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Homem–mundo: "Poema de sete faces"  

O "Poema de sete faces" é o texto de abertura de Alguma


Poesiae tornou-se tão célebre quanto "No meio do caminho". É
um dos poemas mais conhecidos e comentados da obra de
Drummond. Apresenta um dos temas centrais da poesia
drummondiana, a relação difícil e conflituosa entre o indivíduo e o
mundo. Esse embate entre o ser e o mundo já se estabelece na
forma: o poema é fragmentário, feito de rupturas e justaposições,
refletindo a dificuldade de o indivíduo compreender e conceber o
mundo de forma unitária e lógica. Como num retrato cubista,
cada uma das estrofes do poema representa uma face dessa
relação problemática entre um "eu todo retorcido" e o mundo. O
poeta apresentado pelo poema é um poeta gauche, desajustado,
inadaptado a um mundo que ele não compreende e, por isso,
coloca-se à distância desse mundo, como mero observador,
assumindo uma posição individualista e irônica. 
Para compreender melhor essas questões, vejamos o poema:   
 
Poema de sete faces

“Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos!, ser gauche na vida.

As casas espiam os homens


que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:


pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu
coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode


é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus por que me abandonaste


se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo


se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer


mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.”
Primeira face
O poema apresenta o poeta gauche, desajeitado, inadaptado. O
poema inverte o tema romântico do poeta como o gênio
incompreendido: o poeta altivo, grandioso, dos românticos,
aquele que se mostra acima da mediocridade humana, é aqui
apresentado, parodicamente, como um ser frágil, inepto, ridículo,
inadaptado não pela sua altivez, mas pelo seu desajeitamento. A
sua condenação não é obra de um deus que o consagra a ser o
"iluminado", o "gênio", mas sim de um "anjo torto", um anjo que
não vive no mundo iluminado e harmonioso dos deuses, mas na
sombra, na obscuridade.

Segunda face
Há uma ruptura na lógica do discurso: como numa montagem
cubista, o poema introduz aqui o mesmo tema enfocado sob
outro ângulo, como acontecerá nas estrofes subseqüentes. O
indivíduo desajeitado, o gauche da primeira estrofe é agora
colocado diante do desejo amoroso.  

 Anote!
Como em toda a obra drummondiana, o desejo
amoroso é problematizado, tratado como algo
 
incompreensível, que transfigura o mundo e o
sujeito.

Terceira face
O poeta gauche mostra-se espantado diante de um mundo que
ele não compreende ("Para que tanta perna, meu Deus, pergunta
meu coração"). É como se o poeta buscasse e ao mesmo tempo
desistisse de encontrar um nexo nas coisas aparentemente
banais do mundo (o coração indaga, mas os olhos não
perguntam nada). Por outro lado, a contraposição entre o coração
e os olhos exprime o conflito entre o sentimento e o desejo ou
entre o amor em sua acepção mais idealizada e o erotismo.
 
 Observe:
É interessante observar alguns recursos de
expressão utilizados nesse poema. Na terceira
estrofe, há o uso do recorte metonímico ("pernas
brancas pretas amarelas"). A metonímia é uma
figura de linguagem que consiste em identificar
um objeto por meio de uma parte de seu todo: no
poema, "pernas" se refere, metonimicamente, às
pessoas que estão no bonde. Ainda nesse verso,
a ausência de vírgulas é um recurso utilizado para
criar a justaposição rápida de imagens e, com
isso, sugerir a simultaneidade.
No primeiro verso da segunda estrofe, a imagem
"as casas espiam os homens" pode ser
interpretada de duas formas: ou como uma
prosopopéia – figura de linguagem que consiste
em atribuir qualidades animadas a seres
inanimados ("as casas espiam") – ou como uma
metonímia, em que o vocábulo "casa" se refere às
pessoas que moram na casa.
Quarta face
O poema apresenta o confronto entre o eu e o outro, tema
amplamente desenvolvido em livros posteriores de Drummond.
Aqui o tema do desajustamento é reforçado: o "eu todo retorcido",
o gauche da primeira estrofe é colocado diante de um mundo
feito de convenções, de falsas aparências, simbolizado no poema
pela imagem do "homem atrás do bigode", o homem forte,
seguro, convencional, adaptado.

Quinta face
O poema apresenta um dos temas mais freqüentes na literatura
contemporânea, o tema do homem "abandonado por Deus" em
uma sociedade em que o avanço da ciência e da tecnologia
colocou em xeque a noção de Deus. É importante observar que o  
poema faz uma referência às palavras de Cristo na cruz: "E perto
da hora nona deu Jesus um grande brado, dizendo: Eli, Eli,
lamma sabachthani? Isto é: Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?" (Bíblia, Mateus 27:46).

Sexta face
O poema apresenta o tema do "espanto diante do mundo". O
poeta gauche assume uma postura individualista diante do
mundo: seus sentimentos, seus desejos, sua interioridade são
maiores que o mundo ("mais vasto meu coração"). Há de se
observar ainda o sarcasmo diante do esteticismo e das
convenções literárias ("se eu me chamasse Raimundo / seria
apenas uma rima, não seria uma solução").

 Anote!
A afirmação "não seria uma solução" apresenta
um tema que também será constante na obra de  
Drummond: o tema da aporia, da falta de
respostas ou soluções para certos conflitos
humanos.
Sétima face
Há, paradoxalmente, uma negação do arroubo sentimental da
estrofe anterior ("mais vasto meu coração"). Aqui surge mais um
tema que será constante na obra de Drummond: a negação da
subjetividade; o poeta como que sente uma abjeção com relação
a um eu que insistentemente invade seus poemas. (Sobre essa
questão, é importante observar que, na primeira estrofe, o eu
lírico do poema refere-se a si mesmo na terceira pessoa – "Vai,
Carlos!, ser gauche na vida!"). Dessa forma, o eu lírico atribui o
arroubo sentimental da estrofe anterior aos eflúvios lunares e à
embriaguez ("mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente
comovido como o diabo").
Há, portanto, no poema, um tratamento fragmentário e cubista do
mesmo tema: o conflito entre o indivíduo e o mundo.  

 Para lembrar:
Na estética cubista, o objeto é representado sob
diversos aspectos, simultaneamente, a partir de
perspectivas diferentes. O Cubismo surgiu em
1907, com a tela Les Demoiselles d'Avignon, de
Pablo Picasso. Na literatura, o grande
representante foi Guillaume Apollinaire, com
obras como Álcoois (1913) e Caligramas (1918).

Les Demoiselles d'Avignon

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