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| \ % “ Jerzy Grotowski Em Busca de um Teatro Pobre Fico bastante inquieto quando me perguntam: “Qual é a oie . dos seus espeticulos experimentais?". A hipétese parece ser a de que o trabalho “experimental” € tangencial (tum continuo brinear com certas *novas” técnicas) ¢ secundario, Supde-se que o res seja uma contribuigio a encenagao moderna: cenografia que utiliza as idéias cor- rentes da escultura ou da eletrnica, mtisica contemporanea, atores que de modo auténomo projetam esteredtipos clownescos ou de ca- baré. Conhego aquela cena: ett também fiz parte do nosso Teatro Laboratério vao em uma outta diregéo. Em prim lugar, procuramos evitar o ecletismo, procuramos resistir a idé tro como conjunto de disciplinas. Tentamos sua especiti ., 0 que separa essa atividade de representacao e do espetaculo. Em segundo lugar, as nossas realizacoes so pesquisas detalhadas da relacdo ator-espectador. Quer dizer que | consideramos a técnica pessoal ¢ cénica do ator como 0 miicleo da arte te “EwMiticTdéterminar as fontes precisas desse enfoque, Tas Po falar da sua tradigao. Formei-me sob Stanislavski; os seus estudos per- sistentes, a sua renovacio sistematica dos métodos de observacao ¢ a sua telagio ¢ a0 préprio trabalho precedente, fizeram del nisldvski colocou as perguntas metodolégicas ices todavia diferem amplamente das suas: algumas vezes chegamos a conclusdes opostas, \ ‘atorna Europa_\, cos de Dullin, as pesquisas de Delsarte sobre as reagbes extro- rtrovertidas, 0 trabalho de Stanisi8yski sobre as “ago sinteses de Vakhtangov. Sao particularmente estimuilantes para mim as téenicas de treina- mento do teatro asistico: em particular a Operavle Pequim, o Kathakal ‘tar outros sistemas teatrais, mas © método que estamos desenvolvendo nao é uma combinagao de técni- ‘cas tomadas emprestadas dessas fontes (se bem que as vezes adaptamos Nao queremos ensinar ao ator um lidades ou dar-the uma “bagagem de © nosso ndo é um método dedutivo para colecionar técnicas. tudo se concentra na “maturagio” do ator que é expressa por uma tensdo em direcéo ao extremo, por um completo desnudar-se, por um revelar a prépria intimidade: tudo isto sem a ou de autocomplacéncia. 0 ator faz total doagao de técnica do “transe” e da integragao de todos os poderes psiquicos e fisicos do ator que emergem dos estratos mais intimos do seu ser ¢ do seu ins- tinto, irrompendo em uma espécie de “transiluminagao’. A formagao de um ator no nosso teatro nao consiste em ensinar- the alguma coisa; procuramos eliminar a resisténcia do organismo a «sse processo psiquico. 0 resultado € a liberdade do Tntervalo de tempo etre o impulso interior e a reagéo externa em modo tal que o impulso 6 ja uma reacio externa, O impdtg0 € Rago sdo coexistentes: 0 corpo se esvai, queima e o especta siveis. O nosso, portanto, é habilidades mas uma eli Anos de trabalho e de exercicios expressamente compostos (os quais por meio de um treinamento fisico, pldstica e vacal tentam guiar 0 ati i dio) as vezes permitem descobs 9 inicio desse caminho. Entao é possivel cultivar com cuidado aquilo que [oi despertado. O préprio processo, mesmo que até um certo ponto dependa da concentragao, da confianga, do desvelamento e quase da aniquilacao no oficio, nao é voluntario. O estado mental necessario € ama disponibilidade passiva para realizar um papel ativo, um estado no qual nao se “quer fazer aquilo” mas antes “renuncia-se a nao fazé-lo” A maior parte dos atores do Teatro Laborat6rio esta apenas come- sando a trabalhar em direcdo a possibilidade de tornar tal processo visi- vel. No seu trabalho cotidiano nao se concentram na técnica espiritual nas na composicao do papel, na construgdo da forma, na expresso Jos signios—isto.6; idade, Nao ha contradigéo entre a téc- ferior e a arti \cdo de um papel por meio de ignos). Acteditamos pessoal que nao seja sustentado * expresso por uma articulacao formal e por uma estruturagao disci tada do papel nao é uma liberagao e caira na falta de forma. Consideramos que a composicao artificial ndo s6 nao limite o que é spiritual mas que na realidad® Zondiizara ele (A tensio tropistica entre o "rocesso interior ea forma reforga ambos. A forma € como uma armadilha ‘unida de isca A qual 0 processo espiritual responde espontaneamente ¢ 107 contra a qual luta). As formas do comportamento comum, “natural”, obs- curecem a verdade; nés compomos um papel como um sistema de signos que mostram o que esté atras da mascara da viso comum: a dialética do comportamento humano. Em um momento de choque psiquico, em um momento de terror, de perigo mortal ou de imensa alegt no se comporta “naturalmente”. © homem em um estado espiritual elevado usa ritmicamente signos articulados, comega a dangar, a cantar. O signo, nao o gesto comum, é a unidade elementar de expressao para nés. Em termos de técnica formal, nao trabalhamos com a proliferagdo ou 0 actimulo de signos (como nas repetigées formais do teatro asi- dtico). Ao contrario, subtraimos, procurando a destilagao dos signos, eliminando aqueles elementos do comportamento “natural” que obs- curecem 0 impulso puro. Uma outra técnica que ilumina a estrutura escondida dos signos ¢ a contradigdo (entre gesto € vor, vor. ¢ palavra, palavra e pensamento, vontade e aco etc.) ~ também aqui tomamos © camtinho negativo . E dificil dizer com preciso quais elementos nos nossos espeticulos sejam o resultado de um programa formulado conscientemente e quais derivem da estrutura da nossa imaginacio. Perguntam-me freqiiente- mente se certos efeitos “medievais” indiquem um retomo intencional as “raizes rituals”, Nao existe uma resposta univoca. No ponto da cons- ciéncia artistica em que nos encontramos hoje, o problema das “raizes’ iticas, da situago humana elementar, tem um significado preciso. De qualquer forma, esse nao € 0 produto de uma “filosofia da arte”, mas deriva da descoberta e do uso na pratica das regras do teatro. Isto é, 0s espetéculos nao brotam de postulados estéticos a priori; ao contrério, como disse Sartre: “Cada técnica remete a uma metafisica”. ‘oscilel entre os impulsos nascidos da pritica e &\ aplicagao de principios a priori, sem ver a contradigao. © meu amigo colega Ludwik Flaszen foi o primeiro a me fazer notar essa confuséo n0 meu trabalho omatetal eas tenias que aparecam espontaneamien'e | ddyzante-a.preparacao do espetaculo, da propria nauureza do.tcaballo | eam reveladores ¢ promissores; enquanto 0 que eu tinha considerado aplicagées dé pressupostos tedricos eram na realidade mais fungoes da \ minha personalidade do que do meu intelecto. Percebi que o espeticule evava & consciéncia mais do que ser o produto da consciéncia. Desde {Geniuses metadata Por meio da experimentagao pratica pro cul responder as perguntas com as quai tina comecado: O ave teatro? O que o torna tinico? O que pode fazer que o cinema e a tele: visdo nao possam fazer? Duas concepades concretas se csalizaa 3 (© espetdéculo como ato de transgressio. . descobrimos que 0 teatro pode existir sem a maquiagem, sem figurinos 108 auténomos e cenografia, sem uma rea separada para o espetéculo (pal- 20), gem efeitos sonoros e de luz etc. Nao pode existir sem a relagio de Comunhgo “viva”, direta, palpavel entre ator ¢ espectador. Essa € uma Shiga verdade tedrica, naturalmente, mas quando rigorosamente testada ha pratica ela val minar a maior parte das nossas idéias correntes sobre © teatro. Hla desafia a nogao do teatro como sintese de diferentes disciplinas cHativas: literatura, escultura, pintura, arquitetura, iluminacao, atuagéo {sob a direcao do encenador). 0 “teatro sintético” é o teatro contempors- hieo que chamamios de bom grado de Teatro Rico: rico de defeitos. eG Teatro Rico depende da cleptomania artistica, com o seu tomar. de ofitras disciplitmas;-o-sew cOnstruir espetacifos hibridos, conglome- tados sem espinha dorsal ou integridade, embora apresentados como trabalho artistico organico. Multiplicando os elementos assimilados, © Teatro Rico tenta fugir do impasse representado pelo cinema ¢ pela televisdo. Porque o cinema e a televisdo tém a primazia no campo fdas funcdes mecdnicas (montagem, troca instantanea de lugar etc.), 0 ‘Teatro Rico respondeu com um apelo descaradamente corapensatorio a6 “teatro total”. A integracio dos mecanismos tomados por emprés- fimo (telas cinematograticas sobre 0 palco, por exemplo) implica uma implantagao técnica sofisticada que permita grande mobilidade ¢ di- amismo” E se o palco e/0u a sala fossem moveis, a troca continua de perspectiva seria possivel. Tudo isso € absurdo. Porquanto 0 teatro se expanda e desfrute de seus recursos mecini- cos, no plano tecnol6gico permanecera, de qualquer forma, inferior ao Gnema e a televisdo. Por isso proponho a pobreza no teatro. Nos renun- Gamos & implantagio palco-sala: para cada espetéculo, € projetado um. espaco novo pata 0s atores ¢ os espectadores. Assim sao possfveis infi- nnitas variacbes da relagdo ator-espectador. Os atores podem atuar entre 6s espectadores, em contato direto com os espectadores ¢ outorgando- thes um papel passive no drama (vide os nossos espetaculos: Caim de Byron e Sakuntala de Kalidasa). Ou os atores podem construir estruturas entre os espectadores e dessa maneira englobé-los na arquitetura da aci0, sujeitando-os a um sentido de opressio e congestao ¢ limitacao do espaco (Akropolis de Wyspiatiski). Ou os atores podem atuar entre os espectadores e ignord-los, transpassando-os com 0 olhar. Os espectado- res podem set separados dos atores: por exemplo, por um tapumne alto, do qual sobressaem somente sas cabecas (0 Principe Constante, segundo Calderén); dessa perspectiva radicalmente inclinada, olham 0s atores ‘ambaixo como se olhassem alguns animais em um cercado, ou como ¢s- tudantes de medicina que observam uma operacao (também esse olhar Yistanciado, do alto para baixo, da acdo um sentido de transgressao ‘noral). Ou toda a sala é usada como um lugar concreto: “a tiltima cena” Te Fausto no refeitorio de um monastério, onde Fausto entretém os 7 109 espectadores — que sao héspédes de um banquete barroco servido sobre eniormes mesas - oferecendo epis6dios da sua vida. A eliminacao da dicotomia palco-sala.nin.éo mais importante; cria simplesmente uma Situacao nua de laborat6rio, uma area adequada para a pesquisa. Apre- Ocupacdo essencial é encontrar a justa relagao espectador/ator para cada % tipo de espetaculo e dar corpo a decisdo na disposigao fisica. ‘Abandonamos os efeitos de luz € isso revelou uma vasta gama de possibilidades para o ator usar fontes de luz fixas, por meio do trabalho premeditado com sombras, manchas luminosas etc. particularmente sig- hificativo o fato que, uma vez colocado o espectador em uma zona ilumi- nada ou, em outras palavras, uma vez tomnado visivel, ele também comece a desempenhar um papel no espetéculo. Além disso, pareceu-nos claro {ue os atores, como figuras das pinturas de El Greco, podem “iluminar” por meio da técnica pessoal, tornando-se uma fonte de “luz espiritual” ‘Abandonamos a maquiagem, 0s narizes postigos, as barrigas com enchimento — tudo 0 que 0 ator coloca no camarim antes do espetaculo. Descobrimos que era perfeitamente teatral que o ator se transformasse de um tipo em outro, de um personagem em outro, de uma silhueta em outra - sob os olhos do espectador ~ de maneira pobre, usando somente © préprio corpo e 0 officio. A composicéo de uma expresséo facial fixa por meio dos miisculos e dos impulsos interiores do ator obtém o efei- to de uma transubstanciagdo surpreendentemente teatral, enquanto a mascara preparada por um maquiador ¢ somente uma maquiagem. ‘Do mesmo modo, um figurino desprovido de valor autonomo, que existe s6 em conexiio com uma determinada personagem ¢ as suas fagoes, pode ser transformado sob os olhos dos espectadores, contra- posto s fungdes do ator etc, A eliminacao daqueles elementos plésti- Cos que tém uma vida auténoma (por exemplo que representam algo independentemente das aces do ator) levou a criacéo, por parte do ‘ator, dos objetos mais elementares € Gbvios. Com o uso controlado do gesto o ator transforma chao em mar, uma mesa em confessionério, fim pedaco de ferro em um companheiro animado etc. A eliminagao da miisica (ao vivo ou gravada) nao produzida pelos atores permite ao préprio espetéculo tornar-se rmisica gracas a orquestracao das vozes € Gos objetos que batem. Sabemos que 0 texto por sisé nao é teatro, que se torna teatro 56 por meio do uso que o ator faz. dele — ou seja, gracas 3s entonacdes, as associagées de sons, & musicalidade da linguagem.__ ’A aceitacao da pobreza em um teatro totalmente despido de tudo aquilo que nao Ihe € essencial, revelou-nos nao somente o fundamen- 10 do meio, mas a profunda riqueza co-natural na forma de arte. Por que fazemos arte? Para atravessar as nossas fronteiras, para su- perar os limites, preencher 0 nosso vazio - realizarmo-nos, Essa nao é lima condi¢ao, mas um processo no qual aquilo que obscuro em nés

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