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ACÇÃO POLÍTICA E TIC: ENTRE CONTEXTO E AGÊNCIA

Pedro Pereira Neto

Objecto multifacetado dada, por um lado, a sua totalidade (MAUSS, 1968),


e por outro lado, a fluidez dos sistemas sociais e políticos em que surgem, se
desenvolvem e se movimentam, a acção de natureza política em contextos
sociais presta-se a várias abordagens, suportadas por diversas heranças de
pensamento e método provenientes de diversos espaços científicos e agendas
de pesquisa, consoante a dimensão que pretenda salientar-se e o conjunto de
questões cujas respostas se almeje.
Sem prejuízo da oposição que moveu e alimentou esta multiplicidade de
abordagens, elas não deixam de apresentar nuances analíticas cuja
compatibilização me parece, apesar de tudo, não apenas possível mas
proveitosa. Neste sentido, parece-me razoável o recurso a uma dupla hélice
teórica – de inspiração extraída da Genética, em virtude quer dos inúmeros
pontos de contacto histórico que apresentam – cuja complementaridade aqui
se propõe face à forma como as forças de alguns dos paradigmas permitem
ultrapassar as fraquezas de outros.

Diversidade teórica e complementaridade analítica: modelos de


articulação entre actores

Ao nível do contexto de articulação social e política entre actores,


emergem diversos paradigmas de que destaco quatro:

1. um que privilegia uma visão positiva da actuação dos actores económicos


e de representação de cunho político integrados no aparelho estatal
(corporativista). Especificação conceptual do modelo da racionalidade
limitada, o paradigma corporativista aborda uma modalidade particular
de exercício de influência sobre processos de tomada de decisão pública
que, concebido como reacção ao paradigma pluralista, se lhe opõe em
quatro aspectos: a) sublinha uma forte concentração e complexificação
da representação de interesses, em contraponto à descentralização e
dispersão defendida pelo pluralismo; b) observa a existência de actores
cuja agenda se centra em interesses de base estrita e comum,
frequentemente profissional ou económica, ao passo que no contexto
pluralista se dilui a sua base social; c) considera os actores como
manifestações legítimas e naturais de sectores organizados do sistema
social e político, razão pela qual não é atribuída à sua acção qualquer
natureza ameaçadora da representação partidária, cujo estatuto aliás
mantém; e d) admitindo a institucionalização dos actores no processo
decisório democrático, apresenta um quadro de relações fortemente
institucionalizadas com o Estado, com reconhecimento por parte deste,
quer no âmbito da atribuição de exclusividade na representação dos seus
interesses, quer no âmbito da aplicação de políticas públicas através de
subvenções e de delegação de poderes (SCHMITTER, 1975; BAUDOUIN,
1998: 280-282).

2. um cuja visão positiva considera a interacção livre dos grupos de interesses


no sistema como factor de produção de equilíbrio sistémico (pluralismo
liberal). Legado do pensamento liberal de Madison, o paradigma pluralista
possui na sua base uma representação positiva da acção que, rejeitando o
formalismo das abordagens legalistas, se joga em três dimensões. Em
primeiro lugar, a multiplicidade dos actores em número e interesses
representados constitui factor de equilíbrio do sistema político pois acarreta
um processo contínuo de produção de consensos que, dispersando o
poder e bloqueando por essa razão a instituição de monopólios, assegura a
perpetuação do carácter democrático do sistema. Mesmo no cenário da
manifestação de maior pro-actividade por parte de um grupo, Madison
defendia que o carácter dinâmico do sistema político compreendia
mecanismos de homeostase, que se traduziriam numa reacção dos grupos
rivais no sentido do reequilíbrio da balança de Poder. Em segundo lugar,
esta perspectiva considera que uma multiplicidade de actores modifica a
imagem da Política, de um exercício de autoridade para um exercício de
arbitragem e mediação, na medida em que representam uma forma de
inclusão da representação de interesses bottom-up no sistema político, à
qual as instituições do Estado têm apenas de filtrar e de adequar aos
interesses maiores da sociedade. Finalmente, em terceiro lugar, constitui um
factor de promoção da coesão social enquanto esfera de socialização, na
medida em que criam uma multiplicidade de cenários nos quais não
apenas podem jogar-se os diferentes selves de cada indivíduo,
contribuindo para a sua integração mas também o acesso a experiências
e competências que capacitam os cidadãos para o exercício cívico.
Contudo, este paradigma enfermava de insuficiências, as quais são
responsáveis por maiores malefícios que benefícios, ao ponto de acentuar
as desigualdades cuja matriz pretendia corrigir, a maior das quais se prende
com o facto de subestimar o papel decisivo desempenhado pela
desigualdade de recursos, a qual torna muitas vezes um contexto
teoricamente igualitário de procura de consensos num exercício de
desigual influência (KEY, 1964: 150; DELLA PORTA, 2003: 114-122).

3. um para o qual os grupos constituem estruturas orientadas para a


privatização de benefícios a partir da captação de vantagens
governamentais negociadas com órgãos públicos num mercado político
(neo-pluralismo). Em reacção ao corporativismo, o neo-pluralismo
preconiza um foco da análise política nas acções ao invés de concentrar-
se em ideais e crenças, enfatizando o real funcionamento do sistema
político em detrimento de qualquer juízo sobre a forma como devia
funcionar – abandonando assim o estruturalismo inicial em favor de uma
ênfase em aspectos funcionais do sistema. Emergindo de uma associação
de intelectuais essencialmente economistas, esta revisão do paradigma
pluralista mantém a tradição de Madison mas analisando a questão sob o
prisma pessimista no âmbito das dinâmicas de decisão colectiva,
reconhecendo que da institucionalização progressiva das relações
interesses-Governo resulta não apenas a exclusão de alguns dos interesses –
e como corolário do anterior, a ausência de um pluralismo absoluto – mas
também que os o contrabalanço de poderes não é suficientes para o
restabelecimento do equilíbrio do sistema político. Extravasando para a
sociedade uma visão que perspectiva a acção dos agentes económicos
enquanto orientada para a obtenção de vantagens no sector público em
virtude do insucesso da sua competitividade no mercado, este paradigma
aproxima-se do posicionamento do corporativismo inicial no sentido em
que reconhece a existência de um mercado político com dinâmicas de
oferta e procura, no qual se jogam pretensões legislativas com
contrapartidas ao nível de promessas, acordos, contribuições para as
campanhas eleitorais, e votos, expondo desta forma a vulnerabilidade não
apenas dos legisladores mas igualmente da classe politica como um todo,
e do próprio sistema político. Nesse sentido, a acção questiona os alicerces
dos princípios democráticos da soberania popular e distribuição equitativa
do Poder, vulnerabilizando a concepção de pretenso equilíbrio defendida
pelo pluralismo liberal original (GUERRA, 2006).

4. um para o qual a existência dos grupos de interesse é não apenas legítima


e consequência natural da complexificação social, mas igualmente uma
necessidade sistémica traduzida na sua participação em processos de
decisão específicos e na implementação de políticas (neo-corporativismo).
No entanto, o paradigma neocorporativista enferma igualmente de
algumas limitações próprias. A primeira prende-se com o fechamento da
sua análise sobre processos de tomada de decisão de políticas públicas
centrados num reduzido número de agentes políticos, com efeitos de
natureza ambígua ao nível da conflitualidade social, sobre-representando
os interesses mais integrados, e excluindo os de menor estruturação. Em
segundo lugar, o facto de que muitos destes processos de decisão são
agora objecto de uma concertação política internacional reduz
sobremaneira o espaço de decisão dos actores corporativos nacionais,
reduzindo parte da aplicabilidade deste paradigma ao sistema político
nacional (OFFERLÉ, 1994: 17-19; BAUDOUIN, 1998: 282/283).
Diversidade teórica e complementaridade analítica: os processos
subjacentes à acção

A hélice dos processos subjacentes à acção compreender, por seu turno,


diversos posicionamentos teorico-analíticos, dos quais devem ser destacados
quatro:

1. aquele centrado nos mecanismos de integração e propagação da acção


(Teorias do Comportamento Colectivo). Ancoradas na Escola de Chicago,
particularmente nas categorias conceptuais de Park, as chamadas teorias
do comportamento colectivo pensam a ordem social como estável,
suportada por normas que uniformizam as condutas. Compatibilizando uma
concepção eminentemente funcionalista da sociedade com uma
abordagem micro-sociológica, o comportamento colectivo constitui um
fenómeno não-institucional, desviante, resposta irracional de multidões
dinamizadas por uma lógica de contágio ou imitação à qual subjaz a
atomização social e a alienação do indivíduo daí resultante. Em
desenvolvimentos posteriores, em trabalhos como os de Tarde, este
paradigma procura incluir o papel desempenhado pela Cultura e pela
identidade colectiva nos processos de mobilização – plano no qual a
influência de Blumer é decisiva – tentando a abordagem dos
determinantes estruturais da acção colectiva e o estabelecimento de uma
continuidade entre o comportamento colectivo e as instituições. Contudo,
mesmo esta revisão paradigmática não permitiu fazer face à sua principal
limitação: a deslegitimação da acção fora das instâncias de participação
democrática mais cristalizadas (FILLIEULE, PÉCHU, 1993; BOUCHER, 2002).

2. aquele centrado na racionalidade individual dos actores perante os fins


cujo alcance se propõem (Teoria da Mobilização de Recursos).
Desenvolvidas sobretudo a partir da Universidade de Michigan nos anos 50
e 60, as teorias da mobilização de recursos baseiam-se num entendimento
do conflito entre uma multiplicidade de interesses enquanto processo
intrínseco do sistema, em substituição de uma concepção do sistema social
e político baseada na manutenção homeostática de equilíbrios, defendida
pelo paradigma anterior. Recorrendo a uma perspectiva utilitarista,
observam as formas de emergência da acção – o “como” – e não tanto as
suas motivações ou modos de construção da sua identidade – o “porquê”
– a partir do conceito de racionalidade limitada dos indivíduos nos quais
agregam os seus interesses, ou seja, uma acção racional decorrente quer
do conhecimento incompleto do sistema social em que se movimentam e
que não controlam, quer do desconhecimento da totalidade dos efeitos
da sua acção. Nesse sentido, considerando a acção uma prática racional
e organizada de prossecução de objectivos, importa enfatizar as suas
dinâmicas de mobilização e modus operandi (EPSTEIN, 1991: 231). Três
ramos teóricos distintos foram enunciados no seio deste paradigma. A
teoria dos jogos, de Von Neuman (1944), preconizando a observação das
condições de cooperação e conflito por trás das escolhas estratégicas que
se apresentam aos actores em contextos sociais com racionalidades
específicas, centra-se interacções que envolvem essencialmente dois
actores, situação cuja aplicabilidade em sociedades fragmentadas se
torna delicada. Paralelamente, centrando-se na racionalidade individual e
na defesa de interesses individuais, deixa de parte a acção com vista à
promoção e defesa de interesses colectivos. A abordagem da lógica da
acção colectiva (1965), de Olson, evidencia o mecanismo de benefício
sem o esforço do envolvimento directo por parte dos actores sociais
designados free-riders. Oberschall (1973) tenta solucionar este problema
identificando tipologias de comportamento e de integração/isolamento
social a partir de uma cartografia das relações estabelecidas entre as
comunidades e as instâncias de poder; e Inglehart (1977) salientou, neste
particular, a mutação nas predisposições dos indivíduos para a acção em
função da satisfação das suas necessidades materiais, em paralelo com
uma consciência orientada para valores de natureza subjectiva e pós-
materialista. A abordagem da acção estratégica de Crozier e Friedberg
(1977), centra-se na análise das condições e, sobretudo dos
constrangimentos a que a acção se encontra sujeita, cabendo a Friedberg
(1995) o alargamento destas noções do seu território original de aplicação
– as organizações – a todo o sistema social, definindo desse modo o sistema
social como contexto de acção sujeito a regras e mecanismos de
regulação dinâmicos e fluidos, produto contingente dos processos de
interacção e de negociação que nele se desenrolam, estabelecendo uma
interdependência entre actor e sistema que estrutura ambos.
Intrinsecamente ligada a este posicionamento encontra-se uma noção
relacional de Poder, desigualmente distribuído mas permitindo ainda assim
o exercício de influência recíproca e em constante redefinição.

3. Aquele centrado na recusa de uma ordem social e ideológica a partir da


promoção de valores e lógicas alternativas (Teoria dos Novos Movimentos
Sociais). Partindo das teses de Bell sobre os valores pós-industriais e das teses
de Inglehart sobre os pós-materialistas, os autores inscritos subscritores da
teoria dos novos movimentos sociais recusam a natureza funcionalista
subjacente à teoria da mobilização de recursos enquanto ordem de
dominação sem saída, criticando a subvalorização que professam da
dimensão política da acção decorrente do seu foco na racionalidade
individual, e defendendo a análise da formação de solidariedades e
identidades a partir de um foco no sujeito como actor central num
contexto de relações sociais em condições de desigualdade, afastando-se
de forças externas à sociedade. Afirmando que a sociedade não é
estruturada por forças super-estruturais externas ou pela justaposição de
lógicas individuais, mas pelas próprias relações e sistemas de acção
estabelecidos entre os actores enquanto produção de historicidade e da
orientação cultural pela qual ela é balizada, centra-se no processo de
mudança social a partir da experiência de acção em conjunto e na
articulação das relações sociais, ao invés de identificar princípios ou valores
abstractos. Nesse sentido, centra-se na dimensão cultural dos processos
sociais, isto é, na compreensão das dinâmicas sociais enquanto fenómenos
de transformação cultural e de produção de historicidade, razão pela qual,
segundo os seus proponentes, este paradigma se encontra mais adaptado
à fragmentação e complexificação sociais, permitindo analisar as novas
formas de dominação que delas resultam. Estas condutas assinalariam,
pois, uma transformação social estrutural na medida em que estes conflitos
se jogam igualmente ao nível do controlo dos recursos sociais, pelo que as
primeiras não podem ser deterministica e exclusivamente atribuída a
factores estruturais ou culturais, nem reduzidas a uma resposta a
circunstâncias conjunturais históricas: constitui, antes, o objecto de análise
da mudança social por excelência. Por outro lado, a acção só é possível
no sentido em que os actores são capazes de definir a si mesmos, ao
campo onde pretendem agir, aos fins a que se propõem e os meios a
articular para atingir esses fins, de uma forma relacional (TOURAINE, 1985;
DIANI, EYERMAN, 1992: 7; FILLEULE, PÉCHU, 1993: 145-146; MELUCCI, 1995:
112; MELUCCI, 1996: 39; GUERRA, 2006: 74-75).

4. aquele centrado na concepção de novas referências identitárias a partir


de novas representações da realidade (Teorias do Enquadramento).
Apoiando-se numa reconfiguração das categorias conceptuais da Escola
de Chicago, particularmente no trabalho de Goffman, a teoria do
enquadramento da acção, de inspiração construtivista, centra-se na
interacção enquanto contexto de construção das representações que
enquadram o pensamento dos actores sociais e políticos. Posicionando-se
criticamente face à teoria da mobilização de recursos, em especial ao
nível do seu alheamento analítico face à dimensão das motivações para o
envolvimento dos indivíduos na acção, critica igualmente a teoria dos
novos movimentos sociais pela forma como o seu foco na dimensão
política da acção colectiva tenta discernir nesta um potencial
emancipatório face a um sistema social e político no qual, demonstra a
História, vem a integrar-se. A acção é, para este paradigma, o território de
produção e definição contínua e estratégica de matrizes de significados,
num sentido não-transcendente, as quais interpretam problemas e
situações, e sugerem soluções. Estas representações encontram-se,
portanto, ancoradas em valores que resultam da interacção entre os
actores, orientando a sua acção, e não em quaisquer princípios existentes
a priori, designadamente ideológicos. No entanto, estes quadros de
referência assumem-se como recursos simbólicos, aproximando este
paradigma da teoria da mobilização de recursos. Paralelamente, ao
circunscrever o seu foco à interacção enquanto contexto, este paradigma
incorre numa subvalorização da dimensão organizacional da acção
colectiva (ZALD, 1996: 265; CEFAI, TROM, 2001; SNOW, 2002: 28).

5. aquele centrado nas novas práticas de participação representação


política em espaços não habitualmente considerados no âmbito da análise
do Poder (Teorias da Crise/Aprofundamento da Democracia). Para a
teoria da crise e aprofundamento da Democracia a crescente
mundialização da Economia traduz-se numa dinâmica de transformação
das funções sociais e políticas do Estado, reduzindo a amplitude da sua
intervenção enquanto agente regulador e contribuindo para a dispersão
do Poder, tornando-o polimórfico e, muitas vezes invisível. A par da perda
de protagonismo de algumas das meta-narrativas de referência, ocorre
uma pulverização dos interesses em jogo, aumentando os tabuleiros nos
quais se jogam os papéis e identidades dos actores sociais. Com esta
fragmentação assiste-se igualmente a uma multiplicação e
complexificação dos problemas sociais aos quais importa dar resposta,
esforço para o qual o desempenho de Estado nem sempre é eficaz,
colocando em causa o próprio contrato social e questionando o figurino
da Democracia enquanto sistema. Daqui resultam indefinições e ajustes
nos formatos de participação/intervenção política, bem como das formas
de associação e representação desses interesses, obrigando a encontrar
novas respostas e novos parceiros com experiências e lógicas de acção
diferentes, acarretando o envolvimento, em formatos diversos, de alguns
desses actores sociais fragmentados, quer pertencentes aos sectores já
integrados no sistema, quer de entre os que questionam alguns dos
fundamentos desse sistema. Neste sentido, o paradigma da
crise/aprofundamento da Democracia questiona, em primeiro lugar, a
ideia de défice democrático, considerando ser mais sensato perspectivá-la
precisando a vertente a que essa crise deve, com efeito, ser apontada. Na
realidade, defende a existência de um défice de apetência dos cidadãos
pelos mecanismos tradicionalmente consagrados para a forma mais
ortodoxa de participação política, aliado a um desencanto pela função
de representação política tradicional, que se traduz no aumento da
abstenção nos actos eleitorais e no alheamento dos cidadãos face à
política em geral, entre outros. A análise desenvolvida por este paradigma
recentra-se, então, no exercício de Poder subjacente às relações sociais,
visão que pressupõe uma abordagem repolitizante das práticas concretas
dos actores, ampliando o campo do político para lá do voto e da
Democracia representativa a que a teoria liberal o havia reduzindo. Por
esta razão a acção é considerada a manifestação de anseios e objectivos
que a representação política tradicional inscrita no sistema social existente
não satisfaz. Promovendo o conceito de Cidadania participativa fundado
na pertença a uma comunidade e na inter-subjectividade das relações
entre actores com vista a uma coordenação consensual de espaços,
papéis e comportamentos, em detrimento de um conceito de Identidade
baseado numa separação ontológica actor/sistema e conotado com uma
filosofia do sujeito que o reduz a acção a uma dimensão utilitarista racional
(Weber) e o priva de uma dialéctica de reconhecimento (Rawls), este
paradigma defende um enraizamento espacial da acção que permite
acomodar a ideia hegeliana de vida em conjunto num contexto específico
e historicamente enquadrado de referências múltiplas, responsável pela
redefinição contínua da experiência dos actores e, a partir dela, das suas
práticas individuais e (sobretudo) colectivas (HABERMAS, 1987: 60; SANTOS,
1992; LUHMANN, 1993; FITOUSSI, ROSANVALLON, 1997; MELUCCI, 2000: 159;
NORRIS, 2001: 4).

Aplicações: a acção política enquanto fenómeno dinâmico multiforme

Dada a tendência das sociedades contemporâneas para a


complexificação das estruturas dos actores políticos e das suas agendas, com
implicações ao nível do alargamento dos campos de luta política, a acção não
deve ser abordada a partir de uma base classista ou de qualquer meta-narrativa.
É, aliás, por essa razão que as análises da participação política efectuadas com
recurso a perspectivas tradicionais – militância político-partidária, dinamismo dos
sindicatos, e resultados eleitorais – subvalorizam a intensidade das práticas
políticas dos cidadãos, relativizando as transformações nelas ocorridas e
ocultando a representatividade de novas formas de mediação política (EPSTEIN,
1991: 247-248; NORRIS, 2001: 2).
O sistema social é atravessado por desigualdades estruturais que,
encontrando-se inscritas neste, estruturam e condicionam a acção de todos os
que nela se movem: contudo, a existência desse condicionamento não acarreta
o desaparecimento ou o insucesso necessário de qualquer dinâmica de
superação dessas desigualdades. Não é possível compreender a acção
enquanto fenómeno estático, inscrito de forma estéril numa estrutura imutável de
constrangimentos políticos: ela constitui, na realidade, um fenómeno dinâmico
que, em contextos que definem limites mas também oportunidades, se
desenvolve através de processos dialécticos de redefinição constante não
apenas de si própria mas também do meio em que se movimenta, aproveitando
mas igualmente criando oportunidades para a acção política (JENKINS,
KLANDERMANS, 1995: 7; GAMSON, MEYER, in MCADAM, 1996: 35; TARROW, 1996:
58-61).
Este processo de redefinição constante traduz-se, em primeiro lugar, numa
interpretação da realidade dos problemas aos quais se propõem apresentar – e
muitas vezes aplicar – soluções, enquadrada por um campo de possibilidades e
limites por eles (re)construído continuamente. Mas esta reconstrução simbólica da
realidade é impulsionada não apenas pela partilha de uma matriz de valores e
identidades enquanto recurso simbólico, sujeita a ancoragens sociais e à fluidez
daí resultante, mas também pela partilha de recursos de natureza material e
instrumental, entre os quais se estabelece igualmente uma relação dialéctica
contingente, podendo uma organização aumentar as suas oportunidades
políticas expandido o seu repertório de acção, nomeadamente integrando
novas práticas e tecnologias (MCADAM, MCCARTHY, ZALD, 1996: 8/9; MELUCCI,
1996: 40; TARROW, 1996: 58).
Assiste-se desde os anos 80 a um processo de adaptação de repertórios de
acção, designadamente a substituição progressiva de discursos de mudança
social e de estratégias mais conflituais por retóricas de modernização e práticas
de lobbying político mais consentâneas com as normas de participação no
sistema político, de forma a garantir o reconhecimento por parte dos actores
políticos institucionalizados. Actualmente, a acção reveste-se de uma natureza
multiforme, exercendo-se agora ora directa, oculta e discretamente sobre o
Poder, diligenciando junto do Governo, dos altos funcionários, e dos
parlamentares, com repertórios de persuasão mediante o fornecimento de
informação com vista ao enriquecimento do processo decisório, ora indirecta,
aberta e declaradamente, por intervenção junto do público, cuja atitude
influencia por sua vez o Poder (MEYNAUD, 1960; DUVERGER, 1964: 169).
Neste processo de alteração do status quo a instrumentalização de
informação desempenha um papel central, razão pela qual as formas de acção
política se têm tornado cada vez mais diversificadas e os repertórios menos
convencionais de acção cada vez mais populares (CROOK, PAKULSKI, WATERS,
1992: 140; CASTELLS, 1997; KUTNER, 2000; PICKERILL, 2001: 145). Para este cenário
contribui não apenas a percepção de que é possível o exercício de influência
sobre o sistema político sem representação política directa no seio desse sistema
mas igualmente a capacidade de adaptação ao novo paradigma tecnológico,
nomeadamente à instrumentalização da Internet (CASTELLS, 1997). Segundo
Norris, as formas de utilização da Internet para fins políticos variam entre pressões
exercidas sobre os políticos eleitos, titulares de cargos públicos e elites políticas,
estabelecimento de redes de contacto e cooperação com outras organizações
com vista à concertação de acções, recrutamento e a mobilização de
simpatizantes, recolha de fundos, e veiculação de uma mensagem para os (e
através dos) Media (2001: 10).
Pode, portanto, dizer-se que os actores sociais devem, para influenciar a
agenda das instâncias com poder de decisão, adoptar estratégias de sedução
dos Media tradicionais e em simultâneo instrumentalizar os Novos Media, como a
Internet – a qual lhes permite contornar os constrangimentos de distância e
tempo – para conduzir o seu protesto até onde ele pode fazer a diferença. É
precisamente esta combinação de modos de acção política jogada em diversos
tabuleiros e com recurso a diferentes interpretações e reconstruções simbólicas e
instrumentais que torna a aplicação da dupla hélice teorico-analítica aqui
proposta tão profícua e de tão útil abrangência.
BIBLIOGRAFIA

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