Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Maximas de EPICTETO
Maximas de EPICTETO
Difícil é para o biógrafo dizer qual a data em que nasceu Epicteto. Nada existe
que esclareça esse ponto escuro da vida do filósofo. Nem sequer é possível
registrar a data em que faleceu e o lugar em que se verificou o falecimento.
Pertenceu à escola dos estóicos. Pouco nos é dado conhecer da sua obra
literária, apesar de existirem, da autoria de Arriano, oito livros intitulados
"Dissertações", dos quais apenas quatro chegaram aos nossos dias. Arriano
publicou-os em grego, uma vez que de Epicteto nada havia diretamente
publicado, e neles manteve o estilo e a marcante personalidade do grande
filósofo.
Provavelmente morreu em Nilópolis, em idade avançada. Foi, mais tarde,
considerado mestre de Marco Aurélio. Alcançou reputação universal durante os
séculos II e III, graças às obras publicadas por Arriano, que as compôs
enquanto Epicteto ministrava as aulas aos incontáveis discípulos.
Não ornes a tua casa com belas pinturas; pelo contrário, faze que
resplandeçam nela, por toda parte, a sabedoria e a temperança. Os quadros
não passam de uma impostura para enganar os olhos; a sabedoria é um
ornamento real e verdadeiro.
Sacode enfim o jugo e, livre da servidão, levanta ao céu o rosto para
dizer ao teu Deus: "Serve-te de mim como te agradar; nenhum feito me será
odioso, se justificar a tua misericórdia para com os homens".
O verdadeiro bem do homem está sempre na parte em que difere dos
animais; seja essa parte bem fortalecida e alvo de assíduos cuidados,
defendam-na as virtudes e, seguramente, nada terá que temer.
Vais a Roma, empreendes tão grande jornada para obter um cargo mais
brilhante que o de que estás revestido. Que jornada empreendeste para
melhorar os teus juízos e opiniões? Que consultaste para corrigir o que em ti
há de defeituoso? Em que tempo, em que idade cuidaste de examinar os teus
juízos? Percorre com a imaginação todos os anos da tua vida e verás que
sempre fizestes o que hoje fazes.
10
11
12
13
Se pretendes que teus filhos, tua mulher e teus amigos vivam sempre,
és louco, pois é querer que as coisas que de ti não dependem dependam, e
seja teu o que é de outro. Também, se queres que o teu criado não cometa
nunca falta nenhuma, estás louco, pois é querer que o vício não seja tal vício.
Não queres ver contrariados os teus desejos? Não desejes senão aquilo que
de ti depende.
14
15
16
17
A natureza do mal não existe no mundo, pois não se concebe um fim
destinado a se não realizar.
18
19
Assim como um mercador não repele moeda de ouro assinalada pelo
busto do Príncipe, não recusa a alma os verdadeiros bens; com freqüência os
recebe falsos, mas é que o busto do Príncipe a enganou, e ela não possui a
arte de lhe conhecer a falsidade.
20
Se empreenderes feito superior às tuas forças, o pior não é que, por fim,
o abandones, mas que te esqueças do que poderias realizar.
21
22
23
Não pretendas que as coisas sejam como as desejas. Deseja-as como
são.
24
Lembra-te sempre destas máximas gerais: "Que é próprio de mim? Que
não é próprio de mim? Que devo fazer?" Até agora, deixaram-te os deuses
gozar de um prazer imenso, deram-te tempo suficiente para pensar, ler,
meditar, escrever acerca destas importantes matérias. Esse tempo deve haver-
te bastado. Agora, dizem-te: Vai, combate, mostra o que aprendeste, mostra se
és atleta digno de nós e de ser coroado, ou um desses gladiadores vis que
percorrem o mundo ocultando as suas derrotas.
25
É admirável a natureza e a lei que nos liga à vida tão fortemente, dizia
Xenofonte. Temos extraordinário cuidado com o nosso corpo, por repulsivo e
desagradável que seja, ao passo que, se tivéssemos de cuidar do nosso
vizinho, por quatro dias que fosse, a coisa nos pareceria insuportável
26
27
- Sou pretor na Grécia. – Tu pretor? Sabes julgar? Onde aprendeste tal
ciência? – Tenho a nomeação de César. E se César te houvesse nomeado juiz
em música, de que te valeria a nomeação, se jamais tivesses aprendido uma
nota sequer? Mas deixemos isso, e já que o que procuraste foi a nomeação,
responde: de que modo obtiveste o cargo? Quem to proporcionou? A quem
estendeste a mão? A que porta bateste? A quem deste presente? Com que
baixezas, com que indignidade, com que mentiras o compraste?
28
29
Ninguém pode ser mau e vicioso sem perda segura e dano certo.
30
31
32
Por acaso será infeliz o cavalo pelo fato de não poder cantar? Não, mas
pelo fato de não poder sentir. Sê-lo-á o cão, por não poder voar? Não, mas
pelo fato de carecer de inteligência. Consistirá a infelicidade do homem em não
poder estrangular leões e realizar coisas extraordinárias? Não, pois não foi
criado para isso. O homem é infeliz quando perde o pudor, a bondade, a
justiça, e quando se apagam todos os divinos caracteres, impressos em sua
alma pelos deuses.
33
Quando ouço chamar a alguém feliz por ver-se favorecido pelo Príncipe,
pergunto imediatamente: Que lhe sucedeu? – Foi colocado à frente de uma
província. – Mas, obteve ao mesmo tempo tudo quanto precisa para governá-la
bem? – Foi nomeado pretor. – Mas dispõe de meios e condições para o ser?
Não são as dignidades que proporcionam felicidade, mas sim o desempenhá-
las bem e delas fazer bom uso.
34
Que não faz o banqueiro para examinar o dinheiro que lhe entregam?
Emprega todos os sentidos, a vista, o tacto, o ouvido. Não se contenta com
fazer vibrar a moeda uma, duas, três vezes; à força de analisar os tinidos,
quase se converte em músico. Todos somos banqueiros naquilo que, julgamos,
nos interessa; não há cuidado nem atenção que não empreguemos para evitar
que nos enganem. Mas quando se trata da nossa razão, de examinar os
nossos juízos, somos preguiçosos e negligentes, como se tal não tivesse para
nós nenhum interesse, porque desconhecemos os prejuízos acarretados pela
nossa incúria.
35
36
37
Prefiro sempre o que acontece, por estar convencido de que a vontade
dos deuses é superior à minha. Atenho-me, pois, a ela, sigo-a e a ela conformo
os meus desejos, as minhas vontades e os meus atos.
38
Conserva bem o teu e não invejes o alheio. Nada te impedirá de ser
venturoso.
39
Em vez de fazeres a côrte a um velho rico, faze-a a um sábio. Este não
te fará corar, e tu jamais te afastará dele de mãos vazias.
40
41
Não depende de ti ser rico, mas ser venturoso. A riqueza nem sempre
constitui um bem e, certamente, é pouco duradoura; mas a felicidade que
emana da sabedoria é eterna.
42
É tão difícil aos ricos adquirir sabedoria quanto aos sábios adquirir
riqueza.
43
O que aflige não é a pobreza, mas a avareza, assim como não é a
riqueza que preserva de todo e qualquer temor, mas a razão.
44
45
46
47
Prescreve-te desde o início certas regras, e observa-as, quer estejas só,
quer acompanhado.
48
Não rias por muito tempo, nem com excesso, nem com freqüência.
49
50
Reúnes em ti qualidades, cada uma das quais exige deveres que é
mister cumprir; és homem, cidadão do mundo, filho dos deuses, irmão dos
outros homens. Sob outros aspectos, és senador, ou possuis outra dignidade,
és jovem ou velho, filho, pai ou marido. Pensa em tudo aquilo a que te obrigam
tais nomes e trata de não desonrar nenhum deles.
51
52
Como os faróis dos portos que prestam auxílio aos barcos perdidos, o
homem de bem, na cidade combatida por toda espécie de tempestades, é de
grande utilidade aos concidadãos.
53
Antes de te apresentares ao tribunal dos juizes, apresenta-te ao da
justiça.
54
55
56
57
Acabas de libertar um escravo. Mas tu, que lhe desta a liberdade, és
livre? Não és escravo de teu dinheiro, de tua mulher, de teus filhos, de teu
tirano, do último lacaio de um tirano?
58
Muito bem disse Diógenes que o único meio de estabelecer a liberdade
é estar pronto para morrer.
59
O próprio Diógenes escreveu ao rei dos persas: "Mais fácil que reduzir
os atenienses à escravidão ser-te-á reduzir os peixes; um peixe viverá mais
tempo fora da água que um ateniense na escravidão".
60
Quando estiveres no teu quarto, de noite, com a porta bem fechada e
apagadas as luzes, guarda-te de crer que estás só, que o não estás.
61
Afirmava Traséia preferir ser morto hoje a desterrado amanhã. Que lhe
respondeu Rufo? Se consideras pior o primeiro, és louco em o escolher; se o
consideras melhor, em que estribas a escolha?
62
Diante de toda imagem que te assalte deves estar pronto a dizer: és
enganosa, e não o que pareces. Examina-a bem, aprofunda-a e, para sondá-la,
serve-te das regras aprendidas, sobretudo da que consiste em examinar se o
que te aparece é do número das coisas que dependem de ti ou das que de ti
não dependem.
63
Visto que aspiras a tão grandes coisas, lembra-te de que não deves
trabalhar medianamente por adquiri-las. Mas de todas as exterioridades deves
renunciar completamente a umas e postergar outras; porque se tentas alcançá-
las juntamente, perseguindo ao mesmo tempo os verdadeiros bens, as
dignidades e as riquezas, não obterás nem sequer estas últimas; talvez deixes
de conseguir alguns bens, mas certamente carecerás dos únicos que
realmente podem constituir a tua felicidade.
64
Não te esqueças de que se tomas por livres as coisas que, pela sua
natureza, são escravas, e por tuas próprias as que de outrem dependem, verás
por toda parte obstáculos, afligir-te-ás, perturbar-te-ás, e queixar-te-ás dos
deuses e dos homens. Se, pelo contrário, tomas por teu o que verdadeiramente
te pertence e por alheio o dos outros, ninguém te obrigará ao que não queiras,
nem te impedirá realizar os teus gostos, nem terás motivo de queixa, nem de
acusação.
65
66
67
Quando te aproximares dos príncipes e dos magnatas, lembra-te de que
há lá em cima um Príncipe ainda maior, que te vê e te ouve, e a quem deves
comprazer mais que a qualquer outro.
68
Queres agradar aos deuses? Reflete que não há coisa que mais
detestem do que a impureza e a injustiça.
69
Não se entristecia Hércules por deixar órfãos os filhos, pois sabia não
haver órfãos no mundo, e terem todos os homens um pai que deles cuida e
que jamais os abandona.
70
71
72
Se há uma arte de bem falar, há igualmente uma arte de bem ouvir.
73
Por que discutir com pessoas que se não rendem às mais evidentes
verdades? Não são homens, são pedras.
74
Julgas que te direi laborioso, ainda que passes as noites estudando,
lendo? Não, sem dúvida. Quero antes saber a que ligas tal estudo e aplicas tal
esforço; porque não digo laborioso o homem que vela a noite inteira para ver a
prometida; digo que está apaixonado. Se velas pela tua glória, chamo-te
ambicioso; se para juntar dinheiro, chamo-te interessado; mas se velas para
cultivar e formar a razão, e acostumar-te a obedecer à natureza e a cumprir os
teus deveres, somente então te direi laborioso, porque é esse o único trabalho
digno do homem,
75
Cobres de injúrias uma pedra. Que proveito terás? Não compreenderá
nada do que disseres. Imita a pedra e não dês ouvidos às injúrias.
76
Não há coisa que o homem sensato suporte menos do que tudo quanto
é irracional.
77
78
Vale mais o perdão que a vingança, porque um é efeito de uma natureza
doce e humana, e outra o de uma organização feroz e brutal.
79
Não deve inspirar medo a pobreza, nem o desterro, nem a prisão, nem a
morte. O que deve inspirar medo é o próprio medo.
80
Adquiriste belas coisas. Tens muitos vasos de ouro e prata, és rico, mas
o melhor te falta: a constância, a submissão às ordens divinas, a tranqüilidade,
o estar isento de confusão e temor. Quanto a mim, pobre como sou, sou mais
rico que tu. Não me preocupo com ter padrinhos na côrte; não me importo com
o que possa dizer-se de mim ao Príncipe, e não faço mal a ninguém. Eis o que
me faz gozar de todos os bens. Tens vasos de pedraria, mas todos os teus
pensamentos, todos os teus desejos, todos os teus atos, todas as tuas
inclinações são de terra.
81
82
Lembra-te de que deves haver-te na vida como num festim. Chega-te
um prato? Estende a mão com decência, e serve-te moderadamente. Retiram-
no da tua presença? Não o retenhas. Ainda não chegou? Não estendas muito
longe o teu desejo, e espera que chegue, afinal, ao teu lado. Faze o mesmo
com os filhos, com a mulher, com os cargos e as dignidades, com a riqueza, e
serás digno de admitido à própria mesa dos deuses. Se, ao te serem
apresentados os manjares, os não tocares, e repelires ou menosprezares, não
somente serás convidado dos deuses, mas seu companheiro. Por tal meio,
Diógenes, Heráclito e outros chegaram a ser homens divinos e universalmente
reconhecidos como tais.
83
Houve por bem Páris raptar Helena, e houve esta por bem segui-lo. Se
da mesma maneira a Menelau se houvesse afigurado bem dispensar uma
esposa infiel, que teria acontecido? Teríamos perdido a Ilíada e a Odisséia. O
resto não tem importância.
84
Por que meio conseguiremos não formar falsos juízos? Evitando que tal
nos ensinem desde a infância. A nossa nutriz, que nos ensina a caminhar,
quando, por acaso, damos de encontro a uma pedra e choramos, em vez de
repreender-nos, põe-se a ralhar com a pedra. Poderia esta adivinhar que
iríamos bater contra ela, e mudar de lugar? Quando já somos adolescentes, se,
ao sairmos do banho, não achamos pronta a refeição, irritamo-nos, e o nosso
pedagogo, ou aio, em vez de nos reprimir a cólera, começa a ralhar, por sua
vez, e com mais aspereza, voltando-se para o cozinheiro. Bem se lhe poderia
dizer: – Pagam-te para ser mestre do cozinheiro ou do menino? Modera a
cólera e corrige a impaciência do teu discípulo. - Quando já somos homens
formados e temos as nossas ocupações, vemos todos os dias casos idênticos.
É por isso que vivemos e morremos crianças. Que é ser criança? – Assim
como na música ou nas letras, é criança quem a não sabe, ou a sabe mal, na
vida pode chamar-se criança quem não sabe viver e não tem idéias sensatas.
85
86
Pergunto-te que progresso realizaste na virtude, e mostras-me um livro
de Crisipo, que te gabas de compreender. É como se um atleta, cuja força eu
pretendesse conhecer, em vez de me mostrar os braços musculosos e os
largos ombros, me fizesse ver apenas as manoplas. Assim como quereria ver o
que fez o atleta com as manoplas, quereria saber o que fizeste tu com o livro
de Crisipo. Praticaste-lhe os preceitos? Ordenaste bem os teus temores e
desejos? O progresso aparece na própria obra. Educaste a alma na liberdade,
na fidelidade, no pudor? Acha-se em estado de nada lhe poder servir de
obstáculo e perturbação? Prescindiste na vida dos gemidos, das queixas e das
exclamações importunas? Meditaste o que é a prisão, o ostracismo, a cicuta?
Podes dizer em qualquer ocasião: sigamos com valor o caminho pelo qual nos
chamam os deuses?
87
O respeito que se tem ao que pode prejudicar é como o altar erguido à
febre no meio de Roma. Adora-se, porque se teme.
88
Nunca digas: perdi isto, senão: devolvi. Morreu-te o filho? Devolveste-o.
Morreu-te a mulher? Devolveste-a. Tirou-se-te a terra? É uma restituição que
fizeste. Quem ta tira é mau; mas que importa a qualidade das mãos com as
quais te é tirada? Usa todas as coisas que estão em teu poder como coisas
que te não pertencem, como fazem os viandantes com as estalagens.
89
Se Sócrates, dizes, se tivesse salvado, ainda seria útil aos homens. –
Meu amigo, o que Sócrates disse e fez, recusando salvar-se e morrendo pela
justiça, é muito mais útil que tudo quanto houvera podido fazer noutro caso.
90
Duas coisas há que devem ser tiradas aos homens: a vaidade e a
desconfiança.
91
Tudo quanto se pode utilmente descuidar, mais utilmente ainda se pode
abandonar.
92
Em tudo é necessária a atenção, até mesmo nos prazeres. Há coisa que
a negligência adquira facilmente?
93
Os que sustentam não haver verdade conhecida desmentem tal
princípio com uma pretensa verdade. Seja verdadeira ou falsa tal afirmação é
para eles, uma verdade conhecida.
94
95
Por que sou velho? Vil escravo! Acusas a Providência por um pé
disforme. Que é mais racional, que a Providência esteja submetida ao teu pé,
ou que este o esteja à Providência?
96
97
Pretendes ser como os maus comediantes, que só logram cantar nos
coros?
98
O meu dever, enquanto me dure a vida, é dar graças aos deuses, louvá-
los pública e particularmente, e não deixar de os abençoar até que tenha termo
a vida.
99
100
Quando vês uma víbora ou uma serpente num barco de ouro, acaso lhe
tens alguma estima? Não sentes por ela o mesmo horror, a causa da sua
natureza mortal e venenosa? Faze o mesmo com o mau, quando o vês no
meio dos seus haveres.
101
Evita comer fora de casa e foge dos festins públicos. Mas se uma
circunstância extraordinária te obriga a assistir a um deles, redobra a atenção
para contigo próprio, a fim de não vires a ser influído pelas maneiras vulgares.
Sabe que se um dos convidados é sujo, necessariamente se manchará quem
lhe estiver ao lado, por mais limpo que seja.
102
Cada qual se atribui livremente um preço alto ou baixo, e ninguém vale
senão o que se faz valer. Tacha-te, pois, de livre ou de escravo, que isso
apenas de ti depende.
103
Sócrates amava os filhos, mas amava-os como homem livre, e lembrado
de que, em primeiro lugar, devia amar os deuses. Assim, jamais proferiu
palavra que não fosse digna de homem de bem, nem quando se defendeu
perante os juizes, nem quando foi senador, nem quando esteve na guerra. Nós,
porém, em tudo achamos pretexto de baixeza e covardia; no filho, na mãe, no
irmão. Não obstante, deveríamos não fazer-nos desgraçados por ninguém, e,
pelo contrário, fazer de todas as criaturas meios da nossa felicidade, e,
principalmente, servidores dos deuses que nos criaram, a fim de sermos
venturosos.
104
105
106
Assim como esta proposição: é dia, é noite, é muito sensata quando
está separada e constituída em duas partes, e insensata quando é complexa,
isto é, quando as duas partes constituem uma, assim também nos festins não
há nada tão insensato como querer alguém tudo para si próprio, sem
consideração aos demais. Portanto, quando te convidarem a um banquete,
lembra-te de não pensar tanto na qualidade dos manjares servidos, que te
excitem o apetite, como na qualidade de quem te convidou e em conservar o
respeito e admiração que lhe deves.
107
Procura, a maioria das vezes, guardar silêncio, ou, pelo menos, não
proferir senão as palavras necessárias, e sê breve. Raramente nos vemos
obrigados a falar, se não falarmos mais do que quando o permitam as
circunstâncias; não nos entretenhamos com coisas triviais e comuns, como os
combates de gladiadores, as corridas de cavalos, os trajes, o comer, o beber,
que são assuntos das conversações de todos os dias. Sobretudo, jamais fales
dos homens para criticá-los ou elogiá-los, e menos ainda para estabelecer
entre uns e outros comparações.
108
Queres parecer-te ao total dos homens, como se parece um fio da tua
túnica aos demais fios que a compõem, mas eu quero esta faixa de púrpura
que não somente é bela, como também embeleza tudo aquilo a que se aplica.
Por que, pois, me aconselhas a ser como os outros? Se eu fora como o fio, não
seria como a púrpura.
109
110
Os loucos são incorrigíveis. Afirma o provérbio que é mais fácil quebrar
um louco do que mudá-lo.
111
Lembra-te de que o fim dos teus desejos é obter o desejado, e o fim dos
teus temores evitar o temido. Quem não obtém o que deseja é desgraçado, e
quem cai no que teme é mísero. Se não professares aversão senão ao que é
contrário ao teu verdadeiro bem e de ti depende, jamais cairás no temido; mas
se temeres a morte, as enfermidades ou a pobreza, serás mísero. Faze,
portanto, recair os teus temores sobre as coisas que de ti dependem, e quanto
aos teus desejos, faze o mesmo, porque se desejas alguma coisa que não
esteja em ti alcançar, é sinal evidente de te não achares ainda em estado de
conhecer as que devemos desejar. Esperando tal estado, contenta-te com
desejar e temer as coisas docemente, sempre com exceção e sem violência.
112
Compomo-nos de duas naturezas assaz distintas: de um corpo que nos
é comum com os animais e de um espírito que nos é comum com os deuses.
Uns tendem para o primeiro parentesco, se é permitido assim falar, parentesco
desditoso e morto, e outros tendem para o segundo, parentesco ditoso e divino.
Nasce daí pensarem uns nobremente e outros, em maior número, só terem
pensamentos baixos e indignos. Que sou eu? Um homem desditoso, e as
carnes que me revestem são, com efeito, más e míseras; mas trago em mim
algo mais nobre que a carne; por que, pois, tamanho apego a ela, afastando-
me desse outro princípio tão elevado? Vede a pendente pela qual se atira a
maioria dos mortais, e vede por que há neles tanto de tigre, tanto de lobo, tanto
de leão, e tão pouco de homem. Cuidado, meu amigo! Procura não aumentar o
número de tais monstros.
113
114
Por que nasci de tais pais? Meu amigo, antes do teu nascimento,
dependia de ti dizer: quero que tais pessoas contraiam núpcias, e quero nascer
delas? Se o teu nascimento é desditoso, não depende acaso de ti corrigi-lo
com a virtude?
115
Teu amigo, teu filho, partiram; abandonaram-te, e tu choras. Não sabias
que o homem era viandante? Sofres o castigo da tua loucura. Crês que terás
sempre perto de ti os objetos dos teus prazeres e que gozarás sempre dos
lugares e das coisas que te são agradáveis? Quem to prometeu?
116
Queres dar à tua cidade natal uma oferta raríssima e de grande valor?
Dá-te inteiramente a ela, depois de te haveres convertido em modelo perfeito
de doçura, de liberalidade e de justiça.
117
Queres envelhecer e não ver morrer os que amas, isto é, queres que
todos os teus amigos sejam imortais, e que para ti unicamente mudem os
deuses as suas leis e a ordem da natureza. É justo isso, insensato?
118
119
Nada tens que não tenhas recebido. Quem te deu tudo, tira-te uma
coisa. Resistindo-lhe, além de louco, és ingrato e injusto.
120
As coisas que de nós dependem são livres pela sua natureza; nada
pode detê-las nem levantar-lhes obstáculos, e as que de nós não dependem
são débeis, escravas, dependentes, sujeitas a mil inconvenientes e obstáculos,
e inteiramente estranhas.
121
Quando tornarei a ver Atenas e a Acrópole? Nada podes ver mais
formoso que o céu, o sol, a lua, as estrelas, a terra, o mar. Se estás aflito por
haveres perdido de vista Atenas, que farás quando for mister perder de vista o
sol?
122
123
Não queres, pois, ser sóbrio e abandonar o leite para nutrir-te de carne
sólida? Queres ainda chorar e gritar, recostado ao peito da nutriz e voltar aos
contos e canções com que ela te embalava?
124
A regra e medida dos nossos atos são as nossas opiniões. De onde
nasceu a Astréia de Eurípedes? Da opinião. E a sua Medéia e o seu Hipólito?
Da opinião. E o Édipo de Sófocles? Da opinião.
125
Quando soar a hora, morrerei, mas morrerei como deve morrer o
homem que sabe devolver o que lhe foi confiado para guarda.
126
Não devemos regozijar-nos com os homens, nem com eles congratular-
nos se não pelas coisas de que têm verdadeiro motivo de regozijo e que lhes
são honrosas e úteis.
127
128
129
Umas coisas do mundo dependem de nós, outras não. As que de nós
dependem são os nossos juízos, os nossos movimentos, as nossas
inclinações, as nossas aversões, os nossos desejos, numa palavra, todos os
nossos atos.
130
131
Lembra-te de que és ator na obra, breve ou longa, em que o seu autor te
fez tomar parte. Se quer que representes o papel de mendigo, mister é que o
desempenhes da melhor maneira possível. Ademais, se quer dar-te o papel de
coxo, de príncipe, de particular, deves representá-lo, pois está em tuas mãos
desempenhar bem o teu papel, mas não escolhê-lo.
132
Temes falar da morte, como coisa de mau agouro. Não há mau agouro
no que não faz senão marcar a ação da natureza. A preguiça, a imprudência, a
covardia, os demais vícios, é que são realmente coisa de mau agouro. E, no
entanto, uma vez que não se possa evitar uma coisa, não se deve temer
proferir-lhe o nome.
133
Os verdadeiros dias de festa para ti são aqueles em que venceste uma
tentação, em que atiraste para longe de ti, ou pelo menos enfraqueceste, o
orgulho, a temeridade, a malignidade, a maledicência, a inveja, a obscenidade
das palavras, o luxo ou qualquer outro dos demais vícios que te tiranizam. Isso,
muito mais que obter um consulado ou a chefia de um exército, merece que
faças sacrifícios.
134
Sobre cada uma das coisas que te divertem, que te servem e que
aprecias, lembra-te de pensar e de perceber o que verdadeiramente é,
começando pela menor. Se gostas de um vasinho de terra, lembra-te de que é
de terra, para que, se suceda quebrar-se, não fiques impressionado. Se gostas
de teu filho ou de tua mulher, dize ao espírito que gostas de uma criatura
mortal, para que, se suceda morrer, te cause menos dor.
135
136
Quando ouvires ou vires algo de mau agouro, não te deixes levar pela
imaginação; pelo contrário, faze em ti próprio esta consideração: não diz
respeito a mim próprio este infeliz agouro, senão ao meu corpo, ao meu bem
ou à minha reputação, ou a meus filhos ou minha esposa. Quanto a ti, não
pode haver mais que felizes presságios, se assim desejas, porque, suceda o
que suceder, de ti é que depende tirar dele o maior bem.
137
De ti depende fazer bom uso de tudo o que se verifica. Não digas, pois:
que sucederá? Que te importa o que possa suceder, se de tudo és capaz de
tirar proveito, se de tudo podes fazer bom uso, e qualquer coisa que se realize
pode chegar a ser para ti felicidade enorme? Se aos olhos se te apresenta
medonha fera, ou tens que sustentar um feroz combate contra homens
implacáveis e terríveis, de que te afliges? Se te antolha uma fera, o combate é
maior e mais glorioso. Se pelo caminho encontrares homens prodigiosos e
intratáveis, terás maior mérito se conseguires, ao vencê-los, livrar deles o
mundo. E se eu morrer? Se morreres, morrerás como herói. Que mais podes
desejar?
138
Ocupas-te unicamente de habitar suntuosos palácios, de te rodeares de
uma turba de lacaios e mordomos, de te vestires magnificamente e de
possuíres apetrechos de caça, músicos e tropa de comediantes. Julgas que te
invejo por isso? Cultivaste a razão? Trataste de adquirir sãs opiniões e de
aproximar-te da verdade? Por que, pois, te envergonhas de possuir eu sobre ti
uma vantagem no que descuidaste? É que isso é precioso e grande. Tanto
melhor se o sabes; mas quem te impede consegui-lo? Em vez de caçadores,
de músicos, de comediantes, rodeia-te de gente sã de entendimento; ninguém
pode dispor de mais tempo, de mais livros, de mais mestres do que tu.
Começa; dá à razão alguma coisa do tempo que te sobra; numa palavra,
escolhe. Se continuares a satisfazer-te com exterioridades, terás, certamente,
móveis mais raros e magníficos que os de qualquer outro, mas a tua pobre
inteligência, assim abandonada à incúria, ficará no embrutecimento.
139
140
Não há nada tão freqüente como ver poderosos que julgam saber tudo,
e nada sabem, ignorando até as verdades mais necessárias. Como nascem na
abastança e não sentem necessidade nenhuma, não suspeitam de que lhes
possa faltar alguma coisa. Dizia eu assim, uma tarde, a um dos mais
considerados: – Estais perto do Príncipe, possuís grande quantidade de
administradores poderosos e grandes alianças; por meio do vosso crédito
podeis servir aos amigos e destruir os invejosos. – Que me falta, pois?
perguntou-me. – O mais importante e necessário à verdadeira felicidade; até
aqui, fizestes o contrário do que vos convém, descuidando o principal. Não
sabeis o que são os deuses, nem o que é o homem; ignorais a natureza do
bem e do mal, e, o que vos surpreenderá mais que tudo, vós próprio vos
desconheceis. Ah, fugis e vos encolerizais pelo que vos manifesto com esta
franqueza! Que mal vos fiz? Somente vos apresentei o espelho em que viste a
vossa imagem.
141
142
Foste preferido num festim, num conselho, numa visita. Se são bens as
preferências de que és alvo, devera alegrar-te recaírem elas sobre o próximo, e
se são males, não te aflijas, por te não veres livre deles; mas lembra-te de que
não pode caber-te deles a mesma participação que cabe aos que lidam por
adquirir o que deles não depende. Quem nunca bate à porta de um grande
senhor não pode ser tão bem tratado como o que lá vai todos os dias; quem o
não acompanha quando sai, como o que lhe fica sempre ao lado; quem o não
adula nem tampouco o lisonjeia, como o que outra ocupação não conhece.
Portanto, és injusto e insaciável, se, não dando as coisas com as quais se
compram os favores, os queres obter gratuitamente. Por que preço vendem os
legumes no mercado? Por um óbulo. Se, pois, der o teu vizinho um óbulo e
levar o seu legume, ao passo que tu, sem dar o óbulo, sem o legume
regressas, não imagines ser por isso menos afortunado, pois se ele tem
legume, tens tu óbulo, já que o não entregaste. O mesmo sucede neste caso:
não foste convidado a um festim? Tampouco deste ao hóspede o preço pelo
qual o vende; esse preço é um elogio, uma visita, uma complacência, uma
subordinação; dá, pois, o preço, se a coisa te agrada, mas não queiras, sem
ele, adquirir a mercadoria. No resto, não sintas pesar se não tens assento no
festim, desde que tenhas conseguido conservar o que é superiormente
estimável, como a independência e o direito de exprimir livremente os teus
sentimentos.
143
144
Quando acusas a Providência, sabe que em ti próprio está a sua
justificação. Em que possui o mau vantagem sobre ti? Na riqueza? Examina-
lhe o interior, e dize se te não envergonharia a vida que ele observa. Há dias,
exprimi esse pensamento a um homem a quem envergonhava a prosperidade
de Filostorcos. Disse-lhe eu: - Venderias os teus favores a Sura? – Não o
queiram os deuses, respondeu-me, preferiria, e com prazer, perdem vida. Por
que, então, te envergonhas de uma dita que tem o seu preço? Por que o achas
ditoso ao possuir coisas que detestas? Em que te maltratou a Providência
dando-te o que de melhor possui? Não te queixes; a sabedoria é mais preciosa
que as riquezas, e a humildade mais que a ambição.
145
Não podes ser um Hércules, nem tampouco um Teseu, para limpar de
monstros a terra; mas podes imitá-los, atirando para longe de ti os monstros
que te assediam. Em vez de Procusto e de Círon, doma a violência da dor, o
medo, a concupiscência, a inveja, a avareza, a preguiça e a intemperança. O
único meio de vencer tais monstros é ter sempre diante dos olhos os deuses,
ser-lhes devoto e obedecer apenas aos seus preceitos.
146
147
Não é raciocinar prudentemente dizer: – Sou mais rico do que tu, logo
sou melhor; sou mais eloqüente, logo valho mais. – Para raciocinar
consequentemente, é preciso dizer: Sou mais rico do que tu, logo o meu bem
atual é maior; sou mais eloqüente, logo a minha eloquência vale mais do que a
tua.
148
149
150
Até quando diferirás julgar-te digno de grandes feitos e por-te em estado
de jamais ferir a reta razão? Recebeste os preceitos aos quais deverias dar o
teu consentimento. Deste-o. Por que, pois, postergar a emenda? Não és uma
criança, e sim homem feito. Se te descuidares, se te distraíres, se abrigares
resolução e mais resolução, se todos os dias assinalares um novo em que
haverás de prestar atenção a ti próprio, sucederá finalmente que, sem o
perceberes, não terás realizado nenhum progresso, e perseverarás
eternamente na ignorância. Valor, portanto; julga-te digno, desde hoje, de viver
como homem, e como homem que já realizou alguns progressos na sabedoria;
que tudo quanto se te afigure bom e belo seja para ti lei inviolável. Se se te
oferecer algo de penoso ou agradável, de glorioso ou vergonhoso, lembra-te de
que a luta está aberta, que os jogos olímpicos te chamam, que não convém
postergar, e sim, pelo contrário, levar a caba, e enfim que, de um momento a
outro de um único ato de valor ou de covardia depende a tua salvação ou a tua
perda. Não foi de outro modo que logrou Sócrates chegar à perfeição fazendo
com que todas as coisas servissem ao seu fim, e seguindo constantemente a
razão. Quanto a ti, embora não sejas Sócrates, deves viver como se tivesses
de o ser um dia.
151
152
153
154
155
Quando fizeres alguma coisa depois de saberes a fundo que é o teu
dever, não evites, ao fazê-la, ser visto, ainda que o vulgo forme de ti falsos
juízos; porque se a ação é má, não deves realizá-la; e se é boa, não deve
importar-te a condenem os maus.
156
Quis certa matrona romana enviar uma grande quantia em prata a um
dos seus amigos, chamado Grátila, desterrado por Domiciano; disse-lhe
alguém que o imperador se apoderaria da quantia e a confiscaria. – Não
importa, respondeu ela. Prefiro, a não enviá-la, que Domiciano a roube.
157
Qual é o varão invencível? Aquele que, imóvel no seu lugar, não se
preocupa com as coisas que não dependem da sua vontade; considero-o um
verdadeiro atleta. Sustentou um combate. Sustentará o segundo? Resistiu ao
dinheiro. Resistirá à beleza? Venceu em pleno dia, no meio do mundo.
Vencerá, sozinho, durante a noite? Triunfará da glória, da calúnia, da adulação,
da morte? Dominará todos os incômodos e todas as tristezas? Numa palavra,
será vitorioso até em sonhos? Vê o atleta que eu procuro.
158
159
Evita o juramento em tudo e por tudo; se não, sempre que o permitam
as circunstâncias.
160
Um pede o Tribunato; outro a chefia dos exércitos; eu o pudor e a
modéstia, porque sou livre e amigo dos deuses e lhes obedeço de todo o
coração. É, pois, necessário que não dê importância ao corpo, à riqueza, às
dignidades, à reputação, nem a qualquer coisa estranha, porque não querem
os deuses que eu lhes dê importância. Se o tivessem querido, houveram feito
com que fossem bons para mim; mas, visto que assim não procederam, não
são evidentemente bons, e obedeço às ordens deles.
161
A primeira coisa que é mister aprender é que existe um Deus que a tudo
governa com a sua providência e a não podem estar ocultos nem os nossos
atos, nem os nossos pensamentos e vontades. Logo, é necessário examinar-
lhe a natureza. Uma vez bem determinada e conhecida a sua natureza, é
preciso que os que pretendem agradar-lhe e oferecer-lhe, se esforcem por
parecer-se a Ele; que sejam livres, fiéis, benévolos, misericordiosos,
magnânimos. Todos os teus pensamentos, todas as tuas palavras, todos os
teus atos sejam, pois, atos, palavras e pensamentos de homem que imita a
Deus e com Ele procura ter alguma semelhança.
162
163
164
Não sejas, mortal, ingrato aos bens que recebeste dos deuses, e não te
esqueças dos seus grandes benefícios. Dá-lhes constantemente graças pela
vista, pelo ouvido que te concederam – que digo! – pela própria vida e por
todos os auxílios que te prestaram para sustentá-la; pelos próprios frutos da
terra. Ao mesmo tempo, porém, lembra-te de que te deram algo de mais
precioso ainda, a faculdade que, servindo-se de todas as coisas, as analisa e a
cada uma atribui o seu valor.
165
166
167
Se obrássemos com bom juízo, não faríamos outra coisa na vida pública
e particular senão dar graças à Providência por todos os bens que dela
recebemos. Lavrando, comendo, passeando, levantando-nos e deitando-nos,
diríamos: – A Providência é grande! Tudo repercutiria o eco destas divinas
palavras: A Providência é grande! Mas sois ingratos e cegos; é preciso, pois,
que o diga eu por vós, e que, velho, coxo, pobre e enfermo, repita sem cessar:
Como é grande a Providência!
168
170
171
Os deuses não me deram multidão de bens; não quiseram que eu nade
na opulência, nem tampouco que me entregue aos prazeres; mas de que me
queixo? Não trataram melhor Hércules, que tantos feitos realizou em honra
deles.
172
Quando consultamos os áugures, é tremendo e dirigindo aos deuses
ardentes preces. – Deuses, tende piedade de mim, permiti que me livre
felizmente deste ou daquele cuidado, – Vil escravo! Queres outra coisa que a
que te convém? Que pode convir-te mais que fazer a vontade dos deuses? Por
que, pois, tentas corromper o teu árbitro e o teu juiz, enquanto pedes?
173
Por que consultar os adivinhos acerca das coisas em que o nosso dever
está marcado? Se se trata de expor-me a um perigo pelo meu amigo, devo
morrer por ele; que necessidade tenho de adivinho? Não possuo dentro de mim
próprio um adivinho mais seguro e incapaz de enganar-me, que me ensinou a
natureza do bem e do mal, e que me explicou todos os sinais pelos quais os
devo reconhecer?
174
175
176
Quando fores consultar o adivinho, lembra-te de que ignoras o que deve
suceder, e que vais sabê-lo. Mas lembra-te ao mesmo tempo que, se fores
filósofo, vais consultá-lo, muito bem sabendo de que natureza é o que deve
suceder; porque se for coisa que de nós não dependa não poderá ser
seguramente nem um bem nem um mal para ti. Não leves, pois, contigo, ao
adivinho, inclinação ou aversão por coisa nenhuma; de outro modo, tremerás
sempre; persuade-te, pelo contrário, e convence-te de que tudo quanto suceder
será indiferente, não te dirá respeito, e que de qualquer natureza que seja, de ti
depende fazer dele bom uso, sem que ninguém consiga impedir-to. Vai, pois,
com confiança, como quem se aproxima de deuses que se dignam aconselhar
e, ademais, quando te houverem sido dados alguns conselhos, lembra-te do
que são os conselheiros aos quais recorreste, e que a tua desobediência será
menosprezo das suas ordens. Não vás ao oráculo se não como Sócrates
queria se fosse, isto é, não vás senão para as coisas que só podem ser
conhecidas pelo acaso, e não podem ser previstas nem pela razão nem pelas
regras de qualquer arte. Assim, quando se te deparar oportunidade de te
expores a grandes perigos pelo amigo ou pela pátria, não vás consultar o
adivinho se tiveres de fazê-lo, porque se te declarar que são más as entranhas
das vítimas, serás evidente que o sinal te pressagia a morte, os ferimentos ou o
desterro; afirma-te, porém, a razão, em que pese a todas essas coisas, que
deves socorrer o amigo e expor-te pela pátria. Apolo Pitiano atirava para fora
do seu templo quem, vendo em perigo de morte o amigo, o não ajudava.
177
Só cortejo os poderosos. Mas é esse o teu destino? De mim sei dizer
que não nasci para tal coisa. Não tenho a quem comprazer, obedecer e
submeter-me? Tenho os deuses, nos quais está o verdadeiro poder.
178
179
Supondo que homem livre é aquele a quem tudo sucede como deseja,
disse-me um louco, quero que me suceda tudo quanto me aprouver. Meu
amigo, jamais andam juntas a loucura e a liberdade. A liberdade não é uma
coisa somente belíssima, senão também racional, e não há nada mais absurdo
nem mais irracional que desejar temerariamente e pretender que as coisas se
verifiquem do modo pelo qual as pensamos. Quando tenho de escrever o nome
próprio Díon, devo escrevê-lo não como me agradaria, mas tal qual é, sem a
mudança de uma única letra. Sucede o mesmo em todas as artes e ciências. E
queres que na maior e mais importante de todas as coisas, como é a liberdade,
impere o capricho e a imaginação? Não, meu amigo, a liberdade consiste em
querer que as coisas sucedam não como as desejamos, mas como são.
180
Esperas ser feliz uma vez que tenhas obtido o que solicitas. Enganas-te;
terás as mesmas inquietações, os mesmos cuidados, os mesmos
aborrecimentos, os mesmos temores, os mesmos desejos. A felicidade não
consiste em adquirir e desfrutar do adquirido, mas em não desejar, porque
consiste em ser livre.
181
Os deuses me deram a liberdade, e não desconheço os mandamentos.
Por conseguinte, ninguém logrará reduzir-me à escravidão, porque tenho o
libertador que me falta e os juizes dos quais careço.
182
183
Estava muito bem gravada no coração de Prisco Helvídio essa máxima,
e ele soube pô-la nobremente em prática. Um dia, ordenou-lhe Vespasiano que
não fosse ao Senado. – Tem Vespasiano o poder de afastar-me do meu cargo,
respondeu Helvídio, mas enquanto eu for senador, irei ao Senado. – Se vieres,
disse-lhe o Príncipe, virás somente para calar-te. – Não me peças conselho,
respondeu Helvídio, e eu me calarei. Mas se estiveres presente, retrucou o
Príncipe, não poderei deixar de pedir-te conselho. – E eu, disse Helvídio, dir-te-
ei o que me parecer justo. – Se o disseres, far-te-ei morrer. Quando te
assegurei que eu era imortal? replicou Helvídio. Ambos faremos o que de nós
depender; tu me farás morrer, e eu, sem queixa, me submeterei à morte. Que
lucrou com isso Helvídio, sendo o único que se colocava em tal situação? O
mesmo que a púrpura sobre a túnica; orna-a, embeleza-a, e causa aos outros
inveja e desejos de possuir uma semelhante.
184
– Foste condenado ao desterro. Mas haverá lugar fora do mundo para o
qual eu possa ser enviado? Para onde quer que eu vá, não terei céu, sol, lua e
estrelas? Não terei sonhos e agouros? Não poderei manter comércio com os
deuses?
185
186
Lembra-te de que não é quem te injuria, nem quem te fere, quem te
maltrata, senão a opinião que deles tens e que te faz encará-los como inimigos.
Quando alguém se encoleriza e irrita, sabe que não é esse homem que te irrita,
senão a opinião que tens das coisas. Trata, pois, de impedir que a imaginação
te vença, porque se alguma vez o consegues, podes chegar a ser mais
facilmente senhor de ti próprio.
187
188
189
Somente o sábio é capaz de amizade. Como pode amar quem confunde
o mal com o bem?
190
191
Quando alguém te causa dano ou de ti fala mal, reflete que ele julga
estar obrigado a tanto. Não é possível que siga os teus juízos, senão os seus,
de modo que, se julga mal, a si apenas é que prejudica, porque somente ele se
engana; assim, se alguém tacha de falso um silogismo muito justo e racional,
não é o silogismo que perde, senão quem se engana julgando erradamente. Se
te servires cuidadosamente dessa regra, suportarás com paciência todo mal
que de ti se diga, porque não deixarás de afirmar do maldizente: – Diz isso,
porque de boa fé o acredita.
192
– Não devo vingar-me e devolver o mal que me fizeram? Meu amigo,
não te fizeram o mal, visto que mal e bem só dependem da tua vontade.
Quanto ao resto, se um tolo feriu a si próprio cometendo contra ti uma injustiça,
por que pretendes imitá-lo?
193
– Quando alguém te repetir o mal que outro falou de ti, não te preocupes
com refutar o que se afirma, e responde simplesmente: – Quem assim falou de
mim ignora, sem dúvida, os meus outros vícios, pois de outro modo se não
contentaria com afirmar tais futilidades.
194
O varão prudente aguarda sempre dos maus maior mal que o que deles
recebe. Um semelhante me injuria; dou graças por me não haver golpeado.
Golpeia-me; dou graças por me não haver ferido. Fere-me; dou graças por me
não haver matado.
195
196
Em que ocupação desejas que a morte te surpreenda? Eu, por mim,
quisera que me surpreendeste em ato digno de homem, grande, generoso e útil
ao gênero humano; ou melhor, quisera que me surpreendesse ocupado em me
corrigir, e atento a todos os meus deveres, para em tal momento poder erguer
ao céu as mãos, puras e limpas de todo crime, e dizer aos deuses: todas as
faculdades que de vós recebi para conhecer a vossa providência e para lhe ser
eternamente submetido foram por mim observadas; até onde me chegaram as
forças tratei de vos não desonrar. Vede o uso que fiz dos sentidos, das
faculdades. Jamais me queixei de vós; jamais, por causa nenhuma me
envergonharei da minha origem divina; nunca senti pesar pelo que tive de fazer
por vós, nem desejei trocar essa tarefa por outra. Não violei as vossas ordens,
e dou-vos graças por me haveres criado. Usei dos vossos bens, na medida em
que mo permitistes; quereis retirar-mos, eu vo-los devolvo, são vossos,
disponde deles como vos aprouver. Eu próprio me coloco em vossas mãos.
197
Entristece-te ter que abandonar lugares tão belos; lamentas-te, choras.
És, pois, mais desgraçado que os corvos e gralhas, que mudam de clima e
passam os mares sem gemer e sem saudades do páramos que abandonam. –
Mas esses animais carecem de razão. – Não te deram os deuses a razão para
algo melhor que para te fazeres mísero? Pretendes que os homens sejam
como as árvores, sujeitas pelas raízes e impossibilitadas de mover-se? –
Entristece-me deixar os amigos. – Ora, o mundo está repleto de amigos e de
protetores; todos os homens estão unidos pela natureza. Ulisses, que tanto
viajou, não encontrou amigos? Não os encontrou Hércules?
198
Esforça-te para que te não turve a idéia de ser menosprezado e de nada
ser no mundo; porque se o menosprezo é um mal, não podes cair no mal por
intermédio de outro, nem tampouco no vício. Depende de ti desempenhar os
principais cargos? Está em tuas mãos seres convidado, ou não, a um festim?
De maneira nenhuma; como, pois, há de ser isso para ti menosprezo ou
desonra? De que modo deixarás de ser alguma coisa no mundo, quando, se és
alguma coisa, sê-lo de ti é que depende? – Mas os meus amigos carecerão,
por minha parte, de todo socorro. – Que queres dizer? Queres, acaso,
manifestar que não poderás dar-lhes dinheiro nem fazê-los cidadãos romanos?
Quem te disse que tais coisas pertencem ao número das que de ti dependem,
e como podemos dar aos outros o que nós próprios não possuímos? Procura o
teu bem estar, dizem-te, para que nós participemos dele. Se puder procurá-lo,
conservando o pudor, a modéstia, a fidelidade, a magnanimidade, mostrai-me o
caminho por seguir para que eu chegue a ser rico, e sê-lo-ei; mas se
pretendeis que perca os meus verdadeiros bens, com o intuito de adquirirdes
vós os falsos, examinai a desigualdade da vossa balança e até onde vos leva a
vossa inconsideração e ingratidão. Preferis o dinheiro a um amigo prudente e
fiel? Não fora melhor ajudar-me a adquirir tais virtudes que exigir faça eu coisas
que mas fariam perder? – Mas dirás ainda: a minha pátria não receberá de
mim nenhum serviço. Que serviço? Não conseguirá, por teu intermédio,
pórticos nem termas? E que é isso? Certamente ninguém obtém calçados por
meio de um ferreiro, nem armas com o trabalho de um sapateiro; é preciso que
cada um, dentro da sua esfera, se dedique apenas ao seu trabalho. Mas se dás
à tua pátria um novo cidadão prudente, modesto e fiel, não lhe prestas
assinalado serviço? Certamente lhe prestarás um muito grande e não lhe
serás, portanto, inútil. Que posição ocuparei, portanto, na cidade? A que
puderes lograr, conservando-te fiel e modesto. Que serviço podes prestar à tua
pátria, que posição ocuparás na cidade, se chegares a perder essas virtudes?
199
Quando fores visitar um varão poderoso, imagina que o não encontrarás
em casa, que estarás doente, que te será fechada a porta ou que te não dará a
menor importância. Se depois disso, o dever te obrigar a ir, suporta com
resignação tudo quanto suceda, e nunca digas que foste contrariado, porque tal
linguagem só é própria do vulgo ou daquele para quem possuem as coisas
exteriores demasiado poder.
200
Supões que foi uma grande desdita para Páris entrarem os gregos em
Tróia, destruírem-na a sangue e fogo ou matarem toda a família de Príamo e
raptarem as mulheres. Enganas-te, meu amigo. A grande desdita de Páris se
realizou quando perdeu o pudor, a fidelidade, a modéstia, e quando violou a
hospitalidade. Igualmente, não consistiu a desdita de Aquiles na morte de
Patroclo, senão quando chorou e se esqueceu de que não partira para a guerra
em busca de amantes, e sim para devolver a um marido a esposa.
201
202
203
Nunca viste uma feira a que acodem homens de todos os distritos? Uns
vão vender, comprar outros, e um pequeno número por curiosidade,
unicamente para ver a feira e saber porque se celebra e quem a estabeleceu. É
a mesma coisa o mundo: todos os homens estão nele, uns para vender, para
comprar outros; pouquíssimos há que admirem este grande espetáculo e
examinem o que é, quem o fez, para que o fez e como o governa, porque é
impossível não seja feito e governado por alguém. Uma cidade, uma casa, não
existem sem obreiro, e se duram é porque alguém as governa; máquina tão
imensa e admirável não pode existir por puro acaso; é impossível. Logo, existe
alguém que a fez e a governa. Quem é e como a governa? E nós, que também
somos obra sua, que somos e por que somos? Pouquíssimos fazem tais
reflexões, e, após admirarem a obra e bendizerem o obreiro, se retiram
contentes. Se alguém as faz é alvo das chacotas dos outros, como na feira o
são os simples curiosos, a quem chamam tolos os mercadores. Se os bois e os
carneiros pudessem falar, certamente se ririam de todos os que pensassem
noutra coisa que não comer e ruminar.
204
205
206
207
Passas por esta cidade, e enquanto o barco se faz ao mar, exclamas: –
Vamos ver um momento Epicteto; ouviremos o que diz. Vens, contemplas-me,
é tudo. Que é, pois, conversar com um homem? Não é perguntar-lhe quais as
suas opiniões e expor-lhe as próprias? Tenho uma falsa opinião; combate-a.
Estás num falso preconceito; consente que to desfaça. Isso é falar com um
filósofo. Pelo contrário, fazes-me uma visita e, pouco satisfeito, retiras-te
dizendo: – Epicteto não é grande coisa; fala com rudeza. Não é assim? Vede o
que são os homens; procuram com quem falar, estão todos os dias juntos,
como estátuas, sem se conhecerem, sem se examinarem uns aos outros e
sem melhorarem. O entretenimento ou a curiosidade é que determinam os
nossos feitos e conversações.
208
209
Aprendeste alguns preceitos de filosofia e pretendes ensiná-los. Que
fazes senão devolver o que não digeriste, como devolve o mau estômago a
comida ingerida? Digere, meu amigo, e ensinarás quando, mediante uma
alteração no teu espírito, me fizeres ver o alimento que lhe deste. – Mas este
ou aquele abriu uma escola, e eu não quero ser inferior. Vil escravo! Abre-se
uma escola por capricho ou por acaso? Para tal é preciso ter idade madura,
observar determinada vida e ser escolhido pelos deuses. Sem isso, serás
sempre um impostor e ímpio. Abres uma loja e tens nela ungüentos, mas lhes
desconheces o uso e maneira pela qual se aplicam.
210
211
Assim como não depende do homem dar consentimento ao que parece
verdadeiro, tampouco dele depende repelir o que lhe parece bom. O epicurista
que afirma não ser o roubo um mal e sim ser surpreendido, roubará,
seguramente, se estiver convencido de que ninguém o observa.
212
Vais ao anfiteatro e logo te interessas e desejas que tal ator ou tal atleta
seja coroado. Querem os demais seja outro o que alcance a vitória. Aborrece-
te essa contradição, por seres pretor e pretenderes que todos cedam. Mas não
tem os outros opinião própria? Não tem vontade e o mesmo direito de ofender-
se por te opores ao que se lhes afigura justo? Se queres permanecer tranqüilo
e jamais encontrar oposição, não desejes a coroa senão a quem seja coroado.
Ou se queres ser dono de entregá-la a quem mais te aprouver, celebra jogos
em tua casa, e então, com a tua própria autoridade, publicarás: este ou aquele
venceu nos jogos píticos, ístmicos ou olímpicos. Em público, porém, não te
arrogues o que te não pertence, e deixa em liberdade os sufrágios.
213
Lembra-te de que o desejo das honras, da riqueza, não é o único que
nos submete e escraviza, senão também o desejo de repouso, de folga, de
viagens, de estudo. Numa palavra, todas as coisas exteriores, quaisquer que
sejam, nos fazem escravos quando as estimamos. O verdadeiro dono de si
próprio e de nós é aquele que tem o poder de dar-nos e tirar-nos o que
queremos. Todo homem, pois, que pretenda ser livre, não deseje nem deteste
nada do que depende dos demais; a não ser assim, será necessariamente
escravo.
214
215
Empreendes uma longa jornada com o propósito de assistir aos jogos de
Olímpia, e mais ainda com o de admirar a bela estátua de Fídias, e consideras
grande desdita morrer, sem o prazer de vê-los; mas alguma vez te pesou não
contemplar obras muito superiores às de Fídias, obras que não é mister
procurar tão longe, que não custam tantos trabalhos e esforços, e que por toda
parte se nos deparam? Alguma vez te ocorrerá pensar que és homem e que o
és por teres nascido? Permanecerás desatento ante o espetáculo tão
admirável deste universo que a divindade colocou diante dos teus olhos e que
te convida a conhecer?
216
217
Queres chegar a ser filósofo; prepara-te, desde já, a ser objeto de mofa,
e sabe de antemão que o povo te vaiará e apostrofará, chamando-te filósofo da
noite para o dia; ser-te-á atirada ao rosto a tua postura arrogante. Procura, por
tua parte, não mostrar tal postura e ater-te às máximas que se te houverem
afigurado mais belas e melhores; pensa que se nelas te mantiveres firme, os
mesmos que a princípio de ti se riem, te admirarão, enquanto, se cederes aos
seus insultos, serás duplamente escarnecido.
218
Quando empreenderes alguma coisa, seja ela qual for, concentra o
espírito e reflete antes em que ação te vais empenhar; se fores banhar-te,
focaliza o que de ordinário se passa nos banhos; uns atiram água aos outros;
não falta quem bata outro, quem lhe dirija injúrias, quem o roube; depois de
pensar nisso, irás com mais segurança ao que pretenderes fazer; mas dize
sempre antes: – Quero banhar-me; contudo, quero também conservar a
liberdade e independência, verdadeiro patrimônio da minha natureza; o mesmo
deves dizer acerca de cada coisa. Por tal meio, se um obstáculo te impedir
banhar-te, terás sempre o consolo de dizer: não queria apenas banhar-me,
senão também conservar a liberdade e independência, e não a conservaria se
me entristecesse.
219
220
Um médico visita um enfermo e lhe diz: Tens febre; abstém-te por hoje
de tomar qualquer alimento, e não bebas mais que água. O enfermo dá-lhe
crédito, agradece-lhe e paga-lhe. Um filósofo diz a um ignorante: Os teus
desejos são desenfreados, os teus temores são baixos e servis, professas
falsas crenças. O ignorante enfurece-se e sente-se ferido no amor-próprio. De
que nasce tal diferença? De o enfermo conhecer o seu mal, e o ignorante não.
221
222
223
224
225
A sede do febril é bem diversa da sede do homem são. Este, mal bebeu,
está satisfeito e a sede se lhe apazigua. Mas aquele, após breve instante de
prazer, sofre terríveis dores de estômago; a água se lhe converte em bílis,
vomita-a, retorce-se, e a sede se faz mais insuportável. Semelhante é quem
possui riqueza, cargos ou uma formosa esposa, e deixa que a concupiscência
lhe invada o coração. É essa a sede do febril, de que se originam os ciúmes, as
inquietações, as palavras indecorosas, os desejos impuros, os atos obscenos.
Meu amigo, tu, que eras antes tão prudente, tão cheio de pudor, que fizeste do
pudor e da sabedoria? Em vez de ler as obras de Crisipo e de Zeno, lês
apenas livros abomináveis, como os de Aristides. Em vez de admirar Sócrates
e Diógenes, e de lhes seguir o exemplo, não admiras nem imitas senão
aqueles que corrompem as mulheres. Queres ser belo, esforças-te para isso
custe o que custar, tens magníficos trajes, e essências e perfumes te
arruinam. Volta em ti, combate contra ti próprio, recobra a posse do teu pudor,
da tua dignidade, da tua liberdade; numa palavra, volta a ser homem. Conheci
um tempo em que, se te tivessem dito: – Este ou aquele homem fará Epicteto
mau, fá-lo-á usar tais trajes e apresentar-se perfumado, houveras voado em
meu socorro, e imagino que o terias matado. Não se trata aqui de matar; tão
somente deves voltar a ti, falar à tua consciência. Começa por condenar o que
tu próprio fizeste, antes que te leve de roldão a torrente.
226
227
228
Abandonas o filho quando está enfermo, porque dizes que o amas e que
não tens coragem de assistir à sua enfermidade. Se é esse o efeito da
amizade, mister é que todos os que o amam o abandonem: sua mãe, a nutriz,
os irmãos, o preceptor; e que fique em mãos de mercenários. Que cegueira,
que injustiça, que barbaridade! Seguramente não quererias tu próprio, nas tuas
enfermidades, ter amigos que te amassem com tal ternura.
229
230
Nada grande se faz de um golpe, nem maçã nem cacho de uvas. Se me
dizes: – Quero agora mesmo uma maçã, respondo-te: – Para isso é preciso
tempo; espera que nasça, que cresça e amadureça. E queres que o espírito
frutifique de uma vez em toda a sua perfeita maturidade. É justo?
231
232
O príncipe deu paz à terra. Não há mais guerras, não há mais combates,
não há mais piratarias. Em qualquer hora, em qualquer tempo, podemos ir
sozinhos por onde quer que seja, livremente, sem nenhum temor. Mas o
príncipe consegue dar-nos paz com as enfermidades, os naufrágios, os
incêndios, os tremores de terra, os descobrimentos? Essa paz só os deuses é
que a dão, e a razão é o arauto que a publica.
233
234
Recebeste o consulado e és governador de província. Por quem? Por
Felício. Asseguro-te que eu não quereria viver, se tivesse de viver pelo
prestígio de Felício, e suportar-lhe a soberba e insolência de escravo, porque
sei o que é o escravo que se julga feliz e julga cega a sua sorte. – Mas, tu és
livre? – Não. Lido por o ser, mas ainda não atingi tão venturoso estado; não me
é dado ainda fitar os olhos firme e serenamente nos meus amos; ainda estou
agrilhoado ao corpo, e, embora alquebrado, pretendo conservá-lo; confesso a
minha fraqueza. Se queres, porém, que te mostre homem verdadeiramente
livre, menciono-te Diógenes. – E de que modo chegou a ser livre? –
Destruindo, em si, tudo aquilo de que poderia a servidão apossar-se; desligado
de tudo, isolado por toda parte, nada possuía; pedíeis-lhe o seu bem-estar, e
ele o dava; pedíeis-lhe o pé, dava-o; todo o corpo, dava-o; mas estava
fortemente ligado aos deuses e a ninguém cedia em obediência, em respeito,
em submissão para com essa soberania. Ali estava a origem da sua liberdade.
– Mas, replicas, esse exemplo é o de um único homem, a quem nada ligava ao
mundo. – Queres, então, exemplo de homem que não estivesse sozinho?
Sócrates tinha mulher e filhos, e não era menos livre que Diógenes, porque, tal
qual Diógenes, tudo submetera aos deuses e à obediência devida à lei.
235
236
237
238
Lembra-te do que dizia Eufrates, que se congratulava por haver ocultado
por longo tempo que era filósofo; porque, além de estar convencido de que
nada fazia para ser visto pelos homens, senão pelos deuses e por si próprio,
tinha o consolo de, combatendo sozinho, sozinho também arriscar-se, e não
expor o próximo nem a filosofia pelos erros que lhe poderiam ter escapado; e,
finalmente, porque experimentava o secreto prazer de haver sido reconhecido
como filósofo pelos seus atos, e não pelas suas palavras.
239
Não caluniar, não adular, não queixar-se, não acusar, não falar de si
próprio como se fosse alguma coisa são sinais certos de que um homem
progride na sabedoria. O homem que se encontra em tais circunstâncias vence
os obstáculos que se lhe apresentam; se elogiado, ri-se do elogio às ocultas, e,
se repreendido, não faz a sua própria defesa; pelo contrário, como os
convalescentes, experimenta as forças e treme ao receio de uma recaída no
começo da cura, quando a sua saúde não está ainda inteiramente fortalecida.
Dominou os desejos de todo o gênero, e só odeia as coisas que contrariam a
natureza do que de nós depende; adota para tudo um ar de submissão; não se
entristece, quando o dizem simples e ignorante. Numa palavra, está sempre
em guarda contra si próprio, como contra homem que lhe prepara constantes
ciladas e é o seu pior inimigo.
240
O que nos prejudica em elevado grau é não sabermos de filosofia outra
coisa senão o nome e querermos, não obstante, dar-nos ar de sábios, e
pretender, imediatamente, ser úteis ao próximo como se tivéssemos de
reformar o mundo. Meu amigo, reforma-te antes, e mostra depois aos outros
um homem formado pela filosofia. Comendo e passeando com eles, instrui-os
com o teu exemplo; cede aos caprichos deles, suporta-lhes as esquisitices,
trata-os com deferência e lhes serás útil.
241
– Para que essa altivez e esse orgulho, mau filósofo? – Espera um
pouco, meu amigo. Daqui a pouco serei mais fero; ainda não tenho bastante
firmeza nas máximas que aprendi e às quais dei o meu consentimento; ainda
temo a fraqueza. Espera que esteja mais forte e verás a minha altivez em toda
a sua extensão. A estátua ainda não está terminada, os deuses não lhe deram
a última demão. Mas não julgues que, uma vez terminada, seja a sua altivez
produzida pelo orgulho. Será uma altivez de segurança e fé na verdade. É
orgulho o que observas na cabeça de Júpiter? Não. É firmeza, é estabilidade, é
constância; é o que deve achar-se no rosto de um Deus que te diz: Tudo
quanto confirmei por meio de um sinal de aprovação jamais engana, é
irrevogável e nunca deixa de suceder. Tratarei de imitar esse grande modelo.
Ver-me-ás fiel, modesto, valoroso e inacessível à perturbação e às emoções
causadas pelos acidentes que se chamam terríveis. – Mas, ver-te-ei imortal,
livre da velhice e das enfermidades? Não; verás, porém, que sei morrer, que
sei ser velho, que sei ser enfermo; verás os nervos de um filósofo, nervos bem
sólidos. – Que nervos? – Desejos nunca frustrados, temores bem dirigidos, que
previnem todos os males; movimentos da alma, regulados e convenientes;
desígnios formados com reflexão e afirmações jamais seguidos do
arrependimento.
242
243
244
245
246
247
248
Conheço um homem que, deplorando a sua desdita, foi atirar-se aos pés
de Epafrodita, e disse-lhe que era o mais desventurado dentre os homens do
mundo, que estava totalmente arruinado, que não tinha o de que viver, pois lhe
restavam apenas cinqüenta mil escudos. Que imaginas que lhe disse
Epafrodita? Pensas que se riu desse louco? Absolutamente. Respondeu-lhe
formalmente: – Ah, infeliz! Por que me não contaste antes o teu infortúnio?
Como pudeste suportá-lo sem morrer?
249
250
251
Não condeno a eloquência nem a arte de bem escrever e falar; condeno
que se encare como principal objetivo da vida, havendo outras coisas de mais
importância.
252
253
Há criaturas tão cegas que não tomariam por bom ferreiro nem o próprio
Vulcano, se ele não usasse o gorro de forjador. Que leviandade, pois, queixar-
se alguém de não ser reconhecido por um juiz pouco inteligente! Sócrates era
desconhecido da maior parte dos homens. Iam pedir-lhe que os conduzisse a
um filósofo, e ele os conduzia. Queixou-se alguma vez de o não tomarem por
filósofo? Não. Pelo contrário, orgulhava-se de ser filósofo sem o parecer. Quem
o foi mais do que ele? Procura imitá-lo e ser filósofo pelos teus atos.
254
255
256
Prova-me que tens pudor, fidelidade, constância e que não és apenas
um tonel vazio. Não esperarei que me confies o teu segredo para contar-te o
meu. Porque, quem não teme perturbar um recipiente tão sereno? E quem
recusa um depositário que é, ao mesmo tempo, o nosso fiel conselheiro?
Quem não recebe com imenso prazer o carinhoso confidente que participa de
todas as nossas fraquezas e nos ajuda a transportar a nossa pesada carga?
257
258
Assim como numa longa viagem, quando o barco entra no porto, tratas
de prover-te de água, e, pelo caminho, compras mariscos ou setas, mas
sempre com o pensamento no barco, e voltando a todo instante a cabeça, para
verificar se o piloto te chama, e se assim for, corres para ele, temeroso de que,
se te fizeres esperar, te arremessem ao barco de mãos e pés amarrados, como
se foras um animal selvagem, assim também, na vida; se em vez de um
marisco ou de uma seta, recebes mulher e filho, os aceitas. Mas se o piloto te
chama, tens de abandonar tudo e correr para o barco, sem olhares para trás.
Se és velho, não te afastes muito do barco, para, quando o piloto te chame,
estares em condições de seguí-lo.
259
Se amo o corpo, se amo a riqueza, estou perdido. Eis-me escravo. Dei a
conhecer o ponto pelo qual posso ser atacado.
260
Sabia muito bem Apolo que Laio não obedeceria ao seu oráculo, mas
nem por isso deixou de lhe predizer as desditas que o ameaçavam; a bondade
dos deuses não deixa de advertir os homens. Essa fonte de verdade jorra
constantemente, mas os homens são sempre rebeldes, desobedientes e
incrédulos.
261
Deve o homem, nesta vida, ser espectador da sua essência e das obras
da Divindade, intérprete e panegirista. Infeliz, que começas e acabas por onde
acabam e começam os irracionais, vivendo sem sentir, acaba, pois, por onde
em ti acabou a divindade. Acabou dando-te uma alma inteligente e capaz de
conhecê-la. Serve-te dessa alma, não saias de tão admirável espetáculo com
só o entrever. Observa, conhece, elogia, bendize.
262
263
264
265
Para que nascem as espigas? Não é para amadurecerem e, uma vez
maduras, ser segadas? Ninguém as deixa sobre os talos, como se estivessem
consagradas. Se tivessem sentimento, pensas que fariam promessas para que
nunca fossem cortadas? Não, sem dúvida; considerariam uma maldição nunca
chegar, para elas, a colheita. O mesmo sucede aos homens: seria uma
maldição, para eles, viver sempre. Não morrer, para o homem, é para a espiga
jamais estar madura e nunca ser cortada.
266
Se demonstrares ao mau que não faz o que quer, senão o contrário,
corrigi-lo-ás; mas se lho não demonstrares, não te queixes dele, senão de ti
próprio.
267
Se queres avançar no estudo da sabedoria, não temas, nas
exterioridades, passar por imbecil e insensato.
268
– Como sou infeliz! Não tenho tempo de estudar nem de ler! – Meu
amigo, por que estudas? Por mera curiosidade? Se assim é, bem mísero és
efetivamente. Mas o estudo deve ser apenas um preparo para a boa vida.
Começa, pois, desde hoje a bem viver; em toda parte podes cumprir com o teu
dever, e as ocasiões instruem melhor que os livros.
269
270
É ser ingrato e tímido sustentar que não existe diferença entre a beleza
e a feiura. Como pode ser tão agradável Tersites como Aquiles? Como podem
agradar igualmente uma horrível mulher e Helena? É grosseiro e ímpio.
Linguagem de gente que desconhece a natureza das coisas. Não é negando a
beleza que dela se foge; podemos conhecê-la e resistir-lhe.
271
A cada tentação pensa, no íntimo: eis um grande combate, eis uma
ação completamente divina, trata-se da liberdade, da felicidade, da inocência;
lembra-te dos deuses, chama-os em teu auxílio, e eles combaterão por ti.
Invocas Cáster e Pólux numa tempestade; pois bem, a tentação é, para ti, uma
tempestade mais perigosa.
272
O sol não espera que lhe supliquem difundir luz e calor. Imita-o e faze
todo o bem que puderes, sem esperar que to implorem.
273
274
Por que caminhas tão erecto como se levasses no corpo uma árvore? –
Quero ser admirado por todos os transeuntes e ouvir dizer à direita e à
esquerda: olhai, um grande filósofo. – Quem são, pois, essas pessoas a cuja
admiração aspiras? Não disseste repetidas vezes, tu próprio, que eram loucas?
Como queres ser, agora, o primeiro entre elas?
275
276
Quando um corvo te prediz alguma coisa com o seu grasnar, crês que é
um deus que te fala, e não um corvo. Do mesmo modo, quando um filósofo te
adverte, crê que é um deus quem te adverte, e não um filósofo.
277
Começa as tuas ações e todas as tuas empresas com esta prece: –
conduzi-me, grande Júpiter, e vós, poderoso Destino, aonde eu tiver de ir.
Seguir-vos-ei com todo o meu coração, e sem demora.
278
Assim como, quando passeias, cuida de não pisar uma pedra e torcer
um pé, cuida de não ferir-te a parte principal de ti próprio e a que te conduz. Se
em cada ação da nossa vida observássemos esse preceito, estaríamos sempre
certos de nos não enganar.
279
280
Não ouças a leitura de obras de certas pessoas; mas se, uma ou outra
vez, a ouvires, conserva nela a gravidade, a atenção e a doçura, sem mesclá-
las a nenhuma mostra de pesar ou de tédio.
282
Por que são os ignorantes mais fortes que vós nas disputas e, por fim,
vos reduzem ao silêncio? – Porque estão profundamente persuadidos das suas
falsas máximas, e vós apenas debilmente da verdade das vossas. Estas não
partem do coração; nascem apenas nos lábios; por isso é que são fracas e
mortiças. Expõem ao público desprezo essa mísera virtude que não cessais de
alardear, e fundem-se como cera ao sol. Afastai-vos, pois, do sol, enquanto
tiverdes opiniões de cera.
283
284
Não queiras passar por sábio, e se chegares a adquirir fama de tal, no
conceito de alguns, desconfia de ti próprio. Sabe que não é fácil conservar a
tua vontade segundo a natureza, conservando as coisas exteriores,
necessariamente terás de descuidar uma coisa ou outra.
285
286
Que vida é a tua? Depois de haveres dormido bem, levantas-te à hora
que queres, bocejas, distrais-te e lavas o rosto. Em seguida, ou te apossas de
um péssimo livro, para matar o tempo, ou escreves uma frioleira, para que te
admirem. Sais, então, e vais fazer visitas, passear e divertir-te. Voltas, tomas
um banho, comes e deita-te. Não revelarei os mistérios das trevas, que são
fáceis de adivinhar. Com esses costumes de epicurista e folgazão luxurioso,
falas como Zeno e Sócrates. Meu caro, muda de costumes ou de linguagem.
Quem usurpa o título de cidadão romano é severamente punido, e os que
usurpam o de filósofo ficarão impunes? Não é possível, pois isso contraria a
imutável lei dos deuses, que estabelece a proporcionalidade entre crime e
pena.
287
288
Tens febre e te queixas, porque dizes que não podes estudar. Para que
estudas, então? Não é para chegares a ser sofrido, constante, firme? Procura
ser assim também na febre, e não saberás pouco. A febre é uma parte da vida,
como o passeio, as viagens, e é ainda mais útil, porque põe à prova o prudente
e lhe dá a ver o progresso que nele se verificou.
289
290
291
292
Queres saber se dois homens são amigos? Não perguntes se são
irmãos, se foram educados juntos, se tiveram os mesmos mestres e
preceptores; pergunta apenas em que fazem consistir a sua intimidade. Se nas
coisas que não dependem de nós, guarda-te de afirmar que são amigos; não o
são, nem tampouco fiéis, constantes e livres; mas se fundam a intimidade nas
coisas que dependem de nós e em sãos juízos, não te preocupe saber se são
pai e filho, ou irmãos, nem se se conhecem há muito tempo, e afirma, sem
temor, que são amigos, porque, é possível não haver amizade onde há
felicidade e comunicação de tudo quanto é belo e honesto?
293
Não existe no mundo coisa a que qualquer animal esteja tão fortemente
ligado como à própria utilidade; tudo quanto o priva do que lhe é útil, quer seja
pai, irmão, filho, amigo, tudo lhe é insuportável, porque ama apenas a sua
utilidade, que lhe serve de pai, de irmão, de filho, de amigo, de pátria e até de
Deus.
294
295
296
O que perturba os homens não são as coisas, mas as opiniões que
delas tem. Por exemplo, a morte não é um mal; pelo menos foi essa a opinião
de Sócrates. A idéia que da morte se tem é que dela faz um mal. Quando
estamos cabisbaixos, perturbados ou tristes, não acusemos ninguém, a não ser
a nós próprios, isto é, às nossas opiniões.
297
298
299
300
É impossível que eu não cometa erros; mas é muito possível que,
continuamente, cuide de os não cometer. E essa atenção continuada muito
contribuirá para lhes diminuir o número.
301
Quando vires um homem curioso e diligente em coisas que dele não
dependem, podes ter a certeza de que é falador e jamais saberá guardar um
segredo; não haverá necessidade de aproximar-lhe pez fervente nem roda,
para que fale. O olhar de uma mulher, a menor complacência de um cortesão,
a esperança de uma dignidade, de um cargo, a perspectiva de um legado e mil
coisas semelhantes lhe arrancarão, sem trabalho, o teu segredo.
302
303
Assim como a menor distração de um piloto pode fazer perecer um
barco, a menor negligência da nossa parte, a menor falta de atenção, pode
fazer-nos perder todo o progresso realizado no caminho da sabedoria.
Vigiemos, pois; o que temos de conservar é mais precioso que um barco
carregado de bens. É o pudor, é a fidelidade, a constância, a submissão e os
mandamentos dos deuses, a isenção de dor, de medo, numa palavra, a
verdadeira liberdade.
304
Nada temas, e não haverá para ti homem terrível nem formidável, assim
como não há cavalo terrível para outro cavalo, nem abelha para outra abelha.
Não vês que os teus desejos e temores são a guarda que os tiranos mantêm
dentro de ti, como numa fortaleza, para escravizar-te? Expulsa essa guarda,
recobra a posse do teu forte, e serás livre.
305
306
307
308
Se a Divindade, que fez as cores, não tivesse criado olhos que
pudessem apreciá-las, de que serviriam elas? E se houvesse criado as cores e
os olhos, sem criar a luz, que utilidade teriam umas e outros? Quem fez, pois,
essas três coisas, umas para as outras? Quem é o autor dessa maravilhosa
aliança? A Divindade. Existe, pois, uma Providência.
309
Que fazem os homens? Tremem pelo que temem ou choram pelo que
sofrem. Essas inquietações e essas lágrimas geram a impiedade.
310
A Divindade deu-te armas com que resistir a todos os sucessos, por
horríveis que sejam. Deu-te a grandeza de alma, a força, a paciência, a
constância. Serve-te delas; se o não fazes, confessa que o não sabes fazer,
apesar de te haverem sido entregues.
311
Somos tão ingratos que, acerca das mesmas maravilhas que a
Providência realizou em nosso favor, longe de lhe agradecer, a acusamos, e
dela nos queixamos. Não obstante, se tivéssemos um coração sensível e
reconhecido, por pouco que o fosse, a menor obra da Natureza bastaria para
fazer-nos sentir a Providência e o cuidado que nos dispensa.
312
313
Quando vês alguém cheio de dor e vertendo amargas lágrimas pela
morte ou pela partida do filho, ou pela perda de um bem, cuida de que te não
seduza a imaginação, persuadindo-te de que tal homem padece verdadeiros
males em virtude das coisas exteriores, e faze em ti próprio a distinção de que
o que o aflige não é o acidente que lhe sobreveio, senão a opinião que dele
tem formada. Se preciso, não recuses chorar com ele e partilhar da sua dor;
mas não leves a compaixão ao extremo de te afligires demasiadamente.
314
Por uma liberdade que é falsa, expõem-se os homens aos maiores
perigos: atiram-se ao mar, precipitam-se das mais elevadas torres. Tem-se
visto cidades inteiras morrer. E tu, por uma liberdade verdadeira, segura, não
ousarás enfrentar nenhum trabalho?
315
Há pequenos escravos e grandes escravos. Os pequenos são aqueles
que se fazem escravos por coisas à toa, por dinheiro, por pequenos serviços.
Grandes são os que se fazem escravos pelo consulado, por governos de
província. Diante desses, vês os que levam as achas e os feixes, que são
escravos de escravos.
316
317
318
Um tirano me diz: – Sou amo, tudo posso. Ah! Que podes? Podes dar-
me um claro entendimento? Podes tirar-me a liberdade? Que podes, então?
Num barco, não dependes, acaso, do piloto? No teu carro, não dependes do
cocheiro? – Todo o mundo me adula e me faz a côrte. – Mas essa côrte te é
feita como homem? Demonstra-me que assim és considerado, que todos
querem parecer-te contigo, ser teus discípulos, como de Sócrates. – Mas
posso mandar que te seja cortado o pescoço. – Dizes bem; havia-me
esquecido de que é preciso fazer-te a côrte, como a fazemos aos deuses
nocivos, e oferecer-te sacrifícios, como à febre. Ela não tem, em Roma, um
altar? Tu o mereces mais que ela, porque és pior. Seja como for, ainda que os
teus satélites e toda essa tua pompa espantem e perturbem a via pública, nada
do que é exterior conseguirá perturbar-me. Podes ameaçar-me, mas sou livre.
– Tu livre? Como? – A própria Divindade me libertou. Pensas que deixará que
seu filho caia em teu poder? És senhor do meu cadáver; toma-o, se queres,
mas a tua cólera não me atinge o espírito.
319
Quem pode impedir-te de seguir a verdade conhecida, e forçar-te a
aprovar o que é falso? Tens um livre arbítrio, do qual ninguém pode despojar-
te. Se a tua liberdade pudesse ser forçada, a Divindade não teria por ti o
cuidado de um bom pai e o que por ti tem na verdade.
320
321
322
323
Tens febre, mas se a tens, como deves, tens tudo o que podes ter
melhor com ela. Que é ter a febre como se deve? Não queixar-se dos deuses
nem dos homens, não alarmar-se com a idéia do que pode acontecer, esperar
valorosamente a morte, não regozijar-se excessivamente quando o médico diz
que há melhora, e não afligir-se quando diz que se está pior. Pois, que é estar
pior? Aproximar-se do termo e do instante em que a alma se há de separar do
corpo. Chamas a essa separação um mal? Ainda que a morte não sobrevenha
hoje, deixará, por acaso, de vir amanhã? E contigo terminará o mundo?
Permanece, pois, tranqüilo tanto na febre como na saúde.
324
325
Se tens por hábito levar uma vida frugal e tratar com dureza o corpo,
não te rejubiles por isso, e se bebes apenas água não digas, por qualquer
motivo, que apenas água bebes. Se queres exercitar-te na paciência e na
tolerância para contigo e não para com os outros, não abraces as estátuas,
mas na sede mais ardente toma água fresca na boca, atira-a para longe, e não
digas nada a ninguém.
326
327
328
329
330
331
Examino os homens, o que dizem, o que fazem, não para criticá-los
nem para rir-me deles, senão para perguntar-me: cometo os mesmos
erros? Quando me corrigirei? Há pouco, eu procedia da mesma maneira.
E se não peco do mesmo modo é por mercê dos deuses.
332
Diz Epicuro que as crianças não devem ser alimentadas nem educadas,
pois não há nada mais contrário ao verdadeiro bem que, para ele, consiste no
prazer. Pobre Epicuro! Quer que sejamos mais desnaturados que as feras, as
quais nunca abandonam os filhos? A caridade dos pais com os filhos é tão
natural, que, estou certo, se teu pai e tua mãe houvessem sabido, por um
oráculo, que um dia sustentarias tão insensata afirmação, nem por isso
houveram deixado de educar-te.
333
334
Tens pena dos cegos, dos coxos. Por que a não tens dos maus? São-
no, por sua desdita, assim como são coxos e cegos aqueles.
335
336
Se alguém se banha antes da hora devida, não digas que faz mal em
banhar-se, senão que faz mal em banhar-se antes do tempo. Se alguém bebe
muito vinho, não digas que faz mal em beber, senão que bebe
demasiadamente; pois, como podes saber se faz mal, sem antes saberes o
que deve fazer? Procede com parcimônia ao julgar qualquer coisa: é difícil que,
ao fazê-lo, não erres noutra.
337
338
339
Não há ciência que não seja desprezada pelos ignorantes. Será a
filosofia a única exceção a tal regra? Logrará fugir às suas censuras e aos seus
juízos errôneos?
340
341
342
343
344
Que faz um homem que persegue a mulher do próximo? Pisa o pudor, a
fidelidade, infringe as leis da amizade, da sociedade, todas as mais santas leis;
não pode ser considerado amigo, nem vizinho, nem cidadão. Nem serve,
tampouco, para escravo. É como barco aberto, que só serve para mergulhar.
345
346
347
Por que te chamas estóico? Assume o nome que convém aos teus atos,
e não te adornes do que te não convém e nada mais faz que desonrar-te. Por
toda parte se me antolham homens que enaltecem as máximas do estoicismo,
mas não vejo estóicos. Mostra-me um estóico, um apenas. Um estóico, isto é,
um homem que na enfermidade se ache ditoso, que ditoso se ache no perigo, e
ditoso também no meio do desprezo e da calúnia. Se não podes mostrar-me
esse estóico acabado e perfeito, mostra-me um que comece a sê-lo. Mostra-
me um homem sempre em conformidade com a vontade divina, que jamais se
queixe dos deuses, nem dos homens, que nunca veja frustrados os seus
desejos, que não seja lastimado por ninguém, nem saiba o que é inveja, cólera,
soberba; que, com um corpo mortal, sustente um secreto comércio com os
deuses e que anseie por despojar-se da veste mortal e a eles unir-se em
espírito.
348
Nem as vitórias dos jogos olímpicos, nem as que se alcançam nas
batalhas, tornam o homem feliz. As túnicas que o tornam ditoso são as que
logra contra si próprio. São combates as tentações e provas. Foste vencido
uma, duas, muitas vezes; combate ainda. Se, por fim, chegares a vencer, serás
ditoso pelo resto da vida, como se sempre houvesses vencido.
349
Quando a imaginação tentar escravizar-te com uma idéia luxuriosa, não
te deixes arrastar, sem dizer-lhe: Espera que examine o que me apresentas.
Não lhe permitas passar adiante e forjar imagens mais sedutoras, pois, se a
deixares, estarás perdido e ela te aprisionará. Em vez dessas pinturas
horríveis, obriga-a a te apresentar imagens mais ditosas, mais belas, mais
nobres. É o meio de não ser vencido.
350
Por que não julgam os homens a filosofia como julgam as demais artes?
Um obreiro termina o seu trabalho de modo imperfeito, e somente a ele é que
se atribui a culpa; diz-se que é um mau obreiro, mas que a sua arte não cai no
descrédito. Em troca, um filósofo comete um erro e todos se guardam de dizer:
"Este não é filósofo", mas dizem: "Vede o que são os filósofos; a filosofia para
nada serve." De que procede tal injustiça? De, por pouco que o seja, ser
qualquer arte mais conhecida pelos homens do que a filosofia, e de os não
cegarem as paixões, tratando-se de artes que os lisonjeiam e lhes são
manifestamente úteis, enquanto a filosofia os combate e fere nos seus erros e
vícios.
351
Basta, para ser músico, comprar uma partitura, um violino e um arco?
Basta, para ser aristocrata, ter um brasão e uma mesa? Pois tampouco, basta,
para ser filósofo, uma grande barba, uma túnica e um bordão. O hábito é
conveniente à arte, mas o nome quem o dá é a arte e não o hábito.
352
Assim como ordena a medicina mudança de ares aos que padecem de
enfermidades crônicas, prescreve a filosofia a mesma coisa aos que possuem
vícios inveterados, só fortificáveis pelos lugares em que soem viver.
353
Quando sofreres uma tentação, não adies para o dia seguinte combatê-
la; o dia seguinte virá, e o mesmo te sucederá. Assim, de amanhã em amanhã,
resultará, não somente seres vencido, como também caíres numa
insensibilidade que te impedirá perceber que pecas, e em ti experimentarás a
verdade do verso de Hesíodo: Infeliz de quem dorme no amanhã!
FIM