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Sinfonia de Bach
Sra. Jaunviaire
Cada um tem seu passado preso em si, co‐
É com grande prazer que dedico esse livro mo às páginas de um livro conhecido por
à... seu coração, e seus amigos só podem ler o
A quem mesmo meu Deus?!... título.
Pode ser,... À Camile Me.
VIRGINIA WOOLF
SRA. JAUNVIAIRE
_ Olá. Vocês têm Free? O moço
sorridente expressava sinceridade es‐
Vinte e um anos e uma alma tratégica.
_ Oi! Claro, temos sim. Pronto,
cansada está aqui. A carteira custa dois reais e
cinqüenta centavos.
_ Dois reais e cinqüenta centa‐
“Espero a partida com alegria e espero vos...
nunca mais voltar” _ Obrigado. Tenha um bom dia,
FRIDA KALHO, Diário de Frida. moça.
Depois de ter saído de um clima
tão cordial com o atendente da Loja
(tudo bem que não era tão cordial as‐
Camile Me. Esse era o nome de‐ sim, mas ao menos fingia ser!), era hor‐
la. Pelo menos até onde ela sabia. rendo voltar à realidade.
_Camile Me... Esse é o meu nome... Ela Parecia que havia no ar uma
repetia pensativa, como se não perten‐ conspiração para que aquele dia fosse
cesse ao nome, nem ao corpo, nem a um dia especialmente difícil. Lembrou
vida. Seus passos seguiam distraídos do galo que cantava fúnebre. Era a pri‐
pelas ruas elegantes da cidade de Co‐ meira vez que ouvia um galo, cantar
ração Valente. E num súbito desconhe‐ fúnebre. Mas logo esqueceu o pensa‐
cido, dirigiu‐se para uma loja de con‐ mento torto. Estava com fome, tinha
veniência. saído sem tomar café. Havia ainda de‐
zessete reais e cinqüenta centavos na
mochila. Daria para comprar um lan‐ até o percurso finitamente eterno tinha
che na rua... Não voltaria tão cedo para escapado de suas mãos. O motorista a
o apartamento. Em especial nesse dia. saudou enigmático, dando uma pisca‐
Por que voltar? Era apenas um apar‐ dela com ar sensual e superior
tamento... _diabólico? Que Camile teve medo e
Não sentia que pertencia aquele lugar. impulso de não dizer qualquer coisa.
Ela não pertencia a lugar nenhum. Iria Subiu imediatamente e acomodou‐se
pegar um ônibus que parasse no centro bem longe do motorista esquisito. Será
da cidade, depois seria fácil chegar à que o mal invadira até o seu segredo
praça. Àquela hora, a praça estaria de‐ de segurança? Seria possível? Onisci‐
serta. Era o que queria. E foi isso o que ente? E constantemente presente! Que
fez. Adorava as viagens de ônibus, de cena mais estranha foi essa com o mo‐
automóveis em geral. Tinha a sensação torista?! Ela não queria se concentrar
de viajar eternamente... Só era péssimo nesses detalhes supostamente espiritu‐
chegar ao lugar destinado, porque sen‐ ais... No alto do seu desassossego, ou‐
tia que o destino era inútil. ve uma música vinda lá da frente; era
Uma sensação de alívio a cobriu como no rádio do ônibus, insinuou o corpo
manto ao subir o primeiro degrau do para frente para ver se o som ficava
ônibus. Fugia do mal que insistia em mais perceptível aos ouvidos... Era
persegui‐la. Dentro de alguns minutos “Billie Holiday” cantando “Giorgia on
soltaria novamente em terra firme (e my mind”. Foi confortante ouvir Billie
definitivamente o chão não era o seu Holiday, mas também não deixara de
lugar), ao menos uns minutos de sos‐ ser intrigante... Justamente a sua canto‐
sego... Pensou fugaz. Mas nesse dia, ra preferida? Decidiu relaxar, fechou
os olhos sentindo o timbre e o balanço pesadelo... Estava salva. Que vergonha
das cordas vocais de Billie massagean‐ sentiu dos olhares desaprovadores,
do o seu corpo e espírito por inteiro... superiores, normais... Depois de meia
Pegou no sono. Um homem com más‐ hora “finitamente eternos” Já estava
cara de veludo carmim escondia o ros‐ chegando a sua parada. _ Graças a
to. De cabelos, paletó, calça e sapatos Deus! Desceu do ônibus cambaleante,
brancos ele abraçava , beijava a pele ferida, assustada. Tremia febril. Respi‐
sardenta de Camile, cheirava com deli‐ rou fundo e ofegante... Era melhor es‐
cadeza o seu perfume carnal, acaricia‐ quecer a viagem, o motorista, o ho‐
va os seus longos cabelos ruivos, des‐ mem mascarado... Era melhor esque‐
cia as mãos e apalpava seus pequenos cer!
seios... E sem pronunciar palavra al‐ Tive dó de Camile, coitada. Não minto,
guma pedia um beijo, que foi concedi‐ é verdade. Até tentei (inutilmente) a‐
do. Beijo demorado e profundo. En‐ judá‐la, mas não, ela não quis, de tão
quanto a beijava, sutilmente retirava arrogante, egoísta, patriota de si mes‐
do bolso do paletó, um punhal?! Sim, mo... Onde já se viu alguém ser patrio‐
um punhal. O que iria fazer meu ta de si mesmo?! Que idéia mais ab‐
Deus?! Não! Não fira Camile!!_Tarde surda Camile... _Eu não acho. _Se você
demais. Encravou o punhal com todo o quer assim, então, tudo bem.
peso do ódio no peito de Camile, ras‐ E sem interrupções, sem que nada pu‐
gando sua carne até o umbigo._ Camile desse mudar o seu destino (agora, mais
acordou apavorada, soltando um grito solitária do que antes. Quer que eu re‐
que fez com que todos olhassem para pita? MAIS SOLITÁRIA DO QUE AN‐
ela. Ainda bem que era que era só um TES!), ela seguiu o seu caminho. E eu,
como Pilatos, lavei as minhas mãos. Portanto, havia outra pedra no
Foi medrosa a sardentinha... Mas certa caminho de Camile Me...
do dever a ser cumprido. _O que escrever?!
Avistou a praça, estava vazia. Ela, e a Mesmo não tendo o que escre‐
praça. Procurou um lugar ventilado e ver, ela escreveu:
acomodou‐se ali. Tirou o caderno e
uma caneta preta da mochila. Antes de
começar escrever puxou o cigarro da
carteira, procurou com mãos impacien‐
tes o isqueiro, não encontrou. Desistiu
de procurar. Ficou ali, parada, apática,
feito uma idiota. Ficou pensando. Pen‐
sar era o que mais sabia fazer. O vício Coração Valente,
de fumar começara quando o que ela
mais precisava era fugir. Fugia assim. 02 de Maio de 1987.
Seria psicose pensar como ela? Pensar
que o cigarro fosse um amigo para as “As coisas se desprenderam de
horas “convenientes”?! mim. Eu prolonguei certos desejos; Eu per‐
Os nervos já estavam calmos e di amigos, alguns para a morte...”.
por ingênua intuição deslizou a mão Virginia Woolf
por cima do bolso da calça jeans. Lá
estava o bendito isqueiro. Agora ela São exatamente 13h15. Tarde quen‐
podia escrever. te. A sombra projetada pela mangueira me
protege do sol efervescente. Por sorte aqui é
ventilado. Estou sentada num banco de
madeira. Sem perspectiva, sem futuro?!
Sem ter o que escrever. Estou a horas o‐
lhando para o nada e para tudo. Mórbida.
De pernas cruzadas: escrevo e vejo. Escre‐
vo coisas com letras tontas. Estou desse
lado finito, infinitamente só.
Camile Me.
Henrique No caminho para o hospital,
respiração boca a boca, pressão contra
o peito, respiração boca a boca, pressão
“Sofrer sem queixar‐se é a única li‐ contra o peito...
ção que devemos aprender nesta vida” O menino mudara de cor, esta‐
VICENT VAN GOGH. va roxo, inchado, duro. Nem um sinal
de vida. Nem um. A mãe adotiva em
desespero... Tudo era horrível.
Henrique Correia de Marfim era _Henrique não podia ver o que
um garoto agitadíssimo, extraordinari‐ acontecia no hospital, mas podia ouvir
amente inteligente, excelso. Quem po‐ sentir tudo. Tentava em agonia subir
deria suspeitar que ele fosse depressi‐ para o alto, tinha vontade de vomitar,
vo? Escondia com perfeição sua triste‐ submerso, sem ar... Se ao menos ele
za. Era realmente magnânimo. No dia pudesse gritar, pedir ajuda... Ele afun‐
do seu aniversário de treze anos, ten‐ dava...
tou suicídio. Encontraram‐no enforca‐ No hospital as enfermeiras ex‐
do no quarto. traíam sem parar a gosma e o sangue
Quando bebê foi adotado por da boca do menino. Sangue, sangue.
uma família da cidade de Coração Va‐ Sem fim. Foram horas no inferno em
lente. A família adotiva entrou em de‐ chamas.
sespero. De imediato tiraram à corda Ele voltou. Henrique estava de
do pescoço do menino. Não mostrava volta à vida. _Teria sido um milagre?!
mais sinal de vida. Mole, mole. Pálido Voltou diferente. Não era mais
como susto. o mesmo fisicamente e com certeza al‐
go mudara dentro dele. Ninguém sabia Faleceu no dia 4 de Janeiro, ano
o quê, mas algo tinha mudado. Para 1985. Numa sexta‐feira e o tempo era
melhor talvez. Fisicamente, os múscu‐ nublado.
los atrofiaram e ele não podia mais fa‐
lar. Colocaram‐no uma sonda no pes‐
coço. Era desconfortável viver dentro
daquele corpo mutilado... _Ou você
acha que pode ser fácil? A mãe adotiva
passou a cuidar de Henrique como se
cuida de um bebê. Era uma tarefa tra‐
balhosa, cansativa, que exigia amor. E A Notícia
ela o amou.
Com esforço o menino susten‐
tava a cabeça para que ela não tombas‐
se nem para um lado, nem para outro.
Às vezes tombava. Olhava e era muito Quatro de Janeiro, 1985. Sexta‐
estranho só olhar. Engasgava‐se com Feira, 12h35 em Porto Seguro. Camile
facilidade. Ficou esquelético. acabara de acordar com o rosto mais
Assim perdurou tal situação amassado que biscuit na mão de crian‐
durante sete anos. Morreu aos dezeno‐ ça. O sol radiava da janela entreaberta.
ve anos. Insuficiência respiratória (De‐ Lá fora cheirava a café da manhã. Era
pois de sete anos afundou no mar...). uma manhã bonita. Mas não para ela,
que preferia não ter que ver o sol na‐
quele dia. Um martelo frenético marte‐
lava a cabeça da moça que se encon‐
trava jogada num colchão velho que resquícios de querosene. Não entendia
cheirava à barata embriagada. Era só como o amigo conseguia viver daquele
abrir os olhos para a vertigem voltar. jeito... Mas não iria ficar discutindo es‐
Depois de mais uma noite de bebedei‐ sas coisas com ele. Não era da conta
ras e paraísos artificiais, Camile não dela.
podia saber em que lugar estava. Ar‐ Caminhou para a cozinha, onde
rastando‐se preguiçosamente alcançou Pietro estava. Quando Pietro a viu,
a parede, agarrou‐se a ela, e finalmente como quem foge, foi para o quintal. O
conseguiu ficar em pé. Aos poucos foi quintal era grande, abrangia dois quar‐
reconhecendo o ambiente. Era a casa teirões de pinheiros e flores do mato
do seu amigo Pietro. Depois da desco‐ (àquelas flores branquinhas, simples,
berta, respirou aliviada. Pietro e Cami‐ parece que de cinco ou seis pétalas).
le conheceram‐se ainda no primário, Camile não se importou, ele sempre
desde então, não se deixaram mais. agia assim: Estranho.
Ela sempre estranhou a casa do amigo, Estava na hora de ir. Sentiu falta
casa velha, assoalhos de madeira sol‐ de algo (Dessa vez era material).
tos, teias de aranha por todos os can‐ _Hum... O que pode ser?!
tos, um espelho medieval enferrujado Sentou no chão empoeirado e
na cozinha (o espelho era até bonito), pensou. Pensou... Quase cochilou e
alguns poucos móveis já arruinados, nada! Ainda faltava algo... Desistiu de
um quadro com um desenho muito pensar, levantou tão rápido que ficou
esquisito pendurado torto na parede tonta, sacudiu a cabeça, limpou os o‐
amarela de poeira. Em cima da mesa lhos remelentos, penteou a cabeleira
velha ficava sempre um lampião com com os dedos magrelos. Mas não adi‐
antou muita coisa, do espelho enferru‐ reação da neta. A menina era dona de
jado via‐se: Continuava de aparência uma energia hostil.
horrível. Sem dificuldade, Camile abra‐
_ É, o jeito é sair assim mesmo... çou o avô, que tinha os olhos cansados
Na saída avistou os óculos escu‐ e a aura de paz. O velho estranhou e
ros jogado na grama sem clorofila. muito a menina. Mas não era hora de
_Ah!! Era isso?!... Limpou as analisá‐la.
lentes. Estavam novamente novinhos _Camile, ligaram de Coração
em acrílico! Valente. O teu irmão Henrique, faleceu
Chegou a casa por volta das três hoje, pela manhã. Já tava na hora filhi‐
horas da tarde. Morava com o avô, o nha... Ele suportou viver sete anos da‐
Sr. Augusto de Moraes Rosa. Um ho‐ quele jeito, tu sabe... Não era fácil. A‐
mem de oitenta anos, bom e calmo. gora ele ta descansando...
Sempre com uma piada pronta para Não se ouviu nenhum som de
ser dita. Nos assuntos artísticos mais Camile, nenhum enunciado, nada.
merabólicos da neta, era o principal Dentro dela, o coração crispava. Era
incentivador. Admirava o jeito que a difícil interpretá‐la. Entrou para o seu
menina falava sobre os seus anseios, quarto, saindo somente no dia seguin‐
falava poética, de linguagem difícil. te: Sábado, às oito da noite. O Sr. Au‐
Como era inteligente... gusto havia preparado sopa.
O Sr. Augusto pediu timida‐ Os dois tomaram a sopa quenti‐
mente com ar angelical, um abraço. nha naquela noite fria que anunciava
Raramente agia assim, receava a contra chuva.
Sumiço de Pietro
Camile Me havia se mudado há
dois anos para a cidade de Coração Va‐
lente. Dividia o apartamento com Júlio
e o namorado dele, Rogério.
Júlio era professor de Matemáti‐
ca, tinha vinte oito anos, jovem esbelto,
loiro, olhos azuis. Rogério era feinho...
Quando ele saía na rua, as pessoas sen‐
tiam na retina o mal‐estar, mas para a
sua salvação estética possuía um sexo ela virar uma “estória” e assim, con‐
avantajoso. Não trabalhava e nem pre‐ fundindo os neurônios de Júlio. Tal
tendia. Júlio continuava com Rogério confusão daria lucro somente a Júlio.
por comodismo, Rogério continuava “Sendo seu amigo, e, como parece,
com Júlio por necessidade. convêm aos amigos, serem solidários
Como o planejado, Camile ha‐ uns com os outros e prestativos nas
via passado no vestibular. As aulas na horas conflituosas da vida” teve a idéia
faculdade iriam começar na próxima de levar Camile a um médico psiquia‐
semana. Vivia não muito bem, mas tra. Que diagnosticou uma possível
também não muito mal da venda dos esquizofrenia.
seus quadros. Eram desenhos em preto Camile passou então a tomar os
e branco, feitos a lápis. Desenhos tão remédios antipsicóticos e ir a sessões
esquisitos quanto ela. Sentia saudade terapêuticas. E, por coincidência ou
do avô e sentia saudade de mais uma não, nesse período de psiquiatria e re‐
coisa... Só que essa “coisa” ela desco‐ médios, Camile perdeu Pietro de vista.
nhecia. Para completar sua nostalgia, Chegou a pensar que talvez o amigo
Pietro que havia viajado com ela para tivesse voltado para Porto Seguro. Tal‐
Coração Valente, havia desaparecido vez descoberto a tal conversa sobre ele
sem deixar vestígios. Nem ao menos e decidido ir embora. O que teria pro‐
uma carta, nada! vocado o desaparecimento de Pietro?!
O sumiço se deu depois de uma Camile não sabia; mas o queria de vol‐
conversa com Júlio, a respeito da ami‐ ta.
zade dela com Pietro. Camile possi‐ Faltando uma semana para co‐
velmente teria enfeitado a história até meçar as aulas no curso de letras, ela
tenta suicídio por intoxicação. Engole quela sensação teria sido sua pior res‐
todos os remédios existentes no apar‐ saca. _Merda! Cadê os diabinhos?! Ou
tamento a gole de vodca, desde os an‐ os anjinhos?! Cadê a recepção dessa
tipsicóticos até o Viagra de Júlio. joça! Àquilo seria o purgatório?! Por‐
que continuava com a sensação de não
ter passado “para o outro lado”? Não
conseguira! Essa era uma terrível notí‐
cia, concluiu eloqüente. Estava no soro.
_Está sentindo‐se bem querida, deseja
alguma coisa? Hum? Você pode mexer
Hospital Psiquiátrico as mãos? Ãn? O médico perguntava
calmíssimo. Os olhos de Camile esta‐
vam esbugalhados e vermelhões. Pare‐
cia que ia dizer alguma coisa, a palavra
vinha até o meio da garganta e depois
voltava, acabou que não disse nada.
Recebeu todos os cuidados no hospital.
Naquele quarto pálido, na ala Agora, passava os dias desenhando.
pálida, com roupas pálidas, numa ma‐ Coisa que era raro fazer. Ouvia todos
ca pálida, estava Camile Me. Assusta‐ os dias do seu quarto um homem que
da como hâmster na mão de cientista. pela voz devia ter uns quarenta anos,
Olhos inchados, cabeça explodindo de ele declamava poemas. Ela quase não
dor, corpo febril e mole. Mole como falava e se falava era somente o sim e o
goiaba podre. Estava certa de que a‐ não. A realidade lá dentro (dela e do
hospital) assustava. Tudo o que Camile dem determinar quem é louco e quem
queria, era sair dali. Esforçou‐se para não é? Quem?! Os seres miseráveis que
isso. Tomava os remédios, não era de vivem suas vidinhas vagabundas nas
brigar ou fazer furdunços, atendia aos suas casas, nos seus trabalhos diários,
pedidos dos médicos... na vidazinha monótona? Ha! Eles estão
_Eu não sou louca, estou aqui certos?! Aqueles idiotas! _Não! O que
por um plano mal executado, e por is‐ estou fazendo? Comportando‐me co‐
so e só por isso estou aqui (...). Talvez mo eles, falando da vida alheia sem
eu até seja mesmo meio, ou totalmente conhecer a vida que surpreende se o‐
louca, mais o que importa?! Sou uma lhada profundamente. Não há nada de
louca diferente desses loucos daqui. errado aqui, está tudo no seu devido
Mas quem foi que disse que eles são lugar. Eu é que desorganizo as coisas.
loucos da mesma natureza? A verdade Se uma pessoa tenta suicídio, não há
é que eu sou mesmo muito egoísta e nada de mais correto colocá‐la num
quero que a minha loucura seja total‐ hospital psiquiátrico, fazer o acompa‐
mente e particularmente minha, só mi‐ nhamento psicológico, não há nada de
nha. E está aqui é me igualar a esse ni‐ errado. Está correto. A sociedade e o
cho ecológico. Aqui todos são loucos e governo só quiseram ser simpáticos e
é só. Não! Eu não sou só uma louca. amigos ao fundar esse habitat para as
Quem pode de dizer o que é loucura e espécies perturbadas e perturbadoras
o que não é?! Eles, os médicos só por‐ da organização social, essa tal que foi
que são médicos e estudam as psicoses construída com tanto esmero, dedica‐
alheias e acham que sabem muito ao ção, religiosidade, torturas... São ami‐
ponto de se tornarem juízes que po‐ gos e simpáticos, sim, naturalmente
amigáveis. Camile refletia com um ar
sarcástico?!
Depois de nove meses recebeu
alta, com a condição de estar sempre
em contato com o seu psiquiatra.
A Volta
Deixava a clínica com uma sensação
indefinida e por não ser definir a sen‐
sação tornava‐se angustiante. Tomou
um táxi, não quis ver as novidades, as
modificações da cidade, não tinha inte‐
resse nenhum em ver as coisas novas,
tudo já tinha sido visto. As coisas só se
repetiam, sempre, sempre. Ninguém a
esperava lá fora; Fora da clínica e no
mundo. Fechou os olhos e tentou rela‐
xar. Que angustia sentia, que febre!
Chegou ao apartamento. Não quis pe‐
gar o elevador, preferiu subir as esca‐
das, estava tudo tão silencioso... Tocou
a campainha como quem toca o desco‐
nhecido. Rogério abriu a porta e disse
num tom espúrio e covarde:
_ Menina... Que bom, que... Voltou.
Você fez falta, viu?!...Entra, entra... O
Júlio não tá... O Canto Lúgubre do Galo
Por dentro Rogério cacarejava igual a
uma galinha choca. Tinha medo dela.
Começou a suar, a voz tremia, o corpo
tremia, para ele, era como se Camile
fosse um espectro. Rogério era medro‐ “A vida é como um sonho; É o acordar que
so. nos mata”
_Oi. VIRGINIA WOOLF.
Camile respondeu a seco, sem ne‐
nhuma familiaridade. Foi direto para o
a quarto. Dormiu.
Seis horas da manhã do dia se‐
guinte. O galo cantava lúgubre. Sol
fusco. Da janela, Camile observava a
cidade. Os postes de luz, os fios elétri‐ espírito? O espírito de Deus? Por que,
cos miando, o civil indo trabalhar, tudo de quem mais poderia ser?(...) Então o
em movimento, tudo em movimento. homem, os homens seriam na realida‐
Menos ela. de: Deus: brincando de múltiplas per‐
O cheiro do pão quentinho in‐ sonalidades. Ela pensou. A água já e‐
vadia as narinas de Camile. O cheiro vaporava quando Camile se lembrou
vinha da padaria do Seo Inácio, padei‐ de colocar o pó. Depois de ter feito o
ro de primeira qualidade. Tudo o que café foi tomar banho.
ele fazia, era com amor. Naquela regi‐ Tirou o pijama, entrou no Box,
ão não havia padeiro com mais amor abriu o chuveiro, encostou o pé bran‐
que o Seo Inácio. Por isso o pão dele quinho na água, com rapidez o puxou
era o mais gostoso, o mais cheiroso e o de volta. A água estava fria. Ficou de
mais bonito. Um oceano invadia a boca cócoras, abraçou os joelhos e ficou o‐
de Camile. Ela estava com fome. Saiu lhando a água cair... Lembrou da sua
da janela e foi preparar o café. Pois o falecida avó, que dizia que para esper‐
chaleira no fogo e ficou pensando no tar os ânimos, nada seria melhor que
homem que ficou internado no hospi‐ um bom banho gelado. Deu um pulo e
tal, ele dizia que era Deus. E se fosse sem demora se enfiou embaixo do
mesmo?! Porque pensando bem, em chuveiro.
que consiste o sopro divino? Será só Estava sentindo‐se bem melhor
um vento oco que Deus soprou nas na‐ depois do banho. Queria sair. Vestiu
rinas de Adão e aí ele teve vida? Mas sua melhor roupa, uma calça jeans e
por que ele teria a inutilidade de so‐ uma blusa indiana com detalhes em
prar um vento oco? Seria esse vento, o vermelho. Penteou a cabeleira, colocou
o anel de prata que ganhara de Pietro. _ Nada!
Estava pronta. _Camile, eu acho que você deve
_Agora vou tomar o meu café... viajar... Porque você não volta para a
Pensou. casa do seu avô?! Olha, eu não estou te
_Bom dia, Júlio. Quanto tempo. mandando ir embora. Mas, é que... Tal‐
_ Oi, Camile. É... Quanto tempo! vez seja esta cidade que esteja te dei‐
Cinco meses? Seis?! xando assim.. Estranha.. Com hábitos
_Nove. Nove meses. esquisitos... Vai ser ótimo, querida! Vi‐
_ Eu não pude visitá‐la, por ajar sempre é bom.
que... Você sabe como é a minha vida... _Preciso de uma semana para
Muito trabalho. mudar de apartamento. Não precisa
_ Tudo bem. Não estou lhe co‐ fingir preocupação. Posso ser louca,
brando nada. Se não pode ir, tudo mas não sou burra. Uma coisa que eu
bem. não sou é burra. Eu também preciso de
_ O seu avô ligou varias vezes. espaço para criar. Preciso de espaço
Falou com o Rogério. Ele tava preocu‐ para abrigar os meus quadros...
pado... _Sabe o que você é Camile?
_Ãn... E, por acaso, alguém a‐ Uma insana que pensa que é artista!
lém dele me procurou?!... Camile tinha Uma garota estúpida, com crises de
esperança que Pietro a tivesse procu‐ rebeldia! Age como uma menina de
rado. fraldas! E quer saber mais?! Quer saber
_Acho que não Camile... mais?! VOCÊ ASSUSTA!!
_O que aconteceu com ele?! _Você não sabe de nada! Cala
_ O quê?! essa boca nojenta! Cala essa boca! De‐
pois que te contei sobre o meu amigo amiga uma oportunidade para se a‐
Pietro, o meu melhor amigo! Ele su‐ proximar do seu antigo amor, o psi‐
miu. O que foi que fez com ele?! Você quiatra Ricardo. O objetivo maior era
encontrou com ele e pediu para ele se rever Ricardo e não tratar das possíveis
afastar de mim?! Foi isso o que fez?! alucinações de Camile.
Por quê? Por quê?! Por que você fez No entanto, quando a viu tão
isso!! desamparada, tão inocente e chora‐
mingona, naquele instante afeto por
Em abandono Camile chorou... ela.
_Não chora não. Esquece todas
_Querida, eu só queria te aju‐ aquelas bobagens e babaquices que te
dar... Júlio a abraçou como quem abra‐ falei, é só chilique de bicha nervosa...
ça a ingenuidade. Era verdade que Jú‐ Viu?!
lio não se preocupava com ela, não se Os dois riram juntos. Mas as
preocupava com ninguém, nem com o coisas continuavam fora do lugar. Ela
próprio Rogério. Era um homem ambi‐ entrou no quarto, pegou a mochila ve‐
cioso e trapaceiro. Tudo que o Júlio e‐ lha e colocou seu caderno de anota‐
ra, tudo o que tinha, ele havia conse‐ ções, lápis, caneta preta, um livro de
guido de maneira desonesta. Ele fedia bolso “Tabacaria”, tinha vinte reais,
a desonestidade; nem o seu perfume jogou‐o na mochila.
mais caro, era capaz de cobrir‐lhe o fe‐ _Cigarro... Merda! Não tem. Na
dor. rua eu compro...
Quando Camile contou a Júlio Enfiou o isqueiro no bolso da
sobre Pietro, Júlio viu na história da calça. Era hora de ir...
_Você vai sair querida?
_Vou sim, Júlio. Preciso escrever
caminhar um pouco, fumar, sentir o
vento... Preciso mesmo sair.
_ Não vai sumir por muito tem‐
po, viu?! Qualquer coisa me liga. A
gente precisa marcar para irmos ao ca‐
beleireiro dá um trato no seu cabelo,
cortar essas pontas ressecadas, fazer Poema de Camile
uma massagem nele...
_ É, quem sabe... Tchau!
_Tchau!
E na chaleira o café ficou espe‐
rando por Camile, mas a porta já havia
se fechado.
Já eram 13h25 em Coração Va‐
lente. E, lá estava Camile. (Pensando
naquela última frase: “Estou desse lado
finito, infinitamente só...”). Quis com‐
por um poema...
_Ser Camile Me:
É mastigar a vida como se fosse
alho...
É engolir o vômito...
É chupar o pus da ferida aberta... O livro
Enquanto compunha sua poesia
“romântica”, fumava em frenesi.
“Vede a luz, não busqueis desespe‐
rados, no mundo esquecimento a sepultura;
se os ditosos vos lerem sem ternura, ler‐
vos‐ão com ternura os desgraçados.
BOCAGE, MANUEL MARIA
BARBOSA DU.
Pela primeira vez Júlio entrara
no quarto de Camile. Quarto escuro,
letárgico. Estava até arrumado. Cama
de solteiro, uma estante cheias de li‐
vros, uma máquina de dactilografar,
um espelho enferrujado, desenhos em‐
poeirados num canto... Fotografias na
cabeceira da cama?! Quem seria?! Uma
era de um senhor de uns sessenta anos. Abriu a primeira página. Outra
Seria o avô de Camile? Outra era de fotografia do mesmo jovem, dessa vez
uma senhora que aparentava ter a ele estava sozinho. Atrás da foto dizia:
mesma idade. Podia ser a avó. A últi‐
ma era de Camile com um rapaz. Seria
o Pietro?! Impossível! Pietro não existe!
Sentou na cama, passeou os olhos pela
estante: “Bocage, Flor Bela Espanca, Porto Seguro,
Nietzsche, Mario Vargas Llosa, Carlos
Drummond de Andrade, Fernando 25 de Dezembro de 1984.
Pessoa, Mário De Sá carneiro... Lua Cheia.
_Realmente não sei pra quê tantos li‐
vros... Perca de tempo e de espaço...
Um livro chamou a sua atenção: Capa Espero que tenha gostado de pre‐
dura vermelha, escrito com letras im‐ sente.
pressas “Camile Me”. Levantou‐se da Escreva nele a sua história.
cama um tanto curioso, retirou o livro
da prateleira. Sentiu arrepio quando Eduardo Fantonelli
pensou em abri‐lo.
_Mas é só um livro, um cader‐
no, um diário, um sei lá o quê?! Não é Devia ser um namoradinho de
nada demais! Porto Seguro... Mas quem seria o insa‐
no para namorar Camile? Ou talvez
fosse mais um amigo metido à artista!
Júlio leu a primeira página: Às vezes deixo as coisas como estão
por pura conveniência, e essa é a minha
maior covardia.
Porto Seguro, _Covarde!
26 de Dezembro, 1984. 14h15. 27 de Dezembro, 1984.
Camile.
O meu desejo era descrever o que
sinto. Mas, existem coisas que não devem
vir para a luz. Devo até distrair‐me para
esquecer este pensamento e assim evitar
que o seu fedor exale por lugares inconve‐
nientes. Porto Seguro
Camile Me. Em algum lugar perdido dentro de
mim às 02h55.
Hoje assisti a um filme sobre Mo‐
Prosseguiu a leitura: digliani. Meu corpo pesa e junto dele o
meu espírito. Minhas Lágrimas sujaram o
meu rosto. Todo o peso do mundo caiu em
Porto Seguro mim. Sinto frio. Agarro a mim mesma
(protejo‐me). Fico melhor só e sem barulho
(assim tenho certeza que não há ninguém
que vá me ferir). Não gosto desse frio. Fe‐
bre, frio. Sei que ando com o comportamen‐ tenho dúvida; O lugar que me acolhe me‐
to meio estranho (não gosto disso). Respiro. lhor é o papel. Ele me aceita, não reclama.
Com força passo a mão sobre os meus cabe‐ Aceita a pureza da minha impureza, des‐
los. Olho para a lua, a mão no queixo, fico. crita e rasgada.
Sei da minha insignificância. Sou mais
uma artista sem futuro e medíocre. Desde o Rasgo da alma
começo. O começo de tudo, até o fim. Riscado
Caro e bravo
Camile em 28 de Dezembro de Rasgo.
1984. 03h00, Dezembro, 1984.
Porto Seguro Outra página virada:
Não quero crer no que vejo. Pode Porto Seguro (só no nome...).
ser esquizofrenia, e tomara então que seja!
Porque não suporto mais tanta hipocrisia.
Sinto e às vezes posso até ouvir murmúrios Estou na praia, o sol já vai indo e
vagabundos daquela gente sem humanida‐ com ele a minha esperança?!
de, provida de demônios ambiciosos. Não
_Júlio o que faz aqui no quarto
Idealizei tardes agradáveis, da berraç... Daquela coisa?! É melhor
Idealizei gente de boa fé, você sair daqui, se ela te pega xeretan‐
Idealizei amigos do as coisas dela... O estrume vai feder!
Daqueles que a gente encontra _Ela não vai voltar agora. Até
Na prateleira dos sonhos. parece que não conhece a figura. Vai
Idealizei um poema heróico, voltar só à noite.
Idealizei o pensamento que voasse _ Mesmo assim, é melhor você
E ganhasse o mundo... sair. Esse quarto me dá arrepios...
Céus! Idealizei _Rogério não seja tão bicha!
Tanta coisa impossível...
Tanta coisa que só ocupa espaço Ele continuou lendo:
Dentro de mim.
30 de Dezembro, 1984. Porto Seguro,
Camile Me. 01 de Janeiro de 1985.
Perco‐me, perco‐me sim, toda vez
que há uma oportunidade que me leve a um
plano mais visionário que o de costume. E
assim estou.
A porta do quarto abriu e caca‐ Prefiro um quarto solitário;
rejou o homem: Assim.
Sem meio, sem fim.
Sem gente. Sem àquela gente, 02 de janeiro, 1985.
Falando, falando.
Palavras insignificantes. Estou na casa de Pietro e percebo
Sou eu, eu sou Camile Me. Eu só. que aqui é o meu refúgio, e ninguém e nem
outra coisa o é. O caderno esse o é.
24h00. Hoje não acordei e o sol não veio e
tudo é tão mesquinho... Ainda durmo meu
sono sereno. Ainda não acordei... “Eu não
Júlio não sabia o que pensar so‐ queria ter acordado” eu não quero nada,
bre o que lia. Estaria perto do verda‐ nem uma gota, nem qualquer coisa.
deiro “Eu” de Camile?! Era um mundo É sempre o fim qualquer começo.
novo apresentando‐se para ele. O Nos dias crus eu me acho e perco‐me de
mundo de Camile Me. Intrigante. vez.
Grande. Profundo. Posterior. Era uma Nas veias corre, pulsa o sangue
tristeza admirável. Incomum. Até essas acelerado, no peito um tambor toca uma
sensações que estava sentindo ao ler o música estranha e não concisa, parece des‐
caderno de Camile, eram novos para compassado.
ele. Não estava acostumado a sentir
essas coisas... Camile. 23h59.
Porto Seguro
sem vida, sem luz. Pele branca, man‐
chada de sardas. Altura média. Daqui
eu a vi bela. Belíssima. Mórbida, ruiva,
sardenta, esquisita, mas bela. Cismo
Quadro Desenhado a lápis que era dona de um mundo comple‐
tamente próprio. Não comum. Sem he‐
ranças. Um mundo costurado à mão.
Um mundo feito quadro desenhado a
lápis. Mundo completamente diferente
do meu e do seu. O dela é superior.
Sentada no banco da praça, a Sobrenatural.
sombra de uma mangueira, o vento
lambia o corpo e os longos cabelos rui‐
vos da jovem. A boca era pequena, ti‐
nha os lábios pálidos. Ela era pálida.
Estava pálida. Os olhos... Meu Deus!
Os olhos... Eram duas esmeraldas. Porto Seguro
Verdes, verdinhos... Quando iriam
amadurecer? Continuariam verdes? 04 de Janeiro, 1985.
Como saber?! Nunca saberemos. A ú‐
nica coisa que podemos saber, é que os Escrevo do meu quarto, da janela
olhos estavam verdes. Verdes. Fuscos, vejo um céu escuro e silencioso, rua deser‐
sem brilho, esmeraldas sem brilho. Pa‐ ta, sem vida. Tanta certeza me soa indife‐
reciam abandonados. Sem espírito,
rente. Tanta indiferença derrama escondi‐
da...
_A minha mãe, não foi uma mulher
muito sã da cabeça, pois no mundo sabem‐
se lá quantos filhos... Dois? Três? Quatro?
Cinco? Seis? Sete?! Pariu como uma cade‐
la da rua, em total desordem. Não espero
mas com ansiedade o futuro, visto já, o pre‐
sente decadente.
Hoje pela manhã, meu irmão fale‐
ceu. Morreu aos dezenove anos. Vítima do
seu próprio tormento. E, a mulher que fez o
favor de nos ter, não calculou tal futuro. Só
se importou (e parece que só se ocupava
disso) em parir, parir e mais uma vez: Pa‐ Cheguei a idealizar a minha mãe,
rir. como “mãe ideal”, mas o tempo passou e eu
me dei conta da desventura de não ter uma
segurança; Dei‐me conta da minha “mãe
desventura”, ela para o bem ou para o mal
se foi desfazendo do meu sonho.
Talvez... Não! Ela tem culpa sim,
nisso tudo. Mas a culpa não é só dela, é
também de quem governa o mundo, de
quem cria as historinhas da vida real. _Da
vida real! Ouviu bem?! É com você mesmo todos os sentidos), lutou bravamente, resis‐
que eu estou falando. Você é fascinado pela tiu e morreu como morrem os heróis: Na
vida real, não é?! Por isso nos criou; Nos, certeza de ter vencido o grande combate.
os Seres Humanos, humanos... Incorretos
desde a maternidade. Humanos... Cem por Busquei como uma insana um ci‐
cento humanos. Você separa os papéis para garro. Um não, todos! Não encontrei. O
cada personagem, depois senta no seu tro‐ ato de fumar é para mim uma espécie de
no confortável e vai assistir ao espetáculo vingança contra a própria vida, corpo, car‐
acompanhado de pipoca. Deus é um psico‐ ne; Mas ao mesmo tempo, um alívio.
pata. Eu sei que você existe. Pelo menos 18h30
deveria... Ou não._Deveria existir para Camile.
poder explicar todas essas coisas e não de‐
veria existir para não ter que explicar nada,
porque simplesmente não haveria nada pa‐
ra ser explicado. Às vezes não sei o quer
pensar de você. Às vezes não sei o que pen‐
sar de mim._ Como seria não existir?!
Amanhã será o enterro do meu ir‐ Navio.
mão Henrique. É um nome bonito, “Hen‐
rique”... Pensando claro, minha mãe foi só
mais uma cobaia de Deus. Coitada... Estou no navio que parti para Coração Va‐
Não sei se vou dormir hoje. Como posso?! lente. Pietro foi tomar um pouco de ar. Te‐
O meu irmão não foi um coitado, ele foi nho muita vontade de chorar... O que eu
sim, uma cobaia, mas que ao contrário (em queria era poder sorrir de felicidade... Temo
me perder de vez. Preciso ser melhor. Não é Não sei o que me dá... Tenho tristeza...
só a ida que me deixa triste. Vontade de chorar... Falta‐me algo, sempre
O vazio. foi assim. Sempre... Em mim um cansaço,
A falta. um vazio... Não quero nunca chegar a lu‐
A ausência. gar algum. Todos os lugares estão cheios e
Sou um pouco de todas as aflições do mun‐ comprometidos com a agonia do preenchi‐
do. Sinto que deixo algo de mim em Porto mento alheio. Ela explode dentro de mim, a
Seguro. Pelo que é impossível. Não tenho tristeza. Sinto‐me fraca e presa. Sempre ajo
nada por lá e em lugar algum. Não queria como uma imbécil... Mas é que sempre me
ouvir a voz de ninguém, nem ver pessoas. falta a luz. Imagina se alguém lê isso... Lê
O que é impossível. Estou num navio... essas coisas todas que escrevo... Não será
Sinto‐me vigiada. com certeza agradável para ela. Não devo
Tem gente que nasce para ser feliz, tem incomodar as pessoas sendo essa pessoa
gente que nasce para ser triste, e assim triste que sou. Pelo menos devo fingir ser
sendo: Torna‐se poeta. alegre, para agradar. O que sinto não se
A tristeza mata. Os poetas morrem ce‐ divide, se guarda e esquece‐se onde guar‐
do._Não gosto quando ficam me olhando. É dou. Penso no papai. Sonho ser melhor e
impossível ter sossego nesse navio. Nem livre. Tenho pressa. O tempo não espera.
quando quero posso, e quando penso que Quanto mais desejo, o desejo fica distante.
posso, já não posso mais. Tudo o que posso _Venha o quanto antes... Venha o quanto
é pensar que um dia poderei. Quero a soli‐ antes Liberdade! Passam os dias, e torço
dão. A multidão nada mais é do que o pró‐ para que eles não passem tão amargos e
prio empecilho, e isso não é nada. É tudo. incertos. Vejo o mundo e ele não é feito de
concreto, nem de madeira, nem de qualquer
outra coisa material. Vejo a vida como poe‐
sia, poesia visionária obviamente... Assim a
realidade facilmente me destrói. Poema
triste é o meu pensamento, quem lê não O Encontro
entende e nem sente, às vezes nem acredita.
Causaria náuseas em alguém que lesse o
que escrevo. Volta e meia e no intermediá‐ “E aqueles que foram vistos dan‐
rio dessa volta, eu falo “desta tristeza”._ É çando foram julgados insanos por aqueles
engraçado! Devo rir da minha triste‐ que não podiam escutar a música”.
za?!_Seria loucura. FRIEDRICH NIETZSCHE.
Como um peixe fora da água, eu sigo esse
caminho sombrio. Sombrio como nunca, e
claro como nunca será.
O relógio da praça avisava: Seis
Camile. horas da tarde.
_ Está na hora de ir... Pensou
Camile. A bunda e as pernas já esta‐
vam dormentes. Enquanto (inutilmen‐
te) um carinha do outro lado da praça
tentava‐a paquerar, ela acendia o últi‐
mo cigarro, o último pedido. Pensou,
desejou profundamente, tragou; Libe‐
rou a fumaça e com os olhos a ‐ perse‐
guiu...
_Pietro!! estavam no alto do viaduto. Cansados
Exclamou com paixão. O cora‐ de andar, pararam. Sentaram‐se na cal‐
ção batia feito bumbo em tempo de çada enquanto o vento frio trazia o si‐
carnaval. Os olhos brilhavam como to‐ lêncio da noite (...)
da esmeralda merece brilhar! Ficou co‐ Ela se ergueu, e o seu rosto era
rada. Estava tão feliz! Felicidade ím‐ luz. _Pietro, eu não sou daqui. Sei que
par. E de uma coisa tenho certeza, nem você também não é. Eu sei. Não adian‐
eu e nem você, poderemos experimen‐ ta fingir. Falava sem pestanejar, sem
tar dessa felicidade. É que essa felici‐ tropeçar, sem tremer, estava tranqüila.
dade, foi predestinada só para ela. _Estou indo embora. Por que
Os dois ficaram abraçados, ali, não vem comigo?...
no meio da praça. Isso demorou alguns Ali, a sinfonia de Bach embala‐
minutos. Em seguida subiram a Rua 7. va o sonho e o vento rodopiava que
Pietro lhe contou algumas coisas, disse nem criança feliz.
que havia sentido saudades, e que não
mais se viam, por conta da “idéia boba
de ficar tomando remédios antipsicóti‐
cos”. Caminharam sem direção. Sorri‐
am, davam gargalhadas, choraram...
Camile contou como foi enclausurada
no hospital psiquiátrico, como se sentia
só... Disse que um mês antes de sair, só
fingia tomar os remédios. Pietro a ou‐
viu atenciosamente. Sem perceberem já
“Aqui se dissipa o mundo visioná‐
rio e platônico”
ÁLVARES DE AZEVEDO.
02h45 da madrugada marcava o
relógio de Júlio.
_ Rogério...
_Ãn?...
_Camile chegou?...
_Sei lá...
Júlio voltou a dormir. Estava
sonhando com castelos árabes, harém
de homens voluptuosos... Enquanto
Rogério sonhava que beijava o Junior
Lima?! Irmão daquela cantora pop... É,
parece que é esse mesmo o nome. En‐
tão, em meio a frêmitos sacanas a mão
de Junior acariciava o membro forte e
leviano de Rogério. Num delírio eston‐
teante, Rogério gemia baixinho fora do
Camile de Moraes Rosa sonho.
_Trim! Trim!Trim!...
O telefone tocou impaciente na Levantou e foi para a sala onde Rogé‐
sala. rio estava.
_Merda! Quem é o imbecil que _Aqui é da Polícia. O que o Se‐
liga a essa hora?! Pensou os dois em nhor é para a Senhora Camile de Mo‐
sincronia. raes Rosa?
_Trim! Trim! Trim!... _A boca de Rogério foi abrindo
_Rogério... devagarzinho, o coração disparou,
_ Tá bom, eu vou atender!! empalideceu. Pensou: O que deve ter
Levantou da cama resmungan‐ acontecido à pobrezinha?!...
do a ladainha cacarejante ao indivíduo _Senhor?
desconhecido que ousara interromper _Ãn?! Desculpa seu policial, eu,
seu sonho perfeito. sou o amigo dela, a gente mora no
_Alô?! Perguntou Rogério com mesmo apartamento...
o tom de voz agressivo. _Sinto lhe informar que a Sra.
_ É da casa do Sr. Júlio Alberti‐ Camile sofreu um acidente. Fatal.
no? A voz do outro lado da linha fala‐ _ Um acidente?! Fatal?!
va com mansidão, tom de prudência, _O que ta acontecendo Rogé‐
como quem está prestes a pisar em ca‐ rio?! Perguntou aflito, Júlio.
cos de vidro. _ Calma meu amor, calma...
_Sim, mas ele está dormindo. Frase que desconheceu ao falar. Estava
Respondeu Rogério um pouco assus‐ tão nervoso por conta dessa notícia i‐
tado, curioso e já manso. Enquanto is‐ nesperada... Ele e Júlio não se tratavam
so, Júlio não conseguia voltar a dormir. com amistosidade há muito tempo.
Mas por que estava tão nervoso?! Ele
nem gostava dela! Mas nem por isso _Obrigado seu policial. Nós
desejara a morte da coitadinha... E ago‐ vamos sim.
ra tinha certeza que a menina precisa‐ Júlio chorava desesperado, não
va mesmo de ajuda, era no fundo uma podia ser verdade! Como? Quem teria
menina boa, e ele não tinha visto isso, feito isso com camile?! Meu Deus!!
nem havia feito nada por Camile!... E _Teria sido um suicídio? Não!! Um
Júlio? Como receberia tal notícia?! En‐ suicídio não!!
goliu a seco o olhar daquele homem Rogério tentou abraçar o aman‐
aflito, parado ali, na sua frente, que e‐ te, mas Júlio diferentemente gritou
xigia urgente uma explicação. Atordo‐ com cólera, fúria, remorso?!
ado, voltou sua atenção para o policial. _Não!!Sai daqui! Sai!!
_Um grupo de mendigos que se Rogério abatido, meio que se
abrigava embaixo do viaduto, contou escondia no corredor, chorando a des‐
que viu a moça caindo lá de cima. E‐ graça de Camile.
ram 03h48 desta madrugada. Estamos
investigando se foi homicídio ou suicí‐
dio. Precisamos de algumas informa‐
ções dos senhores. Será necessário que
os familiares ou então vocês, os amigos
da moça, compareçam ao IML, para
fazer o reconhecimento do corpo. Sinto
muito pelo ocorrido, senhor. Passar
bem.
O Velório
O Sr. Augusto tinha aparência
cansada. Dentro dele o mesmo vazio
que sentiu quando sua esposa Georgia,
Faleceu. Vê a neta naquele caixão...
Sentia que ia adoecer... Se não fosse a
gentileza amigável de Júlio, o Sr. Au‐
gusto ficaria totalmente perdido. _
Quem dera Camile pudesse apreciar
“esse momento de extrema compaixão
que emanava de Júlio”. Não estou sen‐
do irônica. Ou estou?! Talvez sim.
O velório estava lotado. Muita
gente, muito parente... Em toda vida
de Camile, conhecera apenas os avôs
maternos e o irmão Henrique, quanto
aos pais da moça e se teve mais paren‐
te é coisa que eu e Camile desconhe‐
cemos, ela só sabia que existiam por
ouvir falar, mas nada era confirmado. jovem bonito, de olhar triste. Júlio
Nada era confirmado. Camile levaria quando o viu, logo soube de quem se
um susto que seria bem capaz que tratava. Era Eduardo Fantonelli, o ra‐
morresse novamente, se visse o tanto paz da fotografia. Como era bonito... E
de gente que comparecera ao seu veló‐ se fosse ele gay? Quase todos os ho‐
rio. Será que não viu?! mens que ele havia conhecido na vida
Todos curiosos para ver Camile eram gays, com exceções de uns... Pou‐
morta, mortinha no caixão. Ver aquele cos é verdade. Porque não ele?! Teria
defunto fazia com que eles pensassem Júlio alguma sorte?! Júlio se apresen‐
na vida e na morte. Uns falavam con‐ tou para Eduardo, e começaram a con‐
sigo mesmo: Há vida após a morte?! versar. Eduardo contou que tivera um
Será que ela foi para inferno?! Quando romance com Camile e que era apaixo‐
eu morrer, vou parar aonde?! Eu não nado por ela. Por outro lado, Camile
quero morrer agora. Ave cruz! Coita‐ parecia sempre muito distante e fazia
da, tão novinha... Tudo isso porque questão de passar a maior parte do
não seguiu os caminhos de Deus! Até tempo sozinha.
que ela não era de se jogar fora... Fo‐ _ Mas, esse era o jeito dela. E eu
ram tantos os pensamentos que me a amava assim mesmo. Senti muita fal‐
custaria muito tempo dizê‐los. Os ou‐ ta quando ela decidiu vir morar aqui,
tros não pensavam; Só foram mesmo em Coração Valente. Não podia man‐
para ver mais um defunto. dar cartas, porque simplesmente ela
Menos ele, que estava em pé, não havia deixado sequer rastros do
olhando absorto para as flores brancas seu paradeiro. Talvez tivesse medo de
de defunto ao redor do caixão. Era um amar, ou talvez tivesse ódio do amor
(falava como que para si mesmo, ten‐ Enquanto isso, Rogério havia
tando se convencer)... Dizendo em me‐ parado de se insinuar para os rapazes
lancolia. que estavam no velório da bizarra a‐
_Você a – presenteou com um dormecida (Camile de Moraes Rosa, ou
caderno‐livro, não foi?!Perguntou sim‐ Camile Me, como ela preferia.), Só para
pático o Júlio, com ar de conquistador. poder observar a conversa, que dali
_Sim. Uma espécie de caderno‐ parecia mui íntima.
livro, capa dura vermelha. Eu o ‐ en‐ _ Está melhor? Você devia ser
comendei numa gráfica. Ela adorava muito amigo dela, talvez até mais que
escrever, sabe?... E eu a adorava... O eu, que inveja de você... Se ao menos
caderno ainda existe? Você sabe? eu pudesse ficar com o caderno, seria
_Sim, existe... O rosto ficara tris‐ uma maneira de ficar mais próximo
tonho, decepcionado com o rapaz, pa‐ dela...
recia que ele a amava muito mesmo, Tentando esconder o rosto de
mas o que estava fazendo?! A final era vergonha daquela tão indesejada ob‐
o enterro da sua amiga, não era hora servação que não cabia na relação dele
para paquerar! Era hora de sofrer a com Camile, fingia equilíbrio continu‐
morte da pobrezinha... Veio de repente ando a conversa de cabeça baixa: _Eu
um excesso de choro... Eduardo que se pensei em dá‐lo ao Sr. Augusto, o avô
concentrava nos seus pensamentos, foi de Camile. Falou assoando o nariz e
surpreendido por esse alvoroço, indo limpando as mãos na sua calça mar‐
logo abraçá‐lo com generosidade, mas rom. _Mas eu temo que não faça bem
Júlio o afastou sutilmente, recuperan‐ ao velho, sabe?...Camile era forte nas
do‐se com rapidez. palavras...
_Eu sei, e como era! Sentiu um
pouco de nojo daquele gesto seboso... 01 de Maio, 1987,18h00.
Então, Eu ficaria agradecido e muitís‐
simo feliz, se eu pudesse ficar com o “Todos os suicidas um dia desejaram ar‐
caderno. dentemente a felicidade”
_Tudo bem, acho que Camile
não se importaria... Camile Me.
_A propósito, você conheceu o
tal Pietro?
_Pietro?!
Parece que Eduardo havia leva‐
do um susto, procurando logo se refa‐
zer, soou certo no seu tom de voz:
_Pietro?...Não, não o conheço.
Por que esta reação de Eduar‐
do?! Será que sabe de alguma coisa?
Ou será impressão minha?! Não, era
óbvio que Pietro não passava de uma
alucinação de Camile. Pensou Júlio.
Antes de entregar o caderno a
Eduardo, abriu‐o na última página:
FIM.
Coração Valente,