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Rose Noire
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Gustavo Martins
Ôncontáveis pétalas negras voavam no vento escarlate. As chamas azuis rugiam
furiosas ao passo em que tudo se desfazia perante seu toque. Milhares de gritos
desesperados ecoavam por toda a cidade numa sinfonia infernal. E no centro de tudo um
demônio cantava uma melodia maligna com um sorriso desesperado estampado em sua
face.

O vento frio do outono fazia farfalhar as folhas secas das árvores e a cortina
cinzenta de nuvens impedia que a luz do Sol chegasse ao chão. Naquele momento em
que todos desejavam estar em suas casas uma criança olhava o mundo sem cor através
de uma janela suja. Nada naquela paisagem morta a interessava, porém tampouco
importavam as palavras daquele homem vestido de preto.

Por um instante pensou ter ouvido alguém lhe chamar, porém descartou a
hipótese. Ninguém nunca falara com ela e não acreditava que seria agora o momento em
que isso ocorreria. Voltou a desligar-se do mundo quando sentiu uma forte pancada
atingir-lhe as costas. A dor ardente se espalhou rapidamente e teve de se esforçar para
não gritar. Olhou para o causador daquilo e encontrou o homem de preto fitando-a
furioso. A garota sentiu seu peito arder e seus olhos incharem. Aquela dor, aquela
sensação horrível que lhe rompeu a carne, fora causada por aquele homem. Correu o
olhar pela mesa, parando-o sobre o compasso de ponta afiada. Aquele objeto pequeno e
frágil poderia facilmente atravessar o corpo de alguém com apenas um pouco de esforço.
Um golpe único, leve e limpo e estaria tudo acabado. Só precisaria segurá-lo
firmemente, impulsioná-lo contra o peito daquele homem e então estaria feito. Simples
assim. Sabia que poderia fazê-lo, tinha certeza daquilo, porém abaixou a cabeça,
respirou profundamente e balançou a cabeça em sinal de negativa. O professor falou
algo mais e a garota limitou-se a consentir mecanicamente, tentando manter-se sobre
controle. Era doloroso, mas era melhor assim.

Após o fim das aulas a garota apressou-se no caminho de casa. Não precisava
chegar lá rapidamente, porém não podia demorar-se naquele caminho. Quando chegou à
uma esquina retrocedeu instintivamente ao ver o pequeno grupo de garotos que lá estava
formado. Só restavam duas ruas entre aquele ponto e sua casa, se corresse um pouco
poderia chegar lá em pouco tempo. Para isso, entretanto, teria de passar pelo círculo de
meninos e não queria se arriscar.

Levantou a manga da blusa e olhou para o agora cicatrizado corte resultante da


ultima vez que entrou no caminho daqueles garotos. Não sabia se resistiria a outra
situação como aquela então apenas sentou-se num canto, esperando-os irem embora.

Por várias e várias horas permaneceu imóvel naquele lugar, esperando


pacientemente. A noite já caía quando o grupo enfim se dispersou. A garota olhou em
volta, receosa, e não viu mais ninguém. Ainda assim aguardou por alguns minutos antes
de retomar a caminhada. Antes que pudesse respirar aliviada, porém, sentiu algo lhe
atingir a nuca. Ao cair no chão, imobilizada pela dor e pelo choque, conseguiu
esforçadamente levar a mão à cabeça. Para seu terror sentiu-a molha num líquido quente.
Olhou incrédula para os dedos avermelhados e segurou-se para não gritar. A dor e a
fúria, entretanto, faziam daquela uma tarefa cruel e, quando a risada debochada
daqueles garotos chegou aos seus ouvidos, entregou-se à fúria. Ergueu-se do chão e
fitou cada um dos agressores. Estes por sua vez entreolharam-se confusos, mas ao
mesmo tempo alegres por após tanto tempo terem conseguido fazê-la se descontrolar.
Em sua risonha arrogância não puderam perceber a expressão vazia que tomara o rosto
da garota que, em seu caminhar suave, aproximou-se do grupo. Sua presença fora
notada apenas verem-na sussurrar algo no ouvido do mais velho. Um silêncio mórbido
parou sobre o local quando, logo após o ciciar, o garoto mais velho atingiu um violento
soco em um dos seus colegas. A expressão de medo que tomou o rosto dos garotos logo
se desfez numa fúria animalesca. Aquele gesto de traição fora o suficiente para iniciar
uma luta entre os garotos. E saindo do lugar algo que vagamente lembrava um sorriso
podia ser visto na garota.

Logo que chegou á sua casa foi prontamente atendida pela mãe desesperada. No
curto percurso entre o local onde fora ferida e aquele onde agora se encontrava o
ferimento teve tempo de fazer verter uma quantidade grande de sangue.

O curativo feito entre várias perguntas e ofensas pela sua mãe ajudou a estancar
o sangramento, porém nem mesmo os analgésicos conseguiram diminuir a dor. O rosto
empalidecido pela perda de hemoglobinas pairava sem vida por sobre a comida que lhe
haviam oferecido. Por mais que sentisse fome não conseguia comer e por mais que a
mãe gritasse não conseguia responder às suas questões. Tudo aquilo pesava em sua
mente e não fazia idéia de por quanto tempo mais poderia suportar.

Após muito tentar resignou-se a subir ao quarto sem comer. Lá, deitada sob o
lençol cor-de-rosa, olhou o mundo através da janela. O frio mórbido do outono a fazia
sentir-se deprimida a um nível quase insuportável. Os galhos ameaçadores das árvores
desnudas balançando sombriamente na noite apenas tornavam toda aquela situação
ainda pior. Sim, por quantas noites permanecera acordada por culpa daquele som
aterrorizante e dos gritos.

Ah, os gritos. Amargos marcos da dor, glorificação da agonia e do desespero.


Temia-os, era um fato, mas amava-os. Havia algo em sua sombria tonalidade e em sua
infinita desesperança que a encantava. Não conseguia compreender sua sede pelo
sofrimento alheio, entretanto tinha completa noção de quão anormal isso era. Já se
repreendera muitas vezes por pensar assim e em todas elas jurou mudar. E em todas elas
quebrou o juramento solene. Aquele cruel sadismo fazia parte dela e não importava
quanto tentasse, não podia livrar-se dele.

Após algumas horas ouviu o barulho alto da porta se chocando contra a parede,
prelúdio dos gritos e de mais uma noite de terror. Aquele som irritante, oco e frio
significava que aquele homem chegara, novamente, fora de si. Os primeiros gritos que
então ouviu não carregavam o desespero que amava, mas apenas uma raiva embriagada
e imunda. Seguiram-se as pancadas abafadas e o quebrar de objetos de tantas outras
vezes. Tudo estava igual ao que sempre fora. Ao menos até o momento em que o
homem chamou-a a cozinha. Era a primeira vez que era chamada por ele durante um de
seus momentos de descontrole.

A garota desceu as escadas, trêmula. Não sabia a razão de ser chamada, mas a
imagem do rosto ensangüentado da mãe sob o punho fechado daquele homem ocorreu-
lhe. Temia que aquela fosse a razão dele tê-la chamado à sua presença. Dominada por
esses pensamentos recuou um passo. Sua respiração pesava e seu coração batia
loucamente. Olhou para a porta entreaberta do quarto. A luz da lua atravessava a janela
e caía sobre ela. O frio brilho branco parecia chamar-lhe e aquele era um pedido que
não ousaria recusar. Correu novamente para cima e foi até o limite de seu corpo juvenil
ao ouvir a voz do homem vinda do início da escadaria. Atirou-se dentro de seu cômodo
e trancou a porta.

Estava segura. Lá dentro ele não poderia lhe fazer mal algum. Respirou
profundamente para que seu coração voltasse ao ritmo normal. Olhou para a lua cheia
que brilhava na abóboda celeste e agradeceu-a pela proteção que concedera. Antes que
pudesse se recuperar por completo, porém, sentiu a porta tremer atrás de si e um
estampido alto e seco partir-lhe os ouvidos. No segundo impacto viu seu corpo ser
jogado com força contra o chão enquanto pedaços da madeira da porta se espalhavam
por todo o aposento.

A mente da garota levou alguns segundos para compreender a situação em que


se encontrava. Esfregou as mãos no tapete de felpo, tentando localizar-se. Quando
finalmente se recompões sentiu um forte aperto no pescoço e uma batida nas costas.
Abriu os olhos e soltou um grito abafado. Viu então que era o homem que a segurava e,
na porta, sua mãe assistia a cena passivamente. A garganta que ardia, a sensação de
asfixia e a traição da mãe eram demais para ela. Por muito tempo resistiu, porém pouco
a pouco sua consciência se esvaia na escuridão dando lugar a outra coisa. Em meio à
dor e ao desespero a garota sentiu queimar em seu peito uma chama negra. Em meio a
escuridão e à desgraça ela se libertou do abraço da morte. Em meio ao mar de chamas
negras que se tornara a casa ela sorriu pela primeira vez.

Em poucos minutos o incêndio que começara numa casa do subúrbio da cidade


se alastrou por todo o centro urbano. O odor dos corpos carbonizados se espalhou por
dezenas de quilômetros. Ôncontáveis pétalas negras voavam no vento escarlate. As
chamas azuis rugiam furiosas ao passo em que tudo se desfazia perante seu toque.
Milhares de gritos desesperados ecoavam por toda a cidade numa sinfonia infernal. E no
centro de tudo um demônio cantava uma melodia maligna com um sorriso desesperado
estampado em sua face.

Naquela noite o inferno viera à terra através do coração despedaçado de uma


garota. Naquela noite uma rosa negra floresceu regada pelo sangue de milhares.

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