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6 Le Monde Diplomatique Brasil setembro 2009

legalização das drogas

Tráfico, guerras
e despenalização
Racismo, xenofobia, negócios e moralismo são as raízes da atual conjuntura proibicionista.
As drogas – que sempre fizeram parte da cultura humana – foram divididas em lícitas e ilícitas
por motivos arbitrários e políticos. A problematização da proibição e a tentativa de encontrar
soluções são vitais para a superação dessa utopia punitiva
POR THIAGO RODRIGUES*

N
a passagem do século XIX para o je: apenas as drogas com uso médico com- certeiras e perdidas. Ou são detidas para − Reformar ou ousar?
século XX, drogas como a maco- provado poderiam ser legais. Logo, todos os estigmatizadas e marcadas − dificilmente Diante da constatação de que a guerra às
nha, a cocaína e a heroína não outros fins relacionados às sensações deri- deixar a prisão um dia, mesmo se forem sol- drogas não alcançou seu objetivo declarado,
eram proibidas. Ao contrário, elas vadas de estados alterados de consciência tas ou fugirem. especialistas, autoridades e personalidades
eram produzidas e vendidas livre- deveriam ser proibidos, e as pessoas rela- públicas passaram a defender a reforma do
mente ou com muito pouco controle. No en- cionadas a eles, punidas. Uma guerra na guerra proibicionismo. A partir dos anos 1980, por
tanto, passaram a ser alvo de uma cruzada Em 1972, o presidente Richard Nixon exemplo, liberais como o economista Milton
puritana, levada adiante por agremiações A produção de criminosos declarou guerra às drogas, consideradas Friedman e os editores da revista The Econo-
religiosas e cívicas dedicadas a fazer lobby Muitos criminosos foram fruto da proi- por ele uma ameaça à segurança nacional mist retomaram argumentos utilitaristas
pela proibição. Nos Estados Unidos, as cam- bição: produtores, negociantes e consumi- americana. A partir de então, os EUA se para afirmar que o uso de drogas não era o
panhas contra certas drogas psicoativas fo- dores de drogas foram lançados na ilegali- identificavam como um país consumidor ideal, mas que a proibição era pior pelos cus-
ram, desde o início, mescladas a preconcei- dade. A utopia proibicionista apostou que, de drogas produzidas em outros lugares e tos que gerava (em violência, dinheiro e vio-
tos, racismo e xenofobia. Drogas passaram a combinando leis punitivas com repressão que, por causa disso, tinha o direito de de- lação das liberdades individuais). A ilegali-
ser associadas a grupos sociais e minorias, policial, eliminaria hábitos relacionados a fender suas fronteiras e, quando necessá- dade apenas produzia criminalidade e
considerados perigosos pela população drogas que eram, muitas vezes, seculares. rio, atacar as fontes dessas substâncias. descontrole (de uso e de mercado). Então, a
branca e protestante, majoritária no país: Não conseguiu. Ao contrário, abriu um cam- Ainda que essa divisão estanque entre paí- melhor maneira de controlar as drogas seria
mexicanos eram relacionados à maconha; o po de ilegalidade que apenas cresceu nas ses produtores e países consumidores não legalizando-as. Com isso, o grande mercado
ópio vinculado aos chineses; a cocaína aos décadas de vigência da proibição. Há alguns tenha se sustentado diante das evidências ilícito seria suprimido, empresas legais po-
negros; e o álcool aos irlandeses.1 Esta últi- anos, foi veiculada no Brasil uma campanha (maconha cultivada nos EUA e no Canadá, deriam se dedicar ao negócio, o direito dos
ma, aliás, foi a primeira droga amplamente que acusava o usuário de financiar o tráfico. drogas sintéticas produzidas nesses dois consumidores seria respeitado e os impostos
visada pelos proibicionistas americanos. E No entanto, o consumo de psicoativos exis- países e também na Europa), a lógica da gerados com a tributação serviriam para fi-
com sucesso: em 1919, eles conseguiram tia antes da proibição e continuou sob ela, só war on drugs complementou o proibicio- nanciar campanhas de conscientização con-
aprovar a Lei Seca, que proibia toda a econo- que um mercado inteiro passou à ilegalida- nismo diplomático já consolidado.4 tra as drogas e para tratamento de adictos.
mia do álcool no país (produção, distribui- de e, com isso, inúmeras pessoas, com seus Como numa efetiva guerra, os Estados Friedman e a The Economist defende-
ção, venda, consumo, importação e expor- hábitos e negócios, tornaram-se criminosas. Unidos investem, há quase 40 anos, na mili- ram a legalização de todas as drogas ilícitas.
tação). Pela sua abrangência e intenções, a O mercado de drogas não foi eliminado por tarização do combate ao narcotráfico. Des- Hoje, personalidades como os ex-presiden-
Lei Seca é considerada o paradigma do proi- decreto nem por repressão. Assim, o que fi- de as ações bélicas americanas nos Andes, tes Fernando Henrique Cardoso e Ernesto
bicionismo: a meta de extinguir completa- nancia o tráfico de drogas não é o usuário, na década de 1980, passando pelo Plano Co- Zedillo (México) defendem a descriminali-
mente das práticas sociais uma substância mas a proibição. lômbia, lançado em 1999, até à recente Ini- zação do uso das chamadas “drogas leves”,
psicoativa e os hábitos relacionados a ela. Na busca por extinguir perigos para a ciativa Mérida – versão mexicana do plano principalmente da maconha. Descriminali-
Extirpar o vício. sociedade, a proibição acabou por crimina- colombiano, iniciada em 2008 –, bilhões de zar o uso significa não tratar o usuário como
Quando a Lei Seca foi aprovada, a mo- lizar condutas, mas nem todos, na prática, dólares têm sido destinados para o combate criminoso, o que não implica “deixá-lo li-
vimentação internacional proibicionista são alvos da lei. Seletivamente, a maioria dos militar ao narcotráfico. E, ainda assim, o vre”: ao ser considerado “usuário”, o indiví-
tinha dado seus passos iniciais. Em 1909, novos criminosos foi encontrada entre as mercado ilícito de drogas não deixou de se duo passa a ser capturado por um circuito
aconteceu em Xangai, China, a primeira classes pobres (negros, nordestinos, mexi- adaptar e expandir. de penas alternativas (prestação de serviços
conferência internacional para discutir o canos etc.) e entre subversivos (contestado- Desse modo, a guerra às drogas, alçada à à comunidade ou, até mesmo, tratamento
controle de drogas, mais especificamente res, hippies, artistas e “desajustados”). Nos posição de questão geopolítica crucial neste médico compulsório). Para os traficantes
do ópio e seus derivados (como a morfina e Estados Unidos, a maioria dos presos por início do século XXI, se apresenta infindável permanece a punição prisional, e para as
a heroína). Cedendo a pressões dos EUA, crimes relacionados a drogas é negra ou his- em sua violência e muito interessante para drogas, mantém-se a proibição.
países como o Reino Unido, França, Ale- pânica, apesar de ambos os grupos serem potencializar negócios: a indústria bélica Tanto os argumentos liberais quanto
manha e Holanda, cujas empresas colo- minorias no país3 Uma pesquisa nos dados vende para os dois lados (traficantes e forças tais discursos a favor da descriminalização
niais lucravam muito com o comércio de prisionais brasileiros revelaria algo similar, de segurança); as indústrias químicas, idem não são apologistas das drogas. Pelo contrá-
ópio, comprometeram-se vagamente a li- com negros, mulatos, favelados e migrantes (por exemplo, precursores para a fabricação rio, consideram os psicoativos nocivos e in-
mitar seu negócio. Apesar de pouco objeti- sem dinheiro. Quase todos muito novos. de psicoativos e desfolhantes para fumegar desejáveis. Dessa forma, poderíamos dizer
va, a conferência foi o primeiro de uma sé- Jovens pobres são convocados pelos plantações de coca); as empresas de segu- que, em geral, esses pontos de vista são des-
rie de encontros diplomáticos que chamados partidos ou comandos do crime rança privada protegem criminosos e oleo- favoráveis ao consumo, mas consideram o
aprofundaram as limitações probicionis- como soldados e aspirantes a chefetes efê- dutos, enquanto os bancos lavam dinheiro. proibicionismo um modo pouco eficaz para
tas, até que, em 1961, a Convenção Única da meros. Jovens pobres se alistam como solda- O combate ao narcotráfico se constituiu co- controlá-lo. Seus defensores argumentam
ONU (Organização das Nações Unidas) dos das forças policiais e almejam ingressar mo uma guerra em muitas: em vielas, fave- que seria preciso considerar as drogas como
universalizou o proibicionismo2 Esse trata- em tropas de elite para lutar contra o narco- las, fronteiras e através das fronteiras. E um problema de saúde pública e não de se-
do consolidou o modo de lidar com psicoa- tráfico. Na guerra cotidiana entre polícia e quanto mais se aposta na utopia proibicio- gurança pública.
tivos ilegais – e as pessoas envolvidas com traficantes, e entre grupos rivais do tráfico, nista, mais rentável e interminável a guerra Nesse sentido, a nova lei brasileira sobre
eles – que, em linhas gerais, perdura até ho- pessoas vão sendo eliminadas com balas às drogas tem se mostrado. drogas – aprovada em 2006 e que segue proi-
setembrO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 7

debates em curso
bicionista – estabelece que a quantidade de O filósofo Michel Foucault afirmou que POR MARCO MAGRI*
droga flagrada com alguém determinaria se o frustrava que “sempre o problema das dro-
a pessoa é “usuária” ou “traficante”. Como gas seja tratado em termos de liberdade ou O debate sobre uma reforma nas políticas e leis de drogas não está sendo pautado, na
essa lei não define esses números, no dia-a- proibição”. Isso, porque, segue Foucault, “as mídia e no governo, por acaso. Após reunião das Nações Unidas, realizada em março deste
dia fica a cargo dos policiais e do delegado drogas são parte de nossa cultura. Da mes- ano em Viena, que avaliou a última década de políticas internacionais sobre drogas, diversas
registrar a categoria. Nessa brecha, segue a ma forma que não podemos dizer que so- ações começaram a ganhar notoriedade e publicidade no país.
prática da seletividade penal, marcando a mos ‘contra’ a música, não podemos dizer A constatação de que não existe mais um consenso mundial sobre a política de drogas foi
diferença social e de cor entre “usuários” e que somos ‘contra’ as drogas”7. essencial para que diversas iniciativas pouco conhecidas ganhassem espaço no debate. Pa-
ralelamente à agenda oficial, a política proibicionista de guerra às drogas já era criticada du-
“traficantes”. Hoje, é provável que aquele A busca de soluções universais é o vício
ramente no Brasil por diversos setores e movimentos.
que não se enquadre no estereótipo de “usu- que aflige até mesmo sinceros críticos da
O conceito de “redução de danos”, que agora faz parte do vocabulário de todos que tra-
ário” ou “traficante” não tenha problemas proibição. E há traficantes de sonhos e pro-
balham com o assunto, cresceu e tem sido amplamente citado como alternativa aos fracos
com a polícia. Para quem não tem essa sorte postas aos borbotões. No entanto, a tarefa resultados das políticas de abstinência. No sistema de saúde, esta abordagem tem tido resul-
ou recursos (para eventuais subornos ou ad- de problematizar o proibicionismo e as tados surpreendentes em comparação com seus investimentos ainda escassos. Com uma
vogados), o proibicionismo funciona. E fun- propostas antiproibicionistas parece vital estratégia muito mais próxima do usuário de drogas, a redução de danos tem conseguido
ciona seletivamente, sustentando a violên- para que essa utopia punitiva não seja con- trazer de volta aqueles cidadãos abandonados pelas políticas públicas em geral. Além disso,
cia e grandes negócios. traposta a outras soluções também preten- entre os dependentes, o tratamento sustentado é muito mais eficaz e tem tido resultados
Saber que a proibição se estruturou his- samente universais. Essa tarefa é incômo- sensivelmente melhores. Neste campo, a Aborda (Associação Brasileira de Redutoras e Re-
toricamente a partir de camadas de moralis- da, mas importante para mostrar como a dutores de Danos) tem sido responsável por articular nacionalmente os redutores de danos
mo, racismo, seletividade penal e preocupa- proibição não é natural ou inevitável. Ela engajados em uma mudança no paradigma do tratamento dos usuários de drogas.
ção com a saúde pública é fundamental para tem uma história política que é preciso co- As universidades e a produção acadêmica em geral têm papel fundamental na constru-
que o debate sobre as drogas seja problema- nhecer para enfrentar. ção da crítica ao proibicionismo. São diversos os pesquisadores que nos últimos anos se de-
tizado, evitando as polêmicas estéreis e sen- dicaram a demonstrar cientificamente que a guerra às drogas é uma batalha perdida, que um
sacionalistas que geralmente dominam a *Thiago Rodrigues é professor credenciado do Progra- mundo livre de drogas nunca existiu e que são muitas as esferas responsáveis pelo debate
discussão. É importante para que se tenha ma de Pós-graduação em Estudos Estratégicos da Uni-
desta questão, não somente a do direito penal. Entre os principais atores deste processo está
o Neip (Núcleo de Estudos Interdisciplinar sobre Psicoativos) e o IBCCRIM (Instituto Brasileiro
em mente que passos estratégicos podem versidade Federal Fluminense, membro do Nu-Sol/PUC-
de Ciências Criminais). Estes grupos respondem pela produção de conhecimentos que propi-
ser dados para enfrentar o proibicionismo, SP e pesquisador associado ao NEST/UFF e GAPCon/
ciam uma crítica fundamentada na pesquisa científica, com reconhecimento internacional.
sem considerar propostas de legalização ou Ucam. É coordenador licenciado do Curso de Relações
A sociedade civil tem sido também essencial na construção da crítica ao modelo proibi-
de descriminalização do uso como pana- Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (Fasm). cionista e na proposição de novas plataformas para a política de drogas. A organização não
ceias progressistas deslocadas das práticas governamental Viva Rio tem ações voltadas, especificamente, para essa questão, e atuação
sociais e históricas em que se inscrevem. constante nos debates nacionais e internacionais. A ONG Psicotropicus também tem tido
O psiquiatra americano Thomas Szasz participação forte no debate, incluindo temas como violência urbana e criminalização da po-
1 Antonio Escohotado, Historia elemental de las drogas,
provocou discussão ao afirmar que a verda- Barcelona, Anagrama, 1996. breza, relacionando-os com o tráfico de drogas.
deira legalização das drogas aconteceu 2 William McAllister, Drug diplomacy in the twientieth Em outras regiões do país, movimentos começam a debater a política de drogas de ma-
quando substâncias que não eram regula- century, Nova Iorque, Routledge, 2000; e Thiago Rodri- neira descentralizada. Em Salvador, a Ananda desempenha papel fundamental na articulação
das pelo direito passaram a sê-lo diretamen- gues, Narcotráfico, uma guerra na guerra, São Paulo, dos redutores de danos locais, pesquisadores acadêmicos e ativistas pró- legalização. Em São
Desatino, 2003. Paulo, o Coletivo D.A.R (Desentorpecendo a Razão) recentemente iniciou debates sobre po-
te pela via da proibição.5 As bases mais ele-
3 Ver John S. Robey, “A war on drugs or a war on minori-
mentares do proibicionismo – moralismo, lítica de drogas e tem avançado na articulação local a partir de uma concepção que respon-
ties?” em Stuart Nagel (org.), Handbook of legal policy,
racismo, defesa de uma certa saúde univer- Nova York, Marcel Dekker Inc., 2000. Consulte também
sabiliza o proibicionismo pela violência do crime e do Estado.
sal – não são abaladas por propostas de lega- Beatriz Labate, Sandra Goular, Mauricio Fiore, Henrique Realizada desde 2007, a Marcha da Maconha foi às ruas pedir a legalização e encontrou
Carneiro e Edward McRae (orgs.), Drogas e cultura, no- forte resistência sob a acusação de apologia ao crime e ao tráfico de drogas. Com a argumen-
lização para o mercado ou descriminaliza-
vas perspectivas, Salvador, Edufba, 2008. tação de que a proibição da Marcha fere o direito de liberdade de expressão, a Procuradoria
ção que mantém a proibição. Seria então o 4 Edson Passetti, Das “fumeries” ao narcotráfico, São Pau- Geral da República levou ao Supremo Tribunal Federal a questão, que deve ser analisada nos
caso de tentar um deslocamento, uma mu- lo, Educ, 1991; e Thiago Rodrigues, Política e drogas nas próximos meses. Segundo notícias e declarações de integrantes do Governo, do Parlamento
dança de ângulo, reparando nos argumen- Américas, São Paulo, Educ/Fapesp, 2004.
e do Judiciário, podemos vislumbrar uma tentativa, ainda neste ano, de mudança em alguns
tos dos abolicionistas penais, como o jurista 5 Thomas Szasz, Nuestro derecho a las drogas, Barcelona,
pontos da Lei de Drogas, ou na política de drogas em geral.
holandês Louk Hulsman, que diante do ex- Anagrama, 1993.
6 Para discussão sobre a perspectiva abolicionista penal, É somente a partir do enraizamento sem preconceitos deste debate na sociedade que se
cesso de penalizações e soluções pretensa- consulte o site do Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu- poderá vislumbrar um contexto no qual os problemas decorrentes do abuso no uso de drogas
mente universais, nos convidou a pensar fo- Sol) – www.nu-sol.org – em especial os “Verbetes aboli- sejam resolvidos longe da esfera da militarização e do direito penal. Abandonar o paradigma
ra do campo penal, despenalizando condutas cionistas” e as edições da revista Verve. Consulte também da proibição significa construir uma regulação que respeite o princípio constitucional da auto-
e situações para encontrar encaminhamen- Edson Passetti (org.), Curso livre de abolicionismo penal, nomia do individuo, defenda e promova os direitos humanos dos usuários de drogas e que não
Rio de Janeiro/São Paulo, Revan/Nu-Sol, 2002. atue como causa ou justificativa de violência por parte do crime e do Estado.
tos singulares que solucionem situações
7 Michel Foucault, “Michel Foucault, uma entrevista:
particulares, utilizando, por exemplo, re- sexo, poder e política”. Tradução de Wanderson Flor do
cursos do direito civil, como a conciliação e Nascimento. Em Verve, São Paulo, Nu-Sol, v. 5, 2004,
*Marco Magri, cientista social, membro dos Coletivos Marcha da Maconha e D.A.R.
as compensações6. pp. 264-65.

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