Você está na página 1de 6

Formação MAABE 2010/2011

Esta curta narrativa vai falar-vos de um porto e de um mareante, de uma viagem


num oceano breve e branco, numa embarcação secreta através de um corpo desabitado,
com varandas embaciadas, com colunas suspensas de jardins que a minha imaginação
povoou, como se enterrasse um pouco de mim em cada sítio que vivi. Esta viagem
transportou-me até um tempo fora deste tempo... enfim, a curiosidade que sempre me
prendeu às janelas, levou-me a olhar mais de perto o porto, como alguém que, outrora,
ali aproou para fazer aguada e comprar mantimentos. Fui até ele.
Serei o mareante que vos guiará até mim, pelos meus olhos e passos - braços de
mar, e vos dará a ver pelos meus múltiplos e inesperados cais (feitos de mil surpresas,
feitos de fontes), que vos levará a navegar nos diversos navios que aí arribaram.
Quando o barco levantou âncora e os cordames dançaram no arco de metal, uma
breve buzina, quase metálica, antes do ruído do motor, atravessou o porto, as manchas
de óleo no paredão, os lenços, cheios de olhos, soltos ao vento num adeus incógnito, o
impulso de partir tinha amainado a tensa espera, era numa manhã em que trazia os olhos
cheios de Outonos1, os da parte externa do fruto que encerra as sementes, aquela que
contém o embrião no estado de vida latente.
Tinha a idade das palavras rabiscadas das crianças nesse momento, como as
primeiras águas de Setembro, como se tratasse de uma colheita única. Partia sem
ausência, sem descanso, reconheço agora a minha paz singular, a enorme inocência do
meu silêncio!

«Muito se tem falado das coincidências de que a vida é feita, tecida e composta, mas
quase nada dos encontros que, dia por dia, vão acontecendo nela, e isso não obstante serem os
ditos encontros, quase sempre, os que a mesma vida orientam e determinam, embora, em defesa
daquela percepção parcial das contingências vitais, fosse possível argumentar que um encontro é,
no seu mais rigoroso sentido, uma coincidência, o que não significa, claro está, que todas as
coincidências tenham que ser encontros.» SARAMAGO, J. (1997:221)

Envolto pela neblina de uma qualquer manhã, revejo-me, revejo aquele vulto de
menino gelado. Sim, sim…, havia um “carrinho de bebé”, eu estava sentado num
“cavalo de pau”, um dia... num cais também, enquanto o navio partia para Sul, sempre

1
frutos colhidos no Outono;

Adriano Aires
Formação MAABE 2010/2011
para Sul... Tinha quatro anos e regressava ao útero da minha vida, ao segredo dos rios e
do horizonte que ficava mais longe, deixava Lisboa e partia para (LUA)anda, para
Angola... para Sul e ainda mais para Sul, para a cidade do mar (Moçâmedes) e do
deserto (Namibe = enorme).
Ao sair do porto o cheiro do vento perdia-se naquele verde salino das primeiras
montanhas, naqueles verdes mais enegrecidos dos cerros mais longínquos. Mas na ténue
separação, física, ainda havia a segurança do que via, não estava ainda entregue à
turvação do mar, com fundo azul, onde navegavam outros navios.
Quem sou?
Socorro-me de um poema de Píndaro 2 para responder a esta questão que me
assombra,3 sou “sombra de um sonho”.
Os versos dizem:
- «Efémeros! Que somos nós? Que não somos?
Sombra de um sonho é o homem!».
A resposta é quase automática, instintiva, nem sombra, nem sonho. De ser,
provavelmente, o contraste das duas e que me indica uma espécie de luminosidade
sempre inacabada, nunca inteiramente realizada, espelho...

«... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou
e o que não sou, entre o que o sonho e o que vida fez de mim, a média abstracta e carnal
entre as coisas que não são nada, sendo eu nada também» PESSOA, F. in VIANA, A.
M. C. (1985: 205)

IDENTIFICAÇÃO
Nome: Fernando Adriano Aires Fernandes

2
Píndaro (cerca de 518-444 a.C.) in FERREIRA, J. R. (1994)

3
causar assombro a; maravilhar; ficar maravilhado; espantar-se; cobrir-se de sombra.

Adriano Aires
Formação MAABE 2010/2011
Filiação: Fernando Gonçalves Fernandes (Ser-se assim belo quando chove, quando
há vento e quando neva, ser-se assim misterioso e constante diante de todas as luzes,
mesmo quando partiste em Dezembro último) e de Maria Amália Aires Fernandes
(Princesa-mulher, viúva no coração e nas mãos e nos passos, a paixão numa mão, o
amor e o fogo na outra, como pássaro que luta com o sorriso na asa, o vento desvendado
nas janelas, abertas, as mãos entrelaçadas nas minhas).

Estado Civil: Casado, 2 filhos:


- Catarina - ramo de alecrim4, orvalho do mar – Rosmarinus, lembrando o calor,
o verde e a brisa de um amor nascido nos Açores, folha de salva, pura, fonte de
sabedoria e prolongamento da vida, erva-cidreira, bem-amada das abelhas, citrino que
perfuma o ar, o sorriso com o cheiro das oliveiras e das flores... como o leite dos figos
vertidos nos rios ainda doces das serras, lenta luz das manhãs a espreguiçar-se, os olhos
de mel são aves que deixam as sombras em todo o verão, encerra ainda no ser uma noz
de astúcia, finura e subtileza todas em igual proporção.

- Frederico – é um castelo de olhos meigos-transparentes-castanhos-de-


amêndoa-navios-da-alma e pestanas negras como os cabelos, é uma brisa no final da
tarde iluminada, é um sorriso feito das cores que enchem o crepúsculo matutino para
amanhecermos nele, é cada um dos meus prolongamentos, é cada um dos momentos dos
dias, é a ramificação de um rio ou de um mar, é desejo riscado na areia de uma praia
prometida onde quase esgotámos o amor…

Tempo de Serviço: 7830 dias – 22 anos


Situação Profissional: Professor do 1º Ciclo do Ensino Básico, pertencente ao Quadro
de Escola - Agrupamento Vertical de Escolas Dr.ª Laura Ayres de Quarteira, professor
bibliotecário das Bibliotecas Escolares das Escolas EB1 n.º2 de Quarteira e EB1/JI da
Abelheira.

"Escribirmos para ser lo que somos o para ser aquello que no somos. En uno o en outro
caso, nos buscamos a nosotros mismos. Y si tenemos la suerte de encontrarnos-señal de

4
O seu nome científico provem de uma expressão latina – Rosmarinus officinalis -, que quer dizer:
“Orvalho do Mar”.

Adriano Aires
Formação MAABE 2010/2011
creación-descubririmos que somos un desconocido. Siempre el outro, siempre él,
inseparable, ajeno, com tu cara y la mía, tú siempre conmigo y siempre solo" Octavio
Paz (1989:14)

Ao iniciar este percurso, mesmo com direcção de referência, a do norte


verdadeiro, senti-me com as mãos baralhadas, nas partes inteiras dos momentos, em
lapsos do olhar, enquanto andava para trás e os ponteiros do relógio de ângulos obtusos
nunca se encontravam...
Percorri esta encruzilhada de caminhos e rotas de uma geografia de sentimentos
contrastantes, arremeti-me neste sonho epopeico, vesti a pele de Cadmo5, aquele que
procurou a irmã Europa, raptada pelo deus dos deuses e, tal como ele, segui uma vaca 6
errante, símbolo da irmã, para “fundar” uma ideia onde a bicha, esgotada, se deitasse.
Para obter água das fonte próximas, também tive de matar à pedrada um dragão 7, tido
por filho de Ares. Semeei os dentes do Dragão morto, casei-me com Harmonia.
Não encontrei a tal Europa, tia-avó de Dionísio: deus do vinho, do culto da
vinha, do delírio imprudente e orgíaco. Encontrei o mundo, novo, deveras interessante.
Decorrido algum tempo, o meu sentimento de incerteza tornou-se agitado e
febril, numa mistura de inquietação latente, própria de uma reacção a um estímulo
eficaz, acumulada densamente, em poucos dias, em vez de se escoar ao longo de anos,
tranquila e leve.
O tempo dividia-se. A sensação do tempo dividia-se. Eu próprio me dividia ao
longo de um rio denso como as trevas, habitado por anjos durante a noite, quando a
chuva caía como pedaços de mármore sobre a água azulada.
No silêncio húmido ouvia-se, ao longe, um piano. Os sons vinham, muitos deles,
do interior do meu espírito (ou) soavam a velhas canções, pareciam familiares. Mas as
palavras não estavam em mim.
Aproximei-me. Os sons eram vozes. Prolongavam-se para lá daquela abertura
que serve para ver, para lá do gomo vegetal que origina um ramo, na parte central, ainda

5
Cadmo, segundo a lenda grega, era irmão de Europa, a bela filha de Agénor, rei de Tir que foi raptada e
posteriormente transportada ao dorso por Zeus, metamorfoseado em touro branco. Cadmo procurou
Europa, e encontrou o mundo, a quem deu fundamentos, civilização e porvir.

6
A vaca é a dúvida, a perplexidade, a indecisão, o receio, a suspeita ou a objecção.

7
O Dragão simboliza a luta interior que resultava da relutância em aceitar novas perspectivas ou, até
mesmo, modificar posturas que se haviam cimentado ao longo de longos anos de prática Pedagógica.

Adriano Aires
Formação MAABE 2010/2011
nova e tenra, a tal que, repetidamente, evoco como o lugar eleito para refractar e
reflectir a imagem invertida de lugares distantes como que repercutidos na água, dando
a ilusão de próxima.
Então, os olhos deslavados, castanhos... os meus, absorveram tudo: aquele
instante. As vozes pertenciam exclusivamente a alguém:

- À Sónia Catarina - pela amizade que construímos sem soluços, nem lágrimas,
nem promessas… por tudo o que partilhamos e pelo maior dos abraços: o sorriso.
- À Célia - pela cumplicidade, pelas palavras que não dissemos mas que
soubemos compreender em cada um de nós. Lembras-te?
- À Isabel, à Elisabete, ao Vítor, ao Rui, ao Celestino, à Conceição, à Teresa, à
Inês, à Fernanda, à Maria do Carmo…

Depois desfizeram-se em arroios, regatos e ribeiros, debandaram-se em fios


de água que renasceram e se entranharam na terra, refluíram, brotaram como os rios,
na cama completa, na superfície inferior das pedras, afluentes, saíram como por uma
boca, adaptaram-se à falha de um gume cortante, à substância que as aranhas, os
bichos-da-seda e outros insectos segregam, amoldaram-se aos sulcos feitos no solo
pelo ferro do arado, às rugas da pele…
Num tempo posterior fui líquido incolor e transparente, insípido e inodoro,
chuva, suor, lágrimas, vertente de um telhado… depois fui água de cozimento, de
maceração, de destilação, revestimento externo, o invólucro dos frutos, fui a pele,
fui a porção definida dessa extensão, entre a costa e as ilhas, fui lago, resto de mar
antigo, imensidade, fui espiral de água…
Mudei de posição numa extensão indefinida, na parte da duração ocupada
pelos instantes que foram o resultado da soma dos momentos de inércia dos meus
pontos materiais, em relação ao eixo considerado... contrariando a resistência
passiva à inovação, contrariando a propriedade que o corpo, o meu, tem de não
poder, por si, alterar o seu estado de quietude ou o seu movimento.
Por fim, num modo ou processo de raciocinar em que parti da causa para o
efeito, do princípio para as consequências, do geral para o particular, tomei
conhecimento, num impulso interior, na sede da alma, no lugar onde me sentei,
naquele assento de pedra fixo à parede, junto à janela, entendi o gesto que representa
o acto de conhecer implicitamente contido na coisa conhecida.

Adriano Aires
Formação MAABE 2010/2011
Subi uma espécie de degrau, nas encostas, suportado por um muro, onde os
cavalos e os homens resfriados e fatigados se transfiguram em plantas trepadoras,
cujos caules se enrolam em hélice à volta de um suporte ou em movimentos
circulatórios da água que, ao cair numa cavidade profunda, segue a sua evolução
enquanto corre como um rio.

Por isso, queria, com a mão, a mão toda, levá-la até ao coração, ao lugar
mais central e, num gesto súbito, momentâneo, guardá-los a todos lá dentro – ao pai
que partiu em Dezembro, aos filhos, aos alunos, à mulher, à mãe, aos colegas, às
Coordenadoras Regionais, aos Formadores - na casa da memória, em cada uma das
divisões, sem palavras, sem memoriar, mas prolongando a cumplicidade de olhares
comuns por oposição aos próprios, para deixar entrar o ar e a luz.

Adriano Aires

Você também pode gostar