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EPICTETO

Difícil é para o biógrafo dizer qual a data em que nasceu Epicteto. Nada existe
que esclareça esse ponto escuro da vida do filósofo. Nem sequer é possível
registrar a data em que faleceu e o lugar em que se verificou o falecimento.

Indiscutivelmente são os alemães os que mais estudos apresentam sobre


Epicteto, mas tampouco eles conseguiram descobrir as datas do seu
nascimento e da sua morte.

Nasceu em Hierápolis, na Frígia, talvez nos meados do primeiro século da era


cristã. Em Roma, foi escravo, sob o jugo de Nero, do cruel e devasso
Epafrodita, suposto confidente do tirano e incendiário de Roma.

Epafrodita torturava-o impiedosamente, mandando que lhe torcessem as


pernas e os braços. Num desses tremendos castigos, teve Epicteto quebrada
uma das pernas, ficando assim aleijado para o resto da vida. Há biógrafos,
contudo, que não dão crédito a tal fato, considerando mais certo haver Epicteto
nascido defeituoso.

Pertenceu à escola dos estóicos. Pouco nos é dado conhecer da sua obra
literária, apesar de existirem, da autoria de Arriano, oito livros intitulados
"Dissertações", dos quais apenas quatro chegaram aos nossos dias. Arriano
publicou-os em grego, uma vez que de Epicteto nada havia diretamente
publicado, e neles manteve o estilo e a marcante personalidade do grande
filósofo.

Durante o tempo de Musônio Rufo, iniciou-se Epicteto na filosofia estóica,


sendo contemporâneo de Eufrates, também estóico.

Liberto em 90, na época de Domiciano, quando este expulsou os filósofos,


fixou-se em Nilópolis, no Epiro, onde abriu uma escola de filosofia, levando
uma vida modesta e granjeando grande fama, rodeado de muitíssimos adeptos
e admiradores.

 
Provavelmente morreu em Nilópolis, em idade avançada. Foi, mais tarde,
considerado mestre de Marco Aurélio. Alcançou reputação universal durante os
séculos II e III, graças às obras publicadas por Arriano, que as compôs
enquanto Epicteto ministrava as aulas aos incontáveis discípulos.
 

    

A escravidão do corpo é obra da sorte. A da alma é obra do vício. Quem


desfruta da liberdade do corpo é escravo, se tem agrilhoada a alma; quem tem
a alma livre desfruta de inteira liberdade, embora carregado de pesados
grilhões. A natureza, com a morte, põe cobro à escravidão do corpo, mas a da
alma só cessa com a virtude.

Guarda-te de exaltar os teus feitos no comércio comum com os homens, pois


se sentes grande prazer em narrá-los, nenhum sentem eles em ouvi-los.

           Envergonhar-te-ia, sem dúvida, a vil entrega do teu corpo ao primeiro


transeunte e, no entanto, sem corar, abandonas a alma ao primeiro que se te
depara.

           Não ornes a tua casa com belas pinturas; pelo contrário, faze que
resplandeçam nela, por toda parte, a sabedoria e a temperança. Os quadros
não passam de uma impostura para enganar os olhos; a sabedoria é um
ornamento real e verdadeiro.

 
           Sacode enfim o jugo e, livre da servidão, levanta ao céu o rosto para
dizer ao teu Deus: "Serve-te de mim como te agradar; nenhum feito me será
odioso, se justificar a tua misericórdia para com os homens".

           Traze constantemente gravados no pensamento a morte, o desterro e


as demais coisas que se te afiguram terríveis, e podes ter a certeza de que
jamais te assaltarão idéias indignas, nem tampouco desejarás com demasiado
ardor coisa nenhuma.

           O verdadeiro bem do homem está sempre na parte em que difere dos
animais; seja essa parte bem fortalecida e alvo de assíduos cuidados,
defendam-na as virtudes e, seguramente, nada terá que temer.

           Vais a Roma, empreendes tão grande jornada para obter um cargo mais
brilhante que o de que estás revestido. Que jornada empreendeste para
melhorar os teus juízos e opiniões? Que consultaste para corrigir o que em ti
há de defeituoso? Em que tempo, em que idade cuidaste de examinar os teus
juízos? Percorre com a imaginação todos os anos da tua vida e verás que
sempre fizestes o que hoje fazes.

           O que é senso-comum? Assim como, em todos os homens, existe um


ouvido geral e comum que lhes permite discernir igualmente as vozes e ouvir
todas as palavras que se proferem, e, mais, outro ouvido, que pode ser
chamado artístico, que discerne e separa os sons uns dos outros, assim
também há em todos os homens certo sentido natural que, quando não
possuem nenhum defeito assinalado no entendimento, lhes permite
compreender igualmente tudo o que se lhes propõe. E essa disposição, igual
em todos, é o que se chama senso-comum.

10

           Um homem é eleito tribuno da plebe. Volta para casa e a vê iluminada.


Todos se congratulam com ele. Corre ao Capitólio, faz sacrifícios e dá graças
aos deuses. Deu-lhes, por acaso, graças por ter são entendimento e vontade
conforme à natureza?

11

           Nunca te vanglories do que de ti não depende. Se um cavalo pudesse


falar e dissesse: Sou formoso, seria suportável. Mas que digas tu com
vanglória: tenho um formoso cavalo, não. De pouco te envaideces, já que
tomas parte apenas no mau uso que fazes da tua imaginação. Quando a
usares, sem contrariar a natureza, poderás gloriar-te, porque te gloriarás de um
bem que é teu.

12

           Quando pretendemos embarcar, desejamos um bom vento para


seguirmos o nosso caminho; esperando o dia da partida, vamos com
freqüência verificar que vento sopra, e, se nos é contrário, exclamamos:
sempre vento norte! Quando soprará o vento do poente? Meu amigo, soprará
quando lhe aprouver, ou melhor, quando aprouver a Quem manda em todas as
coisas. Serás, por acaso, dispensador dos ventos, como Éolo? Façamos
sempre o que de nós depende, e valhamo-nos do resto, tal qual se nos
apresenta e sucede.

13

           Se pretendes que teus filhos, tua mulher e teus amigos vivam sempre,
és louco, pois é querer que as coisas que de ti não dependem dependam, e
seja teu o que é de outro. Também, se queres que o teu criado não cometa
nunca falta nenhuma, estás louco, pois é querer que o vício não seja tal vício.
Não queres ver contrariados os teus desejos? Não desejes senão aquilo que
de ti depende.

14

           De que te queixas? A Divindade deu-te o que há de maior, de mais


nobre, de mais divino, deu-te a faculdade de  poderes fazer bom uso das tuas
qualidades, e de em ti próprio achares os verdadeiros bens. Que mais
pretendes? Regozija-te, adora tão carinhoso pai e não deixes de dar-lhe graças
no fundo do teu espírito.

15

           Os deuses criaram todos os homens para serem felizes; se são


desgraçados a culpa é somente deles.

16

           As enfermidades entorpecem os atos do corpo, mas não os da vontade.


A coxeadura poderá ser um obstáculo para o meu pé, mas não para mim.
Pensa desse modo em todos os acidentes que te ocorrerem, e verás que
poderão ser obstáculo para tudo, menos para ti.

17

           A natureza do mal não existe no mundo, pois não se concebe um fim
destinado a se não realizar.

18
 

           Perdeste bens, prazeres, presentes, distinções, e consideras tal uma


grande perda de que não consegues consolar-te; mas, ao perderes a
fidelidade, o pudor, a doçura, a modéstia, não notas falta. No entanto, uma
causa involuntária, e alheia a nós, é que nos rouba aqueles bens, e, por
conseguinte, não é vergonhoso perdê-los. Pelo contrário, estes últimos, bens
internos, não os perdemos senão por nossa culpa; e se é vergonhoso e
reprovável não possuí-los, mais digno ainda de reprovação e vergonha é
chegar a perdê-los.

19

           Assim como um mercador não repele moeda de ouro assinalada pelo
busto do Príncipe, não recusa a alma os verdadeiros bens; com freqüência os
recebe falsos, mas é que o busto do Príncipe a enganou, e ela não possui a
arte de lhe conhecer a falsidade.

20

           Se empreenderes feito superior às tuas forças, o pior não é que, por fim,
o abandones, mas que te esqueças do que poderias realizar.

21

           Em todas as coisas deve fazer-se o que de nós próprios depende.


Quanto ao resto, mantenhamo-nos firmes e tranqüilos. Sou obrigado a
embarcar. Que devo fazer? Escolher cuidadosamente o barco, o piloto, os
marinheiros, a estação, o dia e a hora, ou seja, o que de mim depende. Já em
alto mar, sobrevem terrível tempestade; não é assunto meu. O barco afunda.
Que fazer? Tudo quanto de mim depende: não grito, nem me atormento. Sei
que tudo o que nasceu deve morrer; é a lei geral. É preciso que eu morra. Não
sou a eternidade, sou um homem, uma parte do todo, assim como a hora é
uma parte do dia. A hora chega e passa; eu também chego e passo. O modo
de passar é indiferente, quer seja pela febre, quer pela água; tudo é o mesmo.

 
22

           Quem se ajusta como deve às circunstâncias necessárias é prudente e


hábil no conhecimento das coisas divinas.

23

           Não pretendas que as coisas sejam como as desejas. Deseja-as como
são.

24

           Lembra-te sempre destas máximas gerais: "Que é próprio de mim? Que
não é próprio de mim? Que devo fazer?" Até agora, deixaram-te os deuses
gozar de um prazer imenso, deram-te tempo suficiente para pensar, ler,
meditar, escrever acerca destas importantes matérias. Esse tempo deve haver-
te bastado. Agora, dizem-te: Vai, combate, mostra o que aprendeste, mostra se
és atleta digno de nós e de ser coroado, ou um desses gladiadores vis que
percorrem o mundo ocultando as suas derrotas.

25

           É admirável a natureza e a lei que nos liga à vida tão fortemente, dizia
Xenofonte. Temos extraordinário cuidado com o nosso corpo, por repulsivo e
desagradável que seja, ao passo que, se tivéssemos de cuidar do nosso
vizinho, por quatro dias que fosse, a coisa nos pareceria insuportável

26

           És cego e injusto; podes ser independente e preferes depender de um


milhão de coisas que te são estranhas e te afastam do verdadeiro bem.
 

27

           - Sou pretor na Grécia. – Tu pretor? Sabes julgar? Onde aprendeste tal
ciência? – Tenho a nomeação de César. E se César te houvesse nomeado juiz
em música, de que te valeria a nomeação, se jamais tivesses aprendido uma
nota sequer? Mas deixemos isso, e já que o que procuraste foi a nomeação,
responde: de que modo obtiveste o cargo? Quem to proporcionou? A quem
estendeste a mão? A que porta bateste? A quem deste presente? Com que
baixezas, com que indignidade, com que mentiras o compraste?

28

           É da virtude, e não do nascimento, que provém a nobreza do homem. –


Valho mais que tu; meu pai foi cônsul, eu sou tribuno e tu não és nada. Se nós
ambos fôssemos cavalos,  e tu me dissesses: – Meu pai foi o mais veloz de
todos os  cavalos do seu tempo, e eu disponho de muito feno, de muita cevada
e de um magnífico arreio, eu te responderia: – Acredito no que me afirmas;
mas vamos comer. Não há no homem alguma coisa que lhe seja peculiar,
como a corrida ao cavalo,  e por meio da qual se lhe possa conhecer a
qualidade e julgar do seu mérito? Não é o pudor, a honradez, a justiça? Mostra-
me, pois, a vantagem que sobre mim tens nisso, faze-me ver que vales mais do
que eu, como homem, porque se me dizes: posso relinchar ou escoicear,
respondo-te que a tua vanglória se estriba numa qualidade própria de asno e
de cavalo, e nunca de homem.

29

           Ninguém pode ser mau e vicioso sem perda segura e dano certo.

30

           De quem é esta medalha? De Trajano? Recebo-a e conservo-a. De


Nero? Abomino-a e atiro-a para longe de mim. Faze o mesmo com os bons e
os maus. Quem é este? Um homem bondoso, sociável, benfeitor, sofrido,
amigo dos pobres; apoio-o, faço dele meu concidadão, meu amigo. E aquele
quem é? Um homem que tem alguma coisa de Nero; é colérico, mau,
implacável, cruel; repilo-o. Por que me disseste que era um homem? Homem
soberbo, vingativo, colérico, não é homem, assim como maçã de cera não é
maçã; desta só tem o aspecto e a cor.

31

           Nunca serás vencido, se não empreenderes luta na qual de ti não


dependa vencer.

32

           Por acaso será infeliz o cavalo pelo fato de não poder cantar? Não, mas
pelo fato de não poder sentir.  Sê-lo-á o cão, por não poder voar? Não, mas
pelo fato de carecer de inteligência. Consistirá a infelicidade do homem em não
poder estrangular leões e realizar coisas extraordinárias? Não, pois não foi
criado para isso. O homem é infeliz quando perde o pudor, a bondade, a
justiça, e quando se apagam todos os divinos caracteres, impressos em sua
alma pelos deuses.

33

           Quando ouço chamar a alguém feliz por ver-se favorecido pelo Príncipe,
pergunto imediatamente: Que lhe sucedeu? – Foi colocado à frente de uma
província. – Mas, obteve ao mesmo tempo tudo quanto precisa para governá-la
bem? – Foi nomeado pretor. – Mas dispõe de meios e condições para o ser?
Não são as dignidades que proporcionam felicidade, mas sim o desempenhá-
las bem e delas fazer bom uso.

34

           Que não faz o banqueiro para examinar o dinheiro que lhe entregam?
Emprega todos os sentidos, a vista, o tacto, o ouvido. Não se contenta com
fazer vibrar a moeda uma, duas, três vezes; à força de analisar os tinidos,
quase se converte em músico. Todos somos banqueiros naquilo que, julgamos,
nos interessa; não há cuidado nem atenção que não empreguemos para evitar
que nos enganem. Mas quando se trata da nossa razão, de examinar os
nossos juízos, somos preguiçosos e negligentes, como se tal não tivesse para
nós nenhum interesse, porque desconhecemos os prejuízos acarretados pela
nossa incúria.

35

           Exigem os sentinelas uma contra-senha de quem quer que se aproxime.


Faze o mesmo: exige uma contra-senha de tudo quanto se te apresente à
imaginação, e nunca serás surpreendido.

36

           O desejo e a felicidade não podem estar juntos.

37

           Prefiro sempre o que acontece, por estar convencido de que a vontade
dos deuses é superior à minha. Atenho-me, pois, a ela, sigo-a e a ela conformo
os meus desejos, as minhas vontades e os meus atos.

38

           Conserva bem o teu e não invejes o alheio. Nada te impedirá de ser
venturoso.

39

 
           Em vez de fazeres a côrte a um velho rico, faze-a a um sábio. Este não
te fará corar, e tu jamais te afastará dele de mãos vazias.

40

           Suponde uma cidade governada segundo as máximas de Epicuro. Nela


tudo será transtorno. Não haverá casamento, nem magistrados, nem colégios,
nem polícia, nem educação possível; a piedade, a santidade, a justiça serão
desterradas; seguir-se-ão apenas torcidas regras de procedimento e conselhos
perniciosos, que nem as mulherezinhas mais desavergonhadas ousarão
sustentar. Pelo contrário, numa cidade governada segundo as máximas ditadas
pela razão, reinará a justiça e a ordem; seguir-se-ão opiniões sãs, praticar-se-
ão todas as virtudes, florescerá a justiça, estará bem regulamentada a polícia,
casar-se-ão os cidadãos, terão filhos e servirão aos deuses; o marido, contente
com sua mulher, não cobiçará a do próximo; contente com o seu bem, não
invejará o dos outros. Numa palavra, em tal cidade se cumprirão todos os
deveres.

41

           Não depende de ti ser rico, mas ser venturoso. A riqueza nem sempre
constitui um bem e, certamente, é pouco duradoura; mas a felicidade que
emana da sabedoria é eterna.

42

           É tão difícil aos ricos adquirir sabedoria quanto aos sábios adquirir
riqueza.

43

           O que aflige não é a pobreza, mas a avareza, assim como não é a
riqueza que preserva de todo e qualquer temor, mas a razão.
 

44

           Ornar a própria morada com móveis preciosos e magníficos é amar o


luxo. Ornar a alma com bondade, liberalidade e justiça é ser verdadeiramente
magnífico e humano.

45

           A vida que se passa na suntuosidade e na moleza é uma torrente de


águas turvas, espumosas, violentas, tumultuosas e passageiras. A vida
empregada na virtude é uma pura fonte cujas águas cristalinas, sãs e frescas,
jamais se acabam.

46

           Não te esqueças de que são os ricos, os reis, os tiranos que


proporcionaram personagens às tragédias; os pobres não aparecem nos
nossos teatros, e quando neles têm lugar é entre os cantores e bailarinas. São
os reis que prosperam no começo da obra; tudo lhes sorri, são honrados,
respeitados, erguem-se-lhes altares, ornam-se-lhes os palácios de coroas e
bandeiras e, ao cabo do terceiro ou quarto ato, exclamam: Ó Citérea, por que
me abriste as portas?

47

           Prescreve-te desde o início certas regras, e observa-as, quer estejas só,
quer acompanhado.

48

 
           Não rias por muito tempo, nem com excesso, nem com freqüência.

49

           Guarda-te de usar coisas necessárias ao corpo, enquanto o não exijam


as necessidades da alma, como a alimentação, as vestes, a habitação, os
criados, etc., e repele tudo quanto diz respeito à moleza e à vaidade.

50

           Reúnes em ti qualidades, cada uma das quais exige deveres que é
mister cumprir; és homem, cidadão do mundo, filho dos deuses, irmão dos
outros homens. Sob outros aspectos, és senador, ou possuis outra dignidade,
és jovem ou velho, filho, pai ou marido. Pensa em tudo aquilo a que te obrigam
tais nomes e trata de não desonrar nenhum deles.

51

           Foi bela sentença a de Agripa: jamais me servirei eu próprio de


obstáculo.

52

           Como os faróis dos portos que prestam auxílio aos barcos perdidos, o
homem de bem, na cidade combatida por toda espécie de tempestades, é de
grande utilidade aos concidadãos.

53

 
           Antes de te apresentares ao tribunal dos juizes, apresenta-te ao da
justiça.

54

           Empalideces, tremes, perturbas-te quando vais ver um príncipe ou outro


ilustre senhor – Como me receberá? Como me ouvirá? – Vil escravo! Receber-
te-á, ouvir-te-á como queira; tanto pior para ele se acolher mal um homem
prudente. Podes tu, por acaso, sofrer pelo erro de outrem? Como lhe falarei? –
Falar-lhe-ás como te aprouver. – Tenho medo de perturbar-me. - Não sabes
falar com discrição, com prudência e com livre dignidade? Quem te aconselhou
a temer um homem? Zeno não temeu Antígono, mas Antígono temeu Zeno.
Perturbou-se Sócrates quando falou aos tiranos e aos seus juizes? Tremeu
Diógenes quando falou a Alexandre, a Filipe, aos piratas, ao amo que o havia
comprado?

55

           Quem se submete aos homens já está submetido às coisas.

56

           Livra-te de desejos e temores, e livrar-te-á dos teus tiranos.

57

           Acabas de libertar um escravo. Mas tu, que lhe desta a liberdade, és
livre? Não és escravo de teu dinheiro, de tua mulher, de teus filhos, de teu
tirano, do último lacaio de um tirano?

58
 

           Muito bem disse Diógenes que o único meio de estabelecer a liberdade
é estar pronto para morrer.

59

           O próprio Diógenes escreveu ao rei dos persas: "Mais fácil que reduzir
os atenienses à escravidão ser-te-á reduzir os peixes; um peixe viverá mais
tempo fora da água que um ateniense na escravidão".

60

           Quando estiveres no teu quarto, de noite, com a porta bem fechada e
apagadas as luzes, guarda-te de crer que estás só, que o não estás.

61

           Afirmava Traséia preferir ser morto hoje a desterrado amanhã. Que lhe
respondeu Rufo? Se consideras pior o primeiro, és louco em o escolher; se o
consideras melhor, em que estribas a escolha?

62

           Diante de toda imagem que te assalte deves estar pronto a dizer: és
enganosa, e não o que pareces. Examina-a bem, aprofunda-a e, para sondá-la,
serve-te das regras aprendidas, sobretudo da que consiste em examinar se o
que te aparece é do número das coisas que dependem de ti ou das que de ti
não dependem.

63
 

           Visto que aspiras a tão grandes coisas, lembra-te de que não deves
trabalhar medianamente por adquiri-las. Mas de todas as exterioridades deves
renunciar completamente a umas e postergar outras; porque se tentas alcançá-
las juntamente, perseguindo ao mesmo tempo os verdadeiros bens, as
dignidades e as riquezas, não obterás nem sequer estas últimas; talvez deixes
de conseguir alguns bens, mas certamente carecerás dos únicos que
realmente podem constituir a tua felicidade.

64

           Não te esqueças de que se tomas por livres as coisas que, pela sua
natureza, são escravas, e por tuas próprias as que de outrem dependem, verás
por toda parte obstáculos, afligir-te-ás, perturbar-te-ás, e queixar-te-ás dos
deuses e dos homens. Se, pelo contrário, tomas por teu o que verdadeiramente
te pertence e por alheio o dos outros, ninguém te obrigará ao que não queiras,
nem te impedirá realizar os teus gostos, nem terás motivo de queixa, nem de
acusação.

65

           Qual é a natureza da divindade? Inteligência, ciência, ordem, razão.


Podes, portanto, conhecer qual a natureza do teu verdadeiro bem, que nela
somente se encontra.

66

           Um dia, perguntou um insolente a Diógenes: És tu, Diógenes, o que crê


não haver deuses?  - Sou Diógenes, respondeu-lhe ele, e tão certo estou de
que há deuses, que estou completamente persuadido que te detestam.

67

 
           Quando te aproximares dos príncipes e dos magnatas, lembra-te de que
há lá em cima um Príncipe ainda maior, que te vê e te ouve, e a quem deves
comprazer mais que a qualquer outro.

68

           Queres agradar aos deuses? Reflete que não há coisa que mais
detestem do que a impureza e a injustiça.

69

           Não se entristecia Hércules por deixar órfãos os filhos, pois sabia não
haver órfãos no mundo, e terem todos os homens um pai que deles cuida e
que jamais os abandona.

70

           O começo da filosofia é conhecermos a nossa fraqueza, a nossa


ignorância e os deveres necessários e indispensáveis.

71

           Que é o filósofo? Homem que, se o ouves, há de fazer-te certamente


mais livre que todos os pretores.

72

           Se há uma arte de bem falar, há igualmente uma arte de bem ouvir.

73

           Por que discutir com pessoas que se não rendem às mais evidentes
verdades? Não são homens, são pedras.
74

           Julgas que te direi laborioso, ainda que passes as noites estudando,
lendo? Não, sem dúvida. Quero antes saber a que ligas tal estudo e aplicas tal
esforço; porque não digo laborioso o homem que vela a noite inteira para ver a
prometida; digo que está apaixonado. Se velas pela tua glória, chamo-te
ambicioso; se para juntar dinheiro, chamo-te interessado; mas se velas para
cultivar e formar a razão, e acostumar-te a obedecer à natureza e a cumprir os
teus deveres, somente então te direi laborioso, porque é esse o único trabalho
digno do homem,

75

           Cobres de injúrias uma pedra. Que proveito terás? Não compreenderá
nada do que disseres. Imita a pedra e não dês ouvidos às injúrias.

76

           Não há coisa que o homem sensato suporte menos do que tudo quanto
é irracional.

77

           Para cada um a medida da riqueza é o corpo, como é o pé a medida do


calçado. Se te ativeres a essa regra, guardarás a medida justa; se dela te
esqueceres, estarás perdido, e descambarás necessariamente para um
precipício em que nada te poderá deter. Do mesmo modo, no calçado, uma vez
que passares a medida do teu pé, terás sapatos dourados, terás sapatos de
púrpura e, por fim, hás de querê-los bordados, pois não há termo para o que
ultrapassa os justos limites.

78

           Vale mais o perdão que a vingança, porque um é efeito de uma natureza
doce e humana, e outra o de uma organização feroz e brutal.

79

           Não deve inspirar medo a pobreza, nem o desterro, nem a prisão, nem a
morte. O que deve inspirar medo é o próprio medo.

80

           Adquiriste belas coisas. Tens muitos vasos de ouro e prata, és rico, mas
o melhor te falta: a constância, a submissão às ordens divinas, a tranqüilidade,
o estar isento de confusão e temor. Quanto a mim, pobre como sou, sou mais
rico que tu. Não me preocupo com ter padrinhos na côrte; não me importo com
o que possa dizer-se de mim ao Príncipe, e não faço mal a ninguém. Eis o que
me faz gozar de todos os bens. Tens vasos de pedraria, mas todos os teus
pensamentos, todos os teus desejos, todos os teus atos, todas as tuas
inclinações são de terra.

81

           Todos tememos pelo destino do corpo, e na alma ninguém pensa.

82

           Lembra-te de que deves haver-te na vida como num festim. Chega-te
um prato? Estende a mão com decência, e serve-te moderadamente. Retiram-
no da tua presença? Não o retenhas. Ainda não chegou? Não estendas muito
longe o teu desejo, e espera que chegue, afinal, ao teu lado. Faze o mesmo
com os filhos, com a mulher, com os cargos e as dignidades, com a riqueza, e
serás digno de admitido à própria mesa dos deuses. Se, ao te serem
apresentados os manjares, os não tocares, e repelires ou menosprezares, não
somente serás convidado dos deuses, mas seu companheiro. Por tal meio,
Diógenes, Heráclito e outros chegaram a ser homens divinos e universalmente
reconhecidos como tais.

83

           Houve por bem Páris raptar Helena, e houve esta por bem segui-lo. Se
da mesma maneira a Menelau se houvesse afigurado bem dispensar uma
esposa infiel, que teria acontecido? Teríamos perdido a Ilíada e a Odisséia. O
resto não tem importância.

84

           Por que meio conseguiremos não formar falsos juízos? Evitando que tal
nos ensinem desde a infância. A nossa nutriz, que nos ensina a caminhar,
quando, por acaso, damos de encontro a uma pedra e choramos, em vez de
repreender-nos, põe-se a ralhar com a pedra. Poderia esta adivinhar que
iríamos bater contra ela, e mudar de lugar? Quando já somos adolescentes, se,
ao sairmos do banho, não achamos pronta a refeição, irritamo-nos, e o nosso
pedagogo, ou aio, em vez de nos reprimir a cólera, começa a ralhar, por sua
vez, e com mais aspereza, voltando-se para o cozinheiro. Bem se lhe poderia
dizer: – Pagam-te para ser mestre do cozinheiro ou do menino? Modera a
cólera e corrige a impaciência do teu discípulo. - Quando já somos homens
formados e temos as nossas ocupações, vemos todos os dias casos idênticos.
É por isso que vivemos e morremos crianças. Que é ser criança? – Assim
como na música ou nas letras, é criança quem a não sabe, ou a sabe mal, na
vida pode chamar-se criança quem não sabe viver e não tem idéias sensatas.

85

           O sábio salva a vida ao perdê-la.

86
           Pergunto-te que progresso realizaste na virtude, e mostras-me um livro
de Crisipo, que te gabas de compreender. É como se um atleta, cuja força eu
pretendesse conhecer, em vez de me mostrar os braços musculosos e os
largos ombros, me fizesse ver apenas as manoplas. Assim como quereria ver o
que fez o atleta com as manoplas, quereria saber o que fizeste tu com o livro
de Crisipo. Praticaste-lhe os preceitos? Ordenaste bem os teus temores e
desejos? O progresso aparece na própria obra. Educaste a alma na liberdade,
na fidelidade, no pudor? Acha-se em estado de nada lhe poder servir de
obstáculo e perturbação? Prescindiste na vida dos gemidos, das queixas e das
exclamações importunas? Meditaste o que é a prisão, o ostracismo, a cicuta?
Podes dizer em qualquer ocasião: sigamos com valor o caminho pelo qual nos
chamam os deuses?

87

           O respeito que se tem ao que pode prejudicar é como o altar erguido à
febre no meio de Roma. Adora-se, porque se teme.

88

           Nunca digas: perdi isto, senão: devolvi. Morreu-te o filho? Devolveste-o.
Morreu-te a mulher? Devolveste-a. Tirou-se-te a terra? É uma restituição que
fizeste. Quem ta tira é mau; mas que importa a qualidade das mãos com as
quais te é tirada? Usa todas as coisas que estão em teu poder como coisas
que te não pertencem, como fazem os viandantes com as estalagens.

89

           Se Sócrates, dizes, se tivesse salvado, ainda seria útil aos homens. –
Meu amigo, o que Sócrates disse e fez, recusando salvar-se e morrendo pela
justiça, é muito mais útil que tudo quanto houvera podido fazer noutro caso.

90

           Duas coisas há que devem ser tiradas aos homens: a vaidade e a
desconfiança.

91

           Tudo quanto se pode utilmente descuidar, mais utilmente ainda se pode
abandonar.

92

           Em tudo é necessária a atenção, até mesmo nos prazeres. Há coisa que
a negligência adquira facilmente?

93
           Os que sustentam não haver verdade conhecida desmentem tal
princípio com uma pretensa verdade. Seja verdadeira ou falsa tal afirmação é
para eles, uma verdade conhecida.

94

           É mister possua um Príncipe extraordinário mérito para que, somente


por amor, se lhe obedeça.

95

           Por que sou velho? Vil escravo! Acusas a Providência por um pé
disforme. Que é mais racional, que a Providência esteja submetida ao teu pé,
ou que este o esteja à Providência?

96

           A grandeza do entendimento não se mede pela extensão; mede-se pela


verdade e certeza das opiniões.

97

           Pretendes ser como os maus comediantes, que só logram cantar nos
coros?

98

           O meu dever, enquanto me dure a vida, é dar graças aos deuses, louvá-
los pública e particularmente, e não deixar de os abençoar até que tenha termo
a vida.

99

           Se te é possível, faze recair a conversação dos teus amigos sobre


coisas convenientes e dignas. E se estás entre estranhos, guarda prudente
silêncio.

100

           Quando vês uma víbora ou uma serpente num barco de ouro, acaso lhe
tens alguma estima? Não sentes por ela o mesmo horror, a causa da sua
natureza mortal e venenosa? Faze o mesmo com o mau, quando o vês no
meio dos seus haveres.

101

           Evita comer fora de casa e foge dos festins públicos. Mas se uma
circunstância extraordinária te obriga a assistir a um deles, redobra a atenção
para contigo próprio, a fim de não vires a ser influído pelas maneiras vulgares.
Sabe que se um dos convidados é sujo, necessariamente se manchará quem
lhe estiver ao lado, por mais limpo que seja.

102

           Cada qual se atribui livremente um preço alto ou baixo, e ninguém vale
senão o que se faz valer. Tacha-te, pois, de livre ou de escravo, que isso
apenas de ti depende.

103

           Sócrates amava os filhos, mas amava-os como homem livre, e lembrado
de que, em primeiro lugar, devia amar os deuses. Assim, jamais proferiu
palavra que não fosse digna de homem de bem, nem quando se defendeu
perante os juizes, nem quando foi senador, nem quando esteve na guerra. Nós,
porém, em tudo achamos pretexto de baixeza e covardia; no filho, na mãe, no
irmão. Não obstante, deveríamos não fazer-nos desgraçados por ninguém, e,
pelo contrário, fazer de todas as criaturas meios da nossa felicidade, e,
principalmente, servidores dos deuses que nos criaram, a fim de sermos
venturosos.

104

           Deixas de prestar atenção e confias em que tornarás a prestá-la,


quando te aprouver. Uma leve falta descuidada hoje te precipitará amanhã em
outra maior, e esta, repetida, formará em ti um hábito que não mais poderás
corrigir.

105

           Careces do necessário para viver, e perguntas-me se, para procurá-lo,


deves rebaixar-te aos mais abjetos misteres: que posso dizer-te sobre isso? Há
pessoas que preferem o mais baixo mister a morrer de fome: outras há às
quais tal seria insuportável. Não é, portanto, a mim que deves consultar, senão
a ti próprio.

106

           Assim como esta proposição: é dia, é noite, é muito sensata quando
está separada e constituída em duas partes, e insensata quando é complexa,
isto é, quando as duas partes constituem uma, assim também nos festins não
há nada tão insensato como querer alguém tudo para si próprio, sem
consideração aos demais. Portanto, quando te convidarem a um banquete,
lembra-te de não pensar tanto na qualidade dos manjares servidos, que te
excitem o apetite, como na qualidade de quem te convidou e em conservar o
respeito e admiração que lhe deves.

107
           Procura, a maioria das vezes, guardar silêncio, ou, pelo menos, não
proferir senão as palavras necessárias, e sê breve. Raramente nos vemos
obrigados a falar, se não falarmos mais do que quando o permitam as
circunstâncias; não nos entretenhamos com coisas triviais e comuns, como os
combates de gladiadores, as corridas de cavalos, os trajes, o comer, o beber,
que são assuntos das conversações de todos os dias. Sobretudo, jamais fales
dos homens para criticá-los ou elogiá-los, e menos ainda para estabelecer
entre uns e outros comparações.

108

           Queres parecer-te ao total dos homens, como se parece um fio da tua
túnica aos demais fios que a compõem, mas eu quero esta faixa de púrpura
que não somente é bela, como também embeleza tudo aquilo a que se aplica.
Por que, pois, me aconselhas a ser como os outros? Se eu fora como o fio, não
seria como a púrpura.

109

           Quando embarco e só vejo céu e água, espanta-me a imensa e líquida


superfície que me rodeia, como se tivesse de bebê-la toda ao naufragar, sem
ter em conta que bastam três medidas de água para afogar-me; do mesmo
modo, ao menor tremor de terra imagino que vai cair sobre mim a cidade
inteira, quando sei que basta uma telha para quebrar-me a cabeça. Ah,
desditoso escravo da imaginação!

110

           Os loucos são incorrigíveis. Afirma o provérbio que é mais fácil quebrar
um louco do que mudá-lo.

111

           Lembra-te de que o fim dos teus desejos é obter o desejado, e o fim dos
teus temores evitar o temido. Quem não obtém o que deseja é desgraçado, e
quem cai no que teme é mísero. Se não professares aversão senão ao que é
contrário ao teu verdadeiro bem e de ti depende, jamais cairás no temido; mas
se temeres a morte, as enfermidades ou a pobreza, serás mísero. Faze,
portanto, recair os teus temores sobre as coisas que de ti dependem, e quanto
aos teus desejos, faze o mesmo, porque se desejas alguma coisa que não
esteja em ti alcançar, é sinal evidente de te não achares ainda em estado de
conhecer as que devemos desejar. Esperando tal estado, contenta-te com
desejar e temer as coisas docemente, sempre com exceção e sem violência.

112

           Compomo-nos de duas naturezas assaz distintas: de um  corpo que nos
é comum com os animais e de um espírito que nos é comum com os deuses.
Uns tendem para o primeiro parentesco, se é permitido assim falar, parentesco
desditoso e morto, e outros tendem para o segundo, parentesco ditoso e divino.
Nasce daí pensarem uns nobremente e outros, em maior número, só terem
pensamentos baixos e indignos. Que sou eu? Um homem desditoso, e as
carnes que me revestem são, com efeito, más e míseras; mas trago em mim
algo mais nobre que a carne; por que, pois, tamanho apego a ela, afastando-
me desse outro princípio tão elevado? Vede a pendente pela qual se atira a
maioria dos mortais, e vede por que há neles tanto de tigre, tanto de lobo, tanto
de leão, e tão pouco de homem. Cuidado, meu amigo! Procura não aumentar o
número de tais monstros.

113

           Considera, primeiramente, o que desejas; depois, examina a tua própria


natureza, e vê se é suficientemente forte para levar o fardo. Queres ser
gladiador? Olha os braços, considera os músculos, examina as costas, porque
nem todos nascemos para a mesma coisa. Pensas que, abraçando tal
profissão, poderás comer como os outros, beber como eles, renunciar como
eles a todos os prazeres? É mister velar, trabalhar, afastar-se dos parentes e
dos amigos, ser o joguete de uma criança, ficar por baixo de todos nas
honrarias, nos cargos, nos tribunais; numa palavra, em todos os negócios.
Considera bem tudo isso e vê se podes comprar por tal preço a tranqüilidade, a
liberdade, a constância. Se não, dedica-te a outra coisa e não procedas como
as crianças: não sejas hoje filósofo, amanhã sequaz, em seguida pretor e
depois privado do Príncipe; estas coisas não se condizem. É necessário que
sejas um só homem, bom ou mau, que te apliques ao que te diz respeito, que
trabalhes por adquirir os bens interiores e exteriores, isto é, que te sustentes
com o caráter de filósofo ou de homem comum.

114

           Por que nasci de tais pais? Meu amigo, antes do teu nascimento,
dependia de ti dizer: quero que tais pessoas contraiam núpcias, e quero nascer
delas? Se o teu nascimento é desditoso, não depende acaso de ti corrigi-lo
com a virtude?

115

           Teu amigo, teu filho, partiram; abandonaram-te, e tu choras. Não sabias
que o homem era viandante? Sofres o castigo da tua loucura. Crês que terás
sempre perto de ti os objetos dos teus prazeres e que gozarás sempre dos
lugares e das coisas que te são agradáveis? Quem to prometeu?

116

           Queres dar à tua cidade natal uma oferta raríssima e de grande valor?
Dá-te inteiramente a ela, depois de te haveres convertido em modelo perfeito
de doçura, de liberalidade e de justiça.

117
           Queres envelhecer e não ver morrer os que amas, isto é, queres que
todos os teus amigos sejam imortais, e que para ti unicamente mudem os
deuses as suas leis e a ordem da natureza. É justo isso, insensato?

118

           Acabas de receber novas de Roma, e cais no pranto e na tristeza. É


possível que o que se passa a duzentas léguas de ti te torne desgraçado?
Dize-me, suplico-te: que mal pode suceder-te onde não estás?

119

           Nada tens que não tenhas recebido. Quem te deu tudo, tira-te uma
coisa. Resistindo-lhe, além de louco, és ingrato e injusto.

120

           As coisas que de nós dependem são livres pela sua natureza; nada
pode detê-las nem levantar-lhes obstáculos, e as que de nós não dependem
são débeis, escravas, dependentes, sujeitas a mil inconvenientes e obstáculos,
e inteiramente estranhas.

121

           Quando tornarei a ver Atenas e a Acrópole? Nada podes ver mais
formoso que o céu, o sol, a lua, as estrelas, a terra, o mar. Se estás aflito por
haveres perdido de vista Atenas, que farás quando for mister perder de vista o
sol?

122

           Hércules, exercitado por Euristeu, não se considerava desditoso, e


executava tudo quanto lhe ordenava o tirano, por difícil que fosse. Tu,
exercitado pelos deuses que te criaram, gritas, lamentas-te e te consideras
infeliz. Que covardia, que fraqueza!

123

           Não queres, pois, ser sóbrio e abandonar o leite para nutrir-te de carne
sólida? Queres ainda chorar e gritar, recostado ao peito da nutriz e voltar aos
contos e canções com que ela te embalava?

124

           A regra e medida dos nossos atos são as nossas opiniões. De onde
nasceu a Astréia de Eurípedes? Da opinião. E a sua Medéia e o seu Hipólito?
Da opinião. E o Édipo de Sófocles? Da opinião.

125
           Quando soar a hora, morrerei, mas morrerei como deve morrer o
homem que sabe devolver o que lhe foi confiado para guarda.

126

           Não devemos regozijar-nos com os homens, nem com eles congratular-
nos se não pelas coisas de que têm verdadeiro motivo de regozijo e que lhes
são honrosas e úteis.

127

           O característico da verdadeira felicidade é durar sempre e não encontrar


obstáculo. O que não possui esses dois caracteres não é verdadeira felicidade.

128

           Não te esqueças das palavras de Sócrates: "Críton, sigamos


corajosamente a senda pela qual nos conduzem os deuses, e nos chamam.
Anito e Melito podem matar-me, mas não podem fazer-me morrer".

129

           Umas coisas do mundo dependem de nós, outras não. As que de nós
dependem são os nossos juízos, os nossos movimentos, as nossas
inclinações, as nossas aversões, os nossos desejos, numa palavra, todos os
nossos atos.

130

           As que de nós não dependem são o corpo, os bens, a reputação, as


dignidades, numa palavra, todas as coisas que não são os nossos próprios
atos.

131

           Lembra-te de que és ator na obra, breve ou longa, em que o seu autor te
fez tomar parte. Se quer que representes o papel de mendigo, mister é que o
desempenhes da melhor maneira possível. Ademais, se quer dar-te o papel de
coxo, de príncipe, de particular, deves representá-lo, pois está em tuas mãos
desempenhar bem o teu papel, mas não escolhê-lo.

132

           Temes falar da morte, como coisa de mau agouro. Não há mau agouro
no que não faz senão marcar a ação da natureza. A preguiça, a imprudência, a
covardia, os demais vícios, é que são realmente coisa de mau agouro. E, no
entanto, uma vez que não se possa evitar uma coisa, não se deve temer
proferir-lhe o nome.

133
           Os verdadeiros dias de festa para ti são aqueles em que venceste uma
tentação, em que atiraste para longe de ti, ou pelo menos enfraqueceste, o
orgulho, a temeridade, a malignidade, a maledicência, a inveja, a obscenidade
das palavras, o luxo ou qualquer outro dos demais vícios que te tiranizam. Isso,
muito mais que obter um consulado ou a chefia de um exército, merece que
faças sacrifícios.

134

           Sobre cada uma das coisas que te divertem, que te servem e que
aprecias, lembra-te de pensar e de perceber o que verdadeiramente é,
começando pela menor. Se gostas de um vasinho de terra, lembra-te de que é
de terra, para que, se suceda quebrar-se, não fiques impressionado. Se gostas
de teu filho ou de tua mulher, dize ao espírito que gostas de uma criatura
mortal, para que, se suceda morrer, te cause menos dor.

135

           Quando vires alguém cumulado de honras, ou elevado a um grande


poder, ou de qualquer modo florescente, procura fazer com que não diminua a
tua imaginação, e não o consideres ditoso, porque se a essência do verdadeiro
bem consiste nas coisas que de nós dependem, nem a inveja, nem a
emulação, nem os ciúmes têm motivos de existência. Tu próprio não quererás
ser general de exército, nem senador, nem cônsul, mas livre; e para alcançares
essa liberdade, há somente um caminho: o desprezo das coisas que de nós
não dependem.

136

           Quando ouvires ou vires algo de mau agouro, não te deixes levar pela
imaginação; pelo contrário, faze em ti próprio esta consideração: não diz
respeito a mim próprio este infeliz agouro, senão ao meu corpo, ao meu bem
ou à minha reputação, ou a meus filhos ou minha esposa. Quanto a ti, não
pode haver mais que felizes presságios, se assim desejas, porque, suceda o
que suceder, de ti é que depende tirar dele o maior bem.

137

           De ti depende fazer bom uso de tudo o que se verifica. Não digas, pois:
que sucederá? Que te importa o que possa suceder, se de tudo és capaz de
tirar proveito, se de tudo podes fazer bom uso, e qualquer coisa que se realize
pode chegar a ser para ti felicidade enorme? Se aos olhos se te apresenta
medonha fera, ou tens que sustentar um feroz combate contra homens
implacáveis e terríveis, de que te afliges? Se te antolha uma fera, o combate é
maior e mais glorioso. Se pelo caminho encontrares homens prodigiosos e
intratáveis, terás maior mérito se conseguires, ao vencê-los, livrar deles o
mundo. E se eu morrer? Se morreres, morrerás como herói. Que mais podes
desejar?

138
           Ocupas-te unicamente de habitar suntuosos palácios, de te rodeares de
uma turba de lacaios e mordomos, de te vestires magnificamente e de
possuíres apetrechos de caça, músicos e tropa de comediantes. Julgas que te
invejo por isso? Cultivaste a razão? Trataste de adquirir sãs opiniões e de
aproximar-te da verdade? Por que, pois, te envergonhas de possuir eu sobre ti
uma vantagem no que descuidaste? É que isso é precioso e grande. Tanto
melhor se o sabes; mas quem te impede consegui-lo? Em vez de caçadores,
de músicos, de comediantes, rodeia-te de gente sã de entendimento; ninguém
pode dispor de mais tempo, de mais livros, de mais mestres do que tu.
Começa; dá à razão alguma coisa do tempo que te sobra; numa palavra,
escolhe. Se continuares a satisfazer-te com exterioridades, terás, certamente,
móveis mais raros e magníficos que os de qualquer outro, mas a tua pobre
inteligência, assim abandonada à incúria, ficará no embrutecimento.

139

           É justo e natural que o que se aplica inteiramente a uma coisa a


consiga, e logre nela acerto, e vantagem sobre o que a descuida. O folgazão
emprega toda a vida em busca do prazer e do requinte; quando se levanta,
pensa no modo de fazer a côrte ao objeto do seu amor, e de adular o príncipe;
diante deles, adula-os, faz-lhe presentes. Nas suas preces e sacrifícios, só
pede aos deuses que lhe dêem a ventura de comprazer-lhes. Todas as noites
faz exame de consciência: Em que delinqüi? Que fiz? Que omiti do que devia
fazer? Deixei de dizer ao Príncipe alguma coisa que lhe houvera agradado?
Deixei escapar imprudentemente alguma verdade que lhe haja desagradado?
Deixei de lhe aplaudir os defeitos e elogiar tal injustiça ou tal má ação sua?
Quando, por acaso, profere uma palavra digna de homem de bem e de homem
livre, teme, faz penitência, e julga-se perdido. Vede como lavra o seu bem
estar. Tu, pelo contrário, a ninguém cortejas, a ninguém adulas; cultivas a
alma, trabalhas por formar sãos juízos; o teu exame de consciência é assaz
diverso do primeiro. Perguntas-te: Descuidei alguma coisa das que contribuem
para a verdadeira felicidade e agradem aos deuses? Faltei à amizade, à
sociabilidade, à justiça? Deixei de fazer o que deve fazer o homem de bem?
Com desejos tão opostos, sentimentos tão contrários e tão diversa aplicação,
como pode envergonhar-te não igualares o primeiro nos bens da sorte? Por
que o invejas? Seguramente, ele te não invejará. E assim sucede porque,
imerso na ignorância e na cegueira, está firmemente persuadido de desfrutar
dos verdadeiros bens, ao passo que tu não estás ainda bastante firme e seguro
nos teus princípios para ver e sentir que está do teu lado toda a felicidade.

140

           Não há nada tão freqüente como ver poderosos que julgam saber tudo,
e nada sabem, ignorando até as verdades mais necessárias. Como nascem na
abastança e não sentem necessidade nenhuma, não suspeitam de que lhes
possa faltar alguma coisa. Dizia eu assim, uma tarde, a um dos mais
considerados: – Estais perto do Príncipe, possuís grande quantidade de
administradores poderosos e grandes alianças; por meio do vosso crédito
podeis servir aos amigos e destruir os invejosos. – Que me falta, pois?
perguntou-me. – O mais importante e necessário à verdadeira felicidade; até
aqui, fizestes o contrário do que vos convém, descuidando o principal. Não
sabeis o que são os deuses, nem o que é o homem; ignorais a natureza do
bem e do mal, e, o que vos surpreenderá mais que tudo, vós próprio vos
desconheceis. Ah, fugis e vos encolerizais pelo que vos manifesto com esta
franqueza! Que mal vos fiz? Somente vos apresentei o espelho em que viste a
vossa imagem.

141

           Nada se dá sem recompensa. Pretendes um Consulado? Terás de


intrigar, pedir, rogar, beijar a mão deste, daquele, bater-lhe à porta, praticar mil
baixezas e mil indignidades, enviar todos os dias novos presentes. E que é ser
cônsul? Levar à frente doze feixes de varas, sentar-se três ou quatro vezes
num Tribunal, dar jogos e festins ao povo; eis tudo. E para estar livre de
paixões e de cuidados, para ser constante e magnânimo, para poder dormir de
noite e velar de dia, para não ter angústias nem temores, não queres dar nada,
nem ter nenhum trabalho? Julga tu próprio o teu procedimento.

142

           Foste preferido num festim, num conselho, numa visita. Se são bens as
preferências de que és alvo, devera alegrar-te recaírem elas sobre o próximo, e
se são males, não te aflijas, por te não veres livre deles; mas lembra-te de que
não pode caber-te deles a mesma participação que cabe aos que lidam por
adquirir o que deles não depende. Quem nunca bate à porta de um grande
senhor não pode ser tão bem tratado como o que lá vai todos os dias; quem o
não acompanha quando sai, como o que lhe fica sempre ao lado; quem o não
adula nem tampouco o lisonjeia, como o que outra ocupação não conhece.
Portanto, és injusto e insaciável, se, não dando as coisas com as quais se
compram os favores, os queres obter gratuitamente. Por que preço vendem os
legumes no mercado? Por um óbulo. Se, pois, der o teu vizinho um óbulo e
levar o seu legume, ao passo que tu, sem dar o óbulo, sem o legume
regressas, não imagines ser por isso menos afortunado, pois se ele tem
legume, tens tu óbulo, já que o não entregaste. O mesmo sucede neste caso:
não foste convidado a um festim? Tampouco deste ao hóspede o preço pelo
qual o vende; esse preço é um elogio, uma visita, uma complacência, uma
subordinação; dá, pois, o preço, se a coisa te agrada, mas não queiras, sem
ele, adquirir a mercadoria. No resto, não sintas pesar se não tens assento no
festim, desde que tenhas conseguido conservar o que é superiormente
estimável, como a independência e o direito de exprimir livremente os teus
sentimentos.

143

           Sê firme na prática de todas estas máximas, e observa-as,  pois devem


ser para ti leis invioláveis, e não te preocupe a maledicência, pois ela não figura
no número das coisas que de ti dependem.

144
           Quando acusas a Providência, sabe que em ti próprio está a sua
justificação. Em que possui o mau vantagem sobre ti? Na riqueza? Examina-
lhe o interior, e dize se te não envergonharia a vida que ele observa. Há dias,
exprimi esse pensamento a um homem a quem envergonhava a prosperidade
de Filostorcos. Disse-lhe eu: - Venderias os teus favores a Sura? – Não o
queiram os deuses, respondeu-me, preferiria, e com prazer, perdem vida. Por
que, então, te envergonhas de uma dita que tem o seu preço? Por que o achas
ditoso ao possuir coisas que detestas? Em que te maltratou a Providência
dando-te o que de melhor possui? Não te queixes; a sabedoria é mais preciosa
que as riquezas, e a humildade mais que a ambição.

145

           Não podes ser um Hércules, nem tampouco um Teseu, para limpar de
monstros a terra; mas podes imitá-los, atirando para longe de ti os monstros
que te assediam. Em vez de Procusto e de Círon, doma a violência da dor, o
medo, a concupiscência, a inveja, a avareza, a preguiça e a intemperança. O
único meio de vencer tais monstros é ter sempre diante dos olhos os deuses,
ser-lhes devoto e obedecer apenas aos seus preceitos.

146

           Desejas muitas coisas e, entretanto, se desejasses menos, as


conseguirias. És semelhante à criança que, desejando colher as frutas metidas
num vaso de estreita abertura, nela introduzisse a mão e pretendesse tirá-la
cheia. A ambição desmedida só pode frutificar em lágrimas.

147

           Não é raciocinar prudentemente dizer: – Sou mais rico do que tu, logo
sou melhor; sou mais eloqüente, logo valho mais. – Para raciocinar
consequentemente, é preciso dizer: Sou mais rico do que tu, logo o meu bem
atual é maior; sou mais eloqüente, logo a minha eloquência vale mais do que a
tua.

148

           Quando se atiram à população figos e avelãs, os meninos se espancam


para colhê-los, mas os homens não dão a eles a menor importância.
Distribuem-se governos de província: são frutas para os meninos; honras,
consulados, são para mim figos e avelãs. Se, por acaso, tomba um deles na
minha túnica, pego-o e como-o. É tudo quanto vale; mas não me curvarei para
pegá-lo, nem muito menos pisarei o próximo.

149

           Os deuses me abandonam na pobreza, na miséria, no cativeiro. Não é


por cólera que por mim experimentem, porque não há quem se encolerize com
um fiel servidor; não é por descuido, porque não descuidam a menor coisa.
Querem provar-me, querem ver se tem em mim um bom soldado, um bom
cidadão; querem, enfim, que lhes sirva de testemunho vivo no seio dos demais
homens.

150

           Até quando diferirás julgar-te digno de grandes feitos e por-te em estado
de jamais ferir a reta razão? Recebeste os preceitos aos quais deverias dar o
teu consentimento. Deste-o. Por que, pois, postergar a emenda? Não és uma
criança, e sim homem feito. Se te descuidares, se te distraíres, se abrigares
resolução e mais resolução, se todos os dias assinalares um novo em que
haverás de prestar atenção a ti próprio, sucederá finalmente que, sem o
perceberes, não terás realizado nenhum progresso, e perseverarás
eternamente na ignorância. Valor, portanto; julga-te digno, desde hoje, de viver
como homem, e como homem  que já realizou alguns progressos na sabedoria;
que tudo quanto se te afigure bom e belo seja para ti lei inviolável. Se se te
oferecer algo de penoso ou agradável, de glorioso ou vergonhoso, lembra-te de
que a luta está aberta, que os jogos olímpicos te chamam, que não convém
postergar, e sim, pelo contrário, levar a caba, e enfim que, de um momento a
outro de um único ato de valor ou de covardia depende a tua salvação ou a tua
perda. Não foi de outro modo que logrou Sócrates chegar à perfeição fazendo
com que todas as coisas servissem ao seu fim, e seguindo constantemente a
razão. Quanto a ti, embora não sejas Sócrates, deves viver como se tivesses
de o ser um dia.

151

           Se nasceste de pais nobres, persuadido da tua nobreza, não deixas de


tê-la constantemente diante dos olhos, e de com ela aturdir todos. Mas tens a
divindade por pai, ela se manifesta em volta de ti, e esqueces-te dessa nobreza
e ignoras de onde vieste, e a marca que trazes na testa. Eis aquilo de que
deverás lembrar-te em todos os atos da tua vida. Pensa a todo instante: foi a
divindade que me criou; está em volta de mim, em mim próprio a levo por toda
parte. Por que ofendê-la com pensamentos obscenos, baixas e impuras ações
e infames desejos?

152

           Se os deuses te houvessem incumbido da guarda de uma pupila,


cuidarias dela e não permitirias se perdesse tão valioso depósito. Mas
confiaram-te a guarda de ti próprio. Disseram-te: não julgamos poder colocar-te
em mãos de tutor mais fiel, mais afetuoso; guarda-nos este filho tal qual é por
natureza; conserva-no-lo cheio de pudor, de fidelidade, de magnanimidade, de
valor, isento de paixões. E tu te descuidas. Haverá maior crime?

153

           Terias escrúpulo em cometer atos desonestos diante de uma estátua ou


de uma imagem dos deuses; não obstante, vêem-te, ouvem-te, e não coras ao
abrigar em sua presença pensamentos obscenos, que os ferem, que os
desonram, que os afligem. Oh, inimigo dos deuses! Oh, covarde, que te
esqueceste da tua natureza!

154

           Se fosses uma estátua de Fídias, a sua Minerva, ou o seu Júpiter, e


tivesses consciência do teu estado, cuidarias, lembrando-te do obreiro que te
dera a forma, de nada fazer que fosse indigno dele e de ti, e por nada no
mundo quererias aparecer num estado indecente que desonrasse a tua beleza;
mas, sem te inquietares absolutamente com aquele em que apareceres diante
dos deuses, desonras a mão que te formou. Que diferença, entretanto, entre
obreiro e obreiro, obra e obra!

155

           Quando fizeres alguma coisa depois de saberes a fundo que é o teu
dever, não evites, ao fazê-la, ser visto, ainda que o vulgo forme de ti falsos
juízos; porque se a ação é má, não deves realizá-la; e se é boa, não deve
importar-te a condenem os maus.

156

           Quis certa matrona romana enviar uma grande quantia em prata a um
dos seus amigos, chamado Grátila, desterrado por Domiciano; disse-lhe
alguém que o imperador se apoderaria da quantia e a confiscaria. – Não
importa, respondeu ela. Prefiro, a não enviá-la, que Domiciano a roube.

157

           Qual é o varão invencível? Aquele que, imóvel no seu lugar, não se
preocupa com as coisas que não dependem da sua vontade; considero-o um
verdadeiro atleta. Sustentou um combate. Sustentará o segundo? Resistiu ao
dinheiro. Resistirá à beleza? Venceu em pleno dia, no meio do mundo.
Vencerá, sozinho, durante a noite? Triunfará da glória, da calúnia, da adulação,
da morte? Dominará todos os incômodos e todas as tristezas? Numa palavra,
será vitorioso até em sonhos? Vê o atleta que eu procuro.

158

           Hércules houvera sido Hércules sem os leões, tigres, os monstros, os


bandidos e demais seres de que livrou a terra? Sem tais monstros, de que lhe
teriam servido os musculosos braços, a força e a coragem, a paciência
invencível e as demais qualidades?

159

           Evita o juramento em tudo e por tudo; se não, sempre que o permitam
as circunstâncias.

160
           Um pede o Tribunato; outro a chefia dos exércitos; eu o pudor e a
modéstia, porque sou livre e amigo dos deuses e lhes obedeço de todo o
coração. É, pois, necessário que não dê importância ao corpo, à riqueza, às
dignidades, à reputação, nem a qualquer coisa estranha, porque não querem
os deuses que eu lhes dê importância. Se o tivessem querido, houveram feito
com que fossem bons para mim; mas, visto que assim não procederam, não
são evidentemente bons, e obedeço às ordens deles.

161

           A primeira coisa que é mister aprender é que existe um Deus que a tudo
governa com a sua providência e a não podem estar ocultos nem os nossos
atos, nem os nossos pensamentos e vontades. Logo, é necessário examinar-
lhe a natureza. Uma vez bem determinada e conhecida a sua natureza, é
preciso que os que pretendem agradar-lhe e oferecer-lhe, se esforcem por
parecer-se a Ele; que sejam livres, fiéis, benévolos, misericordiosos,
magnânimos. Todos os teus pensamentos, todas as tuas palavras, todos os
teus atos sejam, pois, atos, palavras e pensamentos de homem que imita a
Deus e com Ele procura ter alguma semelhança.

162

           Ensinam os filósofos que o homem é livre. Ensinam, por conseguinte, a


menosprezar a autoridade do imperador? Não. Nenhum filósofo ensina os
discípulos a revoltar-se contra o seu Príncipe, nem a subtrair à autoridade dele
nada do que lhe está submetido. Tomai, eis o meu corpo, os meus bens, a
minha reputação, minha família; entrego-vo-los; e se achardes que ensino
alguém a retê-los, matai-me; sou um rebelde. Não é isso o que ensino aos
homens; ensino-lhes apenas a conservar a independência das suas opiniões,
de que os fez donos exclusivos a Divindade.

163

           Sabei que o principal fundamento da Religião consiste em crer que


existem os deuses, que estendem a sua providência sobre tudo quanto existe,
que governam o Universo com perfeição e justiça, que o homem está no
mundo para lhes obedecer, para admitir de bom grado tudo o que deles
provenha, e prestar a sua aquiescência às coisas que deles procedem, como
de Providência boa e sábia. Desse modo, jamais te queixarás dos deuses nem
tampouco os acusarás de te haverem esquecido. Mas tais sentimentos não
podes adquiri-los sem renunciar a tudo quanto de ti não depende, e fazendo
consistir os teus bens e os teus males no que depende da tua vontade; porque
se tomas por bem ou por mal uma coisa estranha, é absolutamente necessário
que, uma vez que se te frustrem os desejos ou que caias no que temes, te
encolerizes e acuses a causa dos teus males; porque todo animal nasceu para
detestar e fugir de tudo o que lhe parece mau e prejudicial, assim como para
buscar e querer tudo o que lhe parece útil e bom. É, pois, impossível que quem
julga ser lastimado se mostre agradável a quem o fere; donde se segue que
ninguém se regozija no seu mal. Por isso, o filho cobre de censuras e, talvez,
de injúrias o pai, quando o não faz participar dos seus bens; por isso, tornaram-
se inimigos irreconciliáveis Etéoclo e Polinice, que consideravam o Trono um
grande bem; por isso, o lavrador, o piloto, o mercador, chegam a maldizer os
deuses, e por isso, finalmente, se ouvem as queixas dos que perdem mulheres
e filhos; porque, onde está a utilidade, está a piedade. Todo homem que cuida
de ajustar desejos e aversões, segundo as regras prescritas, cuida de
conservar e aumentar a sua piedade; nas suas libações, nos seus sacrifícios e
nas suas oferendas, cada qual deve seguir o costume do seu país e realizá-los
com pureza, sem ostentação, sem negligência, sem irreverência, sem
mesquinhez, e, por fim, sem suntuosidade que lhe exceda as forças.

164

           Não sejas, mortal, ingrato aos bens que recebeste dos deuses, e não te
esqueças dos seus grandes benefícios. Dá-lhes constantemente graças pela
vista, pelo ouvido que te concederam – que digo! – pela própria vida e por
todos os auxílios que te prestaram para sustentá-la; pelos próprios frutos da
terra. Ao mesmo tempo, porém, lembra-te de que te deram algo de mais
precioso ainda, a faculdade que, servindo-se de todas as coisas, as analisa e a
cada uma atribui o seu valor.

165

           Tendo sido Galba morto, disse alguém a Rufo: – Atualmente, a


Providência toma parte nas coisas do mundo. – Desgraçado, respondeu-lhe
Rufo, julgas, por acaso, que Galba alguma vez logrou impedi-lo?

166

           Se o Príncipe te houvesse adotado, terias insuportável orgulho. Mas


esqueces a Divindade, à qual tanto deves.

167

           Se obrássemos com bom juízo, não faríamos outra coisa na vida pública
e particular senão dar graças à Providência por todos os bens que dela
recebemos. Lavrando, comendo, passeando, levantando-nos e deitando-nos,
diríamos: – A Providência é grande! Tudo repercutiria o eco destas divinas
palavras: A Providência é grande! Mas sois ingratos e cegos; é preciso, pois,
que o diga eu por vós, e que, velho, coxo, pobre e enfermo, repita sem cessar:
Como é grande a Providência!

168

           Se eu fosse rouxinol ou cisne, faria o que deve fazer o cisne ou o


rouxinol; mas sou homem, e tenho por patrimônio a razão. Que devo fazer?
Louvar a Divindade. É o que farei a vida toda, e exorto todos os homens a fazer
o mesmo que eu.
169

           Os soldados que se alistam nas tropas de César prestam o juramento


costumeiro. Qual é esse juramento? Que preferirão o bem do imperador a
todas as coisas, que lhe obedecerão em tudo, que se exporão à morte por ele.
Tu, que estás ligado à Divindade pelo teu nascimento, e por tantos benefícios
que dela recebeste, tu que nasceste nas suas tropas, não farás análogo
juramento? E, uma vez feito, não lhe serás fiel? Que diferença, contudo, entre
os dois juramentos! O soldado jura que preferirá a salvação do imperador a
todas as coisas, e tu juras que preferirás a todas as coisas a tua própria
salvação.

170

           – Como poderei persuadir-me, disse alguém a Epicteto, de que todas as


minhas ações são vistas pela Divindade, sem que uma só passe inadvertida?
Respondeu-lhe Epicteto: – Não estás persuadido de que todas as coisas do
mundo estão entrelaçadas? – É claro. Não estás persuadido de que as coisas
terrenas são reguladas pelas celestiais? – Estou. Com efeito, vês que todas as
coisas da natureza sucedem em tempos assinalados, como, por exemplo, as
estações. Ao nascer e ao pôr do sol, quando a lua cresce e mingua, a face da
natureza muda. Pois se todas as coisas deste mundo miserável, se os nossos
próprios corpos estão ligados e tão unidos ao todo, como podes imaginar que a
nossa alma, muito mais divina que todo o universo, seja a única isolada e não
esteja unida à Divindade que a criou? – Mas, como pode ela ver ao mesmo
tempo tantas coisas tão diversas e distantes? – Pobre cego, quantas
operações diferentes não realiza de uma só vez o teu entendimento, embora
tenha tão estreitos limites? Abraça as coisas divinas e humanas; raciocina,
divide, julga, consente, nega. Quantas imagens diferentes, quantas idéias
contrárias não encerra? O sol ilumina ao mesmo tempo a maior parte do
mundo; o que se oculta aos seus raios é apenas uma parte da terra; e Aquele
que fez o sol, que, por imenso que seja, não é mais do que um ponto no
enorme universo, não iluminará a terra inteira? – Mas o meu entendimento não
faz as suas operações senão sucessivamente, e não pode considerar os
objetos senão um depois do outro. – Quem te disse que o teu entendimento é
tão extenso como a própria Divindade? Considera, verme que és, quantos
objetos diferentes abraça de uma só vez o olho, que é tão pequeno. Tudo o
que o horizonte encerra se apresenta simultaneamente à vista. Que poderá
escapar à vista de quem fez o olho?

          

171

           Os deuses não me deram multidão de bens; não quiseram que eu nade
na opulência, nem tampouco que me entregue aos prazeres; mas de que me
queixo? Não trataram melhor Hércules, que tantos feitos realizou em honra
deles.

172
           Quando consultamos os áugures, é tremendo e dirigindo aos deuses
ardentes preces. – Deuses, tende piedade de mim, permiti que me livre
felizmente deste ou daquele cuidado, – Vil escravo! Queres outra coisa que a
que te convém? Que pode convir-te mais que fazer a vontade dos deuses? Por
que, pois, tentas corromper o teu árbitro e o teu juiz, enquanto pedes?

173

           Por que consultar os adivinhos acerca das coisas em que o nosso dever
está marcado? Se se trata de expor-me a um perigo pelo meu amigo, devo
morrer por ele; que necessidade tenho de adivinho? Não possuo dentro de mim
próprio um adivinho mais seguro e incapaz de enganar-me, que me ensinou a
natureza do bem e do mal, e que me explicou todos os sinais pelos quais os
devo reconhecer?

174

           A fraqueza do homem pelos oráculos e adivinhações procede da sua


timidez. Teme os sucessos, e é por isso que tem pelos adivinhos inexplicável
complacência; fá-los árbitros e juizes de todos os seus assuntos, confia-lhes
tudo quanto tem, e se lhe predizem algo de bom, os gratifica, como se lho
estivessem dando. Que cegueira! Se fôssemos prudentes, consultaríamos os
adivinhos do mesmo modo pelo qual perguntamos pela direção numa jornada,
sem nos importar que seja para a esquerda ou para a direita que devemos
passar. Porque, que é consultar os adivinhos? Indagar a vontade dos deuses
para realizá-la. Deveríamos, pois, servir-nos dos oráculos como dos olhos, aos
quais não tentamos fazer ver estes ou aqueles objetos, deixando, pelo
contrário, que nos mostrem o que vêem. Façamos o mesmo com os adivinhos;
não lhes supliquemos, e limitemo-nos a fazer o que nos mandarem.

175

           Acusar os demais das próprias desditas é coisa de ignorante; acusar


apenas a si próprio é coisa de homem que começa a instruir-se; não acusar
nem a si próprio nem aos outros é coisa de homem já instruído.

176

           Quando fores consultar o adivinho, lembra-te de que ignoras o que deve
suceder, e que vais sabê-lo. Mas lembra-te ao mesmo tempo que, se fores
filósofo, vais consultá-lo, muito bem sabendo de que natureza é o que deve
suceder; porque se for coisa que de nós não dependa não poderá ser
seguramente nem um bem nem um mal para ti. Não leves, pois, contigo, ao
adivinho, inclinação ou aversão por coisa nenhuma; de outro modo, tremerás
sempre; persuade-te, pelo contrário, e convence-te de que tudo quanto suceder
será indiferente, não te dirá respeito, e que de qualquer natureza que seja, de ti
depende fazer dele bom uso, sem que ninguém consiga impedir-to. Vai, pois,
com confiança, como quem se aproxima de deuses que se dignam aconselhar
e, ademais, quando te houverem sido dados alguns conselhos, lembra-te do
que são os conselheiros aos quais recorreste, e que a tua desobediência será
menosprezo das suas ordens. Não vás ao oráculo se não como Sócrates
queria se fosse, isto é, não vás senão para as coisas que só podem ser
conhecidas pelo acaso, e não podem ser previstas nem pela razão nem pelas
regras de qualquer arte. Assim, quando se te deparar oportunidade de te
expores a grandes perigos pelo amigo ou pela pátria, não vás consultar o
adivinho se tiveres de fazê-lo, porque se te declarar que são más as entranhas
das vítimas, serás evidente que o sinal te pressagia a morte, os ferimentos ou o
desterro; afirma-te, porém, a razão, em que pese a todas essas coisas, que
deves socorrer o amigo e expor-te pela pátria. Apolo Pitiano atirava para fora
do seu templo quem, vendo em perigo de morte o amigo, o não ajudava.

177

           Só cortejo os poderosos. Mas é esse o teu destino? De mim sei dizer
que não nasci para tal coisa. Não tenho a quem comprazer, obedecer e
submeter-me? Tenho os deuses, nos quais está o verdadeiro poder.

178

           Quando tiveres de conversar com alguém, sobretudo se se tratar de um


dos principais da cidade, imagina o que houvera feito Sócrates ou Zeno em tal
entrevista. Desse modo, não terás o menor embaraço em cumprir o dever e
valer-te convenientemente de tudo quanto puder deparar-se-te.

179

           Supondo que homem livre é aquele a quem tudo sucede como deseja,
disse-me um louco, quero que me suceda tudo quanto me aprouver. Meu
amigo, jamais andam juntas a loucura e a liberdade. A liberdade não é uma
coisa somente belíssima, senão também racional, e não há nada mais absurdo
nem mais irracional que desejar temerariamente e pretender que as coisas se
verifiquem do modo pelo qual as pensamos. Quando tenho de escrever o nome
próprio Díon, devo escrevê-lo não como me agradaria, mas tal qual é, sem a
mudança de uma única letra. Sucede o mesmo em todas as artes e ciências. E
queres que na maior e mais importante de todas as coisas, como é a liberdade,
impere o capricho e a imaginação? Não, meu amigo, a liberdade consiste em
querer que as coisas sucedam não como as desejamos, mas como são.

180

           Esperas ser feliz uma vez que tenhas obtido o que solicitas. Enganas-te;
terás as mesmas inquietações, os mesmos cuidados, os mesmos
aborrecimentos, os mesmos temores, os mesmos desejos. A felicidade não
consiste em adquirir e desfrutar do adquirido, mas em não desejar, porque
consiste em ser livre.

181
           Os deuses me deram a liberdade, e não desconheço os mandamentos.
Por conseguinte, ninguém logrará reduzir-me à escravidão, porque tenho o
libertador que me falta e os juizes dos quais careço.

182

           Um dia, perguntava Floro a Agripino: – Devo ir ao teatro com Nero? –


Vai, respondeu Agripino. – E tu, retrucou Floro, por que não nos acompanhas?
– Porque não sei calar-me.

183

           Estava muito bem gravada no coração de Prisco Helvídio essa máxima,
e ele soube pô-la nobremente em prática. Um dia, ordenou-lhe Vespasiano que
não fosse ao Senado. – Tem Vespasiano o poder de afastar-me do meu cargo,
respondeu Helvídio, mas enquanto eu for senador, irei ao Senado. – Se vieres,
disse-lhe o Príncipe, virás somente para calar-te. – Não me peças conselho,
respondeu Helvídio, e eu me calarei. Mas se estiveres presente, retrucou o
Príncipe, não poderei deixar de pedir-te conselho. – E eu, disse Helvídio, dir-te-
ei o que me parecer justo. – Se o disseres, far-te-ei morrer. Quando te
assegurei que eu era imortal? replicou Helvídio. Ambos faremos o que de nós
depender; tu me farás morrer, e eu, sem queixa, me submeterei à morte. Que
lucrou com isso Helvídio, sendo o único que se colocava em tal situação? O
mesmo que a púrpura sobre a túnica; orna-a, embeleza-a, e causa aos outros
inveja e desejos de possuir uma semelhante.

184

           – Foste condenado ao desterro. Mas haverá lugar fora do mundo para o
qual eu possa ser enviado? Para onde quer que eu vá, não terei céu, sol, lua e
estrelas? Não terei sonhos e agouros? Não poderei manter comércio com os
deuses?

185

           Depois de todos os prazeres de que desfrutavas na pátria, e que


perdeste, subsiste o de pensar que obedeces aos deuses e cumpras, real e
efetivamente, o dever do homem bom e sábio. Grande prazer é poderes dizer a
ti próprio: a estas horas semeiam os filósofos grandes coisas nas escolas,
explicam todos os deveres do homem de bem, e eu os pratico. O que ensinam
são as minhas virtudes: fazem o meu panegírico, sem o saber, porque realizei
o que louvam e propagam.

186

           Lembra-te de que não é quem te injuria, nem quem te fere, quem te
maltrata, senão a opinião que deles tens e que te faz encará-los como inimigos.
Quando alguém se encoleriza e irrita, sabe que não é esse homem que te irrita,
senão a opinião que tens das coisas. Trata, pois, de impedir que a imaginação
te vença, porque se alguma vez o consegues, podes chegar a ser mais
facilmente senhor de ti próprio.

187

           Para amar, devem colocar-se no mesmo lugar a santidade, a


honestidade, a utilidade, a pátria, os pais, os amigos e a própria justiça. Se se
separam, não há amizade; se o que é meu, ou seja, o meu interesse está com
a honestidade e a justiça, sou bom amigo, bom pai, bom filho, bom marido;
mas se de um lado está o meu interesse e de outro aquelas virtudes, não é
possível a amizade, nem a existência dos deveres mais santos e
indispensáveis.

188

           Um mestre de ginástica me exercita, endurecendo-me o pescoço, os


ombros, os braços e ordenando-me provas penosas. – Levanta este peso com
as duas mãos, diz-me. Quanto maior o peso, mais se me fortificam os nervos.
O mesmo é o homem que me maltrata e injuria; exercita-me na paciência, na
clemência, na mansidão, exercício pelo menos tão útil como o primeiro.

189

           Somente o sábio é capaz de amizade. Como pode amar quem confunde
o mal com o bem?

190

           Os que se apegam à moleza, à voluptuosidade ou à vanglória não


podem estimar os homens. O único amigo dos homens é aquele que ama a
decência e a honestidade.

191

           Quando alguém te causa dano ou de ti fala mal, reflete que ele julga
estar obrigado a tanto. Não é possível que siga os teus juízos, senão os seus,
de modo que, se julga mal, a si apenas é que prejudica, porque somente ele se
engana; assim, se alguém tacha de falso um silogismo muito justo e racional,
não é o silogismo que perde, senão quem se engana julgando erradamente. Se
te servires cuidadosamente dessa regra, suportarás com paciência todo mal
que de ti se diga, porque não deixarás de afirmar do maldizente: – Diz isso,
porque de boa fé o acredita.

192

           – Não devo vingar-me e devolver o mal que me fizeram? Meu amigo,
não te fizeram o mal, visto que mal e bem só dependem da tua vontade.
Quanto ao resto, se um tolo feriu a si próprio cometendo contra ti uma injustiça,
por que pretendes imitá-lo?
193

           – Quando alguém te repetir o mal que outro falou de ti, não te preocupes
com refutar o que se afirma, e responde simplesmente: – Quem assim falou de
mim ignora, sem dúvida, os meus outros vícios, pois de outro modo se não
contentaria com afirmar tais futilidades.

194

           O varão prudente aguarda sempre dos maus maior mal que o que deles
recebe. Um semelhante me injuria; dou graças por me não haver golpeado.
Golpeia-me; dou graças por me não haver ferido. Fere-me; dou graças por me
não haver matado.

195

           Quando chegar ao teu conhecimento qualquer má notícia, lembra-te de


que nada tem de ver contigo, pois não diz respeito a nenhuma coisa das que
estão em teu poder. – Acusa-se-me de impiedade? Pois bem, Sócrates
também não foi acusado? – Mas poderão condenar-me. – Também Sócrates
foi condenado. Lembra-te de que a pena não está onde não está o erro; é
impossível que estas duas coisas se separem. Não te consideres, pois,
desditoso. Quem, a teu ver, foi mais desditoso, Sócrates ou aqueles que o
condenaram? O mal não está em ser acusado como ímpio, senão em o ser.
Portanto, o perigo não é para ti, mas para os juizes, porque tu não podes, de
maneira nenhuma, morrer culpado, e eles podem fazer morrer um inocente.

196

           Em que ocupação desejas que a morte te surpreenda? Eu, por mim,
quisera que me surpreendeste em ato digno de homem, grande, generoso e útil
ao gênero humano; ou melhor, quisera que me surpreendesse ocupado em me
corrigir, e atento a todos os meus deveres, para em tal momento poder erguer
ao céu as mãos, puras e limpas de todo crime, e dizer aos deuses: todas as
faculdades que de vós recebi para conhecer a vossa providência e para lhe ser
eternamente submetido foram por mim observadas; até onde me chegaram as
forças tratei de vos não desonrar. Vede o uso que fiz dos sentidos, das
faculdades. Jamais me queixei de vós; jamais, por causa nenhuma me
envergonharei da minha origem divina; nunca senti pesar pelo que tive de fazer
por vós, nem desejei trocar essa tarefa por outra. Não violei as vossas ordens,
e dou-vos graças por me haveres criado. Usei dos vossos bens, na medida em
que mo permitistes; quereis retirar-mos, eu vo-los devolvo, são vossos,
disponde deles como vos aprouver. Eu próprio me coloco em vossas mãos.

197

           Entristece-te ter que abandonar lugares tão belos; lamentas-te, choras.
És, pois, mais desgraçado que os corvos e gralhas, que mudam de clima e
passam os mares sem gemer e sem saudades do páramos que abandonam. –
Mas esses animais carecem de razão. – Não te deram os deuses a razão para
algo melhor que para te fazeres mísero? Pretendes que os homens sejam
como as árvores, sujeitas pelas raízes e impossibilitadas de mover-se? –
Entristece-me deixar os amigos. – Ora, o mundo está repleto de amigos e de
protetores; todos os homens estão unidos pela natureza. Ulisses, que tanto
viajou, não encontrou amigos? Não os encontrou Hércules?

198

           Esforça-te para que te não turve a idéia de ser menosprezado e de nada
ser no mundo; porque se o menosprezo é um mal, não podes cair no mal por
intermédio de outro, nem tampouco no vício. Depende de ti desempenhar os
principais cargos? Está em tuas mãos seres convidado, ou não, a um festim?
De maneira nenhuma; como, pois, há de ser isso para ti menosprezo ou
desonra? De que modo deixarás de ser alguma coisa no mundo, quando, se és
alguma coisa, sê-lo de ti é que depende? – Mas os meus amigos carecerão,
por minha parte, de todo socorro. – Que queres dizer? Queres, acaso,
manifestar que não poderás dar-lhes dinheiro nem fazê-los cidadãos romanos?
Quem te disse que tais coisas pertencem ao número das que de ti dependem,
e como podemos dar aos outros o que nós próprios não possuímos? Procura o
teu bem estar, dizem-te, para que nós participemos dele. Se puder procurá-lo,
conservando o pudor, a modéstia, a fidelidade, a magnanimidade, mostrai-me o
caminho por seguir para que eu chegue a ser rico, e sê-lo-ei; mas se
pretendeis que perca os meus verdadeiros bens, com o intuito de adquirirdes
vós os falsos, examinai a desigualdade da vossa balança e até onde vos leva a
vossa inconsideração e ingratidão. Preferis o dinheiro a um amigo prudente e
fiel? Não fora melhor ajudar-me a adquirir tais virtudes que exigir faça eu coisas
que mas fariam perder? – Mas dirás ainda: a minha pátria não receberá de
mim nenhum serviço. Que serviço? Não conseguirá, por teu intermédio,
pórticos nem termas? E que é isso? Certamente ninguém obtém calçados por
meio de um ferreiro, nem armas com o trabalho de um sapateiro; é preciso que
cada um, dentro da sua esfera, se dedique apenas ao seu trabalho. Mas se dás
à tua pátria um novo cidadão prudente, modesto e fiel, não lhe prestas
assinalado serviço? Certamente lhe prestarás um muito grande e não lhe
serás, portanto, inútil. Que posição ocuparei, portanto, na cidade? A que
puderes lograr, conservando-te fiel e modesto. Que serviço podes prestar à tua
pátria, que posição ocuparás na cidade, se chegares a perder essas virtudes?

199

           Quando fores visitar um varão poderoso, imagina que o não encontrarás
em casa, que estarás doente, que te será fechada a porta ou que te não dará a
menor importância. Se depois disso, o dever te obrigar a ir, suporta com
resignação tudo quanto suceda, e nunca digas que foste contrariado, porque tal
linguagem só é própria do vulgo ou daquele para quem possuem as coisas
exteriores demasiado poder.    

200

           Supões que foi uma grande desdita para Páris entrarem os gregos em
Tróia, destruírem-na a sangue e fogo ou matarem toda a família de Príamo e
raptarem as mulheres. Enganas-te, meu amigo. A grande desdita de Páris se
realizou quando perdeu o pudor, a fidelidade, a modéstia, e quando violou a
hospitalidade. Igualmente, não consistiu a desdita de Aquiles na morte de
Patroclo, senão quando chorou e se esqueceu de que não partira para a guerra
em busca de amantes, e sim para devolver a um marido a esposa.

201

           Guarda-te de fazer o papel de zombeteiro e de trocista, porque tal


defeito te fará cair insensivelmente nas maneiras baixas e grosseiras, e fará
que percam os outros o respeito e a consideração que por ti sentem.

202

           Não é menos prejudicial entregares-te a conversações obscenas.


Quando te encontrares nessa espécie de conversações, não deixes, se to
permitir a ocasião, de repreender quem estiver com a palavra; se não, guarda,
ao menos silêncio, e dá a conhecer, pelo rubor da face e pela severidade do
olhar, que te não são agradáveis tais conversações.

203

           Nunca viste uma feira a que acodem homens de todos os distritos? Uns
vão vender, comprar outros, e um pequeno número por curiosidade,
unicamente para ver a feira e saber porque se celebra e quem a estabeleceu. É
a mesma coisa o mundo: todos os homens estão nele, uns para vender, para
comprar outros; pouquíssimos há que admirem este grande espetáculo e
examinem o que é, quem o fez, para que o fez e como o governa, porque é
impossível não seja feito e governado por alguém. Uma cidade, uma casa, não
existem sem obreiro, e se duram é porque alguém as governa; máquina tão
imensa e admirável não pode existir por puro acaso; é impossível. Logo, existe
alguém que a fez e a governa. Quem é e como a governa? E nós, que também
somos obra sua, que somos e por que somos? Pouquíssimos fazem tais
reflexões, e, após admirarem a obra e bendizerem o obreiro, se retiram
contentes. Se alguém as faz é alvo das chacotas dos outros, como na feira o
são os simples curiosos, a quem chamam tolos os mercadores. Se os bois e os
carneiros pudessem falar, certamente se ririam de todos os que pensassem
noutra coisa que não comer e ruminar.

204

           Não te esqueças do valor e da serenidade de Latrão. Tendo-lhe Nero


enviado o seu liberto Epafrodita, para interrogá-lo sobre a conspiração em que
entrara, limitou-se a responder ao liberto apenas isto: – Quando tiver o que
dizer, di-lo-ei ao teu amo. – Serás agrilhoado. – Achas que isso bastará para
me entristecer? – Irás para o desterro. – E que me impede ir alegremente,
cheio de esperança e de contentamento pelo meu novo estado? – Serás
condenado à morte. – Mas… é obrigatório morrer murmurando e gemendo? –
Dize-me o teu segredo. – Não o direi, porque isso depende de mim. –
Carregar-te-ei de ferros. – Que dizes, meu amigo? A mim é que ameaças
carregar de ferros? Duvido. Carregarás, sem dúvida, minhas pernas e meus
braços; mas a minha vontade será sempre livre e nem o próprio Júpiter ma
poderá tirar. – Mandarei agora mesmo que te cortem o pescoço. – Disse-te eu
alguma vez que o meu pescoço tem o privilégio de não poder ser cortado? As
obras corresponderam as palavras; levado Latrão ao suplício, foi o primeiro
golpe do verdugo demasiadamente fraco para lhe cortar a cabeça; Latrão ficou
um instante aturdido; mas imediatamente recobrou os sentidos e de novo
apresentou o pescoço com firmeza e constância.

205

           Se nos encontrássemos num calabouço e em vésperas de ser julgados


por uma acusação capital, poderíamos admitir o homem que nos perguntasse
se não queríamos ouvir um hino por ele composto? – Meu amigo, dir-lhe-
íamos, por que vens importunar-me em tão má ocasião? Tenho cuidados de
muita importância. Não sabes que devo ser julgado amanhã? Não tenho a
serenidade de Sócrates, que compunha hinos na véspera da morte.

206

           Foi Agripino modelo de homens contentes com a sorte. Anunciou-se-lhe


que o Senado estava reunido para o julgar. – Em boa hora! exclamou; vou
preparar-me para o banho, segundo o meu costume. – Apenas saiu do banho,
disseram-lhe que fora condenado. À morte, ou ao desterro? – Ao desterro. –
Confiscaram-me os bens? – Não, deixam-nos em teu poder. – Nesse caso,
partamos, sem demora. Vamos comer no lugar de desterro; comeremos tão
bem como em Roma.

207

           Passas por esta cidade, e enquanto o barco se faz ao mar, exclamas: –
Vamos ver um momento Epicteto; ouviremos o que diz. Vens, contemplas-me,
é tudo. Que é, pois, conversar com um homem? Não é perguntar-lhe quais as
suas opiniões e expor-lhe as próprias? Tenho uma falsa opinião; combate-a.
Estás num falso preconceito; consente que to desfaça. Isso é falar com um
filósofo. Pelo contrário, fazes-me uma visita e, pouco satisfeito, retiras-te
dizendo: – Epicteto não é grande coisa; fala com rudeza. Não é assim? Vede o
que são os homens; procuram com quem falar, estão todos os dias juntos,
como estátuas, sem se conhecerem, sem se examinarem uns aos outros e
sem melhorarem. O entretenimento ou a curiosidade é que determinam os
nossos feitos e conversações.

208

           A desdita dos homens procede sempre de colocarem mal a sua


confiança; são como os cervos que, para fugirem à ave que ameaça cair-lhes
sobre a cabeça, tratam-se de por-se a coberto e caem nas redes, onde
perecem.

209
           Aprendeste alguns preceitos de filosofia e pretendes ensiná-los. Que
fazes senão devolver o que não digeriste, como devolve o mau estômago a
comida ingerida? Digere, meu amigo, e ensinarás quando, mediante uma
alteração no teu espírito, me fizeres ver o alimento que lhe deste. – Mas este
ou aquele abriu uma escola, e eu não quero ser inferior. Vil escravo! Abre-se
uma escola por capricho ou por acaso? Para tal é preciso ter idade madura,
observar determinada vida e ser escolhido pelos deuses. Sem isso, serás
sempre um impostor e ímpio. Abres uma loja e tens nela ungüentos, mas lhes
desconheces o uso e maneira pela qual se aplicam.

210

           Não há naturalmente nenhuma sociedade entre os homens; não


intervém os deuses nas coisas humanas, e só há um bem: o prazer. Vede o
que nos ensina Epicuro. Ah, infeliz! Valia a pena velar tantas noites, valia a
pena escrever essas afirmações? Não houvera sido melhor permaneceres no
teu leito macio e arrastares a vida de um verme, visto ser a única de que te
julgas digno? Segundo a tua doutrina, não são piedade e santidade mais que
invenções de homens arrogantes e de sofistas; a justiça é fraqueza; o pudor
loucura; não mais pais, filhos, irmãos, cidadãos. Oh, imprudente! Oh, impostor!
Orestes, agitado pelas negras fúrias, não é mais furioso do que tu!

211

           Assim como não depende do homem dar consentimento ao que parece
verdadeiro, tampouco dele depende repelir o que lhe parece bom. O epicurista
que afirma não ser o roubo um mal e sim ser surpreendido, roubará,
seguramente, se estiver convencido de que ninguém o observa.

212

           Vais ao anfiteatro e logo te interessas e desejas que tal ator ou tal atleta
seja coroado. Querem os demais seja outro o que alcance a vitória. Aborrece-
te essa contradição, por seres pretor e pretenderes que todos cedam. Mas não
tem os outros opinião própria? Não tem vontade e o mesmo direito de ofender-
se por te opores ao que se lhes afigura justo? Se queres permanecer tranqüilo
e jamais encontrar oposição, não desejes a coroa senão a quem seja coroado.
Ou se queres ser dono de entregá-la a quem mais te aprouver, celebra jogos
em tua casa, e então, com a tua própria autoridade, publicarás: este ou aquele
venceu nos jogos píticos, ístmicos ou olímpicos. Em público, porém, não te
arrogues o que te não pertence, e deixa em liberdade os sufrágios.

213

           Lembra-te de que o desejo das honras, da riqueza, não é o único que
nos submete e escraviza, senão também o desejo de repouso, de folga, de
viagens, de estudo. Numa palavra, todas as coisas exteriores, quaisquer que
sejam, nos fazem escravos quando as estimamos. O verdadeiro dono de si
próprio e de nós é aquele que tem o poder de dar-nos e tirar-nos o que
queremos. Todo homem, pois, que pretenda ser livre, não deseje nem deteste
nada do que depende dos demais; a não ser assim, será necessariamente
escravo.

214

           Para julgares se é livre um homem, não dês atenção às suas


dignidades; porque, ao contrário, quanto mais elevado, mais escravo é. Dirás,
acaso: – Vejo que faz tudo quanto quer. – Eu também; mas advirto-te de que é
um escravo que goza, durante alguns dias, do privilégio das saturnais, ou cujo
dono está ausente. Espera que a festa termine ou que o seu amo regresse, e
então me dirás a tua opinião. – Quem é este senhor? Todo homem que tenha
bastante poder para dar-lhe ou tirar-lhe o que deseja.

215

           Empreendes uma longa jornada com o propósito de assistir aos jogos de
Olímpia, e mais ainda com o de admirar a bela estátua de Fídias, e consideras
grande desdita morrer, sem o prazer de vê-los; mas alguma vez te pesou não
contemplar obras muito superiores às de Fídias, obras que não é mister
procurar tão longe, que não custam tantos trabalhos e esforços, e que por toda
parte se nos deparam? Alguma vez te ocorrerá pensar que és homem e que o
és por teres nascido? Permanecerás desatento ante o espetáculo tão
admirável deste universo que a divindade colocou diante dos teus olhos e que
te convida a conhecer?

216

           Antes de iniciares um empreendimento, observa cuidadosamente os


seus precedentes e conseqüências. Se não observares tal procedimento,
sentirás imediatamente prazer em tudo quanto fizeres, porque não terás em
conta os resultados que pode oferecer-te; mas por fim, surgirá a vergonha, e
ficarás cheio de confusão.

217

           Queres chegar a ser filósofo; prepara-te, desde já, a ser objeto de mofa,
e sabe de antemão que o povo te vaiará e apostrofará, chamando-te filósofo da
noite para o dia; ser-te-á atirada ao rosto a tua postura arrogante. Procura, por
tua parte, não mostrar tal postura e ater-te às máximas que se te houverem
afigurado mais belas e melhores; pensa que se nelas te mantiveres firme, os
mesmos que a princípio de ti se riem, te admirarão, enquanto, se cederes aos
seus insultos, serás duplamente escarnecido.

218

           Quando empreenderes alguma coisa, seja ela qual for, concentra o
espírito e reflete antes em que ação te vais empenhar; se fores banhar-te,
focaliza o que de ordinário se passa nos banhos; uns atiram água aos outros;
não falta quem bata outro, quem lhe dirija injúrias, quem o roube; depois de
pensar nisso, irás com mais segurança ao que pretenderes fazer; mas dize
sempre antes: – Quero banhar-me; contudo, quero também conservar a
liberdade e independência, verdadeiro patrimônio da minha natureza; o mesmo
deves dizer acerca de cada coisa. Por tal meio, se um obstáculo te impedir
banhar-te, terás sempre o consolo de dizer: não queria apenas banhar-me,
senão também conservar a liberdade e independência, e não a conservaria se
me entristecesse.

219

           Se se apresentar oportunidade de falar acerca de uma questão de


verdadeira importância na presença de ignorantes, guarda-te de fazê-lo, pois
há grande perigo em manifestar, imediatamente, o que se não meditou. Se, por
acaso, alguém te censurar e disser que nada sabes, se te não molestar nem te
ferir tal censura, será certo que começarás a ser filósofo desde tal momento.
As ovelhas não vão mostrar aos pastores o que comeram; pelo contrário,
depois de bem digerido o pasto, dão-lhes lã e leite. Do mesmo modo, não
deves malgastar, entre ignorantes, belas máximas; procura digeri-las e dá-las a
conhecer por meio dos teus atos.  

220

           Um médico visita um enfermo e lhe diz: Tens febre; abstém-te por hoje
de tomar qualquer alimento, e não bebas mais que água. O enfermo dá-lhe
crédito, agradece-lhe e paga-lhe. Um filósofo diz a um ignorante: Os teus
desejos são desenfreados, os teus temores são baixos e servis, professas
falsas crenças. O ignorante enfurece-se e sente-se ferido no amor-próprio. De
que nasce tal diferença? De o enfermo conhecer o seu mal, e o ignorante não. 

221

           Parecemo-nos aos avarentos que armazenam grandes provisões e, não


obstante, permanecem fracos e descarnados, por deficiência de alimentação.
Temos sábios preceitos, profundas máximas; mas é para discorrer delas, e não
para praticá-las; as nossas palavras são desmentidas pelas nossas ações. Não
somos sequer homens, e queremos passar por filósofos; a carga é para nós
demasiadamente grande. É como se um homem que não tivesse força para
suportar o peso de duas libras, pretendesse suportar a pedra de um moinho.

222

           Não deve o homem alarmar-se facilmente nesta vida. Mandamos um


mensageiro saber o que sucede; mas escolhemos mal o nosso homem, porque
mandamos um covarde que, ao menor ruído, regressa espantado a nós,
temeroso da própria sombra, que o segue.

223

           Quando alguém se vangloria de compreender e explicar bem os escritos


de Crisipo, dize entre ti: Se Crisipo não houvesse escrito obscuramente, não
teria o de que vangloriar-se este homem. Que procuro eu? Conhecer a
natureza e segui-la. Busco, pois, quem melhor a explicou; dizem-me que é
Crisipo, e leio Crisipo, mas o não compreendo. Busco, pois, um que mo
explique; até aqui nada é digno de consideração nem estima. Uma vez que
encontrei um bom intérprete, só me resta servir-me dos preceitos que me
explicou e pô-los em prática, e é essa a coisa que merece estima, porque se
me contento com explicar esse filósofo e admirá-lo, que sou? Um puro
gramático, em vez de filósofo, com a única diferença de que, em vez de
explicar Homero, explico Crisipo. Quando, portanto, alguém me disser: –
Explica-me Crisipo, sentirei grande vergonha e confusão, se não puder mostrar
os meus atos em consonância com os seus preceitos.

224

           – Componho belíssimos e saborosos diálogos e escrevo livros


interessantes. – Meu amigo, preferiria que me dissesses que dominava as
paixões, que compunhas os desejos, que seguias a verdade nos juízos.
Assegura-me que não temes a prisão, nem o desterro, nem a dor, nem a
miséria, nem a morte. Sem isso, por belos que sejam os livros que escreves,
podes estar certo de que és apenas um ignorante.

225

           A sede do febril é bem diversa da sede do homem são. Este, mal bebeu,
está satisfeito e a sede se lhe apazigua. Mas aquele, após breve instante de
prazer, sofre terríveis dores de estômago; a água se lhe converte em bílis,
vomita-a, retorce-se, e a sede se faz mais insuportável. Semelhante é quem
possui riqueza, cargos ou uma formosa esposa, e deixa que a concupiscência
lhe invada o coração. É essa a sede do febril, de que se originam os ciúmes, as
inquietações, as palavras indecorosas, os desejos impuros, os atos obscenos.
Meu amigo, tu, que eras antes tão prudente, tão cheio de pudor, que fizeste do
pudor e da sabedoria? Em vez de ler as obras de Crisipo e de Zeno, lês
apenas livros abomináveis, como os de Aristides. Em vez de admirar Sócrates
e Diógenes, e de lhes seguir o exemplo, não admiras nem imitas senão
aqueles que corrompem as mulheres. Queres ser belo, esforças-te para isso
custe o que custar, tens magníficos trajes,  e essências e perfumes te
arruinam. Volta em ti, combate contra ti próprio, recobra a posse do teu pudor,
da tua dignidade, da tua liberdade; numa palavra, volta a ser homem. Conheci
um tempo em que, se te tivessem dito: – Este ou aquele homem fará Epicteto
mau, fá-lo-á usar tais trajes e apresentar-se perfumado, houveras voado em
meu socorro, e imagino que o terias matado. Não se trata aqui de matar; tão
somente deves voltar a ti, falar à tua consciência. Começa por condenar o que
tu próprio fizeste, antes que te leve de roldão a torrente.

226

           Se a imaginação te apresenta uma imagem voluptuosa, trata de fazer


com que te não domine, como te houveste com o resto. Para pensar, toma um
prazo, e compara os dois tempos, o do prazer e o do arrependimento que se
lhe há de seguir; pensa nas censuras que por fim dirigirás a ti próprio, e opõe-
nas à satisfação do vencedor, se resistires. Se vires que já é tempo de
desfrutar de tal prazer, cuida de que os seus atrativos e encantos te não
desarmem e seduzam, e reflete que é maior prazer ainda a consideração de
havê-los vencido.

227

           O que é a pureza para a alma, é o asseio para o corpo. A própria


natureza to ensina. Como não é possível que, depois de comeres, não fique
uma ou outra partícula entre os teus dentes, dá-te água e manda que enxágües
a boca, para seres um homem e não um porco. Proporciona-te o banho, o
azeite, os lenços e o vitríolo, contra o suor e a gordura que se formam na tua
pele. Não te serves deles? Não és, pois, um homem? Não cuidas do teu
cavalo, que mandas escovar, do teu cão, que mandas pentear, esfregar e
limpar? Não trates, portanto, o teu corpo pior que o teu cão e cavalo; lava-o,
limpa-o, não tenhas aversão a isso; ninguém fuja de ti, porque, quem não foge
de homem sujo e mal cheiroso? Preferes ser sujo e hediondo? Se assim é,
goza tu apenas do teu desleixo. Mas abandona a cidade, vai para um deserto e
não envenenes os amigos e vizinhos. És todo imundície, e ousas entrar
conosco nos templos, em que é proibido espirrar e cuspir.      

228

           Abandonas o filho quando está enfermo, porque dizes que o amas e que
não tens coragem de assistir à sua enfermidade. Se é esse o efeito da
amizade, mister é que todos os que o amam o abandonem: sua mãe, a nutriz,
os irmãos, o preceptor; e que fique em mãos de mercenários. Que cegueira,
que injustiça, que barbaridade! Seguramente não quererias tu próprio, nas tuas
enfermidades, ter amigos que te amassem com tal ternura.

229

           A filosofia – afirma-se – é um caminho longo e penoso. Enganas-te, meu


amigo; não é tão longo, porque que pode ensinar-te a filosofia? A seguir os
deuses, a satisfazer os desejos e a fazer bom uso das tuas opiniões. Os
deuses, os desejos, as opiniões, isso é que é longo de explicar; mas os
filósofos que te pregam o prazer são breves? Epicuro diz-te que o bem do
homem está no corpo. Dize-me, então, o que é a alma, o que é o corpo, o que
constitui a nossa essência, e verás que isso não é menos longo.

230

           Nada grande se faz de um golpe, nem maçã nem cacho de uvas. Se me
dizes: – Quero agora mesmo uma maçã, respondo-te: – Para isso é preciso
tempo; espera que nasça, que cresça e amadureça. E queres que o espírito
frutifique de uma vez em toda a sua perfeita maturidade. É justo?

231

           Quiseras ser coroado nos jogos olímpicos e eu também, na verdade,


porque é muito glorioso; mas examina bem antes o que precede tal feito e o
que a ele se segue. Podes empreendê-lo após o exame. É mister observar
exatamente regras determinadas; não comer mais que o que se pode; abster-
se de tudo quanto lisonjeie o gosto; exercitar-se, queira-se ou não, na hora
certa, durante o frio e durante o calor; jamais beber líquidos frescos, nem
sequer vinho, senão pouquíssimo e com medida; numa palavras, entregar-se
sem reserva ao mestre dos exercícios como ao médico; e depois disso, ir lutar,
ir aos jogos; ali, ser talvez ferido, destroncar um dos pés, morder a areia, ser
atingido uma vez que outra, e, após tudo isso, ser – quem sabe? – vencido.
Com tal perspectiva, vê se queres, e sê atleta. Se não tomares essa
precaução, nada mais farás do que brincar como as crianças que, quase
simultaneamente, fingem ser lutadores e gladiadores, e que, depois de tocarem
a corneta e despedaçar os brinquedos, representam tragédias. O mesmo se
dará contigo; serás atleta, gladiador, filósofo, e no fundo da alma nada serás;
mas, como símio, fingirás tudo o que quiseres fazer, por não haveres
examinado os teus propósitos e procedido temerariamente e sem
circunspecção, guiado apenas pelo teu capricho. Assim, muita gente, vendo um
filósofo, ou ouvindo dizer que fala bem, também pretende sê-lo.

232

           O príncipe deu paz à terra. Não há mais guerras, não há mais combates,
não há mais piratarias. Em qualquer hora, em qualquer tempo, podemos ir
sozinhos por onde quer que seja, livremente, sem nenhum temor. Mas o
príncipe consegue dar-nos paz com as enfermidades, os naufrágios, os
incêndios, os tremores de terra, os descobrimentos? Essa paz só os deuses é
que a dão, e a razão é o arauto que a publica.

233

           Cedo ou tarde, virá necessariamente a morte surpreender-nos. Em que


ocupação nos surpreenderá? O lavrador será surpreendido nos cuidados da
lavoura; o jardineiro nos do jardim; o comerciante nos do comércio. E tu, em
que cuidados serás surpreendido? No que me diz respeito, desejo com toda a
alma que o derradeiro instante me encontre atarefado em governar a vontade,
a fim de que, sem turbação, nem obstáculo, nem temor, possa morrer como
homem livre, dizendo aos deuses: violei, acaso, os vossos mandamentos?
Terei abusado dos dons que me outorgaste? Não vos submeti os meus
sentidos, as minhas faculdades, as minhas opiniões? Queixei-me de vós?
Acusei a vossa Providência? Estive doente, porque assim o quisestes vós e eu
também o quis. Fui pobre, porque tal foi a vossa vontade, e permaneci contente
na pobreza. Fiquei na miséria, porque quisestes que eu seja miserável, e dela
não desejei sair. Vistes-me triste pelo meu estado? Surpreendestes-me no
abatimento e na queixa? Agora mesmo estou pronto a fazer o que vos
aprouver mandar-me. O menor sinal de vossa parte é para mim uma ordem
inviolável. Quereis que abandone este magnífico espetáculo? Abandoná-lo-ei e
vos apresentarei os meus humildes agradecimentos por vos terdes dignado
admitir-me a ele, por me haverdes feito ver todas as vossas obras e
apresentado aos meus olhos a admirável ordem com a qual dirigis o universo.

234
           Recebeste o consulado e és governador de província. Por quem? Por
Felício. Asseguro-te que eu não quereria viver, se tivesse de viver pelo
prestígio de Felício, e suportar-lhe a soberba e insolência de escravo, porque
sei o que é o escravo que se julga feliz e julga cega a sua sorte. – Mas, tu és
livre? – Não. Lido por o ser, mas ainda não atingi tão venturoso estado; não me
é dado ainda fitar os olhos firme e serenamente nos meus amos; ainda estou
agrilhoado ao corpo, e, embora alquebrado, pretendo conservá-lo; confesso a
minha fraqueza. Se queres, porém, que te mostre homem verdadeiramente
livre, menciono-te Diógenes. – E de que modo chegou a ser livre? –
Destruindo, em si, tudo aquilo de que poderia a servidão apossar-se; desligado
de tudo, isolado por toda parte, nada possuía; pedíeis-lhe o seu bem-estar, e
ele o dava; pedíeis-lhe o pé, dava-o; todo o corpo, dava-o; mas estava
fortemente ligado aos deuses e a ninguém cedia em obediência, em respeito,
em submissão para com essa soberania. Ali estava a origem da sua liberdade.
– Mas, replicas, esse exemplo é o de um único homem, a quem nada ligava ao
mundo. – Queres, então, exemplo de homem que não estivesse sozinho?
Sócrates tinha mulher e filhos, e não era menos livre que Diógenes, porque, tal
qual Diógenes, tudo submetera aos deuses e à obediência devida à lei.

235

           Que é que torna formidável um tirano? Os seus soldados, os seus


sequazes, armados de espadas e de lanças. Mas um menino, embora dele se
aproxime, não o temerá. Por que? Porque desconhece o perigo. Tu, que o
conheces, deves desprezá-lo.

236

           A alma é um compartimento cheio de água, e as suas opiniões a luz que


ilumina esse compartimento. Quando a água está agitada, parece que também
a luz o está, embora o não esteja realmente. O mesmo sucede no homem:
quando está perturbado e agitado, não se transtornam nem confundem as
virtudes; são as suas paixões que estão em movimento; uma vez acalmadas, o
todo ficará tranqüilo.

237

           Que fazem os viajantes cautelosos quando ouvem dizer que os


caminhos pelos quais hão de passar estão infestados de bandidos? Cuidam de
não continuar sozinhos o caminho, e de aguardar a oportunidade de unir-se à
comitiva de um embaixador, de um questor ou de um procônsul, e com essa
precaução terminam felizmente a viagem. O sábio faz o mesmo no mundo, que
está infestado de banditismo, de tirania, de miséria e de calamidades. Como
passará por ele, sozinho, sem morrer? Quem esperará? A quem poderá unir-
se? A um magistrado, a um cônsul, a um pretor? São estes os seus inimigos
mais temíveis. Espera, portanto, uns companheiros seguros, fiéis e incapazes
de ser surpreendidos, e esses companheiros são os deuses. Une-se, pois, a
eles, caminha com eles e, com felicidade, vence todos os escolhos da vida.

238
           Lembra-te do que dizia Eufrates, que se congratulava por haver ocultado
por longo tempo que era filósofo; porque, além de estar convencido de que
nada fazia para ser visto pelos homens, senão pelos deuses e por si próprio,
tinha o consolo de, combatendo sozinho, sozinho também arriscar-se,  e não
expor o próximo nem a filosofia pelos erros que lhe poderiam ter escapado; e,
finalmente, porque experimentava o secreto prazer de haver sido reconhecido
como filósofo pelos seus atos, e não pelas suas palavras.

239

           Não caluniar, não adular, não queixar-se, não acusar, não falar de si
próprio como se fosse alguma coisa são sinais certos de que um homem
progride na sabedoria. O homem que se encontra em tais circunstâncias vence
os obstáculos que se lhe apresentam; se elogiado, ri-se do elogio às ocultas, e,
se repreendido, não faz a sua própria defesa; pelo contrário, como os
convalescentes, experimenta as forças e treme ao receio de uma recaída no
começo da cura, quando a sua saúde não está ainda inteiramente fortalecida.
Dominou os desejos de todo o gênero, e só odeia as coisas que contrariam a
natureza do que de nós depende; adota para tudo um ar de submissão; não se
entristece, quando o dizem simples e ignorante. Numa palavra, está sempre
em guarda contra si próprio, como contra homem que lhe prepara constantes
ciladas e é o seu pior inimigo.

240

           O que nos prejudica em elevado grau é não sabermos de filosofia outra
coisa senão o nome e querermos, não obstante, dar-nos ar de sábios, e
pretender, imediatamente, ser úteis ao próximo como se tivéssemos de
reformar o mundo. Meu amigo, reforma-te antes, e mostra depois aos outros
um homem formado pela filosofia. Comendo e passeando com eles, instrui-os
com o teu exemplo; cede aos caprichos deles, suporta-lhes as esquisitices,
trata-os com deferência e lhes serás útil.

241

           – Para que essa altivez e esse orgulho, mau filósofo? – Espera um
pouco, meu amigo. Daqui a pouco serei mais fero; ainda não tenho bastante
firmeza nas máximas que aprendi e às quais dei o meu consentimento; ainda
temo a fraqueza. Espera que esteja mais forte e verás a minha altivez em toda
a sua extensão. A estátua ainda não está terminada, os deuses não lhe deram
a última demão. Mas não julgues que, uma vez terminada, seja a sua altivez
produzida pelo orgulho. Será uma altivez de segurança e fé na verdade. É
orgulho o que observas na cabeça de Júpiter? Não. É firmeza, é estabilidade, é
constância; é o que deve achar-se no rosto de um Deus que te diz: Tudo
quanto confirmei por meio de um sinal de aprovação jamais engana, é
irrevogável e nunca deixa de suceder. Tratarei de imitar esse grande modelo.
Ver-me-ás fiel, modesto, valoroso e inacessível à perturbação e às emoções
causadas pelos acidentes que se chamam terríveis. – Mas, ver-te-ei imortal,
livre da velhice e das enfermidades? Não; verás, porém, que sei morrer, que
sei ser velho, que sei ser enfermo; verás os nervos de um filósofo, nervos bem
sólidos. – Que nervos? – Desejos nunca frustrados, temores bem dirigidos, que
previnem todos os males; movimentos da alma, regulados e convenientes;
desígnios formados com reflexão e afirmações jamais seguidos do
arrependimento.

242

           Escrevemos belas máximas; mas, penetramo-lhes bem o sentido e


pusemo-las em prática? Afirmou-se dos lacedemônios que eram leões nas
suas terras e símios em Éfeso. Não convém tal a maioria dos filósofos? Somos
leões perante o auditório e símios nas obras.

243

           Um dos meus discípulos, com inclinação para a filosofia cínica,


perguntou-me certa vez que condições devia reunir o filósofo de tal seita, e que
era preciso fazer para o ser. Tudo quanto posso dizer-te, respondi-lhe, é que o
homem que se atreva a tão grande empreendimento, sem que a ele seja
chamado pelos deuses, será tão louco como o que entre numa casa, sem o
consentimento do dono. – Cobrir-me-ei de farrapos, de uma túnica remendada;
atirar-me-ei ao chão, buscarei um bordão e uns alforjes e proferirei injúrias
contra todos. – Se julgas que nisso consiste a filosofia tens dela erradíssimo
conceito. O filósofo cínico é homem cheio de pudor e sempre exposto à vista
dos homens, pois nada faz de indecente; é um enviado dos deuses, para
reformar os homens e ensinar-lhes com o seu exemplo que, pobre, nu, sem
outro abrigo que não o céu, sem outro leito que não a terra, se pode ser feliz;
homem que trata os viciosos, por maiores que sejam, como escravos; homem
que, maltratado, batido, ama e abençoa os que o batem e maltratam; homem
que nos outros vê filhos, que os admoesta com bondade e ternura, como se
fora pai, como se fora irmão e como se fora um ministro dos próprios deuses;
homem, enfim, ao qual, apesar da humildade, reis e imperadores não podem
fitar sem respeito. Não foi de outra maneira que Alexandre fitou Diógenes.

244

           Os hábitos só se destroem com hábitos contrários. Estás acostumado


ao prazer? Domina-o com a dor. Vives na preguiça? Trabalha. És iracundo?
Sofre com paciência as injúrias. Gostas do vinho? Bebe apenas água. Faze o
mesmo com todos os teus hábitos viciosos e verás que não trabalhaste em
vão. Mas não te exponhas com leviandade a uma recaída antes de estares
bem seguro de ti, porque a luta é desigual, e o que uma vez te venceu pode
vencer-te outra vez.

245

           As mulheres são comuns, é a lei da natureza, disse a Diógenes um


luxurioso surpreendido em adultério. Respondeu-lhe Diógenes: – as iguarias
que se servem à mesa também são comuns, mas, uma vez feitas as partes, e
distribuídas, é preciso ter perdido toda a vergonha e todo o pudor para se
apoderar da do vizinho. O teatro é comum a todos cidadãos, mas, uma vez
ocupados todos os lugares, não podes nem deves expulsar o vizinho, para no
seu lugar te colocares. As mulheres são comuns, também, mas uma vez
distribuídas pelo legislador, uma vez que cada uma tenha o seu marido, é-te
lícito não te contentares com a tua e te apoderares da do próximo? Se assim
fazes, não és homem, és lobo carniceiro.

246

           Sinal certo de grosseria é ocupar-se muito tempo dos cuidados do


corpo, assim como exercitar-se, beber, comer à larga, e dedicar muito tempo
às demais necessidades físicas. Essas coisas não devem ser o principal, mas
o acessório da vida, e devem ser feitas como que de passagem; toda a nossa
atenção deve aplicar-se ao espírito.

247

           Olha como brincam esses cães; acariciam-se, abraçam-se, contemplam-


se. Parecem-te bons amigos. Atira ao meio deles um osso, e verás o que
sucede. Assim é a amizade dos irmãos e a dos pais e filhos. Havendo no meio
uma terra, um campo, uma mulher, não há nem irmãos, nem filhos.

248

           Conheço um homem que, deplorando a sua desdita, foi atirar-se aos pés
de Epafrodita, e disse-lhe que era o mais desventurado dentre os homens do
mundo, que estava totalmente arruinado, que não tinha o de que viver, pois lhe
restavam apenas cinqüenta mil escudos. Que imaginas que lhe disse
Epafrodita? Pensas que se riu desse louco? Absolutamente. Respondeu-lhe
formalmente: – Ah, infeliz! Por que me não contaste antes o teu infortúnio?
Como pudeste suportá-lo sem morrer?

249

           Era Felício um tolo a quem todos desdenhavam dirigir a palavra. O


príncipe incumbiu-o temporariamente do cuidado dos seus negócios, e eis
Felício feito homem importante e de inteligência. Todos diziam: – Felício falou
como anjo. Esperemos um pouco, esperemos que o príncipe lhe tire o cuidado
dos seus assuntos, e serás novamente tolo.

250

           Outro fato semelhante dá perfeita idéia do cortesão. Epafrodita, capitão


dos guardas de Nero, tinha um escravo, sapateiro de ofício, mas tão tolo e tão
pouco hábil, que não lograva fazer coisa que tivesse proveito. Um criado de
Nero o comprou, e o acaso fez com que o escravo chegasse a ser sapateiro do
príncipe e, finalmente, seu favorito. A partir do dia seguinte, Epafrodita foi o
primeiro em lhe fazer a corte, e ficou encerrado dias seguidos para deliberar
assuntos importantes com o homem a quem vendera por inútil de todo.

251
           Não condeno a eloquência nem a arte de bem escrever e falar; condeno
que se encare como principal objetivo da vida, havendo outras coisas de mais
importância.

252

           Um homem de grande consideração, voltando do desterro, e


regressando a Roma, veio ver-me. Fez-me um espantoso quadro da vida da
corte; assegurou-me que lhe tinha aversão, que não voltaria a ela por nada no
mundo e que o pouco tempo que lhe restava de vida pretendia viver em
repouso, longe do tumulto e do embaraço dos negócios. Repliquei-lhe que
nada faria sem antes repor os pés em Roma, que se esqueceria de todas
aquelas belas resoluções, e que, se achasse meio de se aproximar do príncipe,
se aproveitaria logo do fato. Retrucou-me: "Epicteto, se ouvires dizer que pus
os pés na corte, afirma que sou o maior biltre do mundo." Que aconteceu? A
certa distância de Roma, recebeu uma missiva de César. Não se lembrou mais
das promessas, e regressou à corte, mais pressuroso do que nunca,
cumprindo-se, dessarte, a minha profecia. – Que pretendias que fizesse? –
disse-me outro. – Que passasse o resto dos dias na ociosidade e na preguiça?
– Meu amigo, achas que o filósofo, o homem que cuida de si próprio, é mais
preguiçoso que o cortesão? Há ocupações mais importantes e sérias.

253

           Há criaturas tão cegas que não tomariam por bom ferreiro nem o próprio
Vulcano, se ele não usasse o gorro de forjador. Que leviandade, pois, queixar-
se alguém de não ser reconhecido por um juiz pouco inteligente! Sócrates era
desconhecido da maior parte dos homens. Iam pedir-lhe que os conduzisse a
um filósofo, e ele os conduzia. Queixou-se alguma vez de o não tomarem por
filósofo? Não. Pelo contrário, orgulhava-se de ser filósofo sem o parecer. Quem
o foi mais do que ele? Procura imitá-lo e ser filósofo pelos teus atos.

254

           Podemos perceber a intenção da natureza pelas coisas em que nos


diferenciamos; por exemplo, quando o servo do teu vizinho quebra uma taça ou
qualquer outra coisa, não deixas de dizer, para o consolar, que é apenas um
acidente comuníssimo. Sabe, pois, que quando quebrares uma taça, tens de
ficar tão tranqüilo como se se quebrasse a do teu vizinho. Leva esta máxima às
coisas mais importantes. Quando o filho ou a mulher do próximo morre, não há
homem que não diga tratar-se de uma lei da humanidade. Mas quando quem
morre é o filho ou a mulher dele, só se ouvem gemidos, gritos e lágrimas.
Mister nos é lembrar-nos do estado em que permanecemos ao saber das
desventuras do próximo.

255

           Não vos solicito cartas de recomendação; guardai-as para os covardes e


os tíbios, e vede um modelo: – Recomendo-vos este cadáver, este odre de
sangue, que ainda se não firmou. Vede como deve ser recomendado o homem
que não possui suficiente inteligência para pensar que apenas dele depende
ser desventurado ou feliz.

256

           Prova-me que tens pudor, fidelidade, constância e que não és apenas
um tonel vazio. Não esperarei que me confies o teu segredo para contar-te o
meu. Porque, quem não teme perturbar um recipiente tão sereno? E quem
recusa um depositário que é, ao mesmo tempo, o nosso fiel conselheiro?
Quem não recebe com imenso prazer o carinhoso confidente que participa de
todas as nossas fraquezas e nos ajuda a transportar a nossa pesada carga?

257

           Que te importa saber o que te há de matar, se a febre, a espada, o mar,


a peste ou o tirano? Todos os caminhos que conduzem ao inferno são iguais.
Um dos mais curtos é aquele pelo qual te envia o tirano. Jamais viste o tirano
matar um homem durante seis meses, ao passo que a febre o mata durante
anos inteiros.

258

           Assim como numa longa viagem, quando o barco entra no porto, tratas
de prover-te de água, e, pelo caminho, compras mariscos ou setas, mas
sempre com o pensamento no barco, e voltando a todo instante a cabeça, para
verificar se o piloto te chama, e se assim for, corres para ele, temeroso de que,
se te fizeres esperar, te arremessem ao barco de mãos e pés amarrados, como
se foras um animal selvagem, assim também, na vida; se em vez de um
marisco ou de uma seta, recebes mulher e filho, os aceitas. Mas se o piloto te
chama, tens de abandonar tudo e correr para o barco, sem olhares para trás.
Se és velho, não te afastes muito do barco, para, quando o piloto te chame,
estares em condições de seguí-lo.

259

           Se amo o corpo, se amo a riqueza, estou perdido. Eis-me escravo. Dei a
conhecer o ponto pelo qual posso ser atacado.

260

           Sabia muito bem Apolo que Laio não obedeceria ao seu oráculo, mas
nem por isso deixou de lhe predizer as desditas que o ameaçavam; a bondade
dos deuses não deixa de advertir os homens. Essa fonte de verdade jorra
constantemente, mas os homens são sempre rebeldes, desobedientes e
incrédulos.

261

           Deve o homem, nesta vida, ser espectador da sua essência e das obras
da Divindade, intérprete e panegirista. Infeliz, que começas e acabas por onde
acabam e começam os irracionais, vivendo sem sentir, acaba, pois, por onde
em ti acabou a divindade. Acabou dando-te uma alma inteligente e capaz de
conhecê-la. Serve-te dessa alma, não saias de tão admirável espetáculo com
só o entrever. Observa, conhece, elogia, bendize.

262

           A Divindade fez-se testemunha viva das suas bondades e, ao prodigá-


las, pergunta: – Não é certo que não há bem nem mal fora da vontade? Deixei,
por acaso, nu um homem? Coloquei sob o poder de cada um o que pode ser-
lhe útil? Que respondes? – Padeço de uma insuportável calamidade; ninguém
cuida de mim, ninguém me ajuda, todos me insultam, todos me caluniam. Sou
a escória dos homens. – Assim é que reconheces a honra que a Divindade te
dispensou fazendo-te testemunha da sua glória e de tão grandes verdades?
Fazia-te testemunha da sua bondade, da sua verdade, da sua justiça, e te
converteste em seu acusador!

263

           Entre os gladiadores de César, vêem-se todos os dias alguns no


desespero, por não combaterem, fazendo promessas aos deuses para saírem
dessa ociosidade, e pedindo, como graça maior, que sejam enviados ao
anfiteatro. Mas entre nós, ninguém se encontra que deseje a ocasião de
demonstrar o seu amor aos deuses.

264

           A escola do filósofo é como o gabinete do médico. Não se vai lá para


sentir prazer, mas sim uma dor saudável. Um leva o ombro aberto, outro uma
inflamação, este uma fístula, aquele uma chaga na cabeça. O prazer poderá
curá-los?

265

           Para que nascem as espigas? Não é para amadurecerem e, uma vez
maduras, ser segadas? Ninguém as deixa sobre os talos, como se estivessem
consagradas. Se tivessem sentimento, pensas que fariam promessas para que
nunca fossem cortadas? Não, sem dúvida; considerariam uma maldição nunca
chegar, para elas, a colheita. O mesmo sucede aos homens: seria uma
maldição, para eles, viver sempre. Não morrer, para o homem, é para a espiga
jamais estar madura e nunca ser cortada.

266

           Se demonstrares ao mau que não faz o que quer, senão o contrário,
corrigi-lo-ás; mas se lho não demonstrares, não te queixes dele, senão de ti
próprio.

267
           Se queres avançar no estudo da sabedoria, não temas, nas
exterioridades, passar por imbecil e insensato.

268

           – Como sou infeliz! Não tenho tempo de estudar nem de ler! – Meu
amigo, por que estudas? Por mera curiosidade? Se assim é, bem mísero és
efetivamente. Mas o estudo deve ser apenas um preparo para a boa vida.
Começa, pois, desde hoje a bem viver; em toda parte podes cumprir com o teu
dever, e as ocasiões instruem melhor que os livros.

269

           Não te impeçam as censuras nem os motejos de teus amigos mudar de


vida. Preferes permanecer vicioso e ser-lhes agradável, a ser-lhes
desagradável e praticar a virtude?

270

           É ser ingrato e tímido sustentar que não existe diferença entre a beleza
e a feiura. Como pode ser tão agradável Tersites como Aquiles? Como podem
agradar igualmente uma horrível mulher e Helena? É grosseiro e ímpio.
Linguagem de gente que desconhece a natureza das coisas. Não é negando a
beleza que dela se foge; podemos conhecê-la e resistir-lhe.

271

           A cada tentação pensa, no íntimo: eis um grande combate, eis uma
ação completamente divina, trata-se da liberdade, da felicidade, da inocência;
lembra-te dos deuses, chama-os em teu auxílio, e eles combaterão por ti.
Invocas Cáster e Pólux numa tempestade; pois bem, a tentação é, para ti, uma
tempestade mais perigosa.

272

           O sol não espera que lhe supliquem difundir luz e calor. Imita-o e faze
todo o bem que puderes, sem esperar que to implorem.

273

           Lembra-te sempre do que disse Eumeu, em Homero, a Ulisses, que o


não reconhecia, e lhe agradecia os bons tratos: – Não me é lícito menosprezar
nem maltratar um forasteiro que vem a minha casa; nem o seria, ainda que
estivesse em condição mais vil e desprezível que aquela em que vos
encontrais, porque os forasteiros e os pobres são enviados de Deus. – Fala da
mesma maneira a teu pai, a teu irmão e ao teu próximo: não me é lícito portar-
me mal convosco, nem mo seria, ainda que fosse mais miserável o vosso
estado, porque sois enviados de Deus.

274
           Por que caminhas tão erecto como se levasses no corpo uma árvore? –
Quero ser admirado por todos os transeuntes e ouvir dizer à direita e à
esquerda: olhai, um grande filósofo. – Quem são, pois, essas pessoas a cuja
admiração aspiras? Não disseste repetidas vezes, tu próprio, que eram loucas?
Como queres ser, agora, o primeiro entre elas?

275

           Um dia respondeu Diógenes a um homem que lhe pedia cartas de


recomendação: – Meu amigo, aquele a quem pretendes que eu escreva em teu
favor verá logo, sem o meu auxílio, que és um homem, e se for conhecedor,
verá, mais, se és bom ou mau; se não for bom conhecedor, ainda que eu lhe
escreva cem cartas, não chegará a conhecer-te. Será melhor que procures
parecer-te à moeda de ouro, que se recomenda por si própria a todos os que
sabem distinguir o verdadeiro do falso.

276

           Quando um corvo te prediz alguma coisa com o seu grasnar, crês que é
um deus que te fala, e não um corvo. Do mesmo modo, quando um filósofo te
adverte, crê que é um deus quem te adverte, e não um filósofo.

277

           Começa as tuas ações e todas as tuas empresas com esta prece: –
conduzi-me, grande Júpiter, e vós, poderoso Destino, aonde eu tiver de ir.
Seguir-vos-ei com todo o meu coração, e sem demora.

278

           Assim como, quando passeias, cuida de não pisar uma pedra e torcer
um pé, cuida de não ferir-te a parte principal de ti próprio e a que te conduz. Se
em cada ação da nossa vida observássemos esse preceito, estaríamos sempre
certos de nos não enganar.

279

           Não te chames filósofo em nenhuma ocasião, nem exibas perante os


ignorantes belas máximas, mas faze tudo quanto essas máximas prescrevem.
Por exemplo, num festim, não digas como se deve comer, mas come segundo
se deve e lembra-te de que, em tudo e por tudo, Sócrates evitava qualquer
ostentação e fausto; os jovens suplicavam-lhe os recomendasse a um filósofo,
e ele o fazia, sofrendo com inteira paciência o pouco que dele faziam.

280

           As nossas austeridades e os nossos exercícios físicos não devem ser


nem extraordinários nem incríveis; de outro modo, seremos bateleiros e não
filósofos.
281

           Não ouças a leitura de obras de certas pessoas; mas se, uma ou outra
vez, a ouvires, conserva nela a gravidade, a atenção e a doçura, sem mesclá-
las a nenhuma mostra de pesar ou de tédio.

282

           Por que são os ignorantes mais fortes que vós nas disputas e, por fim,
vos reduzem ao silêncio? – Porque estão profundamente persuadidos das suas
falsas máximas, e vós apenas debilmente da verdade das vossas. Estas não
partem do coração; nascem apenas nos lábios; por isso é que são fracas e
mortiças. Expõem ao público desprezo essa mísera virtude que não cessais de
alardear, e fundem-se como cera ao sol. Afastai-vos, pois, do sol, enquanto
tiverdes opiniões de cera.

283

           Se quisermos ser verdadeiros filósofos, tratemos antes de fazer que a


nossa vontade se ajuste e acomode aos fatos consumados, para estarmos
sempre contentes com o que suceder e o que não suceder. Assim, teremos a
grande vantagem de jamais deixar de obter o que desejarmos e jamais cair no
que motiva os nossos temores. Passaremos a vida com o próximo sem temor
nem perturbação, e conservaremos todos os nossos laços naturais, cumprindo
perfeitamente o nosso dever de pais, de filhos, de irmãos, de cidadãos, de
esposos, de vizinhos, de associados, de magistrados e de súbditos.

284

           Não queiras passar por sábio, e se chegares a adquirir fama de tal, no
conceito de alguns, desconfia de ti próprio. Sabe que não é fácil conservar a
tua vontade segundo a natureza, conservando as coisas exteriores,
necessariamente terás de descuidar uma coisa ou outra.

285

           Acabas de ralhar com os teus criados, de semear em tua casa a


desordem e de perturbar e escandalizar os vizinhos, e depois vens, como
homem prudente, ouvir um filósofo e pensar acerca dos deveres do homem e
da natureza das virtudes. Todos esses preceitos te são inúteis, porque, se não
vens ouvi-los com a disposição necessária para tanto, regressas como vieste.

286

           Que vida é a tua? Depois de haveres dormido bem, levantas-te à hora
que queres, bocejas, distrais-te e lavas o rosto. Em seguida, ou te apossas de
um péssimo livro, para matar o tempo, ou escreves uma frioleira, para que te
admirem. Sais, então, e vais fazer visitas, passear e divertir-te. Voltas, tomas
um banho, comes e deita-te. Não revelarei os mistérios das trevas, que são
fáceis de adivinhar. Com esses costumes de epicurista e folgazão luxurioso,
falas como Zeno e Sócrates. Meu caro, muda de costumes ou de linguagem.
Quem usurpa o título de cidadão romano é severamente punido, e os que
usurpam o de filósofo ficarão impunes? Não é possível, pois isso contraria a
imutável lei dos deuses, que estabelece a proporcionalidade entre crime e
pena.

287

           A escolha das amizades não é indiferente. Se com freqüência privas


com um vicioso, a não ser que sejas muito forte, é mais fácil temer que te
corrompa que esperar que o corrijas. Pois que há tanto perigo no comércio com
os ignorantes, é preciso nele agir com muita prudência e sabedoria.

288

           Tens febre e te queixas, porque dizes que não podes estudar. Para que
estudas, então? Não é para chegares a ser sofrido, constante, firme? Procura
ser assim também na febre, e não saberás pouco. A febre é uma parte da vida,
como o passeio, as viagens, e é ainda mais útil, porque põe à prova o prudente
e lhe dá a ver o progresso que nele se verificou.

289

           Se puderes, não proves o prazer do amor antes do casamento, e se o


provares, que seja ao menos segundo a lei; mas não sejas severo com os que
te não imitem, não os repreenda com rancor nem tampouco te vanglories, a
cada instante, da tua continência.

290

           Não desanimes, e imita os mestres de exercícios, que, quando um


discípulo cai ao chão, mandam se levante e lute de novo. Dize coisa
semelhante ao teu espírito. Nada é mais dócil e flexível que o espírito do
homem: basta-lhe querer, mas se fores uma vez fraco, estarás perdido, pois te
não levantarás nunca mais na vida.

291

           Todas as coisas apresentam dois aspectos: um que as torna fáceis de


suportar, e outro muito difíceis. Se teu irmão te faz injustiça, não consideres a
injustiça que te faz, porque não poderás suportá-la; considera isso sob outro
ponto de vista, isto é, sob o aspecto que te apresenta um irmão, um homem
que tenha sido criado contigo, e tal consideração te tornará a injúria suportável.

292

           Queres saber se dois homens são amigos? Não perguntes se são
irmãos, se foram educados juntos, se tiveram os mesmos mestres e
preceptores; pergunta apenas em que fazem consistir a sua intimidade. Se nas
coisas que não dependem de nós, guarda-te de afirmar que são amigos; não o
são, nem tampouco fiéis, constantes e livres; mas se fundam a intimidade nas
coisas que dependem de nós e em sãos juízos, não te preocupe saber se são
pai e filho, ou irmãos, nem se se conhecem há muito tempo, e afirma, sem
temor, que são amigos, porque, é possível não haver amizade onde há
felicidade e comunicação de tudo quanto é belo e honesto?

293

           Não existe no mundo coisa a que qualquer animal esteja tão fortemente
ligado como à própria utilidade; tudo quanto o priva do que lhe é útil, quer seja
pai, irmão, filho, amigo, tudo lhe é insuportável, porque ama apenas a sua
utilidade, que lhe serve de pai, de irmão, de filho, de amigo, de pátria e até de
Deus.

294

           Quase sempre se medem os deveres pelos diferentes laços de união.


Trata-se de teu pai? Deves cuidar dele, obedecer-lhe em tudo e sofrer com
paciência as suas injúrias e os seus maus tratos. Mas é um mau pai. E então?
A natureza ligou-te necessariamente a um bom pai? Não, mas ligou-te a um
pai. Teu irmão é injusto contigo? Conserva a despeito disso o caráter de irmão,
e não penses no que faz, senão no que deves fazer, e no estado em que
chegará a encontrar-se a tua liberdade, se fizeres o que a natureza ordena que
faças, por que outro alguém te não ofenderá nem ferirá, se não quiseres, e não
serás ferido nem ofendido senão quando julgares sê-lo. Por tal meio, estarás
sempre satisfeito com o teu vizinho, o teu concidadão, o teu superior, se te
habituares a ter presentes, constantemente, esses laços de união.

295

           Os homens ergueram templos e altares a Triptolemo, por ter descoberto


um alimento menos selvagem e grosseiro que o que antes dele se usava.
Quem dentre nós ergue um altar no coração e abençoa os que encontraram a
verdade e de nossa alma arrojaram a ignorância e o erro?

296

           O que perturba os homens não são as coisas, mas as opiniões que
delas tem. Por exemplo, a morte não é um mal; pelo menos foi essa a opinião
de Sócrates. A idéia que da morte se tem é que dela faz um mal. Quando
estamos cabisbaixos, perturbados ou tristes, não acusemos ninguém, a não ser
a nós próprios, isto é, às nossas opiniões.

297

           Acerca de cada um dos objetos que se te apresentem, não te esqueças


de pensar, reconcentrando o espírito, e de indagar que virtude possuis para
fazer bom uso desse objeto. Se encontrares uma formosa mulher, acharás em
ti uma virtude: a continência; se for uma dor, um trabalho, acharás o valor; se
forem injúrias, afrontas, acharás a resignação e a paciência. Se de tal maneira
te habituares a exibir perante cada acidente a virtude que a natureza te deu
para combatê-lo, serás sempre vencedor.

298

           Afirmas que são incompatíveis a confiança e a precaução. É um erro.


Faze recair a precaução sobre todas as coisas que dependem de ti e a
confiança sobre as que de ti não dependem. Serás, assim, confiado e
precavido, porque, evitando com prudência os verdadeiros males, não temerás
os falsos com que, talvez, sejas ameaçado.

299

           – Quero sentar-me no anfiteatro, no banco dos senadores. – Asseguro-


te que farás um mau papel e te sentirás incomodado. – Não poderei ver
comodamente os jogos em outra parte? – Não os vejas; que necessidade tens
de ver os jogos? Agora, se o que te obriga a ir é a ânsia de te sentares nesse
banco, espera que todos saiam. Quando o espetáculo tiver terminado, sentar-
te-ás no banco desejado, e nele estarás à vontade.

300

           É impossível que eu não cometa erros; mas é muito possível que,
continuamente, cuide de os não cometer. E essa atenção continuada muito
contribuirá para lhes diminuir o número.

301

           Quando vires um homem curioso e diligente em coisas que dele não
dependem, podes ter a certeza de que é falador e jamais saberá guardar um
segredo; não haverá necessidade de aproximar-lhe pez fervente nem roda,
para que fale. O olhar de uma mulher, a menor complacência de um cortesão,
a esperança de uma dignidade, de um cargo, a perspectiva de um legado e mil
coisas semelhantes lhe arrancarão, sem trabalho, o teu segredo.

302

           Queixas-te da solidão. A que chamas estar sozinho? Estar separado do


comércio dos homens e privado do seu auxílio? Reflete que, bastas vezes, não
estamos menos sozinhos em Roma, e no meio dos parentes, dos amigos, dos
vizinhos e de um bando de escravos. O que rompe a solidão não é a vida do
homem, mas a sua fidelidade e virtude. Deus está contente consigo próprio, e
em si acha tudo; procura parecer-te a ele, visto que isto está em teu poder.
Fala contigo próprio; quantas coisas não tens que dizer-te e perguntar-te! Para
que precisas dos outros? Estás privado de todo auxílio; não tens pais, nem
irmãos, nem amigos? Tens, em troca, um pai imortal que não deixa de cuidar
de ti, e de prestar todos os auxílios necessários.

303
           Assim como a menor distração de um piloto pode fazer perecer um
barco, a menor negligência da nossa parte, a menor falta de atenção, pode
fazer-nos perder todo o progresso realizado no caminho da sabedoria.
Vigiemos, pois; o que temos de conservar é mais precioso que um barco
carregado de bens. É o pudor, é a fidelidade, a constância, a submissão e os
mandamentos dos deuses, a isenção de dor, de medo, numa palavra, a
verdadeira liberdade.

304

           Nada temas, e não haverá para ti homem terrível nem formidável, assim
como não há cavalo terrível para outro cavalo, nem abelha para outra abelha.
Não vês que os teus desejos e temores são a guarda que os tiranos mantêm
dentro de ti, como numa fortaleza, para escravizar-te? Expulsa essa guarda,
recobra a posse do teu forte, e serás livre.

305

           – Vil filósofo! diz-me um grão senhor que se preza de livre e


independente; – ousas chamar-me escravo, a mim, cujos antepassados foram
livres, a mim, que sou senador, que fui cônsul e que sou favorito do príncipe? –
Grande senador, provai-me que os vossos antepassados não sofreram a
mesma servidão que vós. Mas concedo-o. Foram generosos, e vós sois
concupiscente. Foram frugais, e vós sois glutão. – Que tem que ver isso com a
liberdade? – Muito, porque não chamareis livre ao que faz o contrário do que
quer. – Mas eu faço tudo quanto quero, e ninguém pode forçar-me a vontade, a
não ser o Imperador, que é meu senhor, que é senhor de tudo. – Grande
cônsul, acabamos de ouvir dos vossos lábios a confissão de que há um senhor
que vos pode forçar a vontade. Se é senhor de todo o mundo, isso vos
proporciona o triste consolo de ser escravo numa grande casa e no meio de
milhões de escravos.

306

           A proteção de um Príncipe, e ainda a de um grande senhor, basta para


fazer-nos viver tranqüilamente e a coberto de qualquer alarme. Consideramos
os deuses protetores, curadores, pais, e, assim mesmo, não bastam para nos
dissiparem os pesares, as inquietações e os temores.

307

           Tudo quanto sucede no mundo louva a Providência. Para o


compreender, basta ser varão inteligente e reconhecido.

308

           Se a Divindade, que fez as cores, não tivesse criado olhos que
pudessem apreciá-las, de que serviriam elas? E se houvesse criado as cores e
os olhos, sem criar a luz, que utilidade teriam umas e outros? Quem fez, pois,
essas três coisas, umas para as outras? Quem é o autor dessa maravilhosa
aliança? A Divindade. Existe, pois, uma Providência.

309

           Que fazem os homens? Tremem pelo que temem ou choram pelo que
sofrem. Essas inquietações e essas lágrimas geram a impiedade.

310

           A Divindade deu-te armas com que resistir a todos os sucessos, por
horríveis que sejam. Deu-te a grandeza de alma, a força, a paciência, a
constância. Serve-te delas; se o não fazes, confessa que o não sabes fazer,
apesar de te haverem sido entregues.

311

           Somos tão ingratos que, acerca das mesmas maravilhas que a
Providência realizou em nosso favor, longe de lhe agradecer, a acusamos, e
dela nos queixamos. Não obstante, se tivéssemos um coração sensível e
reconhecido, por pouco que o fosse, a menor obra da Natureza bastaria para
fazer-nos sentir a Providência e o cuidado que nos dispensa.

312

           Em que empregam o tempo os meninos quando estão sozinhos?


Brincam, amassam barro e areia e fazem castelos e palácios, que logo
destroem. Assim, nunca lhes falta distração. O que eles fazem loucamente,
efeito da sua infância, não o farás tu, racionalmente, e por efeito da sabedoria?
Por toda parte dispomos de areia e barro. Em nós próprios temos, portanto,
muito que destruir. Logo, se estamos sozinhos, não nos queixemos.

313

           Quando vês alguém cheio de dor e vertendo amargas lágrimas pela
morte ou pela partida do filho, ou pela perda de um bem, cuida de que te não
seduza a imaginação, persuadindo-te de que tal homem padece verdadeiros
males em virtude das coisas exteriores, e faze em ti próprio a distinção de que
o que o aflige não é o acidente que lhe sobreveio, senão a opinião que dele
tem formada. Se preciso, não recuses chorar com ele e partilhar da sua dor;
mas não leves a compaixão ao extremo de te afligires demasiadamente.

314

           Por uma liberdade que é falsa, expõem-se os homens aos maiores
perigos: atiram-se ao mar, precipitam-se das mais elevadas torres. Tem-se
visto cidades inteiras morrer. E tu, por uma liberdade verdadeira, segura, não
ousarás enfrentar nenhum trabalho?

315
           Há pequenos escravos e grandes escravos. Os pequenos são aqueles
que se fazem escravos por coisas à toa, por dinheiro, por pequenos serviços.
Grandes são os que se fazem escravos pelo consulado, por governos de
província. Diante desses, vês os que levam as achas e os feixes, que são
escravos de escravos.

316

           Não queres pertencer ao número dos escravos? Rompe os grilhões,


liberta-te, não abrigues despeito nem temor. Aristides, Epaminondas e Licurgo
não foram chamados, respectivamente, Justo, Libertador e Deus, pelas
riquezas, nem pelos escravos, senão por haverem dado a liberdade à Grécia.

317

           Estamos quase todos na vida como os escravos fugitivos nos


espetáculos; esses escravos sentem enorme prazer ao ver a pompa dos jogos,
admiram os atores de uma tragédia, mas vivem constantemente inquietos,
olham para cá e para lá; se ouvem nomear o amo, enchem-se de medo e
tentam a fuga. Somos como eles: admiramos as maravilhas da Natureza, cujo
espetáculo nos encanta, mas estamos sempre alarmados, e, quando se
nomeia o nosso amo, estamos perdidos. Quem é o nosso amo? Não é homem,
porque o homem não pode ser amo do homem; é a morte, a vida, o prazer, a
dor, a pobreza, a riqueza. Se o próprio César vier a mim sem tal cortejo,
permanecerei sereno e firme, mas se vir com os seus satélites, gritando e
ameaçando, hei de temê-lo. Não sou o escravo fugitivo que se encontrou com
o dono? Se o não temo, estarei plenamente livre, pois é sinal de que não tenho
outro amo senão a mim próprio.

318

           Um tirano me diz: – Sou amo, tudo posso. Ah! Que podes? Podes dar-
me um claro entendimento? Podes tirar-me a liberdade? Que podes, então?
Num barco, não dependes, acaso, do piloto? No teu carro, não dependes do
cocheiro? – Todo o mundo me adula e me faz a côrte. – Mas essa côrte te é
feita como homem? Demonstra-me que assim és considerado, que todos
querem parecer-te contigo, ser teus discípulos, como de Sócrates. – Mas
posso mandar que te seja cortado o pescoço. – Dizes bem; havia-me
esquecido de que é preciso fazer-te a côrte, como a fazemos aos deuses
nocivos, e oferecer-te sacrifícios, como à febre. Ela não tem, em Roma, um
altar? Tu o mereces mais que ela, porque és pior. Seja como for, ainda que os
teus satélites e toda essa tua pompa espantem e perturbem a via pública, nada
do que é exterior conseguirá perturbar-me. Podes ameaçar-me, mas sou livre.
– Tu livre? Como? – A própria Divindade me libertou. Pensas que deixará que
seu filho caia em teu poder? És senhor do meu cadáver; toma-o, se queres,
mas a tua cólera não me atinge o espírito.

319
           Quem pode impedir-te de seguir a verdade conhecida, e forçar-te a
aprovar o que é falso? Tens um livre arbítrio, do qual ninguém pode despojar-
te. Se a tua liberdade pudesse ser forçada, a Divindade não teria por ti o
cuidado de um bom pai e o que por ti tem na verdade.

320

           – E há uma Providência? dizia um epicurista; sinto no nariz um


grãozinho de pó que me incomoda incessantemente. Vil escravo! Para que
tens as mãos? Não é para que possas assoar-te? – Mas, não seria melhor se
não houvesse grãos de pó? – E não seria melhor que te assoasses do que
acusar a Providência?

321

           Se julgas que a ventura consiste em residir em Roma ou em Atenas,


estás perdido, porque, uma vez que delas estejas ausente, sofrerás, e quando
regressares experimentarás uma alegria que te será funesta. Desconfia destas
exclamações: Roma é uma bela cidade! Não há outra Atenas! Só há uma
ventura, e é mais bela que todas as cidades. Em Roma e Atenas é preciso
adular e fazer a côrte a muita gente. Não deverias estar contente por poder
trocar pela ventura tantas sensaborias?

322

           Os homens desculpam os erros que cometem, como tem sucedido a


mim próprio. Tendo-me Rufo repreendido por um erro, – E então, respondi-lhe,
queimei, por acaso, o Capitólio? – Vil escravo, replicou-me, haver queimado o
Capitólio é haver errado tanto quanto podias nessa ocasião!

323

           Tens febre, mas se a tens, como deves, tens tudo o que podes ter
melhor com ela. Que é ter a febre como se deve? Não queixar-se dos deuses
nem dos homens, não alarmar-se com a idéia do que pode acontecer, esperar
valorosamente a morte, não regozijar-se excessivamente quando o médico diz
que há melhora, e não afligir-se quando diz que se está pior. Pois, que é estar
pior? Aproximar-se do termo e do instante em que a alma se há de separar do
corpo. Chamas a essa separação um mal? Ainda que a morte não sobrevenha
hoje, deixará, por acaso, de vir amanhã? E contigo terminará o mundo?
Permanece, pois, tranqüilo tanto na febre como na saúde.

324

           Há noções comuns em que convêm todos os homens. As disputas, as


sedições, as guerras, de que procedem? Da aplicação dessas noções comuns
a cada caso particular. A justiça e a santidade são preferíveis a todas as
coisas; ninguém duvida de tal. Mas, é justo? É santo? Eis aqui o motivo de
controvérsia. Arrojemos para longe de nós a ignorância e aprendamos a aplicar
essas noções a cada caso particular; não haverá mais disputas nem guerras.
Aquiles e Agamenon estarão de acordo.

325

           Se tens por hábito levar uma vida frugal e tratar com dureza o corpo,
não te rejubiles por isso, e se bebes apenas água não digas, por qualquer
motivo, que apenas água bebes. Se queres exercitar-te na paciência e na
tolerância para contigo e não para com os outros, não abraces as estátuas,
mas na sede mais ardente toma água fresca na boca, atira-a para longe, e não
digas nada a ninguém.

326

           Veio um homem consultar-me acerca do propósito que nutria de entrar


na irmandade dos sacerdotes de Augusto, em Nicópolis. Eis, disse-lhe eu, um
gosto bem inútil. – Mas o meu nome se perpetuará, pois será inscrito nos
registros. – Inscreve-o numa pedra e durará muito mais. Além do mais, quem te
conhecerá, fora dos muros de Nicópolis? – Levarei uma coroa de ouro. – Se é
uma ambição, coroa por coroa, leva uma de rosas; pesar-te-á menos e te
assentará melhor.

327

           Um homem te confiou o seu segredo, e crês que é honesto, justo e


político confiar-lhe também o teu; és um tonto, um parvo. Lembra-te do que
viste fazer com freqüência. Um soldado, trajado de labrego, vai sentar-se perto
de um cidadão, e após alguns preâmbulos, começa a falar mal de César. O
cidadão, cativado por tal franqueza, e julgando ter o segredo do soldado por
prenda de fidelidade, abre-lhe o coração, queixa-se do Príncipe, e o soldado,
revelando-se o que é realmente, o prende. Eis o que sucede todos os dias.
Aquele que te confiou o teu segredo, freqüentemente só tem a máscara e o
traje de homem honrado. Aliás, isso não é confiança, é intemperança de língua:
o que te diz ao ouvido, di-lo ao primeiro que passa. É um tonel aberto, e não
guardará o teu segredo, como não guardou o dele.

328

           Quando afirmas que te corrigirás amanhã, é como se dissesses que


hoje queres ser imprudente, luxurioso, covarde, iracundo, invejoso, interessado
e pérfido. – Mas amanhã serei outro homem. Por que não hoje? Começa, hoje,
por preparar-te para amanhã; de outro modo, ficarás sempre no mesmo
estado.

329

           – A saúde é um bem, a enfermidade é um mal. Erro. Usar bem a saúde


é um bem, usá-la mal é um mal; usar bem a enfermidade é um bem; usá-la mal
é um mal. De tudo se tira o bem, até da própria morte. Meneceu, filho de
Creonte, não atingiu um grande bem, quando se sacrificou pela pátria?
Comprovou a piedade, a magnanimidade, a fidelidade, o valor. Se tivesse tido
apego à vida, tudo houvera perdido, e demonstrado os vícios contrários:
ingratidão, impiedade, pusilanimidade, infidelidade, covardia. Para serdes
livres, abri os olhos à verdade.

330

           Se bem considerares o modo de pensar do verdadeiro filósofo e as


luzes do seu entendimento, encontrá-los-ás bem esclarecido. Argos, com todos
os seus olhos, te parecerá, ao seu lado, um cego.

331

           Examino os homens, o que dizem, o que fazem, não para criticá-los
nem para rir-me deles, senão para perguntar-me: cometo os mesmos
erros? Quando me corrigirei? Há pouco, eu procedia da mesma maneira.
E se não peco do mesmo modo é por mercê dos deuses.

332

           Diz Epicuro que as crianças não devem ser alimentadas nem educadas,
pois não há nada mais contrário ao verdadeiro bem que, para ele, consiste no
prazer. Pobre Epicuro! Quer que sejamos mais desnaturados que as feras, as
quais nunca abandonam os filhos? A caridade dos pais com os filhos é tão
natural, que, estou certo, se teu pai e tua mãe houvessem sabido, por um
oráculo, que um dia sustentarias tão insensata afirmação, nem por isso
houveram deixado de educar-te.

333

           Ocupas no mundo um lugar eminente e te convertes em perseguidor e


tirano do próximo. Esqueces-te de quem és e a quem mandas? Mandas a teus
irmãos. – Comprei o meu cargo, as minhas prerrogativas, os meus direitos.
Infeliz; todos os teus pensamentos são de lama e areia, só dás atenção às leis
humanas, e, na tua soberba, te esqueces das divinas.

334

           Tens pena dos cegos, dos coxos. Por que a não tens dos maus? São-
no, por sua desdita, assim como são coxos e cegos aqueles.

335

           Lembra-te de que não é, de modo nenhum, uma necessidade ir com


freqüência aos teatros e aos jogos públicos, e se algumas vezes vais, não
favoreças nenhum partido e conserva o teu favor e interesse para ti próprio,
isto é, contenta-te com o que suceder e satisfaze-te com ser a vitória do
vencedor, porque, por tal meio, jamais te verás envergonhado nem contrariado.
Guarda-te, também, de prorromper em aclamações ou gargalhadas, e de fazer
exagerados movimentos, e quando te retirares, não fales longamente de tudo
quanto viste, que isso te não reformará os costumes nem tampouco te fará
mais honrado; essas dissertações sempre dão uma pobre idéia do que a elas
se entrega, pois indicam que somente o espetáculo é que lhe cativa a atenção.

336

           Se alguém se banha antes da hora devida, não digas que faz mal em
banhar-se, senão que faz mal em banhar-se antes do tempo. Se alguém bebe
muito vinho, não digas que faz mal em beber, senão que bebe
demasiadamente; pois, como podes saber se faz mal, sem antes saberes o
que deve fazer? Procede com parcimônia ao julgar qualquer coisa: é difícil que,
ao fazê-lo, não erres noutra.

337

           Se um filósofo desasseado e horrível, como o criminoso que sai de uma


prisão, me diz belas máximas, como poderá atrair-me? Como poderá fazer-me
amar uma filosofia que leva um varão a tal estado? Não conseguirei dominar-
me e prestar-lhe atenção, e, por nada deste mundo, dele me aproximarei.
Cuidemos, pois, do asseio e da decência. Digo o mesmo dos discípulos. Por
mim, prefiro que um jovem, amante da filosofia, venha ouvir-me bem asseado e
vestido decentemente, a que venha sujo, com os cabelos engordurados e mal
penteados, pois disso deduzo que possui uma idéia do belo e pende para o
formal e honesto. Cuida da beleza que conhece, e pode esperar-se que cuidará
igualmente da que lhe derem a conhecer, da beleza interior de que é preciso
saber usar e a cujo lado é apenas fealdade a beleza do corpo. Mas ao varão
que aparece sujo, hediondo, coberto de gordura e imundície, mal penteados os
cabelos e a barba a lhe cair até a cintura, que posso dizer-lhe para lhe dar a
conhecer a beleza da qual não tem idéia? É um porco, e preferirá sempre o
atoleiro à mais bela fonte.

338

           Um tocador de alaúde, mal empunha o instrumento, examina as cordas


desafinadas e, sem trabalho, as afina. Para viver bem no comércio dos
homens, deve o sábio possuir a arte de fazer com eles o que faz o músico com
as cordas: examinar os que discordam, fazê-los concordar e entre eles
estabelecer a harmonia. Foi o que fez Sócrates.

339

           Não há ciência que não seja desprezada pelos ignorantes. Será a
filosofia a única exceção a tal regra? Logrará fugir às suas censuras e aos seus
juízos errôneos?

340

           Se resisto a uma mulher formosa, disposta a conceder-me um favor, a


mim próprio digo: "Muito bem, Epicteto; isso vale mais que a refutação do mais
subtil sofisma." Se resisto aos seus elogios e lhe repilo as carícias, posso
gabar-me de tal vitória muito mais que de triunfar dos mais difíceis silogismos.
Mas, como resistir a tão poderosa tentação? Querendo comprazer a mim
próprio e ser agradável aos olhos dos deuses; querendo, enfim, conservar a
pureza do corpo e da alma.

341

           Meu amigo, és homem ou mulher? Se és homem, mostra-te tal, e não


nos apresente um monstro. Que pretendia dizer Sócrates, quando rogava a
Alcibíades que se fizesse mais belo? Aconselhava-o a descuidar da beleza do
corpo para trabalhar apenas em proveito da beleza da alma. – Devo, pois, ser
sujo e desasseado? – De modo nenhum, mas é preciso que o teu asseio seja
varonil e digno de homem.

342

           Consiste o caráter do ignorante em nada esperar de si próprio, e sim


dos outros. O do filósofo consiste em esperar de si próprio todo o seu mal e
todo o seu bem.

343

           Não é freqüente ver realizado tudo quanto promete a qualidade de


homem. É um animal mortal, dotado de razão, e por ela é que se diferencia dos
outros animais. Quando se afasta da razão, oculta-se o homem e surge o
animal.

344

           Que faz um homem que persegue a mulher do próximo? Pisa o pudor, a
fidelidade, infringe as leis da amizade, da sociedade, todas as mais santas leis;
não pode ser considerado amigo, nem vizinho, nem cidadão. Nem serve,
tampouco, para escravo. É como barco aberto, que só serve para mergulhar.

345

           Enquanto as mulheres são jovens, não cessam os maridos de lhes


elogiar a beleza e chamar-lhes queridas e formosas. Vendo as mulheres que
os maridos as consideram apenas pela beleza física, nos adornos é que
concentram todas as esperanças. Por conseguinte, nada é mais útil e
necessário que o esforço em lhes demonstrar que serão honradas e
respeitadas pela prudência, pelo pudor e pela modéstia.

346

           A primeira parte, e a mais necessária, da filosofia é a que trata da


prática dos preceitos, como o de que se não deve mentir; a segunda é a que
apresenta as demonstrações do porque se não há de mentir, e a terceira a que
comprova tais demonstrações, o motivo por que são demonstrações e o que
constitui nelas a verdade e a certeza, explicando o que é demonstração,
conseqüência, oposição, verdade, falsidade. Esta terceira parte é necessária à
segunda; a segunda à primeira, e a primeira é a mais necessária, e aquela na
qual nos devemos deter e fixar. Mas alteramos essa ordem, e nos detemos
inteiramente na terceira; todo o nosso trabalho, todo o nosso esforço é para
ela, para a demonstração teórica, e, em troca, descuidamos inteiramente a
primeira, que é a realização e a prática. Resulta, assim, que mentimos; mas,
em compensação, estamos prontos, a todo instante, para demonstrar que se
não deve mentir.

347

           Por que te chamas estóico? Assume o nome que convém aos teus atos,
e não te adornes do que te não convém e nada mais faz que desonrar-te. Por
toda parte se me antolham homens que enaltecem as máximas do estoicismo,
mas não vejo estóicos. Mostra-me um estóico, um apenas. Um estóico, isto é,
um homem que na enfermidade se ache ditoso, que ditoso se ache no perigo, e
ditoso também no meio do desprezo e da calúnia. Se não podes mostrar-me
esse estóico acabado e perfeito, mostra-me um que comece a sê-lo. Mostra-
me um homem sempre em conformidade com a vontade divina, que jamais se
queixe dos deuses, nem dos homens, que nunca veja frustrados os seus
desejos, que não seja lastimado por ninguém, nem saiba o que é inveja, cólera,
soberba; que, com um corpo mortal, sustente um secreto comércio com os
deuses e que anseie por despojar-se da veste mortal e a eles unir-se em
espírito.

348

           Nem as vitórias dos jogos olímpicos, nem as que se alcançam nas
batalhas, tornam o homem feliz. As túnicas que o tornam ditoso são as que
logra contra si próprio. São combates as tentações e provas. Foste vencido
uma, duas, muitas vezes; combate ainda. Se, por fim, chegares a vencer, serás
ditoso pelo resto da vida, como se sempre houvesses vencido.

349

           Quando a imaginação tentar escravizar-te com uma idéia luxuriosa, não
te deixes arrastar, sem dizer-lhe: Espera que examine o que me apresentas.
Não lhe permitas passar adiante e forjar imagens mais sedutoras, pois, se a
deixares, estarás perdido e ela te aprisionará. Em vez dessas pinturas
horríveis, obriga-a a te apresentar imagens mais ditosas, mais belas, mais
nobres. É o meio de não ser vencido.

350

           Por que não julgam os homens a filosofia como julgam as demais artes?
Um obreiro termina o seu trabalho de modo imperfeito, e somente a ele é que
se atribui a culpa; diz-se que é um mau obreiro, mas que a sua arte não cai no
descrédito. Em troca, um filósofo comete um erro e todos se guardam de dizer:
"Este não é filósofo", mas dizem: "Vede o que são os filósofos; a filosofia para
nada serve." De que procede tal injustiça? De, por pouco que o seja, ser
qualquer arte mais conhecida pelos homens do que a filosofia, e de os não
cegarem as paixões, tratando-se de artes que os lisonjeiam e lhes são
manifestamente úteis, enquanto a filosofia os combate e fere nos seus erros e
vícios.

351

           Basta, para ser músico, comprar uma partitura, um violino e um arco?
Basta, para ser aristocrata, ter um brasão e uma mesa? Pois tampouco, basta,
para ser filósofo, uma grande barba, uma túnica e um bordão. O hábito é
conveniente à arte, mas o nome quem o dá é a arte e não o hábito.

352

           Assim como ordena a medicina mudança de ares aos que padecem de
enfermidades crônicas, prescreve a filosofia a mesma coisa aos que possuem
vícios inveterados, só fortificáveis pelos lugares em que soem viver.

353

           Quando sofreres uma tentação, não adies para o dia seguinte combatê-
la; o dia seguinte virá, e o mesmo te sucederá. Assim, de amanhã em amanhã,
resultará, não somente seres vencido, como também caíres numa
insensibilidade que te impedirá perceber que pecas, e em ti experimentarás a
verdade do verso de Hesíodo: Infeliz de quem dorme no amanhã!

FIM

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