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Uma das coisas mais curiosas que está a acontecer é uma modificação da forma
como os físicos concebem a matéria. A matéria não é apenas cimento e pedra, é
também energia e fluxos. Assim, o nível de fenómeno biológico em que se
desenrola a mente é de um nível físico que ainda está por definir
completamente. O que lhe posso dizer é que tenho a convicção que há uma
matéria do pensar, da mente consciente, matéria essa que é biológica e
altamente complexa, que está ligada ao funcionamento de redes nervosas — e
que permite a própria perspectiva da primeira pessoa — e que nada tem a ver
com a nossa concepção da matéria e dos objectos de pedra e cal e aço que temos
à nossa volta.
Julgo que tudo depende da perspectiva. Como pode ver no meu livro, respeito a
perspectiva interior. Não há dúvida que a nossa mente e que a consciência são
fenómenos privados e internos. Isto é perfeitamente compatível com uma
ligação entre esses fenómenos de primeira pessoa e os fenómenos de terceira
pessoa que decorrem da nossa observação de comportamentos. O que é preciso
é manter uma visão dupla dos fenómenos — aquilo que é interior e aquilo que é
exterior. Mas o facto é que eles estão ligados. Tudo aquilo que você tem do
ponto de vista interior e que não é revelável ou visível para mim tem uma
tradução, por vezes extremamente subtil, em fenómenos visíveis na perspectiva
da terceira pessoa. Alguns desses fenómenos são comportamentais, outros
podem revelar-se na análise de fenómenos que podemos fazer com
um scanner ou um electroencefalograma. Tudo isso são manifestações de uma
outra coisa; mas não são essa coisa. Como digo várias vezes no livro, olhar para
o electroencefalograma de uma pessoa que está a pensar um determinado
pensamento é diferente de olhar para esse pensamento. Não podemos olhar
para o pensamento, mas podemos olhar para uma manifestação que está
correlacionada com ele. O grande desafio da ciência actual é fazer esta
triangulação entre certos índices de funcionamento biológico, de certos
comportamentos visíveis exteriormente, e essa outra coisa que é a primeira
pessoa, que é a nossa própria experiência.
Claro que há a razão a que chamo "aristotélica", a curiosidade humana, que para
mim é mais do que suficiente. Se alguém me dissesse que não havia qualquer
valor prático no trabalho que nós fazemos eu teria mesmo assim imenso gosto
em fazer esse trabalho. O que é curioso é que há um valor prático. Quanto mais
nós soubermos sobre a maneira como o cérebro produz certos fenómenos
complexos da mente mais nos vai ser possível delinear programas de
reabilitação. Há várias consequências práticas no nosso conhecimento que vale
a pena sublinhar e que justificam o esforço e o tornam ainda mais valioso.
Acho que é a melhor área para trabalhar neste momento. O que se está a passar
nas ciências cognitivas, com a sua ligação à neurobiologia, é semelhante ao que
se passou nos anos 60 e 70 com o desenvolvimento da biologia molecular.
Trata-se de penetrar num conjunto de fenómenos extremamente complexos
graças a várias descobertas. No caso da biologia molecular foi a descoberta da
estrutura do ADN e a descoberta do código genético. Uma vez feitas essas
descobertas abriu-se todo um novo campo, tanto de técnicas como de teorias e
de possível entendimento.
Desidério Murcho
Texto publicado no suplemento Livros do jornal O Independente (Junho de 2000)