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http://dn.sapo.pt/2008/03/12/opiniao/o_poder_rua.html

O PODER DA 'RUA'

Baptista-Bastos
escritor e jornalista
b.bastos@netcabo.pt

As impressionantes manifestações registadas nas últimas semanas, e continuadas um pouco por toda a
parte, assumem a forma e o conteúdo de um severo depoimento contra o Governo. Não se trata de
turbulências comunistas, como já o disse José Sócrates e, iradamente, o repetiu Augusto Santos Silva,
cujas "verdades" surgem cada vez mais avariadas. A "rua" foi a demonstração categórica do
desequilíbrio entre quem pensa em termos estatísticos e quem é vítima desse equívoco. E uma vigorosa
afirmação de civismo. Há dias, conversei com Raul Solnado sobre a natureza do Estado e o domínio pelo
domínio exercido, repetidamente, pelo Governo, esquecido de que a força da República é a virtude, e a
sua fraqueza a soberba. Sobre ser um amigo de há mais de 40 anos, Solnado é homem sábio, de frase
pensada e advertida inteligência, com quem apetece discretear. Disse: "Gostaríamos de sentir que este
Governo tem vontade de transformar e de modernizar o País. Por outro lado, a sua arrogância e autismo
quer arrastá-lo para uma democracia musculada, o que é assustador. Eles distanciaram-se de nós."

A tentação de se construir contra o outro destrói o laço social, fonte e apoio do tecido colectivo,
assinalado por Solnado como silogismo. E essas regras perturbadoras têm por objectivo limitar a
interferência cívica e proteger o autoritarismo governamental. O facto de este Governo dispor de maioria
absoluta não significa que actue em absolutismo. Há, manifestamente, ausência de diálogo e um
poderoso dispositivo autoritário que liquidam a coexistência de duas sinalizações fundamentais em
democracia: a dos governantes e a dos governados.

Perdeu-se de vista o reconhecimento da igualdade, do direito de protesto e do dever de memória. Este


Governo criou uma tensão dramática de tal ordem e um destempero de tal jaez que levaram o
primeiro-ministro a afirmar-se indiferente para com a imponente manifestação dos professores,
invocando uma "razão" cuja natureza só poderá ser explicada através da nebulosa em que ele parece
viver.

A arrogância é uma deformação moral; o preconceito, uma doença de educação; o desdém, uma chaga
de quem se presume superior. Sócrates criou uma criatura que escapou ao seu controlo. Não pode
mudar: de contrário, deixa de ser quem julga ser. E, sendo-o, na obstinação de quem não tem dúvidas,
perde o respeito daqueles para os quais a democracia não existe sem comunicação.

Ao contrário de alguns preopinantes, suponho que, se a ministra da Educação fosse embora,


abrir-se-iam as portas ao diálogo. Porque (é inevitável) irão aparecer novas regras de jogo e outras
instâncias de organização que terão em conta as específicas oscilações históricas. Nascidas, não o
esqueçamos, da "rua".|

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