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ESPECIAL MULHERES

Carreiras anticoncepcionais

IMAGEM: KIPPER

Quando se observa a distribuição do gênero entre


cargos de direção, o pêndulo oscila a favor dos
homens. Interpretações sobre esse fato destacam
a existência de injustiças no mercado de trabalho
quanto ao reconhecimento do valor e competência
das mulheres. Entretanto, a diferença pode ser me-
lhor explicada analisando-se as características de
uma carreira considerada bem-sucedida hoje e o
modo como entram em choque com a condição das
mulheres, principalmente com a maternidade.

por Maurício C. Serafim e Pedro F. Bendassolli FGV-EAESP

E m um artigo publicado em 12
de abril de 2006, a revista in-
glesa The Economist lançou uma nova
lho e pretende chamar a atenção para
o fato de que essa possível “mudan-
ça de sexo” está trazendo ganhos
plo, apenas um terço das mulheres
em idade para trabalhar tinha uma
ocupação, em geral ligada às áreas
palavra que tem grandes chances de para as economias nacionais de al- de educação, saúde e serviços sociais.
entrar para o vocabulário corrente do guns países desenvolvidos. Cinco décadas mais tarde, esse nú-
mundo corporativo: womenomics. O A tese da feminização parece mero aumentou para dois terços, o
neologismo endossa a tese da amparar-se em fatos. Nos Estados que significa que quase metade da
“feminização” do mercado de traba- Unidos dos anos de 1950, por exem- força de trabalho daquele país é

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composta por mulheres. As áreas de
atuação da mulher também se diver- Historicamente, encontramos evidências de que a carreira
sificaram, bem como melhorou seu
para as mulheres sempre esteve associada à casa, e sua
nível de educação comparativamen-
te ao dos homens. Para se ter uma identidade social e pessoal dela dependiam.
idéia desta última observação, nos
Estados Unidos, para cada 100 ho-
mens que ingressam nas universi- maior número no mercado. A segun- do século 19 com a ascensão da so-
dades há 140 mulheres. No Brasil, da razão refere-se a uma mudança es- ciedade industrial e do capitalismo
de acordo com dados do IBGE refe- trutural no perfil do trabalho ao lon- como sistema econômico, os quais
rentes a 2004, a tendência norte- go das últimas décadas: o modelo do tinham como bases ideológicas as
americana se mantém: as mulheres emprego industrial, para o qual ti- crenças no progresso social a partir
têm por aqui 8,6 anos de estudo picamente se exigem habilidades da autonomia e da liberdade con-
contra 7,6 dos homens. “masculinas” (físicas, na maioria das cedidas aos indivíduos. Anterior-
O artigo da The Economist mos- vezes), vem sendo progressiva e ra- mente, na sociedade feudal, a socie-
tra ainda que a taxa de emprego para pidamente substituído pelo empre- dade era composta por uma divisão
os homens tem declinado nas últimas go no setor de serviços, no qual ou- social rígida entre o clero, a nobre-
décadas (12% da população econo- tras habilidades, que não físicas, são za e o terceiro estado (mercadores,
micamente ativa masculina em rela- demandadas, habilidades essas par- camponeses e artesãos). Nesse tipo
ção aos anos de 1950), significando cialmente independentes do gênero. de sociedade, o indivíduo era intei-
que, ao menos em países como os Entretanto, gostaríamos neste ramente absorvido pelo grupo, ha-
EUA, há uma tendência à igualdade artigo de propor uma visão alterna- vendo raríssimas chances de mobi-
estatística entre homens e mulheres tiva sobre a relação entre mulheres lidade social. Um caso emblemáti-
na ocupação de postos de trabalho. e mercado de trabalho, uma visão co disso é o de Wolfgang Amadeus
O artigo mostra que, desde a década que talvez contrarie uma das mais Mozart (1756-1791), que, tendo vi-
de 1970, as mulheres vêm preenchen- poderosas intuições sobre o tema, a vido na transição do sistema feudal
do o dobro de vagas em relação aos saber, de que o mercado de traba- para o burguês, ainda sentiu o peso
homens e que isso marcou uma con- lho foi historicamente “preconcei- da estrutura da nobreza ao tentar
tribuição significativa para o cresci- tuoso” com relação às mulheres. construir para si, como indivíduo,
mento global da economia. Podemos Contrariamente, defendemos que o uma carreira própria.
observar ao menos duas razões para acesso a esse mercado na atualida- Na teoria, o acesso a uma car-
o crescimento do número de mulhe- de depende muito menos do gêne- reira deveria estar aberto a ambos
res no mercado de trabalho. ro do que da capacidade de os indi- os sexos. E de fato isso parece ter
A primeira é um tipo de corolá- víduos assumirem o desenvolvi- acontecido. O problema, entretan-
rio da própria história marginal das mento de uma carreira. O aspecto to, é a hierarquia de status associa-
mulheres em relação ao mundo dos de real interesse é que, do ponto de da a determinadas carreiras, e é nes-
negócios. Essa é uma constatação de vista dos gêneros, tal desenvolvi- se ponto que, historicamente, as
fácil comprovação, pois, na medida mento não se faz em pé de igualda- mulheres levaram desvantagem. A
em que as mulheres ficaram tanto de, e por uma questão importante: carreira tipicamente atribuída, ou
tempo fora do mercado, seria de se a maternidade. tornada acessível, às mulheres era a
esperar que a taxa de inserção fosse de esposa e mãe. Com o casamen-
agora comparativamente maior que Democratizando a carreira. to, muitas delas, até então tuteladas
a dos homens, que já estavam em A noção de carreira surgiu ao longo inteiramente aos pais, ganhavam

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E S P E C I A L M U L H E R E S : CARREIRAS ANTICONCEPCIONAIS

vidos, como também no Brasil, a


O discurso da igualdade de oportunidades no mercado é “carreira de mãe” é uma espécie de
coadjuvante, uma “sobreposição” à
predominantemente machista, pois implica a fantasia de
carreira principal, no mercado for-
que existem condições idênticas entre homens e mulheres mal. Mas quais as conseqüências dis-
a um nível muito básico, o que claramente não é verdade. so para as mulheres?

Como conseqüência, tal discurso acaba gerando na pratica Participação questionada. O


desigualdades. feminismo dos anos de 1960 e 1970
combatia o estilo de vida da mulher
cuja carreira era o cuidado da casa e
visibilidade. O clássico romance da aderir a códigos de conduta prede- dos filhos. Sua luta consistia em li-
escritora Jane Austen, que recebeu terminados e atrelados à manuten- bertar a mulher dos afazeres domés-
nova versão cinematográfica de ção da “grande família”. A materni- ticos e inseri-la no mercado de tra-
mesmo título, Orgulho e preconceito dade e o cuidado da casa, em uma balho com os mesmos direitos dos
(2006), ilustra bem tal ponto. A tra- estrutura social patriarcal, contribuíam homens, centrando fogo naquilo que
ma gira em torno de uma família cuja para que as mulheres formassem um denominavam de “sociedade patriar-
mãe não tem outra preocupação que grupo homogêneo, com interesses cal”. As feministas na verdade con-
não o casamento de suas cinco filhas. relativamente convergentes. tribuíram – talvez sem sabê-lo – para
Austen faz uma brilhante radiogra- Desse modo, não seria correto que os valores do mercado invadis-
fia da estrutura de classe e dos meios dizer que as mulheres não tinham sem e se afirmassem como os mais
de acesso ao status às mulheres no uma “carreira”; o que elas não tinham importantes na vida de ambos os se-
aristocrático século 18. Desnuda re- era uma carreira no sentido indivi- xos. Conforme diz Wolf, o movimen-
gras de progressão social em que os dualista e “masculino” do termo. E, to endossou a crença de que, fora do
homens ganhavam prestígio na me- com o passar do tempo e com as trabalho, não há qualquer possibili-
dida em que se envolviam com o transformações econômicas nas fun- dade de realização pessoal.
exército, a igreja e o mundo das leis, dações da família patriarcal tradicio- Quer dizer, o feminismo levan-
ao passo que as mulheres só o obti- nal, inclusive graças ao próprio mo- tou a bandeira da carreira. Mas de
nham pela aquisição de renda dada vimento feminista, o status de es- qual carreira? Não a de mãe e não a
no estrito âmbito do casamento. posa e mãe se arrefeceu, de tal sorte de esposa, mas a de profissional. Em
Expandindo o exemplo, histo- que hoje, nas sociedades capitalistas um primeiro momento, talvez seja-
ricamente encontramos evidências avançadas, os mais altos status são mos persuadidos a acreditar que o
de que a carreira para as mulheres atribuídos a carreiras individualistas, movimento alcançou seus objetivos,
sempre esteve associada à casa, e sua quando os interesses pessoais são junto com tantas outras transforma-
identidade social e pessoal dela de- colocados – ou têm de ser – acima ções sociais e econômicas das últi-
pendiam. Essa característica, que a dos interesses do grupo, que, no caso mas décadas. Afinal, conforme apre-
socióloga inglesa Alison Wolf recen- das mulheres, se referiam à perpe- sentamos na abertura deste artigo,
temente discutiu em polêmico arti- tuação da família por meio da ma- a participação das mulheres na eco-
go na revista Prospect, fazia com que ternidade. Chama a atenção, neste nomia vêm crescendo e, em muitos
as mulheres partilhassem um senso particular, que as novas gerações de casos, superando a dos homens. En-
de “irmandade”, ou seja, dividissem mulheres vejam com reservas a pos- tretanto, um olhar mais atento e
uma carreira basicamente coletiva, sibilidade de seguir uma carreira de sensível a um outro tipo de dados
social: uma vez esposa, tinham de “domésticas”. Nos países desenvol- pode nos mostrar um instigante fe-

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nômeno envolvendo as mulheres e Neste ponto podemos nos inter- demos sugerir que a resposta para
o mundo corporativo. rogar: seriam esses índices sobre essas questões é negativa. Ou seja,
Estudos mostram que, no âm- participação qualitativa das mulhe- acreditamos que não é tanto o pre-
bito mundial, apenas 7% de execu- res em cargos de direção prova de conceito ou a discriminação do mer-
tivos da alta cúpula das empresas que o mercado as exclui ou lhes cado que interferem no tipo de par-
são mulheres. É claro que esse nú- priva status elevado em um domí- ticipação das mulheres, mas o con-
mero sofre variações. Por exemplo, nio tradicionalmente masculino? flito aparentemente irreconciliável
nos Estados Unidos, ele está em tor- Ou de que o mercado é preconcei- entre carreira e maternidade. Veja-
no de 15% e no Japão em menos de tuoso quanto à capacidade femini- mos isso a seguir.
1%. No Brasil, segundo os dados do na de liderar nossas corporações?
IBGE (“Síntese de Indicadores So- Podemos, enfim, concluir que as Carreira e emprego. Há uma
ciais”, base de dados Pnad – Pesqui- diferenças entre os gêneros são mui- diferença importante entre ter um
sa Nacional por Amostra de Domi- to mais amplas do que o discurso emprego e uma carreira. A tese de
cílios de 2004, divulgado em 12 de corrente da igualdade nos faz crer? Wolf é de que a maioria das mulhe-
abril 2006), apenas 3,9% das mu- Amparando-nos no mencionado res tem um emprego, e não uma car-
lheres ocupadas estão em cargos de texto de Wolf e em algumas intui- reira. E por uma razão simples: para
alta direção, enquanto a proporção ções contidas no conceito de carrei- de fato possuírem esta última, elas
dos homens é de 5,5%. ra discutido anteriormente, preten- têm de abdicar de serem mães ou

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então terem apenas um filho. O di- escolherem suas carreiras. Ocorre conseqüência, tal discurso acaba ge-
lema das mulheres é provocado por que grande parte das mulheres, e o rando desigualdades na prática.
duas características importantes da Brasil é exemplar nesse sentido, não O preço pago pela mulher que
carreira moderna: primeira, assumir tem acesso à alta educação, de sorte tenha optado por uma carreira cer-
um curso individualista de ação, que sua única opção é o casamento tamente é mais alto do que o pago
quer dizer, ter de orientar-se por va- e, principalmente, a criação dos fi- por um homem. No entanto, dada
lores ligados aos próprios interesses, lhos, intercalado com algum tipo de a atual condição social, não pode-
à própria auto-imagem e ao desejo trabalho para a manutenção finan- mos desconsiderar que a escolha
de se destacar em relação a um gru- ceira da família. Mulheres menos está com a mulher. Então, podemos
po, inclusive a família. Em uma so- instruídas são hoje as que mais se esperar que, quanto mais elas opta-
ciedade pretensamente burguesa, a dedicam à maternidade (segundo a rem por uma carreira, portanto,
carreira é uma das poucas – senão a pesquisa do IBGE já citada, o aumen- quanto mais colocarem suas priori-
única – formas de acesso a prestígio to da escolaridade feminina reduz a dades como indivíduos em detri-
e status e fator de singularização do fertilidade). São mulheres que não mento de sua condição biológica de
sujeito (tornar-se alguém “único”). têm uma carreira, mas sim um em- reprodução, da família e da tradi-
Uma mulher que hoje não possua prego, pois sobrepõem diferentes pa- ção, mais as futuras estatísticas irão
carreira sente que sua condição é du- péis sociais e têm uma orientação mostrar a oscilação do pêndulo a
plamente mais difícil que a do ho- muito mais “coletiva” do que indivi- favor delas. O “preconceito”, repe-
mem, pois, além de temer o desem- dualista, característica que, como timos mais uma vez para encerrar,
prego (que não depende de gênero vimos, é fundamental à noção mo- é muito mais um custo de oportu-
para ser nefasto), teme ficar sob a tu- derna de carreira. nidade, ou seja, uma questão de as
tela dos pais ou mesmo do marido. Acreditamos que, para enten- mulheres decidirem pelas perdas
Expressões de senso comum, tais dermos a situação das mulheres que terão enquanto mães ao entra-
como “pilotar fogão” ou “ela deu o hoje no mercado de trabalho, é rem no mercado de trabalho com
golpe do baú”, são altamente expres- muito mais vantajoso considerar uma carreira, do que a imposição
sivas dessa sensibilidade restritiva fatos como a invenção da pílula e a do mundo corporativo machista que
em relação às mulheres. liberação do comportamento sexual não as reconhecem como competen-
Uma segunda característica da feminino (e masculino) do que o tes. No fundo, a questão atinge a
carreira moderna é o alto grau de so- suposto preconceito do mercado. todos: é a sociedade centrada no
fisticação educacional que ela exige. Pois na medida em que a mulher mercado quem dita as regras.
No mundo inteiro o que se tem ob- consegue desvencilhar-se da com-
servado, lembra novamente Wolf, é pulsoriedade biológica da materni-
que mulheres mais instruídas são as dade, consegue estar livre, disponí-
que têm maiores chances de assumir vel e dócil diante das exigências ine-
postos prestigiados no mercado de gociáveis da carreira moderna. Cre-
trabalho, isso se não tiver filhos ou mos, portanto, que o discurso da Maurício C. Serafim
tiver apenas um. Por conseguinte, igualdade de oportunidades no mer- Doutorando em Administração de Em-
presas na FGV-EAESP
afirma a autora, o movimento femi- cado é predominantemente machis- E-mail: serafim@gvmail.br
nista possui uma dimensão falsa na ta, este sim preconceituoso, pois
medida em que faz dos interesses de implica a fantasia de que existem Pedro F. Bendassolli
Prof. do Departamento de Fundamen-
uma pequena elite de mulheres ins- condições idênticas entre homens e
tos Sociais e Jurídicos da Administra-
truídas uma regra para todas as mu- mulheres a um nível muito básico, o ção da FGV-EAESP
lheres: liberdade e autonomia para que claramente não é verdade. Como E-mail: pbendassolli@fgvsp.br

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