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A Natureza Humana
do Homo Religiosus
PAULO BARROSO*
Resumo
Através de uma abordagem metodológica centrada na reflexão dialética, o presente artigo
tem como principal objetivo questionar uma suposta essencialidade natural ou cultural da
natureza humana associada às experiências religiosas e ao sagrado. Este tema constitui uma
aporia, pois a religiosidade do ser humano pode ser concebida como fenómeno cultural e
natural, humano e sobre-humano, social e individual. Além da indagação sobre a natura-
lidade ou culturalidade da religião no ser humano, algumas perguntas colocadas no artigo,
designadamente na problematização, visam acirrar o pensamento crítico sobre esta temática
em torno da essencialidade da natureza humana, tais como: a religiosidade é um fenómeno
humano, natural e atemporal ou é social, cultural e temporal? É um fenómeno racional
ou consciente enquanto alimento da esperança? Tendo em conta que a religiosidade está
associada a determinados valores, será racional porque os fins das práticas respondem às
convicções e aos ditos valores e porque o sentido da experiência religiosa está inscrito nas
formas de linguagem e de conduta, bem como nos valores que as motivam?
Palavras-chave : Experiência religiosa, Homo religiosus, natureza humana, religião cultural,
religião natural
Abstract
Through a methodological approach centered on reflection and dialectics, the main purpose
of this article is to inquiry a hypothetical natural or cultural essence of human nature, which
is associated with religious experiences and the sacred. This theme is an aporia, because
the religiosity of the human being can be conceived as a cultural and natural, human and
superhuman, social and individual phenomenon. Besides the questioning about natural
or cultural religion in human beings, some questions placed in the article, namely in the
questioning part, aim to sharpen critical thinking on this subject around the essence of human
nature, such as: Is the religiosity a human, natural and timeless phenomenon, or it is social,
cultural and temporal? Is it a rational or conscious phenomenon to feed hope? Given that
religiosity is associated with certain values, would it be rational because the purpose of the
beliefs and practices satisfy all such values and because the meaning of religious experience
is inscribed in the forms of language and conduct, as well as the values that motivate them?
Keywords : Cultural religion; Homo religiosus, human nature, natural religion, religious
experience
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O
s fenómenos religiosos consistem numa série de crenças e práticas
relativas ao sagrado. Enquanto elemento distinto no mundo, o
sagrado é fonte das experiências religiosas e é, simultaneamente,
uma dimensão transcendente (o sagrado como fenómeno sobrenatural) e
imanente (o sagrado como fenómeno humano). Considerando um certo
determinismo da natureza humana que não permite a opção em ser e estar
no mundo de outra forma, os seres humanos são sensíveis ao sagrado.
Deste modo, a religiosidade caracteriza a própria natureza humana, acom-
panhando universalmente os seres humanos e tomando formas, todavia,
heterogéneas.
Os crentes veneram diversas entidades sagradas, mediante formas de
linguagem verbal (e.g. orações) e não-verbal (e.g. rituais); formas estere-
otipadas na meditação com o sagrado. A diversidade de formas de mani-
festar a religiosidade através das crenças, da linguagem ou das condutas
dificulta uma definição rigorosa de “religião”. Apesar desta diversidade, o
elemento sagrado e as decorrentes referências a este são comuns a todos
os fenómenos religiosos. O conceito de “sagrado” remete necessariamente
para a ocorrência de experiências religiosas, indicando a esfera do divino.
Para qualquer tipo de divino pertence uma esfera peculiar e exclusiva de
uma outra dimensão extraordinária, isto é, superior à profana e que, por
isso, provoca diferentes atitudes e comportamentos coletivos.
A religiosidade é a forma de conceber, entender e viver a religião ou
um dado sentimento religioso nutrido pela crença sobre uma entidade
sobrenatural. Mas a religiosidade é um fenómeno humano, natural e
atemporal ou é social, cultural e temporal? Enquanto alimento da espe-
rança, é um fenómeno racional ou consciente? Tendo em conta que a reli-
giosidade está associada a determinados valores, será racional porque os
fins das práticas respondem às convicções e aos ditos valores e porque o
sentido da experiência religiosa está inscrito nas formas de linguagem e de
conduta, bem como nos valores que as motivam?
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Aquilo que é parte de uma dada cultura também é parte de uma dada
religião vivida que, por conseguinte, determina os padrões e os modos de
viver todo o conjunto de atividades e interesses característicos de um povo.
Desde sempre que o sagrado funciona para as pessoas como um instru-
mento para a compreensão da condição humana ou mundana, ou seja,
para atribuir algum sentido à situação em que o ser humano se encontra
no mundo. No entanto, como admitiu Émile Durkheim, “não existe um
instante radical em que a religião tenha começado a existir”.3
É aceitável que, conforme acrescentou Durkheim,4 os primeiros
sistemas de representações do mundo e da condição humana, que os seres
humanos elaboraram, sejam de origem religiosa. A religião foi encarada
por Durkheim como uma manifestação natural da atividade humana
socialmente partilhada. Segundo esta perspetiva sociológica, Durkheim
descreveu a religião como um eminente facto moral e social, uma relação
estreita e acentuada entre o sistema simbólico de crenças e represen-
tações (a religião) e o sistema social e político de organização coletiva
(a sociedade). A coextensividade entre os dois sistemas emanados desta
relação, o simbólico e o social, tem cabimento num modelo de referência
determinado, como é o caso do catolicismo romano.
A questão da origem da religião, eventualmente uma questão menor,
funde-se na questão mais importante de compreender as experiências
religiosas próprias da natureza humana, na medida em que esta natureza
humana já justifica, de certo modo, a origem religiosa do ser humano, da
cultura e das sociedades humanas. Assim se justifica porque não existe
ser humano, cultura ou sociedade humana sem práticas sociais ou formas
coletivas de prestação de culto. Por conseguinte, Durkheim registou, em
As Formas Elementares da Vida Religiosa, a humanidade presente na
natureza religiosa do ser humano, que é necessariamente religioso, o que
justifica a sua natureza constitutiva.
A questão da origem e natureza da religiosidade no ser humano
remete, obrigatoriamente, para uma análise, discussão e compreensão
3. DURKHEIM, Émile – As Formas Elementares da Vida Religiosa. Oeiras: Celta, 2002, p. 11.
4. Cf. Ibid., p. 12.
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5. OBADIA, Lionel – Antropologia das Religiões. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 30.
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8. Ibid.
9. Ibid.,, p. 31.
10. Cf. DENNETT, Daniel C. – Quebrar o Feitiço: A Religião como Fenómeno Natural.
Lisboa: Esfera do Caos, 2008, p. 91.
11. Ibid., p. 91.
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porque representam algo que é apenas evocado, ou seja, não está presente.
Se outras espécies de animais, além do ser humano, possuem rituais, será
admissível argumentar a religião como fenómeno natural?
Dennett aborda esta polémica questão no seu aludido livro, explo-
rando a possibilidade de a religião ser governada por forças naturais da
evolução e da seleção natural. Além desta polémica questão, a discussão
crítica recai na atribuição de responsabilidade à religião ao desempenhar
um papel benéfico na vida humana e, ao mesmo tempo, ao representar um
perigo ou ameaça de conflito entre povos.
A perenidade da religião na vida humana é igualmente considerada
por Mircea Eliade, ao reconhecer o regresso do religioso e ao defender que
esse regresso se deve à inquietação e insatisfação humanas na procura de
sentido ou de benesses para a vida. Conforme referiu Eliade, em O Sagrado
e o Profano,12 o ser humano puramente a-religioso é um fenómeno muito
raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas, porque o
ser humano descende do homo religiosus e dispõe, até inconscientemente,
de uma mitologia camuflada e de numerosos ritualismos. Não existe, por
conseguinte, o ser humano a-religioso ou o ser unicamente racional, isto é
sem emoções e sentimentos religiosos.
Segundo Anselmo Borges, “não é ousado afirmar que todo o ser
humano é religioso”.13 Todos temos uma consciência construtora de mitos
e somos constituídos simultaneamente pelas atividades racionais cons-
cientes e pelas experiências irracionais ou emotivas. Os mitos, resultantes
de ambiguidades e de leituras interpretativas da realidade, surgem para
suportarem a fé que se nutre por algo ou alguém mitificado.
Independentemente desta controvérsia, a religião é vivida coleti-
vamente e manifestada socialmente através de crenças e práticas multi-
formes, consoante os locais e as épocas, as culturas e as sociedades mais
ou menos primitivas ou complexas. As crenças e práticas religiosas, apesar
de multiformes, seguem três propósitos preferidos, segundo Dennett: a)
reconfortar no sofrimento e aplacar os anseios, temores, medos e angústias
inerentes à condição humana; b) explicar coisas que não se consegue nem
compreender nem explicar de outra forma; c) encorajar a cooperação
entre as pessoas face às dificuldades e problemas próprios da vida.
Os fenómenos religiosos possuem vivências características e são expe-
rimentados consoante a cultura em que se inserem. A cultura e a religião
12. ELIADE, Mircea – Lo Sagrado y lo Profano. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1998,
passim.
13. BORGES, Anselmo – Religião e Diálogo Inter-religioso. Coimbra: Imprensa da Uni-
versidade de Coimbra, 2010, p. 20.
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são, por um lado, aspetos de uma mesma unidade, ou seja, estão inter-
relacionadas, mas, por outro lado, são duas coisas diferentes. Segundo
T. S. Eliot, “nunca houve uma cultura que se desenvolvesse sem uma
religião a acompanhá-la”,14 pelo que a cultura aparece sempre como um
produto da religião ou a religião como um produto da cultura. A cultura
é visível nos modos de manifestação coletiva da fé. As formas de vida ou
modos culturais e simbólicos de viver em sociedade nunca podem ser
atingidas deliberadamente, porque são constituídos por produtos de uma
variedade de atividades mais ou menos harmoniosas.15
Regressando à indagação de Dennett acerca da religião ser natural,
isto é, o produto de um instinto evolucionário cego, ou ser cultural, isto é,
o produto de uma escolha racional, a religião é vivida, quer numa situação
quer na outra, sempre como a procura de uma melhor ou mais ideal forma
de vida moral, ou seja, pela prática do bem nas relações interpessoais.
Todavia, a questão sobre os eventuais benefícios da religião e da condução
de uma forma de vida religiosa não deve ofuscar a outra questão, primei-
ramente apresentada, acerca da sua base cultural ou natural. Também
não deve cingir-se a uma mera afirmação de uma posição pró ou contra a
religião.
O desejo de ser melhor pessoa, de se sentir melhor inserido num
certo contexto social e cultural, representa, porventura, um dos principais
benefícios da prática religiosa, justificando o facto de a religiosidade se
impor na vida humana com uma certa naturalidade. Independentemente
das concepções sobre a religião, esta constitui uma dimensão igualmente
natural na vida das pessoas. Segundo Dennett “as religiões são transmi-
tidas culturalmente, através da linguagem e do simbolismo, não através
dos genes”.16
De acordo com Dennett, a religião é fazer o que surge com natu-
ralidade e não como um gosto adquirido, artificial ou educado. Para
Dennett, a religião não é um acto não natural. Pelo contrário, a religião
é natural, especialmente quando se confronta com o sobrenatural (fenó-
menos humanos compostos de eventos, organismos, objetos, estruturas,
padrões e tudo o mais que não obedece às leis da Física e da Biologia).
Ao considerar que a existência de entidades divinas é indispensável
para o conceito de religião, Dennett17 propôs definir as religiões como
14. ELIOT, T. S. – Notas para a Definição de Cultura. Lisboa. Século XXI, 2002, p. 16.
15. Cf. Ibid., p. 20.
16. DENNETT, Daniel C., op. cit., p. 36.
17. Cf. Ibid., p. 25.
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Para Kant “se na natureza humana reside para tal uma propensão,
então há no homem uma inclinação natural para o mal; e esta própria
tendência […] é moralmente má”,30 porque deriva de um livre poder de
escolha imputável. Os problemas da natureza humana estão associados ao
mal que existe nos seres humanos e esse mal não pode ser “exterminado”
por meio de forças humanas. A via possível é a religiosa (a salvação
divina), como forma convencional de piedade face à crença. Uma via nos
mesmos moldes do que a via proposta por Paul Ricœur, num campo que
ele próprio preferiu designar por “ontologia do agir”, quando considerou
a importância do ser humano para a instauração, em si, dos preceitos reli-
giosos.
Para Ricœur, instaurar em si uma orientação divina depende de um
nível de capacidade mais fundamental de agir: “é o homo capax, o homem
capaz, que é interpelado e restaurado”.31 Ricœur confessou ter assim
redescoberto a intuição central de Kant em A Religião nos Limites da
Simples Razão, ou seja, a tarefa da religião que, segundo Kant, é restaurar
no sujeito moral a sua capacidade de agir segundo o dever.
Este “si-próprio capaz” de Ricœur é o sujeito kantiano capaz de auto-
nomia. De acordo com Jürgen Habermas, Kant não reduz a Filosofia da
Religião a uma crítica da religião. A Filosofia da Religião possui o signi-
ficado construtivo adicional de dirigir a razão às fontes religiosas de onde
a própria Filosofia pode, por sua vez, adquirir impulsos.32
Segundo Kant, o conceito de uma “comunidade ética” implica uma
comunidade religiosa pautada por leis éticas.33 A ideia kantiana de uma
igreja universal e invisível, associada ao conceito de “comunidade ética”,
inscreve-se em todas as comunidades religiosas.34
A religião define-se por um conjunto de prescrições e proibições, ou
seja, um conjunto de deveres para realizar determinadas ações e deveres
para não realizar outras ações. Na ética da subjetividade, o dever é um
elemento fundamental e, por conseguinte, caracterizador da própria
natureza humana para um suposto Bem ou Mal. Mas não os deveres
morais em relação às entidades sobrenaturais, como Deus.
30. KANT, Immanuel – A Religião nos Limites da Simples Razão. Lisboa: Edições 70,
2008, p. 73.
31. RICŒUR, Paul – Amor e Justiça. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 9.
32. Cf. HABERMAS, Jürgen – Between Naturalism and Religion. Cambridge: Polity Press,
2009, p. 215.
33. Cf. KANT, Immanuel, op. cit., p. 104.
34. Cf. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 225.
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5. Considerações finais
35. WARD, Keith – Deus e os Filósofos. Cruz Quebrada: Estrela Polar, 2007, p. 111.
36. Cf. Ibid., p. 118.
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37. STEVENSON, Leslie & HABERMAN, David L., op. cit., pp. 13-14.
38. Cf. Ibid., pp. 13-14.
39. Ibid., p. 14.
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de estar num mundo que não é nem poderia ser neutro. Esta ideia apro-
xima-nos do que Johann Wolfgang Goethe referiu acerca da utilidade da
religiosidade: “A religiosidade não é um fim, mas um meio em ordem a
que, através do mais puro repouso da nossa afetividade, cheguemos à
cultura mais elevada.”.42 A procura (e não propriamente a descoberta nem
a vivência) incessante desta cultura mais elevada, qualquer que ela seja
(e.g. simbólica ou material, ideológica ou utópica), define, na minha pers-
petiva, a natureza humana do homo religiosus.
42. GOETHE, Johann Wolfgang – Máximas e Reflexões. Lisboa: Guimarães Editores, 2001,
p. 119.
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