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Telles Lygia Fagundes Lua Crescente em Amsterdan
Telles Lygia Fagundes Lua Crescente em Amsterdan
(Brasil, 1923)
- Voc disse que seria a menina mais feliz do mundo quando pisasse
comigo em Amsterd.
- Tenho dio de Amsterd. Eu era to perfumada, to limpa. Me sujei com
voc.
- Nos sujamos quando acabou o amor. Agora vem, vamos dormir naquele
banco. Vem, Ana.
Ela puxou-lhe a barba.
- Quando foi que fiquei assim to imunda, fala!
- Mas eu j disse, quando deixou de me amar.
- Mas voc tambm - ela soqueou-lhe fracamente o peito. - Nega que voc
tambm...
- Sim, ns dois. A queda dos anjos, no tem um livro? Ah, que diferena
faz. Vem.
- O banco frio.
Quando ele a tomou pela cintura, chegou a se assustar um pouco: era
como se estivesse carregando uma criana, precisamente aquela menininha que
fugira h pouco com seu pedao de bolo. Quis se comover. E descobriu que se
inquietara mais com o susto da menina do que com o corpo que agora
carregava como se carrega uma empoeirada boneca de vitrina, sem saber o que
fazer com ela. Depositou-a no banco e sentou-se ao lado. Contudo, era lua
crescente. E estavam em Amsterd. Abriu os braos. To oco. Leve. Poderia sair
voando pelo jardim, pela cidade. S o corao pesando - no era estranho? De
onde vinha esse peso? Das lembranas? Pior do que a ausncia do amor, a
memria.
- E onde esto os outros? Para a viagem? Voc no disse que era aqui o
reino deles? - perguntou ela dobrando o corpo para a frente at encostar o
queixo nos joelhos. - Tudo inveno. Isso de Marte ser pedregoso, deserto. Uma
vez fui l, queria tanto voltar. Detesto este jardim.
- Perdemos o outro.
- Que outro?
A voz dela tambm mudara: era como se viesse do fundo de uma caverna
fria. Sem sada. Se ao menos pudesse transmitir-lhe esse distanciamento. Nem
piedade nem rancor.
- Voc sabia, Ana? Algumas estrelas so leves assim como o ar, a gente
podia carreg-las numa maleta. Uma bagagem de estrelas. J pensou no espanto
do homem que fosse roubar essa maleta? Ficaria para sempre com as mos
cintilantes, mas to cintilantes que no poderia mais tirar as luvas.
- Olha minhas unhas. At a menininha fugiu de mim - queixou-se ela
enlaando as pernas.
- Desconfiou que voc ia avanar no seu bolo.
- Olha minhas unhas. Ser que aqui tambm do comida em troca de
sangue? - No sei.
- Uma droga de comida. Aquela de Marrocos - disse ela esfregando na
areia a sola da sandlia.
- Nosso sangue tambm deve ser uma droga de sangue.