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Fernando Gabeira responde a

questões sobre a maconha em


livro; leia capítulo
da Folha Online
Muito mais que apenas apresentar os prós e contras acerca da maconha, o livro "A Maconha", da
coleção "Folha Explica" da "Publifolha", procura entender os motivos pelos quais se ataca ou se
defende um hábito disseminado pelo mundo inteiro.
No livro, cujo primeiro capítulo pode ser lido abaixo, Fernando
Gabeira discute também o papel social que a planta desempenhou na escravidão e seu uso em
rituais religiosos na selva amazônica.
Em linhas gerais, o livro responde às perguntas mais frequentes recolhidas por Gabeira nos
debates que participou em torno da elaboração da política nacional de drogas. "As pessoas
querem saber, por exemplo, se a maconha é uma escada para outras drogas, se provoca
dependência física e psíquica, se causa perda de neurônios e da memória, e se tem poder
medicinal", diz Gabeira.
Pessoalmente, Gabeira defende a legalização da maconha e seu uso industrial mais amplo
possível. "São 350 subprodutos derivados da canabis", diz. A atual política nacional de drogas não
separa a maconha de outras drogas. Pela lei, o usuário não é preso, mas arca com penas
alternativas e multas.
Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em
um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem
informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das
circunstâncias do país.
*
Leia o primeiro capítulo de "Folha Explica - A Maconha":
Dizer "maconha" é espalhar um rastro de discórdia. Há quem afirme que ela destrói o cérebro e
conduz ao crime. Há quem, como o escritor Carl Sagan, a considere maravilhosa. Há os que
duvidam, os que ignoram, os que pesquisam e chegam a resultados frontalmente antagônicos.
Nos primeiros meses de 2000, cientistas da Califórnia chegaram à conclusão de que maconha dá
câncer e cientistas ingleses concluíram que maconha cura câncer.1
Enterrada num velho túmulo chinês, em forma de sementes na tanga dos escravos negros ou de
tecido no corpo de uma garota egípcia, a maconha aparece em toda parte, mas ainda assim não
há acordo sobre ela. Há quem ache que surgiu há 8 mil anos; a revista espanhola Cañamo 2
garante que foi há 5 mil. Talvez não seja possível definir precisamente quando a maconha entrou
na história da humanidade; mas pode-se acreditar que tenha surgido há muitos séculos, embora
reconhecendo que em 3 mil anos de imprecisão fumam-se milhões de baseados.
Em 525 d.C., as autoridades resolveram fazer grandes fogueiras públicas da maconha no Cairo.
Em 1999, autoridades brasileiras queimaram toneladas de maconha diante das câmeras de TV.
Isso dá idéia de como é antiga esta ambivalência diante de uma planta: uns querendo destruí-la,
outros querendo cultivá-la. Do ponto de vista da maconha, a humanidade deve parecer muito
louca.
Se a Cannabis sativa fosse uma família, teria dois filhos. São irmãos de sangue, com a diferença
de que num deles os exames detectam níveis mais altos de THC --o tetraidrocanabinol. O
cânhamo, que entra na produção de 20 mil produtos importantes para a humanidade, tem um
nível de THC inferior a 3%. A partir daí, entra em cena sua irmã, a maconha, que produz
toneladas de bons e maus sonhos, com um teor de THC em torno de 6%. Na maioria dos países, a
plantação de cânhamo e de maconha é igualmente proibida, um irmão pagando pelo outro, o
cordeiro pelo lobo.
Pensar que é ilegal plantar cânhamo nos Estados Unidos e que a Constituição dos Estados Unidos
foi escrita em papel de cânhamo ajuda pelo menos a entender as grandes fogueiras que se fazem
periodicamente para destruir a cannnabis. Já foi assim com os livros, com a diferença de que
naquela época se queria matar a cultura e na nossa querem matar uma planta --sem perceber
que se trata, também, de uma cultura, e não só de uma espécie vegetal que se possa levar à
extinção.
Nem sempre cânhamo e maconha foram proibidos numa mesma época. No princípio do século 20,
famílias norte-americanas se dedicavam à cultura do cânhamo; ainda encontramos cortinas de
cânhamo no Nordeste brasileiro, e há referência de uma colônia agrícola no Rio do Grande Sul
dedicada à sua produção.3
O cânhamo foi pego nessa fábula do lobo e do cordeiro quase no meio do século, a partir da
década de 30. Dois fatores econômicos e sociais devem ser levados em conta para essa inflexão
histórica. De um lado, a crise econômica; de outro, a presença crescente de imigrantes mexicanos
nos EUA, o que ofereceu ao magnata da imprensa William Randolph Hearst a chance de
estabelecer uma relação entre os perigos da alteração da consciência e os do excesso de mão-de-
obra. Foi ele quem cunhou a palavra marijuana, associando o medo de uma droga ao medo dos
imigrantes que cruzavam a fronteira.
Como sugere Jack Herer, no clássico The Emperor Wears No Clothes, 4 essa campanha contra a
maconha pode ser vista de outro ângulo: o da guerra da indústria química e petrolífera contra o
cânhamo. De fato, essa tese se fortalece com o exemplo de Henry Ford, que construiu um carro
de fibra de cânhamo e iria movê-lo com combustível tirado da semente do próprio cânhamo. Era
compreensível o embaraço que significava a existência de um versátil recurso renovável, quando
se preparava a arrancada do petróleo como um produto estratégico para a humanidade.
O avanço da maconha sobre a juventude dos anos 60 teve peso na determinação de mantê-la
proibida, mas também de impedir que o cânhamo saísse da marginalidade econômica a que foi
relegado. Esse período marca uma espécie de encontro da maconha com a classe média, e
observa-se uma mudança pendular naqueles que a atacavam. Antes dos 60, os ataques
concentravam-se na influência da maconha entre os pobres e negros, abrindo-se com isso uma
linha de pesquisa sobre o elo entre consumo e criminalidade. Uma linha bastante previsível, uma
vez que não era difícil encontrar vestígios do consumo de droga entre os pobres, que além disso
estavam desempregados e viviam uma atmosfera de desagregação familiar --enfim, um conjunto
de variáveis que persiste até hoje, em muitos pontos do planeta.
A ascensão social da maconha implicou numa guinada, pois era descrita como uma droga que
impulsiona o crime e agora se tornava um fator de apatia e desmotivação. Grandes dirigentes
mundiais, como Bill Clinton (que "não tragou") e Fernando Henrique (que não gostou),
confessaram ter experimentado a planta. As atenuantes que apresentam servem para mostrar
como se toleram os excessos de uma época, desde que desvencilhados deles para cumprir as
funções sociais.
As teses de que a maconha contribui para desmotivar as pessoas foram contestadas por
pesquisas. Mais uma vez, observando pessoas num contexto cheio de variáveis complexas, chega-
se a conclusões opostas. O Grande Livro da Cannabis, de Rowan Robinson,5 cita um trabalho feito
na Jamaica, demonstrando que filhos de mães que fumam maconha têm um desempenho melhor
em dez das 14 características definidas na pesquisa, tais como vivacidade, robustez e orientação.
Num livro de defesa da maconha, Marijuana not Guilty as Charged6, David R. Ford cita o caso de
um jovem trabalhador que era extremamente produtivo e deixou de sê-lo quando parou de fumar.
Não confiar cegamente em pesquisas vale tanto para as que são contra quanto para as que são a
favor. Resta a observação pessoal como um ponto de referência. Os efeitos mais comuns
--relaxamento, alteração do humor, redução da agressividade-- nos autorizam a afirmar que a
maconha leva a um estado contemplativo. Independentemente da presença de espiritualidade, é
uma experiência humana para muitos indispensável.
Há gente, no entanto, que fuma o mesmo baseado diante do mesmo pôr-do-sol e reclama que
nada de novo acontece. A maconha em si não é a resposta para isso. Ela tem de ser procurada no
cotidiano da pessoa, em como enfrenta seus desafios, como capitula ou avança em suas decisões
íntimas.
É compreensível que se tome a maconha como um sujeito com responsabilidade própria, capaz de
ser julgado por seus atos ou contra quem devemos fazer uma guerra. A maconha tem mil e uma
utilidades. A milésima primeira é, precisamente, servir de bode expiatório para nossas dificuldades
de encarar o real.
Essa busca de estabelecer a linha divisória entre a maconha e as pessoas, tentando evitar que
uma substitua as outras, tornou-se mais desafiadora a partir de 1992. Nesse ano, o cientista
William Davane identificou um neurotransmissor com as características dos canabinóides,
produzido pelo cérebro e dotado de efeitos idênticos aos do THC. Rigorosamente, se reduzimos a
maconha ao seu efeito psicoativo, como fazem os seus adversários, pode-se afirmar que todos
têm um pouco de maconha na cabeça, independentemente de fumarem ou não. 7
A escolha do nome do neurotransmissor descoberto por Davane pode nos levar mais longe:
anandamite, da palavra em sânscrito ananda, que significa êxtase. Já se pode dizer que existe
uma concentração de receptores de canabinóides nas áreas do cérebro dedicadas a certos
processos mentais, como memória, cognição e criatividade.
Uma descoberta desse tipo pode ser integrada aos estudos sobre maconha e espiritualidade, uma
vez que a relação entre plantas e consciência religiosa é tão profunda que alguns autores radicais
afirmam que sem plantas alucinógenas não teria emergido o sentimento místico.
É razoável admitir que os seres humanos tenham escolhido o segredo das plantas como uma das
maneiras auxiliares de explorar o mistério divino. Elas vivem enraizadas na terra e se alimentam
dos céus. Obras que traçam a história da planta, como o Grande Livro da Cannabis, 8 já
mencionado, localizam a presença da maconha nas principais religiões antigas, ora utilizada
secretamente por sacerdotes que temem sua difusão entre as massas, ora como um instrumento
ao alcance de todos os seguidores.
As referências mais antigas da relação entre maconha e religião se encontram na Índia. Na
religião hindu, a maconha está associada a Shiva, a mais paradoxal e completa figura de trindade.
Shiva teria brigado com a família e estaria vagando nos campos quando, para buscar abrigo do
sol, parou sob uma planta de cannabis, esmagou suas folhas e comeu. Um documento colonial
inglês sobre a maconha na Índia (Relatório da Comissão Indiana Para Drogas do Cânhamo) 9
afirma que a crença hindu era de que aquele que bebe bangue (o nome da cannabis) bebe Shiva.
"A alma em que o espírito do bangue encontra morada desliza para um oceano do Ser, livre do
extenuante círculo de matéria em que se cegou."
O mesmo documento, um apêndice do relatório escrito por J.M. Campbell, adverte os
colonizadores: "Proibir ou mesmo restringir seriamente o uso de uma erva tão benigna quanto o
cânhamo causaria sofrimento e irritação generalizados e, para amplos grupos de ascetas
venerandos, uma cólera profundamente arraigada. Seria roubar do povo um consolo no
desconforto, uma cura na doença, um guardião cuja compassiva proteção os livra de ataques de
influências malignas e cujo grande poder faz do devoto um vitorioso, superando os demônios da
fome e da sede, do pânico, do medo, do feitiço de Maia ou da matéria e da loucura, capaz de
meditar em paz no Eterno, até que o Eterno, possuindo-o corpo e alma, o liberte da obsessão do
eu e o receba no oceano do Ser".
Essas crenças o devoto maometano partilha plenamente. Como seu irmão hindu, o faquir
muçulmano reverencia o bangue como aquele que prolonga a vida, que liberta das cadeias do eu.
O bangue traz a união com o Espírito Divino. Tomamos bangue, e o mistério "Eu sou Ele" fica
claro. "Tão grande resultado, tão minúsculo pecado."
Para quem não se interessa por termos como espírito divino, oceano do Ser, feitiço de Maia e
outras expressões da religião oriental, abre-se um outro caminho fascinante: o de comparar Shiva
e a cannabis e constatar que, às vezes, parecem feitos um para o outro. Wendy Doniger escreveu
um longo ensaio mostrando que se tratava de uma divindade ao mesmo tempo erótica e ascética,
combinando duas pulsões essenciais e antagônicas no ser humano.10 As inúmeras versões do
mito de Shiva servem para confirmar sua imprevisibilidade. Em quase todas as imagens que
aparece, está com o pênis ereto. Alguns de seus seguidores vêem nisso um sintoma de pureza,
pois a ereção indica que ele não verteu seu sêmen sagrado. Em certos momentos, entretanto,
aparece dizendo que busca uma parceira que se entregue à meditação, como um grande mestre,
mas que seja amante lasciva na cama do casal.
Essa ambivalência divina parece ter sido transmitida à maconha. Ela é acusada por seus
adversários de reduzir a performance sexual e por seus defensores de ser uma erva afrodisíaca.
Qualquer cientista sensato trabalharia a hipótese de que a maconha é inócua, logo pode ser
considerada ora afrodisíaca, ora redutora, dependendo da vontade do observador.
Há, no entanto, um certo consenso de que a maconha retarda o orgasmo, e nesse ponto ela se
mostra digna de sua associação mítica com Shiva. Muitos religiosos que seguem a linha kundalini
da ioga, utilizando ou não a cannabis, transformam o sexo numa relação ritual e longa, que às
vezes dura todo um dia. Alguns pura e simplesmente retardam o orgasmo por horas. Outros
negam o orgasmo como objetivo final e o substituem por uma sensação de unidade com o outro.
Em ambos os casos, podemos imaginar Shiva com seu pênis ereto e lembrar a ambivalência da
cultura hindu, para a qual a ereção simboliza também a castidade.
O objetivo deste livro é apresentar os debates mundiais, conclusivos ou não, sobre a cannabis,
respondendo às principais perguntas surgidas nas dezenas de encontros realizados para tratar do
tema em universidades e escolas secundárias do Brasil. No primeiro capítulo, mostra-se como a
maconha inspirou inúmeros mitos, alguns deles em contradição com os dados apresentados pela
experiência científica. No segundo, tenta-se apresentar um histórico da visão brasileira sobre a
maconha, sua chegada ao país e seu uso entre os setores populares do Nordeste. Num terceiro
momento, busca-se situar a discussão política, procurando mostrar o que há de comum e singular
na experiência dos grupos que lutam pela reforma da legislação proibitiva da cannabis.
Finalmente, um esforço mais árduo ainda, o de tentar descrever o efeito psíquico da maconha,
através de fragmentos de escritores e registros de cientistas e pesquisadores.
1 "Maconha Pode Combater Câncer no Cérebro". O Globo, 29 fev. 2000.
2 Gaspar Fraga, Cañamo Especial 2000 - www.canamo.net
3 "Escravos Plantavam Maconha no RS em 1788". Zero Hora, 23 jun. 1996.
4 Jack Herer, The Emperor Wears No Clothes. San Francisco: Hemp Publishing, 1993.
5 Rowan Robinson, O Grande Livro da Cannabis. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
6 David R. Ford, Marijuana not Guilty as Charged. San Francisco: Good Press, 1997; p. 119.
7 Robinson, op. cit., p. 47.
8 Idem.
9 Idem, p. 55.
10 Wendy Doniger, Asceticism and Eroticism in the Mythology of Siva. London: Oxford University
Press, 1981.
"A Maconha"
Autor: Fernando Gabeira

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