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REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA


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Portugal
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A Natureza Humana
do Homo Religiosus
PAULO BARROSO*

Resumo
Através de uma abordagem metodológica centrada na reflexão dialética, o presente artigo
tem como principal objetivo questionar uma suposta essencialidade natural ou cultural da
natureza humana associada às experiências religiosas e ao sagrado. Este tema constitui uma
aporia, pois a religiosidade do ser humano pode ser concebida como fenómeno cultural e
natural, humano e sobre-humano, social e individual. Além da indagação sobre a natura-
lidade ou culturalidade da religião no ser humano, algumas perguntas colocadas no artigo,
designadamente na problematização, visam acirrar o pensamento crítico sobre esta temática
em torno da essencialidade da natureza humana, tais como: a religiosidade é um fenómeno
humano, natural e atemporal ou é social, cultural e temporal? É um fenómeno racional
ou consciente enquanto alimento da esperança? Tendo em conta que a religiosidade está
associada a determinados valores, será racional porque os fins das práticas respondem às
convicções e aos ditos valores e porque o sentido da experiência religiosa está inscrito nas
formas de linguagem e de conduta, bem como nos valores que as motivam?
Palavras-chave : Experiência religiosa, Homo religiosus, natureza humana, religião cultural,
religião natural

Abstract
Through a methodological approach centered on reflection and dialectics, the main purpose
of this article is to inquiry a hypothetical natural or cultural essence of human nature, which
is associated with religious experiences and the sacred. This theme is an aporia, because
the religiosity of the human being can be conceived as a cultural and natural, human and
superhuman, social and individual phenomenon. Besides the questioning about natural
or cultural religion in human beings, some questions placed in the article, namely in the
questioning part, aim to sharpen critical thinking on this subject around the essence of human
nature, such as: Is the religiosity a human, natural and timeless phenomenon, or it is social,
cultural and temporal? Is it a rational or conscious phenomenon to feed hope? Given that
religiosity is associated with certain values, would it be rational because the purpose of the
beliefs and practices satisfy all such values and because the meaning of religious experience
is inscribed in the forms of language and conduct, as well as the values that motivate them?
Keywords : Cultural religion; Homo religiosus, human nature, natural religion, religious
experience

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. pbarroso1062@gmail.com

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Fasc. 3 2012 439-460
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440 P AULO B ARROSO

1. Problematização: a religiosidade como fenómeno natural


ou cultural?

O
s fenómenos religiosos consistem numa série de crenças e práticas
relativas ao sagrado. Enquanto elemento distinto no mundo, o
sagrado é fonte das experiências religiosas e é, simultaneamente,
uma dimensão transcendente (o sagrado como fenómeno sobrenatural) e
imanente (o sagrado como fenómeno humano). Considerando um certo
determinismo da natureza humana que não permite a opção em ser e estar
no mundo de outra forma, os seres humanos são sensíveis ao sagrado.
Deste modo, a religiosidade caracteriza a própria natureza humana, acom-
panhando universalmente os seres humanos e tomando formas, todavia,
heterogéneas.
Os crentes veneram diversas entidades sagradas, mediante formas de
linguagem verbal (e.g. orações) e não-verbal (e.g. rituais); formas estere-
otipadas na meditação com o sagrado. A diversidade de formas de mani-
festar a religiosidade através das crenças, da linguagem ou das condutas
dificulta uma definição rigorosa de “religião”. Apesar desta diversidade, o
elemento sagrado e as decorrentes referências a este são comuns a todos
os fenómenos religiosos. O conceito de “sagrado” remete necessariamente
para a ocorrência de experiências religiosas, indicando a esfera do divino.
Para qualquer tipo de divino pertence uma esfera peculiar e exclusiva de
uma outra dimensão extraordinária, isto é, superior à profana e que, por
isso, provoca diferentes atitudes e comportamentos coletivos.
A religiosidade é a forma de conceber, entender e viver a religião ou
um dado sentimento religioso nutrido pela crença sobre uma entidade
sobrenatural. Mas a religiosidade é um fenómeno humano, natural e
atemporal ou é social, cultural e temporal? Enquanto alimento da espe-
rança, é um fenómeno racional ou consciente? Tendo em conta que a reli-
giosidade está associada a determinados valores, será racional porque os
fins das práticas respondem às convicções e aos ditos valores e porque o
sentido da experiência religiosa está inscrito nas formas de linguagem e de
conduta, bem como nos valores que as motivam?

2. A natureza das experiências religiosas in illo tempore

A natureza humana proporciona uma diversidade de experiências


religiosas, na medida em que todas as pessoas possuem experiências,
de um modo geral, e cada uma dessas experiências é única (em termos

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sensíveis e numa dimensão de tempo e espaço) para a pessoa que as tem e,


por conseguinte, todas são subjetivas, ou seja, diferentes. Mas, o que são
experiências religiosas?
A expressão “experiência religiosa” refere-se a qualquer experiência
que tem um elemento sagrado, isto é, uma experiência do ou sobre algo
considerado sagrado pela comunidade, cultura ou sociedade e, princi-
palmente, para a própria pessoa. A presença de um tal elemento sagrado
exige a sua respetiva representação simbólica e posterior compreensão e
anuência, pelo que todas as experiências, designadamente religiosas, são
mediadas por signos. A experiência religiosa insere-se num dado contexto
religioso, inclui sentimentos religiosos, crentes, crenças e práticas reli-
giosas. A experiência religiosa é uma vivência inalienável e, por conse-
guinte, intensamente pessoal.
Segundo Chad Meister1 existem três características gerais que são
comuns ao fenómeno da experiência religiosa: a) universalidade; b) diver-
sidade; c) importância. A característica a) pressupõe elementos que
são denominadores comuns, necessários e suficientes a todas as expe-
riências (e.g. uma necessária e suficiente relação entre a imanência
humana e a transcendência sagrada), apesar da característica b), que
advoga uma variedade de formas de ter e manter essas relações binomiais
entre imanente/transcendente, profano/sagrado, contingente/necessário.
Trata-se de aceitar a) de b), ou seja, uma universalidade de diversidades
religiosas. As experiências religiosas são universais, presentes em todas as
culturas e formas de vida, de pensamento e de linguagem, sendo, por isso,
importantes, mas não todas iguais.
O nosso mundo é, em muitos sentidos, um mundo religioso. Pelo
menos porque a maior parte das pessoas afirma e pratica uma deter-
minada forma de crença religiosa.2 As formas de crença e de expressão de
experiências religiosas são ubíquas. Todavia, é difícil apresentar uma defi-
nição rigorosa acerca do que constitui a essência da religião, porque, no
quotidiano das práticas sociais, existem diferentes maneiras de conceber e
praticar a religiosidade.
Mesmo com a diversidade religiosa (Hinduísmo, Budismo, Judaísmo,
Cristianismo, Islamismo), alguns aspetos são centrais e comuns: um
sistema de crenças e de práticas centradas numa realidade sobrenatural; a
rutura entre a realidade mundana e a realidade transcendental da religião;

1. MEISTER, Chad – Introducing Philosophy of Religion. London: Routledge, 2009, p. 170.


2. Cf. Ibid., p. 19.

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as atitudes e os significados últimos para a vida humana face a entidades


divinas, etc.
A pletora da diversidade religiosa contamina um eventual entendi-
mento geral e harmonioso sobre o que representa e significa uma experi-
ência religiosa, porque esta remete sempre para uma prática tradicional e
para determinados valores. Face à diversidade religiosa sobre a verdade na
interpretação da realidade, existem também várias abordagens ou atitudes
a tomar, como o ateísmo (segundo o qual, Deus não existe e, por isso, todas
as religiões que o doutrinam são falsas); o agnosticismo (que defende a
inexistência de uma maneira para determinar a verdade); o relativismo
religioso (em que não há um sentido objetivo pelo qual podemos falar de
verdade religiosa, pois, cada religião pode ser vista como verdadeira pelos
respetivos seguidores); e o pluralismo religioso (segundo o qual, todas as
religiões são corretas por oferecerem diferentes caminhos e perspetivas
parciais da realidade).
De acordo com o pluralismo religioso, existem vários caminhos para
a salvação propostos por cada religião. A experiência religiosa de uma
pessoa e a sua consequente expressão dependem de conceitos interpreta-
tivos através dos quais uma pessoa vê, estrutura e compreende a realidade
circundante.
As experiências religiosas são atemporais. Sempre acompanharam a
humanidade e estão presentes em todos os povos, sociedades e culturas.
As suas características configuram uma determinada essência da religio-
sidade na natureza humana, pois são como critérios para a definição e
compreensão das experiências religiosas, da religiosidade e até da religião
entendida de modo geral. Tais características são:

1) A divindade, a existência de entidades consideradas sobrenaturais


ou sagradas, o divino, numa dimensão superior à profana;
2) A ideia de “sagrado”, distinta da existência de entidades conside-
radas sobrenaturais ou sagradas, como foi enunciado em 1), pois
em 2) é a ideia e não a existência de algo considerado de uma
determinada forma;
3) Comportamentos sociais, práticas coletivas e atitudes explícitas
que exprimem crenças também coletivas sob formas variadas,
devido à influência das formas de vida culturais sobre o enten-
dimento partilhado de “religião” e a ideia de “sagrado” (trata-se
de um alargado conjunto de comportamentos, práticas e atitudes,
mas também de crenças, mitos, ritos, atos e discursos em confor-
midade com 1) e 2) e que determinam o seguimento de prede-

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terminadas formas de vida e códigos morais, bem como certas


interpretações de 2);
4) Institucionalização das relações das pessoas ou relações de 3) com
1), através de modelos culturais e padrões conceptuais.

Aquilo que é parte de uma dada cultura também é parte de uma dada
religião vivida que, por conseguinte, determina os padrões e os modos de
viver todo o conjunto de atividades e interesses característicos de um povo.
Desde sempre que o sagrado funciona para as pessoas como um instru-
mento para a compreensão da condição humana ou mundana, ou seja,
para atribuir algum sentido à situação em que o ser humano se encontra
no mundo. No entanto, como admitiu Émile Durkheim, “não existe um
instante radical em que a religião tenha começado a existir”.3
É aceitável que, conforme acrescentou Durkheim,4 os primeiros
sistemas de representações do mundo e da condição humana, que os seres
humanos elaboraram, sejam de origem religiosa. A religião foi encarada
por Durkheim como uma manifestação natural da atividade humana
socialmente partilhada. Segundo esta perspetiva sociológica, Durkheim
descreveu a religião como um eminente facto moral e social, uma relação
estreita e acentuada entre o sistema simbólico de crenças e represen-
tações (a religião) e o sistema social e político de organização coletiva
(a sociedade). A coextensividade entre os dois sistemas emanados desta
relação, o simbólico e o social, tem cabimento num modelo de referência
determinado, como é o caso do catolicismo romano.
A questão da origem da religião, eventualmente uma questão menor,
funde-se na questão mais importante de compreender as experiências
religiosas próprias da natureza humana, na medida em que esta natureza
humana já justifica, de certo modo, a origem religiosa do ser humano, da
cultura e das sociedades humanas. Assim se justifica porque não existe
ser humano, cultura ou sociedade humana sem práticas sociais ou formas
coletivas de prestação de culto. Por conseguinte, Durkheim registou, em
As Formas Elementares da Vida Religiosa, a humanidade presente na
natureza religiosa do ser humano, que é necessariamente religioso, o que
justifica a sua natureza constitutiva.
A questão da origem e natureza da religiosidade no ser humano
remete, obrigatoriamente, para uma análise, discussão e compreensão

3. DURKHEIM, Émile – As Formas Elementares da Vida Religiosa. Oeiras: Celta, 2002, p. 11.
4. Cf. Ibid., p. 12.

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crítica sobre duas hipóteses: a) a religiosidade como fenómeno natural;


b) a religiosidade como fenómeno cultural.
Em a), concebe-se a religiosidade inerente ao ser humano, à exis-
tência e essência humana, como propriedade espiritual do Ser. O ponto
de vista sobre o ser humano, em a), será o da naturalidade com que este
encara a religião, como uma condição sine qua non para a sua existência
e interação com os outros e, principalmente, com uma dimensão consi-
derada superior à sua, a do sobrenatural ou sagrado.
Todavia, coloca-se uma questão complexa ao admitir a), ao aceitar
como válida ou mais adequada a hipótese da religiosidade como fenómeno
natural. Essa questão tem a ver com a necessidade de se procurar ou
indagar uma subjacente essência da religiosidade no ser humano, na
medida em que, se a religiosidade é um fenómeno natural, então, terá que
possuir uma determinada essência. E esta essência seria “suprassocial” e
“meta-histórica”, como salientou Lionel Obadia,5 pois seria espaço-tempo-
ralmente transversal no ser humano, bem como nas sociedades humanas.
Em b), trata-se de um ponto de vista específico e construído sobre o
ser humano que se pode apresentar enquanto i) indivíduo, possuindo uma
dimensão biossocial constituída através de relações sociais e assegurada
pelos designados direitos expressos na Declaração Universal dos Direitos
Humanos; ii) pessoa, se assumir uma dimensão moral predominante,
através da tomada de consciência de si, do outro, do mundo e do sentido
da existência, sendo os direitos subjacentes garantidos por códigos morais
e pela própria pessoa mediante o seu amor-próprio e a sua autoestima;
iii) cidadão, inserido numa dimensão política, através da intervenção e
interação com a realidade, sendo os seus direitos garantidos pelas leis da
Constituição.
Para a concepção da religião como fenómeno cultural interessa
i) e ii), dada a tipologia acima enunciada. Por um lado, interessa i) pela
dimensão biossocial, que remete para um lado natural (isto é, biológico)
da sociabilidade em moldes religiosos. A sociabilidade justifica-se pelas
relações sociais, inalienáveis no ser “indivíduo”; por outro lado, interessa
ii) pela dimensão moral que possibilita uma toma de consciência múltipla
e com sentido sobre si, os outros e o mundo circundante, apanágio da
própria reflexibilidade suscitada e fomentada pelas formas de religião.
Em b), na concepção da religião como fenómeno cultural, pressu-
põe-se uma participação ativa do ser humano sobre o próprio conceito
de “religião”, que é determinante para o entendimento da mesma como

5. OBADIA, Lionel – Antropologia das Religiões. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 30.

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forma de vida, pensamento simbólico e linguagem, bem como prática


coletiva. Esta participação estende-se também à estruturação de toda a
sua forma de vida, de pensamento e de linguagem, baseadas num dado
modelo cultural que constrói a religiosidade enquanto resposta às suas
necessidades.
É compreensível, por conseguinte, a religião constituir-se como uma
variante da cultura, não apenas pelo simbolismo associado como pela
resposta adaptativa a determinadas necessidades do coletivo. Considerada
como fenómeno cultural, a religião seria um resultado funcional para a
existência humana, na medida em que seria construída como tal para
satisfazer um determinado fim ou necessidade. Por exemplo, a utilidade
ou função da religião no plano psicológico (de segurança ou proteção)
ou no plano social (expressão do social, regulação dos comportamentos
coletivos).6
Seguindo esta linha de raciocínio, será pertinente questionar: a
religiosidade surgiu com a humanidade ou a religiosidade surgiu como
resultado e construção das necessidades humanas? Ou seja, o homo reli-
giosus surgiu naturalmente com o desenvolvimento da humanidade, sendo
a religiosidade e a humanidade contemporâneas quer no surgimento quer
no desenvolvimento das suas formas, ou surgiu muito tardiamente depois
da consciencialização sobre a necessidade de um reconforto espiritual e
da propagação de monoteísmos?
No primeiro caso, a religião seria uma especificidade humana, em
que as formas arcaicas de religião seriam formas já das sociedades primi-
tivas ou tradições primordiais já reveladoras de religiosidade ou eviden-
ciando a presença do elemento sagrado e, principalmente, das relações
estabelecidas entre as formas de vida, pensamento simbólico e linguagem
e uma dimensão considerada sobrenatural e com os seus elementos tidos
como sagrados; no segundo caso, a religiosidade seria uma artificialidade,
um instrumento espiritual com aplicações práticas nos rituais coletivos de
manifestação e prestação de culto.
Independentemente da inclinação a favor de uma ou de outra, estas
duas hipóteses, colocadas por Obadia,7 entre outros autores, admitem
a religião como um traço recorrente das sociedades. E como tal, sendo
característica das sociedades, este traço religioso das sociedades é neces-
sariamente estudado pela Sociologia, Antropologia (designadamente nos
ramos Cultural e Social), Etnologia, Filosofia da Religião, Ciências da

6. Cf. Ibid., p. 30.


7. Cf. Ibid., p. 29.

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Religião e Teologia. Por conseguinte, conclui-se que “não pode escapar a


uma teorização”.8
Uma evidente implicação desta circunstância (que é necessária para
se estudar cientificamente um dado traço religioso no ser humano e nas
sociedades) é a da multiplicidade de abordagens sobre este mesmo objeto
de estudo. Segundo Obadia: “Tal como não há uma abordagem única da
religião entre os etnólogos, não há uma definição que tenha gozado da
adesão de toda a comunidade científica.”9 Por conseguinte, a questão da
natureza da experiência religiosa visa indagar a conveniência em se consi-
derar uma essência dessa mesma experiência e, por conseguinte, a identi-
ficação e caracterização dessa eventual essência.

3. Religião natural vs. religião cultural

Entre a natureza e a cultura existe uma reconhecida confrontação,


pois trata-se de um binómio, que pode ser traduzido da seguinte forma
abreviada: a natureza constitui tudo o que cresce e se desenvolve sem a
intervenção humana, enquanto a cultura corresponde a tudo o que é cons-
truído com a intenção (não com o acaso ou determinismo da natureza) de
satisfazer necessidades humanas. O apuramento conceptual destes dois
conceitos é importante para compreender o sentido das questões supra
enunciadas, pois ambos os conceitos estão comprometidos com a ideia de
que ninguém seguirá uma crença ou terá certos comportamentos de um
modo puramente livre, isto é, sem acreditar nos valores veiculados por si e
pela cultura onde se insere.
Apesar de partilhada por vários autores, a ideia de que a religião
terá existido sempre (em todos os tempos e lugares) é discutível e não é
seguida por outros autores, como Daniel Dennett,10 que a refuta no seu
livro Quebrar o Feitiço – A Religião como Fenómeno Natural.
Segundo Dennett, “existiu um tempo antes das crenças e práticas
religiosas terem ocorrido a alguém”, tal como também existiu um tempo
“antes de existirem quaisquer crentes no planeta, antes de existirem
quaisquer crenças sobre fosse o que fosse”.11 Reconhecem-se espécies
de animais que realizam rituais. Estes são necessariamente simbólicos,

8. Ibid.
9. Ibid.,, p. 31.
10. Cf. DENNETT, Daniel C. – Quebrar o Feitiço: A Religião como Fenómeno Natural.
Lisboa: Esfera do Caos, 2008, p. 91.
11. Ibid., p. 91.

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porque representam algo que é apenas evocado, ou seja, não está presente.
Se outras espécies de animais, além do ser humano, possuem rituais, será
admissível argumentar a religião como fenómeno natural?
Dennett aborda esta polémica questão no seu aludido livro, explo-
rando a possibilidade de a religião ser governada por forças naturais da
evolução e da seleção natural. Além desta polémica questão, a discussão
crítica recai na atribuição de responsabilidade à religião ao desempenhar
um papel benéfico na vida humana e, ao mesmo tempo, ao representar um
perigo ou ameaça de conflito entre povos.
A perenidade da religião na vida humana é igualmente considerada
por Mircea Eliade, ao reconhecer o regresso do religioso e ao defender que
esse regresso se deve à inquietação e insatisfação humanas na procura de
sentido ou de benesses para a vida. Conforme referiu Eliade, em O Sagrado
e o Profano,12 o ser humano puramente a-religioso é um fenómeno muito
raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas, porque o
ser humano descende do homo religiosus e dispõe, até inconscientemente,
de uma mitologia camuflada e de numerosos ritualismos. Não existe, por
conseguinte, o ser humano a-religioso ou o ser unicamente racional, isto é
sem emoções e sentimentos religiosos.
Segundo Anselmo Borges, “não é ousado afirmar que todo o ser
humano é religioso”.13 Todos temos uma consciência construtora de mitos
e somos constituídos simultaneamente pelas atividades racionais cons-
cientes e pelas experiências irracionais ou emotivas. Os mitos, resultantes
de ambiguidades e de leituras interpretativas da realidade, surgem para
suportarem a fé que se nutre por algo ou alguém mitificado.
Independentemente desta controvérsia, a religião é vivida coleti-
vamente e manifestada socialmente através de crenças e práticas multi-
formes, consoante os locais e as épocas, as culturas e as sociedades mais
ou menos primitivas ou complexas. As crenças e práticas religiosas, apesar
de multiformes, seguem três propósitos preferidos, segundo Dennett: a)
reconfortar no sofrimento e aplacar os anseios, temores, medos e angústias
inerentes à condição humana; b) explicar coisas que não se consegue nem
compreender nem explicar de outra forma; c) encorajar a cooperação
entre as pessoas face às dificuldades e problemas próprios da vida.
Os fenómenos religiosos possuem vivências características e são expe-
rimentados consoante a cultura em que se inserem. A cultura e a religião

12. ELIADE, Mircea – Lo Sagrado y lo Profano. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1998,
passim.
13. BORGES, Anselmo – Religião e Diálogo Inter-religioso. Coimbra: Imprensa da Uni-
versidade de Coimbra, 2010, p. 20.

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são, por um lado, aspetos de uma mesma unidade, ou seja, estão inter-
relacionadas, mas, por outro lado, são duas coisas diferentes. Segundo
T. S. Eliot, “nunca houve uma cultura que se desenvolvesse sem uma
religião a acompanhá-la”,14 pelo que a cultura aparece sempre como um
produto da religião ou a religião como um produto da cultura. A cultura
é visível nos modos de manifestação coletiva da fé. As formas de vida ou
modos culturais e simbólicos de viver em sociedade nunca podem ser
atingidas deliberadamente, porque são constituídos por produtos de uma
variedade de atividades mais ou menos harmoniosas.15
Regressando à indagação de Dennett acerca da religião ser natural,
isto é, o produto de um instinto evolucionário cego, ou ser cultural, isto é,
o produto de uma escolha racional, a religião é vivida, quer numa situação
quer na outra, sempre como a procura de uma melhor ou mais ideal forma
de vida moral, ou seja, pela prática do bem nas relações interpessoais.
Todavia, a questão sobre os eventuais benefícios da religião e da condução
de uma forma de vida religiosa não deve ofuscar a outra questão, primei-
ramente apresentada, acerca da sua base cultural ou natural. Também
não deve cingir-se a uma mera afirmação de uma posição pró ou contra a
religião.
O desejo de ser melhor pessoa, de se sentir melhor inserido num
certo contexto social e cultural, representa, porventura, um dos principais
benefícios da prática religiosa, justificando o facto de a religiosidade se
impor na vida humana com uma certa naturalidade. Independentemente
das concepções sobre a religião, esta constitui uma dimensão igualmente
natural na vida das pessoas. Segundo Dennett “as religiões são transmi-
tidas culturalmente, através da linguagem e do simbolismo, não através
dos genes”.16
De acordo com Dennett, a religião é fazer o que surge com natu-
ralidade e não como um gosto adquirido, artificial ou educado. Para
Dennett, a religião não é um acto não natural. Pelo contrário, a religião
é natural, especialmente quando se confronta com o sobrenatural (fenó-
menos humanos compostos de eventos, organismos, objetos, estruturas,
padrões e tudo o mais que não obedece às leis da Física e da Biologia).
Ao considerar que a existência de entidades divinas é indispensável
para o conceito de religião, Dennett17 propôs definir as religiões como

14. ELIOT, T. S. – Notas para a Definição de Cultura. Lisboa. Século XXI, 2002, p. 16.
15. Cf. Ibid., p. 20.
16. DENNETT, Daniel C., op. cit., p. 36.
17. Cf. Ibid., p. 25.

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sistemas sociais cujos participantes expressam crenças num agente sobre-


natural ou agentes cuja aceitação é pretendida. A expressão de crenças
em entidades sobrenaturais assume a forma de uma comunicação em
que o receptor ou destinatário parece estar ausente, tornando o próprio
processo esquizofrénico. “Para algumas pessoas, orar não é literalmente
falar com Deus, mas antes uma atividade ‘simbólica’, uma maneira de falar
consigo próprias sobre as suas preocupações mais profundas, expressas
metaforicamente”.18
Por um lado, Dennett seguiu a linha de investigação antropológica
evolucionária, darwinista e antidogmática, defendendo um carácter
impulsivo do ser humano por acreditar no sobrenatural, ou seja, pela
religião e por uma forma de vida religiosa. Por outro lado, não descurou
o elemento cultural das formas de vida religiosa, que dissemina a religião
numa variedade de formas, vivências e fenómenos.
De acordo com uma proposta, por parte de Dennett, de definição
operacional de religião, será razoável considerar um conjunto de bases,
alicerces ou fenómenos culturais, isto é, artificiais e impostos pelos seres
humanos a si mesmos, para a formação e sustentação de formas de vida
religiosa em comunidade. Um conjunto de bases formado pela vontade
em se submeter a poderes sobrenaturais desconhecidos, pela conveni-
ência do conforto espiritual, pela necessidade existencial ou pelo contexto
social e cultural para definir o que se constitui um fenómeno religioso.
Segundo Dennett, as bases da religião não podem ser naturais, porque
aquilo a que chamamos religião é composto por uma “variedade de fenó-
menos bastante diferentes, resultantes de circunstâncias diferentes e com
diferentes implicações, que forma uma família alargada de fenómenos,
não um ‘tipo natural’, como um elemento químico ou uma espécie”.19
Nesta perspectiva de Dennett, a religião estaria, deste modo, mais
próxima do cultural do que do natural. Por pertencerem ao domínio
cultural, as religiões transformam-se, designadamente nas suas práticas
e tradições mais particulares e genuínas. A este respeito, Dennett20 apre-
sentou o exemplo dos rituais de Halloween, que deixaram de ser religiosos,
ou a crença em São Nicolau, que perdeu o estatuto de crença religiosa.
Isto devido, essencialmente, a fatores sociais e culturais, que fomentam
uma variedade de religiões, formas de vida espiritual e experiências reli-
giosas.

18. Ibid., p. 26.


19. Ibid., p. 24.
20. Cf. Ibid.,, p. 26.

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Se entendermos por “cultura” de um povo “aquilo que torna a vida


digna de ser vivida”, então “podemos perguntar se aquilo a que chamamos
cultura e aquilo a que chamamos religião de um povo não serão dois
aspetos diferentes da mesma realidade, sendo a cultura, por assim
dizer, essencialmente a encarnação da religião de um povo”.21 Conforme
sustentou Eliot, “a identidade de religião e cultura mantém-se ao nível do
inconsciente”.22

4. Sacralização das formas de sentido


e de expressão do humano

Ao pensar no que constitui ou é considerado “sagrado” associamos,


quase inevitavelmente, a ideia antagónica de “profano”. O sagrado cons-
titui uma parte profunda e essencial da natureza humana, pois, segundo
Roger Caillois, “qualquer concepção religiosa do mundo implica a
distinção do sagrado e do profano”.23
A distinção ou oposição entre sagrado e profano é essencial para
definir ou compreender as experiências religiosas. Pelo menos, contribui
para que estas experiências sejam mais facilmente reconhecidas como
tais. Por exemplo, a natureza humana ou “o ser humano” admite que o
espaço e o tempo não são homogéneos, ao contrário da natureza animal
irracional. Como tal, as dimensões do sagrado e do profano coexistem e
preenchem, de modo complementar, todo esse espaço e tempo da exis-
tência e natureza humanas. Enquanto na dimensão sagrada a existência
e natureza humanas se apresentam dirigidas e pautadas por imperativos
sobrenaturais, na dimensão profana a existência e natureza humanas
limitam-se ao próprio ser humano. Por conseguinte, estes dois domínios
apenas se definem um pelo outro, excluindo-se e supondo-se mutua-
mente.
Na dimensão sagrada assenta a experiência religiosa que atribui a
essa mesma dimensão um carácter específico de sentimento respeitoso e
meta-racional. Da dimensão sagrada deriva a atitude, a prática e a mora-
lidade religiosas. Tanto assim se apresenta o sagrado para a religião que,
como referiu H. Hubert, “a religião é a administração do sagrado”24 e tal
só é possível numa natureza humana religiosa. A experiência do sagrado

21. ELIOT, T. S., op. cit., pp. 30-31.


22. Ibid., p. 77.
23. CAILLOIS, Roger – O Homem e o Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 19.
24. HUBERT, H., citado por Roger Caillois, op. cit., p. 20.

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A Natureza Humana do Homo Religiosus 451

vivifica as diversas manifestações da vida religiosa que se apresenta como


a soma das relações do ser humano com o sagrado.25 Através das crenças,
as pessoas criam, geram e garantem as suas relações com o sagrado;
através dos ritos, as pessoas exercem e praticam essas mesmas relações
num determinado espaço e tempo demarcados.
O sagrado constitui, por conseguinte, um elemento fundamental e
permanente para as experiências religiosas. É um imprescindível instru-
mento de culto (nos casos de dulia, hiperdulia e latria) a determinadas
entidades (Deus, Virgem Maria e santos), a certos espaços (capela, igreja,
santuário, etc.) e a dados tempos (domingo, Páscoa, Natal, etc.), no caso
do Cristianismo.
Uma condição para a experiência religiosa é o reconhecimento de
uma força sobrenatural que é a origem suprema das graças que moldam
os comportamentos e atitudes dos crentes em função daquilo que eles
almejam. Por seu turno, o domínio profano apresenta-se como o do uso
comum que não exige precauções nem constrangimentos e que se conserva
dentro da margem mundana.
A realidade pode ser ontologicamente una, mas simbolicamente
múltipla. Uma dada realidade pode ser mundana para algumas pessoas
e sagrada para outras pessoas, porque essa realidade pode pertencer a
ordens diferentes sem sofrer mudanças físicas ou ontológicas. É graças
ao simbolismo, por exemplo, que as pessoas pensam e vivem a realidade
em diferentes ordens. Um objeto pode passar a uma ordem distinta de
realidade se for convertido em símbolo, mesmo que mantenha a sua cons-
tituição física ou a sua aparência exterior. O que se altera nesse objeto é
a carga simbólica intangível que lhe é atribuída. É por ser uma ordem de
realidade difusa ou abstrata, isto é, não concreta, que o sagrado é inefável,
indefinível, independentemente de se manifestar quer em domínios subje-
tivos (disposições do espírito, intenções, actos, comportamentos, atitudes,
etc.) quer em domínios objetivos (realidades naturais, entidades históricas,
feitos humanos). Mas, como advertiu Juan Martín Velasco,26 o sagrado
não deve nem pode ser confundido quer com os elementos subjetivos que
suscita quer com os elementos objetivos em que se expressa.
Sem deixar de ser o que é e o que sempre foi, a realidade pode receber
um novo estatuto simbólico resultante de uma “trans-significação” reli-
giosa, quando é colocada em relação com uma dada intenção sagrada.
Por conseguinte, toda a realidade (pessoas, objetos, locais, atos, etc.) é

25. Cf. CAILLOIS, Roger, op. cit., p. 20.


26. Cf. VELASCO, Juan Martín – Introducción a la Fenomenología de la Religión. Madrid:
Editorial Trotta, 2006, p. 88.

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suscetível de sofrer esta transformação simbólica, de ser inscrita numa


ordem superior e de ser assumida como “objeto sagrado”. Uma realidade
religiosa é considerada diferente do resto das realidades.27 Por isso é que a
entrada ou adesão na ordem ou domínio do sagrado implica uma rutura
de nível, porque significa a mudança para um mundo específico e superior
face ao mundo profano.
É como rutura de nível que o sagrado se manifesta, ou seja, como
rutura da homogeneidade da realidade, que passa a ter duas ordens de ser
diferentes: a ordinária, a realidade concreta e a vida biológica e social do
ser humano como ser mundano; e a transcendente, a realidade abstrata
e a vida espiritual do ser humano como ser religioso e predisposto para
o sagrado. O que é característico da vida ordinária, que é rompida com
a aparição do sagrado, é o seu carácter “intramundano”, isto é, de vida
realizada exclusivamente na história.28
Face à dicotomia sagrado/profano, a sacralização das formas de
sentido e de expressão do humano dependem de uma outra dicotomia
presente na natureza humana, a de bem/mal. Kant demonstrou clara-
mente esta dicotomia quando publicou A Religião Dentro dos Limites
da Simples Razão. Tendo continuado a sua abordagem sobre a natureza
humana de uma forma crítica, ao ponto de reconhecer o que denomina
como “fraqueza” da natureza humana, ou seja, a dificuldade em fazer o
que se sabe que se deve fazer, Kant associou esta “fraqueza” a uma dada
“impureza” ou tendência para confundir ou adulterar as razões morais
a partir de outras motivações. De acordo com Leslie Stevenson e David
Haberman, Kant entendia a depravação da natureza humana como aquilo
que era radicalmente mau, e não os desejos naturalmente dados nem a
tensão entre esses desejos e o dever. Para Kant, o erro estaria na subor-
dinação voluntária do dever à inclinação; a preferência intencional pela
própria felicidade (esta concebida pessoalmente) acima das obrigações
para com as outras pessoas.29
A questão central para Kant é esta mesma: o mal resulta da própria
opção do ser humano, do seu uso errado da liberdade de que é dotado, ou
existe uma espécie de pecado original em que o mal é radical ou inato ao
ser humano, uma característica universal e inevitável da condição de um
ser racional, mas com necessidades?

27. Cf. Ibid., p. 91.


28. Cf. Ibid., p. 95.
29. Cf. STEVENSON, Leslie & HABERMAN, David L. – Dez Teorias da Natureza Humana.
São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 78.

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Para Kant “se na natureza humana reside para tal uma propensão,
então há no homem uma inclinação natural para o mal; e esta própria
tendência […] é moralmente má”,30 porque deriva de um livre poder de
escolha imputável. Os problemas da natureza humana estão associados ao
mal que existe nos seres humanos e esse mal não pode ser “exterminado”
por meio de forças humanas. A via possível é a religiosa (a salvação
divina), como forma convencional de piedade face à crença. Uma via nos
mesmos moldes do que a via proposta por Paul Ricœur, num campo que
ele próprio preferiu designar por “ontologia do agir”, quando considerou
a importância do ser humano para a instauração, em si, dos preceitos reli-
giosos.
Para Ricœur, instaurar em si uma orientação divina depende de um
nível de capacidade mais fundamental de agir: “é o homo capax, o homem
capaz, que é interpelado e restaurado”.31 Ricœur confessou ter assim
redescoberto a intuição central de Kant em A Religião nos Limites da
Simples Razão, ou seja, a tarefa da religião que, segundo Kant, é restaurar
no sujeito moral a sua capacidade de agir segundo o dever.
Este “si-próprio capaz” de Ricœur é o sujeito kantiano capaz de auto-
nomia. De acordo com Jürgen Habermas, Kant não reduz a Filosofia da
Religião a uma crítica da religião. A Filosofia da Religião possui o signi-
ficado construtivo adicional de dirigir a razão às fontes religiosas de onde
a própria Filosofia pode, por sua vez, adquirir impulsos.32
Segundo Kant, o conceito de uma “comunidade ética” implica uma
comunidade religiosa pautada por leis éticas.33 A ideia kantiana de uma
igreja universal e invisível, associada ao conceito de “comunidade ética”,
inscreve-se em todas as comunidades religiosas.34
A religião define-se por um conjunto de prescrições e proibições, ou
seja, um conjunto de deveres para realizar determinadas ações e deveres
para não realizar outras ações. Na ética da subjetividade, o dever é um
elemento fundamental e, por conseguinte, caracterizador da própria
natureza humana para um suposto Bem ou Mal. Mas não os deveres
morais em relação às entidades sobrenaturais, como Deus.

30. KANT, Immanuel – A Religião nos Limites da Simples Razão. Lisboa: Edições 70,
2008, p. 73.
31. RICŒUR, Paul – Amor e Justiça. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 9.
32. Cf. HABERMAS, Jürgen – Between Naturalism and Religion. Cambridge: Polity Press,
2009, p. 215.
33. Cf. KANT, Immanuel, op. cit., p. 104.
34. Cf. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 225.

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A ética da subjetividade de Kant é, essencialmente, uma ética da


autonomia, na medida em que nasce na razão e aplica-se com raciona-
lidade. Distingue-se da ética da heteronomia, que é emanada de fora e é
dirigida para fora do sujeito, encaminhando-o a fazer ações boas, isto é,
justas, almejando a felicidade. À heteronomia ética baseada no cumpri-
mento virtuoso opõe-se a autonomia ética do simples cumprimento da lei
moral. A ética kantiana é, por isso, solipsista, considerada uma ética da
subjetividade, por ter retirado a predominância da teologia sobre a ética e
acentuado o papel do próprio sujeito.
Segundo Keith Ward, a grande contribuição de Kant para a ética “foi
argumentar que existem verdades morais necessárias e universais inatas
à mente humana”.35 Verdades não concebidas por uma qualquer auto-
ridade exterior, como Deus. Estas verdades são determinadas pelo impe-
rativo categórico ou aplicação sofisticada e necessária de uma espécie de
Regra de Ouro, na medida em que prescreve a necessidade de se encontrar
princípios morais universais com que todos concordem efetiva e racional-
mente, o que contradiz a tese do solipsismo.
Kant defendeu que é possível desenvolver uma moralidade racional
sem o recurso à religião ou à revelação, mas através de um procedimento
puramente racional. Todavia, Kant advertiu para as inevitáveis contra-
dições ou antinomias, na sua própria terminologia, quando a razão é
conduzida aos seus limites. Kant desenvolveu, por conseguinte, um género
de moralismo secular, segundo o qual é perfeitamente possível possuir um
sentido de responsabilidade e de dever que conduza as pessoas a fazerem
o que está certo sem a influência ou determinação de quaisquer crenças
religiosas.36
Se a realidade é, em si, completamente incognoscível para o sujeito
do conhecimento, como vimos, temos de viver, em determinadas circuns-
tâncias, consoante ou conforme a fé nessa dada realidade, sendo esta
possibilidade pura e essencialmente da natureza humana.

5. Considerações finais

Os significados das coisas que fazemos quotidianamente dependem


da nossa concepção sobre a natureza humana. Por exemplo, desde o signi-
ficado de prestar culto a uma determinada entidade religiosa, orando à

35. WARD, Keith – Deus e os Filósofos. Cruz Quebrada: Estrela Polar, 2007, p. 111.
36. Cf. Ibid., p. 118.

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procura da concessão de uma certa benesse ou graça, até ao significado


da própria vida que estabelece o que devemos fazer, como nos devemos
comportar, o que devemos pensar ou dizer para alimentar uma qualquer
esperança de realização ou “vir a ser”. De uma forma ou de outra, assim
acontece em todas as sociedades humanas. A pergunta que surge, pelo
exposto, é: se a natureza humana possui significados que a tornam um
produto ou um resultado, então, existe ou não uma natureza humana
inata e essencial, isto é, independente de significações culturais, sociais ou
políticas que a definem e a moldam como tal?
Colocando de lado o entendimento mais ou menos consensual que
podemos retirar da leitura da Bíblia, segundo a qual os seres humanos
foram criados por um Deus transcendente e com um propósito de vida
definido, pretendi explorar a possibilidade da natureza humana essencial
constituir a totalidade das relações sociais, sem precisar de negar radical-
mente a existência de Deus para sustentar que as pessoas são o produto
do contexto particular da sociedade em que se inserem. As pessoas são,
assim, dotadas de padrões de comportamento específicos e determinados
cultural e socialmente.
Temos de ressalvar a possibilidade de concepções diferentes sobre a
natureza humana conduzirem a distintas ideias acerca do que devemos
fazer e como agir. Por exemplo, a concepção bíblica sobre a natureza
humana conduz irremediavelmente à ideia de que o que devemos ou
podemos fazer já está definido por um Deus omnipotente e infinitamente
misericordioso que nos criou (somos feitos à sua imagem) e que definiu o
nosso destino. Se assim é, o que nos resta refletir, indagar e pensar sobre a
natureza humana?
Se aceitássemos a ideia de que somos um produto social, o que
podemos fazer para, eventualmente, alterarmos a condição da natureza
humana? Não existiria, segundo esta ideia, uma solução divina ou um
determinismo redentor e a condição da natureza humana ou a própria
sociedade teriam que empreender, necessariamente, um processo de
mudança.
As crenças sobre uma determinada concepção da natureza humana
impõem certos modos de vida e até sistemas políticos, sociais e econó-
micos, como aconteceu com algumas versões da teoria marxista que
dominou em alguns países de regime comunista no século XX. Tanto foi o
domínio e a incorporação da teoria marxista sobre a condição da natureza
humana que qualquer questionamento ou resistência à mesma suscitava
sanções. Mas esta imposição da concepção marxista sobre a natureza
humana não foi muito diferente da proposta/concepção bíblica sobre a
natureza humana realizada pelo cristianismo. Ao procurarem um certo

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essencialismo, as concepções sobre a natureza humana revelam, pelo


contrário, um elevado grau de relatividade e subjetividade nos valores
e atributos associados e propostos ao ponto de ascenderem a uma ideo-
logia.
Segundo Stevenson e Haberman, “algumas dessas concepções [sobre
a natureza humana] se acham personificadas em instituições e sociedades
humanas, tal como tem ocorrido com o cristianismo e o marxismo”.37
Nesta perspectiva, estas não são teorias puramente intelectuais, mas
modos de vida sujeitos a mudanças. “Um sistema de crenças sobre a
natureza humana tido por algum grupo de pessoas como sendo a base de
seu modo de vida é em geral chamado de ‘ideologia’.”38
As concepções sobre a natureza humana, designadamente o cristia-
nismo e o marxismo, são ideologias, mais do que meras teorias, porque
suscitam a formação de um grupo de pessoas que as defendem e a aplicam
quotidianamente como base de um dado modo de vida. Também o são
porque acarretam implicações práticas nos modos de vida, nos compor-
tamentos e nas intelecções do que constitui o humano e o próprio mundo
onde este se encontra. Segundo Stevenson e Haberman,39 são ideologias
porque:

1) Apresentam teses sobre a estrutura do mundo, a constituição e


formação da sociedade e da natureza humana;
2) Oferecem um diagnóstico pessimista sobre a condição humana
assente em erros;
3) Prescrevem uma fórmula de correção do estado do ser humano no
mundo.

Uma ideologia é uma construção conceptual sobre o mundo, é um


sistema de ideias, valores e princípios que definem uma determinada
visão do mundo, fundamentando e orientando o modo de agir de quem
a segue e acredita nela. Uma ideologia é uma linguagem ou um discurso
sobre um certo estado de coisas no mundo, constituindo um bem coletivo
transmissível.
As crenças nas ideologias são determinantes para os seres humanos
seguirem um determinado estilo ou modo de vida e possuírem uma certa

37. STEVENSON, Leslie & HABERMAN, David L., op. cit., pp. 13-14.
38. Cf. Ibid., pp. 13-14.
39. Ibid., p. 14.

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visão inteligível do mundo em que vivem. Assim, formar e manter crenças


nas ideologias é fundamental para os seres humanos, pois, esta é a possi-
bilidade de saciarem a necessidade ancestral e instintiva de compreensão
e intelecção quer da natureza humana quer do mundo em que vivem.
Todavia, apesar das ideologias (enquanto sistemas fechados) procu-
rarem impedir evidências emergentes que as coloquem em causa, as
crenças nas ideologias têm sofrido abalos com a evolução do tempo e dos
conhecimentos sobre a natureza humana e sobre o mundo.
Mas, por que manter uma crença apesar de eventuais evidências emer-
gentes ou dificuldades conceptuais? Em primeiro lugar, pelo comodismo ou
inércia em recusar admitir que se está errado ou em modificar uma visão
do mundo ou uma crença central que altera todo o sistema disposicional do
ser humano, incluindo a sua maneira de estar no mundo e de o ver. Segundo
Stevenson e Haberman, “quando se foi educado em uma dada crença e no
modo de vida que lhe é associado, ou quando houve uma conversão a essa
crença e o seguimento de seus preceitos, é preciso coragem para questionar
ou abandonar o compromisso de toda uma vida”.40
Existem condicionalismos e pressões sociais para se continuar
a reconhecer uma determinada crença como válida ideologicamente.
Em muitos casos, os crentes numa determinada ideologia nem querem
ouvir falar nas eventuais falhas, erros ou imprecisões de compreensão,
interpretação ou intelecção. Os crentes preferem optar pela iluminação
vital, mesmo ilusória, proporcionada pela crença na ideologia do que a
colocar em causa e retificar uma qualquer imprecisão conceptual e expli-
cativa da visão que possuem do mundo e do estado de coisas. A segunda
possibilidade, a de colocar em causa a crença que possuem e retificar
as suas eventuais imprecisões, afigura-se uma ameaça a um sistema
conceptual social e culturalmente construído e partilhado que dá sentido
à natureza humana e à estrutura do mundo.41
Quer a concepção marxista quer a concepção bíblica sobre a natureza
humana demonstram, por um lado, que concepções diferentes sobre a
natureza humana conduzirem a distintas ideias acerca do que somos, do que
devemos fazer e do modo como devemos e podemos agir ou nos comportar,
por outro lado, que a natureza humana está sempre enredada num contexto
de significação (qualquer que ela seja) que a define como tal.
Então, há valores objetivos na natureza humana que a definem como
tal? Há padrões culturais objetivos? Há uma natureza humana inata e

40. Ibid., p. 20.


41. Ibid., p. 21.

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essencial? A resposta a estas três questões é unicamente “não”, na medida


em que:

a) As pessoas possuem, inevitavelmente, uma dimensão social que


determina os seus comportamentos e intelecções em função da
comunidade e da cultura em que se inserem (concepção do ser
humano como ser necessariamente social).
b) Qualquer significação é o produto de uma construção social e
de uma escolha simbólica subjacente a determinados padrões
conceptuais e culturais, pelo que os valores na natureza humana
serão sempre o resultado de escolhas subjetivas em função do que
deve ser ou do que se considera o mais adequado (concepção do
ser humano como ser necessariamente simbólico).

Estes dois pressupostos parecem suficientemente sólidos para, por


um lado, contestar qualquer concepção essencialista da natureza humana
e, por outro lado, para advogar a significação social como factor deter-
minante na natureza humana. Por serem necessariamente sociais é que
os seres humanos são necessariamente simbólicos, ou seja, por serem
gregários é que apuraram as suas capacidades de significação e de comu-
nicação interpessoal subjacente à uma dada forma de cultura, a um dado
estilo de vida ou modo de estar no mundo e de se relacionar “obrigatoria-
mente” com os demais.
A concepção do ser humano como ser necessariamente social e
simbólico espelha, igualmente, uma concepção social e simbólica da
própria natureza humana, na medida em que esta se reveste de uma deter-
minada significação. Ou seja, a natureza humana significa sempre alguma
coisa, independentemente do que quer que seja significado. Há sempre
uma significação associada à natureza humana, porque esta resulta
sempre de uma relativa conjectura social e cultural que lhe atribui simbo-
lismo e valor conceptual.
Por exemplo, a conjectura define o ser humano como um ser crente,
um ser que concebe e mantém sempre crenças. Trata-se, todavia, de um ser
resultante de uma relativa conjectura social e cultural ou de uma moder-
nidade que não admite que nenhuma concepção da natureza humana ou
tradição cultural particular tenham mais justificação racional ou sejam
mais alegadamente verdadeiras do que as outras.
A significação social da natureza humana é, neste sentido, devedora
das experiências religiosas coletivas que as diferentes sociedades e culturas
procuram manter como elemento indispensável à forma de vida ou modo

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de estar num mundo que não é nem poderia ser neutro. Esta ideia apro-
xima-nos do que Johann Wolfgang Goethe referiu acerca da utilidade da
religiosidade: “A religiosidade não é um fim, mas um meio em ordem a
que, através do mais puro repouso da nossa afetividade, cheguemos à
cultura mais elevada.”.42 A procura (e não propriamente a descoberta nem
a vivência) incessante desta cultura mais elevada, qualquer que ela seja
(e.g. simbólica ou material, ideológica ou utópica), define, na minha pers-
petiva, a natureza humana do homo religiosus.

42. GOETHE, Johann Wolfgang – Máximas e Reflexões. Lisboa: Guimarães Editores, 2001,
p. 119.

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