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Superstições, O Barbeiro, Hegel e Marx.

O senso comum é de uma beleza muito peculiar! A verdade é essa. É passado, presente e
presente cultural! Incrível de embasbacar. E nesse quesito, minha vó me surpreendeu ontem à
noite:

- Meu filho...

- Oi, vó!! – fui logo cortando caminho direto aos beijos e abraços!

- Meu filho... Deixa eu te olhar direitinho.

Como num tudo bem, deixei que ela me examina-se, parecia que alguma coisa estava errada...
No mais supremo silêncio, apertou um pouco os olhos, fez um leve bico e levou as mãos ao
queixo, como um perito experiente. E, de repente, deu um grito:

- MEU FILHO, ESTÃO ROUBANDO TUA VITALIDADE!!! – levou as mãos à cabeça.

Arregalei os olhos, coração bateu mais forte...Tenso, pensei logo em certos trabalhos,
macumbas e situações do gênero. Nossa!! Sem demora, perguntei:

- QUEM, VÓ?! MEU DEUS, O QUE A GENTE FAZ?!

Séria, apertou levemente meus ombros, e disse:

- Meu filho, seus cabelos...Seus cabelos estão sugando sua vitalidade!

“AHHHH, É ISSO?!” Gritei nos meus pensamentos enquanto ela continuava.

- ... O que a gente faz, oras... A gente corta, meu filho!

Acordei cedinho no dia seguinte, realmente o cabelo me deixava arreliado. O tempo todo
coçando o casco suado...Ô!!! Cosc cosc! Peguei carona com mamãe, que também queria me
ver quanto antes com “cabelo arrumadinho, né, Glauco?!”. Tudo bem, já estou convencido.

E o Vinhais é farto em cabeleireiros, eu gosto do meu bairro, muitos amigos. 2, 4, 7... Acho que
conheço uns 12 cabeleireiros masculinos. O que costumo cortar estava fechado. Cosc cosc!
Domingão, 7 e 30 da manhã, nessa hora, normalmente estaria dormindo mesmo!

Demos uma passada num que fica quase ao lado, lembrei que eles ofereciam até uma
massagem capilar antes de cortá-los!! Deve ser pro fio ficar mais maleável... Cosc cosc! Não
entendo de cabelo. Entrei, ele cumpria a tradição, estava na fase de enxágüe.
“Shhhhhhhhhhhhhhhhhiiiiiiaaaaaaaaaaaaaa”. Perguntei o preço, ele respondeu. Não acreditei,
“deve ser porque não tomei café!”.
- Desculpa, mas pode repetir?! Cosc cosc!

Ele respondeu o preço de outrora... E retruquei:

- Ah tá. Obrigado!

Parece que ele também mantém a tradição dos preços altos. Alertei mamãe que ele tinha
inaugurado os 20 no Vinhais há 2 anos. Andamos mais um pouco... Pelo menos 6
estabelecimentos se encontravam naquela avenida... Gasolina queimava e quebrou-se o
silêncio:

- Meu filho, estou atrasada. Se não for esse, é casa, com ou sem esse “Cosc cosc”!

Engraçado, encontramos um dos donos indo justamente abrir a barbearia.

Entrei, sinalizei o pagamento:

- Nã, só pague depois, se gostar!

- Ah, maravilha!

Cumpriu também seu ritual, colocou a capa, pegou as tesoura, tesourinha e tesourão, a gilete,
talco e dispôs sobre a mesa lado a lado.

- Como vai ser?

- Rapaz, tesoura, nem baixinho nem grandinho. Mediano!

- Fechado.

Não parecia um desafio, ainda mais quando se tratava de um dos fundadores da barbearia
mais antiga do bairro.

- Como é que vai teu irmão? – Gomes perguntou.

- Bem, nesse momento, às 7 e 50, com certeza está dormindo...

- Tu é o mais novo ou o mais velho?

- Ah, meu irmão tem 15 – aquele a qual Gomes se referia – e eu tenho 19.

- Ah sim! Vocês cortavam aqui há muito tempo atrás. Tanto tempo que não sabia mais quem
era quem!

- É verdade! – dei um sorriso, pensei um pouco na efemeridade do tempo... Caramba! Acho


que o primeiro lugar que cortei cabelo foi aqui! E naquela época, eu não tinha essa entrada na
direita, nem a carência no meio...

Parei por uns minutos, e continuei:


– Sabe, meus primos também cortam aqui!

- É verdade. Os 3, né? O 4° se casou e faz tempo que não vejo!

“Realmente ele conhece os clientes! O quarto havia se casado... E também trocado de


barbeiro! Cortava agora pertinho de casa, em um 2 irmãos.”

- Muito tempo cortando, hein? – Perguntei o óbvio.

O cabelos escuros e alguns brancos respondeu:

- Ô! Faz tempo!

Situações inusitadas...Nunca deixo de perguntar, seja qual for a profissão ou atividade!


“Delegado, esse negócio de tiroteio, perseguições, é só na TV?”, “Caríssimo, qual o caso que
marcou sua estadia no escritório?!” ou até “Dr., alguém já passou por aqui sem cárie
alguma?”... Adaptei:

- Muitos cortes inusitados nesse tempo?

Deu um leve sorriso:

- Aham! Tem agora aqueles punks... É, como é que é... Restart... Mas pouca gente faz.

Não vou mentir, leitor, sorri também do Restart. Peculiares aqueles cortes!

E continuei...

- E de futebol? Um monte né?

- Ahh, é verdade. Quando tem um jogador que faz sucesso, tipo aquele Neymar, sai muito
corte! Principalmente pras crianças. Teve um trio que jogava na praça e o apelido de cada um
era o nome um jogador do Santos. Aí cada um trouxe uma foto do jogador e fizemos os cortes.
Era Robinho, Neymar e André. Fiz o André.

Foquei no espelho...Minhas sobrancelhas pareciam também inusitadas. Uma como um


parêntese de cabeça para baixo, até aí normal, mas a outra apontava para o lado! “Deve ser o
medo do cabeleireiro!” pensei.

Pausou, olhou para a parada de ônibus ao lado...E falou:

- Só gente trabalhadora – deu uma pausa para que eu pudesse enxergar e prosseguiu - saindo
pra trabalhar a essa hora. Agora agora, eu estaria dormindo, mas não posso... Não podemos...

Apertei os lábios calados, numa dupla lamentação, inferior e superior.

“Meu Deus... Pensava que apenas aquelas viagens, roupas e bolsas eram sinônimos de luxo.
Mas nunca havia me dado conta de como o tempo também o é...” lamentei mentalmente.

Fim de corte, admirei rapidinho o resultado e deixei transparecer:


- Gostei. Merece o pagamento!

- Sim, agora sim!

Recebeu a nota e apertamos as mãos. Nos veremos daqui a alguns meses, quando minha
vitalidade estiver sendo novamente extorquida, certamente.

Glauco

28/11/2010

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