Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Segunda face
Há uma ruptura na lógica do discurso: como numa montagem
cubista, o poema introduz aqui o mesmo tema enfocado sob
outro ângulo, como acontecerá nas estrofes subseqüentes. O
indivíduo desajeitado, o gauche da primeira estrofe é agora
colocado diante do desejo amoroso.
Anote!
Como em toda a obra drummondiana, o desejo
amoroso é problematizado, tratado como algo
incompreensível, que transfigura o mundo e o
sujeito.
Terceira face
O poeta gauche mostra-se espantado diante de um mundo que
ele não compreende ("Para que tanta perna, meu Deus, pergunta
meu coração"). É como se o poeta buscasse e ao mesmo tempo
desistisse de encontrar um nexo nas coisas aparentemente
banais do mundo (o coração indaga, mas os olhos não
perguntam nada). Por outro lado, a contraposição entre o coração
e os olhos exprime o conflito entre o sentimento e o desejo ou
entre o amor em sua acepção mais idealizada e o erotismo.
Observe:
É interessante observar alguns recursos de
expressão utilizados nesse poema. Na terceira
estrofe, há o uso do recorte metonímico ("pernas
brancas pretas amarelas"). A metonímia é uma
figura de linguagem que consiste em identificar
um objeto por meio de uma parte de seu todo: no
poema, "pernas" se refere, metonimicamente, às
pessoas que estão no bonde. Ainda nesse verso,
a ausência de vírgulas é um recurso utilizado para
criar a justaposição rápida de imagens e, com
isso, sugerir a simultaneidade.
No primeiro verso da segunda estrofe, a imagem
"as casas espiam os homens" pode ser
interpretada de duas formas: ou como uma
prosopopéia – figura de linguagem que consiste
em atribuir qualidades animadas a seres
inanimados ("as casas espiam") – ou como uma
metonímia, em que o vocábulo "casa" se refere às
pessoas que moram na casa.
Quarta face
O poema apresenta o confronto entre o eu e o outro, tema
amplamente desenvolvido em livros posteriores de Drummond.
Aqui o tema do desajustamento é reforçado: o "eu todo retorcido",
o gauche da primeira estrofe é colocado diante de um mundo
feito de convenções, de falsas aparências, simbolizado no poema
pela imagem do "homem atrás do bigode", o homem forte,
seguro, convencional, adaptado.
Quinta face
O poema apresenta um dos temas mais freqüentes na literatura
contemporânea, o tema do homem "abandonado por Deus" em
uma sociedade em que o avanço da ciência e da tecnologia
colocou em xeque a noção de Deus. É importante observar que o
poema faz uma referência às palavras de Cristo na cruz: "E perto
da hora nona deu Jesus um grande brado, dizendo: Eli, Eli,
lamma sabachthani? Isto é: Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?" (Bíblia, Mateus 27:46).
Sexta face
O poema apresenta o tema do "espanto diante do mundo". O
poeta gauche assume uma postura individualista diante do
mundo: seus sentimentos, seus desejos, sua interioridade são
maiores que o mundo ("mais vasto meu coração"). Há de se
observar ainda o sarcasmo diante do esteticismo e das
convenções literárias ("se eu me chamasse Raimundo / seria
apenas uma rima, não seria uma solução").
Anote!
A afirmação "não seria uma solução" apresenta
um tema que também será constante na obra de
Drummond: o tema da aporia, da falta de
respostas ou soluções para certos conflitos
humanos.
Sétima face
Há, paradoxalmente, uma negação do arroubo sentimental da
estrofe anterior ("mais vasto meu coração"). Aqui surge mais um
tema que será constante na obra de Drummond: a negação da
subjetividade; o poeta como que sente uma abjeção com relação
a um eu que insistentemente invade seus poemas. (Sobre essa
questão, é importante observar que, na primeira estrofe, o eu
lírico do poema refere-se a si mesmo na terceira pessoa – "Vai,
Carlos!, ser gauche na vida!"). Dessa forma, o eu lírico atribui o
arroubo sentimental da estrofe anterior aos eflúvios lunares e à
embriaguez ("mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente
comovido como o diabo").
Há, portanto, no poema, um tratamento fragmentário e cubista do
mesmo tema: o conflito entre o indivíduo e o mundo.
Para lembrar:
Na estética cubista, o objeto é representado sob
diversos aspectos, simultaneamente, a partir de
perspectivas diferentes. O Cubismo surgiu em
1907, com a tela Les Demoiselles d'Avignon, de
Pablo Picasso. Na literatura, o grande
representante foi Guillaume Apollinaire, com
obras como Álcoois (1913) e Caligramas (1918).