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Artigo publicado nos “Anais do III Encontro Latinoamericano de Ciências Sociais e Barragens”,
realizado em Belém, UFPA, em 2010 (no prelo) - http://www.ecsbarragens.ufpa.br/site/index.php
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Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD-UFSC). Professora
Universitária. Atua nas áreas de Direitos Indígenas e Antropologia Jurídica.
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Conforme Namen (1994, p. 32), jamais houve qualquer consulta prévia para a
construção da barragem, sendo que a FUNAI, considerando que as terras indígenas
compõem o patrimônio da União, concedeu as terras ao Departamento Nacional de
Obras de Saneamento (DNOS): “A FUNAI não fez qualquer reivindicação ao DNOS
no sentido de amenizar a situação, nem mesmo preparou a população da área para
essas mudanças inesperadas.”
A partir da movimentação dos indígenas, em 1983, a FUNAI reconheceu que
a Terra Indígena era dos Xokleng e pleiteou indenização pela utilização da área.
FUNAI e DNOS assinaram o primeiro convênio em 1981, contudo, tal convênio foi
amplamente descumprido de modo a ser reiterado em 1987. Com a inauguração da
Barragem em 1992, firma-se um Protocolo de Intenções entre União, Estado de
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Santa Catarina e FUNAI. Tal protocolo também não foi efetivado, celebrando-se um
novo convênio em 1998. Em virtude deste último convênio, houve a entrega de 134
casas aos Xokleng em 2000, as demais cláusulas, entretanto, não foram cumpridas.
Com base nisto, em 2003, o Ministério Público Federal propôs a Ação Civil
Pública nº 2003.72.05.006252-5, com o intuito de pleitear reparação em dinheiro e
em forma específica, tais como execução de obras e de programas de
autossustentação, como maneira de compensação por danos materiais e culturais
que a comunidade Xokleng passava, e ainda passa, em virtude da construção da
Barragem Norte.
A sentença desta ação, publicada no dia 25 de julho de 2007, conseguiu
apenas que se determinasse o cumprimento do Protocolo de Intenções, em um
prazo de três anos, prazo este que se esgotou em julho deste ano, sendo que parte
das obras nem foram iniciadas. Dentro do pedido de reparação em dinheiro, a União
defendeu-se alegando, dentre outros motivos de contingenciamento financeiro do
Estado brasileiro, “que somente não entregou o restante das quantias faltantes,
porque os indígenas não demonstraram ‘aptidão para receber estas quantias em
mãos’, dilapidando os valores ‘das formas mais reprováveis e inúteis possíveis’”.
Chama a atenção o fato de que, em nenhum pedido de indenização feito por
qualquer cidadão brasileiro, discute-se se o dinheiro será ou não gasto de uma
forma útil ou inútil, bem como o tom etnocêntrico e preconceituoso com que os
Xokleng são tratados.
A decisão demonstra, neste caso, o despreparo do judiciário brasileiro em
trabalhar com a questão indígena, desconhecimento da realidade Xokleng e de
noções antropológicas mínimas. Do corpo do texto extraem-se algumas “pérolas”. A
primeira delas ocorre quando, na sentença, se considera que apenas 5,8% da área
da Terra Indígena foram ocupadas com a barragem, entretanto, não há qualquer
consideração ao fato de que estes 5,8 % correspondiam aos 90 % de toda a área
agricultável disponível.
Não há qualquer consideração da importância deste espaço para o contexto
cultural e vital Xokleng, bem como das condições do espaço, ou das encostas, em
que os Xokleng vivem hoje. A decisão reduz a extensão do dano aos momentos em
que se fecham as comportas da barragem, desconsiderando os graves problemas
que as cheias lhes causam ano a ano. Neste ponto, podemos vislumbrar o
afastamento entre decisões judiciais, firmadas por um judiciário que, muitas vezes,
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só conhece seu próprio éthos, e a realidade dos Xokleng. Segue abaixo parte da
sentença:
Neste sentido, verifiquei que uma das formas de luta por suas terras começou
a se fortalecer nos anos de construção da Barragem, quando os Xokleng criaram
uma legislação interna que é fruto de um processo de politização e da necessidade
de sua união enquanto povo, após a fragmentação das aldeias em virtude da
barragem. Em 1983 os Xokleng fizeram sua Portaria nº 001, quando houve a criação
do que os Xokleng denominam de política interna. Em outubro de 1996, esta portaria
é aprovada em uma assembléia geral, tornando-se uma lei Xokleng escrita. No ano
de 2002, passa por algumas revisões, sendo novamente publicada. O regimento
interno em vigor, atualmente, é resultado deste processo de construção e passou
por uma última reforma em 2008.
Este documento tem uma função eminentemente eleitoral, visando
regulamentar as eleições para cacique regional e presidente, o tribunal de justiça
indígena, bem como os direitos dos eleitores. Por volta de 1992, o processo eleitoral
para caciques passa a ser regulado por esse regimento. Antes disso, conforme me
informaram, a eleição era “a eleição do milho e do feijão”, havendo dois candidatos a
cacique presidente, a comunidade depositava na urna, ou um grão de milho, ou de
feijão, que corresponderia a um ou ao outro candidato escolhido. O método de
cédulas eleitorais, “como fazem os brancos”, substituiu a eleição do milho e do feijão
por considerarem que assim há mais idoneidade no procedimento, diminuindo a
possibilidade de fraudes.
A legislação interna é composta por III Títulos e XI Capítulos. No Título I: “Da
Organização Política”, os artigos 1º e 2º estabelecem que a TI é regulada em regime
especial “que regulamenta os efeitos Jurídicos Eleitorais Indígenas Xokleng/ Lã
Klãnõ.” (LEGISLAÇÃO INTERNA XOKLENG, 2008, p. 2). Com esta frase, verifiquei
em campo que o regime especial significa que são essas as leis que valem em todo
o território indígena Xokleng-La Klãnõ.
Os Xokleng constituem seu sistema político para ordenar seu próprio mundo,
espaço-mundo que, nos últimos 94 anos, de uma maneira mais intensa e
perturbadora, pareceu que se iria esfacelar, passando por mudanças bruscas,
despojamentos territoriais, mortes, entrada de estrangeiros, com os quais
estabeleceram matrimônios e rivalidades, e também pela barragem que “brotou” em
cima de suas casas, sem seu consentimento, ou escolha, dividindo sua aldeia e
repartindo sua unidade.
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Observo que neste artigo fica claro que em reação à separação da aldeia, que
era uma só antes da barragem, os Xokleng respondem também com uma
construção, a de uma lei que visa garantir a unidade de seu povo e impedir que a
distância geográfica que passam a enfrentar seja lida em termos de separação.
A história Xokleng é marcada por despojamentos territoriais, mortes,
separações, que foram estabelecidos exatamente por intermédio de leis, de
portarias do SPI e, posteriormente, da FUNAI, que não eram suas e que, ainda
assim, puderam exercer poder sobre o seu mundo, tornando verdadeiro e real o
escrito contido em um papel. Com isso, fizeram a sua própria interpretação do que
eram as leis: um instrumento de poder. E, como faz parte da dinâmica cultural da
maior parte dos povos, tomar para si o que se apresenta significante para os
significados de sua própria cultura, tomaram para si este “instrumento ritual” tão
poderoso, subjetivando-o ao seu modo, impingindo, no mesmo, seus sentidos e
transformando-o de acordo com a sua própria cosmopráxis. Dessa forma,
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A barragem é iniciada em 1976 e inaugurada em 1992.
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[...] o que a história faz dos povos indígenas é inseparável do que estes
povos fazem da história. Fizeram-na, antes de mais nada, sua; e se não a
fizeram como lhes aprouve – pois ninguém o faz –, nem por isso deixaram
de fazê-la a seu modo – pois ninguém pode fazê-la de outro (PROJETO
PRONEX/NUTI, 2003, p. 14).
relação chamada direito. Trouillot (apud RESTREPO; URIBE, 2000) irá dizer que as
narrativas históricas produzem silêncios que são significativos. O direito fez-se em
constituições e constitucionalismos responsáveis por mentir e calar, naquilo que
Dussel (1993, p. 44) chamaria de encobrimento do outro, apresentado o outro como
bárbaro e forçando-o a se incorporar a totalidade dominadora:
REFERÊNCIAS
COLAÇO, Thaís Luzia. O despertar da Antropologia Jurídica. In: Thais Luzia Colaço
(Org.). Elementos de Antropologia Jurídica. Florianópolis: Conceito, 2008. p.13-
40.
NIGRO, Cintia. Para Além das correrias – Desafios Socioambientais no Alto Vale do
Itajaí. In: RICARDO, Fany (Org.). O desafio da sobreposição - Terras Indígenas &
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SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz: Poder tutelar, indianidade
e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.