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OS ROEDORES DA GLÓRIA

JOSÉ INGENIEROS(1877-1925)

De O Homem Medíocre, trad. Gesner de Wilson Morgado, Rio, Melson, 1963.

Todo aquele que se sente capaz de criar um destino, com o seu talento e com o seu esforço, está
inclinado a admirar o esforço e o talento nos demais; o desejo da própria glória não pode sentir-se
coagido pelo legítimo enaltecimento alheio. Aquele que tem méritos sabe o que eles custam, e os
respeita; estima, nos outros, o que desejaria que os outros estimassem nele. O medíocre ignora
esta admiração franca: muitas vezes se resigna a aceitar o triunfo que ultrapassa as restrições da
sua inveja. Mas aceitar não é amar, resignar-se não é admirar.
Os espíritos de asas curtas são malévolos; os grandes engenhos são admirativos. Estes sabem
que os dons naturais não se transformam em talento ou engenho sem um esforço, que é a
medida do seu mérito. Sabem que cada passo no sentido da glória custa trabalhos e vigílias,
meditações profundas, tentativas de fim, consagração tenaz, a esse pintor, a esse poeta, a esse
filósofo, a esse sábio; e compreendem que eles consumiram porventura o seu organismo,
envelhecendo prematuramente; e a biografia dos grandes homens lhes ensina que muitos
renunciaram o repouso ou o pão, sacrificando, tanto um como outro, a fim de ganhar tempo para
meditar, ou para comprar um livro iluminador de suas meditações. Essa consciência daquilo em
que o mérito importa, os faz respeitar. O invejoso, que o ignora, vê o resultado a que os outros
chegam e ele não, sem suspeitar quantos espinhos foram semeados no caminho da glória. Todo
escritor medíocre é candidato a criticastro. A incapacidade de criar impele-o a destruir. Sua falta
de inspiração o induz a corroer o talento alheio, empanando-o com especiosidades que
denunciam a sua irreparável inferioridade. Os altos engenhos são equânimes na crítica de seus
iguais, como se reconhecessem, neles, uma consangüinidade em linha direta; no êmulo, não
vêem nunca um rival.
O verdadeiro critico enriquece as obras que estuda, e em tudo o que toca deixa um rastro de sua
personalidade., Os criticastros, que são, por instinto, inimigos da obra, desejam diminui-la, pela
simples razão de que eles não a escreveram. Nem saberiam escreve-la, se o criticado lhes
contestasse: "Faze-a melhor". Têm as mãos travadas por fitas métricas; seu afã de medir os
outros corresponde ao sonho de rebaixá-los até à sua própria medida. São, por definição,
prestamistas, parasitas, vivem do alheio, pois se limitam a baralhar, com mão hábil, o mesmo que
aprenderam no livro que procuram desacreditar. Quando um grande escritor é erudito, reprovam-
no como falto de originalidade; se não o é, apressam-se a culpá-lo de ignorância. Se emprega um
raciocínio que outros usaram, denominam-no plagiário, embora assinale as fontes da sua
sabedoria; se omite a assinalação, acusam-no, por serem vulgares, de improbidade. Em tudo
encontram motivo para maldizer e invejar, revelando a sua antipatia interna.
O criticastro medíocre é incapaz de alinhavar três idéias fora do fio que a rotina lhe sugere. Sua
bojuda ignorância obriga-o a confundir o mármore com o mecaxisto, e a voz com o falsete,
inclinando-o a supor que todo o escritor original é um heresiarca. Os pacóvios dariam o que não
têm, para saber escrever um pouquinho, para serem incorporados à crítica profissional. É o sonho
dos que não podem criar. Permite uma maledicência medrosa e que não compromete, feita de
mendacidade prudente, restringindo as perversidades para que fiquem mais agudas tirando aqui
uma migalha e dando ali um arranhão, velando tudo o que pode ser objeto de admiração,
rebaixando sempre com a oculta esperança de que possam aparecer a um mesmo nível os
críticos e os criticados. O escritor original sabe que atormenta os medíocres aguilhoando-lhes
essa paixão que os desespera em face do brilho alheio; o desespero dos fracassados é a lucro
que melhor pode premiar o seu labor luminoso. O ridículo de um Zoilo chega sempre a andar
passo a passo com a glória de um Homero.
Fermentam, em cada gênero de atividade intelectual, como pragas pediculares da originalidade;
não perdoam aquele que incuba, em seu cérebro, essa larva silenciosa. Vivem para manchá-lo ou
destroná-lo, sonham com o seu extermínio, conspiram com uma intemperança de terroristas,
esgrimem sórdidas calúnias que fariam enrubescer um paquiderme. Vêem um perigo em cada
astro e uma ameaça em cada gesto; tremem, pensando que existem homens capazes de
subverter rotinas e preconceitos, de acender novos planetas no céu, de arrancar sua força aos
raios e às cataratas, de infiltrar novos ideais às raças envelhecidas, de suprimir as distâncias, de
violar a força de gravidade e de abalar o governo...
Os espíritos rotineiros são rebeldes à admiração: não reconhecem o fogo dos astros porque
nunca tiveram, em si, uma única chispa. Jamais se entregam de boa-fé aos ideais ou às paixões
que lhes assaltam o coração; preferem opor-lhes mil raciocínios, para privar-se do prazer de
admirá-los. Confundirão sempre o equívoco e o cristalino, rebaixando todo ideal até às baixas
intenções que supuram em seus cérebros. Pulverizarão todo o belo, esquecendo que o trigo
moído e feito farinha já não pode germinar em espigas douradas, à luz do sol. "É um grande sinal
de mediocridade - disse Leibniz - elogiar sempre moderadamente". Pascal dizia que os espíritos
vulgares não encontram diferenças entre os homens : descobrem-se mais tipos originais, à
medida que se possui maior engenho. O criticastro é miserável; admira um pouco todas as
coisas, mas nada merece a sua admiração decidida. Aquele que não admira o melhor, não pode
melhorar. Os que não sabem admirar não têm futuro. É uma covardia aplacar a admiração; é
preciso cultivá-la, como fogo sagrado, evitando que a inveja a cubra com a sua pátina
ignominiosa.

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