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APENDICE de inverno ino fallow do. @ melhor A primeira edigéo de Se um viajante numa saist em funbo de 1979 pela Einaudi, Na época, livro em diversas entrevistas @ imprensa, Ent ocasido para refletir e discutir sobre a estrutura ¢ da obra ibe foi oferecida por uma resenba do critico Angelo Guglielmi, a qual Calvino respondeu com o seguinte comentiric intitulado “Se um narrador numa noite de inverno em dezembro do mesmo ano na revista mensal Alfabeta. Caro Angelo Guglielmi, vocd escreve “nesta altura fasia dias “Alfabeta. Na medida do possivel, tratarei de respond. Comegarei pela parte que nao apresenta interrogace seja, 0 trecho em que seu discurso coincide com 0 depois identificar os pontos em que nossos caminhos sobretudo, define com precisdo os dez tipos de sucessivamente vo sendo propostos ao leit ‘objetos si0 demasiado densos e sensuais; num te a abordagem introspectiva; em outro, atua uma forte tensito exis- 265 JANTE NUMA NOITE DE INVERNO “4 € @ a¢a0; em outro ain: ‘em outro, cresce um insus {entavel sentimento de privagao e angiistia. E depois ha o romance: exotico-pervertido, o teldico-primordial e, enfim, 0 apocaliptico”. Para definir esses dez. incipit, a maioria dos criticos procu= rou possiveis modelos ou fontes (e destes freqtientemente emer- giram nomes de autores em que eu jamais pensara, o que chama a atengiio para um campo pouco explorado até agora: como fun cionam as associacées mentais entre textos diversos? Por que caminhos um texto é assi mente?), a0 passo que vocé adota aquele que foi meu proce: {sto é, propor sempre uma postura no estilo e na relacao com 0 mundo (em torno da qual depois deixo que os ecos de 108 lidos se adensem naturalmente), postu- Fa que vocé define com perfeic’o em todos os dez casos. Em todos os dez casos? Observando melhor, percebo que dei apenas nove exemplos. Entre 0 ponto-final e 0 “E depois..." Cinco anos depois, numa conferéncia no Instituto Htaliano de Cultura Tive, portanto, de eserever 0 es imaginarios, todos de algum modo diferentes de mim ¢ lum romance todo de desconfiancas e sentimentos confusos; 266 APENDICE w hha uma lacuna que corresponde ao conto dos espelhos (Numa um exemplo de rede de linhas que se entrecruzam"), ou sej narragdo que tende a construir-se como ope geométrica ou jogo de xadrez. Se quisermos, nds @ aproximagao com os nomes proprios, poderemos oc o pa mais lustre desse modo de narar¢ em Borges © pon- to de chegada mais completo e atual. Entre esses filtrar as emogdes mais romanescas num clima mental de abstra- Ao rarefeita, freqientemente ornado com algum pre cado (talvez demais?) por outros criticos, a0 passo que co esquecido por voce. Por qué? Porque, respondo, se vocé o houvesse considerado, teria sido obrigado a levar em conta que entre as formas literatias que caracterizam nossa época existe em a obra fechada e calcwlada, na qual fechamento e cél- culo sao apostas paradoxais que apenas indicam a propria forma parece significar, isto é, transmitem o sentido de um mundo precétio, a ponto de muir, despedagar-se Mas, se voc® reconhece isso, deveria também reconhecer comegar pela utili dese género, do velho topos romanesco de uma conspiragao universal dos im registro cOmico-alegorico, pelo menos a partir de Chesterton, € regida por um deus ex machina poli- morfo; a personagem do Grande Mistificadior, que vocé censura definindo-a como idéia demasiado simples, € nesse ingrediente que eu julgaria obrigat6rio), mode meira regra do jogo € “fazer os ntimeros bateret fazer parecer que batem quando sabemos « batem). Para voce, “fazer os ntimeros 18 SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO to como exercicio acrobiitico para desafiar, ¢ indicar, o vazil subjacente. Em resumo, se voce nao tivesse omitido (ou eliminado?) dat lista o “romance geométrico”, parte de suas perguntas e objesdes ndo existiria, a comecar por aquela sobre a “inconcludénci (Vocé se escandaliza porque eu “concluo” e pergunta a si me mo: “Trata-se de uma desatencao de nosso caro amigo?” Na‘ pelo contrario: prestei muita atengio e calculei tudo para que o “final feliz” mais tradicional, 0 casamento dlo her6i com a heroi- se a moldura que encerra a desordem geral.) ‘Quanto a discussiio sobre o “inacabado”, tema sobre 0 qu ‘voce diz coisas muito cabiveis num sentido literirio genérico, eu antes de tudo gostaria de limpar de possiveis equivocos 0 terr no. Sobretudo, desejaria que ficassem mais claros dois pontos: 1, 0 objeto da leitura que se encontra no centro de m livro nao é tanto “0 lite “o romanesco”, isto é um procedimento literdrio determinado — proprio da narrativa de cunho popular e de consumo, mas diversamente adotado pel literatura culta — que em primeiro lugar se baseia na capacidade de concentrar a atengo de um enredo na espera permanente do que esti por acontecer. No romance “romanesco”, a interrupe: € trauma, mas também pode institucionalizar-se (0 corte no momento culminante dos romances em folhetim; a quebra dos capftulos; 0 “voltemos um paso"), O fato de ter feito da interrup- ‘edo do enredo 0 motivo estrutural de meu livro tem esse sentido preciso € circunscrito, e no toca 4 problematica do “inacabado” na arte e na literatura, que € outra coisa, Melhor dizer que a indo se trata do “inacabado”, mas sim do “acabado interrompi do ‘acabado cujo final esta oculto ou ilegivel”, tanto no sentido literal como no metaforico. (Parece-me que em algum momento digo algo assim: “Vivemos num mundo de histérias que come- cam e no acabam’) 2, Sera mesmo verdade que meus incipit se interrompem? Alguns criticos (veja-se Luce d'Eramo, no If Manifesto de 16 de setembro) e alguns leitores de gosto refinado sustentam que né 1a, 5 268 LAPENDICE ‘eles 05 consideram relatos acabados, que dizem tudo que devem dizer e aos quais ndo ha nada para acrescentar, Sobre esse pon- to ndlo me pronuncio. Posso apenas dizer que, de inicio, queria fazer romances interrompidos, ou melhor, representar a leitura de romances que se interrompem; depois, prevaleceram textos que eu poderia publicar também independentemente como con- tos. (Coisa bastante comum, dado que sempre fui autor mais de contos que de romances.) destinatirio natural ¢ fruidor do “romanesco” € 0 médio”, que por isso escolhi como protagonista do Viajante. Protagonista duplo, porque se divide em Leitor ¢ Leitora. O pri- meiro nao tem caracteristicas nem gostos precisos: poderi leitor ocasional e eclético. A segunda € leitora por vocag0, sabe explicar suas expectativas e suas repulsas (formuladas nos termos ‘menos intelectualizados possiveis, embora — ou justamente por vii se desbotando irreparavelmen- te na fala cotidiana), sublimagao da “leitora média” mas bastante orgulhosa de seu papel social de leitora por paixdo desinteressa- da. Esse é um papel social em que acredito, 0 pressuposto de ‘meu trabalho e nao apenas desse livro. # para essa destinagao ao “leitor médio” que vocé aponta vino, mesmo inconscientemente, executa por meio de Ludmilla um trabalho de sedugio (de adulacio) ditigido ao leitor médio, que afinal é o verdadeiro leitor (e comprador) de seu livro, atribuin- do-the algumas das extraordinérias qualidades da insuperavel Ludmilla?” © que nio consigo aceitar nesse discurso € 0 mesmo incons- cientemente, Como inconscientemente? Se coloquei Leitor € Leitora no centro do livro, foi porque sabia 0 que estava fazendo. Nao esqueco nem por um minuto (dado que vivo de direitos autorais) que 0 leitor € 0 comprador ¢ que 0 livro € um objeto que se vende no mercado. Quem pensa que pode prescindir do aspecto econémico da existéncia € de tudo 0 que ele comporta ndo teve jamais 0 meu respeito, itor 269 1 SE UM VIAJANTE NUMA Norte DE INVERNO Em resumo, se vocé me chama de sedutor, isso pa adulador, também passa; de feirante, até isso passa; mas, se me chama de inconsciente, af me sinto ofendido! Se no Viajante eu quis representar (€ alegorizar) 0 envolvimento do leitor (do tor comum) num livro que nunca é © que ele espera, apenas cexplicitei aquela que foi minha intengao consciente ¢ constante em todos os livros anteriores, Aqui se abriria um discurso de uke da leitura (ou melhor, de politica da leitura) que nos ria da dliscussao sobre a esséncia do livro em pauta, © Convém voltar as duas principais perguntas em torno sso que vocé apresenta: 1. par: superacao do eu podemos apostar na multiplicagao dos cus’, todos 0s autores possiveis podem reduzir-se a dez? (Sintetizo coisas assim 56 para registro, mas ao responder-lhe procuro presente toda a argumentagao de seu texto.) No que se refere ao primeiro ponto, apenas posso dizer-| que perseguir a complexidade por meio de um catilogo de p ‘€ um procedimento que caracte- iteratura deste século, a comecar nada de um fulano qualquer um deles com uma chave e: quais toma forma a disc pelo romance que relat Dublin em dezoito capitulos, cada listica diferente. Esses ilustres precedentes no anulam o fato de que me agradaria alcancar sempre aquele “estado de disponibilidade” de que vocé fala, *gracas ao qual o vinculo com © mundo poss desenvolver-se nao nos termos da identificagao, mas sim na fi ma da busca"; mas, ao menos no periodo de duracao desse livi “a forma da busca” foi para mim a de uma multiplicidade que, de algum modo can6nico, converge para uma unidade tematica de fundo (ou dela se irradia), Nesse sentido, nao nada de particu: larmente novo: ja em 1947, Raymond Queneau publicava os Exercices de style, nos quais uma historieta de poucas linh: recebe 99 redacées diferentes, Escolhi por situacao romanesca tipica um esquema que eu poderia enunciar assim: uma personagem masculina que narra na 270 APENDICE primeira pessoa se vé assumindo tum papel que ndo é 0 seu, numa situwagdo em que a atragao exercida pela personagem feminina eo ‘peso da obscura ameaca de uma coletividade de inimigos a envol- vem sem dar-Ibe escapatiria, Esse nticleo narrativo bitsico, eu 0 revelei no final do apécrifa das Mil lo protagonista advém do fato de nao ter identidade, focé” em que todo mundo pode identificar o proprio “eu”), Essa € apenas uma das contraintes ou regras do jogo que impus a mim mesmo. Vocé viu que em todo capitulo da moldu- 4 0 tipo de romance que vem a seguir € sempre enunciado pela ‘boca da Leitora. Ademais, cacia um dos “romances” tem um titu- lo que responde também ele a uma necessidade, dado que todos, 08 titulos lidos sucessivamente constituirdo também eles um incipit, Se esse titulo mantiver sempre uma pertin€ncia literal com 0 tema da narracio, todo “romance” resultaré do encontro do titulo com a expectativa da Leitora, conforme formulada por ela no decurso do capitulo precedente. Tudo isso é para dizer- Ihe que, se vocé observar bem, encontrar em vez da “identifica- ‘20 com outros eus” uma grade de percursos obrigatérios que € a verdadeira forca motriz do livro, na linha das aliteragdes que Raymond Roussel propunha como ponto de partida e de chega- da para suas operagdes romanescas Chegamos assim a pergunta nlimero 2: por que exatamente dez romances? A resposta € Obvia, € vocé mesmo a di algumas linhas adiante: “era preciso estabelecer um limite convencio! cu podia ter optado por escrever doze, ou sete, ou sefenta e sete, quanto bastasse para comunicar 0 sentido da mult vocé descarta imediatamente tal resposta: “Calvino identific com demasiada sabedoria as dez possibilidades para nao revelar suas inteng®es totalizantes e sua substancial indisponibilidade para uma partida mais incerta”. 27 ne no s6 ao todos, m encontra resisténci caracteriza como uma espécie de linha ila um dos pontos participa do uma soma e antes infindavel em que, aqueles dez tipos de romance, foi porque me pareciam ter mais significado para mim, porque resultavam melhores, por- que me juamente se apresenta- vam a mim outros tipos de romance que eu poderia acrescentar 4 lista, mas ou nao tinha certeza de sair-me bem, ou no apre- ‘sentavam para mim interesse formal suficientemente forte, ou de algum modo 0 esquema do livro jd estava bastante carregado e ‘eu ndo queria amplii-lo. (Por exemplo, quantas vezes pensei por que 0 eu narrador deve ser sempre um homem? E quanto 40 cariter “feminino” da escritura? Mas existité tlo-somente uma escritura “feminina”? Ou ndo seria possivel imaginar correlatos femininos” para cada exemplo de romance “masculino™?) Digamos entio que em meu livro o possivel nao € 0 pos vel absoluto, mas 0 possivel para mim. E nem sequer todo © pos- 1 para mim; por exemplo: nao me interessava reconsiderar minha autobiografia literdria, refazer tipos de narrativa que eu ja fizera; deviam ser possi que sou € faco, alcangaveis com um salto fora de mim que permanecesse de um salto possivel 272 APENDICE = Tal definicao limitativa de meu trabalho (que antecipel para desmentir as “intengdes totalizantes” que voc€ me atribui) termi naria por dar a ele uma imagem empobrecida se nao consideras- se um impulso em sentido contrario que sempre eu sempre perguntava a mi estava fazendo podia ter sentido para 0s outros. Sobretudo nas se conse; resumos e esquemas, mas jamais logrei quadré-los cem por cento. a1, pedi ao mais sapiente de meus amigos que lesse (entao acabado) como aquilo que poderia ter sido uma busca do “verdadeiro romance” e, ao mesmo tempo, de uma atitude apropria- da em relaglo a0 mundo, onde a cada “romance” iniciado € inter- rompido correspondia um caminho descartado. Por essa Optica, 0 livro representaria (para mim) uma espécie de autobiografia negati- (para mim e para os outros) um ca tenciais que conduzem a outros ‘© amigo sapiente se lembrou do esquema de bindrias que Plato usa no Sofista para definir o pescador de an- zol: a cada vez se exclui uma das a bifurca em outras duas. Bastou pusesse a tragar esquemas que, segundo esse sem contas do itinerario delineado no livro. M qual vocé encontrara, em minhas definig6es dos dez romances, ‘quase sempre as mesmas palavras que voce usou que eu me stodo, prestas- 18 SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO esquema poderia ter circularidade, no sentido de que 0 Ailtimo segmento pode ligar-se ao primeito, Totalizante, entio? Nesse sentido, claro, eu gostaria que o fosse — e que nos enga- nadores zona neutra onde situar essa atitude “descognitiva" em relacio 40 mundo que vocé propde como o tinico nao mistificador, quando declara que “o mundo nao pode ser testemunhado (ou afirmado); pode apenas permanecer desconhecido, desli todo tipo de tutela, individual ou coletiva, e ser res irredutibilidade”. 274 ominimo a buse val 2 anos ‘romance de [oremance ico tranparéncia 2 obscurdade semen | | no home fever [ =H 1 ofimae ‘mundo ‘omindo

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