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A ILHA
DA FELICIDADE
Autor
HANS KNEIFEL
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização
VITÓRIO
Revisão
ARLINDO_SAN
Os calendários do planeta Terra e dos outros
mundos pertencentes à Humanidade registram os
últimos dias do mês de fevereiro do ano 3.442. Faz
cerca de 15 meses que a catástrofe da deterioração
mental desabou sobre quase todos os seres inteligentes
da Galáxia.
O misterioso “Enxame” prossegue firmemente em
seu voo através da Via Láctea — tão firmemente como
Perry Rhodan e seus companheiros imunes tentam, num
trabalho perigoso, descobrir o sentido e a finalidade dos
terríveis invasores. Perry Rhodan e seus companheiros
de lutas já sabem, graças a uma experiência amarga,
que os emissários do “Enxame” trouxeram bilhões de
vezes a desgraça sobre muitos mundos. Também sabem
que o “Enxame” é responsável pelo surgimento do
Homo superior e pela grande mortandade.
Mas precisam saber mais. Só imaginam que o
“Enxame” guarda outras surpresas que podem ser
mortais para a população de planetas inteiros. Sandal
Tolk, o vingador, que há meses se encontra juntamente
com Tahonka No num planeta dentro do “Enxame”, já
conheceu algumas surpresas mortais. Colheu
informações preciosas, mas não pode transmiti-las a
seus amigos terranos. Sandal luta e enfrenta
dificuldades — e alcança A Ilha da Felicidade...
Meio contrariado — fazia pouco tempo que o sol tinha nascido e os pássaros da
selva já tinham terminado seu concerto ensurdecedor — o caçador de cabelos brancos e
olhos dourados com sobrancelhas brancas contemplou a pulseira de aço, que continha
uma combinação de muitos instrumentos.
O mês de janeiro do ano 3.442 chegara ao fim sem que Sandal conseguisse
estabelecer contato com as mulheres e os homens a bordo da Good Hope II. As únicas
mensagens que captara vinham do outro lado da linha que dividia o planeta Vetrahoon
em duas partes.
Eram em parte mensagens de rádio indecifráveis, algumas delas puderam ser
traduzidas pela máquina que Sandal trazia presa no braço, e outras tinham sido ouvidas
por Tahonka No que fez a tradução. Lá adiante, além das montanhas altas, bem ao longe,
parecia haver um movimento grande de gente chegando e partindo.
— É de lá que devem vir as gotas voadoras que vivem nos incomodando —
cochichou o caçador e levantou a cabeça.
Sandal estava confortavelmente deitado numa rede bem estendida entre duas
árvores. Seu rosto estava na sombra e as botas e roupas estavam penduradas a seu lado,
secando. Numa coberta fina perto do fogo estavam alguns dos seus pertences — menos a
arma. Sandal carregava-a num cinto preso ao corpo.
Sandal olhou para o bloco monolítico negro que parecia um trono erguido acima do
jato de água borbulhante da grossura de um braço humano. O Thoen estava sentado no
bloco, fitando Sandal com pelo menos oito olhos.
O animal e os caracteres — mais um enigma.
E o outro?
Durante a longa caminhada para o sul Tahonka No e Sandal tinham passado
constantemente perto de pequenas cúpulas. Mas toda vez que Sandal falara em vingança
e queria entrar nas cúpulas, No fazia um gesto para que não o fizesse e apontara para o
sul. Várias vezes tinham escapado por pouco da morte vinda pelo ar. Duas vezes tinham
sido gigantescos répteis voadores, e pelo menos uma dezena de vezes objetos parecidos
com jatos espaciais abertos em forma de disco com homens — ou outros seres —
enfiados em trajes de proteção prateados. Será que estavam à sua procura? Ou faziam
uma busca geral de estranhos que ameaçassem as cúpulas?
De qualquer maneira os dois seguiram adiante em suas montarias sem tentar entrar
nas cúpulas com suas casas e parques coloridos. Tahonka No parecia ser um homem que
sabia mais do que queria dizer.
Tinham-se conhecido e tomado amigos, ele e Tahonka No.
Os dois eram tipos solitários típicos, que até podiam servir de clichê. Submetiam-se
prontamente e sem comentários a qualquer obrigação imposta pelas circunstâncias, a
qualquer necessidade premente, mas evitavam cuidadosamente incomodar os outros mais
do que era necessário. Suas reações eram instantâneas e na maior parte das vezes certas.
O que Sandal mais apreciava em Tahonka No era sua calma inabalável, o riso
sonoro e seus conhecimentos extensos sobre o planeta.
Tahonka No, por sua vez, podia confiar na grande capacidade do jovem guerreiro,
muito bem treinado em tudo que dizia respeito à caça, à montaria, à luta, e à arte de
esconder-se.
Os dois completavam-se muito bem.
Foi somente o fato de Tahonka No certa vez ter-se referido a um mistério além das
montanhas que fez Sandal desistir de querer entrar em uma das cúpulas.
Ainda tinham um caminho longo pela frente.
Onde terminaria esse caminho? E como? Ainda chegaria o momento em que Sandal
pudesse exercer sua vingança pela morte da família Crater e da jovem e bela Beareema?
Seu ouvido aguçado e a capacidade de farejar os perigos disseram-lhe que podia
dormir calmamente.
Sandal lançou mais uma vez o olhar para o Thoen em cima do bloco de pedra negro
e para o amigo que dormia e voltou a adormecer. Só acordou depois que Tahonka No,
que já abandonara a repugnância de comer e beber na presença de outros seres, estava
com a carne sobre o fogo.
O Thoen aproximou-se, devagar e miando delicadamente, e parou no meio da
fumaça.
— Bom apetite! — disse Tahonka No calmamente.
***
Sandal amarrou o cabelo com a fita de couro, limpou a esfera de coral presa à orelha
e vestiu-se devagar, depois de aplicar o resto de creme para a pele. Todas as peças de
roupa estavam limpas e bem secas.
Sobre algumas folhas gigantescas lavadas havia frutas descascadas, nozes tiradas da
casca, grandes pedaços de cogumelo assados na gordura e raízes comestíveis descascadas
que tinham um sabor adocicado de farinha. Até tinham descoberto uma grande jazida de
sal com um misterioso esqueleto branco dentro dela. Desta forma puderam completar
suas reservas. Podiam considerar-se muito bem equipados. Havia água fresca em grandes
conchas arredondadas de gigantescas nozes triangulares. Tahonka No abriu a boca — que
não era capaz de sorrir, porque os respectivos músculos ficavam numa posição diferente
— e disse:
— Não pude dormir mais. Além disso você espantou todos os animais com sua
roncadeira.
Sandal dobrou a coberta fina como um véu e voltou a guardá-la na respectiva bolsa.
—Vejo que você fez um trabalho bem feito, amigo — respondeu. — Até o couro do
animal já está na água.
— Esforcei-me para fazer tudo da melhor maneira e o mais depressa possível —
afirmou o ossudo em tom indiferente.
— Obrigado!
Sandal cuidou dos licambers e alimentou-os enquanto a carne estava sendo assada.
Depois sentou perto do fogo que ia se apagando, embaixo das copas das árvores, e comeu
em silêncio. Sentia-se descansado e estava com uma fome louca. No momento todos os
outros planos e pensamentos ficaram em segundo plano.
Depois que acabaram de comer e beber, ainda dispunham de provisões para pelo
menos uma semana. A carne assada até fora condimentada com temperos naturais
encontrados e experimentados com muito trabalho.
Sandal apontou para o Thoen e perguntou:
— Conhece este animal, No?
O ossundo, cuja pele com aspecto de couro brilhava por causa da gordura que
passara nela, respondeu:
— Ouvi dizer que estes animais existem. Dispõem de uma grande inteligência e
gostam muito de brincar. As nozes que você está vendo foram trazidas pelo Thoen.
— To-en! — disse a criatura como que para confirmar o que acabara de ser dito.
Sandal acenou com a cabeça. Viu nessa sequência de sons a voz natural do animal.
Mas não viu nenhuma boca da qual pudessem ter saído os sons. O Thoen possuía quatro
pernas longas que saíam da parte inferior do corpo quase esférico. Em torno do corpo
havia uma faixa com inúmeros olhos, que pareciam esferas espremidas de fora para
dentro.
— Que vamos fazer com este animal? — perguntou Sandal. — Podemos comê-lo?
— Sua carne é intragável — respondeu No. — Ele poderá ajudar-nos a procurar
nozes e frutas.
— De onde você conhece o Thoen — e todos os outros animais? — perguntou
Sandal. — E como sabe que frutas e nozes podem ser consumidas e quais são as
venenosas?
— Conheço muita coisa. No lugar de onde vim sabe-se muito. Aprende-se nas
escolas.
Sandal falou em tom pensativo, como se estivesse conversando sozinho.
— Quer dizer que você aprendeu certas coisas antes de vê-las. Com Chelifer Argas
e Atlan na Good Hope II foi a mesma coisa. Como conhece a escrita que daqui a pouco
vai ler para mim?
O Thoen saiu saltitando meio inseguro para afastar-se do fogo, miou alto e correu
num trote estranho com as pernas duras para perto da água. Mergulhou completamente e
a umidade deu uma tonalidade preto-azulada à pele verde-escura parecida com um pelego
de pelos curtos.
— Também aprendi os caracteres. Têm certa semelhança com os que usamos no
planeta pertencente a meu povo.
Sandal levantou e apontou para o bloco de pedra negro com duas faces escritas.
— O que estamos esperando? — perguntou em tom nervoso.
Ele não sabia por que, mas teve a sensação de que aqueles caracteres continham
informações sobre o que os esperava nos próximos dias e semanas.
— Está certo.
Depois de cortar com as facas os galhos em torno do bloco, limparam partes de sua
superfície do musgo verde-escuro fibroso, parecido com a barba de um homem muito
velho.
Tahonka No leu devagar.
— Para você, que procura uma morte lenta e dolorosa. Ela lhe será concedida de
várias maneiras.
— Tolice! — disse Sandal em tom de desprezo. — Só se morre uma vez.
— Mas a morte pode alcançar-nos em vários lugares — contestou o ossudo e
continuou a leitura com sua voz cheia. Fazia muitas horas que não eram molestados.
Ninguém podia ver a pequena clareira do ar, porque estava encoberta pelas copas das
árvores gigantescas.
— Se estiver procurando a morte, vá para o meio-dia. Será engolido pela selva.
Suas feras o abaterão e despedaçarão seu corpo.
— Isso nós sabemos! — disse Sandal. — Não precisaria ser dito.
— Estamos fazendo piadas, ou você quer que eu leia? — perguntou o ossudo em
tom sombrio.
Sandal sorriu, bateu no ombro do amigo e percebeu que se esquecera de prender a
máquina tradutora ao braço. Por enquanto não precisara dela para entender cada palavra e
seu sentido exato.
— Leia! — disse.
Tahonka No abaixou-se e prosseguiu:
— A morte silenciosa também o espreitará na savana, depois que você tiver
escapado à selva. A área das sombras pequenas vai da selva até as montanhas que se
erguem entre o mistério e esta pedra da advertência mortal. A área das pequenas sombras
ressecará seu cérebro como se fosse uma esponja, mas se apesar disso você sobreviver
sem cair nas garras impiedosas da loucura, você se assustará com a altura das três
montanhas.
Sandal colocou a mão sobre o ombro de No e disse:
— Para dois lutadores como você e eu isto representa um desafio para procurarmos
o segredo no sul, isto é, para o lado do meio-dia. O segredo a que esta pedra se refere é o
mesmo que você tem escondido de mim, Tahonka No?
— É, sim! — confirmou o ossudo e leu o terceiro parágrafo da inscrição.
— A avalanche de pedra das encostas geladas o esmagará e arrastará seus restos
mortais para o vale. O ar rarefeito dos cumes gelados solitários cortará seus pulmões.
Além disso você será quebrado ao olhar para o vale dos conhecimentos felizes.
— Quantas promessas! — disse Sandal, mas sentiu um medo misturado com
ceticismo e precaução tomar conta dele.
— Posso garantir que quem escreveu isto sabia se era certo ou não! — insistiu o
ossudo em tom sério.
— Para todo perigo, por maior que seja, existe alguém capaz de derrotá-lo —
objetou em tom obstinado. — Você e eu somos este alguém.
O Thoen soprou um jato de água fino e comprido na direção dos dois homens. O
jato saía de uma abertura invisível ao lado dos cabelos ocres que cobriam a parte superior
do corpo esférico. Em seguida a mão de oito dedos do animal pegou os cabelos. Puxou-
os. Neste momento o Thoen saiu da água — dava a impressão de que se levantara pelos
próprios cabelos.
— Não tenho tanta certeza. Vou continuar... — disse Tahonka e leu: — A margem
do mar circular é protegida quatro vezes. Pelo campo de espinhos, pela areia dos ossos
desbotados e pelo desaparecimento completo através da podridão deletéria do pântano e
pela mata dos carnívoros.
— Droga! — disse Sandal. — O caminho que leva à vingança é longo e difícil.
Tahonka fitou-o com os grandes olhos embotados e disse com muita ênfase:
— O caminho da vingança geralmente é difícil.
Depois concluiu a leitura.
— Você nunca chegará à Ilha da Felicidade. Você, que está à sua procura, esconda-
se e trema de medo, porque a morte está mais próxima do que você imagina.
— Já sabemos que tipo de terreno teremos de atravessar para chegar à ilha — disse
Sandal. — Não sabia que o segredo fica numa ilha.
Tahonka No acrescentou em tom hesitante:
— Todo o planeta é uma área proibida. Sem dúvida morreremos, mas você é meu
amigo e responderei às suas perguntas.
Um sorriso cobriu o rosto estreito do jovem guerreiro.
— Eu lhe agradeço — disse em voz baixa. — Aqui vai a primeira pergunta. O que
vem a ser o chamado segredo, tantas vezes protegido?
Tahonka levou Sandal de volta à fogueira e informou:
— Nosso povo está muito bem informado sobre certas coisas que acontecem no
“Enxame”. Conhecemos por exemplo os seres poderosos. Costumamos chamá-los de
servos-mor do Y'Xanthymr.
— Como são eles? — perguntou Sandal em tom ansioso. — Pequenos e cor de
púrpura, magros e calados por acaso? Têm...
O ossudo abriu os braços e fez um gesto para que o amigo se calasse. Riu e seus
olhos acompanharam por alguns segundos o voo trêmulo de uma borboleta antes que
prosseguiu:
— Não são pequenos e cor de púrpura. Os pequenos mudos fazem parte dos povos
escravos. São seres cor de ocre, muito poderosos, que possuem uma grande força
diabólica. Dispõem de forças contra as quais seu poderoso arco é impotente, amigo
Sandal.
Sandal, que sabia perfeitamente que toda vida tem de acabar e que todo ser é mortal,
mesmo que suas flechas não pudessem matá-lo, disse em tom de desprezo:
— Serei capaz de matar os seres amarelos. Eu garanto. Minha força é o grito de um
avô moribundo, são os estalos dos muros do castelo de Crater desmoronando. Esta é a
força de meu arco mental e das flechas silenciosas, amigo. Pode acreditar.
Tahonka No respondeu depois de algum tempo, num tom que quase chegava a ser
de espanto e reverência:
— Pelo ídolo amarelo, Sandal! Acho que você é capaz.
— Também acho — disse Sandal. — Por favor, conte mais alguma coisa a respeito
dos servos-mor do Y'Xanthymr!
Sandal se lembrava naquele momento do cadáver enegrecido e retorcido de
Beareema, sua jovem esposa.
— O que sei a respeito dos servos-mor não é uma coisa — disse No. — São
servidos quase exclusivamente por seres de categoria inferior e povos escravos, que
chegam a carregá-los.
— Inclusive pelos pequenos seres cor de púrpura? — perguntou Sandal.
— Também por eles! — confirmou seu amigo ossudo e exótico.
Sandal Tolk já sabia que vira estes seres com os próprios olhos e acompanhara sua
atuação, embora isso tivesse sido em circunstâncias especiais. Mas ainda desconfiava que
todos os seres de todos os povos dentro do “Enxame” agiam como insetos guiados pelos
instintos ou animais cegos de raiva.
— Vingaremos Crater! — disse Sandal em voz baixa.
O Thoen aproximou-se miando. Sentou de uma forma que as quatro pernas
desapareceram sob o corpo esférico. Os dedos da única mão do único braço enfiaram-se
na brasa, levantaram um pedaço e o fizeram desaparecer num lugar do corpo que Sandal
e No não podiam ver.
2
O cinturão de pântano, lama e poças abismais tinha dezenove mil passos de largura.
Depois dessa distância transformava-se de forma quase imperceptível numa selva
formada por árvores entrelaçadas, trepadeiras e arbustos. No meio da zona negra, que
fumegava ininterruptamente, de cujas águas cheias de bolhas, bem quentes, subiam
constantemente gases venenosos, havia milhares de ilhas de chão firme. Nelas cresciam
arbustos bizarros das mais variadas espécies, além de árvores mais parecidas com
cogumelos pálidos que com árvores de folhagem, e em cima de tudo isso medrava uma
vida venenosa e repugnante. Lá também havia as árvores cuja casca estalava de tempos
em tempos com um tremendo ruído surdo, expelindo nuvens de gases fumegantes.
Tahonka e Sandal não perceberam nada disso.
Dormiram o dia todo, comeram e beberam, e passaram a noite seguinte dormindo
calma e profundamente. Recuperaram-se das canseiras e perceberam que suas reservas de
mantimentos tinham diminuído e eram menos variáveis. O Thoen não deu sinal de vida.
Ficou na copa da árvore.
Foi só uma hora depois do nascer do sol, no dia seguinte, que os dois amigos tão
diferentes ficaram de pé ao lado do tronco, olhando para o pântano. Sandal falou com um
sorriso amargo nos lábios.
— A inscrição é verdadeira, mas só em parte. Ainda estamos vivos, e somente dois
cinturões de perigo nos separam da ilha. Os outros atravessamos.
Depois de algum tempo Tahonka respondeu em tom cansado:
— Parece que o caminho termina aqui. Como faremos para ir de uma ilha para
outra? Ficam muito longe. Além disso seremos envenenados pelos vapores.
Já estavam bem perto da linha que separava as duas metades do planeta. As sombras
quase não podiam diminuir mais.
Devagar e indecisos, caminharam até o limite bem visível da ilha coberta de
vegetação, que era quase redonda. Quanto mais se aproximavam do pântano, mais
atordoante era o cheiro. Os olhos lacrimejaram e sentiam o interior das narinas arder.
Mais um estouro. Sandal estremeceu. Apontou para o grupo de árvores mais
próximo, que ficava a sessenta metros.
— A árvore está explodindo! — disse em tom de espanto. Uma das árvores inchou
e de repente a casca fina e branca rompeu-se logo abaixo da copa e pouco acima do chão,
formando um corte vertical e a casca bateu na árvore vizinha que nem um pedaço de pano
amarrado no tronco.
— Está jogando a casca!
A casca encolheu que nem um pano caindo no chão. A árvore exalava um gás
azulado de grandes poros que se abriram no tronco, agora branco. O gás subiu
imediatamente, escapando com uma rapidez tremenda por cima dos galhos. Pedaços de
casca e folhas abauladas caíram no capim e subiram devagar.
— Desta vez não encontraremos chão firme para pisar — observou Sandal
aborrecido. — Como faremos para atravessar a área pantanosa? Será que teremos de
construir um barco?
— Mesmo que isso fosse possível — disse o ossudo — os gases venenosos nos
matariam. Além disso... olhe do outro lado.
Uma tocha de gás de cinquenta metros de altura esguichou em alta velocidade do
solo subindo obliquamente, queimou algumas aves, espalhou o resto do bando e voltou a
baixar. Dali a um minuto voltou a sair fogo do chão em putrefação, desta vez em outra
direção.
— Deixe-me pensar! — disse Tahonka No.
Sandal resmungou, tentando desesperadamente encontrar uma saída:
— O gás sobe.
— E carrega parte da casca e das folhas. Quer dizer que sustenta algum peso.
— Será que pode nos carregar?
— Acho que não — respondeu Tahonka. — Somos pesados e teríamos de recolher
uma quantidade enorme de gás. Muito peso, muito gás.
Sandal lembrou-se da rede, amarrada junto com a coberta. Fez um gesto com as
mãos.
— É muito pequena.
— Temos uma coisa maior? — perguntou Sandal em tom irritado.
— Não temos nada que seja maior.
— Se não temos, precisamos construir — disse o caçador de cabelos brancos.
Sentiu que aos poucos ia surgindo uma solução, mas ainda não a conhecia.
— De quê?
— Do material que encontramos aqui — disse Sandal.
— Aqui só podemos contar com a lama e o capim, as folhas e a casca da árvores. A
casca? A casca!
Tahonka No deixou cair o queixo, soltou uma estrondosa gargalhada e gritou:
— A casca, Sandal! Está resolvido.
— Que casca?
O ossudo apontou para a grande ilha coberta de árvores e gritou em tom exaltado:
— A casca lançada pela árvore.
— Temos de juntá-la — disse Sandal em tom de dúvida. — Como faremos isso?
— Costurando... não é possível. Que outras matérias-primas nos fornece o planeta?
Sandal lembrou-se de uma espécie de casca de árvore que conhecera em seu mundo.
Sua babá costumava reclamar quando voltava com os dedos pegajosos de resina depois
de ter brincado durante horas no mato.
Dedos grudentos?
— Grudar! — disse nervoso. — Podemos colar a casca.
— Com quê?
— Com a resina das árvores. Vamos encontrar por aí. Aquecemo-la, passamo-la nos
pedaços de casca e colamos estes. Aguentarão por bastante tempo, se fizermos um
reforço com trepadeiras ou fibras.
— É a solução. Qual é a melhor maneira de recolhermos o gás?
— Uma esfera — disse Sandal.
— Como poderemos compor uma esfera? Com que formas?
Experimentaram algum tempo rasgando folhas em diversas formas até descobrir
que deviam formar elipses pontudas. Quanto mais estreita e comprida a elipse, maior a
esfera. Mas não estavam dispostos a passar semanas trabalhando. O primeiro modelo
devia servir para o que queriam.
— Será que é a única possibilidade? Encher uma esfera com gás e ficar pendurados
nela? — perguntou o ossudo em tom desconfiado. Parecia não confiar muito em sua
própria ideia.
— Não vejo outra. Mas aqui só há três árvores. Temos de dar um jeito de chegar à
ilha maior.
Tahonka No refletiu um instante e disse:
— O Thoen nos levará. Serão três voos: Sandal, a bagagem e eu.
— Você se comunica muito bem com ele — disse Sandal. — O que estamos
esperando?
— Muito bem. Vamos trabalhar.
Conseguiram fazer sair o Thoen da copa da árvore. Em seguida Tahonka executou
uma pantomima muito bem-sucedida, enquanto Sandal amarrava a bagagem na rede leve
— deixou as armas em separado. Parecia que o animal tinha compreendido.
Dali a alguns minutos começou o primeiro voo.
Tiraram a sorte com talos de capim longos e curtos. Tahonka perdeu o jogo.
Segurou a mão do animal, os quatro membros deste trançaram-se embaixo dele e o Thoen
subiu devagar levando a carga pesada, realizando um voo balançante que o levou à ilha
maior. Sandal acompanhou o voo muito preocupado — o animal estava sobrecarregado e
voltava a cair, mas acabava aparando a queda no último instante e finalmente pousou
numa queda, que não machucou nenhum dos dois.
— A vingança é cara e perigosa — disse Sandal a si mesmo.
Esperou que o animal descansasse um pouco e voltasse.
— Primeiro eu — decidiu Sandal. — A bagagem é mais leve, e além disso não é tão
importante.
Sandal imaginou como seria se ele e o Thoen caíssem numa poça de lama fervente,
mas sacudiu a cabeça, deitou esticado no chão, segurando firmemente o arco e as aljavas.
As pernas do animal enfiaram-se embaixo dele. Sandal agarrou uma das juntas e
segurou-se nela.
O voo cambaleante teve início. Sandal fechou várias vezes os olhos quando o
animal perdia altura e só voltava a subir pouco acima dos esguichos de lama. Finalmente
o chão firme parecia correr ao seu encontro. Sandal esticou o corpo para a frente. Ele e o
Thoen capotaram várias vezes e foram parar aos pés do ossudo, que amarrara um galho
na corda e a mantinha em posição de arremesso.
— Mais uma vez fomos salvos por milagre. O que seria de nós se eu tivesse achado
que o Thoen era uma caça ou um animal feroz? — disse em tom pensativo e ficou de pé
com os joelhos trêmulos, sacudindo a cabeça.
O Thoen foi buscar a bagagem, que era mais leve.
Em seguida escondeu-se embaixo de um arbusto e dormiu vinte e três horas.
Enquanto isso os dois homens construíram o balão de gás.
Encontraram pedaços de casca que ainda estavam úmidos. Nove ao todo foram
recortados com as facas na forma desejada. Logo viram uma seiva leitosa saindo nas
áreas de corte. A seiva levou quatro horas para secar.
Sandal colocou uma rede de trepadeiras em tomo do envoltório frouxo e fez votos
de que não tivesse errado nas medidas.
Comprimiram as áreas de corte e esperaram que a seiva cobrisse a costura larga. Às
vezes espremiam mais seiva para passá-la nesses lugares.
A rede e o envoltório foram ligados.
No primeiro dia trabalharam bastante, no segundo dia terminaram de construir uma
esfera cujo diâmetro era três vezes maior que a altura de um homem — era uma esfera
bastante irregular — e depois começaram os problemas. Como fazer entrar o gás no
balão?
— Por meio de um tubo comprido que colaremos numa árvore — sugeriu Tahonka
No.
— Talvez funcione — disse o caçador de cabelos brancos. Estavam sujos dos pés à
cabeça, grudentos e cheiravam tão mal que chegaram a perceber naquele inferno de gases
putrefatos.
Mas uma coisa eles tinham: tempo de sobra.
Esperaram que uma das árvores expelisse a casca com o estouro, cortaram-na ao
comprido e colaram-na para formar uma mangueira de vinte e dois metros. O ossudo
ligou a mangueira com a parte inferior do balão, que estava aberta, e passou litros de
seiva na abertura.
Depois voltaram a discutir o trabalho.
Como se podia obrigar um tronco a soltar o gás que havia em seu interior?
Experimentaram com facas. Abriram buracos, dos quais realmente saiu chiando um jato
de gás. Logo, precisavam de buracos maiores, dos quais saísse mais gás.
Sandal arriscou-se a usar a arma energética por um instante para abrir um buraco
mais fundo. Encostou a extremidade da mangueira no buraco e o gás atravessou a
mangueira frouxa chiando e rugindo. Finalmente chegou ao balão e começou a inflá-lo.
Sandal abriu um total de cinquenta buracos com a arma energética.
Depois de receber o gás de vinte buracos, o balão frouxo começou a levantar,
formando uma espécie de cúpula de aspecto ainda mais insignificante do que Sandal e o
ossudo tinham imaginado. O gás escapou por alguns furos. No tapou estes furos com
resina e remendos de casca de árvore. Outras cordas de fibra formaram as malhas mais
fechadas de uma rede. Quando o balão ficou cheio até dois terços de sua capacidade, o
trabalho de enchimento teve de ser interrompido. A massa que pulsava para cima e seria
perfeitamente capaz de carregar os dois homens foi amarrada com trinta cordas em
galhos e raízes. As cordas saíam de lugares que podiam ser alcançados com facas da parte
inferior do balão. Não havia pedras que pudessem servir de lastro, No quarto dia ficaram
tão eufóricos com o resultado que trançaram a gôndola num tempo recorde.
— Descobrimos o meio certo — disse Sandal em tom de espanto. — Não tem nada
de bonito, mas levar-nos-à em segurança por cima do pântano.
Neste instante a tocha periódica voltou a acender-se perto deles, queimando mais
alguns galhos e folhas próximas, porque desta vez a língua de fogo passou quase na
horizontal sobre o pântano.
No quinto dia concluíram o trabalho.
— Esta bola ainda acaba arrastando a ilha! — disse o ossudo e riu alto.
Ainda trabalhavam muito bem protegidos pelas copas das árvores. Depois de sair da
ilha voando estariam relativamente indefesos. Era bem verdade que até então só tinham
visto objetos voadores que estavam à sua procura somente sobre a areia, nunca em cima
da faixa de pântano.
O balão estava cheio e os últimos buracos foram fechados.
No polo inferior, perto da mangueira comprida, havia uma espécie de esteira presa
com sessenta cordas, na qual cabiam os membros da expedição e as bagagens. Os
mantimentos tinham sido quase todos consumidos; só restavam alguns sacos de nozes e
duas abóboras-garrafa.
— Quando partiremos? — perguntou Sandal.
— Na próxima noite, se o vento for favorável. Precisamos de vento norte, que é raro
nesta região.
Sandal bateu com o pé e exclamou:
— Vencemos todos os perigos, até podemos voar sobre o pântano, e agora temos de
esperar e morrer de fome.
O ossudo corrigiu com muita filosofia:
— O bom guerreiro espera com uma paciência infinita. Ouvi isto de você.
Sandal gritou furioso um palavrão impublicável, sorriu e disse:
— Você tem razão... mas estou lembrado de que há dois dias houve uma trovoada
que correu rapidamente para o sul.
— Quer dizer que terei de fazer uma feitiçaria para produzir uma trovoada! —
afirmou o ossudo.
— Você é capaz? — perguntou Sandal perplexo.
— Não — respondeu Tahonka No.
Tentaram limpar-se, comeram nozes e beberam a água morna. Esperaram. Que mais
poderiam fazer? Esperaram um dia e metade de uma noite. Quando o primeiro raio correu
sobre a distante savana de espinhos, um acordou o outro.
— A trovoada, Thoen!
O animal, que saíra constantemente à procura de alimentos e encontrara bem pouco,
saiu do meio das árvores. Os numerosos olhos pareciam deprimidos à luz da tocha do
pântano. O ruído de mais uma árvore estourando misturou-se ao trovão. O balão estava
completamente cheio de gás.
— Vamos esperar a trovoada ou saímos voando à sua frente?
— A chuva pode molhar o balão e desmanchá-lo — ponderou Tahonka.
— Quer dizer que sairemos à primeira rajada de vento.
— Assim seja feito! Pelo ídolo amarelo! — gritou o ossudo em tom decidido.
Colocaram o Thoen na rede, também entraram e certificaram-se de que não tinham
esquecido nada da bagagem. A cola feita de resina transformava-se, depois de ter perdido
a umidade, numa massa parecida com borracha, que arrancava todos os pelos ao ser
removida da pele. Sandal praguejava sem parar. Mas desta forma quase toda a sujeira era
removida da roupa.
A trovoada aproximou-se ribombando e relampejando.
A luz mortiça desapareceu do céu quando a chuva varreu a areia e as primeiras
rajadas de vento remexeram o gás e sacudiram as árvores.
— Cortar as cordas, de maneira uniforme.
— Entendido. Cortar cada terceira trepadeira.
Os dois começaram a desenvolver uma atividade febril com suas facas afiadas.
Cada um contornou três vezes a metade do balão, as últimas cordas estouraram sozinhas.
A esfera empurrou os galhos e precipitou-se noite afora.
Subiu quase na vertical.
Sandal soltou o anel duplo de cordas que envolvia a mangueira comprida arrastada
pelo balão e ouviu pequena quantidade de gás escapar. Voltou a fechar o anel de cordas e
o balão estabilizou-se a cerca de cento e vinte metros de altura.
O balão girou, balançou, e os homens seguraram-se desesperadamente nas malhas
da rede.
— Estamos voando! — constatou Tahonka.
Voavam para o sudeste, mais ou menos na direção do porto espacial cujas luzes
criavam uma auréola vaga sobre a selva.
A viagem perigosa estava começando. Um golpe de tempestade atingiu o balão,
virou-o como se fosse uma pena e ameaçou atirar para fora os homens. Depois o balão
voltou a descer, diretamente para um gigantesco lago negro cheio de bolhas estourando.
A mangueira comprida era arrastada pelo capim e pela vegetação, pela lama e pelas águas
borbulhantes.
— Vamos cortar esta maldita mangueira! — uivou o ossudo.
— Aí nosso balão vira de vez! — respondeu Sandal berrando.
Um relâmpago atingiu uma árvore e os dois viram na luz ofuscante o vegetal em
forma de garrafa ser dividido em várias partes. Uma rajada forte fez subir novamente o
balão e o gás expelido pelos pântanos era cada vez mais rarefeito. Os homens pararam de
tossir.
O Thoen vivia cobrindo os olhos com a mão estreita, um após o outro, ao acaso.
Além disso miava forte sem parar.
— Temos de passar pela tocha!
— Salte e puxe-nos para a esquerda! — esbravejou o ossudo.
A tempestade e as pancadas de chuva que fustigaram a paisagem depois dela faziam
subir e descer o balão, que balançava e rodava. Naquele momento ia diretamente para
uma das colunas de fogo periódicas, que saíam do pântano em toda parte, num ritmo
regular.
Se a tocha entrasse em contato com o balão, ele explodiria e os homens seriam
atirados no pântano que os engoliria.
— Nosso fim está próximo! — gritou o ossudo desesperado.
— Por enquanto estamos vivos — respondeu Sandal.
6
Três fenômenos notáveis se verificaram depois que os dois homens e seu estranho
acompanhante chegaram à costa.
Um sáurio saiu da água batendo as asas, descreveu círculos fazendo movimentos
desajeitados, sobrevoou a baía em forma de meia-luz, cujas encostas rochosas estavam
cobertas de vegetação. Finalmente o animal afastou-se para o leste.
— Como faremos para atravessar a água, amigo? — perguntou o ossudo em tom
sarcástico.
— O que você sugere? Vamos nadar? — indagou Sandal.
— Seríamos devorados por peixes antes de sair da baía.
— Refleti muito sobre isso — disse Sandal em voz baixa e desceu pela escada de
pedra, que era bastante confortável. — Também não encontrei nenhuma solução.
— De qualquer maneira é bom que os guardas voadores não nos vejam — disse o
ossudo.
— Devemos evitar que isso aconteça.
Até onde enxergavam, a costa do mar interior de forma circular era arenosa, rochosa
e coberta por um verde abundante. A selva e a costa pareciam fundir-se. O signo da ilha
invisível aparecia no horizonte — a cúpula redonda dominava o cenário que nem uma
montanha. Ao leste começava a ponte energética que já tinha visto. Do lugar em que
estavam parecia um tubo ligeiramente curvo.
O segundo fenômeno deixou Sandal ainda mais estupefato.
De repente seu rádio, que nos últimos dias funcionara vinte vezes, parecia ter
despertado para a vida. Ininterruptamente eram transmitidas mensagens da ilha.
Eram sinais que os dois amigos já conheciam perfeitamente.
Pedidos de materiais, de informações a respeito das temperaturas dos vulcões em
atividade ou extintos e das crateras menores, diálogos com alguns administradores do
porto espacial... e coisa parecida. Nada que pudesse ajudá-los em alguma coisa.
Sandal disse, mais para si mesmo, como que para consolar-se:
— Um caçador deve ter muita paciência — um dia, talvez seja logo, descobriremos
um meio de atravessar o mar.
Tahonka No repetiu o que já dissera tantas vezes.
— Admiro sua coragem, sua confiança, mas prefiro ficar na expectativa.
Montaram um pequeno acampamento. De repente Sandal percebeu que o tráfego
aéreo aumentara. Planadores pousavam e decolavam a pequenos intervalos, subiam e
passavam pelo tubo. Espaçonaves desciam do céu ofuscante e tocavam o chão com as
máquinas rugindo pela última vez, ficavam estacionadas atrás da selva e decolavam junto
à torre gigantesca.
Três acontecimentos. Qual era a ligação entre eles?
Será que lá adiante, na Ilha da Felicidade, estava acontecendo alguma coisa que
devia interessá-lo?
Ele não sabia. Tahonka No também não, mas ele fez uma boa sugestão.
— Cada um de nós caminha um pedaço pela praia — disse. Você vai para o oeste e
eu vou para o sul. Vamos fazer um reconhecimento. Assim pelo menos nossa espera fará
sentido.
Sandal acenou com a cabeça. Viu que seu amigo estava tão nervoso como ele.
— Está certo.
Sandal atirou uma aljava sobre as costas, pegou o arco e iniciou a subida.
Acompanhou as curvas das baías e olhava constantemente para a cúpula energética e em
seguida para a parede escura da mata. Depois de algum tempo um cheiro penetrante
entrou em seu nariz e ele se pôs a refletir.
Onde já sentira este cheiro?
Naturalmente no pântano, quando estavam fabricando o balão.
Eram os gases que saíam do chão.
— O calor... está aumentando — constatou surpreso.
Parou. Vira alguma coisa mexer-se à sua frente. Com alguns saltos chegou perto da
rocha, ficou encostado à parede quente e fez avançar a cabeça. O que viu deixou-o gelado
de pavor.
Um réptil voador.
Vinha da mata, derrubou distraidamente uma árvore de porte médio com um golpe
da cauda e caminhou pesadamente pela costa. Só então Sandal viu o tamanho apavorante
do animal. Ele foi ficando mais rápido, abriu as pernas e apoiou-se na cauda. As
gigantescas membranas se esticaram e um golpe de tempestade jogou o cabelo de Sandal
para trás.
Em seguida o animal tomou impulso, bateu com as pernas e desceu a encosta,
voando e correndo ao mesmo tempo. Pouco acima da água, na qual penetrou o bico
longo, o ar se comprimiu embaixo das asas e o animal saiu voando.
— Fantástico!
“Nas costas do animal cabem cem homens”, pensou.
O animal subiu devagar, ainda chegou a roçar as ondas e passou a voar mais
depressa e mais alto. Descreveu uma longa espiral e diminuiu rapidamente, o que era um
bom ponto de referência para sua capacidade de voo. Boquiaberto de espanto, Sandal viu
o colosso desaparecer e descer depois de longo tempo, transformado num pontinho
branco, à frente do campo energético, e desaparecer na bruma que se acumulara em sua
parte inferior. Depois disso apareceu outro sáurio voador vindo de uma outra direção.
— Estes animais comem carne. Não existe a menor dúvida. Nunca ficariam
satisfeitos com alimentos vegetais — disse Sandal em voz um pouco mais alta e saiu do
esconderijo. Aproximou-se sem fazer nenhum ruído e viu o caminho que o animal abrira
na selva, bem como os rastros deixados ao arrastar os pés na areia.
— Que coisa notável. Mas que cheiro desagradável é este? — perguntou.
Dali a quinze minutos chegou a um buraco no chão que fumegava um pouco. Viu
imediatamente que se tratava de uma pequena montanha que cuspia fogo, igual à que vira
da primeira vez na queda da nave-cogumelo.
Ou melhor, não se tratava de uma montanha, mas de uma cratera aberta no chão.
Uma coluna de fumaça subia encrespada no ar quente; saía de um buraco negro no
meio das paredes inclinadas do funil.
— Os sáurios voam constantemente para lá! — disse Sandal. — Deve haver alguma
coisa atrás disso.
Ele imaginava. Os sáurios voadores eram alimentados na ilha. Em compensação
vigiavam o mar. Bastariam dez ou vinte répteis voadores para exterminar a fauna da mata
dentro de algumas semanas. O que significavam os vulcões que havia por aí? Sandal
aproximou-se.
Examinou a areia e as secreções amarelo-esverdeadas que tinham escorrido em
muitos anos. Não teve de procurar muito tempo. Logo viu as marcas dos pés dos sáurios.
Sandal tentou reconstituir seus movimentos.
— Eles pousam aqui, andam com insegurança... depois se viram até que a parte
traseira fique em cima do funil. Permanecem assim por bastante tempo! — disse.
Os rastros eram profundos e bem visíveis.
Uma forte onda de calor atingiu o rosto de Sandal quando chegou perto da cratera e
se inclinou sobre ela. A única coisa que viu foram paredes lisas cobertas de areia e restos
de cinza dispostos em faixas.
Sandal acenou com a cabeça.
Voltou entre as rochas, olhou para a selva silenciosa, que parecia ser habitada
somente por animais e pássaros pequenos e procurou uma pequena caverna na sombra.
Tirou o arco de cima do ombro, colocou-o ao alcance da mão, pôs a aljava ao lado e
apoiou a cabeça nos antebraços.
Sandal Tolk estava esperando.
Esperou quatro horas ou mais antes de ouvir o ruído de asas gigantescas que já
conhecia em cima de sua cabeça. Era um dos sáurios descendo. O céu escureceu. Sandal
entrou com cuidado, depressa e em silêncio, mais profundamente no esconderijo.
O animal cambaleava e balançava, girou várias vezes e andou de asas encolhidas, de
costas e em direção à pequena boca do vulcão.
Depois levantou a cauda longa numa curva parecida com um ponto de interrogação
e mergulhou gemendo metade do corpo nos vapores e fumaças quentes do pequeno
vulcão.
— Não dá para acreditar! — disse Sandal.
Pôs-se a refletir que nem um relâmpago. O ventre do animal estava grosso e
inchado; devia estar na última fase da gravidez. Como se tratava de um réptil isto
significava que havia um ovo amadurecendo na barriga da fêmea do sáurio. Um ovo
gigantesco, maior que Sandal.
— Quer dizer que a fêmea expõe o ovo ao calor, o que reduz o tempo de incubação.
O caçador olhava atentamente o animal.
O réptil mantinha os olhos fechados e levantava e baixava o pescoço comprido.
Estava com a mente embotada, quase inconsciente. Não sentiu a rocha que Sandal atirou
dali a alguns minutos no focinho alongado do réptil.
— Será que o animal está agonizante? Ou ficou inconsciente por estar chocando?
Sandal lembrou-se da posição das galinhas que vira nos galinheiros do castelo de
Crater. Parecia que o fim do processo de incubação estava chegando. A casca de couro do
ovo gigantesco era amaciada para sair melhor do corpo. Dentro em breve sairia um
filhote. Sem dúvida ficaria pouco tempo no ninho; logo sairia correndo e voando.
Um filhote como este logo precisaria de alimento. Nenhuma proteína animal
encerrada num ovo aguentaria o calor tremendo saído de dentro do planeta.
— Ficarei esperando — decidiu Sandal.
Bastava pensar na sua vingança, e todos os sofrimentos se tornavam suportáveis.
Mas Sandal era inteligente e sabia que se aproximava do objetivo em passos pequenos,
lutando sempre, que não conhecia muito bem o objetivo, que continuava o mesmo. Mas
onde poderia encontrar aquele que teria de obrigar a interromper o ataque às estrelas?
Onde procurá-lo? Dentro da cúpula?
Talvez.
Mas era possível que a cúpula apenas fosse mais uma etapa angustiante e cheia de
perigos numa longa caminhada.
— Esta fêmea chocando com a barriga fica cada vez mais nervosa... está chegando a
hora — disse Sandal.
Fazia votos de que Tahonka No e o Thoen não saíssem à sua procura, pois já
começava a anoitecer.
Passou-se meia hora numa terrível monotonia.
Finalmente o animal saiu do buraco com os olhos fechados, passou
desajeitadamente embaixo do esconderijo de Sandal, que desta vez viu perfeitamente as
cristas, as faixas de substância córnea, as pontas e as reentrâncias que cobriam as costas
do animal. Este levantou fazendo um esforço inconsciente, bateu as asas três vezes e foi
parar a centenas de metros dali.
O ovo saiu de seu corpo em forma de uma bolha alongada.
— Como será daqui em diante?
Sandal estava curioso.
Uma gigantesca nuvem escura saiu da cratera vazia e ficou entre o caçador e o réptil
gigante. Quando a visão voltou a clarear, Sandal viu o filhote cambaleando e sacudindo a
cabeça. Abriu as asas e balançou-as, correu em volta do sáurio e soltou pios agudos.
— O filhote ainda é mais feio que a velha! — disse Sandal e estremeceu.
O cheiro do réptil foi trazido pelo vento e quase lhe deu dores de estômago.
Dali a uma hora a velha e o filhote voaram um atrás do outro para o sul, em direção
à ilha.
Sandal saiu do esconderijo, espreguiçou-se para amolecer as juntas e voltou
depressa para junto de Tahonka, que já estava sentado perto de uma fogueira pequena,
muito bem camuflada, girando o espeto com o animal que tinham abatido nos últimos
metros de mata. Levantou a cabeça, olhou atentamente para Sandal e disse:
— Seu sorriso me diz que você tem uma novidade.
Sandal olhou em volta e sentou perto do fogo, depois de ter colocado as armas no
chão.
— Já sei como podemos atravessar o mar — disse em tom seco.
Tahonka olhou para ele surpreso e soltou uma gargalhada. O Thoen ficou tão
assustado que deu um salto de dois metros e balançou o topete.
— Você está louco! Não diz coisa com coisa — disse Tahonka e fez um gesto de
pouco-caso.
— Nada disso. Deixe-me explicar.
Tahonka riu de novo e respondeu:
— Fique à vontade. Gosto de ouvir histórias bonitas antes de adormecer. Vamos lá!
Fale.
— Pela estrela de púrpura! Voaremos nas costas de um réptil gigante de verdade.
O riso incrédulo do ossudo foi tão forte que a carne quase caiu no fogo.
— Eu não disse? — perguntou com um aceno de cabeça. — Ele não diz coisa com
coisa. O sol fundiu seu cérebro.
— Contarei o que vi — disse Sandal em tom calmo. — Preste atenção.
O caçador fez um relato curto, mas completo, do que acabara de ver e das
conclusões a que chegara.
— Quer dizer que você quer subir nas costas do animal e esconder-se enquanto o
réptil estiver sentado na cratera do vulcão? — perguntou No estupefato.
— Isso mesmo — respondeu Sandal. — Poucos seres podem contemplar as próprias
costas sem um espelho. Por que haveria de ser de outra forma? Geralmente as costas não
são um quadro agradável.
— Pois eu lhe digo que não há nada que eu mais gostaria de ver no momento que
suas costas. Você quer matar-nos à força?
Sandal sorriu e viu os pingos de gordura queimando em cima do fogo.
— De forma alguma. O rabo do animal, mesmo quando toca nas costas, não entra
nas numerosas reentrâncias. É rígido e comprido.
— Você está louco. Cairemos de cima do réptil!
— Nós nos amarraremos, como fizemos embaixo do balão. Não cairemos. Teremos
um voo perfeito.
— E o filhote? O que acontecerá se se sentir fraco com o longo voo e for parar nas
costas da mãe?
— As costas do réptil são grandes e cheias de esconderijos — disse Sandal. — Se o
filhote achar que podemos servir de alimento, podemos usar as facas, as flechas, a arma
de bolas de luz e meu fuzil energético. Acha que isto não basta?
— Todas estas armas e sua audácia já são demais. Não entrarei nessa.
— Pois eu vou assim que chegar uma fêmea que esteja chocando. Não correremos
nenhum perigo.
Tahonka No tomou uma decisão sábia.
— Primeiro vamos comer e dormir — anunciou. — Amanhã de manhã os
problemas parecerão diferentes.
— Isso mesmo — respondeu Sandal em tom sarcástico. — Uma arca de luxo virá
buscar-nos.
— Não é isso. Mas quem sabe se sua loucura maligna diminui um pouco?
Os dois comeram e deitaram nas redes. Depois de algum tempo Tahonka No
perguntou em meio ao ruído das ondas pequenas:
— Você estava falando sério, Sandal? Ou quis assustar-me?
Sandal esperou alguns segundos antes de responder.
— Não estou brincando. Pretendo mesmo subir nas costas de um réptil tomando
todas as precauções e esperar que ele voe para a ilha.
O ossudo murmurou alto e em tom insistente:
— Quer dizer que quer voar mais de cem quilômetros nas costas do animal maior e
mais forte deste planeta? É uma passagem direta para a morte.
Sandal contestou apaixonadamente e ajeitou-se na rede.
— Observaremos enquanto esperarmos. Depois agiremos com mais cuidado que
nunca. Finalmente nos esconderemos nas costas do animal, que são pouco menores que a
baía que fica à nossa frente. Ficaremos amarrados e agarrados nas inúmeras saliências e
reentrâncias de ossos e córneas. Quando o animal levantar voo seremos sacudidos um
pouco. Mais nada.
— Não consigo imaginar que seja assim. Acho que não conseguiremos — disse o
ossudo em tom desanimado. — Você confia demais em sua capacidade. Estou com
medo, Sandal. Não quero morrer nas costas de um animal destes ou cair na água depois
de viajar alguns quilômetros.
— Segurarei você — disse Sandal. — É verdade! Pense nos perigos que já
enfrentamos. Cada um foi maior que o voo de que falei.
— Você tem razão, mas só de pensar nisso fico trêmulo.
Sandal só tinha medo das transmissões hipnóticas de comando, que sem dúvida
seriam mais intensas sobre o mar. Na praia mal notavam alguma coisa de três em três
horas e conseguiam controlar-se.
— Quando sairmos correndo você não vai tremer. Eu garanto.
O ossudo resmungou em tom ressentido:
— Esperemos. De qualquer maneira você já me roubou o sono desta noite.
Sandal concluiu dizendo:
— Você não me deixará sair sozinho. Sabe que confio em você, amigo.
Dali a pouco o único ruído que se ouvia além da arrebentação eram os roncos dos
dois amigos.
O Thoen desapareceu e subiu correndo a escada de pedra comprida. Correu para a
rocha e, tomado pelo pânico, abriu um buraco enorme.
Sentou no buraco e esperou.
***
Tiveram de esperar alguns dias até que pousasse mais um réptil.
Foram dias enervantes para os dois. Sandal vivia dizendo que não seria perigoso,
mas o ossudo não concordava. Tinha certeza de que ia morrer se entrasse nessa aventura
louca.
Finalmente chegou a hora.
— Onde está o Thoen?— perguntou Sandal.
— Não faço ideia. Saiu na noite em que brigamos pela primeira vez.
Apesar de tudo Sandal conseguiu levar o amigo ao esconderijo nas rochas. Viram o
monstro descer planando. Seus movimentos eram cansados e inseguros quando o animal
ficou de costas e saiu tropeçando. Depois de algum tempo o réptil escorregou para dentro
da boca do vulcão. Zumbidos saíam de sua laringe enorme.
— Está nos amaldiçoando! — cochichou Tahonka No.
— É uma canção de ninar dedicada a seu ovo! — respondeu Sandal com uma
tremenda falta de respeito.
O ovo foi amadurecendo dentro do corpo. Quando Sandal identificou os sinais de
que o animal sairia do vulcão, saiu correndo. Estava preparado. Quando contornou o
animal, viu que Tahonka No o seguia. Primeiro hesitante, com um evidente desespero,
mas depois cada vez mais depressa, como se estivesse preocupado com o amigo.
Os dois alcançaram as costas do animal, que se erguia que nem um paredão de
rocha acidentado.
Sandal subiu e logo se abrigou embaixo de quatro placas ósseas gigantescas e várias
pontas de substância córnea.
— Amaldiçoada seja sua coragem! — gritou o ossudo e seguiu-o com movimentos
apressados.
Em seguida o réptil sacudiu-se e inclinou o corpo para a frente.
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