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Sinfonia de Bach 
   
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
   
   
  Sra. Jaunviaire 
   
   
 
  Cada um tem seu passado preso em si, co‐
É com grande prazer que dedico esse livro  mo às páginas de um livro conhecido por 
à...  seu coração, e seus amigos só podem ler o 
A quem mesmo meu Deus?!...  título. 
Pode ser,... À Camile Me.   
   
   
   
   
  VIRGINIA WOOLF 
 
SRA. JAUNVIAIRE 

 
 

   
   
 
 
 
 
 
 
 
 
   _ Olá. Vocês têm Free? O moço 
sorridente  expressava  sinceridade  es‐
Vinte e um anos e uma alma  tratégica.  
_  Oi!  Claro,  temos  sim.  Pronto, 
cansada  está  aqui.  A  carteira  custa  dois  reais  e 
cinqüenta centavos. 
 
_  Dois  reais  e  cinqüenta  centa‐
“Espero a partida com alegria e espero  vos... 
nunca mais voltar”  _ Obrigado. Tenha um bom dia, 
FRIDA KALHO, Diário de Frida.  moça. 
  Depois de ter saído de um clima 
  tão  cordial  com  o  atendente  da  Loja 
  (tudo  bem  que  não  era  tão  cordial  as‐
Camile Me. Esse era o nome de‐ sim, mas ao menos fingia ser!), era hor‐
la.  Pelo  menos  até  onde  ela  sabia.  rendo voltar à realidade. 
_Camile Me... Esse é o meu nome... Ela  Parecia  que  havia  no  ar  uma 
repetia pensativa, como se não perten‐ conspiração  para  que  aquele  dia  fosse 
cesse  ao  nome,  nem  ao  corpo,  nem  a  um  dia  especialmente  difícil.  Lembrou 
vida.  Seus  passos  seguiam  distraídos  do galo que cantava fúnebre. Era a pri‐
pelas  ruas  elegantes  da  cidade  de  Co‐ meira  vez  que  ouvia  um  galo,  cantar 
ração Valente. E num súbito desconhe‐ fúnebre.  Mas  logo  esqueceu  o  pensa‐
cido,  dirigiu‐se  para  uma  loja  de  con‐ mento  torto.  Estava  com  fome,  tinha 
veniência.  saído sem tomar café. Havia ainda de‐
zessete  reais  e  cinqüenta  centavos  na 
 
mochila.  Daria  para  comprar  um  lan‐ até o percurso finitamente eterno tinha 
che na rua... Não voltaria tão cedo para  escapado  de  suas  mãos.  O  motorista  a 
o  apartamento.  Em  especial  nesse  dia.  saudou  enigmático,  dando  uma  pisca‐
Por  que  voltar?  Era  apenas  um  apar‐ dela  com  ar  sensual  e  superior 
tamento...  _diabólico?  Que  Camile  teve  medo  e 
Não sentia que pertencia aquele lugar.  impulso  de  não  dizer  qualquer  coisa. 
Ela não pertencia a lugar nenhum. Iria  Subiu  imediatamente  e  acomodou‐se 
pegar um ônibus que parasse no centro  bem longe do motorista esquisito. Será 
da  cidade,  depois  seria  fácil  chegar  à  que  o  mal  invadira  até  o  seu  segredo 
praça. Àquela hora, a praça estaria de‐ de  segurança?  Seria  possível?  Onisci‐
serta. Era o que queria. E foi isso o que  ente?  E  constantemente  presente!  Que 
fez.  Adorava  as  viagens  de  ônibus,  de  cena mais estranha foi essa com o mo‐
automóveis em geral. Tinha a sensação  torista?!  Ela  não  queria  se  concentrar 
de viajar eternamente... Só era péssimo  nesses detalhes supostamente espiritu‐
chegar ao lugar destinado, porque sen‐ ais...  No  alto  do  seu  desassossego,  ou‐
tia que o destino era inútil.  ve  uma  música  vinda  lá  da  frente;  era 
Uma sensação de alívio a cobriu como  no  rádio  do  ônibus,  insinuou  o  corpo 
manto  ao  subir  o  primeiro  degrau  do  para  frente  para  ver  se  o  som  ficava 
ônibus.  Fugia  do  mal  que  insistia  em  mais  perceptível  aos  ouvidos...  Era 
persegui‐la.  Dentro  de  alguns  minutos  “Billie  Holiday”  cantando  “Giorgia  on 
soltaria  novamente  em  terra  firme  (e  my  mind”.  Foi  confortante  ouvir  Billie 
definitivamente  o  chão  não  era  o  seu  Holiday,  mas  também  não  deixara  de 
lugar),  ao  menos  uns  minutos  de  sos‐ ser intrigante... Justamente a sua canto‐
sego...  Pensou  fugaz.  Mas  nesse  dia,  ra  preferida?  Decidiu  relaxar,  fechou 
 
os olhos sentindo o timbre e o balanço  pesadelo... Estava salva. Que vergonha 
das cordas vocais de Billie massagean‐ sentiu  dos  olhares  desaprovadores, 
do  o  seu  corpo  e  espírito  por  inteiro...  superiores,  normais...  Depois  de  meia 
Pegou  no  sono.  Um  homem  com  más‐ hora  “finitamente  eternos”  Já  estava 
cara de veludo carmim escondia o ros‐ chegando  a  sua  parada.  _  Graças  a 
to.  De  cabelos,  paletó,  calça  e  sapatos  Deus!  Desceu  do  ônibus  cambaleante, 
brancos  ele  abraçava  ,  beijava  a  pele  ferida,  assustada.  Tremia  febril.  Respi‐
sardenta de Camile, cheirava com deli‐ rou  fundo  e  ofegante...  Era  melhor  es‐
cadeza  o  seu  perfume  carnal,  acaricia‐ quecer  a  viagem,  o  motorista,  o  ho‐
va  os  seus  longos  cabelos  ruivos,  des‐ mem  mascarado...  Era  melhor  esque‐
cia  as  mãos  e  apalpava  seus  pequenos  cer! 
seios...  E  sem  pronunciar  palavra  al‐ Tive dó de Camile, coitada. Não minto, 
guma pedia um beijo, que foi concedi‐ é  verdade.  Até  tentei  (inutilmente)  a‐
do.  Beijo  demorado  e  profundo.  En‐ judá‐la,  mas  não,  ela  não  quis,  de  tão 
quanto  a  beijava,  sutilmente  retirava  arrogante,  egoísta,  patriota  de  si  mes‐
do  bolso  do  paletó,  um  punhal?!  Sim,  mo... Onde já se viu alguém ser patrio‐
um  punhal.  O  que  iria  fazer  meu  ta  de  si  mesmo?!  Que  idéia  mais  ab‐
Deus?!  Não!  Não  fira  Camile!!_Tarde  surda Camile... _Eu não acho. _Se você 
demais. Encravou o punhal com todo o  quer assim, então, tudo bem. 
peso  do  ódio  no  peito  de  Camile,  ras‐ E sem interrupções, sem que nada pu‐
gando sua carne até o umbigo._ Camile  desse mudar o seu destino (agora, mais 
acordou apavorada, soltando um grito  solitária do que antes. Quer que eu re‐
que  fez  com  que  todos  olhassem  para  pita? MAIS SOLITÁRIA DO QUE AN‐
ela. Ainda bem que era que era só um  TES!),  ela  seguiu  o  seu  caminho.  E  eu, 
 
como  Pilatos,  lavei  as  minhas  mãos.  Portanto,  havia  outra  pedra  no 
Foi medrosa a sardentinha... Mas certa  caminho de Camile Me...  
do dever a ser cumprido.    _O que escrever?! 
 Avistou a praça, estava vazia. Ela, e a  Mesmo  não  tendo  o  que  escre‐
praça.  Procurou  um  lugar  ventilado  e  ver, ela escreveu: 
acomodou‐se  ali.  Tirou  o  caderno  e   
uma caneta preta da mochila. Antes de   
começar  escrever  puxou  o  cigarro  da   
carteira, procurou com mãos impacien‐  
tes  o  isqueiro,  não  encontrou.  Desistiu   
de procurar. Ficou ali, parada, apática,   
feito uma idiota. Ficou pensando. Pen‐  
sar  era  o que  mais  sabia  fazer.  O  vício  Coração Valente, 
de  fumar  começara  quando  o  que  ela   
mais  precisava  era  fugir.  Fugia  assim.  02 de Maio de 1987. 
Seria  psicose  pensar  como  ela?  Pensar   
que  o  cigarro  fosse  um  amigo  para  as   “As  coisas  se  desprenderam  de 
horas “convenientes”?!  mim. Eu prolonguei certos desejos; Eu per‐
Os  nervos  já  estavam  calmos  e  di amigos, alguns para a morte...”. 
por  ingênua  intuição  deslizou  a  mão                                  Virginia Woolf 
por  cima  do  bolso  da  calça  jeans.  Lá   
estava  o  bendito  isqueiro.  Agora  ela  São exatamente 13h15. Tarde quen‐
podia escrever.  te. A sombra projetada pela mangueira me 
protege do sol efervescente. Por sorte aqui é 
 
ventilado.  Estou  sentada  num  banco  de 
madeira.  Sem  perspectiva,  sem  futuro?! 
Sem  ter  o  que  escrever.  Estou  a  horas  o‐
lhando  para  o  nada  e  para  tudo.  Mórbida. 
De pernas cruzadas: escrevo e vejo. Escre‐
vo  coisas  com  letras  tontas.  Estou  desse 
lado finito, infinitamente só.  
                                                   Camile Me.   
   
   
 
 
 
   
   
   
 
 
 
   
   
 
 
 
 
 
 
 
Henrique  No  caminho  para  o  hospital, 
  respiração  boca  a  boca,  pressão  contra 
  o peito, respiração boca a boca, pressão 
“Sofrer sem queixar‐se é a única li‐ contra o peito... 
ção que devemos aprender nesta vida”  O  menino  mudara  de  cor,  esta‐
                VICENT VAN GOGH.  va  roxo,  inchado,  duro.  Nem  um  sinal 
  de  vida.  Nem  um.    A  mãe  adotiva  em 
  desespero... Tudo era horrível. 
Henrique Correia de Marfim era  _Henrique  não  podia  ver  o  que 
um garoto agitadíssimo, extraordinari‐ acontecia no hospital, mas podia ouvir 
amente  inteligente,  excelso.  Quem  po‐ sentir  tudo.  Tentava  em  agonia  subir 
deria  suspeitar  que  ele  fosse  depressi‐ para  o  alto,  tinha  vontade  de  vomitar, 
vo?  Escondia  com  perfeição  sua  triste‐ submerso,  sem  ar...  Se  ao  menos  ele 
za.  Era  realmente  magnânimo.  No  dia  pudesse  gritar,  pedir  ajuda...  Ele  afun‐
do  seu  aniversário  de  treze  anos,  ten‐ dava... 
tou  suicídio.  Encontraram‐no  enforca‐ No  hospital  as  enfermeiras  ex‐
do no quarto.   traíam  sem  parar  a  gosma  e  o  sangue 
Quando  bebê  foi  adotado  por  da  boca  do  menino.  Sangue,  sangue. 
uma família da cidade de Coração Va‐ Sem  fim.  Foram  horas  no  inferno  em 
lente.  A  família adotiva  entrou  em  de‐ chamas. 
sespero.  De  imediato  tiraram  à  corda  Ele  voltou.  Henrique  estava  de 
do  pescoço  do  menino.  Não  mostrava  volta à vida. _Teria sido um milagre?! 
mais  sinal  de  vida.  Mole,  mole.  Pálido  Voltou  diferente.  Não  era  mais 
como susto.  o mesmo fisicamente e com certeza al‐
 
go mudara dentro dele. Ninguém sabia  Faleceu no dia 4 de Janeiro, ano 
o  quê,  mas  algo  tinha  mudado.  Para  1985.  Numa  sexta‐feira  e  o  tempo  era 
melhor  talvez.  Fisicamente,  os  múscu‐ nublado. 
los atrofiaram e ele não podia mais fa‐  
lar.  Colocaram‐no  uma  sonda  no  pes‐
 
coço.  Era  desconfortável  viver  dentro 
daquele  corpo  mutilado...  _Ou  você   
acha que pode ser fácil? A mãe adotiva   
passou  a  cuidar  de  Henrique  como  se   
cuida  de  um  bebê.  Era  uma  tarefa  tra‐
balhosa,  cansativa,  que  exigia  amor.  E  A Notícia 
ela o amou.   
Com  esforço  o  menino  susten‐  
tava a cabeça para que ela não tombas‐  
se nem para um lado, nem para outro.   
Às vezes tombava. Olhava e era muito  Quatro  de  Janeiro,  1985.  Sexta‐
estranho  só  olhar.  Engasgava‐se  com  Feira,  12h35  em  Porto  Seguro.  Camile 
facilidade. Ficou esquelético.  acabara  de  acordar  com  o  rosto  mais 
Assim  perdurou  tal  situação  amassado que biscuit na mão de crian‐
durante sete anos. Morreu aos dezeno‐ ça. O sol radiava da janela entreaberta. 
ve  anos.  Insuficiência  respiratória  (De‐ Lá  fora  cheirava  a  café  da  manhã.  Era 
pois de sete anos afundou no mar...).  uma  manhã  bonita.  Mas  não  para  ela, 
que  preferia  não  ter  que  ver  o  sol  na‐
quele dia. Um martelo frenético marte‐
lava  a  cabeça  da  moça  que  se  encon‐
 
trava  jogada  num  colchão  velho  que  resquícios de querosene. Não entendia 
cheirava  à  barata  embriagada.  Era  só  como o amigo conseguia viver daquele 
abrir  os  olhos  para  a  vertigem  voltar.  jeito... Mas não iria ficar discutindo es‐
Depois de mais uma noite de bebedei‐ sas  coisas  com  ele.  Não  era  da  conta 
ras  e  paraísos  artificiais,  Camile  não  dela.  
podia  saber  em  que  lugar  estava.  Ar‐ Caminhou para a cozinha, onde 
rastando‐se  preguiçosamente  alcançou  Pietro  estava.  Quando  Pietro  a  viu, 
a parede, agarrou‐se a ela, e finalmente  como quem foge, foi para o quintal. O 
conseguiu  ficar  em  pé.  Aos  poucos  foi  quintal era grande, abrangia dois quar‐
reconhecendo  o  ambiente.  Era  a  casa  teirões  de  pinheiros  e  flores  do  mato 
do seu amigo Pietro. Depois da desco‐ (àquelas  flores  branquinhas,  simples, 
berta, respirou aliviada. Pietro e Cami‐ parece  que  de  cinco  ou  seis  pétalas). 
le  conheceram‐se  ainda  no  primário,  Camile  não  se  importou,  ele  sempre 
desde  então,  não  se  deixaram  mais.   agia assim: Estranho. 
Ela sempre estranhou a casa do amigo,  Estava na hora de ir. Sentiu falta 
casa  velha,  assoalhos  de  madeira  sol‐ de algo (Dessa vez era material). 
tos,  teias  de  aranha  por  todos  os  can‐ _Hum... O que pode ser?!  
tos,  um  espelho  medieval  enferrujado  Sentou  no  chão  empoeirado  e 
na  cozinha  (o  espelho  era  até  bonito),  pensou.  Pensou...  Quase  cochilou  e 
alguns  poucos  móveis  já  arruinados,  nada!  Ainda  faltava  algo...  Desistiu  de 
um  quadro  com  um  desenho  muito  pensar,  levantou  tão  rápido  que  ficou 
esquisito  pendurado  torto  na  parede  tonta,  sacudiu  a  cabeça,  limpou  os  o‐
amarela  de  poeira.  Em  cima  da  mesa  lhos  remelentos,  penteou  a  cabeleira 
velha  ficava  sempre  um  lampião  com  com  os  dedos  magrelos.  Mas  não  adi‐
 
antou muita coisa, do espelho enferru‐ reação  da  neta.  A  menina  era  dona  de 
jado  via‐se:  Continuava  de  aparência  uma energia hostil. 
horrível.   Sem  dificuldade,  Camile  abra‐
_ É, o jeito é sair assim mesmo...   çou o avô, que tinha os olhos cansados 
Na saída avistou os óculos escu‐ e  a  aura  de  paz.  O  velho  estranhou  e 
ros jogado na grama sem clorofila.  muito  a  menina.  Mas  não  era  hora  de 
_Ah!!  Era  isso?!...  Limpou  as  analisá‐la. 
lentes.  Estavam  novamente  novinhos  _Camile,  ligaram  de  Coração 
em acrílico!  Valente. O teu irmão Henrique, faleceu 
Chegou a casa por volta das três  hoje, pela manhã. Já tava na hora filhi‐
horas  da  tarde.  Morava  com  o  avô,  o  nha... Ele suportou viver sete anos da‐
Sr.  Augusto  de  Moraes  Rosa.  Um  ho‐ quele  jeito,  tu  sabe...  Não  era  fácil.  A‐
mem  de  oitenta  anos,  bom  e  calmo.  gora ele ta descansando... 
Sempre  com  uma  piada  pronta  para  Não  se  ouviu  nenhum  som  de 
ser  dita.  Nos  assuntos  artísticos  mais  Camile,  nenhum  enunciado,  nada. 
merabólicos  da  neta,  era  o  principal  Dentro  dela,  o  coração  crispava.  Era 
incentivador.  Admirava  o  jeito  que  a  difícil  interpretá‐la.  Entrou  para  o  seu 
menina  falava  sobre  os  seus  anseios,  quarto,  saindo  somente  no  dia  seguin‐
falava  poética,  de  linguagem  difícil.  te:  Sábado,  às  oito  da  noite.  O  Sr.  Au‐
Como era inteligente...  gusto havia preparado sopa. 
O  Sr.  Augusto  pediu  timida‐ Os dois tomaram a sopa quenti‐
mente  com  ar  angelical,  um  abraço.  nha  naquela  noite  fria  que  anunciava 
Raramente agia assim, receava a contra  chuva. 
 
 
   
 
 
 
   
   
   
 
 
Sumiço de Pietro 
 
 
 
 
 
Camile Me havia se mudado há 
dois anos para a cidade de Coração Va‐
lente. Dividia o apartamento com Júlio 
e o namorado dele, Rogério. 
Júlio era professor de Matemáti‐
  ca, tinha vinte oito anos, jovem esbelto, 
  loiro, olhos azuis. Rogério era feinho... 
  Quando ele saía na rua, as pessoas sen‐
  tiam  na  retina  o  mal‐estar,  mas  para  a 
 
sua  salvação  estética  possuía  um  sexo  ela  virar  uma  “estória”  e  assim,  con‐
avantajoso. Não trabalhava e nem pre‐ fundindo  os  neurônios  de  Júlio.  Tal 
tendia.  Júlio  continuava  com  Rogério  confusão  daria  lucro  somente  a  Júlio. 
por  comodismo,  Rogério  continuava  “Sendo  seu  amigo,  e,  como  parece, 
com Júlio por necessidade.  convêm  aos  amigos,  serem  solidários 
Como  o  planejado,  Camile  ha‐ uns  com  os  outros  e  prestativos  nas 
via passado no vestibular. As aulas na  horas conflituosas da vida” teve a idéia 
faculdade  iriam  começar  na  próxima  de  levar  Camile  a um  médico  psiquia‐
semana.  Vivia  não  muito  bem,  mas  tra.  Que  diagnosticou  uma  possível 
também  não  muito  mal  da  venda  dos  esquizofrenia. 
seus quadros. Eram desenhos em preto  Camile passou então a tomar os 
e  branco,  feitos  a  lápis.  Desenhos  tão  remédios  antipsicóticos  e  ir  a  sessões 
esquisitos  quanto  ela.  Sentia  saudade  terapêuticas.  E,  por  coincidência  ou 
do  avô  e  sentia  saudade  de  mais  uma  não,  nesse  período  de  psiquiatria  e  re‐
coisa...  Só  que  essa  “coisa”  ela  desco‐ médios, Camile perdeu Pietro de vista. 
nhecia.  Para  completar  sua  nostalgia,  Chegou  a  pensar  que  talvez  o  amigo 
Pietro  que  havia  viajado  com  ela  para  tivesse voltado para Porto Seguro. Tal‐
Coração  Valente,  havia  desaparecido  vez descoberto a tal conversa sobre ele 
sem  deixar  vestígios.  Nem  ao  menos  e  decidido  ir  embora.  O  que  teria  pro‐
uma carta, nada!   vocado  o  desaparecimento  de  Pietro?! 
O sumiço se deu depois de uma  Camile não sabia; mas o queria de vol‐
conversa  com  Júlio,  a  respeito  da  ami‐ ta. 
zade  dela  com  Pietro.  Camile  possi‐ Faltando  uma  semana  para  co‐
velmente  teria  enfeitado  a  história  até  meçar  as  aulas  no  curso  de  letras,  ela 
 
tenta  suicídio  por  intoxicação.  Engole  quela  sensação  teria  sido  sua  pior  res‐
todos  os  remédios  existentes  no  apar‐ saca.  _Merda!  Cadê  os  diabinhos?!  Ou 
tamento a gole de vodca, desde os an‐ os  anjinhos?!  Cadê  a  recepção  dessa 
tipsicóticos até o Viagra de Júlio.  joça!  Àquilo  seria  o  purgatório?!  Por‐
  que continuava com a sensação de não 
  ter  passado  “para  o  outro  lado”?  Não 
  conseguira! Essa era uma terrível notí‐
cia, concluiu eloqüente. Estava no soro. 
 
 _Está sentindo‐se bem querida, deseja 
  alguma coisa? Hum? Você pode mexer 
Hospital Psiquiátrico  as mãos? Ãn? O médico perguntava 
  calmíssimo. Os olhos de Camile esta‐
  vam esbugalhados e vermelhões. Pare‐
  cia que ia dizer alguma coisa, a palavra 
  vinha até o meio da garganta e depois 
  voltava, acabou que não disse nada. 
  Recebeu todos os cuidados no hospital.  
Naquele  quarto  pálido,  na  ala  Agora, passava os dias desenhando. 
pálida, com roupas pálidas, numa ma‐ Coisa que era raro fazer. Ouvia todos 
ca  pálida,  estava  Camile  Me.  Assusta‐ os dias do seu quarto um homem que 
da  como  hâmster  na  mão  de  cientista.  pela voz devia ter uns quarenta anos, 
Olhos  inchados,  cabeça  explodindo  de  ele declamava poemas. Ela quase não 
dor,  corpo  febril  e  mole.  Mole  como  falava e se falava era somente o sim e o 
goiaba  podre.  Estava  certa  de  que  a‐ não. A realidade lá dentro (dela e do 
 
hospital) assustava. Tudo o que Camile  dem determinar quem é louco e quem 
queria, era sair dali. Esforçou‐se para  não é? Quem?! Os seres miseráveis que 
isso.  Tomava os remédios, não era de  vivem  suas  vidinhas  vagabundas  nas 
brigar ou fazer furdunços, atendia aos  suas  casas,  nos  seus  trabalhos  diários, 
pedidos dos médicos...  na vidazinha monótona? Ha! Eles estão 
_Eu  não  sou  louca,  estou  aqui  certos?!  Aqueles  idiotas!  _Não!  O  que 
por um plano mal executado, e por is‐ estou  fazendo?  Comportando‐me  co‐
so  e  só  por  isso  estou  aqui  (...).  Talvez  mo  eles,  falando  da  vida  alheia  sem 
eu até seja mesmo meio, ou totalmente  conhecer  a  vida  que  surpreende  se  o‐
louca,  mais  o  que  importa?!  Sou  uma  lhada profundamente. Não há nada de 
louca  diferente  desses  loucos  daqui.  errado  aqui,  está  tudo  no  seu  devido 
Mas  quem  foi  que  disse  que  eles  são  lugar.  Eu  é  que  desorganizo  as  coisas. 
loucos da mesma natureza? A verdade  Se  uma  pessoa  tenta  suicídio,  não  há 
é  que  eu  sou  mesmo  muito  egoísta  e  nada  de  mais  correto  colocá‐la  num 
quero  que  a  minha  loucura  seja  total‐ hospital  psiquiátrico,  fazer  o  acompa‐
mente e particularmente minha, só mi‐ nhamento psicológico, não há nada de 
nha. E está aqui é me igualar a esse ni‐ errado.  Está  correto.  A  sociedade  e  o 
cho ecológico. Aqui todos são loucos e  governo  só  quiseram  ser  simpáticos  e 
é  só.  Não!  Eu  não  sou  só  uma  louca.  amigos  ao  fundar  esse  habitat  para  as 
Quem pode de dizer o que é loucura e  espécies  perturbadas  e  perturbadoras 
o  que  não  é?!  Eles,  os  médicos  só  por‐ da  organização  social,  essa  tal  que  foi 
que são médicos e estudam as psicoses  construída  com  tanto  esmero,  dedica‐
alheias  e  acham  que  sabem  muito  ao  ção,  religiosidade,  torturas...  São  ami‐
ponto  de  se  tornarem  juízes  que  po‐ gos  e  simpáticos,  sim,  naturalmente 
 
amigáveis.  Camile  refletia  com  um  ar   
sarcástico?!  
 
Depois  de  nove  meses  recebeu 
alta,  com  a  condição  de  estar  sempre   
em contato com o seu psiquiatra.    
   
 
  A Volta 
 
 
 
 
 
 
Deixava  a  clínica  com  uma  sensação 
indefinida  e  por  não  ser  definir  a  sen‐
  sação  tornava‐se  angustiante.  Tomou 
  um táxi, não quis ver as novidades, as 
modificações da cidade, não tinha inte‐
 
resse  nenhum  em  ver  as  coisas  novas, 
  tudo já tinha sido visto. As coisas só se 
  repetiam,  sempre,  sempre.  Ninguém  a 
esperava  lá  fora;  Fora  da  clínica  e  no 
 
mundo. Fechou os olhos e tentou rela‐
  xar.  Que  angustia  sentia,  que  febre! 
 
Chegou  ao  apartamento.  Não  quis  pe‐
gar  o  elevador,  preferiu  subir  as  esca‐
das, estava tudo tão silencioso... Tocou 
a campainha como quem toca o desco‐
nhecido.  Rogério  abriu  a  porta  e  disse 
num tom espúrio e covarde: 
_  Menina...  Que  bom,  que...  Voltou.   
Você  fez  falta,  viu?!...Entra,  entra...  O   
Júlio não tá...  O Canto Lúgubre do Galo 
Por  dentro  Rogério  cacarejava  igual  a   
uma  galinha  choca.  Tinha  medo  dela. 
Começou a suar, a voz tremia, o corpo 
 
tremia,  para  ele,  era  como  se  Camile   
fosse um espectro. Rogério era medro‐ “A vida é como um sonho; É o acordar que 
so.  nos mata” 
_Oi.  VIRGINIA WOOLF. 
 Camile  respondeu  a  seco,  sem  ne‐  
nhuma familiaridade. Foi direto para o   
a quarto. Dormiu.   
   
   
  Seis  horas  da  manhã  do  dia  se‐
guinte.  O  galo  cantava  lúgubre.  Sol 
fusco.  Da  janela,  Camile  observava  a 
 
cidade. Os postes de luz, os fios elétri‐ espírito?  O  espírito  de  Deus?  Por  que, 
cos miando, o civil indo trabalhar, tudo  de quem mais poderia ser?(...) Então o 
em  movimento,  tudo  em  movimento.  homem,  os  homens  seriam  na  realida‐
Menos ela.  de:  Deus:  brincando  de  múltiplas  per‐
O  cheiro  do  pão  quentinho  in‐ sonalidades.  Ela  pensou.  A  água  já  e‐
vadia  as  narinas  de  Camile.  O  cheiro  vaporava  quando  Camile  se  lembrou 
vinha da padaria do Seo Inácio, padei‐ de  colocar  o  pó.  Depois  de  ter  feito  o 
ro  de  primeira  qualidade.  Tudo  o  que  café foi tomar banho. 
ele  fazia,  era  com  amor.  Naquela  regi‐ Tirou  o  pijama,  entrou  no  Box, 
ão  não  havia  padeiro  com  mais  amor  abriu  o  chuveiro,  encostou  o  pé  bran‐
que  o  Seo  Inácio.  Por  isso  o  pão  dele  quinho  na  água,  com  rapidez  o  puxou 
era o mais gostoso, o mais cheiroso e o  de  volta.  A  água  estava  fria.  Ficou  de 
mais bonito. Um oceano invadia a boca  cócoras,  abraçou  os  joelhos  e  ficou  o‐
de  Camile.  Ela  estava  com  fome.  Saiu  lhando  a  água  cair...  Lembrou  da  sua 
da  janela  e  foi  preparar  o  café.  Pois  o  falecida avó, que dizia que para esper‐
chaleira  no  fogo  e  ficou  pensando  no  tar  os  ânimos,  nada  seria  melhor  que 
homem  que  ficou  internado  no  hospi‐ um bom banho gelado. Deu um pulo e 
tal,  ele  dizia  que  era  Deus.  E  se  fosse  sem  demora  se  enfiou  embaixo  do 
mesmo?!    Porque  pensando  bem,  em  chuveiro. 
que  consiste  o  sopro  divino?  Será  só  Estava  sentindo‐se  bem  melhor 
um vento oco que Deus soprou nas na‐ depois  do  banho.  Queria  sair.  Vestiu 
rinas  de  Adão  e  aí  ele  teve  vida?  Mas  sua  melhor  roupa,  uma  calça  jeans  e 
por  que  ele  teria  a  inutilidade  de  so‐ uma  blusa  indiana  com  detalhes  em 
prar um vento oco? Seria esse vento, o  vermelho. Penteou a cabeleira, colocou 
 
o anel de prata que ganhara de Pietro.  _ Nada! 
Estava pronta.  _Camile, eu acho que você deve 
_Agora vou tomar o meu café...  viajar...  Porque  você  não  volta  para  a 
Pensou.  casa do seu avô?! Olha, eu não estou te 
_Bom dia, Júlio. Quanto tempo.  mandando ir embora. Mas, é que... Tal‐
_ Oi, Camile. É... Quanto tempo!  vez  seja  esta  cidade  que  esteja  te  dei‐
Cinco meses? Seis?!  xando  assim..  Estranha..  Com  hábitos 
_Nove. Nove meses.  esquisitos... Vai ser ótimo, querida! Vi‐
_  Eu  não  pude  visitá‐la,  por  ajar sempre é bom. 
que... Você sabe como é a minha vida...  _Preciso  de  uma  semana  para 
Muito trabalho.  mudar  de  apartamento.  Não  precisa 
_  Tudo  bem.  Não  estou  lhe  co‐ fingir  preocupação.  Posso  ser  louca, 
brando  nada.  Se  não  pode  ir,  tudo  mas  não  sou  burra.  Uma  coisa  que  eu 
bem.  não sou é burra. Eu também preciso de 
_  O  seu  avô  ligou  varias  vezes.  espaço  para  criar.  Preciso  de  espaço 
Falou  com  o  Rogério.  Ele  tava  preocu‐ para abrigar os meus quadros... 
pado...  _Sabe  o  que  você  é  Camile? 
_Ãn...  E,  por  acaso,  alguém  a‐ Uma  insana  que  pensa  que  é  artista! 
lém dele me procurou?!... Camile tinha  Uma  garota  estúpida,  com  crises  de 
esperança  que  Pietro  a  tivesse  procu‐ rebeldia!  Age  como  uma  menina  de 
rado.  fraldas! E quer saber mais?! Quer saber 
_Acho que não Camile...  mais?! VOCÊ ASSUSTA!! 
_O que aconteceu com ele?!  _Você  não  sabe  de  nada!  Cala 
_ O quê?!  essa  boca  nojenta!  Cala  essa  boca!  De‐
 
pois  que  te  contei  sobre  o  meu  amigo  amiga  uma  oportunidade  para  se  a‐
Pietro,  o  meu  melhor  amigo!  Ele  su‐ proximar  do  seu  antigo  amor,  o  psi‐
miu.  O  que  foi  que  fez  com  ele?!  Você  quiatra  Ricardo.  O  objetivo  maior  era 
encontrou  com  ele  e  pediu  para  ele  se  rever Ricardo e não tratar das possíveis 
afastar  de  mim?!  Foi  isso  o  que  fez?!  alucinações de Camile. 
Por  quê?  Por  quê?!  Por  que  você  fez  No  entanto,  quando  a  viu  tão 
isso!!  desamparada,  tão  inocente  e  chora‐
  mingona,  naquele  instante  afeto  por 
Em abandono Camile chorou...  ela. 
  _Não  chora  não.  Esquece  todas 
_Querida,  eu  só  queria  te  aju‐ aquelas  bobagens  e  babaquices  que  te 
dar... Júlio a abraçou como quem abra‐ falei,  é  só  chilique  de  bicha  nervosa... 
ça a ingenuidade. Era verdade que Jú‐ Viu?! 
lio  não  se  preocupava  com  ela,  não  se  Os  dois  riram  juntos.  Mas  as 
preocupava com ninguém, nem com o  coisas  continuavam  fora  do  lugar.  Ela 
próprio Rogério. Era um homem ambi‐ entrou no quarto, pegou a mochila ve‐
cioso  e  trapaceiro.  Tudo  que  o  Júlio  e‐ lha  e  colocou  seu  caderno  de  anota‐
ra,  tudo  o  que  tinha,  ele  havia  conse‐ ções,  lápis,  caneta  preta,  um  livro  de 
guido  de  maneira  desonesta.  Ele  fedia  bolso  “Tabacaria”,  tinha  vinte  reais, 
a  desonestidade;  nem  o  seu  perfume  jogou‐o na mochila. 
mais caro, era capaz de cobrir‐lhe o fe‐ _Cigarro... Merda! Não tem. Na 
dor.  rua eu compro... 
Quando  Camile  contou  a  Júlio  Enfiou  o  isqueiro  no  bolso  da 
sobre  Pietro,  Júlio  viu  na  história  da  calça. Era hora de ir... 
 
_Você vai sair querida?   
_Vou sim, Júlio. Preciso escrever 
 
caminhar  um  pouco,  fumar,  sentir  o 
vento... Preciso mesmo sair.   
_ Não vai sumir por muito tem‐  
po,  viu?!  Qualquer  coisa  me  liga.  A   
gente precisa marcar para irmos ao ca‐
beleireiro  dá  um  trato  no  seu  cabelo,   
cortar  essas  pontas  ressecadas,  fazer  Poema de Camile 
uma massagem nele...   
_ É, quem sabe... Tchau!   
_Tchau!   
E  na  chaleira  o  café  ficou  espe‐  
rando por Camile, mas a porta já havia   
se fechado.   
   
   
  Já  eram  13h25  em  Coração  Va‐
  lente.  E,  lá  estava  Camile.  (Pensando 
  naquela última frase: “Estou desse lado 
  finito,  infinitamente  só...”).  Quis  com‐
  por um poema... 
 
 
_Ser Camile Me: 
 
   É  mastigar  a  vida  como  se  fosse   
alho...   
   É engolir o vômito...   
   É chupar o pus da ferida aberta...  O livro 
Enquanto compunha sua poesia   
“romântica”, fumava em frenesi.   
  “Vede  a  luz,  não  busqueis  desespe‐
  rados, no mundo esquecimento a sepultura; 
  se  os  ditosos  vos  lerem  sem  ternura,  ler‐
  vos‐ão com ternura os desgraçados. 
BOCAGE,  MANUEL  MARIA 
BARBOSA DU. 
 
 
 
 
  Pela  primeira  vez  Júlio  entrara 
  no  quarto  de  Camile.  Quarto  escuro, 
  letárgico.  Estava  até  arrumado.  Cama 
  de  solteiro,  uma  estante  cheias  de  li‐
  vros,  uma  máquina  de  dactilografar, 
  um espelho enferrujado, desenhos em‐
  poeirados  num  canto...  Fotografias  na 
  cabeceira da cama?! Quem seria?! Uma 
 
era de um senhor de uns sessenta anos.  Abriu  a  primeira  página.  Outra 
Seria  o  avô  de  Camile?  Outra  era  de  fotografia  do  mesmo  jovem,  dessa  vez 
uma  senhora  que  aparentava  ter  a  ele estava sozinho. Atrás da foto dizia: 
mesma  idade.  Podia  ser  a  avó.  A  últi‐  
ma era de Camile com um rapaz. Seria   
o Pietro?! Impossível! Pietro não existe!   
Sentou na cama, passeou os olhos pela   
estante:  “Bocage,  Flor  Bela  Espanca,  Porto Seguro, 
Nietzsche,  Mario  Vargas  Llosa,  Carlos   
Drummond  de  Andrade,  Fernando  25 de Dezembro de 1984. 
Pessoa,  Mário  De  Sá  carneiro...                          Lua Cheia. 
_Realmente  não  sei  pra  quê  tantos  li‐  
vros...  Perca  de  tempo  e  de  espaço...   
Um  livro  chamou  a  sua  atenção:  Capa  Espero  que  tenha  gostado  de  pre‐
dura  vermelha,  escrito  com  letras  im‐ sente. 
pressas  “Camile  Me”.  Levantou‐se  da  Escreva nele a sua história. 
cama  um  tanto  curioso,  retirou  o  livro   
da  prateleira.  Sentiu  arrepio  quando  Eduardo Fantonelli 
pensou em abri‐lo.   
_Mas  é  só  um  livro,  um  cader‐  
no, um diário, um sei lá o quê?! Não é  Devia  ser  um  namoradinho  de 
nada demais!  Porto Seguro... Mas quem seria o insa‐
no  para  namorar  Camile?  Ou  talvez 
fosse mais um amigo metido à artista! 
 
Júlio leu a primeira página:  Às vezes deixo as coisas como estão 
  por  pura  conveniência,  e  essa  é  a  minha 
  maior covardia. 
Porto Seguro,  _Covarde! 
   
26 de Dezembro, 1984. 14h15.  27 de Dezembro, 1984.              
                               Camile. 
O  meu  desejo  era  descrever  o  que   
sinto.  Mas,  existem  coisas  que  não  devem   
vir  para  a  luz.  Devo  até  distrair‐me  para   
esquecer  este  pensamento  e  assim  evitar   
que  o  seu  fedor  exale  por  lugares  inconve‐  
nientes.   Porto Seguro 
   
                  Camile Me.   Em algum lugar perdido dentro de 
  mim às 02h55. 
  Hoje  assisti  a  um  filme  sobre  Mo‐
Prosseguiu a leitura:  digliani.  Meu  corpo  pesa  e  junto  dele  o 
  meu  espírito.  Minhas  Lágrimas  sujaram  o 
  meu rosto. Todo o peso do mundo caiu em 
Porto Seguro  mim.  Sinto  frio.  Agarro  a  mim  mesma 
  (protejo‐me). Fico melhor só e sem barulho 
  (assim  tenho  certeza  que  não  há  ninguém 
que  vá  me  ferir).  Não  gosto  desse  frio.  Fe‐
 
bre, frio. Sei que ando com o comportamen‐ tenho  dúvida;  O  lugar  que  me  acolhe  me‐
to meio estranho (não gosto disso). Respiro.  lhor  é  o  papel.  Ele  me  aceita,  não  reclama. 
Com força passo a mão sobre os meus cabe‐ Aceita  a  pureza  da  minha  impureza,  des‐
los. Olho para a lua, a mão no queixo, fico.  crita e rasgada. 
Sei  da  minha  insignificância.  Sou  mais   
uma artista sem futuro e medíocre. Desde o  Rasgo da alma 
começo. O começo de tudo, até o fim.  Riscado 
  Caro e bravo 
Camile  em  28  de  Dezembro  de  Rasgo. 
1984.  03h00, Dezembro, 1984. 
   
   
   
   
Porto Seguro  Outra página virada: 
   
   
   
Não  quero  crer  no  que  vejo.  Pode  Porto Seguro (só no nome...). 
ser esquizofrenia, e tomara então que seja!   
Porque  não  suporto  mais  tanta  hipocrisia.   
Sinto e às vezes posso até ouvir murmúrios  Estou  na  praia,  o  sol  já  vai  indo  e 
vagabundos  daquela  gente  sem  humanida‐ com ele a minha esperança?! 
de,  provida  de  demônios  ambiciosos.  Não   
 
  _Júlio  o  que  faz  aqui  no  quarto 
Idealizei tardes agradáveis,  da  berraç...  Daquela  coisa?!  É  melhor 
Idealizei gente de boa fé,  você sair daqui, se ela te pega xeretan‐
Idealizei amigos  do as coisas dela... O estrume vai feder! 
Daqueles que a gente encontra  _Ela  não  vai  voltar  agora.  Até 
Na prateleira dos sonhos.  parece  que  não  conhece  a  figura.  Vai 
Idealizei um poema heróico,  voltar só à noite. 
Idealizei o pensamento que voasse  _  Mesmo  assim,  é  melhor  você 
E ganhasse o mundo...   sair. Esse quarto me dá arrepios... 
Céus! Idealizei  _Rogério não seja tão bicha! 
              Tanta coisa impossível...   
Tanta coisa que só ocupa espaço  Ele continuou lendo: 
Dentro de mim.   
30 de Dezembro, 1984.  Porto Seguro, 
Camile Me.  01 de Janeiro de 1985. 
   
  Perco‐me,  perco‐me  sim,  toda  vez 
  que há uma oportunidade que me leve a um 
  plano mais visionário que o de costume. E 
  assim estou. 
   
A  porta  do  quarto  abriu  e  caca‐ Prefiro um quarto solitário; 
rejou o homem:  Assim. 
Sem meio, sem fim. 
 
Sem gente. Sem àquela gente,  02 de janeiro, 1985. 
Falando, falando.   
Palavras insignificantes.  Estou  na  casa  de  Pietro  e  percebo 
Sou eu, eu sou Camile Me. Eu só.  que aqui é o meu refúgio, e ninguém e nem 
  outra coisa o é. O caderno esse o é.  
24h00.  Hoje  não  acordei  e  o  sol  não  veio  e 
  tudo é tão mesquinho... Ainda durmo meu 
  sono  sereno.  Ainda  não  acordei...  “Eu  não 
Júlio não sabia o que pensar so‐ queria  ter  acordado”  eu  não  quero  nada, 
bre  o  que  lia.  Estaria  perto  do  verda‐ nem uma gota, nem qualquer coisa. 
deiro “Eu” de Camile?! Era um mundo   É  sempre  o  fim  qualquer  começo. 
novo  apresentando‐se  para  ele.  O  Nos  dias  crus  eu  me  acho  e  perco‐me  de 
mundo  de  Camile  Me.  Intrigante.  vez.  
Grande.  Profundo.  Posterior.  Era  uma  Nas  veias  corre,  pulsa  o  sangue 
tristeza admirável. Incomum. Até essas  acelerado,  no  peito  um  tambor  toca  uma 
sensações que estava sentindo ao ler o  música estranha e não concisa, parece des‐
caderno  de  Camile,  eram  novos  para  compassado. 
ele.  Não  estava  acostumado  a  sentir   
essas coisas...                      Camile. 23h59. 
   
   
   
   
Porto Seguro 
 
 
  sem  vida,  sem  luz.  Pele  branca,  man‐
chada  de  sardas.  Altura  média.  Daqui 
 
eu a vi bela. Belíssima. Mórbida, ruiva, 
  sardenta,  esquisita,  mas  bela.  Cismo 
Quadro Desenhado a lápis  que  era  dona  de  um  mundo  comple‐
  tamente próprio. Não comum. Sem he‐
  ranças.  Um  mundo  costurado  à  mão. 
  Um  mundo  feito  quadro  desenhado  a 
  lápis. Mundo completamente diferente 
  do  meu  e  do  seu.  O  dela  é  superior. 
Sentada  no  banco  da  praça,  a  Sobrenatural. 
sombra  de  uma  mangueira,  o  vento   
lambia o corpo e os longos cabelos rui‐  
vos  da  jovem.  A  boca  era  pequena,  ti‐  
nha  os  lábios  pálidos.  Ela  era  pálida.   
Estava  pálida.  Os  olhos...  Meu  Deus!   
Os  olhos...  Eram  duas  esmeraldas.  Porto Seguro  
Verdes,  verdinhos...  Quando  iriam   
amadurecer?  Continuariam  verdes?  04 de Janeiro, 1985. 
Como  saber?!  Nunca  saberemos.  A  ú‐  
nica coisa que podemos saber, é que os  Escrevo  do  meu  quarto,  da  janela 
olhos  estavam  verdes.  Verdes.  Fuscos,  vejo um céu escuro e silencioso, rua deser‐
sem brilho, esmeraldas sem brilho. Pa‐ ta,  sem  vida.  Tanta  certeza  me  soa  indife‐
reciam  abandonados.  Sem  espírito, 
 
rente.  Tanta  indiferença  derrama  escondi‐
da... 
_A minha mãe, não foi uma mulher 
muito sã da cabeça, pois no mundo sabem‐
se lá quantos filhos... Dois? Três? Quatro? 
Cinco? Seis? Sete?! Pariu como uma cade‐
la  da  rua,  em  total  desordem.  Não  espero 
mas com ansiedade o futuro, visto já, o pre‐
sente decadente. 
Hoje  pela  manhã,  meu  irmão  fale‐
ceu. Morreu aos dezenove anos. Vítima do 
seu próprio tormento. E, a mulher que fez o 
favor de nos ter, não calculou tal futuro. Só   
se  importou  (e  parece  que  só  se  ocupava   
disso) em parir, parir e mais uma vez: Pa‐ Cheguei  a  idealizar  a  minha  mãe, 
rir.  como “mãe ideal”, mas o tempo passou e eu 
  me dei conta da desventura de não ter uma 
  segurança;  Dei‐me  conta  da  minha  “mãe 
desventura”, ela para o bem ou para o mal 
se foi desfazendo do meu sonho. 
Talvez...  Não!  Ela  tem  culpa  sim, 
nisso  tudo.  Mas  a  culpa  não  é  só  dela,  é 
também  de  quem  governa  o  mundo,  de 
quem cria as historinhas da vida real. _Da 
 
vida real! Ouviu bem?! É com você mesmo  todos os sentidos), lutou bravamente, resis‐
que eu estou falando. Você é fascinado pela  tiu  e  morreu  como  morrem  os  heróis:  Na 
vida real, não é?! Por isso nos criou; Nos,  certeza de ter vencido o grande combate. 
os  Seres  Humanos,  humanos...  Incorretos   
desde a maternidade. Humanos... Cem por  Busquei  como  uma  insana  um  ci‐
cento humanos. Você separa os papéis para  garro.  Um  não,  todos!  Não  encontrei.  O 
cada  personagem,  depois  senta  no  seu  tro‐ ato  de  fumar  é  para  mim  uma  espécie  de 
no  confortável  e  vai  assistir  ao  espetáculo  vingança contra a própria vida, corpo, car‐
acompanhado de pipoca. Deus é um psico‐ ne; Mas ao mesmo tempo, um alívio.  
pata.  Eu  sei  que  você  existe.  Pelo  menos  18h30 
deveria...  Ou  não._Deveria  existir  para  Camile. 
poder  explicar  todas  essas  coisas  e  não  de‐  
veria existir para não ter que explicar nada,   
porque simplesmente não haveria nada pa‐  
ra  ser  explicado.  Às  vezes  não  sei  o  quer   
pensar de você. Às vezes não sei o que pen‐  
sar de mim._ Como seria não existir?!   
Amanhã  será  o  enterro  do  meu  ir‐ Navio. 
mão  Henrique.  É  um  nome  bonito,  “Hen‐  
rique”... Pensando claro, minha mãe foi só   
mais uma cobaia de Deus. Coitada...  Estou no navio que parti para Coração Va‐
Não sei se vou dormir hoje. Como posso?!  lente. Pietro foi tomar um pouco de ar. Te‐
O  meu  irmão  não  foi  um  coitado,  ele  foi  nho  muita  vontade  de  chorar...  O  que  eu 
sim, uma cobaia, mas que ao contrário (em  queria era poder sorrir de felicidade... Temo 
 
me perder de vez. Preciso ser melhor. Não é  Não  sei  o  que  me  dá...  Tenho  tristeza... 
só a ida que me deixa triste.  Vontade de chorar... Falta‐me algo, sempre 
                                     O vazio.  foi  assim.  Sempre...  Em  mim  um  cansaço, 
                                     A falta.  um  vazio...  Não  quero  nunca  chegar  a  lu‐
                                      A ausência.  gar algum. Todos os lugares estão cheios e 
Sou um pouco de todas as aflições do mun‐ comprometidos  com  a  agonia  do  preenchi‐
do. Sinto  que deixo algo de mim em Porto  mento alheio. Ela explode dentro de mim, a 
Seguro.  Pelo  que  é  impossível.  Não  tenho  tristeza. Sinto‐me fraca e presa. Sempre ajo 
nada por lá e em lugar algum. Não queria  como uma imbécil... Mas é que sempre me 
ouvir  a  voz  de  ninguém,  nem  ver  pessoas.  falta a luz. Imagina se alguém lê isso... Lê 
O  que  é  impossível.  Estou  num  navio...  essas  coisas  todas  que  escrevo...  Não  será 
Sinto‐me vigiada.  com  certeza  agradável  para  ela.  Não  devo 
Tem  gente  que  nasce  para  ser  feliz,  tem  incomodar  as  pessoas  sendo  essa  pessoa 
gente  que  nasce  para  ser  triste,  e  assim  triste  que  sou.  Pelo  menos  devo  fingir  ser 
sendo: Torna‐se poeta.  alegre,  para  agradar.  O  que  sinto  não  se 
A  tristeza  mata.  Os  poetas  morrem  ce‐ divide,  se  guarda  e  esquece‐se  onde  guar‐
do._Não gosto quando ficam me olhando. É  dou.  Penso  no  papai.  Sonho  ser  melhor  e 
impossível  ter  sossego  nesse  navio.  Nem  livre.  Tenho  pressa.  O  tempo  não  espera. 
quando  quero  posso,  e  quando  penso  que  Quanto mais desejo, o desejo fica distante. 
posso, já não posso mais. Tudo o que posso  _Venha  o  quanto  antes...  Venha  o  quanto 
é pensar que um dia poderei. Quero a soli‐ antes  Liberdade!  Passam  os  dias,  e  torço 
dão. A multidão nada mais é do que o pró‐ para  que  eles  não  passem  tão  amargos  e 
prio empecilho, e isso não é nada. É tudo.  incertos. Vejo o mundo e ele não é feito de 
concreto, nem de madeira, nem de qualquer 
 
outra coisa material. Vejo a vida como poe‐  
sia, poesia visionária obviamente... Assim a 
 
realidade  facilmente  me  destrói.  Poema 
triste  é  o  meu  pensamento,  quem  lê  não  O Encontro 
entende e nem sente, às vezes nem acredita.   
Causaria  náuseas  em  alguém  que  lesse  o   
que escrevo. Volta e meia e no intermediá‐ “E  aqueles  que  foram  vistos  dan‐
rio dessa volta, eu falo “desta tristeza”._ É  çando  foram  julgados  insanos  por  aqueles 
engraçado!  Devo  rir  da  minha  triste‐ que não podiam escutar a música”. 
za?!_Seria loucura.   FRIEDRICH NIETZSCHE. 
Como  um  peixe  fora  da  água,  eu  sigo  esse   
caminho  sombrio.  Sombrio  como  nunca,  e   
claro como nunca será.   
  O relógio da praça avisava: Seis 
Camile.  horas da tarde. 
  _  Está  na  hora  de  ir...  Pensou 
  Camile.  A  bunda  e  as  pernas  já  esta‐
  vam  dormentes.  Enquanto  (inutilmen‐
  te) um carinha do  outro lado da praça 
  tentava‐a  paquerar,  ela  acendia  o  últi‐
  mo  cigarro,  o  último  pedido.  Pensou, 
  desejou  profundamente,  tragou;  Libe‐
  rou a fumaça e com os olhos a ‐ perse‐
guiu... 
 
 
_Pietro!!  estavam  no  alto  do  viaduto.  Cansados 
Exclamou  com  paixão.  O  cora‐ de andar, pararam. Sentaram‐se na cal‐
ção  batia  feito  bumbo  em  tempo  de  çada  enquanto  o  vento  frio  trazia  o  si‐
carnaval. Os olhos brilhavam como to‐ lêncio da noite (...) 
da esmeralda merece brilhar! Ficou co‐ Ela  se  ergueu,  e  o  seu  rosto  era 
rada.  Estava  tão  feliz!  Felicidade  ím‐ luz. _Pietro, eu não sou daqui. Sei que 
par. E de uma coisa tenho certeza, nem  você também não é. Eu sei. Não adian‐
eu e nem você, poderemos experimen‐ ta  fingir.  Falava  sem  pestanejar,  sem 
tar  dessa  felicidade.  É  que  essa  felici‐ tropeçar, sem tremer, estava tranqüila. 
dade, foi predestinada só para ela.  _Estou  indo  embora.  Por  que 
Os  dois  ficaram  abraçados,  ali,  não vem comigo?... 
no meio da praça. Isso demorou alguns  Ali,  a  sinfonia  de  Bach  embala‐
minutos. Em seguida subiram a Rua 7.  va  o  sonho  e  o  vento  rodopiava  que 
Pietro lhe contou algumas coisas, disse  nem criança feliz. 
que havia sentido saudades, e que não   
mais se viam, por conta da “idéia boba   
de ficar tomando remédios antipsicóti‐  
cos”.  Caminharam  sem  direção.  Sorri‐  
am,  davam  gargalhadas,  choraram...   
Camile  contou  como  foi  enclausurada   
no hospital psiquiátrico, como se sentia   
só... Disse que um mês antes de sair, só 
fingia  tomar  os  remédios.  Pietro  a  ou‐
viu atenciosamente. Sem perceberem já 
 
“Aqui  se  dissipa  o  mundo  visioná‐
rio e platônico” 
          ÁLVARES DE AZEVEDO. 
 
 
02h45 da madrugada marcava o 
relógio de Júlio. 
_ Rogério... 
_Ãn?... 
_Camile chegou?... 
  _Sei lá... 
  Júlio  voltou  a  dormir.  Estava 
  sonhando  com  castelos  árabes,  harém 
  de  homens  voluptuosos...  Enquanto 
  Rogério  sonhava  que  beijava  o  Junior 
  Lima?! Irmão daquela cantora pop... É, 
  parece  que  é  esse  mesmo  o  nome.  En‐
  tão, em meio a frêmitos sacanas a mão 
de  Junior  acariciava  o  membro  forte  e 
  leviano de Rogério. Num delírio eston‐
  teante, Rogério gemia baixinho fora do 
Camile de Moraes Rosa  sonho. 
  _Trim! Trim!Trim!... 
 
 
O  telefone  tocou  impaciente  na  Levantou  e  foi  para  a  sala  onde  Rogé‐
sala.  rio estava. 
_Merda!  Quem  é  o  imbecil  que  _Aqui  é  da  Polícia.  O  que  o  Se‐
liga  a  essa  hora?!  Pensou  os  dois  em  nhor  é  para  a  Senhora  Camile  de  Mo‐
sincronia.  raes Rosa? 
_Trim! Trim! Trim!...  _A  boca  de  Rogério  foi  abrindo 
_Rogério...  devagarzinho,  o  coração  disparou, 
_ Tá bom, eu vou atender!!  empalideceu.  Pensou:  O  que  deve  ter 
Levantou  da  cama  resmungan‐ acontecido à pobrezinha?!... 
do a ladainha cacarejante ao indivíduo  _Senhor? 
desconhecido  que  ousara  interromper  _Ãn?! Desculpa seu policial, eu, 
seu sonho perfeito.  sou  o  amigo  dela,  a  gente  mora  no 
_Alô?!  Perguntou  Rogério  com  mesmo apartamento... 
o tom de voz agressivo.  _Sinto  lhe  informar  que  a  Sra. 
_  É  da  casa  do  Sr.  Júlio  Alberti‐ Camile sofreu um acidente. Fatal.  
no? A voz do outro lado da linha fala‐ _ Um acidente?! Fatal?! 
va  com  mansidão,  tom  de  prudência,  _O  que  ta  acontecendo  Rogé‐
como quem está prestes a pisar em ca‐ rio?! Perguntou aflito, Júlio. 
cos de vidro.  _  Calma  meu  amor,  calma... 
_Sim,  mas  ele  está  dormindo.  Frase que desconheceu ao falar. Estava 
Respondeu  Rogério  um  pouco  assus‐ tão  nervoso  por  conta  dessa  notícia  i‐
tado,  curioso  e  já  manso.  Enquanto  is‐ nesperada... Ele e Júlio não se tratavam 
so, Júlio não conseguia voltar a dormir.  com  amistosidade  há  muito  tempo. 
Mas  por  que  estava  tão  nervoso?!  Ele 
 
nem  gostava  dela!  Mas  nem  por  isso  _Obrigado  seu  policial.  Nós 
desejara a morte da coitadinha... E ago‐ vamos sim. 
ra  tinha  certeza  que  a  menina  precisa‐ Júlio  chorava  desesperado,  não 
va mesmo de ajuda, era no fundo uma  podia  ser  verdade!  Como?  Quem  teria 
menina  boa,  e  ele  não  tinha  visto  isso,  feito  isso  com  camile?!  Meu  Deus!! 
nem  havia  feito  nada  por  Camile!...  E  _Teria  sido  um  suicídio?  Não!!  Um 
Júlio?  Como  receberia  tal  notícia?!  En‐ suicídio não!! 
goliu  a  seco  o  olhar  daquele  homem  Rogério  tentou  abraçar  o  aman‐
aflito,  parado  ali,  na  sua  frente,  que  e‐ te,  mas  Júlio  diferentemente  gritou 
xigia  urgente  uma  explicação.  Atordo‐ com cólera, fúria, remorso?! 
ado, voltou sua atenção para o policial.  _Não!!Sai daqui! Sai!! 
_Um grupo de mendigos que se  Rogério  abatido,  meio  que  se 
abrigava  embaixo  do  viaduto,  contou  escondia  no  corredor,  chorando  a  des‐
que  viu  a  moça  caindo  lá  de  cima.  E‐ graça de Camile. 
ram  03h48  desta  madrugada.  Estamos   
investigando se foi homicídio ou suicí‐  
dio.  Precisamos  de  algumas  informa‐  
ções dos senhores. Será necessário que   
os familiares ou então vocês, os amigos   
da  moça,  compareçam  ao  IML,  para   
fazer o reconhecimento do corpo. Sinto 
muito  pelo  ocorrido,  senhor.  Passar 
bem. 
 
O Velório 
 
 
 
 
 
O  Sr.  Augusto  tinha  aparência 
cansada.  Dentro  dele  o  mesmo  vazio 
que sentiu quando sua esposa Georgia, 
  Faleceu.  Vê  a  neta  naquele  caixão... 
  Sentia  que  ia  adoecer...  Se  não  fosse  a 
  gentileza  amigável  de  Júlio,  o  Sr.  Au‐
  gusto  ficaria  totalmente  perdido.  _ 
  Quem  dera  Camile  pudesse  apreciar 
  “esse momento de extrema compaixão 
que emanava de Júlio”. Não estou sen‐
  do irônica. Ou estou?! Talvez sim. 
  O  velório  estava  lotado.  Muita 
  gente,  muito  parente...  Em  toda  vida 
de  Camile,  conhecera  apenas  os  avôs 
 
maternos  e  o  irmão  Henrique,  quanto 
  aos pais da moça e se teve mais paren‐
  te  é  coisa  que  eu  e  Camile  desconhe‐
  cemos,  ela  só  sabia  que  existiam  por 
 
ouvir  falar,  mas  nada  era  confirmado.  jovem  bonito,  de  olhar  triste.  Júlio 
Nada  era  confirmado.  Camile  levaria  quando  o  viu,  logo  soube  de  quem  se 
um  susto  que  seria  bem  capaz  que  tratava.  Era  Eduardo  Fantonelli,  o  ra‐
morresse  novamente,  se  visse  o  tanto  paz da fotografia. Como era bonito... E 
de gente que comparecera ao seu veló‐ se  fosse  ele  gay?  Quase  todos  os  ho‐
rio. Será que não viu?!  mens  que  ele  havia  conhecido  na  vida 
Todos  curiosos para ver Camile  eram gays, com exceções de uns... Pou‐
morta, mortinha no caixão.  Ver aquele  cos  é  verdade.  Porque  não  ele?!  Teria 
defunto  fazia  com  que  eles  pensassem  Júlio  alguma  sorte?!  Júlio  se  apresen‐
na  vida  e  na  morte.  Uns  falavam  con‐ tou para Eduardo, e começaram a con‐
sigo  mesmo:  Há  vida  após  a  morte?!  versar.  Eduardo  contou  que  tivera  um 
Será que ela foi para inferno?! Quando  romance com Camile e que era apaixo‐
eu  morrer,  vou  parar  aonde?!  Eu  não  nado  por  ela.  Por  outro  lado,  Camile 
quero  morrer  agora.  Ave  cruz!  Coita‐ parecia  sempre  muito  distante  e  fazia 
da,  tão  novinha...  Tudo  isso  porque  questão  de  passar  a  maior  parte  do 
não  seguiu  os  caminhos  de  Deus!  Até  tempo sozinha. 
que  ela  não  era  de  se  jogar  fora...  Fo‐ _ Mas, esse era o jeito dela. E eu 
ram  tantos  os  pensamentos  que  me  a amava assim mesmo. Senti muita fal‐
custaria  muito  tempo  dizê‐los.  Os  ou‐ ta  quando  ela  decidiu  vir  morar  aqui, 
tros  não  pensavam;  Só  foram  mesmo  em  Coração  Valente.  Não  podia  man‐
para ver mais um defunto.   dar  cartas,  porque  simplesmente  ela 
Menos  ele,  que  estava  em  pé,  não  havia  deixado  sequer  rastros  do 
olhando absorto para as flores brancas  seu  paradeiro.  Talvez  tivesse  medo  de 
de defunto ao redor do caixão. Era um  amar,  ou  talvez  tivesse  ódio  do  amor 
 
(falava  como  que  para  si  mesmo,  ten‐ Enquanto  isso,  Rogério  havia 
tando se convencer)... Dizendo em me‐ parado  de  se  insinuar  para  os  rapazes 
lancolia.  que  estavam  no  velório  da  bizarra  a‐
_Você  a  –  presenteou  com  um  dormecida (Camile de Moraes Rosa, ou 
caderno‐livro,  não  foi?!Perguntou  sim‐ Camile Me, como ela preferia.), Só para 
pático o Júlio, com ar de conquistador.  poder  observar  a  conversa,  que  dali 
_Sim.  Uma  espécie  de  caderno‐ parecia mui íntima. 
livro,  capa  dura  vermelha.  Eu  o  ‐  en‐ _  Está  melhor?  Você  devia  ser 
comendei  numa  gráfica.  Ela  adorava  muito  amigo  dela,  talvez  até  mais  que 
escrever,  sabe?...  E  eu  a  adorava...  O  eu,  que  inveja  de  você...  Se  ao  menos 
caderno ainda existe? Você sabe?  eu  pudesse  ficar  com  o  caderno,  seria 
_Sim, existe... O rosto ficara tris‐ uma  maneira  de  ficar  mais  próximo 
tonho,  decepcionado  com  o  rapaz,  pa‐ dela... 
recia  que  ele  a  amava  muito  mesmo,  Tentando  esconder  o  rosto  de 
mas o que estava fazendo?! A final era  vergonha  daquela  tão  indesejada  ob‐
o  enterro  da  sua  amiga,  não  era  hora  servação que não cabia na relação dele 
para  paquerar!  Era  hora  de  sofrer  a  com  Camile,  fingia  equilíbrio  continu‐
morte da pobrezinha... Veio de repente  ando  a  conversa  de  cabeça  baixa:  _Eu 
um excesso de choro... Eduardo que se  pensei  em  dá‐lo  ao  Sr.  Augusto,  o  avô 
concentrava nos seus pensamentos, foi  de  Camile.  Falou  assoando  o  nariz  e 
surpreendido  por  esse  alvoroço,  indo  limpando  as  mãos  na  sua  calça  mar‐
logo  abraçá‐lo  com  generosidade,  mas  rom.  _Mas  eu  temo  que  não  faça  bem 
Júlio  o  afastou  sutilmente,  recuperan‐ ao  velho,  sabe?...Camile  era  forte  nas 
do‐se com rapidez.  palavras... 
 
_Eu  sei,  e  como  era!  Sentiu  um   
pouco  de  nojo  daquele  gesto  seboso...  01 de Maio, 1987,18h00. 
Então,  Eu  ficaria  agradecido  e  muitís‐  
simo  feliz,  se  eu  pudesse  ficar  com  o  “Todos  os  suicidas  um  dia  desejaram  ar‐
caderno.  dentemente a felicidade” 
_Tudo  bem,  acho  que  Camile   
não se importaria...  Camile Me. 
_A  propósito,  você  conheceu  o   
tal Pietro?   
_Pietro?! 
Parece que Eduardo havia leva‐
do  um  susto,  procurando  logo  se  refa‐
zer, soou certo no seu tom de voz: 
_Pietro?...Não, não o conheço. 
Por  que  esta  reação  de  Eduar‐
do?!  Será  que  sabe  de  alguma  coisa? 
Ou  será  impressão  minha?!  Não,  era 
óbvio  que  Pietro  não  passava  de  uma 
alucinação de Camile. Pensou Júlio. 
 Antes  de  entregar  o  caderno  a 
Eduardo, abriu‐o na última página: 
                                         
 
                                       
 
                                   FIM. 
Coração Valente,   
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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