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A Transubstanciação de Helio

Em 1967, Helio Oiticica escreveu um texto bem famoso onde consta a seguinte
frase: Da adversidade vivemos. Com essas três palavras, Helio falou por todos
nós, de maneira atemporal.

Ele não se referia apenas ao complicado contexto político da época, mas


principalmente a cada artista, relembrando o moto contínuo que é o processo
criativo. Mais além, mencionava as dificuldades do sistema/circuito de arte
brasileiro, em 1967.

Hoje, 18 de outubro de 2009, diante do estúpido incêndio que destruiu 90% do


acervo de Helio sob responsabilidade de sua família, o peso da bela frase nos
massacra. Pois é difícil ser artista. É doloroso conviver com a negligência, com
a ignorância, com o desprezo e com a falta de ética alheia. Com o
conservadorismo destruidor e a vanguarda conservadora. Com a falta de
ferramentas, ou com o alto custo delas. O custo de uma vida. E, mais ainda,
pelo fato de nós, artistas, não termos feito nada para impedir que isto
acontecesse. Mas poderíamos fazer algo?

Helio se foi novamente. Morreu duas vezes, da segunda morte sua terrível
ironia, Helio ao pó. Mas não há fogo no mundo para consumir o verdadeiro
legado de Helio, aquele que dinheiro nenhum irá mensurar. Pois independente
das conseqüências legais, jurídicas ou não, a serem tomadas na política de
conservação e acervo de obras por herdeiros parentais, nós – artistas - é que
herdamos sua obra. Da maneira mais dolorosa possível, Helio já não é Helio;
Helio somos nós agora.

Lembro do sacrifício heróico mitológico. Dionysus-Bacchus-Zagreus, o deus


sempre vivo, sempre sacrificado, de cujo sangue verte-se um cálice.
Transubstanciação, consubstanciação, mas não sub-substanciação, segundo
James Joyce. O sangue/vinho ingerido é a própria essência divina manifestada,
o mistério feito carne. Para que o milagre ocorra, no entanto, é preciso
sacrificar o herói. Assim, Jesus jaz em sua cruz. Experimentar o mistério de
Helio é ter seus textos publicados por perto. As imagens de sua obra na
memória. A força de sua poética na consciência.

Todo artista se apóia em sua obra, deseja que ela permaneça. Isto foi negado
a ele. Não é preciso culpar ninguém. Mas é hediondo negar o trabalho de uma
vida, com toda certeza. Mesmo assim, ouso dizer, Helio, o mais brilhante Helio,
solar mas imprevisível, derradeiramente morto, não foi derrotado, apesar de
seu aniquilamento. Com o fim do homem, o início do mito. Com o fim da obra,
que viva a poética. Tudo aquilo que Helio Oiticica vinha representando
amplificou-se diante da tragédia. Agora, mais do que nunca, devemos carregar
a riqueza de suas idéias, suas conquistas artísticas, seu verdadeiro valor, que
é poético, sublime, humano; que é eterno.
Nós somos o legado da Humanidade. Nós somos o legado de Helio. Nós
somos o presente, o passado e o futuro. Aqui e agora.
Escrevo este texto, e chove, como um velório maldito no sábado. Não quero
que isto soe como um discurso de adeus, no entanto, mas sim como um
desabafo, como um grito de guerra. Um ato político. Porque da adversidade
ainda vivemos. Mas não tememos nada. Nem ninguém. Estamos sempre no
limite.
E Helio vive.

Alexandre Faccin

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