
criar nos Estados-Membros centros educa- confronto com os direitos humanos. Em
cionais e de pesquisa. Centros de estudos cada caso, a soberania foi empregada para
norte-americanos nos Estados Unidos, no defender políticas errôneas. Os países se
Canadá e no México ajudariam cidadãos beneficiaram ao mudar essas políticas, e a
dos três países a entender os problemas evidência sugere que os norte-americanos
e o potencial de uma América do Norte estão prontos para um novo relacionamen-
integrada, assim to, que torna
como a se con- obsoleta essa
siderarem norte- definição anti-
americanos. ga de sobera-
Naturalmente, nia.
até que uma Nos últi-
nova consciên- mos vinte anos,
cia da promessa vários estudos
da América do demonstraram
Norte crie raízes, a convergên-
muitas dessas cia de valores,
propostas estarão sobre temas
fora do alcance pessoais e fami-
dos formulado- liares, assim
res de políticas como sobre
públicas. políticas públi-
cas. Os cida-
dãos de cada
país tendem a
ter uma idéia
positiva dos
seus vizinhos,
e o resultado é
um apoio líqui-
VELHOSARGUMENTOS, do modesto dado à NAFTA. E há também
um consenso: cada nação concorda em
NOVAS VISÕES que as outras duas se beneficiaram mais do
Os opositores da integração muitas que elas próprias. 58% dos canadenses e
vezes atacam propostas como estas como 69 % dos americanos sentem uma “forte”
se fossem ameaças à soberania nacio- ligação com a América do Norte. E, o que
nal. No entanto, o conceito de soberania é mais surpreendente, 34% dos mexica-
não é imutável. No passado, o Canadá nos se consideram também “norte-ame-
recorreu à soberania para manter afasta- ricanos”, embora, em espanhol o termo
das as empresas petrolíferas dos Estados se refira especificamente aos cidadãos
Unidos; o México a usou para impedir o dos Estados Unidos. Algumas pesquisas

171
OLHAR EXTERNO

chegam a indicar que, em sua maioria, o México deveria demonstrar como poderia
público estaria preparado para aceitar uma utilizar um Fundo de Investimento Norte-
“nação norte-americana”, se acreditasse Americano para dobrar sua taxa de cres-
que isso iria melhorar o seu padrão de vida cimento e começar a reduzir o hiato de
sem ameaçar a sua cultura. desenvolvimento.
Uma pesquisa feita em outubro de Finalmente, os Estados Unidos devem
2003, realizada nos três países pela Ekos, redefinir a sua liderança para o século 21,
uma firma canadense, revelou que uma de modo a inspirar apoio em lugar de
clara maioria acredita que, nos próximos medo e ressentimento. Se Washington
dez anos, será instituída uma união econô- puder ajustar seus interesses de forma a
mica norte-americana. Segundo a mesma alinhá-los com os dos vizinhos, o mundo
pesquisa, uma maioria esmagadora é favo- verá os Estados Unidos de uma maneira
rável a políticas mais integradas a respeito diferente. Esses três desafios constituem
do ambiente, do transporte e da defesa, e uma agenda de grande importância para a
uma maioria mais modesta é favorável a América do Norte, na sua segunda década.
políticas comuns no concernente à energia O sucesso não só trará nova energia para
e ao sistema bancário. Por outro lado, nos o continente, mas proporcionará um
Estados Unidos e no Canadá, 75 por cento modelo a ser seguido por outras regiões
das pessoas apoiam o desenvolvimento de do mundo.
um perímetro norte-americano de seguran-
ça; e dois terços dos mexicanos pensam da
mesma forma.
Os governos dos Estados Unidos,
do México e do Canadá continuam a
defender zelosamente uma concepção de
soberania ultrapassada, embora os cida-
dãos desses países estejam prontos para
aceitar uma nova abordagem. A liderança
de cada país tem acentuado as diferenças
existentes entre eles, e não os seus interes-
ses comuns. A América do Norte precisa
de líderes que possam articular e perseguir
uma visão mais ampla.
A segunda década da América do
Norte coloca um desafio diferente para
cada governo. Em primeiro lugar, o novo
Primeiro Ministro do Canadá, Paul Martin,
deveria tomar a dianteira para substituir o
duplo bilateralismo do passado por insti-
tuições norte-americanas fundamentadas
em regras. Se fizer isso, terá o apoio do
México, e os Estados Unidos não tarda-
rão a seguir o exemplo. De seu lado, o

172
ROBERT A. PASTOR

PENSAR

O Pensador - Auguste Rodin

• Antonio Delfim Netto


• Ariosto Holanda
PENSAR * ANTONIO DELFIM NETTO

No Brasil, o “mercado”, ajudado pelo limite: quando a relação ameaça crescer


FMI, estabeleceu um limite para a Dívida além dele, todo o sistema econômico s e
Líquida do Setor Público (DLSP) com rela- inquieta...
ção ao Produto Interno Bruto (PIB). Da Da mesma forma que as constantes
mesma forma que existe a constante uni- universais são “super-humanas” e estabele-
versal de Newton, a hipótese de Einstein cem os alicerces da realidade física, o limite
de um limite constante para a velocidade da relação DLSP/PIB = 0,56 constituiria o
da luz (agora contestada pelo físico portu- alicerce da credibilidade, no mundo, da
guês João Magueijo), e a constante de ação economia brasileira. É ocioso insistir que
de Planck no mundo quântico, existiria, talvez seja lícito suspeitar que o resultado
para o Brasil, um limite natural para a rela- encontrado foi, insuspeitadamente, intro-
ção DLSP/PIB. duzido pelas crenças dos próprios pesqui-
Esse limite, primeiro intuído pelo sadores...
“mercado” e depois “descoberto” pela Mas isso é rigorosamente irrelevante!
tarometria dos economistas que se supõem Um país profundamente endividado como
portadores de uma “ciência dura”, seria o o Brasil não pode simplesmente ignorar
misterioso número 0,56. Utilizando sofisti- as “crenças” dos seus credores (internos e
cados métodos econométricos para equa- externos). Se quiser continuar funcionan-
ções não lineares, alguns economistas do, tem de reconhecê-las como restrição
(nacionais e estrangeiros) “provaram” aos graus de liberdade da sua política eco-
que 0,56 é mesmo uma espécie de nômica.
* Deputado Federal

174
Na Dívida Líquida Total do Setor Público estão incluídas as dívidas internas e externas
dos três níveis da administração pública e as respectivas empresas estatais. No nível federal
inclui-se, obviamente, a dívida do Banco Central do Brasil, da qual se excluem as reservas
internacionais. Nos últimos três anos o comportamento dessa dívida foi o revelado na tabela
abaixo:
(em bilhões R$)
2001 2002 2003
1. DLSP 660,9 881,1 913,1
Interna 530,1 654,3 726,7
Externa 130,8 226,8 186,4
2. PIB 1.258,4 1.576,5 1.590,0
3. DLSP/PIB 0,525 0,559 0,582
Fonte: Banco Central do Brasil.

A sociedade tem suportado um aumento permanente de carga tributária bruta


revelada no gráfico abaixo, onde se registra também a DLSP/PIB. Esta vinha crescendo de
forma preocupante e depois de algumas flutuações (produzidas pelo ruído eleitoral de 2002),
ela parece estabilizar-se. Os números mostram o fantástico aumento da carga tributária ao
longo do governo Fernando Henrique Cardoso (de 26% em 1994 para 37%, em 2002).

Gráfico nº 1

175
PENSAR

O primeiro mandato de FHC (1995/98) foi um desastre fiscal, com as despesas de


custeio crescendo muito mais do que o PIB. Depois de um superavit primário de 5,21% do
PIB, no último ano do governo Itamar, que chegou a reduzir a relação DLSP/PIB, o resultado
primário desandou. Só no segundo mandato, sob a pressão do FMI, é que se produziram
superavits primários, como registra o gráfico nº 2.
Gráfico nº 2

O Governo costumava defender-se dizendo que o aumento da dívida se devia à


“absorção dos esqueletos”, isto é, às dívidas já feitas mas não reconhecidas, hipótese
facilmente refutada pelo quadro abaixo:
Evolução da DLSP (1995-2002) (em bilhões R$)
1. DLSP em 31/12/1994 153,2
2. DLSP em 31/12/2002 881,1
3. Acréscimo da DLSP no governo FHC 727,9
4. Juros nominais pagos 561,7
5. Superávits primários (-) 158,8 402,9
6. Ajuste cambial 291,8
7. Esqueletos 97,4
8. Venda do patrimônio (Privatização) (-) 64,6 32,8
9. Dívida externa (pequenos ajustes) 0,4
10. Total 727,9

176
ANTONIO DELFIM NETTO

Vemos que, descontada a venda do problema. O mesmo acontece quando se


patrimônio público, isto é, as privatiza- cria dúvida sobre a capacidade de renovar
ções, o reconhecimento dos “esqueletos” a dívida externa (incluída na DLSP), o que
não chega a 5% do valor da dívida acumu- produz aumento do “spread externo” e
lada no período. uma diminuição do financiamento exter-
no, elevando a taxa de câmbio nominal.
Em dezembro de 1994, a relação
Outra vez o movimento é no sentido de
DLSP/PIB era da ordem de 30%. Em
agravar o desequilíbrio, pois o aumento
dezembro de 2002 ela atingiu 56%. Isso
da taxa de juros aumenta a desconfiança
a despeito de um aumento sufocante da
externa sobre a solvabilidade da dívida.
carga tributária bruta que, certamente, foi
um dos maiores inibidores de um desen- A dramaticidade do problema é
volvimento econômico mais robusto. que um fator que poderia aliviar o cres-
cimento da relação DLSP/PIB seria um
O ano de 2002 foi atípico, porque o
robusto aumento do PIB, freqüentemente
processo eleitoral acrescentou uma enor-
inibido pelo próprio comportamento da
me volatilidade à taxa cambial. O resul- taxa de juros. É essa a armadilha em que
tado final foi que o Brasil pagou, no ano, nos encontramos há algum tempo.
14,5% do PIB como juro da sua dívida e,
depois de ter feito um superavit primário Quais os fatores que controlam a
de 4%, acumulou um deficit nominal de relação DLSP/PIB? O numerador (DLSP)
10,5% do PIB. depende, basicamente, da relação já exis-
tente no ano anterior, da taxa de juro real e
O “mercado” utiliza e o FMI e alguns da taxa de câmbio real, enquanto o deno-
tarometristas confirmam que a relação minador (PIB) depende da taxa de cresci-
Dívida Líquida do Setor Público/PIB é um mento real do produto. Qual é a condição
dos indicadores fundamentais para julgar “desejada” pelo “mercado”, pelo FMI e
as condições de resistência da economia confirmada pelos tarometristas?
brasileira aos naturais choques externos
que estão permanentemente se abatendo É que a relação DLSP/PIB se esta-
sobre ela. Não importa a veracidade da bilize em 56% e, a partir daí, revele um
proposição. decréscimo monotônico. Esse foi o objeti-
vo do ministro Palocci quando, no início
O que importa é a “crença” de que de 2003, afirmou (logo depois confirmado
se aquela relação for maior do que 0,56 pelo próprio presidente Lula) que “faría-
(ou seja, a Dívida Líquida do Setor Público mos o superavit primário necessário para
é maior do que 56% do PIB), o Brasil estabilizar a relação DLSP/PIB” e, unilate-
terá maiores dificuldades de honrar a sua ralmente, aumentou o objetivo do supe-
dívida. Isso eleva os “spreads” externos ravit para 4,25%.
e a taxa de juros capaz de sustentar o
O superavit primário não depende,
refinanciamento da dívida e seu eventual
pois, da “vontade” do ministro, das “dúvi-
aumento.
das internas do Governo” ou de “truques”.
Nessas condições, o Tesouro (ou o Ele depende da taxa de juro real, da taxa
Banco Central) não consegue renovar a de câmbio real e do crescimento real. Se
dívida à taxa de juros vigente, e é forçado em 2003 tivéssemos crescido em termos
a aumentá-la, agravando ainda mais o reais 3% (em lugar de -0,2%), a relação

177
PENSAR

teria sido menor do que foi, dando um crescimento”, modestamente fixado no


sinal positivo para os credores internos nível de aumento do PIB em 3,5%.
e externos. Por outro lado, sabemos que Todos sabemos que o “crescimento”
existe uma relação negativa entre taxa de é feito pelo setor privado quando, den-
crescimento real e taxa de juro real. tro de quadros institucionais adequados
A taxa de câmbio real de hoje parece (inclusive o absoluto respeito à proprieda-
próxima do equilíbrio em conta-corrente de privada), o Governo “cria” os estímulos
(com um crescimento do PIB da ordem de para o funcionamento desembaraçado do
4 ou 5%). Existem, portanto, as condições “mercado”, para a apropriação de parte
objetivas para dar início a uma redução dos ganhos de produtividade pelos trabalha-
consistente da relação DLSP/PIB, iniciando dores e incentiva os empresários.
um movimento mais virtuoso do que o que É o comportamento do Governo que
temos vivido. reduz, para o agente privado, as incertezas
A aceleração das exportações em que o futuro sempre esconde. É ele que dá
2003 já melhorou outros importantes indi- certeza de que a demanda efetiva vai cres-
cadores: 1º) a relação Dívida Externa/PIB e cer, o que, combinado com a redução do
2º) Amortizações + Juros/PIB, o que con- custo do capital e a expansão de crédito,
firma a possibilidade de termos uma ima- despertará o “espírito animal” dos empre-
gem externa mais adequada das condições sários. Quando estes se dispõem a tomar o
objetivas que reduzem o “risco” Brasil. “risco” dos novos investimentos, o cresci-
É preciso estimular ainda mais as mento simultâneo da oferta e da demanda
exportações, aproveitar a oportunidade de globais põe em marcha um processo virtu-
reduzir a taxa de juro real e tomar medi- oso de expansão. Mais dia menos dia, ele
das para expandir o PIB, para reduzir a atinge o nível de emprego e, depois, com
relação DLSP/PIB e diminuir o pagamento a redução do desemprego, acaba propor-
de juros, abrindo espaço para algum inves- cionando o aumento do salário real que é
timento público. Há um evidente cansaço a forma de participação do trabalhador no
da sociedade com o pagamento de juros, crescimento.
que em 2003 atingiu 145,2 bilhões de Isso mostra que nem o tamanho do
reais e é percebido como um exagero. bolo de 2004 nem a sua qualidade estão
Isso tende a estimular a imaginação de determinados. Ele vai depender dos ingre-
alguns economistas a procurar soluções dientes que o setor privado vai mobilizar
mais rápidas (e em geral, erradas) para a em resposta à “receita” que o Governo for
volta ao crescimento. capaz de imaginar. Lula sabia disso em
O Brasil começou 2004 numa situ- 1978 quando, numa reunião de ex-quase
ação econômica ligeiramente melhor do intelectuais, na qual era o único trabalha-
que à do ano de 2003 e é por isso que não dor, em lugar de “teorizar” disse:
se justifica a gritaria para mudar a política “Quando fui convidado para debater
econômica do ministro Pallocci. Esperamos o tema ‘Brasil depois de novembro’ tentei
todos, agora, que com a estabilidade con- até encontrar uma bola de cristal para me
quistada, o País assista ao “espetáculo do dizer o que será o Brasil em janeiro de

178
ANTONIO DELFIM NETTO

1979. Mas acho que o Brasil de janeiro de privado e as instituições de pesquisa e


1979 será o Brasil que a sociedade brasi- desenvolvimento.
leira quiser, será aquele Brasil que a socie- O “ano da microeconomia” não será
dade sem medo, sem apavoramento, possa menor do que uma década! Inicialmente,
exigir que os atuais governantes não con- as grandes transformações certamente não
cedam, mas cedam para nós, o Brasil para serão visíveis a olho nu. Como o velho
os brasileiros” (Painéis da Crise, 1979). Schumpeter mostrou, há quase um século,
Hoje o governo é ele, Lula! Quando o aumento da produtividade e do cresci-
insiste simultaneamente no “espetáculo do mento numa economia de mercado é o
crescimento” e no “ano da microecono- resultado da realocação de recursos e da
mia”, acende uma grande esperança. O reestruturação das empresas dentro e entre
“ano da microeconomia” não será, ape- os vários setores.
nas, o da redução da taxa de juros real, por Trata-se de um mecanismo relati-
mais importante que ela seja! vamente lento, mas permanente, que ao
Será o ano do desembaraço máxi- mesmo tempo em que constrói o novo
mo do funcionamento dos mercados, da vai destruindo o velho. Por isso é às vezes
redução drástica dos impedimentos buro- chamado de “creative destruction”. Foi
cráticos, da racionalização dos impostos isso que os “nouveaux économistes” tenta-
combinada com a redução da carga pela ram através da “désinflation compétitive”.
ampliação da base imponível com a incor- Infelizmente colheram apenas “destruc-
poração do setor informal, da redução da tion”!
extravagante legislação prudencial impos-
ta ao sistema bancário, da redução dos
custos do trabalho, da mobilização das
agências financeiras do Governo para o
desenvolvimento, da criação do crédito
para as pequenas e médias empresas, com
sistemas que reduzam o poder de mono-
pólio do sistema bancário e do estímulo à
concorrência nos setores onde houve uma
enorme concentração (industrial e comer-
cial) nos últimos 10 anos?
O “ano da microeconomia” só pode
ser o da criação de incentivos para reduzir
o custo do capital, para a reorganização
da atividade produtiva, para a escolha de
novas tecnologias, para a aceleração da
depreciação dos equipamentos velhos e
sua substituição por novos, que incorpo-
ram tecnologias mais eficientes e o ano
do aumento da integração entre o setor

179
PENSAR * ARIOSTO HOLANDA

Introdução freqüentes inovações tecnológicas, não


podemos falar em trabalho sem colocar
Pretendemos nesse ensaio apontar como carro-chefe o conhecimento, que
uma política de geração de trabalho a deve ser perseguido em todos os níveis
partir dos mecanismos de capacitação tec- da educação.
nológica da população, que tenham como
base a educação profissional, a extensão A geração de trabalho torna-se com-
tecnológica e a informação. plexa porque temos pela frente um avanço
tecnológico crescente e uma grave ques-
Entendemos que na realidade atual, tão social traduzida pela pobreza, analfa-
com a economia globalizada e com as betismo e concentração de renda.

1. Sobre as Disparidades Inter-Regionais


EXPECTATIVA TAXA DE MORTALIDADE POBREZA DH
REGIÃO DE VIDA ALFABETIZAÇÃO INFANTIL ABSOLUTA (0 a 1)
(anos) (%) (p/mil) (%)
Sul 70,1 87,5 61,8 20,6 0,872
Sudeste 67,1 88,2 74,5 14,8 0,852
Nordeste 58,8 63,5 121,4 51,2 0,575
Norte 68,2 88,1 72,3 24,6 0,780
Centro-Oeste 68,4 83,1 70,3 24,7 0,818
BRASIL 64,9 81,1 87,9 26,2 0,794
*IDH - Índice de desenvolvimento humano: medido numa escala de 0 a 1, leva em conta a renda per capita, a expectativa
de vida e a taxa de alfabetização.
Fonte: Relatório da Comissão Especial do Congresso que estudou as causas do desequilíbrio econômico inter-regional
- ANO 1998.

*Deputado Federal

180
Os números apontados pela Comissão Especial do Congresso Nacional que estudou
as causas dos desequilíbrios econômicos inter-regionais em 1993, (tabela anterior) e os do
Relatório do IPEA – ano 2000 (a seguir), comprovam muito bem a gravidade desse quadro.

Observe no gráfico acima, do Relatório IPEA – Ano 2000, que o coeficiente Ginni, que
mede a concentração da renda vem se mantendo ao longo dos últimos 20 anos no patamar
0,6. Nos países onde existe uma boa distribuição de renda, esse número fica em torno de 0,25.

O gráfico acima, do Relatório IPEA – Ano 2000, mostra que 50% da renda está
concentrada em 10% da população, enquanto 50% da população detém somente 10% da
renda.

181
PENSAR

O gráfico acima, do Relatório IPEA palmente nesse momento em que a


– Ano 2000, mostra a evolução do número explosão tecnológica que ocorre no
de Pobres e Indigentes no período de mundo está a exigir cada vez mais
1979 a 2000. Estima-se que hoje exista das pessoas atualização permanente
uma população aproximada de 17 milhões de seus conhecimentos?
de analfabetos, 50 milhões de pobres e • Como superar as desigualdades
22 milhões de pessoas sem qualificação regionais, quando se tem a consci-
profissional. ência de que elas aumentam com a
Como o trabalho é a única forma concentração do conhecimento?
digna de combater a miséria, devemos Fala-se muito em cluster, em empre-
com urgência encontrar respostas para os endedorismo, em cadeia produtiva, em
seguintes questionamentos: empresa de base tecnológica, em incu-
• Como fazer ingressar num sistema badoras de empresa como formas de
produtivo eficiente essa quantidade desenvolvimento, mas não se fala em
de analfabetos, que hoje chega a ser acabar com o analfabetismo tecnológico
da ordem de 17 milhões de brasilei- da população, das pequenas empresas e
ros? dos pequenos negócios. Por isso, torna-se
urgente uma ação de massa voltada para
• O que fazer com milhões de tra- apoio tecnológico às micro e pequenas
balhadores cuja força de trabalho empresas e para implantação de um amplo
é cada vez menos exigida, ou nem programa de ensino tecnológico baseado,
mais o é? sobretudo, nas vocações das regiões.
• Como distribuir renda com pessoas O discurso do crescimento econômi-
sem qualificação profissional, princi- co como fórmula de geração de trabalho,

182
ARIOSTO HOLANDA

diante dessa massa de excluídos, torna-se 2.1. Relacionados com a Cadeia do


inócuo,porque poderemos ter aumento sig- Conhecimento
nificativo do PIB sem que isso implique em
Se analisarmos a figura anterior
geração de um grande número de empre-
constataremos que a cadeia do conheci-
gos. Isso porque as empresas, dentro da
mento em nosso país encontra-se, senão
atual lógica de crescimento, e não podem
degradada, no mínimo, enfraquecida. São
fugir dela, serão cada vez mais intensi-
pontos que merecem a nossa atenção:
vas em capital e menos mão-de-obra. O
modelo que temos de discutir é o que • Analfabetismo – esse deve ser zerado.
esteja pautado numa visão de crescimento • Ensino fundamental e médio, como
sócio-econômico, ou melhor dizendo, que foi constatado pelo recente diagnós-
esteja baseado numa economia que leve tico do MEC, precisa urgentemente
em conta as pessoas. Apresentar, apenas, ser melhorado, tendo como ponto
como indicadores de desenvolvimento, de partida a formação, o aperfeiço-
índices frios, sem considerar por trás de amento e a atualização profissional
tudo isso o homem: oportunidade para dos professores. Atualmente, existe
uma vida melhor, justiça social, saúde, um grande deficit de professores de
habitação, educação, alimentação e salá- matemática, física, química, biolo-
rios dignos constitui uma visão parcial do gia e português. A escola precisa ser
que entendo por desenvolvimento. assistida com os meios interativos
Vamos aprofundar essa discussão proporcionados pela internet, ensi-
apresentando alguns cenários para refle- no à distância e biblioteca multimí-
xão. dia.
• Ensino Profissionalizante - A LDB (Lei
2. A Nova Realidade do Trabalho de Diretrizes e Bases), na área do
e Exigência de Mão-de-Obra ensino profissionalizante, contempla
– Cenários para Reflexão 3 formações: básica, técnica e tecno-
lógica. A formação básica diz res-
peito a cursos de curta duração, não
legalizados, na sua maioria patro-
cinado pelo FAT (fundo de apoio ao
trabalhador); a formação técnica ine-
rente às escolas técnicas, de número
reduzido; e a formação tecnológica,
de responsabilidade dos centros de
ensino tecnológico superior, ainda
em fase de implantação no país.
Diante desse quadro, constata-se
que existe um fosso entre o ensino
fundamental e médio e a gradua-
ção, evidenciado pela ausência de
escolas técnicas profissionalizantes.
Nos países desenvolvidos existe uma

183
PENSAR

relação considerada ótima, de um 2.2. Relacionados com a Tecnologia


técnico de nível superior para cinco
O século XXI vai se caracterizar por
técnicos de nível médio. Essa relação
mudanças rápidas na área tecnológica,
no Brasil está invertida. Dados da CPI onde a única certeza vai ser a incerteza.
do atraso tecnológico (1993) revelou Como diz o professor Wladimir P. Longo:
que tínhamos dois técnicos de nível “Estamos todos nos deslocando sobre uma
superior para um de nível médio, esteira rolante que se move em sentido
como média nacional. Nas regiões contrário, a velocidades crescentes, tra-
Norte, Nordeste e Centro-Oeste, essa zendo novos conhecimentos; temos que
relação é de quatro técnicos de nível correr para ficar, pelo menos no mesmo
superior para um de nível médio. lugar”.
• Ensino tecnológico - deverá ser Esse avanço tecnológico, conclui o
ministrado com forte embasamen- professor, vai resultar no aprofundamento
to em ciências e domínio das lin- do conhecimento de poucos e no aumento
guagens: matemática, Informática, da ignorância de muitos.
português e inglês.
São consideradas áreas estratégicas
• Graduação - deve ser fortalecida do conhecimento frente às inovações: ciên-
com o aumento do número de mes- cias biológicas, biotecnologia, engenharia
tres e doutores. O país precisa formar genética, química fina, energia, teleco-
120.000 doutores. Hoje, só dispõe municações, informática, novos materiais,
de 35.000 microeletrônica, mecânica fina, robótica e
• P (pós-graduação e pesquisa), D mecatrônica.
(desenvolvimento tecnológico) e E As grandes aplicações desses
(extensão e engenharia) – essas ati- conhecimentos se darão nas indústrias
vidades precisam ser implantadas de: telemática, bélica, transporte, robóti-
ou fortalecidas nas universidades e ca, bens de consumo, aeroespacial, na
instituições de pesquisa. agricultura voltada para genética animal,
• Extensão – os trabalhos de extensão genética vegetal, doenças e pragas, e
das universidades e institutos de tec- nos serviços relacionados com automação,
nologia precisam ser massificados no informação, educação, lazer e saúde.
sentido de levar novos conhecimen-
tos para a população. 2.3. Relacionados com o Trabalho

• Infovias do conhecimento - forma- Estudos mostram que, num futuro


próximo, a indústria e a agricultura serão
das por redes eletrônicas interligando
cada vez mais intensivas em capital e
os centros de ensino tecnológico e as
menos em mão-de-obra. A automação
universidades, deverão ser implanta-
industrial e o avanço da mecanização
das em todo país como suporte aos
agrícola com certeza vão acelerar esse
programas de ensino à distância e
processo. As fábricas sem operários e as
das bibliotecas multimídias, encur-
empresas virtuais surgirão cada vez mais,
tando assim a distância do conheci-
dia a dia.
mento.

184
ARIOSTO HOLANDA

Estima-se que, em 10 anos, nos xíveis, de transferência de conhecimentos


países desenvolvidos, somente 10% dos para a população, como verdadeiros ata-
trabalhadores estarão nos setores primário lhos que avancem sobre os procedimen-
e secundário, e que a terceirização, ou tos tradicionais da educação.
seja, a área de serviços será a grande
Existe uma grande massa de
demandadora de mão-de-obra. Não mais
trabalhadores sem esperança de empre-
existirão as profissões tradicionais de pai
go, por total desqualificação profissional.
para filho; nessa terceira via, devido às
Hoje, se houvesse um reaquecimento
inovações tecnológicas, surgirá um número
da economia, com novos investimentos
muito grande de profissões nascendo e
em áreas de alta tecnologia, esses traba-
morrendo, e que somente a porta do saber
permitirá o acesso a elas. lhadores não entrariam no mercado de
trabalho.
Apesar de se apontar a área de
serviços como a grande empregadora, no Temos que adotar, de imediato, medi-
entanto, a atual transição da sociedade das voltadas para o aprimoramento do
industrial rumo à sociedade de serviços ensino profissionalizante. Os indicadores
ou à sociedade informatizada, mostra que sociais que acabamos de ver estão a exigir,
no atual setor terciário, o potencial de das instituições que detém o conheci-
racionalização é enorme. Estima-se que mento, ações que venham a contribuir de
poder-se-ia economizar 51% dos empregos modo decisivo no processo de educação
no comércio e até 61% na administração para o trabalho, em todos os níveis.
pública e nos bancos. Do ponto de vista Certamente, a geração de emprego e
social e da ameaça do desemprego, isso é a distribuição de renda só se darão quan-
extremamente grave. do investirmos no capital humano e proce-
Novos campos profissionais surgirão dermos a uma profunda transformação na
com o desenvolvimento tecnológico. As lógica do desenvolvimento. Por sua vez,
atividades a eles inerentes beneficiarão apenas o investimento no capital humano deve
uma pequena elite global e virtual. ser feito através de um sistema educativo
eficiente, de qualidade, e que envolva toda
Vamos nos deparar com situações
onde teremos, de um lado pessoas sociedade. Só assim daremos o salto de
procurando emprego e, na contramão, qualidade.
trabalho procurando profissional. Temos que ousar e partir para um
Profissões vão surgir e em curto processo de interação com a sociedade
tempo desaparecer; do mesmo modo que do tipo Educar Trabalhando e Trabalhar
postos de trabalho vão exigir habilidades Educando.
e conhecimentos que em pouco tempo A lógica do processo de educação,
serão substituídos. O profissional, para incluindo as várias etapas do conhecimen-
subsistir, terá que ser um eterno estudante. to, deve ser capaz de responder a questões
do tipo:
3. Conclusão
“Como e por que os produtos e serviços
Há, diante desse quadro, uma urgên- são feitos dessa ou daquela maneira, e
cia de criarmos mecanismos, ágeis e fle- como podem ser melhorados”?

185
PENSAR

Ao lado do mecanismo educacional, ral) compra ou contrata que pode ser feito
deve ser perseguida a implantação de um pelo pequeno? Há que se definir progra-
amplo sistema de informação tecnológica, mas de geração de trabalho voltados para
no sentido de proporcionar aos pequenos essa massa de trabalhadores desemprega-
segmentos produtivos, hoje mergulhados dos. Programa, como o de produção do
num verdadeiro analfabetismo tecnológi- biodiesel, poderia se constituir no maior
co, condições de conhecer e de apropriar- programa de reforma agrária do país. Para
se de novas tecnologias. finalizar, torna-se oportuno transcrever a
entrevista com o camponês Cícero dos
As ações a serem desencadeadas
Santos no livro “A Questão Política da
devem ser tais que integrem todos os seg-
Educação”:
mentos da sociedade; elas não podem ser
estanques e isoladas, e devem ter como
objetivo o homem no seu estágio atual de “O senhor diz que até poderia ser
conhecimento e no seu contexto social. diferente, não é assim? Que não é só para
O analfabeto fora da escola, o analfa- ensinar aquele ensinozinho apressado,
beto tecnológico dentro da escola, a escola para ver se velho aprende o que menino
fora da realidade atual, a universidade não aprendeu. Então podia ser tipo de
sem interagir com os problemas do meio, educação até fora da escola, da sala. Que
o setor produtivo isolado dos problemas fosse assim dum jeito misturado com o
educacionais e tecnológicos são verda- de todo dia da vida da gente daqui. Que
deiros desafios para qualquer governo que podia ser um modo desses de juntar saber
queira promover uma revolução social, e clarear os assuntos, que a gente sente
educacional, científica e tecnológica. mas não sabe. Então era bom. O povo
vinha”?
Por tudo isso, defendemos um novo
modelo de desenvolvimento que tenha
como alvo, não o crescimento econômico
em si, mas o desenvolvimento sócio- eco-
nômico que leve em conta as pessoas, que
saia da lógica do desenvolvimento com
base no mercado para a lógica da social
democracia, onde o Estado deve exercer o
papel regulador do processo de desenvol-
vimento, e que tenha na educação, ciência
e tecnologia o suporte basilar para o seu
desenvolvimento. Que seja um Estado que
massifique as ações da extensão tecnoló-
gica via universidades, centros de ensino
tecnológico e instituições de tecnologia.
Que abra o mercado, na área de serviços
e de produtos, para os pequenos negócios,
tipo compra e serviços governamentais. O
que o governo (municipal, estadual e fede-

186
Idéias
&
Leis

O Pai do Artista - Paul Cézanne

Estatuto do Idoso
• Senador Paulo Paim
• Ministra Fátima Nancy
187
IDÉIAS E LEIS ESTATUTO DO IDOSO

Mulher com a Mania de Jogo - Théodore Géricault

Estatuto do Idoso
LEI Nº 10.741, DE 1º DE OUTUBRO assegurados às pessoas com idade
DE 2003. igual ou superior a 60 (sessenta)
Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá anos.
outras providências. Art. 2º O idoso goza de todos os
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço direitos fundamentais inerentes
saber que o Congresso Nacional decreta e à pessoa humana, sem prejuízo
eu sanciono a seguinte Lei: da proteção integral de que
trata esta Lei, assegurando-
se-lhe, por lei ou por outros
TÍTULO I meios, todas as oportunidades
Disposições Preliminares e facilidades, para preservação
de sua saúde física e mental
Art. 1º É instituído o Estatuto do Idoso, e seu aperfeiçoamento moral,
destinado a regular os direitos intelectual, espiritual e social,

188
em condições de liberdade e VIII – garantia de acesso à rede de
dignidade. serviços de saúde e de assistência social
Art. 3º É obrigação da família, da locais.
comunidade, da sociedade e Art. 4º Nenhum idoso será objeto de
do Poder Público assegurar ao qualquer tipo de negligência,
idoso, com absoluta prioridade, discriminação, violência,
a efetivação do direito à vida, crueldade ou opressão, e todo
à saúde, à alimentação, à atentado aos seus direitos, por
educação, à cultura, ao esporte, ação ou omissão, será punido
ao lazer, ao trabalho, à cidadania, na forma da lei.
à liberdade, à dignidade, ao
§ 1º É dever de todos prevenir a ame-
respeito e à convivência familiar
aça ou violação aos direitos do idoso.
e comunitária.
§ 2º As obrigações previstas nesta Lei
Parágrafo único. A garantia de priori-
não excluem da prevenção outras decor-
dade compreende:
rentes dos princípios por ela adotados.
I – atendimento preferencial imediato
e individualizado junto aos órgãos públicos Art. 5º A inobservância das normas
e privados prestadores de serviços à popu- de prevenção importará em
lação; responsabilidade à pessoa física
ou jurídica nos termos da lei.
II – preferência na formulação e na
execução de políticas sociais públicas espe- Art. 6º Todo cidadão tem o dever
cíficas; de comunicar à autoridade
competente qualquer forma de
III – destinação privilegiada de recur- violação a esta Lei que tenha
sos públicos nas áreas relacionadas com a testemunhado ou de que tenha
proteção ao idoso; conhecimento.
IV – viabilização de formas alternati- Art. 7º Os Conselhos Nacional,
vas de participação, ocupação e convívio Estaduais, do Distrito Federal e
do idoso com as demais gerações; Municipais do Idoso, previstos
V – priorização do atendimento do na Lei nº 8.842, de 4 de
idoso por sua própria família, em detrimen- janeiro de 1994, zelarão pelo
to do atendimento asilar, exceto dos que cumprimento dos direitos do
não a possuam ou careçam de condições idoso, definidos nesta Lei.
de manutenção da própria sobrevivência;
VI – capacitação e reciclagem dos TÍTULO II
recursos humanos nas áreas de geriatria e
gerontologia e na prestação de serviços aos Dos Direitos Fundamentais
idosos;
VII – estabelecimento de mecanismos CAPÍTULO I
que favoreçam a divulgação de informa-
Do Direito à Vida
ções de caráter educativo sobre os aspectos
biopsicossociais de envelhecimento; Art. 8º O envelhecimento é um

189
IDÉIAS & LEIS

direito personalíssimo e a sua § 2º O direito ao respeito consiste na


proteção, um direito social, inviolabilidade da integridade física, psí-
nos termos desta Lei e da quica e moral, abrangendo a preservação
legislação vigente. da imagem, da identidade, da autonomia,
de valores, idéias e crenças, dos espaços e
Art. 9º É obrigação do Estado, garantir
dos objetos pessoais.
à pessoa idosa a proteção
à vida e à saúde, mediante § 3º É dever de todos zelar pela dig-
efetivação de políticas sociais nidade do idoso, colocando-o a salvo de
públicas que permitam um qualquer tratamento desumano, violento,
envelhecimento saudável e aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
em condições de dignidade.
CAPÍTULO III
CAPÍTULO II Dos Alimentos
Do Direito à Liberdade, ao Art. 11. Os alimentos serão prestados
Respeito e à Dignidade ao idoso na forma da lei civil.

Art. 10. É obrigação do Estado e da Art. 12. A obrigação alimentar é


sociedade, assegurar à pessoa solidária, podendo o idoso
idosa a liberdade, o respeito optar entre os prestadores.
e a dignidade, como pessoa Art. 13. As transações relativas
humana e sujeito de direitos a alimentos poderão ser
civis, políticos, individuais celebradas perante o Promotor
e sociais, garantidos na de Justiça, que as referendará,
Constituição e nas leis. e passarão a ter efeito de título
§ 1º O direito à liberdade compreen- executivo extrajudicial nos
de, entre outros, os seguintes aspectos: termos da lei processual civil.
Art. 14. Se o idoso ou seus familiares
I – faculdade de ir, vir e estar nos
não possuírem condições
logradouros públicos e espaços comunitá-
econômicas de prover o seu
rios, ressalvadas as restrições legais;
sustento, impõe-se ao Poder
II – opinião e expressão; Público esse provimento, no
III – crença e culto religioso; âmbito da assistência social.
IV – prática de esportes e de diver- CAPÍTULO IV
sões;
V – participação na vida familiar e
Do Direito à Saúde
comunitária; Art. 15. É assegurada a atenção
integral à saúde do idoso, por
VI – participação na vida política, na
intermédio do Sistema Único
forma da lei;
de Saúde – SUS, garantindo-lhe
VII – faculdade de buscar refúgio, o acesso universal e igualitário,
auxílio e orientação. em conjunto articulado e

190
ESTATUTO DO IDOSO

contínuo das ações e serviços, Art. 16. Ao idoso internado ou em


para a prevenção, promoção, observação é assegurado
proteção e recuperação da o direito a acompanhante,
saúde, incluindo a atenção devendo o órgão de saúde
especial às doenças que afetam proporcionar as condições
preferencialmente os idosos. adequadas para a sua
§ 1º A prevenção e a manutenção permanência em tempo integral,
da saúde do idoso serão efetivadas por segundo o critério médico.
meio de: Parágrafo único. Caberá ao profis-
I – cadastramento da população idosa sional de saúde responsável pelo trata-
em base territorial; mento conceder autorização para o acom-
panhamento do idoso ou, no caso de
II – atendimento geriátrico e geron- impossibilidade, justificá-la por escrito.
tológico em ambulatórios;
Art. 17. Ao idoso que esteja no domínio
III – unidades geriátricas de referên- de suas faculdades mentais é
cia, com pessoal especializado nas áreas assegurado o direito de optar
de geriatria e gerontologia social; pelo tratamento de saúde
IV – atendimento domiciliar, inclu- que lhe for reputado mais
indo a internação, para a população que favorável.
dele necessitar e esteja impossibilitada de Parágrafo único. Não estando o
se locomover, inclusive para idosos abriga- idoso em condições de proceder à opção,
dos e acolhidos por instituições públi- esta será feita:
cas, filantrópicas ou sem fins lucrativos e
eventualmente conveniadas com o Poder I – pelo curador, quando o idoso for
Público, nos meios urbano e rural; interditado;
V – reabilitação orientada pela geri- II – pelos familiares, quando o idoso
atria e gerontologia, para redução das não tiver curador ou este não puder ser
seqüelas decorrentes do agravo da saúde. contactado em tempo hábil;
§ 2º Incumbe ao Poder Público for- III – pelo médico, quando ocorrer
necer aos idosos, gratuitamente, medica- iminente risco de vida e não houver tempo
mentos, especialmente os de uso continu- hábil para consulta a curador ou familiar;
ado, assim como próteses, órteses e outros IV – pelo próprio médico, quando
recursos relativos ao tratamento, habilita- não houver curador ou familiar conhecido,
ção ou reabilitação. caso em que deverá comunicar o fato ao
§ 3º É vedada a discriminação do Ministério Público.
idoso nos planos de saúde pela cobrança Art. 18. As instituições de saúde
de valores diferenciados em razão da devem atender aos critérios
idade. mínimos para o atendimento
§ 4º Os idosos portadores de defi- às necessidades do idoso,
ciência ou com limitação incapacitante promovendo o treinamento e a
terão atendimento especializado, nos ter- capacitação dos profissionais,
mos da lei. assim como orientação a

191
IDÉIAS & LEIS

cuidadores familiares e grupos Art. 22. Nos currículos mínimos dos


de auto-ajuda. diversos níveis de ensino formal
Art. 19. Os casos de suspeita ou serão inseridos conteúdos
voltados ao processo de
confirmação de maus-
envelhecimento, ao respeito
tratos contra idoso serão
e à valorização do idoso, de
obrigatoriamente comunicados
forma a eliminar o preconceito
pelos profissionais de saúde
e a produzir conhecimentos
a quaisquer dos seguintes
sobre a matéria.
órgãos:
Art. 23. A participação dos idosos em
I – autoridade policial;
atividades culturais e de lazer
II – Ministério Público; será proporcionada mediante
III – Conselho Municipal do Idoso; descontos de pelo menos
50% (cinqüenta por cento)
IV – Conselho Estadual do Idoso; nos ingressos para eventos
V – Conselho Nacional do Idoso. artísticos, culturais, esportivos
e de lazer, bem como o acesso
CAPÍTULO V preferencial aos respectivos
locais.
Da Educação, Cultura, Esporte e Art. 24. Os meios de comunicação
Lazer manterão espaços ou horários
Art. 20. O idoso tem direito a educação, especiais voltados aos idosos,
cultura, esporte, lazer, diversões, com finalidade informativa,
espetáculos, produtos e serviços educativa, artística e cultural, e
que respeitem sua peculiar ao público sobre o processo de
condição de idade. envelhecimento.
Art. 21. O Poder Público criará Art. 25. O Poder Público apoiará
oportunidades de acesso do a criação de universidade
idoso à educação, adequando aberta para as pessoas idosas
currículos, metodologias e e incentivará a publicação de
material didático aos programas livros e periódicos, de conteúdo
educacionais a ele destinados. e padrão editorial adequados
ao idoso, que facilitem a leitura,
§ 1º Os cursos especiais para idosos
considerada a natural redução
incluirão conteúdo relativo às técnicas
da capacidade visual.
de comunicação, computação e demais
avanços tecnológicos, para sua integração CAPÍTULO VI
à vida moderna.
§ 2º Os idosos participarão das Da Profissionalização e do
comemorações de caráter cívico ou cul- Trabalho
tural, para transmissão de conhecimentos Art. 26. O idoso tem direito ao exercício
e vivências às demais gerações, no sentido de atividade profissional,
da preservação da memória e da identi- respeitadas suas condições
dade culturais. físicas, intelectuais e psíquicas.

192
ESTATUTO DO IDOSO

Art. 27. Na admissão do idoso em mento, com base em percentual definido


qualquer trabalho ou emprego, em regulamento, observados os critérios
é vedada a discriminação e a estabelecidos pela Lei nº 8.213, de 24 de
fixação de limite máximo de julho de 1991.
idade, inclusive para concursos, Art. 30. A perda da condição
ressalvados os casos em que a de segurado não será
natureza do cargo o exigir. considerada para a concessão
Parágrafo único. O primeiro critério da aposentadoria por idade,
de desempate em concurso público será a desde que a pessoa conte
idade, dando-se preferência ao de idade com, no mínimo, o tempo de
mais elevada. contribuição correspondente ao
exigido para efeito de carência
Art. 28. O Poder Público criará e
na data de requerimento do
estimulará programas de:
benefício.
I – profissionalização especializada Parágrafo único. O cálculo do valor
para os idosos, aproveitando seus potenci- do benefício previsto no caput observará
ais e habilidades para atividades regulares o disposto no caput e 2º do art. 3º da Lei
e remuneradas; nº 9.876, de 26 de novembro de 1999,
II – preparação dos trabalhadores ou, não havendo salários-de-contribuição
para a aposentadoria, com antecedên- recolhidos a partir da competência de
cia mínima de 1 (um) ano, por meio de julho de 1994, o disposto no art. 35 da Lei
estímulo a novos projetos sociais, con- nº 8.213, de 1991.
forme seus interesses, e de esclarecimento Art. 31. O pagamento de parcelas
sobre os direitos sociais e de cidadania; relativas a benefícios, efetuado
III – estímulo às empresas privadas com atraso por responsabilidade
para admissão de idosos ao trabalho. da Previdência Social, será
atualizado pelo mesmo índice
CAPÍTULO VII utilizado para os reajustamentos
dos benefícios do Regime Geral
Da Previdência Social de Previdência Social, verificado
Art. 29. Os benefícios de aposentadoria no período compreendido entre
e pensão do Regime Geral da o mês que deveria ter sido pago
Previdência Social observarão, e o mês do efetivo pagamento.
na sua concessão, critérios de Art. 32. O Dia Mundial do Trabalho,
cálculo que preservem o valor 1º de Maio, é a data-base dos
real dos salários sobre os quais aposentados e pensionistas.
incidiram contribuição, nos
termos da legislação vigente. CAPÍTULO VIII
Parágrafo único. Os valores dos bene-
fícios em manutenção serão reajustados na Da Assistência Social
mesma data de reajuste do salário-mínimo, Art. 33. A assistência social aos
pro rata, de acordo com suas respectivas idosos será prestada, de
datas de início ou do seu último reajusta- forma articulada, conforme os

193
IDÉIAS & LEIS

princípios e diretrizes previstos Art. 36. O acolhimento de idosos em


na Lei Orgânica da Assistência situação de risco social, por
Social, na Política Nacional adulto ou núcleo familiar,
do Idoso, no Sistema Único caracteriza a dependência
de Saúde e demais normas econômica, para os efeitos
pertinentes. legais.
Art. 34. Aos idosos, a partir de 65
(sessenta e cinco) anos, que CAPÍTULO IX
não possuam meios para prover Da Habitação
sua subsistência, nem de tê-
la provida por sua família, é Art. 37. O idoso tem direito a moradia
assegurado o benefício mensal digna, no seio da família
de 1 (um) salário-mínimo, nos natural ou substituta, ou
termos da Lei Orgânica da desacompanhado de seus
Assistência Social – Loas. familiares, quando assim o
desejar, ou, ainda, em instituição
Parágrafo único. O benefício já con- pública ou privada.
cedido a qualquer membro da família nos
§ 1º A assistência integral na
termos do caput não será computado para
modalidade de entidade de longa
os fins do cálculo da renda familiar per
permanência será prestada quando
capita a que se refere a Loas.
verificada inexistência de grupo familiar,
Art. 35. Todas as entidades de longa casa-lar, abandono ou carência de recursos
permanência, ou casa-lar, são financeiros próprios ou da família.
obrigadas a firmar contrato de
§ 2º Toda instituição dedicada ao
prestação de serviços com a
atendimento ao idoso fica obrigada a
pessoa idosa abrigada.
manter identificação externa visível, sob
§ 1º No caso de entidades filantrópi- pena de interdição, além de atender toda
cas, ou casa-lar, é facultada a cobrança a legislação pertinente.
de participação do idoso no custeio da
§ 3º As instituições que abrigarem
entidade.
idosos são obrigadas a manter padrões
§ 2º O Conselho Municipal do Idoso de habitação compatíveis com as
ou o Conselho Municipal da Assistência necessidades deles, bem como provê-
Social estabelecerá a forma de participação los com alimentação regular e higiene
prevista no § 1º, que não poderá exceder indispensáveis às normas sanitárias e com
a 70% (setenta por cento) de qualquer estas condizentes, sob as penas da lei.
benefício previdenciário ou de assistência
Art. 38. Nos programas habitacionais,
social percebido pelo idoso.
públicos ou subsidiados com
§ 3º Se a pessoa idosa for incapaz, recursos públicos, o idoso goza
caberá a seu representante legal firmar de prioridade na aquisição de
o contrato a que se refere o caput deste imóvel para moradia própria,
artigo. observado o seguinte:

194
ESTATUTO DO IDOSO

I – reserva de 3% (três por cento) das Art. 40. No sistema de transporte


unidades residenciais para atendimento coletivo interestadual observar-
aos idosos; se-á, nos termos da legislação
II – implantação de equipamentos específica:
urbanos comunitários voltados ao idoso; I – a reserva de 2 (duas) vagas gratuitas
III – eliminação de barreiras por veículo para idosos com renda igual
arquitetônicas e urbanísticas, para garantia ou inferior a 2 (dois) salários-mínimos;
de acessibilidade ao idoso; II – desconto de 50% (cinqüenta por
IV – critérios de financiamento cento), no mínimo, no valor das passagens,
compatíveis com os rendimentos de para os idosos que excederem as vagas
aposentadoria e pensão. gratuitas, com renda igual ou inferior a 2
(dois) salários-mínimos.
CAPÍTULO X Parágrafo único. Caberá aos órgãos
competentes definir os mecanismos e
Do Transporte os critérios para o exercício dos direitos
Art. 39. Aos maiores de 65 (sessenta previstos nos incisos I e II.
e cinco) anos fica assegurada
Art. 41. É assegurada a reserva, para
a gratuidade dos transportes
os idosos, nos termos da lei
coletivos públicos urbanos
local, de 5% (cinco por cento)
e semi-urbanos, exceto nos
das vagas nos estacionamentos
serviços seletivos e especiais,
públicos e privados, as quais
quando prestados paralelamente
deverão ser posicionadas de
aos serviços regulares.
forma a garantir a melhor
§ 1º Para ter acesso à gratuidade, comodidade ao idoso.
basta que o idoso apresente qualquer
Art. 42. É assegurada a prioridade do
documento pessoal que faça prova de sua
idoso no embarque no sistema
idade.
de transporte coletivo.
§ 2º Nos veículos de transporte coletivo
de que trata este artigo, serão reservados TÍTULO III
10% (dez por cento) dos assentos para os
idosos, devidamente identificados com a Das Medidas de Proteção
placa de reservado preferencialmente para
idosos. CAPÍTULO I
§ 3º No caso das pessoas Das Disposições Gerais
compreendidas na faixa etária entre 60 Art. 43. As medidas de proteção ao
(sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, ficará idoso são aplicáveis sempre
a critério da legislação local dispor sobre que os direitos reconhecidos
as condições para exercício da gratuidade nesta Lei forem ameaçados ou
nos meios de transporte previstos no caput violados:
deste artigo.

195
IDÉIAS & LEIS

I – por ação ou omissão da sociedade V – abrigo em entidade;


ou do Estado; VI – abrigo temporário.
II – por falta, omissão ou abuso
da família, curador ou entidade de TÍTULO IV
atendimento;
Da Política de Atendimento ao
III – em razão de sua condição Idoso
pessoal.
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
Disposições Gerais
Das Medidas Específicas de
Proteção Art. 46. A política de atendimento
ao idoso far-se-á por meio
Art. 44. As medidas de proteção ao do conjunto articulado de
idoso previstas nesta Lei ações governamentais e não-
poderão ser aplicadas, isolada governamentais da União, dos
ou cumulativamente, e levarão Estados, do Distrito Federal e
em conta os fins sociais a que dos Municípios.
se destinam e o fortalecimento
dos vínculos familiares e Art. 47. São linhas de ação da política
comunitários. de atendimento:

Art. 45. Verificada qualquer das I – políticas sociais básicas, previstas


hipóteses previstas no art. 43, o na Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994;
Ministério Público ou o Poder II – políticas e programas de assistência
Judiciário, a requerimento social, em caráter supletivo, para aqueles
daquele, poderá determinar, que necessitarem;
dentre outras, as seguintes
III – serviços especiais de prevenção
medidas:
e atendimento às vítimas de negligência,
I – encaminhamento à família ou maus-tratos, exploração, abuso, crueldade
curador, mediante termo de responsabili- e opressão;
dade;
IV – serviço de identificação e
II – orientação, apoio e acompanha- localização de parentes ou responsáveis
mento temporários; por idosos abandonados em hospitais e
II – requisição para tratamento de sua instituições de longa permanência;
saúde, em regime ambulatorial, hospitalar V – proteção jurídico-social por enti-
ou domiciliar; dades de defesa dos direitos dos idosos;
IV – inclusão em programa oficial ou VI – mobilização da opinião pública
comunitário de auxílio, orientação e trata- no sentido da participação dos diversos
mento a usuários dependentes de drogas segmentos da sociedade no atendimento
lícitas ou ilícitas, ao próprio idoso ou à do idoso.
pessoa de sua convivência que lhe cause
perturbação;

196
ESTATUTO DO IDOSO

CAPÍTULO II III – manutenção do idoso na mesma


instituição, salvo em caso de força maior;
Das Entidades de Atendimento ao
IV – participação do idoso nas ativi-
Idoso dades comunitárias, de caráter interno e
Art. 48. As entidades de atendimento externo;
são responsáveis pela
V – observância dos direitos e garan-
manutenção das próprias
tias dos idosos;
unidades, observadas as normas
de planejamento e execução VI – preservação da identidade do
emanadas do órgão competente idoso e oferecimento de ambiente de res-
da Política Nacional do Idoso, peito e dignidade.
conforme a Lei nº 8.842, de Parágrafo único. O dirigente de insti-
1994. tuição prestadora de atendimento ao idoso
Parágrafo único. As entidades responderá civil e criminalmente pelos
governamentais e não-governamentais atos que praticar em detrimento do idoso,
sem prejuízo das sanções administrativas.
de assistência ao idoso ficam sujeitas à
inscrição de seus programas, junto ao Art. 50. Constituem obrigações das
órgão competente da Vigilância Sanitária e entidades de atendimento:
Conselho Municipal da Pessoa Idosa, e em I – celebrar contrato escrito de presta-
sua falta, junto ao Conselho Estadual ou ção de serviço com o idoso, especificando
Nacional da Pessoa Idosa, especificando o tipo de atendimento, as obrigações da
os regimes de atendimento, observados os entidade e prestações decorrentes do con-
seguintes requisitos: trato, com os respectivos preços, se for o
I – oferecer instalações físicas em caso;
condições adequadas de habitabilidade, II – observar os direitos e as garantias
higiene, salubridade e segurança; de que são titulares os idosos;
II – apresentar objetivos estatutários III – fornecer vestuário adequado, se
e plano de trabalho compatíveis com os for pública, e alimentação suficiente;
princípios desta Lei; IV – oferecer instalações físicas em
III – estar regularmente constituída; condições adequadas de habitabilidade;
IV – demonstrar a idoneidade de seus V – oferecer atendimento per-
dirigentes. sonalizado;
Art. 49. As entidades que VI – diligenciar no sentido da preser-
desenvolvam programas de vação dos vínculos idados à saúde, con-
institucionalização de longa forme a necessidade do idoso;
permanência adotarão os IX – promover atividades educacio-
seguintes princípios: nais, esportivas, culturais e de lazer;
I – preservação dos vínculos famili- X – propiciar assistência religiosa
ares; àqueles que desejarem, de acordo com
II – atendimento personalizado e em suas crenças;
pequenos grupos;

197
IDÉIAS & LEIS

XI – proceder a estudo social e pes- do Idoso, Ministério Público,


soal de cada caso; Vigilância Sanitária e outros
XII – comunicar à autoridade com- previstos em lei.
petente de saúde toda ocorrência de idoso Art. 53. O art. 7º da Lei nº 8.842, de
portador de doenças infecto-contagiosas; 1994, passa a vigorar com a
XIII – providenciar ou solicitar que o seguinte redação:
Ministério Público requisite os documen- “Art. 7º Compete aos Conselhos
tos necessários ao exercício da cidadania de que trata o art. 6º
àqueles que não os tiverem, na forma da desta Lei a supervisão,
lei; o acompanhamento, a
XIV – fornecer comprovante de fiscalização e a avaliação
depósito dos bens móveis que receberem da política nacional do
dos idosos; idoso, no âmbito das
respectivas instâncias político-
XV – manter arquivo de anotações administrativas.”
onde constem data e circunstâncias do
atendimento, nome do idoso, responsável, Art. 54. Será dada publicidade das
parentes, endereços, cidade, relação de prestações de contas dos
seus pertences, bem como o valor de con- recursos públicos e privados
tribuições, e suas alterações, se houver, e recebidos pelas entidades de
demais dados que possibilitem sua iden- atendimento.
tificação e a individualização do atendi- Art. 55. As entidades de atendimento
mento; que descumprirem as
XVI – comunicar ao Ministério determinações desta Lei ficarão
Público, para as providências cabíveis, a sujeitas, sem prejuízo da
situação de abandono moral ou material responsabilidade civil e criminal
por parte dos familiares; de seus dirigentes ou prepostos,
às seguintes penalidades,
XVII – manter no quadro de pessoal observado o devido processo
profissionais com formação específica. legal:
Art. 51. As instituições filantrópicas ou I - as entidades governamentais:
sem fins lucrativos prestadoras
de serviço ao idoso terão direito a) advertência;
à assistência judiciária gratuita. b) afastamento provisório de seus
dirigentes;
CAPÍTULO III c) afastamento definitivo de seus diri-
Da Fiscalização das Entidades de gentes;
Atendimento d) fechamento de unidade ou inter-
Art. 52. As entidades governamentais dição de programa;
e não-governamentais de II – as entidades não-governamentais:
atendimento ao idoso serão
a) advertência;
fiscalizadas pelos Conselhos
b) multa;

198
ESTATUTO DO IDOSO

c) suspensão parcial ou total do o fato não for caracterizado como crime,


repasse de verbas públicas; podendo haver a interdição do estabeleci-
mento até que sejam cumpridas as exigên-
d) interdição de unidade ou suspen-
cias legais.
são de programa;
Parágrafo único. No caso de inter-
e) proibição de atendimento a idosos
dição do estabelecimento de longa per-
a bem do interesse público.
manência, os idosos abrigados serão trans-
§ 1º Havendo danos aos idosos feridos para outra instituição, às expensas
abrigados ou qualquer tipo de fraude em do estabelecimento interditado, enquanto
relação ao programa, caberá o afastamen- durar a interdição.
to provisório dos dirigentes ou a interdição Art. 57. Deixar o profissional de
da unidade e a suspensão do programa. saúde ou o responsável por
§ 2º A suspensão parcial ou total do estabelecimento de saúde
repasse de verbas públicas ocorrerá quan- ou instituição de longa
do verificada a má aplicação ou desvio de permanência de comunicar à
finalidade dos recursos. autoridade competente os casos
de crimes contra idoso de que
§ 3º Na ocorrência de infração por
tiver conhecimento:
entidade de atendimento, que coloque
em risco os direitos assegurados nesta Pena – multa de R$ 500,00 (quinhen-
Lei, será o fato comunicado ao Ministério tos reais) a R$ 3.000,00 (três mil reais), apli-
Público, para as providências cabíveis, cada em dobro no caso de reincidência.
inclusive para promover a suspensão das Art. 58. Deixar de cumprir as
atividades ou dissolução da entidade, com determinações desta Lei sobre
a proibição de atendimento a idosos a a prioridade no atendimento ao
bem do interesse público, sem prejuízo idoso:
das providências a serem tomadas pela
Pena – multa de R$ 500,00 (quinhen-
Vigilância Sanitária.
tos reais) a R$ 1.000,00 (um mil reais) e
§ 4º Na aplicação das penalidades, multa civil a ser estipulada pelo juiz, con-
serão consideradas a natureza e a gravi- forme o dano sofrido pelo idoso.
dade da infração cometida, os danos que
dela provierem para o idoso, as circunstân- CAPÍTULO V
cias agravantes ou atenuantes e os ante-
cedentes da entidade. Da Apuração Administrativa de
Infração às Normas de Proteção
CAPÍTULO IV ao Idoso
Art.59. Os valores monetários expres-
Das Infrações Administrativas sos no Capítulo IV serão atuali-
Art. 56. Deixar a entidade de atendi- zados anualmente, na forma da
mento de cumprir as determina- lei.
ções do art. 50 desta Lei:
Art. 60. O procedimento para a
Pena – multa de R$ 500,00 (quinhen- imposição de penalidade
tos reais) a R$ 3.000,00 (três mil reais), se administrativa por infração às
normas de proteção ao idoso
199
IDÉIAS & LEIS

terá início com requisição do Público ou pelas demais


Ministério Público ou auto de instituições legitimadas para a
infração elaborado por servidor fiscalização.
efetivo e assinado, se possível,
por duas testemunhas. CAPÍTULO VI
§ 1º No procedimento iniciado com Da Apuração Judicial de
o auto de infração poderão ser usadas Irregularidades em Entidade de
fórmulas impressas, especificando-se a
Atendimento
natureza e as circunstâncias da infração.
Art. 64. Aplicam-se, subsidiariamente,
§ 2º Sempre que possível, à verifica-
ao procedimento administrativo
ção da infração seguir-se-á a lavratura do
de que trata este Capítulo, as
auto, ou este será lavrado dentro de 24
disposições das Leis nº 6.437,
(vinte e quatro) horas, por motivo justifi-
de 20 de agosto de 1977, e
cado.
9.784, de 29 de janeiro de
Art. 61. O autuado terá prazo de 10 1999.
(dez) dias para a apresentação
da defesa, contado da data da Art. 65. O procedimento de apuração
intimação, que será feita: de irregularidade em entidade
governamental e não-
I – pelo autuante, no instrumento de governamental de atendimento
autuação, quando for lavrado na presença ao idoso terá início mediante
do infrator; petição fundamentada de
II – por via postal, com aviso de rece- pessoa interessada ou iniciativa
bimento. do Ministério Público.
Art. 62. Havendo risco para a vida ou Art. 66. Havendo motivo grave, poderá
à saúde do idoso, a autoridade a autoridade judiciária, ouvido
competente aplicará à entidade o Ministério Público, decretar
de atendimento as sanções liminarmente o afastamento
regulamentares, sem prejuízo provisório do dirigente da
da iniciativa e das providências entidade ou outras medidas
que vierem a ser adotadas pelo que julgar adequadas, para
Ministério Público ou pelas evitar lesão aos direitos do
demais instituições legitimadas idoso, mediante decisão
para a fiscalização. fundamentada.
Art. 63. Nos casos em que não houver Art. 67. O dirigente da entidade será
risco para a vida ou a saúde citado para, no prazo de 10 (dez)
da pessoa idosa abrigada, a dias, oferecer resposta escrita,
autoridade competente aplicará podendo juntar documentos e
à entidade de atendimento indicar as provas a produzir.
as sanções regulamentares,
sem prejuízo da iniciativa e Art. 68. Apresentada a defesa, o juiz
das providências que vierem procederá na conformidade do
a ser adotadas pelo Ministério art. 69 ou, se necessário, desig-

200
ESTATUTO DO IDOSO

nará audiência de instrução e Art. 71. É assegurada prioridade na


julgamento, deliberando sobre tramitação dos processos e
a necessidade de produção de procedimentos e na execução
outras provas. dos atos e diligências judiciais
em que figure como parte ou
§ 1º Salvo manifestação em audiên-
interveniente pessoa com idade
cia, as partes e o Ministério Público terão 5
igual ou superior a 60 (sessenta)
(cinco) dias para oferecer alegações finais,
anos, em qualquer instância.
decidindo a autoridade judiciária em igual
prazo. § 1º O interessado na obtenção da
prioridade a que alude este artigo, fazendo
§ 2º Em se tratando de afastamen- prova de sua idade, requererá o benefí-
to provisório ou definitivo de dirigente cio à autoridade judiciária competente
de entidade governamental, a autoridade para decidir o feito, que determinará as
judiciária oficiará a autoridade administra- providências a serem cumpridas, anotan-
tiva imediatamente superior ao afastado, do-se essa circunstância em local visível
fixando-lhe prazo de 24 (vinte e quatro) nos autos do processo.
horas para proceder à substituição.
§ 2º A prioridade não cessará com a
§ 3º Antes de aplicar qualquer das morte do beneficiado, estendendo-se em
medidas, a autoridade judiciária poderá favor do cônjuge supérstite, companheiro
fixar prazo para a remoção das irregulari- ou companheira, com união estável, maior
dades verificadas. Satisfeitas as exigências, de 60 (sessenta) anos.
o processo será extinto, sem julgamento
§ 3º A prioridade se estende aos pro-
do mérito.
cessos e procedimentos na Administração
§ 4º A multa e a advertência serão Pública, empresas prestadoras de serviços
impostas ao dirigente da entidade ou ao públicos e instituições financeiras, ao aten-
responsável pelo programa de atendimen- dimento preferencial junto à Defensoria
to. Publica da União, dos Estados e do
Distrito Federal em relação aos Serviços
TÍTULO V de Assistência Judiciária.
Do Acesso à Justiça § 4º Para o atendimento priori-
tário será garantido ao idoso o fácil acesso
CAPÍTULO I aos assentos e caixas, identificados com
a destinação a idosos em local visível e
Disposições Gerais caracteres legíveis.
Art. 69. Aplica-se, subsidiariamente, às
disposições deste Capítulo, o CAPÍTULO II
procedimento sumário previsto Do Ministério Público
no Código de Processo Civil,
naquilo que não contrarie os Art. 72. (VETADO)
prazos previstos nesta Lei. Art. 73. As funções do Ministério
Art. 70. O Poder Público poderá Público, previstas nesta Lei,
criar varas especializadas e serão exercidas nos termos da
exclusivas do idoso. respectiva Lei Orgânica.

201
IDÉIAS & LEIS

Art. 74. Compete ao Ministério Público: VII – zelar pelo efetivo respeito aos
direitos e garantias legais assegurados ao
I – instaurar o inquérito civil e a ação
idoso, promovendo as medidas judiciais e
civil pública para a proteção dos direitos e
extrajudiciais cabíveis;
interesses difusos ou coletivos, individuais
indisponíveis e individuais homogêneos do VIII – inspecionar as entidades públi-
idoso; cas e particulares de atendimento e os
programas de que trata esta Lei, adotando
II – promover e acompanhar as ações
de pronto as medidas administrativas ou
de alimentos, de interdição total ou parcial, judiciais necessárias à remoção de irregu-
de designação de curador especial, em laridades porventura verificadas;
circunstâncias que justifiquem a medida, e
oficiar em todos os feitos em que se discu- IX – requisitar força policial, bem
tam os direitos de idosos em condições de como a colaboração dos serviços de saúde,
risco; educacionais e de assistência social, públi-
cos, para o desempenho de suas atri-
III – atuar como substituto processual buições;
do idoso em situação de risco, conforme o
X – referendar transações envolvendo
disposto no art. 43 desta Lei;
interesses e direitos dos idosos previstos
IV – promover a revogação de instru- nesta Lei.
mento procuratório do idoso, nas hipóte-
§ 1º A legitimação do Ministério
ses previstas no art. 43 desta Lei, quando
Público para as ações cíveis previstas neste
necessário ou o interesse público justificar;
artigo não impede a de terceiros, nas mes-
V – instaurar procedimento adminis- mas hipóteses, segundo dispuser a lei.
trativo e, para instrui-lo: § 2º As atribuições constantes deste
a) expedir notificações, colher depoi- artigo não excluem outras, desde que com-
mentos ou esclarecimentos e, em caso de patíveis com a finalidade e atribuições do
não comparecimento injustificado da pes- Ministério Público.
soa notificada, requisitar condução coerci- § 3º O representante do Ministério
tiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar; Público, no exercício de suas funções, terá
b) requisitar informações, exames, perí- livre acesso a toda entidade de atendimen-
cias e documentos de autoridades munici- to ao idoso.
pais, estaduais e federais, da administração Art. 75. Nos processos e procedimentos
direta e indireta, bem como promover em que não for parte, atuará
inspeções e diligências investigatórias; obrigatoriamente o Ministério
c) requisitar informações e documen- Público na defesa dos direitos
tos particulares de instituições privadas; e interesses de que cuida esta
Lei, hipóteses em que terá vista
VI – instaurar sindicâncias, requisitar dos autos depois das partes,
diligências investigatórias e a instauração podendo juntar documentos,
de inquérito policial, para a apuração de requerer diligências e produção
ilícitos ou infrações às normas de proteção de outras provas, usando os
ao idoso; recursos cabíveis.

202
ESTATUTO DO IDOSO

Art. 76. A intimação do Ministério Art. 80. As ações previstas neste


Público, em qualquer caso, Capítulo serão propostas no
será feita pessoalmente. foro do domicílio do idoso, cujo
Art. 77. A falta de intervenção do juízo terá competência absoluta
Ministério Público acarreta para processar a causa, ressalva-
a nulidade do feito, que será das as competências da Justiça
declarada de ofício pelo juiz Federal e a competência origi-
ou a requerimento de qualquer nária dos Tribunais Superiores.
interessado. Art. 81. Para as ações cíveis fundadas
em interesses difusos, coletivos,
CAPÍTULO III individuais indisponíveis ou
Da Proteção Judicial dos homogêneos, consideram-se
legitimados, concorrentemente:
Interesses Difusos, Coletivos
e Individuais Indisponíveis ou I – o Ministério Público;
Homogêneos II – a União, os Estados, o Distrito
Art. 78. As manifestações processuais Federal e os Municípios;
do representante do III – a Ordem dos Advogados do
Ministério Público deverão ser Brasil;
fundamentadas.
IV – as associações legalmente
Art. 79. Regem-se pelas disposições constituídas há pelo menos 1 (um)
desta Lei as ações de
ano e que incluam entre os fins institu-
responsabilidade por ofensa
cionais a defesa dos interesses e direitos da
aos direitos assegurados ao
pessoa idosa, dispensada a autorização da
idoso, referentes à omissão ou
assembléia, se houver prévia autorização
ao oferecimento insatisfatório
estatutária.
de:
I – acesso às ações e serviços de § 1º Admitir-se-á litisconsórcio faculta-
saúde; tivo entre os Ministérios Públicos da União
e dos Estados na defesa dos interesses e
II – atendimento especializado ao direitos de que cuida esta Lei.
idoso portador de deficiência ou com limi-
tação incapacitante; § 2º Em caso de desistência ou aban-
dono da ação por associação legitimada,
III – atendimento especializado ao o Ministério Público ou outro legitimado
idoso portador de doença infecto-conta- deverá assumir a titularidade ativa.
giosa;
Art. 82. Para defesa dos interesses e
IV – serviço de assistência social
direitos protegidos por esta Lei,
visando ao amparo do idoso.
são admissíveis todas as espécies
Parágrafo único. As hipóteses previs- de ação pertinentes.
tas neste artigo não excluem da proteção
Parágrafo único. Contra atos ilegais ou
judicial outros interesses difusos, coletivos,
abusivos de autoridade pública ou agente de
individuais indisponíveis ou homogêneos,
pessoa jurídica no exercício de atribuições
próprios do idoso, protegidos em lei.

203
IDÉIAS & LEIS

de Poder Público, que lesem direito líquido Art. 85. O juiz poderá conferir efeito
e certo previsto nesta Lei, caberá ação man- suspensivo aos recursos, para
damental, que se regerá pelas normas da lei evitar dano irreparável à parte.
do mandado de segurança. Art. 86. Transitada em julgado
Art. 83. Na ação que tenha por objeto a sentença que impuser
o cumprimento de obrigação condenação ao Poder Público,
de fazer ou não-fazer, o juiz o juiz determinará a remessa
concederá a tutela específica de peças à autoridade
da obrigação ou determinará competente, para apuração
providências que assegurem o da responsabilidade civil e
resultado prático equivalente administrativa do agente a que
ao adimplemento. se atribua a ação ou omissão.
§ 1º Sendo relevante o fundamento Art. 87. Decorridos 60 (sessenta) dias do
da demanda e havendo justificado receio trânsito em julgado da sentença
de ineficácia do provimento final, é lícito condenatória favorável ao idoso
ao juiz conceder a tutela liminarmente ou sem que o autor lhe promova
após justificação prévia, na forma do art. a execução, deverá fazê-lo o
273 do Código de Processo Civil. Ministério Público, facultada,
§ 2º O juiz poderá, na hipótese do igual iniciativa aos demais
§ 1º ou na sentença, impor multa diária legitimados, como assistentes
ao réu, independentemente do pedido do ou assumindo o pólo ativo, em
autor, se for suficiente ou compatível com caso de inércia desse órgão.
a obrigação, fixando prazo razoável para o Art. 88. Nas ações de que trata
cumprimento do preceito. este Capítulo, não haverá
§ 3º A multa só será exigível do réu adiantamento de custas,
após o trânsito em julgado da sentença emolumentos, honorários
favorável ao autor, mas será devida desde periciais e quaisquer outras
o dia em que se houver configurado. despesas.

Art. 84. Os valores das multas previstas Parágrafo único. Não se imporá
nesta Lei reverterão ao Fundo sucumbência ao Ministério Público.
do Idoso, onde houver, ou na Art. 89. Qualquer pessoa poderá, e
falta deste, ao Fundo Municipal o servidor deverá, provocar
de Assistência Social, ficando a iniciativa do Ministério
vinculados ao atendimento ao Público, prestando-lhe
idoso. informações sobre os fatos que
Parágrafo único. As multas não constituam objeto de ação civil
recolhidas até 30 (trinta) dias após o e indicando-lhe os elementos
trânsito em julgado da decisão serão exigi- de convicção.
das por meio de execução promovida pelo Art. 90. Os agentes públicos em
Ministério Público, nos mesmos autos, geral, os juízes e tribunais,
facultada igual iniciativa aos demais legiti- no exercício de suas funções,
mados em caso de inércia daquele. quando tiverem conhecimento

204
ESTATUTO DO IDOSO

de fatos que possam configurar madas poderão apresentar razões escritas


crime de ação pública contra ou documentos, que serão juntados ou
idoso ou ensejar a propositura anexados às peças de informação.
de ação para sua defesa, § 4º Deixando o Conselho Superior
devem encaminhar as peças ou a Câmara de Coordenação e Revisão
pertinentes ao Ministério do Ministério Público de homologar a pro-
Público, para as providências moção de arquivamento, será designado
cabíveis. outro membro do Ministério Público para
Art. 91. Para instruir a petição inicial, o ajuizamento da ação.
o interessado poderá requerer
às autoridades competentes as TÍTULO VI
certidões e informações que
julgar necessárias, que serão Dos Crimes
fornecidas no prazo de 10 (dez)
dias. CAPÍTULO I
Art. 92. O Ministério Público poderá Disposições Gerais
instaurar, sob sua presidência, Art. 93. Aplicam-se subsidiariamente,
inquérito civil, ou requisitar, no que couber, as disposições
de qualquer pessoa, organismo da Lei nº 7.347, de 24 de julho
público ou particular, certidões, de 1985.
informações, exames ou
perícias, no prazo que assinalar, Art. 94. Aos crimes previstos nesta Lei,
o qual não poderá ser inferior a cuja pena máxima privativa
10 (dez) dias. de liberdade não ultrapasse
4 (quatro) anos, aplica-se o
§ 1º Se o órgão do Ministério Público, procedimento previsto na Lei
esgotadas todas as diligências, se con- nº 9.099, de 26 de setembro de
vencer da inexistência de fundamento para 1995, e, subsidiariamente, no
a propositura da ação civil ou de peças que couber, as disposições do
informativas, determinará o seu arquiva- Código Penal e do Código de
mento, fazendo-o fundamentadamente. Processo Penal.
§ 2º Os autos do inquérito civil ou
as peças de informação arquivados serão CAPÍTULO II
remetidos, sob pena de se incorrer em
falta grave, no prazo de 3 (três) dias, ao
Dos Crimes em Espécie
Conselho Superior do Ministério Público Art. 95. Os crimes definidos nesta Lei
ou à Câmara de Coordenação e Revisão são de ação penal pública
do Ministério Público. incondicionada, não se lhes
§ 3º Até que seja homologado ou aplicando os arts. 181 e 182 do
rejeitado o arquivamento, pelo Conselho Código Penal.
Superior do Ministério Público ou por Art. 96. Discriminar pessoa idosa,
Câmara de Coordenação e Revisão do impedindo ou dificultando seu
Ministério Público, as associações legiti- acesso a operações bancárias,

205
IDÉIAS & LEIS

aos meios de transporte, ao condições desumanas ou


direito de contratar ou por degradantes ou privando-
qualquer outro meio ou o de alimentos e cuidados
instrumento necessário ao indispensáveis, quando
exercício da cidadania, por obrigado a fazê-lo, ou
motivo de idade: sujeitando-o a trabalho
excessivo ou inadequado:
Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1
(um) ano e multa. Pena – detenção de 2 (dois) meses a
1 (um) ano e multa.
§ 1º Na mesma pena incorre quem
desdenhar, humilhar, menosprezar ou dis- § 1º Se do fato resulta lesão corporal
criminar pessoa idosa, por qualquer motivo. de natureza grave:
§ 2º A pena será aumentada de 1/3 Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro)
(um terço) se a vítima se encontrar sob os anos.
cuidados ou responsabilidade do agente. § 2º Se resulta a morte:
Art. 97. Deixar de prestar assistência ao Pena – reclusão de 4 (quatro) a 12
idoso, quando possível fazê-lo (doze) anos.
sem risco pessoal, em situação
de iminente perigo, ou recusar, Art. 100. Constitui crime punível com
retardar ou dificultar sua reclusão de 6 (seis) meses a 1
assistência à saúde, sem justa (um) ano e multa:
causa, ou não pedir, nesses I – obstar o acesso de alguém a
casos, o socorro de autoridade qualquer cargo público por motivo de
pública: idade;
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 II – negar a alguém, por motivo de
(um) ano e multa. idade, emprego ou trabalho;
Parágrafo único. A pena é aumenta- III – recusar, retardar ou dificultar
da de metade, se da omissão resulta lesão atendimento ou deixar de prestar assistên-
corporal de natureza grave, e triplicada, se cia à saúde, sem justa causa, a pessoa
resulta a morte. idosa;
Art. 98. Abandonar o idoso em hospitais, IV – deixar de cumprir, retardar ou
casas de saúde, entidades frustrar, sem justo motivo, a execução de
de longa permanência, ou ordem judicial expedida na ação civil a
congêneres, ou não prover suas que alude esta Lei;
necessidades básicas, quando V – recusar, retardar ou omitir dados
obrigado por lei ou mandado: técnicos indispensáveis à propositura da
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 3 ação civil objeto desta Lei, quando requi-
(três) anos e multa. sitados pelo Ministério Público.
Art. 99. Expor a perigo a integridade Art. 101. Deixar de cumprir, retardar ou
e a saúde, física ou psíquica, frustrar, sem justo motivo, a
do idoso, submetendo-o a execução de ordem judicial

206
ESTATUTO DO IDOSO

expedida nas ações em que for Art. 107. Coagir, de qualquer modo, o
parte ou interveniente o idoso: idoso a doar, contratar, testar
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 ou outorgar procuração:
(um) ano e multa. Pena – reclusão de 2 (dois) a 5
Art. 102. Apropriar-se de ou desviar bens, (cinco) anos.
proventos, pensão ou qualquer Art. 108. Lavrar ato notarial que envolva
outro rendimento do idoso, pessoa idosa sem discernimento
dando-lhes aplicação diversa de seus atos, sem a devida
da de sua finalidade: representação legal:
Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) Pena – reclusão de 2 (dois) a 4
anos e multa. (quatro) anos.
Art. 103. Negar o acolhimento ou a
permanência do idoso, como TÍTULO VII
abrigado, por recusa deste em
outorgar procuração à entidade Disposições Finais e Transitórias
de atendimento: Art. 109. Impedir ou embaraçar ato do
representante do Ministério
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1
Público ou de qualquer outro
(um) ano e multa.
agente fiscalizador:
Art. 104. Reter o cartão magnético
Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1
de conta bancária relativa a benefícios,
(um) ano e multa.
proventos ou pensão do idoso, bem como
qualquer outro documento com objetivo Art. 110. O Decreto-Lei nº 2.848, de 7
de assegurar recebimento ou ressarcimen- de dezembro de 1940, Código
to de dívida: Penal, passa a vigorar com as
seguintes alterações:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2
(dois) anos e multa. “Art. 61. ....................................................
Art. 105. Exibir ou veicular, por qualquer II - .....................................................
meio de comunicação, h) contra criança, maior de 60
informações ou imagens (sessenta) anos, enfermo ou mulher
depreciativas ou injuriosas à grávida;
pessoa do idoso:
.................................................................”
Pena – detenção de 1 (um) a 3 (três)
anos e multa. “Art. 121. ..................................................

Art. 106. Induzir pessoa idosa sem § 4º No homicídio culposo, a pena


discernimento de seus atos a é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime
resulta de inobservância de regra técnica
outorgar procuração para fins
de profissão, arte ou ofício, ou se o agente
de administração de bens ou
deixa de prestar imediato socorro à vítima,
deles dispor livremente:
não procura diminuir as conseqüências
Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 do seu ato, ou foge para evitar prisão em
(quatro) anos. flagrante. Sendo doloso o homicídio, a

207
IDÉIAS & LEIS

pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o “Art. 244. Deixar, sem justa causa,
crime é praticado contra pessoa menor de de prover a subsistência do
14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) cônjuge, ou de filho menor
anos. de 18 (dezoito) anos ou
................................................................... inapto para o trabalho, ou de
ascendente inválido ou maior
“Art. 133. .................................................. de 60 (sessenta) anos, não lhes
§ 3º ................................................... proporcionando os recursos
necessários ou faltando
III – se a vítima é maior de 60
ao pagamento de pensão
(sessenta) anos.”
alimentícia judicialmente
“Art. 140. ......................................... acordada, fixada ou majorada;
§ 3º Se a injúria consiste na utilização deixar, sem justa causa, de
de elementos referentes a raça, cor, etnia, socorrer descendente ou
religião, origem ou a condição de pessoa ascendente, gravemente
idosa ou portadora de deficiência: enfermo:
.................................................................. ......................................................” ;
“Art. 141. ......................................... Art. 111. O art. 21 do Decreto-Lei nº
3.688, de 3 de outubro de 1941,
IV – contra pessoa maior de 60 Lei das Contravenções Penais,
(sessenta) anos ou portadora de deficiência, passa a vigorar acrescido do
exceto no caso de injúria. seguinte parágrafo único:
.......................................................... “Art. 21.............................................
“Art. 148. ......................................... Parágrafo único. Aumenta-se a pena
§ 1º................................................... de 1/3 (um terço) até a metade se a vítima
I – se a vítima é ascendente, é maior de 60 (sessenta) anos.” (NR)
descendente, cônjuge do agente ou maior Art. 112. O inciso II do § 4º do art.
de 60 (sessenta) anos. 1º da Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997,
.................................................................. passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 159........................................... “Art. 1º .............................................

§ 1º Se o seqüestro dura mais de 24 § 4º ..................................................


(vinte e quatro) horas, se o seqüestrado II – se o crime é cometido contra
é menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 criança, gestante, portador de deficiência,
(sessenta) anos, ou se o crime é cometido adolescente ou maior de 60 (sessenta)
por bando ou quadrilha. anos;
.......................................................... ......................................................” ;
“Art. 183........................................... Art. 113. O inciso III do art. 18 da Lei
III – se o crime é praticado contra nº 6.368, de 21 de outubro de
pessoa com idade igual ou superior a 60 1976, passa a vigorar com a
(sessenta) anos.” (NR) seguinte redação:

208
ESTATUTO DO IDOSO

“Art. 18............................................. de desenvolvimento sócio-


III – se qualquer deles decorrer de econômico alcançado pelo
associação ou visar a menores de 21 (vinte País.
e um) anos ou a pessoa com idade igual Art. 118. Esta Lei entra em vigor
ou superior a 60 (sessenta) anos ou a quem decorridos 90 (noventa) dias
tenha, por qualquer causa, diminuída ou da sua publicação, ressalvado
suprimida a capacidade de discernimento o disposto no caput do art. 36,
ou de autodeterminação: que vigorará a partir de 1º de
......................................................” ; janeiro de 2004.

Art. 114. O art. 1º da Lei nº


10.048, de 8 de novembro de 2000, passa
a vigorar com a seguinte redação: Brasília, 1º de outubro de 2003; 182º
“Art. 1º As pessoas portadoras de da Independência e 115º da República.
deficiência, os idosos com idade
igual ou superior a 60 (sessenta)
anos, as gestantes, as lactantes
e as pessoas acompanhadas LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
por crianças de colo terão
Márcio Thomaz Bastos
atendimento prioritário, nos
termos desta Lei”.(NR) Antonio Palocci Filho
Art. 115. O Orçamento da Seguridade Rubem Fonseca Filho
Social destinará ao Fundo Humberto Sérgio Costa Lima
Nacional de Assistência Social,
até que o Fundo Nacional do Guido Mantega
Idoso seja criado, os recursos Ricardo José Ribeiro Berzoini
necessários, em cada exercício
Benedita Souza da Silva Sampaio
financeiro, para aplicação em
programas e ações relativos ao Álvaro Augusto Ribeiro Costa
idoso.
Art. 116. Serão incluídos nos censos
demográficos dados relativos à
população idosa do País.
Art. 117. O Poder Executivo encaminhará
ao Congresso Nacional projeto
de lei revendo os critérios de
concessão do Benefício de
Prestação Continuada previsto
na Lei Orgânica da Assistência
Social, de forma a garantir
que o acesso ao direito seja
condizente com o estágio

209
IDÉIAS E LEIS * PAULO PAIM

Jó e suas filhas - William Blake

Vida Nova para os Idosos


A mudança do perfil demográfico Durante todo o século passado, a
atualmente observado na população bra- expectativa de vida da população brasilei-
sileira, que aos poucos vai fazendo o Brasil ra saltou de pouco mais de 33 anos para
perder aquela marca que o caracterizava até 70 anos de idade para as mulheres e
como um “país de jovens” e nos inserin- próximo de 65 anos para os homens. Esse
do entre aquelas nações desenvolvidas, rápido envelhecimento da nossa popula-
que já a partir do século 19 começaram ção, além de ser uma novidade, pegou a
a aumentar a expectativa de vida de suas sociedade como um todo de surpresa, e o
populações – pelo desenvolvimento tec- mais grave, completamente despreparada
nológico, pela melhoria da qualidade de para se relacionar com as pessoas mais
vida, das condições sanitárias, de trabalho, idosas. O resultado desse despreparo vem
de moradia, pelo avanço da medicina, uso sendo estampado quase diariamente em
de vacinas e medicamentos e uma nutri- nossos meios de comunicação, ao registrar
ção mais adequada – de certa forma nos a crescente violência a que vêm sendo
motiva como povo, mas seguramente não submetidos nossos idosos.
chega a nos orgulhar como cidadãos.

(*) O Senador Paulo Paim é o autor do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003).

210
O Brasil é um país onde a marginaliza- Congresso Nacional o Estatuto do Idoso,
ção dos idosos tem raízes antigas e estão se projeto de nossa iniciativa apresentado em
aprofundado com o passar do tempo. No 1997, quando do exercício do mandato
mercado de trabalho, eles são prematura- de deputado federal, e transformado pelo
mente excluídos, estão abalados em sua Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Lei
auto-imagem e sobrevivência pelo des- nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, em
caso do governo e muitas vezes carecem vigor desde 1º de janeiro de 2004.
do amparo da família. Lamentavelmente, De uma proposta original de cerca
é preciso reconhecer que em nosso país de 40 artigos, o projeto mereceu a criação
o idoso está sendo marginalizado. Ele é de uma Comissão Especial do Estatuto
despedido, abandonado, excluído, rejei- do Idoso, onde recebeu e teve aprovado
tado, roubado, violentado e morto. Pobre o brilhante substitutivo do relator Silas
ou rico, dotado de cultura ou ignorante, Brasileiro, de 123 artigos.
o idoso é vítima e pouco reclama da vio-
lência que sofre. Não denuncia os maus- A Comissão Especial do Idoso viajou
tratos porque, na maioria dos casos, divide muito por este País para ouvir a sociedade
com seus algozes o mesmo teto. Não raro e também os idosos, de forma individual.
sua própria renda lhe é subtraída pelos Seu trabalho nos proporcionou momentos
próprios filhos, netos ou sobrinhos, que de tristeza e alegria.
estabelecem uma verdadeira rotina de De tristeza, ao perceber que o aban-
violência sob a proteção dos laços fami- dono, as agressões, as apropriações dos
liares. bens dos idosos são alarmantes. Um dado
Isso torna “invisível” a agressão con- que nos deixou ainda mais perplexos é
tra o idoso, que tem medo de denunciar e que a agressão, em 90% dos casos, vem da
ser mandado para um asilo, ou procura a própria família.
todo custo evitar que o assunto ultrapasse Mas tivemos também momentos de
os limites do lar. Por medo ou até mesmo alegria, ao ver o brilho no olhar, nos cabe-
por amor aos seus descendentes, os idosos los prateados de homens e mulheres, o
guardam em segredo a violência de que brilho da esperança, do otimismo, não
são vítimas. se deixando derrotar pelos pessimistas ou
As estatísticas das entidades que pelo medo da realidade em que vivem.
atendem pessoas da terceira idade indicam O texto final do Estatuto é fruto dos
que, no ano passado, cerca de 15 mil bra- trabalhos dessa Comissão, de seminários e
sileiros e brasileiras com mais de 60 anos de um trabalho conjunto de parlamenta-
foram vítimas de espancamentos, torturas, res, especialistas, profissionais das áreas
abusos sexuais e, em muitos casos, indu- de saúde, do direito e da assistência social,
zidos ao suicídio. Nos hospitais públicos, e de entidades e organizações não-gover-
32% dos idosos atendidos foram vítimas namentais voltadas para a defesa dos direi-
de algum tipo de agressão, praticada, em tos e da proteção aos idosos. Ele se propõe
90% dos casos, dentro de casa, pelos seus a alterar esse quadro atual da situação do
próprios parentes. idoso, em que se destacam a negligência,
A busca de solução para esses o descaso e a violência a que são subme-
problemas nos inspirou a propor ao tidos.

211
IDÉIAS E LEIS

Sua elaboração foi imaginada como atenção às doenças específicas dos idosos;
um recurso pleno para os idosos, aposen- vacinas para prevenção; cadastramento
tados ou não. O Estatuto define o idoso da população idosa; atendimento domi-
brasileiro como aquele que alcançou os ciliar, quando necessário; fornecimento
60 anos de idade. Estabelece como dever gratuito de medicamentos (inclusive próte-
da família, da comunidade, da sociedade ses, habilitação ou reabilitação); vedação
em geral, e do Poder Público assegurar ao da cobrança diferenciada nos planos de
idoso, com absoluta prioridade, a efetiva- saúde, em razão da idade; assistência ime-
ção dos direitos referentes à vida, à saúde, diata e prioritária onde está assegurada a
à alimentação, à cultura, ao esporte, ao atenção integral, bem como políticas de
lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberda- prevenção, promoção, proteção e recupe-
de, à dignidade, ao respeito e à convivên- ração da saúde do idoso.
cia familiar e comunitária. No capítulo reservado à Previdência
Considera a velhice um direito perso- Social, prevê-se a vinculação das aposen-
nalíssimo e a sua proteção, uma obrigação tadorias e pensões ao salário-mínimo; a
social. Garante ao idoso a proteção à vida garantia de um salário-mínimo para todo
e à saúde, mediante efetivação de políticas o idoso que a renda mensal per capita da
sociais públicas que permitam um enve- família não ultrapasse o piso salarial (hoje
lhecimento saudável e em condições de é 1/4 do salário-mínimo); a garantia de
dignidade. que o aposentado receba sempre o mesmo
O Estatuto assegura ao idoso a liber- número de salários-mínimos que recebia
dade, o respeito e a dignidade como pes- na época em que se aposentou. Estabelece
soa humana. A obrigação de alimentar o Dia Internacional do Trabalho – 1º de
o idoso deve ser solidária e as transações maio – como data-base dos aposentados e
relativas a alimentos poderão ser celebradas pensionistas.
perante o Promotor de Justiça e passarão a O Estatuto garante ao idoso, a partir
ter efeito de título executivo extrajudicial dos 65 anos de idade, que não possua
nos termos da Lei de Processo Civil. meios para prover sua subsistência, nem
O documento prevê o respeito à de tê-la provida por sua família, o benefício
inserção do idoso no mercado de trabalho mensal de um salário-mínimo. Assegura o
e à profissionalização, tendo em vista suas direito à moradia digna, no seio da família
condições físicas, intelectuais e psíquicas, natural ou substituta, ou desacompanhado
pois eles podem e devem contribuir com de seus familiares, quando assim o dese-
a sua experiência para o crescimento do jar, ou, ainda, em instituição pública ou
País. O acesso à cultura, ao esporte e ao privada.
lazer está presente com propostas e pro- O Estatuto do Idoso também garante
gramas voltados para esta fase da vida. aos maiores de 65 anos de idade a gratui-
Estão também asseguradas políticas de dade nos transportes coletivos públicos,
prevenção, promoção, proteção e recupe- urbanos e semi-urbanos. Para acesso a essa
ração da saúde do idoso. gratuidade, é suficiente a apresentação de
O Estatuto estabelece o direito à documento de prova de identidade.
saúde integral do idoso, que prevê: progra- O Estatuto do Idoso amplia os direi-
mas de assistência médica e odontológica; tos presentes na Lei nº 8.842/94 - Política

212
PAULO PAIM

Nacional do Idoso. Esta Lei é fundamental, Há menos idosos abaixo da linha de pobre-
mas o novo diploma a amplia, quando za do que em qualquer outra faixa etária.
tipifica os crimes e define as penas para Em apenas 4% dos domicílios do país,
todos os que desrespeitarem o idoso. No eles vivem como dependentes. Em 22%,
novo diploma, a política de atendimento chefiam a casa, muitas vezes, repleta de
ao idoso será feita por meio do conjunto descendentes. Em 70% dos domicílios de
articulado de ações governamentais e não- idosos foi verificada a presença de filhos.
governamentais, da União, dos Estados, do Pesquisa conduzida por Paulo Saad, do
Distrito Federal e dos Municípios. Programa de Envelhecimento da Divisão
de População das Nações Unidas, mostrou
Poderíamos destacar todos os artigos
que, em Fortaleza, 52% dos idosos entrevis-
desse Estatuto como sendo fundamentais,
tados ajudavam os filhos financeiramente.
pois cada um é o resultado de uma gran-
de reflexão e observação da realidade em Esses números ratificam o levanta-
que vive o idoso brasileiro. É também uma mento Perfil dos Idosos Responsáveis pelos
proposta ousada que amplia direitos e leva Domicílios no Brasil - elaborado pelo IBGE
para o futuro melhores condições de vida a partir dos dados do Censo de 2000. O
à terceira idade. levantamento conclui que a população
com mais de 60 anos conquistou, na
Segundo o IBGE, entre 1991 e 2000,
última década, uma maior importância
o contingente de pessoas com 60 anos
econômica. Em 2000, 62,4% desse con-
ou mais subiu de 10,7 milhões para 14,5
tingente mantinha a condição de chefe de
milhões,um aumento de 35,5% em uma
família, no Brasil. Em 1991, esse percentu-
década. Nos próximos 20 anos, os ido-
al se limitava a 60,4%.
sos brasileiros poderão ultrapassar os 30
milhões de pessoas e deverão representar Um estudo de Vânia Cristina Liberato,
quase 13% da população. Trata-se da da Universidade Federal de Minas Gerais
maior massa de idosos de uma geração (UFMG), mostra que, em 1978, 26% dos
de brasileiros. A proporção de idosos está aposentados e 13% das aposentadas mora-
crescendo mais rapidamente que a de dores de regiões urbanas continuavam
crianças. Em 1980, existiam cerca de com algum tipo de ocupação. Em 1999,
16 idosos para cada 100 crianças. Em essas taxas subiram para 33% e 21%,
2000, essa relação praticamente dobrou, respectivamente. O trabalho mostra que a
passando para quase 30 idosos por 100 atividade do aposentado aumenta com seu
crianças. O quadro é similar para toda a grau de escolaridade.
América Latina. Hoje, aproximadamente O Brasil é um país que envelhece a
41 milhões de pessoas têm mais de 60 passos largos. Entretanto, a infra-estrutura
anos no continente. Elas serão 98 milhões, para responder às demandas da população
em 2025, e 184 milhões, em 2050. de idosos em termos de instalações, pro-
Pesquisa recente do Ipea aponta a gramas e mesmo adequação urbana das
crescente importância dos idosos brasilei- cidades, está muito aquém do desejável.
ros no sustento de suas famílias. Resultado A região Sudeste concentra a maior
do progressivo desemprego de filhos e parte da população de idosos. Segundo o
netos, são os avós que cada vez mais, com mapa elaborado pelo censo 2000, 6,37%
suas pensões, mantêm o resto da família. da população residente no Sudeste é com-

213
IDÉIAS E LEIS

posta por pessoas com 65 anos ou mais. da população, deve baixar para 24,3%. A
Seguido pela região Sul (6,22%), Nordeste taxa de fertilidade feminina também deve
(5,85%), Centro-Oeste (4,27%) e Norte acompanhar a queda, declinando de 4,7%
(3,64%). No entanto, a região Centro- para 2,3%. Em contrapartida, a expectativa
Oeste se destaca pelo maior crescimento é de que a população de idosos aumente.
relativo (30,58%) na proporção, nessa Hoje, os idosos correspondem a 5% dos
faixa etária. habitantes. Em 2015, deverão ser 7,3%.
Mas o Sul tem a maior proporção de Esses números falam por si e nos
idosos. As cidades campeãs são Colinas apresentam o grande desafio que é a
e Santa Tereza, ambas no Rio Grande do questão do idoso. Será que os jovens têm
Sul. A primeira tem 15,60% da população plena consciência de que serão os idosos
com idade igual ou superior a 65 anos. de amanhã? Será que entendem que a
Na segunda, o percentual é de 15,21%. forma de tratamento que dispensam hoje
No pólo extremo estão dois municípios aos mais velhos é a mesma que lhes está
do Mato Grosso. União do Sul e Sapezal reservada no futuro? Tenho dito que se
têm a menor proporção de pessoas não aprendermos a respeitar nosso pai,
com idade avançada: 0,64% e 0,98%, nosso avô, nosso bisavô, não mereceremos
respectivamente. respeito no futuro.
Um país com população concentrada A vida, na sua sabedoria, nos ensina
nas cidades e número cada vez maior que os mais velhos são os mais sábios. A
de idosos. Esse será o retrato do Brasil, sabedoria milenar diz que “a vida é fruto
em 2015, traçado a partir do Relatório da energia do Universo”.
do Desenvolvimento Humano 2001, que Essa energia acompanha a Lei de
projetou as tendências do crescimento Causa e Efeito. O caminho que precisamos
demográfico do país. construir é o da generosidade. É o da
A taxa de crescimento anual solidariedade entre as gerações. Até
da população brasileira (1,1%) deverá porque, o jovem de hoje será o idoso de
acompanhar a média mundial, estimada amanhã.O Estatuto do Idoso tem o sentido
em 1,2% para o período de 1999 a 2015. de dar cidadania plena à nossa velhice.
É um percentual três vezes maior que o É esta população que passa a ser
dos países com elevado percentual de assistida com a transformação em lei do
desenvolvimento humano, que se situa Estatuto do Idoso. Uma população que
em 0,4%. A população do Brasil, que tem muitas vezes deveria já estar descansando,
170 milhões de habitantes, deve alcançar mas que ainda participa da promoção do
os 201,4 milhões em 2015. nosso desenvolvimento.
O crescimento da população E que nem por isso é compreendida.
urbana, tendência mundial, também Na verdade, é agredida nos seus direitos
se acentuará no Brasil. O percentual de mais básicos. Até pelo despreparo de uma
80,7% da população que hoje vive em sociedade que não soube conviver com o
centros urbanos brasileiros deve subir para rápido envelhecimento de sua população,
86,5%. No mundo, a estimativa é mais mas que agora, com o Estatuto do Idoso,
modesta: de 46,5% para 53,2%.
terá de rever atos, comportamentos, e
O número de brasileiros de até 15 mudar o seu trato com os mais velhos.
anos, que em 1999 correspondiam a 29,3%

214
* FÁTIMA NANCY ANDRIGHI IDÉIAS E LEIS
DAVID FLEISCHER*

A Morte de Fogo - Paul Klee

O Acesso do Idoso ao
Judiciário
Somente após o país completar qui- O Estatuto do Idoso ingressa no orde-
nhentos anos, vem a lume uma Lei que namento jurídico nacional com o com-
ampara os idosos brasileiros, denominada promisso de traçar uma linha divisória
Estatuto do Idoso, materializado pela Lei no comportamento de todos os cidadãos,
nº 10.741/03, a qual possui uma similitu- agentes públicos e privados em face aos
de com aquela que instituiu os Juizados idosos. A nova Lei explicita as regras
Especiais Cíveis e Criminais, qual seja, programáticas constantes no art. 230 da
tramitou por mais de sete anos na Casa Constituição, dispondo, nos termos do art.
Legislativa. 2º, que devem ser assegurados aos idosos

*Ministra do Superior Tribunal de justiça.

215
IDÉIAS E LEIS

“todas as oportunidades e facilidades, para cientificamente, decorrentes da aflição e


preservação de sua saúde física e mental da angústia geradas durante a infindável
e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espera na definição da pendenga judicial.
espiritual e social, em condições de liberda- Urge reconhecer que o idoso
de e dignidade”; o art. 3º explicita a quem
brasileiro passa por inumeráveis
incumbe garantir com absoluta prioridade,
dificuldades e impedimentos quando busca
referidos deveres: à família, à comunidade,
exercer seus direitos por meio do processo
à sociedade e ao Poder Público.
judicial. O tormento principia pelas
A Lei que dispõe sobre o Estatuto dificuldades mais elementares que são a
do Idoso está estruturada em sete Títulos busca e a obtenção de orientação jurídica
a saber: Título I – Das Disposições segura e adequada. O ajuizamento de
Preliminares; Título II – Dos Direitos um processo exige condições econômicas
Fundamentais, este composto de dez para custeá-lo, caso contrário dependerá
Capítulos; Título III – Das Medidas de da assistência judiciária gratuita, cujo
Proteção, subdividido em dois Capítulos; trabalho será feito pelas Defensorias
Título IV – Da Política de Atendimento Públicas estaduais.
ao Idoso, com seis Capítulos; Título V
Não se pode ignorar a insegurança
– Do Acesso à Justiça, disciplinado em três
e também o sentimento de inferioridade
Capítulos; Título VI – Dos Crimes, com dois
que transpassam o coração de um idoso
Capítulos; e Título VII – Das Disposições
quando depende da assistência judiciária
Finais e Transitórias, enfeixando 118
gratuita para ajuizar ação ou se defender
artigos.
em juízo. Muito embora se reconheça
Este singelo ensaio tem a finalidade o esforço hercúleo despendido pelos
de planear, sem pretensão de oferecer Defensores Públicos no exercício da suas
soluções, e, apenas a título de sugestão, funções, é sabido que não conseguem
apontar as imprescindíveis providências atender satisfatoriamente a avalanche de
a serem tomadas pelas administrações demandas a que são submetidos. Essa
de todos os tribunais com o objetivo de ineficiência se deve à precariedade das
cumprir a contento o Título V do Estatuto instalações, à falta de instrumentos de
do Idoso, que garante o acesso à Justiça. trabalho e, principalmente, ao insuficiente
O dever de facilitar ao idoso o acesso número de defensores. Sobre esse órgão,
ao Poder Judiciário mereceu destaque em tão importante para a concretização do
Título específico, “Do acesso à Justiça”, direito de acesso à Justiça, é importante
porque, sem dúvida, é uma das questões frisar que a instalação e a manutenção
relevantes na vida de todos os cidadãos são incumbências exclusivas do Poder
e, com muito mais ênfase, na de nossos Público, deveres até agora não cumpridos
idosos. satisfatoriamente.
Os obstáculos enfrentados para Ainda a propósito do papel das
solucionar problemas de natureza jurídica, Defensorias Públicas, é preciso fazer
bem como a demora na tramitação e um intenso e eficiente trabalho de
julgamento dos processos, podem causar esclarecimento à população em geral e,
males psicossomáticos à saúde dos no caso, especialmente aos idosos que
litigantes, conseqüência comprovada não puderem custear um processo, de que

216
FÁTIMA NANCY ANDRIGHI

sempre dependerão das providências, do pensamos que a aplicação na forma subsi-


trabalho prévio dos Defensores Públicos. diária subtrairá inúmeros benefícios à cele-
É preciso continuamente avisar todo idoso ridade. Carreando apenas um exemplo,
que os juízes só podem agir no sentido indicamos o proveito do pedido contra-
de dar-lhe proteção e tomar providências posto a ser formulado na contestação, evi-
em defesa dos seus direitos, a partir do tando um segundo processo para alcançar
momento em que forem provocados por eventual direito do réu em face do autor.
meio de requerimentos dos Defensores Na verdade, o Estatuto do Idoso, em
Públicos ou Advogados. matéria processual, não instituiu nenhuma
De todo o exposto, ficam para norma singular que agilize o processo
nós a reflexão e o questionamen- e o procedimento, apenas repetin-
to acerca da possibilidade de do, no art. 71, a prioridade na
ser cumprido satisfatoriamente
“Não se tramitação e cumprimento de
o Título V do Estatuto, por- pode ignorar diligências judiciais em que
quanto os idosos dependerão a insegurança e figure como parte ou inter-
do indispensável trabalho veniente pessoa com idade
prévio de outros segmentos também o sentimen- igual ou superior a sessenta
jurídicos para fazer chegar to de inferioridade que anos, em qualquer instân-
às mãos do juiz uma peti-
ção inicial, uma resposta
transpassam o coração cia. Desse benefício, ressal-
te-se, os idosos já desfrutam
ou um pedido de providên- de um idoso quando há algum tempo, mas, reco-
cia acautelatória. depende da assistên- nhecidamente, ele se mos-
Restrito o nosso exame tra insuficiente para alcan-
cia judiciária gratuita çar o objetivo da aceleração
apenas às questões jurídicas
no campo cível, observa-se, para ajuizar ação necessária à marcha pro-
cessual.
no art. 69 do Estatuto do Idoso, ou se defender
a opção do legislador em não É justificado o receio
em juízo”.
adotar o procedimento sumário porque sequer se garantiu, por
como rito obrigatório para todos os exemplo, o cumprimento de uma
litígios que envolverem partes ou ter- sentença condenatória com a exigên-
ceiros idosos, indicando sua aplicação em cia prévia de depósito do valor devido
caráter subsidiário, de forma meramente ou com a antecedente entrega da coisa
residual, ou no vácuo de norma específica, como condição “sine qua non” para que
acrescida a ressalva de inaplicabilidade a parte vencida possa interpor recurso,
quando contrariar os prazos previstos na tampouco se eliminou o efeito suspensivo
referida Lei. dos mesmos. Essas são apenas duas regras
Considerando que o procedimento processuais que, se adotadas, provocariam
sumário se caracteriza pela concentra- uma verdadeira revolução na proteção dos
ção de atos processuais embutidos numa direitos dos idosos litigantes, sem esquecer
mesma fase do processo, visando assegu- o caráter didático que produziria na inter-
rar-lhe celeridade sem omitir nenhum ato posição de recursos.
processual, o que viria a ferir o princípio Impõe-se, porém, louvar a proficien-
constitucional do devido processo legal, te disciplina direcionada às ações referen-

217
IDÉIAS E LEIS

tes aos interesses difusos, coletivos e indi- eficiente uma união de esforços, nos pla-
viduais, indisponíveis ou homogêneos, nos espiritual e material, o que requer uma
por ter ampliado sobremaneira a legiti- mudança na mente e no coração.
midade para a propositura de tais ações, Não queremos com esse atino, com
providência que fortalecerá a defesa esse discernimento, até porque foram fei-
do direito dos idosos, salientando- tas apenas algumas observações na área
se o expressivo aumento do alcance do cível, produzir arrefecimento no ânimo
trabalho preventivo a ser implementado de trabalhar vigorosamente em comunhão
pelos membros do Ministério Público. com todos os segmentos jurídicos exigidos
O Estatuto do Idoso depositou nas mãos para a eficaz salvaguarda dos direitos dos
do Ministério Público a esperança de idosos. O que se pretende é a remoção de
concretização da tutela de seus direitos, eventuais obstáculos, a fim de distanciar
valendo para os dignos integrantes dessa o Estatuto do Idoso da linha conceitual de
instituição as mesmas considerações feitas uma Lei programática para ser, efetivamen-
às iniciativas que deverão ser tomadas te, uma Lei pragmática.
pelos Defensores Públicos. Temos a cer-
teza de que eventuais omissões advindas Para nós, juízes, fica, mais uma vez,
das dificuldades de operacionalização das a crucial incumbência de, mesmo com ins-
Defensorias Públicas poderão, a contento, trumento processual obsoleto, não permitir
ser supridas pelos ilustres membros do que a espera de obtenção do direito de
Ministério Público. todos os idosos ultrapasse o plano da vida
terrena, rogando ao Alto que sempre nos
Enriquece o Estatuto do Idoso a dis-
inspire para o despertar da parcela de justi-
posição contida no art. 70, que permite
ça divina que, tenho certeza, está ínsita no
ao Poder Público “criar varas especializa-
coração de cada juiz brasileiro.
das e exclusivas do idoso”, porque essa
providência poderá atenuar os efeitos da
ausência de regras processuais adequadas
para a necessária agilização dos processos.
Todavia, verifica-se que a criação das varas
especializadas é, pela Lei, facultativa, o
que causa inevitável inquietação, porque
a decisão sempre dependerá da política de
administração de cada tribunal.
Como se vê, destas singelas obser-
vações, muitas dúvidas, carências, dificul-
dades e falhas tendem a minar o imposter-
gável cumprimento do Estatuto do Idoso,
mas, humildemente, reconhecemos não
ter a resposta que produza o efeito dese-
jado para tamanha esperança plantada no
coração dos nossos idosos. Vale ressaltar,
para nossa meditação, que muitas vezes
não é necessária uma nova Lei para que
os direitos sejam garantidos; é muito mais

218
Palavras
&
História

Acervo - Câmara dos Deputados

Discurso do Deputado Ulysses Guimarães na instalação da Assembléia Nacional


Constituinte, em 2 de fevereiro de 1987, e o comentário de Luiz Gutemberg

219
OS PROFETAS DO AMANHÃ ULYSSES GUIMARÃES

Ulysses Guimarães, ao lado do Dep. Paes de Andrade, na tarde


da instalação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987.
(Acervo - Câmara dos Deputados)

Prudente de Morais, meu conterrâ- Sou-lhes muito obrigado por me tra-


neo e convizinho, pois o meu Rio Claro zerem, do povo brasileiro, esta nova
é coirmão de sua Piracicaba, assumia tarefa. Irei cumpri-la, como tantas outras
a Presidência da Assembléia Nacional com que fui encarregado, com os haveres
Constituinte em 21 de novembro de 1890, de minha experiência e o ânimo de todas
no Palácio de São Cristóvão, no Rio de as horas.
Janeiro. O homem público é o cidadão de
A 2 de fevereiro eu a assumo, em tempo inteiro, de quem as circunstâncias
Brasília, como mandamento da Assembléia exigem o sacrifício da liberdade pesso-
Nacional Constituinte de 1987. al, mas a quem o destino oferece a mais
Rogo a Deus que meu ofício de coor- confortadora das recompensas: a de servir
denador isento da elaboração constituinte à Nação em sua grandeza e projeção na
seja modelado na austeridade e na compe- eternidade.
tência do exemplar republicano.

220
Srs. Constituintes, esta assembléia parlamentar brasileira guarda a memória
reúne o melhor do povo brasileiro. Muitos de um jovem deputado que, na opinião
de nós voltamos a Brasília com o man- de muitos brasileiros, foi o maior pensador
dato parlamentar reafirmado; outros, em político do Império: Aureliano Cândido
número maior, chegam ao Congresso pela de Tavares Bastos, que chegou à Câmara
primeira vez. aos vinte e um anos e nos deixou estudos
econômicos e políticos de surpreendente
Aos velhos amigos, companheiros de
atualidade.
tantas jornadas de resistência democrática,
o meu abraço de reencontro. Aos que se Srs. Constituintes, esta assembléia
juntam a nós, trazendo o vigor da Nação reúne-se sob um mandato imperativo: o de
rejuvenescida pela esperança, quero sau- promover a grande mudança exigida pelo
dar o grande futuro que o Brasil entremos- nosso povo. Ecoam nesta sala as reivindi-
tra nesta soleira do século XXI. cações das ruas. A Nação quer mudar, a
Nação deve mudar, a Nação vai mudar.
É um parlamento de costas para o
passado, este que se inaugura hoje para Estes meses vividos pelo povo brasi-
decidir o destino constitucional do País. leiro, desde que nos reunimos em Goiânia
e em Curitiba a fim de exigir eleições
Temos nele uma vigorosa bancada diretas para a Presidência da República,
de grupos sociais emergentes, o que lhe demonstraram que o Brasil não cabe mais
confere nova legitimidade na representa- nos limites históricos que os exploradores
ção do povo brasileiro. de sempre querem impor. Nosso povo
Quero manifestar minha particular cresceu, assumiu o seu destino, juntou-
alegria de ver aqui tantas mulheres. Sua se em multidões, reclamou a restauração
participação na vida política dá à demo- democrática, a justiça social e a dignidade
cracia a sua verdadeira dimensão. O do Estado.
reconhecimento de igualdade de direitos Estamos aqui para dar a essa von-
e de deveres entre homens e mulheres tade indomável o sacramento da lei. A
constitui a grande revolução dos tempos Constituição deve ser - e será - o instru-
modernos. Iguais na inteligência e na mento jurídico para o exercício da liber-
capacidade de fazer, as mulheres superam dade e da plena realização do homem
muitas vezes os homens na sensibilidade brasileiro.
diante do sofrimento do povo e na dedica-
Do homem brasileiro como ser con-
ção aos marginalizados pela sociedade.
creto, e não do homem abstrato, ente
Esta bancada feminina é a maior imaginário que habita as estatísticas e
de nossa história parlamentar, mas muito os compêndios acadêmicos. Do homem
pequena ainda. Espero que as mulheres homem, acossado pela miséria, que cum-
assumam a sua responsabilidade política e pre extinguir, e com toda a sua potenciali-
ocupem, cada vez mais, o espaço que é de dade interior, que deve receber o estímulo
seu direito e dever ocupar. da sociedade, para realizar-se na alegria
Noto, também, e com a mesma do fazer e na recompensa do bem-estar.
alegria, a presença de constituintes bem O homem, qualquer homem, é por-
jovens. Sou dos que confiam na inteligên- tador do universo inteiro na irrepetível e
cia e no trabalho dos moços. A história singular experiência da vida.

221
OS PROFETAS DO AMANHÃ

Por isso, de todos deviam ser os bens na campanha das diretas. Ela resulta da
da natureza e a oportunidade de deixar, primeira manifestação eleitoral ampla do
na memória do mundo, a marca de sua nosso povo depois daquele movimento,
passagem, com a obra das mãos e da inte- excetuando-se as eleições municipais, de
ligência. interesse localizado, que se deram em
Toda a história política tem sido a da 1985.
luta do homem para realizar, na Terra, A ampla maioria de que dispo-
o grande ideal de igualdade e fra- mos nesta Casa constitui garantia
ternidade. bastante de que faremos uma
Vencer as injustiças Constituição para a liberda-
“Do homem de, para a justiça e para a
sem violar a liberdade
pode parecer programa brasileiro como ser soberania nacional.
para as sociedades da concreto, e não do homem A liberdade não
utopia, como tantos pode ser mero apelo
sonhadores escreve- abstrato, ente imaginário que da retórica política.
ram, antes e depois habita as estatísticas e os com- Ela deve exercer-
de Morus, mas na se dentro daqueles
realidade é um pro-
pêndios acadêmicos. Do homem velhos princípios
jeto inseparável da homem, acossado pela miséria, que impõem como
existência humana que cumpre extinguir, e com toda único limite à
e que se cumpre a liberdade de cada
cada dia que passa. a sua potencialidade interior, que homem o mesmo
Os momentos deve receber o estímulo da socie- direito à liberdade
de despotismo, com dos outros homens.
dade, para realizar-se na alegria do Assim vemos a
todo o assanho dos
tiranos, são eclíp- fazer e na recompensa do bem- ação reguladora do
Estado na atividade
ticos. Prevalece a estar. econômica. A livre
incessante expedição
da humanidade para a O homem, qualquer iniciativa, necessária
realização do reino de ao desenvolvimento
homem, é portador do uni- do País, deverá exer-
Deus entre os homens,
conforme a grande verso inteiro na irrepetível cer-se sem o sacrifício
dos trabalhadores, e a
esperança cristã. e singular experiência riqueza não poderá acu-
Conduzir essa cami- da vida”. mular-se, ao mesmo tempo
nhada é tarefa da política. Sem em que aumentam a miséria e
esse ideal maior, a política desce a fome, em benefício dos privile-
de sua grandeza à superfície das dis- giados.
putas menores, do jogo ridículo do poder
pessoal, da acanhada busca de glórias A liberdade é também uma questão
pálidas e efêmeras. de justiça. Ela não pode continuar sendo,
como as outras coisas, um bem de merca-
Srs. Constituintes, a grande maioria do. Em nossa sociedade injusta só pode ter
desta Casa representa a incontível reivin- liberdade aquele que dispõe de dinheiro
dicação de coragem reformadora, exposta para comprá-la.

222
ULYSSES GUIMARÃES

A justiça para os que trabalham deve seremos realmente livres do saque quando
começar pelo salário. Não existe no mundo distribuirmos a renda pelo menos com
de hoje, salvo em alguns países emergen- eqüidade e, desta forma, dermos dignida-
tes da África, sociedade que seja tão cruel de ao convívio social interno.
com os trabalhadores. A modernização autônoma da eco-
Salários justos exigem uma política nomia não pode continuar sendo impedi-
que combine o desenvolvimento econô- da por uma estrutura social arcaica, que
mico com a estabilidade monetária. A se amarra praticamente nas Ordenações
inflação, sendo fonte de injustiça – uma Filipinas.
vez que os assalariados são os mais inde- Modernizar a economia é torná-la
fesos diante dos seus efeitos perversos – é competitiva, com o emprego racional de
também dela conseqüência. todos os recursos disponíveis, a começar
Todos os nossos problemas procedem pelo solo. A terra não pode ser mera reser-
da injustiça. O privilégio foi o estigma dei- va de valor para os que especulam com
xado pelas circunstâncias do povoamento o seu preço, porque só nela os homens
e da colonização, e de sua perversidade encontram a vida. Não podemos pensar
não nos livraremos sem a mobilização da em distribui-la apenas. É nossa obrigação
consciência nacional. fazê-la produtiva. Sempre que o direito de
propriedade se opuser ao interesse nacio-
O privilégio começa na posse da
nal, que prevaleça o interesse da Nação.
terra, no início repartida, pelos favores
reais, entre as oligarquias imigradas. Essas A propriedade é um dos mais antigos
mesmas oligarquias acostumaram-se ao direitos do homem, e é em razão disso
trabalho escravo e dele não querem abrir mesmo que a ética religiosa recomenda
mão. Como bem nos apontou mestre distribui-la.
Afonso Arinos de Melo Franco, as senzalas Para sentir-se senhor de si mesmo,
do século passado estão hoje nas favelas. cada homem necessita de chão e teto, e a
Nas favelas e nos subúrbios que amonto- razão natural não admite que sobrem tetos
am os trabalhadores modernos, brancos, e glebas a uns, quando milhões e milhões
pretos, mestiços - mas todos legatários da de outros nascem e morrem entre paredes
condenação de servir e sofrer. alheias ou ao relento. Não podemos pen-
Não é só a injustiça interna que dá sar no liberalismo clássico, que deixa às
origem aos nossos dramáticos desafios. É livres forças do mercado o papel regulador
também a espoliação externa, com a insâ- de preços e salários, em uma época de
nia dos centros financeiros internacionais economia internacionalizada e de cartéis
e os impostos que devemos recolher ao poderosos.
império, mediante a unilateral elevação Se o Governo deve intervir no pro-
das taxas de juros e a remessa ininterrupta cesso econômico, que a sua ação busque
de rendimentos. Trata-se da mais brutal a paz social. Ali, de onde se ausenta a
valia internacional que nos é expropriada consciência ética, deve impor-se o poder
na transferência líquida de capitais. arbitral do Estado.
Não entendem os insensatos que Liberdade dos cidadãos e justiça
somos, no Terceiro Mundo, também sen- nas relações econômicas entre patrões e
zalas dos países mais poderosos, e que só empregados são condições indispensáveis

223
OS PROFETAS DO AMANHÃ

ao fortalecimento das nações em seu con- e da dissolução posterior da Assembléia


vívio no mundo. Enganam-se os governos Constituinte, ela retornaria, com força,
que aspiram ao respeito internacional, se nas vésperas do movimento de 7 de abril
lhes falta o respeito de seu povo. que levou D. Pedro I à abdicação.
Quando as elites políticas pensam Pregou-se, naquela hora oportuna,
apenas na sobrevivência de seu poder oli- a descentralização do Governo, mediante
gárquico, colocam em risco a soberania uma federação monárquica, conforme
nacional. expressão do seu maior defensor, o jorna-
lista político Antônio da Fonseca.
A segurança será sempre precária
onde houver o clamor dos oprimidos. A mesma idéia que esteve na raiz
Nenhum país será suficientemente pode- do Ato Adicional de 1834 quase levara a
roso, se poderosa não for a coesão entre uma Constituição republicana, em julho
os seus habitantes. Uma casa dividida não de 1832, na antecipação de um movi-
saberá opor-se com êxito ao assalto dos mento que só teria logro 57 anos mais
inimigos. tarde.
Liberdade, soberania, justiça. Sobre Federação e democracia continuam
estas idéias simples construíram-se as sendo as reivindicações nacionais maio-
maiores nações da História. Elas serão res e nossa assembléia não poderá deixar
o âmago da nossa razão comum no tra- estas questões ao relento. Elas devem ser
balho de dotar a Nação de uma legítima enfrentadas com a coragem necessária.
Carta Política. Incluo-me entre os que, como Carneiro
da Cunha, consideram a autonomia fede-
Srs. Constituintes, dois foram e con- rativa a base da unidade nacional. Esta
tinuam sendo os destinos que grandes autonomia reclama, em primeiro lugar,
pensadores políticos do passado escolhe- uma justa apropriação tributária. Só há
ram para o Brasil: o da liberdade política unidade entre entidades de igual direito
e o da Federação. Os primeiros homens e não pode a União transformar-se, como
públicos brasileiros já entendiam ser o se transformou, em poder isolado das rea-
sistema federal o exigido para a adminis- lidades estaduais.
tração do País.
A Federação, golpeada pelo Estado
Pensavam em Federação os mem- Novo, foi praticamente destruída nos
bros da comissão encarregada de redigir a recentes anos de arbítrio. Cumpre-nos
proposta do texto de nossa primeira Carta restaurá-la em toda a sua plenitude, tor-
Política, em 1823. Nas discussões do art. nando realidade um ideal que nasceu
2º do texto, Ferreira França propôs que o com a própria independência.
Império do Brasil compreendesse confe-
A razão da liberdade esteve sempre
deralmente as províncias. Respondendo
presente, como o ânimo maior de nossa
a quem considerava perigosa a menção,
formação histórica. Sempre associamos
Carneiro da Cunha argumentava que o
a liberdade do País à liberdade de seus
sistema poderia vir a ser “o vínculo mais
cidadãos. Mas a liberdade não é um valor
forte da união eterna das províncias”.
absoluto, que se conquista com o mero
Malograda a idéia diante das gesto da vontade. Ela se constrói a cada
razões expostas por Nicolau Vergueiro dia, na medida em que se constroem as

224
OS PROFETAS DO AMANHÃ ULYSSES GUIMARÃES

nações. Para que se goze de liberdade, é as nossas Cartas anteriores foram redigi-
preciso, antes de mais nada, que se tenha das na adolescência da Pátria, quando
a consciência de sua necessidade e o sen- buscávamos nos Estados estrangeiros o
timento moral de sua importância. modelo para as instituições do País.
No versículo da Bíblia está decreta- Não podemos negar a experiência
do que Deus criou a terra para que nela dos outros povos quanto aos mecanismos
o homem trabalhasse, e não a saqueasse da administração política, mas é conve-
e violentasse, ameaçando a qualidade niente encontrar, em nossa própria inte-
da vida, que deve ter no estatuto cívico ligência e vivência, processos novos de
supremo seu guardião. desenvolvimento jurídico e social.
Esses valores do espírito se fazem Uma Constituição é tanto mais
com a educação. “Conhecer é legítima quanto mais ampla
ser livre”, dizia um dos gran- “A segu- for a discussão de seus ter-
des apóstolos da América, mos. Peço-lhes permissão
José Martí. Isso coloca rança será sempre para citar um trecho do
as tarefas da educação precária onde houver discurso que o saudo-
pública na urgência de o clamor dos oprimidos. so estadista Tancredo
nossas preocupações. Neves pronunciou,
A cidadania começa Nenhum país será suficiente- neste mesmo recinto,
no alfabeto. mente poderoso, se poderosa quando o convoca-
mos para ser o candi-
Não há um só não for a coesão entre os seus dato à Presidência da
exemplo de nação
forte sem bom sistema
habitantes. Uma casa dividi- República.
de educação. da não saberá opor-se com “As Constituições”
O poderio dos êxito ao assalto dos - dizia o meu compa-
Estados Unidos e o apego nheiro e grande amigo
inimigos“. - “não são obras literárias,
de seus cidadãos à Lei
Constitucional têm origem no nem documentos filosóficos.
zelo com que os primeiros colonos Elas não surgem do espírito cria-
cuidaram da educação. dor de um homem só, por mais privilegia-
Dezesseis anos depois do desembar- do em sabedoria seja esse homem.
que, era criado o Colégio de Harvard e, Tampouco podem ser a codificação
em 1647, todas as povoações com mais de propósitos de um ou outro grupo que
de cinqüenta casas eram obrigadas a ter exerça influência, legítima ou ilegítima,
uma escola básica, e as com mais de cem sobre a Nação.
moradias, uma escola secundária. A Constituição é uma Carta de com-
E qual é a nossa realidade? promissos assumidos livremente pelos
Srs. Constituintes, estou convencido cidadãos, em determinado tempo e socie-
de que esta é uma excepcional oportu- dade”.
nidade histórica de dar ao País a mais O compromisso maior da Carta que
nacional de suas Constituições. Quando redigiremos é com o futuro. Esse futuro
uso o termo, uso-o na convicção de que está aí, apressado, chamando-nos e exi-

225
OS PROFETAS DO AMANHÃ

gindo os nossos esforços urgentes para do que dele –, os povos necessitam do


recebê-lo sem transtornos maiores. Há conhecimento sobre a natureza e dos
cinqüenta anos apenas o Brasil iniciava, meios de colocá-lo a serviço do seu bem-
com timidez, o processo de moderniza- estar e segurança.
ção industrial. Mais de setenta por cento Não podemos submeter o nosso des-
de sua população vivia no campo. Poucas tino aos que buscam contê-lo, impedindo-
eram as estradas que uniam os centros de nos de fabricar instrumentos modernos e
produção aos portos marítimos e depen- de promover, com a nossa própria inteli-
díamos da importação de quase tudo. gência, o seu desenvolvimento.
Com enormes esforços – esforços sobretu-
do dos trabalhadores – conseguimos erigir Concluíam os gregos, naquele
o maior parque industrial do Hemisfério esplêndido século V antes de Cristo,
Sul, levantar cidades, desbravar sertões, dando origem à concepção ocidental da
atualizar o nosso saber e impor-nos ao lei, que “o homem é a medida de todas
respeito internacional. Deixamos a ini- as coisas”.
bição histórica, que limitava, na prática, Retorno assim à minha preocupação
a ocupação do Território com uma ima- original. É para o homem, na fugacidade
ginária Linha de Tordesilhas, e rasgamos de sua vida, mas na grandeza de sua sin-
as estradas que nos permitem, hoje, ir gularidade no universo, que devem vol-
de qualquer cidade a outra sobre rodas. tar-se as instituições da sociedade.
Ainda assim, temos que multiplicar os Elas devem respeitá-lo e promover
nossos esforços para chegar ao próximo o crescimento de sua personalidade, a
século em condições de vencer os seus partir do momento em que nasce. Isso
desafios. significa lutar contra a vergonha que são
Partindo da razão básica – que as altas taxas de mortalidade infantil e
é a de transformar todos os brasileiros prestar efetiva assistência às famílias. Tais
em cidadãos, com a realização da justi- providências não podem ser vistas com o
ça social –, deveremos combater certos velho espírito do paternalismo, como se o
comportamentos que nos atrasam. É pre- Estado fosse instituição apenas dos ricos e
ciso – e é essa uma tarefa constitucional exercesse a caridade em favor dos pobres.
– modernizar a legislação econômica, de A assistência do Estado é um serviço que
maneira a impedir a danosa especulação ele presta aos cidadãos e estes, quando
financeira pelos agentes privados, incen- dela necessitem, não devem suplicá-la,
tivar a iniciativa econômica individual, mas, sim, exigi-la, como um direito irre-
que não encontra espaço em um Estado cusável. Assistir não é amparar nem pro-
cartorial, aliado das grandes corporações teger. É cumprir uma tarefa inerente ao
empresariais, e promover a modernização Estado.
dos processos de produção, com o desen- Não é preciso lembrar a dolorosa
volvimento de novas técnicas. situação das crianças abandonadas. É este
Ao lado da educação – e dela inse- um tema do qual só podemos falar com a
parável –, exige-se uma política nacional cabeça baixa, os olhos no chão.
de desenvolvimento científico e tecnoló- Devemos crescer, e crescer cada vez
gico. Tanto quanto do capital – ou mais mais, é verdade. Mas o nosso crescimento

226
ULYSSES GUIMARÃES

de nada valerá se o fizermos sem ter o nossos aliados do PFL e aos companheiros
homem brasileiro como seu módulo. de todos os partidos que votaram em meu
Construir estradas, abrir portos, nome.
desbravar sertões, escavar minas, plantar Às demais legendas, principalmente
milhões e milhões de hectares – como tantos da Oposição, dou a garantia de que serei,
fizeram – aumenta o Produto Interno Bruto, nesta presidência, o coordenador imparcial
mas não significa, por si só, estabelecer a dos trabalhos constituintes.
independência ou garantir a soberania de Como nos recomendou Tancredo,
um país. As estradas e os portos também não vamos nos dispersar.
podem ser construídos para favorecer o
saque das riquezas nacionais. De nada Juntos, soubemos ter paciência e
adianta exportar milhões e milhões de coragem.
toneladas de grãos se eles faltarem à mesa Juntos, não nos faltará a necessária
daqueles que os plantaram, colheram e os competência.
transportaram até o mar.
Haveremos de elaborar uma
Fazer um país crescer é fazê-lo Constituição contemporânea do futuro,
crescer dentro de si mesmo, é fazê-lo digna de nossa pátria e de nossa gente.
crescer em cada um de seus cidadãos. O Para isso, iremos vencer os desafios
que significa aumentar a produção se ela econômicos, políticos e sociais. Seremos
estiver destinada a servir aos outros e não os profetas do amanhã.
ao nosso próprio povo?
A voz do povo é a voz de Deus. Com
Srs. Constituintes, esta é a grande Deus e com o povo venceremos, a serviço
hora de nossa geração. Devemos ocupá- da Pátria, e o nome político da Pátria será
la com o grave sentimento do dever e a uma Constituição que perpetue a unidade
consciência de que seremos responsáveis, de sua geografia, com a substância de
diante do futuro, pelo que decidirmos sua história, a esperança de seu futuro e
aqui. exorcize a maldição da injustiça social.
Temos, em nossas mãos, a soberania
do povo. Ele nos confiou a tarefa de
construir, com a lei, o Estado democrático,
moderno, justo para todos os seus filhos.
Um Estado que sirva ao homem e não
um Estado que o submeta, em nome de
projetos totalitários de grandeza.
Para isso estamos aqui.
Volto a agradecer a confiança que
os constituintes, em nome do povo, me
outorgaram.
Dirijo-me particularmente aos
companheiros do meu partido, o PMDB, a

227
PALAVRAS & HISTÓRIA LUIZ GUTEMBERG

Ulysses Guimarães no dia da promulgação da nova Constituição Brasileira, em 05 de Outubro de1988.


(Acervo Câmara dos Deputados)

Receitas Tropicalistas de
Constituição pelo Mestre
Constituinte Ulysses
Silveira Guimarães
Se os especialistas em política fos- ricos pareceristas perderiam sua clientela
sem menos cientistas e mais cronistas, e e volumosas coleções de livros deixariam
se os exegetas dos textos constitucionais de ser editadas – as constituições seriam
fossem menos etimólogos e mais histo- melhor compreendidas, os povos melhor
riadores – hipóteses totalmente absurdas, governados e, principalmente, a Justiça,
pois desmontariam labirintos acadêmicos, melhor distribuída.

* Jornalista

228
Pelo menos, no caso da Constituição pontos que pareciam pétreos em 1988,
do Brasil de 1988. como o monopólio estatal do petróleo,
Quem tiver dúvidas, experimente revogado - dificilmente compreenderá o
uma leitura do discurso de 2 de fevereiro exato sentido e intenção de muitos artigos.
de 1987, do deputado Ulysses Guimarães, Essa preocupação, dispensada por juris-
na instalação da Assembléia Nacional tas, advogados e juízes, para quem basta
Constituinte, que ele presidiria. a letra fria, a expressão vernácula, para
erigir teorias, parece seguir o simplismo
Era a inauguração de uma das aven- do “vale o escrito” dos bicheiros cariocas.
turas parlamentares mais alegres, confusas, Desprezam como anedóticas, reles preo-
autênticas e tecnicamente desvairadas de cupação de leigos, revelações sobre o que
assembléias constituintes, através dos tem-
há de humanidade, demagogia, cacoetes
pos, em todos os povos.
pessoais, compromissos paroquiais com
Uma constituinte que começou se grupos de eleitores e, até, insanidade, por
recusando a simplesmente tomar conhe- trás de alguns artigos emblemáticos e, às
cimento de anteprojetos oferecidos. Até vezes, intencionalmente ambíguos. Que
mesmo um texto completo, elaborado falta lhes fazem a História, ou ao menos,
e discutido por uma grande comissão uma crônica impressionista, uma análise
de representantes de todos os setores da jornalística!
sociedade, de que fizeram parte homens
e mulheres de “notável saber”, nomeados Como testemunha – com relação a
pelo Presidente José Sarney. Tinha sido alguns temas, posso dizer, privilegiada,
presidida pelo senador Afonso Arinos, pois muitas vezes tomei café da manhã
orgulhoso por repetir a façanha do pai, com o velho Ulysses na residência oficial
Afrânio Melo Franco, que exerceu papel da Península dos Ministros, em Brasília,
idêntico com relação à Constituição de pude assistir, à mesa, o planejamento das
1934. Por acaso, as duas comissões cons- jornadas diárias das votações, estabele-
titucionais, a de 1933 e a 1986, haviam cido em discussões de que sempre par-
se reunido, com um intervalo de mais de ticipavam o jurista Miguelzinho Reale, o
meio século, na mesma sala do Palácio deputado Nelson Jobim e o secretário da
do Itamaraty, no Rio. Pois, a Assembléia Mesa, Paulo Afonso, seus colaboradores
Constituinte de 1986 não tomou conhe- mais constantes. Ulysses exercia o papel
cimento da tradição dos Melo Franco. do Presidente da Constituinte, ora como
Orgulhosamente, partiu do nada. Durante um patriarca (pela ascendência de auto-
um ano e oito meses, os constituintes bra- ridade tribal), ora como um maestro (pois
sileiros, através de sucessivos estágios que, conduzia com rédea curta o andamento
teoricamente, asseguraram a participação e o timbre que julgava adequados a cada
nos trabalhos de elaboração de 100% dos tema, como se regesse uma peça sinfôni-
513 deputados e 61 senadores que a com- ca).
punham, foram autores desde o primeiro Tanto que o discurso inaugural da
croquis à redação final dos 245 artigos,
Constituinte, por Ulysses, é uma espécie
mais 70 das Disposições Transitórias.
de guia de orquestra para entendimento do
Quem os lê hoje,– depois de 15 texto. A abertura é uma evocação biográ-
anos, já emendados 42 vezes, em alguns fica, em três tempos. Lembra seu “barro

229
PALAVRAS & HISTÓRIA

municipal” – como gostava de dizer, repe- democrática. Não refletia e, se pensava,


tindo Ribeiro Couto – Rio Claro; a herança jamais confessou, sobre como promover
cultural e histórica, na evocação do pau- uma definição ideológica que promovesse
lista Prudente de Morais, de Piracicaba uma equalização das desigualdades inte-
(cidade irmã de Rio Caro) e, que presidiu lectuais e morais, próprias da autêntica
a primeira Constituinte da República, em representação popular, acentuada no Brasil
1890, mas a retórica bacharelesca repete o pelo vício histórico da descontinuidade da
estilo clássico da colocação de pronomes prática representativa. Em um século de
dos oradores das Arcadas do Largo de São República, duas longas e perversas ditadu-
Francisco, contida na afirmação, na pri- ras disseminaram a demagogia paternalis-
meira pessoa do presente indicativo: ta, o conformismo com as desigualdades
“Sou-lhes muito obrigado por me sociais, a injustiça como regra, e todas as
trazerem, do povo brasileiro, esta nova formas de dominação econômica e degra-
tarefa.” dação cultural e política. Em vez desses
escombros, ele preferia admitir romanti-
Tendo feito essa introdução em qua- camente que o mandato transforma, puri-
tro parágrafos, declamados com pausas fica e inspira, e que a democracia tem
que tanto os solenizava como os diversi- mecanismos mágicos. Ele mesmo, que se
ficava, no quinto, desfraldaria a infalível classificava como pertencente ao “gênero
saudação ao povo, à imprensa e autorida- parlamentar, espécie deputado” não dis-
des e “pede passagem” – dos carros abre farçava a confiança nas assembléias. Por
alas dos velhos préstitos – e como fará na isso, saudava, nos Senhores Constituintes,
promulgação, a 5 de outubro de 1988. os veteranos, parlamentares reeleitos; os
Agora, porém, a saudação é exclusiva aos estreantes; as mulheres – “esta bancada
Senhores Constituintes, “o melhor do povo feminina é a maior de nossa história par-
brasileiro”. Os ungidos pelo voto popular, lamentar”; os líderes sindicais e populares,
a quem atribuía poderes extraordinários, que para ele são representantes de “grupos
não por fantasia, mas por “fé e ciên- sociais emergentes”; os jovens, que ainda
cia”, como repetia. Entre os “criadores” chama de moços – como Rui Barbosa e o
da humanidade, privilegiava os fazedores sambista Lupiscínio Rodrigues: “Sou dos
de constituições e ordenamentos jurídi- que confiam na inteligência e no trabalho
cos, especialmente o romano Ulpiano, do dos moços”.
Corpus Júris Civiles. Tanto que não foi por
acaso, senão por paixão à primeira vista Depois de usar a saudação como
pelo Direito Romano, que, mal chegado um maestro que define os naipes da sua
a São Paulo e precisando ganhar dinheiro orquestra, introduz o coro, que entoa o
para completar a modesta mesada paterna, tema que escolheu para a nova constitui-
havia se tornado professor de latim. ção. Mudança.

Talvez por isso, por cultuar a lei “A Nação quer mudar, a Nação deve
erudita, e esperando que a constituição mudar, a Nação vai mudar”
que se iria elaborar fosse uma expressão É a vez dos metais para uma evoca-
jurídica perfeita, não refletisse sobre a ção épica das manifestações de rua que
heterogeneidade filosófica da Assembléia marcaram o verdadeiro levante popular,
Constituinte, a não ser como expressão que aproveitou os estertores da ditadura,

230
LUIZ GUTEMBERG

e de que ele se sentia condutor com seu e voltou várias vezes, repetiu-se, deu a
“emedebê”, como dizia. impressão de ter feito uma colagem alea-
Evoca as cidade dos dois primeiros tória. Como precisou trabalhar com mui-
comícios que deflagraram a avalanche da tas notas e textos enviados por amigos
campanha das “Diretas Já”, onde a vibra- – que infelizmente não identificou – adap-
ção popular primeiro saiu às ruas claman- tou conceitos técnicos de economia com
do pela redemocratização: que não tinha familiaridade. Sua prosódia
bacharelesca tinha repertório para qual-
- Goiânia! quer situação. Assim, depois de falar de
- Curitiba! industrialização, infra-estrutura rodoviá-
ria, especulação financeira, repetindo uma
Arremata tudo como preconizar a
série de lugares comuns, como se tivesse
postura da assembléia:
perdido o fôlego ou o fio da meada, diz:
- “É um parlamento de costas para
“Concluíam os gregos, naquele
o passado, este que se inaugura hoje para
esplêndido século V antes de Cristo, dando
decidir o destino constitucional do País”.
origem à concepção ocidental da lei, que
Seguem-se os princípios, as três “o homem é a medida de todas as coisas”
pedras angulares sobre as quais pretendia
Evidentemente perdido, reencontra-
alicerçar a constituição: liberdade, justiça
se:
e soberania nacional.
“Retorno assim à minha preocupa-
Estava concluída a apresentação.
ção original. É para o homem, na fuga-
O plano de discurso de Ulysses, cidade de sua vida, mas na grandeza da
que ele costumava formular esquemati- sua singularidade no universo, que devem
camente em tiras de papel, que chamava voltar-se as instituições da sociedade”.
de “tripas”, antes de lhes dar forma final,
Velho político, literalmente – ele
ou apenas para orientar os improvisos, e
estava naquele momento com 71 anos
de que encontrei algumas amostras entre
- ele quer conciliar sua longa biografia
seus papéis, seguia o que chamava de
com um momento explícito de futurologia,
“trilha euclideana: o ambiente, a terra,
pois declara a pretensão de que a nova
o homem e as peripécias”. No caso do
carta constitucional contenha antevisões
discurso inaugural da Constituinte, enten-
que a tornem longeva, “contemporânea
da-se por “peripécias” o longo e eclético
do futuro.” Logo ele, que protagonizou a
conjunto de temas que uma constituição
instabilidade política da sociedade brasi-
deve abarcar. Um texto que deve ser
leira, desde que iniciou sua carreira sob
político, em primeiro lugar; abrangente
a Constituição de 1946, que chamava
por natureza; conter princípios que não
de saudosa, no tom de pesar de quem
deixe órfão nenhum aspecto das relações
perdeu uma madrinha generosa e sábia.
possíveis numa sociedade; juridicamente
Fato pouco conhecido, Ulysses quase fun-
irrepreensível, equânime, auto-aplicável e,
dou um culto à maneira positivista à
principalmente, que se preste à distribui-
Constituição de 1946, de que promoveu,
ção da Justiça.
na gráfica do IBGE, a primeira edição
Ulysses sentiu dificuldades em fixar popular de uma Constituição brasileira
esses espaços estanques e, perdido, foi com grande tiragem, quando Presidente

231
PALAVRAS & HISTÓRIA

da Câmara pela primeira vez, em 1956. Com a memória de todas essas


Havia até uma edição em miniatura, de experiências e, principalmente, com a
que guardo o seu exemplar, que encon- rica crônica dos últimos 15 anos de luta
trei, depois da sua morte, no escritório da contra a ditadura – às vezes sutil; nou-
casa na rua Campo Verde, em São Paulo. tras, vigorosas; de repente excessiva-
Não era uma paixão gratuita, pois foi para mente prudente; súbito, agressiva e até
complementá-la – com a preocupação de temerária, quando comparou o presidente
decodificá-la nos limites regionais – que Geisel ao ditador ugandense Idi Amin
teve seu primeiro mandato, em 1947, Dada – Ulysses Guimarães administrou
como deputado estadual constituinte em os conflitos ideológicos, verdadeiros e
São Paulo. Deputado federal a partir de artificiais, que explodiam na oposição.
1950, seria eleito, em 1956, aos 40 anos, MDB, depois PMDB, foram uma frente
Presidente da Câmara, nº 2 na lista de única e compulsória da oposição. Não
sucessão do Presidente da República. Em havia outros espaços, sob a ditadura, para
1987, estava na sua nona reeleição como fazer política, e o partido era uma espécie
deputado federal e há 40 anos não havia de Arca de Noé. Todos, por bem ou mal,
passado um único dia sem mandato par- tinham que se submeter à convivência.
lamentar. Tinha sobrevivido, sempre no Para Ulysses, que sempre desdenhou a
mesmo partido, o PSD, às crises políticas radicalização, não era difícil exercer a
que abalaram o regime da Constituição tolerância. Como pessedista, e a ideologia
de 46 - o suicídio de Vargas, em 1954 do PSD era o exercício do poder confor-
(em que teve papel de protagonista como me as circunstâncias, toda convivência
membro da CPI da Última Hora), o con- era possível. (Como gostava de lembrar,
tra-golpe de 11 de novembro de 1955, a Juscelino, cuja campanha presidencial
renúncia de Jânio e a posse de Jango (de liderou em São Paulo, em 1955, foi elei-
que foi protagonista como membro do to com o apoio negociado do Partido
Ministério parlamentarista de Tancredo Comunista, a que prometeu a legalidade e
Neves, ocupando a pasta da Indústria e relações com a URSS. Ao mesmo tempo,
Comércio) e, finalmente, o golpe de 64, patrocinou o financiamento dos inte-
com a instauração da ditadura militar, gralistas de Plínio Salgado, com o obje-
com que se conformaria inicialmente. Aí, tivo de fazê-lo receber votos em Santa
depois de uma tentativa frustrada de fazer Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul,
política, confiando na boa-fé do presi- que iriam fatalmente para seu principal
dente Castelo Branco e em suas ingênuas competidor, Juarez Távora. A única forma
tentativas de reduzir o golpe a uma rápida de esterilizar essa votação era viabilizar a
intervenção cirúrgico-militar, compreen- candidatura Plínio Salgado, que cumpriu
deu que prevaleceria a violência do grupo o seu papel: os votos de Plínio Salgado,
fascista. Recolheu-se silente e até amea- somados aos de Juarez, teriam derrotado
çado de cassação, para se transformar, a Juscelino.) A experiência do velho PSD,
partir de 1970, como presidente do MDB, segundo dizia, era uma vacina contra pre-
no principal articulador da oposição civil conceitos e radicalismos. Foi assim que
que chegaria ao poder em 1985, com José os tratou no PMDB. As esquerdas, que
Sarney, pela morte do presidente eleito se intitulavam “autênticos”, embora não
Tancredo Neves. faltassem direitistas de todos os matizes

232
LUIZ GUTEMBERG

entre os “moderados”. O denominador Um exemplo primário, do ponto


comum era a oposição à ditadura. de vista formal da ciência política, do
Na abertura da Constituinte, Ulysses desafio que se apresentava à constituinte,
não faz uma única referência à questão mas absolutamente consentâneo com a
ideológica, que ainda era muito forte. mentalidade da assembléia a que Ulysses
Nada indicava, àquela altura, que o se dirigia.
Muro de Berlim estivesse prestes a cair, Uma pesquisa que envolvesse teste-
e, junto com ele, a URSS e o comunismo munhos insuspeitos de assembléias polí-
internacional, o que só aconteceria em ticas brasileiras (aleatoriamente, tomei
1989. Vê-se, numa leitura distante das as resenhas do Senado do Império, de
circunstâncias de 1987, que ele acena Machado de Assis, que não era uma cons-
para todo mundo, ora mais à esquerda, tituinte, mas se comportava como tal, sob
falando de liberdade (“é preciso que se a bonomia de Sua Majestade, o Imperador,
tenha a consciência de sua necessidade na eterna tentativa de regulamentar dispo-
e o sentimento moral da sua importân- sitivos constitucionais, como a mudança
cia”), ora mais à esquerda, falando de da capital para o Planalto Central; memó-
propriedade (... “um dos antigos direitos rias da Constituinte de 1934, do deputado
do homem, é em razão disso mesmo que alagoano Emílio de Maya e os registros de
a ética religiosa recomenda distribui-la”) João Almino, sobre a Constituinte de 46,
até, em evidente desespero, zigueza- em “Democratas Autoritários”) mostrará
guear como os eloqüentes personagens que os usos e costumes, temas e circuns-
de Glauber Rocha em “Terra em Transe”. tâncias, foram sempre diversos, mas há
Embrenha-se por um labirinto de dilemas, um traço especial, original, absolutamen-
perde a linha de Ariadne, ouve os urros te diverso, em atitude e resultados, que
do monstro devorador dos que hesitam e, não se vê nas experiências constituintes
sem resposta, termina com uma interroga- de outros povos.
ção. Vejamos: As peculiaridades das assembléias
“Construir estradas, abrir portos, brasileiras são a preocupação de ruptura
desbravar sertões, escavar minas, plantar e inovação; o contraste entre a sabedoria
milhões e milhões de hectares – como tan- e a improvisação, espírito público e a
tos fizeram – aumenta o Produto Interno demagogia populista, entre as preten-
Bruto, mas não significa, por si só, estabe- sões de eternidade e a mais escrachada
lecer a independência ou garantir a sobe- efemeridade. Como definir tão difusas
rania de um país. As estradas e os portos características? Nos anos 30, a sociologia
podem ser construídos para favorecer o de Gilberto Freire, recém chegado da
saque das riquezas nacionais. De nada Universidade do Texas e desafiando as
adianta exportar toneladas e toneladas de visões clássicas de definição dos efeitos
grãos se eles faltarem à mesa daqueles que sociais, políticos, econômicos e estéticos
os plantaram, colheram e transportaram da miscigenação brasileira, era simples-
até o mar. Fazer um país crescer é fazê-lo mente rotulada de ecologia. Antes que o
crescer em cada um dos seus cidadãos. O próprio Gilberto a denominasse lusotropi-
que significa aumentar a produção, se ela cologia. Ulysses não chegou a definir sua
estiver destinada a servir aos outros e não oratória, mas seu discurso inaugural da
ao nosso próprio povo?” Assembléia de 1987, que vale como intro-

233
PALAVRAS & HISTÓRIA

dução à história e ao texto da Constituição finalmente, durante a leitura, que desejava


de 88, certamente admitiria tratar-se de que fosse uma interpretação de ator, puro
uma típica experiência tropicalista. teatro, profanava temerariamente seus
Até mesmo porque uma constitui- próprios textos com chistes e referências
ção não é uma constituição, mas sem- de ocasião, que os taquígrafos anotavam,
pre a Constituição. O substantivo comum às vezes sobre cópias dos textos lidos.
“constituição” é dessas palavras que Este discurso de 2 de fevereiro de
designam abstrações, pois não existe um 1987, para ser evocado dignamente e mais
modelo, um paradigma. Não há uma justamente entendido e glorificado como
constituição “de referência” a que se peça de oratória, merecia um tratamento
possa recorrer e apresentar, como os con- de poema de Mário de Andrade (penso nos
tratos padrão em que se precisa apenas coros de “Nas Enfibraturas do Ipiranga”),
preencher espaços em branco, assiná-los, apoiado por uma vibrante “Invocação
datá-los, e ei-lo, personalizado,produzindo da Pátria”, de arrebatamento cívico, em
efeitos singulares, tendo perdido seu cará- andamento de dobrado de Villa Lobos, de
ter de fórmula. que se valeu Joaquim Pedro de Andrade
Por isso, não há constituições, plural em “Macunaíma”. A platéia, dominada
de constituição, pois são singulares, pelo irresistível otimismo e confiança com
expressam as latitudes e longitudes, que Ulysses falava da sua gente, sentir-se-
momentos e povos que a escreveram e ía, como de fato se sentiu, arrebatada e sem
promulgaram. Podem até figurar numa perceber que ele apenas lhes reproduzia o
coleção de textos políticos e jurídicos, mas pensamento, tal como encerrou o discurso,
será lida, sempre, como uma notícia das arrebatado e tropicalista:
excentricidades do povo que, em dado “A voz do povo é a voz de Deus.
momento, a adotou. Com Deus e o povo venceremos, a serviço
Foi mais ou menos isso que Ulysses da Pátria, e o nome político da Pátria será
queria dizer, e disse, aos seus colegas da uma Constituição.”
Assembléia Constituinte de 1986. Mas, O tropicalismo não é uma opção
assim como nem sempre a objetividade e estética ou comportamental, mas a forma
o despojamento são o caminho mais curto de pensamento e expressão do povo
da compreensão de uma mensagem, ele brasileiro. Todas as contradições históricas,
buscou a forma de expressão adequada. contrastes culturais, diferenças regionais e,
Com sua experiência acumulada de 40 principalmente, as conexões surgidas da
anos de vida parlamentar, e sendo um convivência dos grupos étnicos, sociais,
homem de virtudes histriônicas e grande religiosos, econômicos e políticos através
sensibilidade, forjou, apressadamente o dos tempos, cabem nessa salada. São
discurso com que assumiu a presidência os valores e códigos, tão imprecisos
da Constituinte. Sua regra era o improviso, quanto verdadeiros, pretendendo desafiar
mas seus discursos lidos também eram, e reinventar relações jurídicas, sociais
virtualmente, improvisos. Partia de um e políticas. Exatamente como Ulysses
rascunho manuscrito, depois trabalhava Guimarães anteviu a Constituição de 1988
sobre uma versão datilografada por uma ao inaugurar a assembléia que redigiria.
secretária, na qual fazia alterações e,

234
Imagem
Histórica

Reprodução

Pedro Karp Vasquez

235
IMAGEM HISTÓRICA

Arsênio da Silva

Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1864. Coleção Dona Thereza Christina Maria da Fundação
Biblioteca Nacional.

236
*PEDRO KARP VASQUEZ

Brilhante composição, essa imagem te dito, realizado na Capela Imperial, no


é o mais antigo exemplo de documen- sábado, 15 de outubro de 1864. Assim, a
tação fotográfica de um acontecimento cerimônia ficou perpetuada graças ao tra-
oficial de relevância nacional efetuado balho de artistas como o aquarelista Jean
no Brasil: o casamento da princesa Isabel, Jules Le Chevrel e o pintor Pedro Américo
herdeira do trono, destinada a ser a ter- de Figueiredo e Melo.
ceira governante do Império fundado por O próprio Arsênio da Silva também
seu avô, Dom Pedro I, a 7 de setembro era pintor, tendo sido – conforme infor-
de 1822. mou o respeitado historiador e crítico de
Pouquíssimo conhecida, essa ima- arte, Quirino Campofiorito – o responsá-
gem, tão admirável sob o ponto de vista vel pela introdução no Brasil da técnica
da concepção visual, é representativa de pintura em gouaches. Inovação que
sob diversos outros pontos de vista, a lhe valeu, de princípio, grande considera-
começar pelo estritamente técnico. Foi ção – foi premiado nas Exposições Gerais
realizada com o trabalhoso e complicado da Academia de Belas Artes em 1861,
processo de colódio úmido, que exigia o 1862 e 1863 – e, depois, inúmeros dis-
emulsionamento da placa com o material sabores. Isso porque, dotado de sensibi-
fotossensível, instantes antes da realiza- lidade excessiva, raiando a instabilidade
ção da exposição, obrigando o fotógrafo a emocional, Arsênio se ressentiu profun-
instalar um laboratório portátil no próprio damente quando viu desfeito o sonho de
local de tomada da fotografia. O negativo acesso ao corpo docente da Academia
resultante tinha o formato de 17,2 x 20, 3 Imperial das Belas-Artes. Derrotado pela
cm, sendo copiado – segundo o processo conspiração dos medíocres, sempre tão
mais empregado no Brasil neste período operosos quando confrontados à genia-
– por contato direto sobre papel albu- lidade, Silva afastou-se de seus colegas
minado. Ou seja: sem o auxílio de um futriqueiros, abandonando o fazer artís-
ampliador, com o negativo sendo com- tico para morrer em solitário ostracismo.
primido sobre o papel fotográfico com A esse respeito, é eloqüente o relato de
o auxílio de uma prensa especialmente Mello Morais Filho:
concebida para este fim. “A intriga e a inveja cerrando-lhe as
Conforme a perfeição técnica desta portas [da Academia], Arsênio Silva teve
fotografia demonstra de forma cabal, o de recuar, e espraiando em derredor de
esquecido Arsênio da Silva – cuja assi- si olhares de desânimo, apercebeu que
natura e endereço são visíveis nos cantos as demais se haviam fechado para ele, e
inferiores da imagem – era um exce- que, ao desamparo do gosto pela arte, a
lente fotógrafo, com total domínio de miséria seria uma conseqüência lógica,
seu instrumento de trabalho. Contudo, uma companheira inevitável dos dias
a iluminação inadequada para a prática futuros.
fotográfica não permitiu que Arsênio da E, por um instante, sacudindo guizos
Silva registrasse o casamento propriamen- de uma alucinação transitória, o excelso

* Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

237
IMAGEM HISTÓRICA

pintor de gouaches, o vendedor de telas neirismo, documentou uma Congada em


esplêndidas a 5.000 réis, faz aquisição torno de 1865, que, se não for o primeiro
de uma cabeça que fala a Saturnino da registro desta manifestação popular para-
Veiga, de um realejo e de um cosmorama, religiosa de inspiração africana, é, com
seguindo pelas estradas da província do toda a certeza, o mais antigo e perfei-
Rio, assim transformado em saltimbanco to exemplo de registro fotográfico proto-
de feira”. antropológico do que hoje qualificamos de
Dono de um talento e de uma sensi- evento “folclórico”.
bilidade superiores, Arsênio da Silva, como Curiosa e tristemente, a princesa
outros tantos luminares da arte, sucumbiu Isabel e o conde d’Eu – motivadores desta
ante a avassaladora destrutividade das obra-prima fotográfica de Silva – também
miudezas comezinhas do cotidiano. Assim, foram vítimas da inveja, da maledicên-
abandonando o saber artístico tradicio- cia e da incompreensão de interesseiros
nal, acumulado em mais de três anos de que, medindo o mundo com a escala da
estadia na Europa, em fins própria pequenez, eram
da década de 1850, quan- incapazes de enxergar a
do transitou por Roma, grandeza alheia. O casa-
Milão, Florença, Pisa, mento documentado nesta
Turim e Paris, Arsênio da imagem floresceu feliz –
Silva optou pela fotografia numa época em que eram
muito provavelmente em raros os casamentos feli-
1863, data de sua última zes – por quase seis déca-
participação na Exposição das, encerrando-se apenas
Geral da Academia de com a morte da princesa,
Belas Artes. a 14 de novembro de
Artista consumado 1921. Sobreviveu, portan-
e dedicado, assimilou de Reprodução to, às agruras da Guerra

imediato as exigências técnicas do novo do Paraguai (de cuja fase final, entre 30 de
métier, a ponto de ter o privilégio de foto- março de 1869 e 1º de março de 1870, o
grafar o casamento da princesa Isabel. Esse conde d’Eu foi o comandante-em-chefe do
trabalho agradou tanto o imperador Pedro Exército brasileiro); às inúmeras pressões
II que este lhe franqueou, em seguida, as políticas; às dificuldades de procriação
portas do Palácio Imperial e Petrópolis, da princesa (quase morta por dois abortos
até então focalizado apenas por Revert espontâneos); e ao exílio injusto imposto
Henrique Klumb, um habitué da casa, pelos militares republicanos empenhados
posto que professor de fotografia, tanto em impedir o acesso ao trono da princesa
da imperatriz Thereza Christina quanto da Isabel após a morte de seu pai, que parecia
princesa Isabel. se avizinhar a olhos vistos.
Nascido na província de Pernambuco, Com efeito, esta não tardou, suce-
a 29 de abril de 1833, e falecido na pro- dendo de apenas dois anos ao advento
víncia da Bahia, a 11 de fevereiro de 1883, da República, ocorrendo em Paris, a 5 de
Arsênio da Silva teve trajetória meteórica, dezembro de 1891. Infelizmente, a miopia
porém, fulgurante. Predestinado ao pio- de seus contemporâneos não os deixou

238
PEDRO KARP VASQUEZ

perceber a enorme importância da prin- ração da imponente estátua eqüestre do


cesa Isabel, uma das nove mulheres que, general Osório – erguida na área central
em todo o mundo, durante todo o decurso vazia nesta fotografia de Arsênio da Silva
do século XIX, foram governantes de seus – como parte dos festejos comemorativos
países. do quinto aniversário da Proclamação da
Antes do fim do Império, a princesa República.
Isabel voltaria a congregar no Largo do Decorrido um século e uma década,
Paço expressiva multidão, ao assinar a Lei essa imagem magistral, tão importante
Áurea, no domingo 13 de maio de 1888. pelo tanto que nela se vê, quanto pelo
Só que desta feita a multidão se reuniu tanto que nela não se vê, ressurge agora,
diante da fachada do prédio – oculta na como um belo convite para se repensar a
fotografia de Arsênio da Silva – que dá história. Ou diversas histórias: a história do
frente para o mar e a atual Praça XV de Brasil, a história da fotografia, e a história
Novembro, cuja estação de “ferry-boats” é de Arsênio. Este esquecido Silva pernam-
visível ao fundo, à esquerda. bucano, entre tantos outros esquecidos
O Largo do Paço, tão importante Silvas pernambucanos, que, talvez agora
para nossa história – o Dia do Fico, 9 de que um Silva pernambucano comanda o
janeiro de 1822, de Dom Pedro I (imediato país dos Silvas de todos os quadrantes, terá
prenunciador do surgimento do Império sua fabulosa contribuição devidamente
brasileiro), foi protagonizado aí, na sétima reconhecida.
janela (da esquerda para a direita), logo
antes do pórtico de entrada – foi igualmen-
te importante para a história da fotografia
brasileira. Com efeito, o abade francês
Louis Compte, ao introduzir a daguerreoti-
pia no Brasil, o fez aí, no Largo do Paço.
Colocando-se em posição parale-
la, porém oposta à de Arsênio da Silva
– ou seja, mais perto do mar e distante
da rua Direita (atual Primeiro de Março)
– Compte focalizou a mesma fachada
lateral do Paço Imperial e mais duas belas
construções excluídas desta composição
de Silva: o chafariz de Mestre Valentim
(ainda remanescente) e o Mercado da
Praia do Peixe (situado onde hoje se ergue Reprodução
a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro).
Republicanizado, pour ainsi dire, o Largo
do Paço (não mais Imperial) manteve a
majestade, protagonizando, em 1894, um
grande evento cívico que deu ensejo a
uma igualmente grande documentação
fotográfica de Juan Gutierrez: a inaugu-

239
PERFIL * RICARDO ORIÁ1

Todos sabemos que a História é um tempos, sendo possível afirmar que, por
processo de construção coletiva, em que razões internas e externas, esses estudos
interagem diferentes atores sociais. No emergiram da crise dos paradigmas tradi-
entanto, não podemos desprezar a ação cionais da escrita da história, que requeria
do indivíduo no processo histórico. A uma completa revisão dos seus instrumen-
Historiografia brasileira sempre primou tos de pesquisa. Essa crise de identidade
pela narrativa dos fatos protagonizados da história levou à procura de “outras
pelos homens. Na história oficial do país histórias”, o que levou a uma ampliação
quase não há lugar para as mulheres, do saber histórico e possibilitou uma aber-
negros, índios, trabalhadores e outras ditas tura para a descoberta das mulheres e do
minorias sociais – os chamados “excluídos gênero4.”
da história”, expressão cunhada pela histo- O presente texto, neste primeiro
riadora francesa Michelle Perrot2. Na ver- número da Revista Plenarium, pretende
dade, construiu-se no Brasil uma história resgatar a participação e luta das mulhe-
assexuada, onde as questões de gênero3 só res no processo histórico nacional, dando
muito recentemente passaram a fazer parte ênfase à política institucional, mais pre-
do território epistemológico dos historia- cisamente no campo dos direitos políti-
dores e cientistas sociais. cos. Nada mais oportuno pois, neste ano,
Segundo Izilda S. de Matos, “a expan- comemoramos o “Ano da Mulher”, institu-
são dos estudos que incorporam a mulher ído pela Lei nº 10.745, de 20035.
e a abordagem de gênero na história loca- Para tanto, escolhemos o perfil his-
liza-se no quadro das transformações por tórico-biográfico e parlamentar da pri-
que vem passando a história nos últimos meira Deputada Federal do Brasil e de

(*) Historiador e Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados

240
Carlota Pereira de Queiroz na Assembléia Constituinde de 1934. (Acervo Câmara dos Deputados)

toda a América Latina, eleita pelo voto vezes o direito de voto como uma con-
popular para a Assembléia Constituinte de cessão dos governantes e assim passa-se a
1933. Estamos nos referindo à educadora idéia de que “Getúlio Vargas deu à mulher
e médica paulista CARLOTA PEREIRA DE brasileira o direito de votar”. A história não
QUEIRÓS (1892-1982). Antes, porém, de é bem essa. A conquista do voto feminino
traçarmos esse perfil, mister se faz uma foi resultado de um processo de lutas,
breve análise da árdua e longa luta das avanços e recuos, que se inicia por volta
mulheres brasileiras pelo exercício de seus dos anos 10 do século passado.
direitos políticos, cuja expressão maior Em 1910, seguindo uma tendência
se traduz no voto e que só foi alcançado mundial do movimento sufragista, a pro-
em 1932, com a promulgação do Código fessora carioca Deolinda Daltro funda o
Eleitoral. Partido Republicano Feminino, defenden-
do o direito de voto para as mulheres e
A CONQUISTA DO VOTO a abertura dos cargos públicos a todos os
FEMININO brasileiros, indistintamente.
Em virtude da cultura política predo- A década de 20 do século passado
minante no País, de caráter personalista e assistiu importantes movimentos de con-
patrimonialista, costuma-se colocar muitas testação à ordem vigente. Somente no

241
PERFIL

ano de 1922, tivemos importantes acon- sibilitou o voto das mulheres já em 1928.
tecimentos que colocavam em xeque a Quando assumiu o cargo de Presidente
República Velha, a saber: Semana de Arte do Estado, Juvenal Lamartine solicitou aos
Moderna, Movimento Tenentista e funda- deputados estaduais que elaborassem uma
ção do Partido Comunista do Brasil. Nesse nova lei eleitoral que assegurasse o direito
contexto, não podemos esquecer a emer- de voto às mulheres. Foi sancionada a Lei
gência do movimento feminista, tendo à nº 660, de 25 de outubro de 1927, que
frente a professora Maria Lacerda de Moura regulava o serviço eleitoral no estado e
e a bióloga Bertha Lutz, que fundaram a estabelecia que no Rio Grande do Norte
Liga para a Emancipação Internacional da não haveria mais distinção de sexo para
Mulher, um grupo de estudos cuja finali- o exercício do voto e como condição
dade era a luta pela igualdade política das básica de elegibilidade. Nesse mesmo dia,
mulheres. a professora potiguar, Celina Guimarães
Viana, natural de Mossoró, entrou com
Posteriormente, Bertha Lutz6, que uma petição ao juiz eleitoral solicitando
irá ser a segunda mulher a ocupar uma sua inscrição no rol dos eleitores daquele
cadeira na Câmara dos Deputados, cria município.
a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino, considerada a primeira socie- “Celina fincou o marco da vanguar-
dade feminista brasileira. Essa organização da política feminina na América do Sul,
tinha como objetivos básicos: “promover tornando realidade o voto feminino no
Brasil.” 8 Após esse ato, várias mulheres
a educação da mulher e elevar o nível de
riograndenses solicitaram seu alistamento
instrução feminina; proteger as mães e a
eleitoral e por ocasião das eleições para
infância; obter garantias legislativas e prá-
o Senado, em 1928, 15 mulheres votaram
ticas para o trabalho feminino; auxiliar as
no Rio Grande do Norte. Fato interessante
boas iniciativas da mulher e orientá-la na
ocorreu posteriormente, quando da diplo-
escolha de uma profissão; estimular o espí-
mação do senador José Augusto Bezerra
rito de sociabilidade e cooperação entre
de Medeiros no Congresso Nacional. No
as mulheres e interessá-las pelas questões ato de sua diplomação, os votos das 15
sociais e de alcance público; assegurar mulheres não foram computados por serem
à mulher direitos políticos e preparação considerados “inapuráveis” pela Comissão
para o exercício inteligente desses direi- de Poderes do Legislativo Federal. Em
tos; estreitar os laços de amizade com os protesto a esse ato arbitrário e que revela
demais países americanos.” 7 o preconceito reinante à época acerca do
A 1ª Constituição Republicana, ape- acesso da mulher à participação políti-
sar de ter instituído o voto secreto e uni- ca, a Federação Brasileira pelo Progresso
versal, continuou alijando as mulheres do Feminino lançou um Manifesto à Nação.
direito de participação na vida política do Vargas era simpatizante à causa femi-
país. O direito de voto para as mulheres só nista, sobretudo no tocante ao direito de
se tornou realidade após a Revolução de voto. Assim, em 1932, foi promulgado o
30, que derrubou as oligarquias do coman- novo Código Eleitoral, de cuja comissão
do decisório do país. Antes disso, pelo seu de redação Bertha Lutz havia participado,
pioneirismo, merece registro a legislação e que finalmente assegurou o direito de
estadual do Rio Grande do Norte que pos- voto às mulheres brasileiras.

242
RICARDO ORIÁ

UMA VOZ DE MULHER NA à educação. Desiludida com o magistério,


CONSTITUINTE Carlota dá uma guinada em sua vida pesso-
al e profissional ao ingressar na Faculdade
“Além de representante feminina, de Medicina e Cirurgia de São Paulo, em
única nesta Assembléa, sou, como todos 1920. Em 1923, ela decide trocar de facul-
os que aqui se encontram, uma brasileira, dade e inscreve-se no Curso de Medicina
integrada nos destinos do seu paiz e identi- do Rio de Janeiro, formando-se em 1926,
ficada para sempre com os seus problemas com a tese “Estudos sobre o Câncer”.
(...). Num momento como este, em que Recebeu, por seus estudos na área, o
se trata de refazer o arcabouço das nossas Prêmio Miguel Couto. Nesse mesmo ano,
leis, era justo, portanto, que a mulher tam- assumiu a direção do laboratório da clíni-
bém fosse chamada a collaborar.” ca pediátrica da Faculdade de Medicina de
(Trecho do discurso de Carlota P. de São Paulo e viaja, em 1928, comissionada
Queirós). pelo governo paulista, à Suíça onde fará
seus estudos de dietética infantil.
No dia 13 de março de 1934, uma
voz feminina se fez ouvir, pela primeira Profissionalmente, Carlota, mesmo
vez, no plenário do Palácio Tiradentes, sede ingressando posteriormente na vida polí-
da Câmara dos Deputados e dos trabalhos tica, terá sempre uma atuação destacada
da Assembléia Constituinte. Tratava-se de na área médica, tornando-se a primeira
mulher a integrar a Academia Nacional de
Carlota Pereira de Queirós, uma médica
Medicina, em 1942, e ocupando o cargo
paulista e primeira deputada federal do
de Presidente da Associação Brasileira de
Brasil, eleita pelo voto popular.
Mulheres Médicas (ABMM), no período de
Nascida na capital paulista, em 13 de 1961 a 1967.
fevereiro de 1892, Carlota era filha de José
Sua participação na política se deu a
Pereira de Queirós e de Maria de Azevedo
partir da Revolução Constitucionalista de
Pereira de Queirós. Pertencia, portanto, a
1932, quando São Paulo pega em armas
uma família tradicional das elites locais,
contra a excessiva concentração de pode-
sendo seu avô paterno um rico proprietário
res nas mãos de Getúlio e exige um novo
de terras em Jundiaí, membro do Partido
ordenamento constitucional para o País.
Republicano Paulista e um dos fundadores
“Nesse contexto, a duração imprevista da
do jornal “A Província de São Paulo” (hoje,
Revolução de 1932 (quase três meses),
jornal “Estado de São Paulo”). onde os paulistas acabam lutando sozi-
Carlota fez seus estudos iniciais nhos contra o governo central, improvi-
na então Escola Normal da Praça e em sando forças e munições, abre às mulheres
1909 recebeu seu diploma de professora. das elites uma chance única de exercício
Convidada pelo Diretor da Escola Normal, intensivo da cidadania.” 9
passa a trabalhar neste mesmo estabele- Carlota organiza, juntamente com
cimento de ensino, sendo inspetora pri- setecentas mulheres, o Departamento de
mária. Em 1912, torna-se professora do Assistência aos Feridos (DAF), subordi-
jardim de infância, cargo que manterá por nado ao Departamento de Assistência
dez anos. Até o início da década de 20, à População Civil, dirigido por Olívia
Carlota acumulou várias atividades ligadas Guedes Penteado.

243
PERFIL

A Revolução de 32 é derrotada pelo Já promulgada a nova Constituição,


governo central. No entanto, são convoca- Carlota é reeleita na legenda do Partido
das eleições para a elaboração de um novo Constitucionalista de São Paulo para uma
texto constitucional. Como as principais das 34 cadeiras da bancada paulista na
lideranças políticas do Partido Republicano Câmara dos Deputados. Nessa eleição, ela
Paulista (PRP) e do Partido Democrático recebe 1.899 votos no primeiro turno e é
(PD) encontravam-se no exílio, formou-se a segunda mais votada no segundo turno,
a “Chapa Única por São Paulo Unido!”, com 228.190 votos.
que escolhe vinte e dois nomes ligados Como deputada federal, Carlota posi-
aos dois partidos. O nome de Carlota cionou-se contrária à proposta da então
surge por recomendação da Associação deputada Bertha Lutz sobre a criação de
Comercial, respaldado pela Associação um “Departamento Nacional da Mulher”,
Cívica Feminina e pela Federação dos no contexto da “Comissão Especial de
Voluntários, grupo de oficiais e suboficiais Elaboração do Estatuto da Mulher”.
paulistas que haviam participado do movi- Segundo ela, o modelo burocrático pro-
mento revolucionário de 32. posto para esse órgão acarretaria superpo-
Contando com o apoio da elite local, sição de atribuições e competências com
no qual sobressaem os nomes de Olívia três Ministérios da Administração Pública
Penteado e Pérola Byington, suas ami- Federal. Em seu lugar, ela propôs que o
gas íntimas, Carlota inicia sua campanha. Departamento a ser criado ficasse subordi-
É lançado o manifesto “Mensagem da nado ao Ministério da Educação e Saúde.
Mulher Paulista” na imprensa local, solici- Outro ponto de discordância entre as duas
tando do segmento feminino o apoio à sua parlamentares acerca da criação do órgão
candidatura. devia-se ao fato de que Carlota se mostrava
contrária à idéia de que os cargos do referi-
No dia 3 de maio de 1933, reali-
do Departamento fosse preenchido apenas
zam-se as eleições em dois turnos para a
por mulheres. Segundo ela, essa proposta
Assembléia Constituinte. Carlota é elei-
continha um viés nitidamente sexista. Em
ta com 5.311 votos no primeiro turno,
decorrência das divergências entre Carlota
e 176.916 no segundo. Empossada em e Bertha, o projeto do Estatuto da Mulher
novembro do mesmo ano, Carlota Pereira avançou muito pouco e foi atropelado pela
de Queirós será primeira e única mulher a implantação do Estado Novo.
sentar-se entre 253 deputados federais.
Carlota permaneceu na Câmara dos
No processo constituinte, Carlota Deputados até 1937, quando o golpe de
participou dos trabalhos da Comissão de estado impetrado por Getúlio determinou
Educação e Saúde onde elaborou o pri- o fechamento de todas as casas legisla-
meiro projeto sobre a criação de serviços tivas do país. Foi o mais longo recesso
sociais no país. Sua iniciativa colaborou parlamentar de nossa história. Durante o
para o estabelecimento da obrigatoriedade Estado Novo (1937-1945), Carlota lutou
de verbas destinadas à assistência social, ativamente pela redemocratização do país.
possibilitando, assim, a construção da Casa Tentou retornar à Câmara dos Deputados,
do Jornaleiro e do laboratório de biologia candidatando-se em 1945 pela União
infantil, anexo ao Serviço de Menores. Democrática Nacional (UDN), mas não

244
RICARDO ORIÁ

se elegeu. Com o golpe de 1964, Carlota Carlota veio a falecer em São Paulo,
posicionou-se a favor da tomada do poder aos noventa anos de idade, deixando um
pelos militares. importante legado na luta pela conquista
Embora ausente da política insti- da cidadania feminina no Brasil. Seu nome
tucional, Carlota continuou prestando inspirou a criação, no âmbito da Câmara
relevantes serviços na área da medicina dos Deputados, do Diploma Mulher Cidadã
e assistência social. Organizou o primeiro Carlota Pereira de Queirós, instituído
curso de serviço social do país ao lado pela Resolução nº 3, de 200310. Essa
de outras mulheres e continuou inte- homenagem será conferida anualmente
grando importantes associações femini- a cinco mulheres, em diferentes áreas de
nas. Publicou as seguintes obras: “Sistema atuação, que tenham contribuído para o
Froebel e Montessori” (1920); “Estudos pleno exercício da cidadania, na defesa dos
sobre o Câncer” (1926); “Diário de um direitos da mulher e questões de gênero. É
Tropeiro” (1937); “Exame hematológico o reconhecimento do Poder Legislativo ao
e medicina social” (1940); “Exame de papel da mulher na vida política nacional,
hemorragias nas tonsilectomias” (1940); mediante o resgate da memória de sua
“Das vantagens de generalização do exame primeira parlamentar – CARLOTA PEREIRA
hematológico e sua aplicação em medici- DE QUEIRÓS.
na social” (1941); “Um fazendeiro paulista
no século XIX” (1965) e “Vida e morte de
um capitão-mor” (1969).

A Mulher em uma Pintura da Grécia Clássica. Autor desconhecido.

245
PERFIL

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. SP: Paz


e Terra, 1988.

2. MATOS, Maria Izilda S. de. “Outras histórias: as mulheres e estudos de gênero – percursos
e possibilidades” In: Gênero em Debate. Trajetória e Perspectivas na Historiografia
Contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997, p. 86.

3. TELES, Mª Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. SP: Brasiliense,


1993, Col. Tudo é História.

4. PINTO, Célia Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. SP: Fundação Perseu
Abramo, 2003, Col. História do Povo Brasileiro.

5. AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? RJ: DP & A, 2003.

6. SCHPUN, Mônica Raisa. “Carlota Pereira de Queiroz: uma mulher na política” IN: Revista
Brasileira de História – órgão oficial da Associação Nacional de História. São Paulo,
ANPUH/ED. Unijuí. Vol. 17. nº 33, 1997

7. DICIONÁRIO MULHERES DO BRASIL: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado.


RJ: Jorge Zahar Ed., 2000.

8. DICIONÁRIO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO BRASILEIRO PÓS-1930. Fundação Getúlio


Vargas – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
(FGV-CPDOC), 2000.

NOTAS
1
Historiador e Advogado. Ex-professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Direito
Público pela Faculdade de Direito da UFC. Atualmente, é Consultor Legislativo da área de educação e cultura da Câmara dos
Deputados.
2
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros, SP: Paz e Terra, 1998. Ver também, da mesma,
historiadora a coleção por ela dirigida juntamente com George Duby “A História das Mulheres” (5 vols.). São Paulo: EBRADIL,
1991.
3
Estamos utilizando a expressão gênero para se referir à construção social do feminino e do masculino. Não há, pois, como fazer
apenas uma história da mulher sem questionar a relação desta com o homem e de como, no decorrer da história, se construiu a noção
de feminino e masculino.
4
MATOS, Maria Izilda S. de. “Outras histórias: as mulheres e estudos de gênero- percursos e possibilidades” In: Gênero em Debate.
Trajetória e Perspectivas na Historiografia Contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997, p. 86.
5
A Lei nº 10.745, de 9 de outubro de 2003, é oriunda de um projeto de lei, de autoria da deputada Laura Carneiro (PFL-RJ) e, além de
definir o ano de 2004 como “Ano da Mulher”, remete ao Poder Público a promoção na divulgação e comemoração dessa efeméride,
mediante a realização de programas e atividades, com envolvimento da sociedade civil, visando estabelecer condições de igualdade
e justiça na inserção da mulher na sociedade brasileira. A partir desta lei, a Câmara dos Deputados resolveu constituir uma Comissão
Especial com a finalidade de definir a atuação desta Casa Legislativa nas ações destinadas a implementar as providências referidas
nesse dispositivo legal.
6
Berta Lutz foi a segunda mulher a assumir um mandato de deputada federal, em 28 de julho de 1936, na vaga deixada pelo deputado
titular, Cândido Pessoa, que falecera.
7
TELES, Mª Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. SP: Brasiliense, 1993, Col. Tudo é História, p. 44.
8
DICIONÁRIO MULHERES DO BRASIL: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado. RJ: Jorge Zahar Ed., 2000, p. 148.
9
SCHPUN, Mônica Raisa. “Carlota Pereira de Queiroz: uma mulher na política” IN: Revista Brasileira de História- órgão oficial da
Associação Nacional de História. São Paulo, ANPUH/ED. Unijuí,. vol. 17. nº 33, 1997, p. 174.
10
O Projeto de Resolução foi uma iniciativa da deputada Laura Carneiro (PFL-RJ) na presente legislatura.

246
Charge

• Bordal Pinheiro por Paulo Caruso


CHARGE

248
* PAULO CARUSO

Ares de janota no início, quando da Isso lhe valeu uma guerra aberta com
sua vinda ao Brasil, em 1875, um “clone” caricaturas nas revistas e jornais da época
de Chaplin; depois, à época de seu retorno em que ambos se acusavam das mais tor-
a Portugal, onde se torna pintor, gravador, pes baixezas morais e estéticas, e Bordalo
escultor e ceramista renomado, ficou mais chegou a retratar o oponente como um
parecido com um dos vilões do Carlitos, Pinócchio pendurado num varal.
gordo, com bigodões virado pra cima nas
A ilustração que mais me chamou
extremidades, e monóculo que espreita-
a atenção quando passeei pelos arredo-
va com seu olhar, apoiado sobre largas
res da encantadora vila de Cascais, em
bochechas.
Portugal, foi a de dois coveiros (um deles é
Raphael Bordalo Pinheiro foi, diga- a sua cara) conversando, enquanto enter-
mos assim, o segundo caricaturista no ram para sempre a tão falada liberdade de
Brasil nos primórdios da nossa imprensa; o imprensa.
primeiro foi o italiano Ângelo D´Agostini.
Publicada em “O Antonio Maria”, em
Contratado para trabalhar em “O outubro de 1881, esse fac-simile decora a
Mosquito”, durante cinco anos vai fusti- parede de meu estúdio e muito me ensina
gar com suas caricaturas o modo de vida sobre a atualidade do mestre Bordalo num
deste lado de cá do Atlântico, sendo um tema tão caro a nós todos, praticantes do
dos responsáveis pela entrada de José do ofício de exercer nossa liberdade pela cari-
Patrocínio no jornalismo. catura.
Inicialmente afável, bem recebido A liberdade de imprensa é constan-
pelo concorrente Agostini através de dese- temente ameaçada, seja pela ditadura das
nhos estampados na Revista Ilustrada, sau- baionetas ou dos seus interesses econômi-
dando sua chegada, vai, mais tarde, entrar cos, mas, hoje em dia, principalmente pela
em conflito com o italiano que não o ditadura do “politicamente correto”.
perdoava pelo fato de exercer, além da
caricatura, sua atividade de importador e Cabe a nós sepultá-la, porém, como
ensacador de carnes, lingüiças, pra falar sabemos, não vamos perder a piada por
mais claro. isso...

* Cartunista

249
HISTÓRIA DA HISTÓRIA * SEBASTIÃO NERY

Folclore
Político

Andrada Alkmin
Antonio Carlos Ribeiro de Andrada
Machado e Silva, um dos três heróicos
irmãos Andradas da Independência (os
outros eram José Bonifácio e Martim
Francisco) era o presidente da Assembléia
Geral Constituinte Legislativa do Império
do Brasil, instalada, em 3 de maio de
1823, onde hoje é o Palácio Tiradentes,
no Rio (sede da Assembléia Legislativa do
Estado).
Em 12 de novembro de 1823, com
a Constituinte reunida e ele presidindo,
Antonio Carlos viu o Imperador Dom
Pedro I chegar à frente das tropas e cercar
o edifício. Preso, pegou o chapéu e saiu
com os dois irmãos, também constituintes,
e outros, todos presos.
Lá fora, vê o Imperador. Tira o cha-
péu e cumprimenta. Não o Imperador, mas
um canhão. E seguiu em frente.

(*) Jornalista

250
Na tribuna da Câmara, Carlos tra. E planejaram a primeira jogada contra
Lacerda, líder da UDN, desancava o Magalhães: eleger Baleeiro líder da banca-
governo de Juscelino. Alkmin, líder da na Câmara.
do governo, levantou-se com um jornal Lacerda foi encarregado de ir conver-
dobrado na mão: sar com Magalhães:
“Deputado Carlos Lacerda, não era “Nosso candidato é o Aliomar”.
isso que V. Excia escrevia no ano passa-
do em seu jornal, a Tribuna da Imprensa, “Sou contra. O Aliomar é muito
sobre esse mesmo assunto”. talentoso, muito brilhante, mas não une o
partido”.
Lacerda perturbou-se, continuou,
mudou de tema. Quando desceu, pediu o “Magalhães, é por isso que acusam
jornal a Alkmin. você de adesista. Você não quer um líder
combativo. Quer um acomodado e isso
Era O Globo. não podemos aceitar”.
“Não se trata disso, Carlos. É que
Magalhães - I tenho outro candidato”.
“Quem?”
“Você. Por que não? Você não tem
sido outra coisa na UDN senão líder. Meu
candidato é você”.
Lacerda saiu, Magalhães ficou rindo:
“Estou só pensando na cara do
Aliomar e do Adauto quando o Carlos
contar a conversa”.
Lacerda foi líder e Magalhães presi-
dente.

Magalhães - II
Um dia, Lacerda atacou violenta-
mente Magalhães pela TV. No dia seguin-
te, encontraram-se em um banheiro do
Congresso:
“Magalhães, fui muito agressivo com
você ontem, me desculpe”.
“Nada disso, Carlos. Não aceito essas
Magalhães Pinto tinha come- desculpas. Você me ataca pela TV e pede
çado a armar sua candidatura à presi- desculpas no mictório? Volta à TV e peça
dência da UDN. A “Banda de Música” desculpas lá. Atacou na TV, conserte na
(Lacerda, Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto, TV”.
Adauto Cardoso, Oscar Correa) era con- Lacerda pediu desculpas na TV.

251
HISTÓRIA DA HISTÓRIA

Pedro Aleixo “Responderei, senhor presidente, de


acordo com o regimento. Deputado, retire-
José Aparecido de Oliveira e eu con-
versávamos com Pedro Aleixo, já doente, se de meu discurso!”
alquebrado, em um hotel do Rio, sobre os
sortilégios da política: Lacerda - III
“Doutor Pedro, o senhor era presi- O deputado cearense Bonaparte, que
dente da Câmara dos Deputados aos 34
anos, Getúlio fechou o Congresso em 37.
Depois, o senhor era vice-presidente de
Costa e Silva, em 69, ele teve derrame, o
senhor foi impedido de assumir”.
“Pois é, Aparecido, ninguém esco-
lhe o lugar onde o raio cai. Ele caiu duas
vezes em cima de mim”.

Lacerda - I
Quando tentaram cassar o man-
dato de Carlos Lacerda, no governo de
Juscelino, por ter divulgado um telegrama
cifrado do Itamaraty, ele falou doze horas
seguidas na Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara. E contou:
“Não era permitido falar tanto
tempo. Mas, o presidente da Comissão
era o baiano Oliveira Brito, do PSD.
Arranjei um funcionário da Câmara que,
de vez em quando, com o pretexto de
trazer água, dissolvia umas bolinhas para
ele ficar tranqüilo, meio sonolento. E ele,
sonolento, não via o tempo passar e eu
continuava lendo e falando”.

Lacerda - II
Eloy Dutra elegeu-se deputado do tomou posse de smoking, ficou uma fera
PTB da Guanabara combatendo Lacerda. porque Lacerda falou em “cearenses con-
Na primeira sessão, Lacerda na tribuna, trabandistas”:
Eloi pede um aparte, Lacerda concede, “Deputado Carlos Lacerda, a banca-
ouve em silêncio, vai em frente: da do Ceará protesta!”
“Continuando a parte séria de meu “Deputado Bonaparte, eu não disse
discurso...” que os cearenses são contrabandistas. Eu
Eloy protestou, o presidente Ranieri disse que há cearenses que fazem contra-
Mazzilli lembrou a Lacerda que, pelo regi- bando. Entre os quais, data venia, incluo V.
mento, ele devia responder. Respondeu: Excia.”

252
SEBASTIÃO NERY

Lacerda - IV Mangabeira
Clemes Sampaio, do PTB da Bahia,
estava na tribuna:
“Segundo Adam Smith, a lei do mer-
cado...”
Lacerda pediu um aparte:
“V. Excia cometeu um equívoco. A
tese da lei do mercado não é de Adam
Smith, mas do famoso economista inglês
Window.”
“Ilustre líder Carlos Lacerda, agra-
deço a contribuição de V. Excia a meu
discurso.”
“Senhor deputado, Window não é
economista inglês nem de país nenhum. Mangabeira estava na tribuna da
Window é apenas janela em inglês.” Câmara, pedem-lhe um aparte.

Clemes se perdeu todo. “Meu filho, seu nome?”


“Fernado Ferrari, líder da bancada
Nereu do PTB.”
Nereu Ramos, de Santa Catarina, “Pobre país de líderes mal saídos das
presidente e patriarca do Congresso, sábio fraldas.”
de antiqüíssimas lições, um Magalhães
Pinto ainda mais feio, só usava borboleta. Tenório - I
E só ele as usava, em todo o Congresso. Tenório Cavalcanti, da UDN do Rio,
Um dia, chega de Minas, carregado valente e ágil, falava na Câmara:
de votos e de literaturas, o deputado Mário “O Brasil precisa cultuar seus heróis,
Palmério. E de gravata-borboleta. Nereu como João Fernandes Vieira, morto na
convidou-o para ir ao gabinete: Guerra do Paraguai.”
“Deputado, o senhor usa gravata- Geraldo Mello Mourão aparteia:
borboleta? Gosta mesmo de usá-las?”
“Deputado, há um engano. João
“Gosto muito, presidente.” Fernandes Vieira é herói da guerra contra
“Então tome esta caixa. São minhas os holandeses. Não esteve na guerra do
gravatas - borboleta. Ou só eu uso ou não Paraguai.”
uso.” “Esteve em espírito, deputado.”
Não houve jeito de Palmério conser-
tar a situção, deixando de usar. Nereu não Tenório - II
concordou. Nunca mais usou gravata-bor- Na tribuna da Câmara, que Tenório
boleta. Ou só ele ou nada. citou Rui Barbosa. Luís Viana aparteou:

253
HISTÓRIA DA HISTÓRIA

“Deputado, escrevi a biografia de aparteava ou esperava Benedito. Foi cha-


Rui, li toda a sua obra e não me lembro mar o líder na sala do cafezinho:
disso a que V. Excia está se referindo.” “Benedito, o Juracy está arrastando o
“Ora, deputado Luís Viana. O conse- governo.”
lheiro Rui Barbosa conversava muito.” “Está bem, está bem.”
Zezinho “Está atacando pessoalmente o
Presidente.”
A Câmara tinha três Jorge Curi: Jorge
Curi, da UDN do Paraná; Jorge Said Curi, “Está bem, está bem.”
do PTB do Estado do Rio e Athiê Jorge “Até palmas já houve para ele. Você
Curi, do PDC de São Paulo. Uma confusão não pode ficar aqui, Benedito. Você é o
permanente. Jorge Curi do Paraná fez uma líder, tem que ir apartear o Juracy.”
questão de ordem: “Ô Cunha Melo, me diz uma coisa.
“Senhor Presidente, quem deve usar Quem é que sabe quando eu devo falar?
o nome Jorge Curi?” Sou eu ou o Juracy?” Juracy falou, acabou,
o assunto também. E Benedito, no cafe-
José Bonifácio, o Zezinho Bonifácio, zinho.
sorriu lá de cima:
“Ora, deputado, não fique preocu- Benedito - II
pado. Cada estado tem o Jorge Curi que Benedito ia entrando no Congresso,
merece.” passava o quase deputado Clovis Stenzel,
cumprimentou-o. Benedito pergunta a um
Último jornalista:
Oscar Correia, bravo deputado da “Quem é aquele?”
UDN de Minas, debatia na Câmara com
Último de Carvalho, do PSD de Minas, “É o Clovis Stenzel, suplente do Rio
manhoso e sábio. Oscar Correia pedia Grande do Sul.”
definições, Último enrolava. Oscar ficou “Ih, tenho pavor de suplente!”
irritado: E saiu ligeiro.
“V. Excia não se define nunca. Fica
dando uma no cravo e outra na ferradu- Benedito - III
ra.”
Benedito estava no Congresso,
“Também pudera! V. Excia não fica já em adiantado estado de esclerose,
com o pé quieto!” entra Leandro Maciel, de Sergipe,
cumprimenta-o:
Benedito - I “Bom dia, Benedito!”
Juracy Magalhães, líder da UDN, “Bom dia!”
também da tribuna, atacava o governo
de Juscelino. Benedito Valadares, líder do Leandro saiu, Benedito ficou olhando:
PSD, fora do plenário. Cinha Melo, do “Quem é aquele índio?”
Amazonas, vice-líder do PSD, não sabia se Leandro tinha mesmo cara de índio.
*As ilustrações que constam nesta sessão (Folclore Político) foram retirados com a devida autorização do
autor do livro, Sebastião Nery - Folclore Político / 1950 – Histórias, e são de autoria dos Chargistas: Henfil,
Nassara, Lan, Fafs e Osvaldo Pavanelli.

254
SEBASTIÃO NERY

Leituras

Alca: O Gigante e os Anões.


Tullo Vigevanii e Marcelo Passino Mariano
SP - Editora SENAC/2003
Por Paulo Roberto Almeida

255
LEITURAS * PAULO ROBERTO DE ALMEIDA

A Alca do Gigante e a Alca dos


Anões: Incompatibilidade de
Gênios
A Alca, pelo menos no Brasil, parece em que como um destino recusado, e isso
ter-se convertido numa espécie de “rogue pelas mais variadas correntes de opinião,
concept”, ou seja, no vilão do momento. De englobando profissionais do antiimperia-
fato, esse mero projeto se apresenta como lismo e bispos da CNBB, políticos auto-
uma perspectiva temida (para alguns, ele proclamados nacionalistas e industriais
já seria uma realidade), ao mesmo tempo protecionistas, sindicalistas tradicionais e
ecologistas pós-modernos.

* Diplomata

256
Mesmo economistas, usualmente de ampliação (racional) e de balizamento
tidos como ponderados, têm recorrido a (conceitual) desse importante debate para
conceitos como “dominação hegemônica”, o Brasil e o Mercosul, e que vinha sendo
“assimetria de poder”, “desmantelamento impossibilitado pelo festival de superficia-
industrial”, que não costumam freqüentar lismo até aqui disponível para o grande
seu discurso, normalmente circunspecto. público. Como apresentação sistemática
Não se passa, aliás, uma semana, sem da estrutura e das etapas seguidas até aqui
que algum artigo vitriólico, descrevendo pelo processo da Alca e como discus-
o saco de maldades embutido no futu- são dos problemas enfrentados pelas três
ro acordo hemisférico, seja publicado dezenas de “anões” em face do gigante
em algum jornal de circulação nacional, hemisférico, o livro cumpre amplamente
aproveitando, o autor, para cobrar do par- esse papel didático-analítico, dispondo
tido atualmente majoritário (e no poder) de inegáveis méritos recapitulativos, ade-
as dubiedades ou hesitações em relação mais de uma rara capacidade (para os
a esse antigo projeto de “anexação” da padrões do debate intelectual no Brasil)
economia brasileira ao território de caça de colocar, no tocante à questão da Alca,
do novo império. senão todas as respostas que poderiam
Com tal exibição de paixões eco- esperar seus leitores, pelo menos todas
nômicas e de fúrias políticas, fica difícil as perguntas pertinentes que podem ser
manter um debate racional sobre a mais feitas em relação a esse objeto. A despeito
importante proposta de integração conti- de uma concentração na ciência políti-
nental desde a primeira conferência inter- ca, em contraposição ao que seria uma
nacional americana, realizada na capital exposição basicamente econômica, cabe
do (então nascente) império, em 1889- desde já descrever o livro e louvar-lhe as
1890. No entanto, esse mesmo caráter qualidades enquanto primeiro exemplo
controverso indica que estamos neces- de avaliação abrangente do “problema”
sitando de bons estudos e de pesquisas da Alca no e para o Brasil.
rigorosas, como forma de devolver um Trata-se de obra relativamente
certo equilíbrio a esse debate, que não modesta (150 páginas de texto, em for-
pode, obviamente, ficar entregue a “parti- mato reduzido) para a complexidade da
pris” redutores ou simplismos ideológicos, tarefa, mas que atende à finalidade de
obscurecendo uma avaliação ponderada apresentar o que é o projeto da Alca e de
sobre a importância da Alca e seu possí- introduzir a questão de como ela pode-
vel papel no futuro das relações hemisfé- ria impactar o Brasil e o Mercosul. Após
ricas e para o próprio processo brasileiro um capítulo introdutório (“Esclarecendo
de inserção econômica internacional (que dúvidas”), essencialmente conceitual, o
não pode ser confundido como um iti- livro se compõe de três grandes capítulos
nerário para o desenvolvimento, o que a substantivos, cujos títulos são auto-expli-
Alca não pode fazer sozinha). cativos: “Origem e desenvolvimento da
O livro de Vigevani e de Mariano Alca”, “Por que ‘o gigante e os anões’?”
vem justamente preencher essa função e “O Brasil e suas opções”. Um capítulo
conclusivo retoma as principais questões

257
LEITURAS

abordadas ao longo do texto, comple- Não deve causar espanto, assim,


tando-se o livro com uma cronologia, o fato de que a maior parte das análises
um glossário de siglas e de organizações relativas à Alca apresentem, invariavel-
internacionais e regionais, bem como por mente, essa visão crítica do processo,
uma relação de fontes adicionais de con- como aliás revelado no próprio subtítulo
sulta na internet e uma bibliografia não do livro: “anões”. Por que exatamente um
exaustiva. julgamento severo, de maneira preventiva,
O tom contra a Alca,
geral do discur- com base na
so é razoavel- desigualdade de
mente crítico em base dos par-
relação à Alca, ceiros envolvi-
como são, em dos, ao mesmo
geral, as poucas tempo em que,
ilustrações sele- também invaria-
cionadas prova- velmente, esses
velmente pelo opositores jul-
editor: três car- gam de modo
toons típicos do muito benigno
jornalismo brasi- (e de forma algo
leiro (nos temas míope, eu pode-
clássicos da cobi- ria acrescentar)
ça imperialista e o mesmo pro-
das desigualda- jeto de livre-
des de riqueza comércio em
e poder entre o curso de nego-
Norte e o Sul) e ciação entre o
uma foto de uma grande “Marcha contra Mercosul e a
a Alca” (na qual figuram vários expoentes UE? Por acaso, as chamadas “assimetrias
do atual governo). Não se poderia mesmo estruturais” são menos relevantes neste
esperar ilustrações e fotos favoráveis à caso, quando a UE ostenta aproximada-
Alca, ou, em geral, manifestações a favor mente o mesmo gigantismo em termos de
do livre-comércio, pois essa seria uma PIB e de comércio exterior que os EUA,
realidade impossível em qualquer país do sendo aliás muito menos atraente dos
mundo atual, no qual há uma quase una- pontos de vista da composição do inter-
nimidade da opinião pública contrária à câmbio e do protecionismo e do subven-
liberalização comercial, ao mesmo tempo cionismo revoltantes na área agrícola?
em que os governos tentam, por vezes de A despeito dessa característica
forma discreta e desajeitada, privatizar comum à maior parte das análises rela-
alguns mamutes, abrir a economia e atrair tivas à Alca conduzidas no Brasil, o livro
investimentos estrangeiros. de Vigevani e Mariano constitui, até aqui,
a mais completa exposição do processo

258
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA

negociador hemisférico, desde suas ori- Trata-se, portanto, em primeiro lugar,


gens até as recentes tomadas de posição de uma referência útil a todos aqueles
do novo governo brasileiro. Nele se dispõe que necessitam ou desejam saber de onde
de uma recapitulação cuidadosa de todos veio e como caminhou, até aqui, esse pro-
os encontros mantidos a partir da reunião blemático processo de integração (à falta
de cúpula de Miami, em 1994, quando de se poder dizer, com precisão, o que
foi lançada a idéia de um acordo de livre- acontecerá com ele na fatídica data de
comércio hemis- 2005). O con-
férico para ser ceito de inte-
implementado gração é, aliás,
a partir de 2005 definido no pri-
(são examina- meiro capítulo
dos inclusive como um meio
os precedentes, de se alcançar
sob a forma da objetivos consi-
“Iniciativa para derados estraté-
as Américas”, gicos e que não
lançada em seriam atingidos
1990 por Bush isoladame n t e .
pai, e que con- Os governos
duziria ao acor- podem utilizar-
do do Nafta, se desse método
tão vilipendia- para minimizar
do quanto está riscos ou produ-
sendo hoje sua zir aumento de
extensão conti- ganhos econô-
nental). micos.
De fato, o Para os
capítulo sobre “Origem e desenvolvimen- EUA, segundo o livro (p. 14), a proposta
to da Alca” apresenta um relato fatual, da Alca está a meio caminho da busca de
honesto e objetivo (às vezes transcreven- “desenvolvimento econômico” – o que
do até o aborrecido da linguagem oficial pode parecer incongruente, na medida
dos comunicados presidenciais, ademais em que não há, propriamente, referência
da estrutura negocial em cada etapa), mais avançada de desenvolvimento do
de cada um dos encontros de cúpula e que o próprio país – e do fortalecimento
ministeriais ocorridos desde 1994. Não se de seu “papel hegemônico”, segundo
descarta, outrossim, a visão crítica, já que a “lógica da globalização” (o que sem
o pressuposto das “bondades” do livre- dúvida corresponde à visão que se tem
comércio está sempre sendo confrontado externamente dos “objetivos estratégicos”
às suas limitações objetivas em termos dos EUA). Para outros, numa estratégia
de desenvolvimento econômico e social mais defensiva, como por exemplo ou do
para todos. novo presidente brasileiro, o reforço do

259
LEITURAS

Mercosul deve servir para “uma negocia- fato, obviamente manifesto, de que a con-
ção soberana diante da proposta da Alca” veniência de se criar, ou não, uma área de
(p. 15), o que também está conforme a livre-comércio hemisférica “nunca che-
visão que se costuma ter, no Brasil, dos gou a ser objeto de debate nacional signi-
desafios do projeto hemisférico para uma ficativo” (p. 43).
economia percebida como frágil e des- Aqui parece residir a questão básica
preparada. que angustia a maior parte dos observa-
Essa dupla dores isentos, ou
visão é, aliás, pretensamente
confirmada em imparciais, em
diversas passa- relação à Alca:
gens do capítulo não se sabe, de
“Origem e desen- fato, se ela será,
volvimento da ou não, boa
Alca”, de resto para o Brasil,
mais expositivo dada a ausência
do que propria- de debates ade-
mente discus- quados e, mais
sivo. As razões ainda, de estu-
que impulsio- dos satisfatórios.
naram os EUA a Existem, obvia-
propor esse pro- mente, aqueles
jeto teriam sido que respondem
a necessidade de imediato
de preservar sua pela negativa, e
“supremacia até se permitem
econômica que fazer plebiscitos
parecia ameaça- com perguntas
da pelo avanço de alemães e japoneses” manifestamente capciosas (como as que
e o desejo de impulsionar a “globalização vinculam a existência da Alca a uma ame-
dos mercados” (p. 22). Como reação a aça à soberania nacional), assim como
essa ofensiva, os autores acreditam que os existem aqueles (poucos) que respondem
governos do Brasil e da Argentina decidi- positivamente, com base numa simples
ram aprofundar e acelerar o processo de constatação de que uma maior exposição
integração bilateral começado nos anos ao comércio internacional melhorará os
1980 e que receberia, a partir de 1991, o índices de competitividade da economia
formato quadrilateral do Mercosul, apre- brasileira, além de ampliar o acesso ao
sentado como uma escolha de suas elites maior mercado do planeta. Não se pode
políticas e econômicas. Os autores evi- dizer que o livro tenha respondido cla-
denciam a nítida relutância do governo ramente a essa questão – o que seria de
e das lideranças políticas brasileiras em todo modo impossível de se fazer em
relação ao projeto da Alca, com base no bases puramente hipotéticas, pois que

260
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA

tudo depende da Alca que se logre forma- em relação às “megaempresas européias”


lizar – mas ele abre, pelo menos, algumas – não parece sustentar-se em várias áreas
avenidas de discussão sobre o assunto de nítida competitividade brasileira (não
(como na discussão sobre as condições apenas nas áreas labor-intensive, diga-se
de acesso a mercados e, mais importante, de passagem), com base em tecnologias
sobre as normas regulatórias desse aces- tão ou mais avançadas do que aque-
so). las existentes nos EUA – em siderurgia
O capí- ou agribusiness,
tulo principal, por exemplo
entretanto, vem – ou em muitos
já marcado por outros terrenos
uma certa pre- nos quais podem
disposição nega- ser mobilizados
tiva ao referi- nossos imensos
rem-se, os auto- recursos natu-
res, ao “gigante” rais, os preços
(apenas os EUA) menores de
e aos “anões” vários insumos
(todos os (terra, energia,
demais), quando mão-de-obra) ou
isso não parece a própria inova-
tão claro a partir ção e engenho-
de uma análise sidade brasileira
desagregada das (apesar de haver
várias interfaces muito pouca
da integração. confiança em
Se colocarmos nossas virtudes).
lado a lado o PIB individual (e nominal) Se não fosse assim, por que exata-
de cada um desses atores, parece claro mente os lobbies no Congresso americano
que as discrepâncias são incomensuráveis foram tão ativos e se apressaram em colo-
e talvez mesmo insuperáveis. Diferenças car limites ou várias condicionalidades no
de tamanho, porém, nunca aboliram, ao mandato que aprovou a capacidade nego-
que se sabe, o princípio das vantagens ciadora do Executivo para a atual rodada
comparativas, que continua tão válido de acordos comerciais? Se a assimetria é
agora como nos tempos de David Ricardo, tão brutal, como explicar esses surtos de
podendo, se tanto, produzir ganhos de protecionismo setorial que, de resto, se
escala que nunca são absolutos em vista exercem com igual acuidade no caso da
de outras variáveis envolvidas na escala de Europa e de outros parceiros da OMC?
competitividade. Com apenas 1% do comércio internacio-
De resto, o tão alardeado gigantismo nal (e algo equivalente nas importações
das “megacorporações norte-americanas” totais dos EUA), o Brasil pode não ser
– argumento, aliás, muito pouco utilizado um global player, como alardeado de

261
LEITURAS

forma permanente por nossos negociado- Os autores também retomam, no


res, mas certamente não é o “anão” que debate de uma Alca “ideal”, alguns dos
se pretende mostrar em termos de poder temas caros ao governo brasileiro, ante-
de barganha e de vantagens competitivas. rior e sobretudo atual no que concerne,
No frigir dos ovos, inclusive, nosso poder por exemplo, à transferência (presumi-
negociador é bem maior do que a mera damente induzida) de tecnologia ou à
expressão do nosso PIB, quando confron- existência de mecanismos compensató-
tado ao do gigante. rios das desigualdades estruturais. Nesse
Questão de último aspecto,
tamanho à parte, existe a tendên-
o cerne da discus- cia a se invocar o
são neste capítulo exemplo europeu
refere-se às dife- e seus alegados
renças de condi- fundos corretores
ções econômicas de desvantagens,
entre os parceiros e se pretende que
da Alca, problema os EUA assumam
que tende a ser esse papel de dis-
respondido pelos pensador líquido
autores mediante de recursos, de
a invocação das know-how e de
sérias dificulda- benesses para os
des ocorridas nos mais pobres, de
países latino-ame- modo geral (entre
ricanos nas duas os quais suposta-
últimas déca- mente se inclui-
das, em especial ria o Brasil).
daqueles que teriam aberto suas econo- Na verdade, os autores reconhe-
mias e seguido o receituário neoliberal. cem que diferenças entre países “não são
A liberalização eventualmente patro- obstáculos intransponíveis para a cons-
cinada pela Alca tenderia a acentuar, nessa tituição de blocos econômicos” (p. 98),
visão, essas dificuldades, em especial em mas voltam a dizer, no capítulo sobre “O
termos de desigualdades e precarização Brasil e suas opções”, que “deixado livre,
das condições de trabalho (p. 88). Ora, o mercado rege-se de acordo com suas
não é certo que a liberalização comercial próprias motivações, não tende neces-
agrave as condições macroeconômicas sariamente a equilibrar benefícios, pode
de um país, como o provaria o caso do manter ou aumentar as assimetrias e pode
Chile, um dos países mais assumidamente levar ao acúmulo de poder nas mãos dos
neoliberais e, ao mesmo tempo, detentor que já o detêm” (p. 120). A recomen-
de uma das maiores taxas de crescimento dação, portanto, seria uma acumulação
com estabilidade da região. preliminar de capacitação tecnológica e
econômica, se possível “no sentido de

262
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA

atribuir ao Estado a capacidade de pro- ceiros, nunca ocorreria intercâmbio. Não


mover o desenvolvimento” (idem). Trata- se compreende aliás, como e em que uma
se da velha tese, conhecida em nossa integração com a UE seria mais vantajosa,
história, que recomenda que, em face de dadas a existência das mesmas assimetrias
um desafio, postergue o quanto puder a estruturais e uma composição dos fluxos
solução do problema – abolição do tráfi- de comércio ainda menos diversificada
co, eliminação da escravidão, por exem- do que aquela incidente no plano hemis-
plo – até conse- férico.
guir juntar forças Não se
para enfrentar pode obvia-
o valentão da mente deixar de
escola. reconhecer as
E s t o u fortes assimetrias
obviamente existentes ou as
exagerando na fragilidades lati-
caracterização no-americanas,
do que seria uma mas considerar,
posição atentis- como fazem os
ta ou meramen- autores, que “A
te postergadora eventual debi-
defendida por lidade da posi-
certos países, ção brasileira,
mas é o que assim como da
julgo perceber de outros países
na seguinte pas- latino-america-
sagem em que nos, reside na
os autores apresentam a doutrina do fragilidade das políticas estatais” (p. 136),
livre-comércio de David Ricardo: “Essa significaria admitir que apenas depois de
lei (sic) seria verdadeira se a alocação muito planejamento indicativo, de fortes
dos fatores se desse num quadro de con- investimentos estatais e de “políticas cor-
dições semelhantes. Quando esse quadro retivas” esses países estariam prontos para
de referência básico não existe, para que enfrentar um projeto como o da Alca. A
o livre-comércio produza resultados satis- mesma visão, segundo a agenda brasileira
fatórios para todos os países interessados, descrita pelos autores, que tende a pedir
são necessárias medidas não de mercado, “metas de ajuste nos setores mais sensí-
mas que viabilizem previamente um nível veis; negociar políticas compensatórias;
mínimo de igualdade de condições, ainda e definir um ritmo mais lento para que
que a longo prazo” (p.127). as modificações necessárias sejam imple-
Ora, a experiência histórica ensina mentadas” (p. 139), explica os medos
que a “lei” funciona justamente porque as ancestrais brasileiros de ter de enfrentar
condições são diferentes e, se se preten- antes do tempo uma realidade que se crê
desse uma igualdade prévia entre os par- desconhecida e ameaçadora.

263
LEITURAS

A solução consiste, invariavelmente, disse, a todos os problemas colocados


em apontar para a falta de um “projeto ao Brasil e ao Mercosul nesse debate
nacional” e em recomendar assim que o relevante para o futuro do País e do
Estado, devidamente dotado de “planeja- bloco sub-regional, mas ele permite
mento estratégico”, assuma o papel con- colocar, de maneira inteligente, todas as
dutor no fortalecimento da capacidade perguntas pertinentes para que esse debate
negociadora externa. Nem adianta, nessas possa ser feito com o mínimo de teologia
circunstâncias, invocar uma bela frase do e de ideologia, e com o máximo de
tipo “o Mercosul é destino e a Alca uma racionalidade e de refinamento analítico.
mera opção”, pois as invocações impres- Em ambiente bibliográfico extremamente
sionísticas não resolvem alguns dos proble- rarefeito sobre a questão, ele constitui uma
mas básicos do Brasil: a falta de confiança publicação doravante indispensável para
em sua própria capacidade negociadora uma discussão bem informada sobre um
e a decisão de, por uma vez, enfrentar a projeto que está praticamente batendo na
realidade, em lugar de ficar eternamente porta do futuro imediato.
postergando os embates.
O presente livro sobre a Alca e o
“anão brasileiro” não responde, como se

264

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