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C corpo lotetsex e a pollLlzação do ab[eLo em kk¥

lnLexLo, ÞorLo Alegre, ul8CS, v.02, n.23, p. 234-230, dez. 2011.


234

C corpo intersex e a po||t|zação
do ab[eto em xxY

Leandro Co|||ng
uouLor
unlversldade lederal da 8ahla
leandro.colllng[gmall.com

Matheus Arau[o dos Santos
MesLrando
unlversldade lederal do 8lo de !anelro
maLheus2099[gmall.com


kesumo
C que nos pode dlzer o corpo lotetsex? Como esLe debaLe se
amplla ao LraLarmos de sua represenLação nos melos de
comunlcação, especlalmenLe no clnema? no presenLe Lrabalho,
a parLlr do fllme kk¥, dlrlgldo por Lucla Þuenzo,
problemaLlzamos esLas e ouLras quesLões relaclonadas aos
corpos e dese[os desvlanLes. Com um dlscurso subverslvo e anLl-
paLologlzanLe, kk¥ propõe um olhar aLenLo em relação as
sub[eLlvldades de Lals vlvônclas. uefendemos que o fllme, em
ressonâncla com os esLudos poeet, esLá aLenLo para a
pollLlzação dos corpos ab[eLos.
Þa|avras-chave
lotetsex, clnema, poeet, ab[eção.


1 Introdução
Este texto tem o objetivo ue analisai o filme XXY tenuo como pano ue funuo algumas
uas piincipais ieflexões oiiunuas uos estuuos queer, em especial as noções ue abjeção,
peifoimativiuaue ue gêneio e heteionoimativiuaue, em uiálogo com autoies¡as ligauos¡as
às análises filmicas. 0ptamos poi explicai iapiuamente algumas uessas noções ao longo uo
texto e em sugeiii leituias, em notas ue iouapé, aos leitoies que uesejam apiofunuai os seus
estuuos nesses temas. Em um piimeiio momento, o tiabalho tiata ua análise filmica

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23S
iealizaua poi feministas e estuuiosos queer
1
. Em seguiua, o texto tiata especificamente
sobie o coipo intersex paia, logo apos, apiesentai a análise ua obia.

1.1 A sót|ma arte sob as ót|cas fem|n|stas e queer
0ma piimeiia inseição feminista na análise filmica se uá a paitii ua obseivação uo
mouo como, piincipalmente atiavés uo uso uos uitos esteieotipos femininos ciiauos pela
cultuia patiiaical (a exemplo ua vampiia, a mãe, a amiga fiel, a vizinha, a esposa etc.), a
mulhei é iepiesentaua no cinema clássico hollywoouiano, ue mouo a "fazei possivel o
invisivel, uescobiinuo os mecanismos que natuializam as imagens e os significauos que
poitam" (RICALBE, 2uu2, p.2S)
2
.
Nulvey, no texto visuol pleosure onJ norrotive cinemo (197S), chega à conclusão ue
que a iepiesentação ua mulhei no cinema clássico hollywoouiano se uá ue uois mouos:
atiavés ua sua fetichização, colocanuo-a como objeto aos olhos masculinos, que se
ueleitaiiam com o close-up ou, ue mouo uistinto, atiavés ua sua punição, situação na qual a
piopiia naiiativa se encaiiegaiia ue colocá-la "foia-ua-lei", paia que assim se justificasse o
seu castigo. Be acoiuo com Nulvey, a mulhei eia assim iepiesentaua poique o seu castigo
ou fetichização uistiaiiiam o espectauoi (homem) ua ameaça ue castiação que a imagem
feminina inevitavelmente suscitaiia. A ieflexão ievela a gianue influência ua psicanálise
fieuuiana e lacaniana na análise ua autoia.
Ricalue (2uu2) chama a atenção paia a impoitância feminina no cinema não apenas
enquanto iepiesentação, mas vê no piocesso piouutivo, a paitii ue filmes feitos poi
mulheies influenciauas pelas teoiias feministas, um mouo ue subveisão uo sistema
falocêntiico e patiiaical caiacteiistico uo cinema clássico hollywoouiano e afiima que a
"iesposta uiieta uos piouutos filmicos iealizauos poi mulheies foi o iechaço uos uitos
esteieotipos. Assim, ao invés ua mulhei-mito, inacessivel, fixa, eteina e abstiata, põem
peisonagens femininos uesmistificauos, situauos histoiicamente, em sua
cotiuianiuaue."(RICALBE, 2uu2, p.29)
A impossibiliuaue ue leituias não-heteiossexuais no cinema hollywoouiano, ue acoiuo
com os piimeiios estuuos ue Nulvey, é alvo ue uuias ciiticas que paitem, piincipalmente,
uas feministas lésbicas, que alegam que tais aboiuagens

1
Paia uma intiouução aos estuuos queer, vei }agose (2uu8), Louio (2uu4) e Niskolci (2uu9). Paia estuuo mais apiofunuauo,
vei Butlei (2uu2, 2uuS e 2uu8).
2
Essa e touas as tiauuções iealizauas nesse texto são nossas.

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pouem sei liuas como o cancelamento uo piazei ua espectauoia não-heteiossexual e
os estuuos cultuiais funuamentauos na psicanálise tampouco concebiam o uesejo foia uessa
uualiuaue. 0ns e outios uescansavam nessa uivisão básica ua cultuia ociuental, a qual
ueixava ue foia uo espaço ua análise os que não iesponuiam a categoiias pié-fixauas.
(RICALBE, 2uu2, p.4u)
A paitii ua uécaua ue 199u, juntamente com o auvento uos estuuos queer, começam a
sei piouuziuos filmes que passam a questionai tal uivisão binaiista. 0 New µueer Cinemo,
como passa a sei chamauo, subveite as noções ue sexo, gêneio e sexualiuaue que uominam
a piouução cinematogiáfica munuial. Be acoiuo com Stiaayei (1999, p.7u),
simultaneamente constiuinuo e uestiuinuo couigos ue gêneio e sexo, estes filmes se
engajam em ativiuaues tiansgiessoias que têm lugai no e atiavés uo coipo e, poitanto,
uesafiam completamente a segiegação conceitual entie gêneios, entie sexos e, ue mouo
mais impoitante, entie gêneio e sexo.
Paia Nepomuceno (2uu9, p.1), tal cinema abie espaço na piouução contempoiânea
paia que "peisonagens queers possam encenai suas peifoimances ue iuentiuaues múltiplas
atiavés ue coipos-uevii. Bos guetos, uas sombias e uas infiltiações subteiiâneas paia as
telas cinematogiáficas".
Segunuo a autoia, uma nova geiação ue cineastas, a exemplo ue Peuio Almouovai,
Beiek }aiman e uus van Sant, uestaca-se poi piivilegiai uma aboiuagem menos
sensacionalista em ielação à piouução ua uifeiença ue gêneios, sexualiuaues e coipos. "Nais
inteiessauo na complexificação uas subjetiviuaues ambiguas e tiansgiessivas", o giupo
passaiia, uesta foima, a atuai como visibilizauoi ue múltiplas subjetiviuaues "que são
agenciauas tanto pelos mouelos fixos ue sexualiuaue, com seus piocessos ue noimatização e
vigilância, como também pelo uesejo uo uevii, uas escolhas pessoais uo piopiio coipo e ua
auto-iefeiência." (NEP0N0CEN0, 2uu9, p.2)
Faz-se inuispensável, ainua, ielacionai o cinema à posição pos-iuentitáiia uos estuuos
queer, que, emboia não iechacem ue touo a afiimação iuentitáiia e sua impoitância
politica
S
, apontam na afiimação ue posições fixas e essenciais mouos ue, mais uma vez,
piouuzii categoiizações e, poi conseguinte, hieiaiquizações e subjugações ue coipos e
piáticas. Como afiima Luz (2uu2, p.11S-114), o cinema, poi sei uma aite moueina, "ueu a
vei um uevii múltiplo e aboliu o sujeito como aquele ponto cential exigiuo pela logica
iuentitáiia".

S
Paia uma explicação sobie a polêmica entie iuentitáiios e pos-iuentitáiios, vei Colling (2u11).

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1.2 C corpo |ntersex
Em Eerculine Borbin, Foucault (198u) ielata que nem sempie o coipo intersex foi
tiatauo como nos uias atuais. Segunuo ele, poi mais que encontiemos iegistios ue intersex
conuenauos à moite em tempos ancestiais, também é possivel encontiai ielatos em que
eles¡as eiam tiatauos¡as ue outia foima; uecisões juiiuicas ievelam que um coipo com
caiacteiisticas uos uois sexos eia inteligivel como tal. Aquele que eia "heimafiouita" tinha
que ueciuii poi um sexo apenas quanuo estivesse piestes a se casai e o fato so se toinaiia
um pioblema se ele¡ela voltasse atiás uepois ua uecisão tomaua.
E piincipalmente a paitii uo século XIX que se passa a pensai o sexo como algo que
esconue uma ueteiminaua veiuaue e, poi isso, também piecisaiia sei um "sexo veiuaueiio".
Nas palavias ue Foucault:
|.| quundo conIronLudo com um IermuIrodILu, o médIco nuo esLuvu muIs
InLeressudo em reconIecer u presençu de doIs sexos, jusLuposLos ou InLercuIudos,
ou em suber quuI dos doIs prevuIeceu sobre o ouLro, mus unLes, em decIIrur o
verdudeIro sexo que esLuvu escondIdo por buIxo dus upurêncIus umbiguus. EIe
LInIu, por ussIm dIzer, que LIrur o corpo do seu enguno unuLômIco e descobrIr o
únIco sexo verdudeIro por Lrus dos órguos que poderIum esLur sImuIundo o sexo
oposLo. Puru uIguém que subIu como observur e conduzIr um exume, esLus
mIsLurus de sexo nuo erum muIs que dIsIurces du nuLurezu: IermuIrodILus erum
sempre ¨pseudo-IermuIrodILus¨. (¡OUCAU¡T, 1q8o, p. vIII - Ix)

Be acoiuo com Pino (2uu7), a histoiia ua inteisexualiuaue poue sei uesciita em tiês
uifeientes peiiouos. A "Eia uas gônauas", uataua ue meauos uo século XIX até os anos ue
19Su, caiacteiiza-se poi um peiiouo no qual o "heimafiouitismo" eia uefiniuo a paitii ua
piesença uas gônauas masculinas e femininas em um mesmo coipo. Nesse peiiouo suigem
nomenclatuias até hoje utilizauas pela meuicina ociuental, como "heimafiouitismo
veiuaueiio" e "pseuuo-heimafiouitismo", como obseivamos no texto abaixo:
A cIussIIIcuçuo buseIu-se nu nuLurezu du gônudu presenLe e os Lrês grupos busIcos
suo o pseudo-IermuIrodILIsmo muscuIIno (PHM = genILuIIu umbiguu com
LesLicuIos), pseudo-IermuIrodILIsmo IemInIno (PH¡ = genILuIIu umbiguu com
ovurIos) e IermuIrodILIsmo verdudeIro (HV = LesLicuIo e ovurIo com ou sem
genILuIIu umbiguu) (DAM¡AN¡ e GUERRA-JÚN¡OR, zoo;)

Em um segunuo peiiouo, que vai ua uécaua ue 19Su aos anos ue 198u, ocoiiem as
piimeiias ciiuigias "ues-constiutoias" uos coipos intersex em busca ua "constiução" ue um
"sexo veiuaueiio". A "Eia ciiúigica", ue acoiuo com Pino, toina-se possivel giaças aos
avanços tecnologicos no campo méuico que peimitem o suigimento ua anestesia,
funuamental paia as inteivenções ciiúigicas, mas, piincipalmente, a paitii ua emeigência

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uo paiauigma ua iuentiuaue ue gêneio uefenuiua, entie outios, pelo psicologo e sexologista
}ohn Noney
4
.
Be acoiuo com a teoiia ue Noney, as pessoas não nasceiiam com uma iuentiuaue ue
gêneio uefiniua, ue mouo que o seu sexo poueiia sei "alteiauo" até o uécimo oitavo mês ue
viua sem maioies piejuizos paia a ciiança que, poi não se lembiai ue naua, seguiiia
"noimalmente" a sua viua.
E inteiessante obseivai aqui como tal pensamento piovoca um giio ue peispectiva ao
ueslocai o gêneio ue um lugai essencial e estável paia toiná-lo autônomo em ielação aos
hoimônios, ciomossomos e gônauas. No entanto, apesai ua "ênfase nos aspectos sociais, a
natuieza e a binaiieuaue uo sexo não foiam colocauas em xeque, pois os intersex eiam
consiueiauos fiutos ue uesenvolvimento anoimal e necessitavam ue tiatamentos paia se
toinai homens e mulheies" (PIN0, 2uu7, p.17u).
Como nos ielata Nachauo (2uuS), Noney foi quem piimeiio iegistiou o caso ue um
bebê submetiuo a uma ciiuigia ue "(ie)constiução genital". Tiata-se ue Baviu Reimei que,
apos sofiei um giave feiimento no pênis uuiante um piocesso ue ciicuncisão, passou poi
uiveisas inteivenções ciiúigicas, aconselhauas poi Noney à familia, paia que se toinasse
uma menina.
No entanto, o mouelo centiauo na ciiuigia foi amplamente ciiticauo, tenuo como
aigumento piincipal o ue que a meuicina seiia incapaz ue fazei "genitais noimais", além ue
apontai uma fiequente insatisfação uas pessoas submetiuas às ciiuigias, como o piopiio
Baviu que, aos S8 anos, apos uma séiie ue ciiuigias que buscavam "noimalizai" o seu sexo,
cometeu suiciuio.
A paitii uos anos 198u, além uos méuicos, aqueles que tinham sofiiuo as ciiuigias
"noimalizauoias" também passaiam a contestai o pioceuimento. Neste peiiouo, são ciiauas
associações e giupos ue autoajuua paia toinai a expeiiência intersex menos invisivel. Passa-
se então à chamaua "Eia uo consenso", na qual a uecisão em ielação à ciiuigia e ao sexo a
sei uesignauo à ciiança passa pela uecisão uos pais e ue uma equipe multiuisciplinai
foimaua poi ciiuigiões, enuociinologistas, peuiatias, psicologos etc.
0 tiabalho ue Foucault nos peimite pensai no sexo não como algo causal ou univoco,
anteiioi ou livie ue qualquei ielação ue pouei:
Puru ¡oucuuIL, ser sexuudo é esLur submeLIdo u um conjunLo de reguIuções
socIuIs, é Ler u IeI que norLeIu essus reguIuções sILuudus como prIncipIo Iormudor
do sexo, do gênero, dos pruzeres e dos desejos, e como prIncipIo IermenêuLIco

4
Sobie as pioposicões ue }ohn Noney, vei Nachauo (2uuS).

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de uuLo-InLerpreLuçuo. A cuLegorIu do sexo é, ussIm, InevILuveImenLe reguIudoru,
e Lodu unuIIse que u Lome ucrILIcumenLe como um pressuposLo umpIIu e IegILImu
uIndu muIs essu esLruLégIu de reguIuçuo como regIme de poderJconIecImenLo.
(BUT¡ER, zoo6, p.1¸o)

Emboia o conceito ue biopouei seja essencial na obia foucaultiana, Butlei (2uu6)
aleita paia como, ao uiscutii o coipo intersex atiavés uo uiáiio ue Beiculine, Foucault
paiece, em alguns momentos, colocá-la¡o numa posição piivilegiaua poi conta uo seu
tiânsito entie os gêneios, como se o seu coipo lhe peimitisse o gozo uos mais uifeientes
tipos ue piazei:
¡oucuuIL deIxu de reconIecer us reIuções de poder concreLus que LunLo
consLroem como condenum u sexuuIIdude de HercuIIne. Nu verdude, eIe purece
romunceur o mundo de pruzeres de HercuIIne, que é upresenLudo como o ¨IImbo
IeIIz de umu nuo IdenLIdude¨ (xIII), um mundo que uILrupussu us cuLegorIus do
sexo e du IdenLIdude. (BUT¡ER, zoo6, p.1z8)

A ciitica ue Butlei nos paiece iazoável, uma vez que, assim como faz ao longo ue sua
obia, uefenue que não existem coipos que se encontiem foia uas ielações ue pouei. Ela
ainua atenta paia o fato ue que aqueles que se colocam ou são postos nas maigens uo
sistema bináiio ue sexo, gêneio ou sexualiuaue, os coipos queer, não necessaiiamente
encontiam-se num estauo ue giaça, na qual a fluiuez, a não-iuentiuaue, o constante uevii
peimitiiia o livie gozo uos piazeies. Ao contiáiio, a maiginaliuaue poue sei ciuel, como no
caso ue Baviu Reimei e Beiculine Baibin. A imposição ue apiesentaiem um sexo, gêneio,
sexualiuaue e uesejos "coeientes" e, poitanto, "veiuaueiios", levou ambos ao suiciuio.

2 Aná||se
2.1 C f||me
Baseauo no conto Cinismo, ue Seigio Bizzio, XXY conta a histoiia ue Alex (Inés Efion),
intersex que aos 1S anos está com uúviuas e angústias em ielação ao piopiio coipo e
sexualiuaue. Apos seu nascimento, na Aigentina, seu pai Kiaken (Ricaiuo Baiin) e sua mãe
Suli (valéiia Beituccelli) se muuam paia uma pequena ciuaue no litoial uiuguaio paia "fugii
ua opinião ue iuiotas" sobie o que fazei a iespeito ua inteisexualiuaue ue Alex, como
afiimam em ueteiminauo momento.
0 filme inicia com a chegaua ue uma familia ue amigos uo casal, vinua ue Buenos
Aiies. Ramiio (ueimán Palácios), Eiicka (Caiolina Pelleiitti) e seu filho Alvaio (Naitin
Piioyansky) chegam em um momento uelicauo, pois Alex acabaia ue biigai no colégio com o

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seu melhoi amigo, e possivel amante, vanuo (Luciano Nobile), apos tê-lo confiauo o seu
segieuo e uescobiii que foi tiaiua. A ciuaue começava a sabei, aos poucos, que Alex eia
um¡uma intersex.
2.2 In|c|o
A sequência à qual piimeiio uemos atenção é também o tiecho inicial uo filme. Nela,
além uos ciéuitos iniciais, nos são apiesentauas as uuas familias, ue Alex e Alvaio, núcleo ue
peisonagens piincipais ua tiama.
0s ciéuitos são apiesentauos inteicalauos com imagens tuivas ue uma pessoa, que
mais taiue sabeiemos tiatai-se ue Alex. Ele¡a coiie em meio a áivoies empunhanuo um
facão, enquanto ouvimos, além uo som ambiente, seus passos poi entie as folhas caiuas e
sua iespiiação ofegante. 0s letieiios com os nomes uos atoies e ua uiietoia são
apiesentauos como se estivessem no funuo uo mai. vemos, então, plantas que libeiam
algum tipo ue substância no oceano. Plantas, a piincipio, exoticas, que ievelam uma
analogia, que peipassa touo o filme, uo coipo intersex (ou ue Alex) com animais maiinhos, a
exemplo ue taitaiugas. 0 oceano, que é apiesentauo nas piimeiias cenas, é também um
elemento bastante piesente. Quanuo não utilizauo como cenáiio paia cenas impoitantes ou
paia as analogias as quais nos iefeiimos, empiesta o baiulho ue suas onuas e ventos paia a
constiução ue uma atmosfeia um tanto melancolica e ue foite caiga uiamática em algumas
cenas.
A câmeia acompanha Alex coiienuo iapiuamente poi entie as áivoies, até que, com
um angustiante suspiio, ciava o facão no chão. vemos então o titulo uo filme suigii na tela:
XXY. Peicebemos que a letia Y tiata-se, na veiuaue, ue um X, com uma ue suas hastes
quebiaua. Neste piimeiio momento, chamamos atenção paia o nexo entie as imagens
apiesentauas, ou paia a colocoçõo em série, uiscutiua na metouologia ue Casetti e ui Chio
(2uu2) a iespeito ua análise uas iepiesentações em filmes. Segunuo os autoies, "caua
imagem possui outia que a pieceue ou que a segue: foima paite ue uma sucessão e, ao
mesmo tempo, poi assim uizê-lo, iecebe e ueixa uma heiança, iecolhe e uevolve
testemunhos" (p.119). Besta foima, a exibição ue seies maiinhos inteicalauos com imagens
ue Alex coiienuo entie a floiesta piovoca um nexo por orticuloçõo, uefiniuo piincipalmente
poi analogias, o que veiemos uuiante touo o filme.
0 piofunuo suspiio ue Alex ao, num movimento iápiuo e em imagens tuivas, ciavai o
facão no solo e, logo em seguiua, o titulo uo filme, como nos é apiesentauo, pouem sei

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consiueiauos, no que uiz iespeito à colocoçõo em ceno, como temas que uefinem o "núcleo
piincipal" uo filme: a angústia ua peisonagem em ielação ao seu coipo e a sua sexualiuaue.
Toua a iaiva ue Alex é expiessa com um golpe no chão. 0 motivo paiece sei claio quanuo
lemos na tela uma combinação ue letias que, como apienuemos uesue ceuo na escola,
uenota geneticamente uma anomalia, iepiesentaua pela impeifeição ua letia Y que, ao lauo
uos uois xis, asseguiaiia um couigo genético "feminino", ue acoiuo com a biologia
tiauicional, o que toina Alex um "coipo estianho".
A paitii ue então, vemos Alex sentaua¡o, acenuenuo um cigaiio. Logo em seguiua, sua
mãe, Suli, se uiiige ao local ue tiabalho uo maiiuo, o biologo Kiaken. Ele, ao abiii uma
taitaiuga maiinha, pionuncia as piimeiias e bastante significativas palavias uo filme: "E
fêmea".
As palavias uitas poi Kiaken eviuenciam o entenuimento uas categoiias ue sexo a
paitii uo binaiismo macho versus fêmea, no qual a ambiguiuaue, como no caso ue Alex,
paiece não tei espaço. 0 uiagnostico ue Kiaken em ielação à taitaiuga está em
confoimiuaue também com o ue Alex que, ue acoiuo com os méuicos (a exemplo ue Ramiio)
é uma fêmea, poitanto, mulhei. 0 seu coipo é entenuiuo, sob essa otica, como um pioblema
ue foimação genética que, como auvoga o uiscuiso méuico-patologizante, ueve sei coiiigiuo
atiavés ua "ciiuigia genital", que atiibuiiia a Alex o stotus ue mulhei, aquilo que "ela"
"veiuaueiiamente" seiia.

2.3 Aprox|mação
Nesta sequência, apos uma biiga entie Kiaken e o pai ue vanuo, Alex e Alvaio
obseivam o biologo cuiuai uas taitaiugas, conveisam e passeiam pela ciuaue. Peicebemos
aqui como, imeuiatamente apos uma cena ue muita tensão, a autoia nos apiesenta algo
bastante uistinto. 0s uois uiscutem ameniuaues enquanto caminham poi uma feiia ao ai
livie. 0s uiálogos são cuitos e sepaiauos poi uiveisos momentos ue silêncio. So ouvimos o
som ambiente e, mais uma vez, o quebiai uas onuas no mai.

- ¨Seus puIs suo genLe IInu?¨ - pergunLu AIex enquunLo IoIIeIu um IIvro de umu
dus burrucus.
- ¨AI, suo meus puIs¨.
- ¨E o que Lem? Suo IeguIs?¨
- ¨SIm, ucIo que sIm¨.

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- ¨Os meus suo umu desgruçu, esLuo sempre no meu pé¨.
Os doIs observum os produLos de umu dus Lendus.
- ¨Por que brIgou com uqueIe menIno?¨ - pergunLu ÁIvuro reIerIndo-se u Vundo.
- ¨EIe provocou¨.
ÁIvuro começu u escuLur músIcu com Iones de ouvIdo enquunLo segue AIex.
- ¨Sube quuI é o bom de escuLur músIcu nu ruu?¨ - pergunLu AIex uo LIrur os
Iones de ÁIvuro.
- ¨O que?¨
- ¨Que purece que Lodos escuLum o mesmo que você¨, dIz AIex quundo põe os
Iones.

Ao teiminai a fiase e posicionai os fones, Alex e os espectauoies pouem ouvii a
música, neste momento, em alto volume. Alex uança e Alvaio soiii, num gesto bastante
intimista entie os uois. Alex uevolve os fones e continua a uançai. Alvaio continua
obseivanuo com um semblante feliz. A música uuia ainua um tempo e os uois seguem
anuanuo até o que paiece uma casa abanuonaua.
Em um filme bastante uiamático, com cenas que envolvem gianues tensões e
conflitos, ue iepente nos é apiesentaua uma sequência que uestoa ue touo o iestante. Bois
auolescentes passeiam poi uma feiia, conveisam sobie os ielacionamentos com seus pais,
seus tiabalhos, biigas na escola e até uançam, num momento ue gianue uescontiação.
Nesses instantes esquecemos os uiamas viviuos poi Alex. Afinal, o que nos uiz uma
sequência como essa.
Além ua foite piesença ue tons veiues e, piincipalmente, azuis, que vemos uuiante
touo o filme, peicebemos nesta sequência uma séiie ue conteúuos ielacionauos com os
temas uas conveisas entie Alex e Alvaio, que uizem iespeito a um "univeiso auolescente",
como nos tipicos filmes teen, nos quais jovens enfientam pioblemas caiacteiisticos ue um
peiiouo confuso, em que colocam em questão a sua ielação com o coipo, sexualiuaue, escola,
ielacionamento familiai etc. E o que Alex e Alvaio fazem nesse momento.
Pouemos inteipietai a utilização ue tais conteuJos orquétipos que, ue acoiuo com
Casetti e ui Chio (2uu7), uizem iespeito à utilização ue iefeiências a ueteiminauos gêneios
filmicos, neste caso os teen movies, como mouo ue piovocai afeto no espectauoi. Be, ao
mostiai Alex menos áciua e iiônica, como em outios momentos, ietiatá-la como uma¡um
jovem como outio¡a qualquei, com pioblemas que acontecem com a maioiia uos

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auolescentes, sejam eles¡elas intersex ou não, que em muitos momentos encontiam-se em
conflito com os temas expostos na conveisa uos uois. Nesta cena o espectauoi é conviuauo a
uiviuii os sentimentos ue Alex, ou mesmo ielembiai uos seus piopiios momentos como
auolescentes, acompanhanuo a apioximação uesajeitaua uos uois.
0 ápice ua inteipelação aos espectauoies, nesta sequência, ocoiie no momento em
que Alex toma os fones ue Alvaio e, numa ação metalinguistica, uiz: "Sabe qual é o bom ue
escutai música na iua. Que paiece que touos escutam o mesmo que você". Ao mesmo tempo
em que o espectauoi poue ouvii a música em alto e bom som, Alex uança ue mouo bastante
iiieveiente, mostianuo-se bem uifeiente ue antes e aiiancanuo um soiiiso ue Alvaio. A
sequência, então, pela uuiação ua música, toina-se quase um viueoclipe e atiai o espectauoi
ue vez paia a tiama.
2.4 Dese[o
Passaua a sequência em que Alvaio e Alex se apioximam, vemos ciescei caua vez mais
a tensão no filme. Alex ueciue paiai ue tomai hoimônios. Ramiio está ueciuiuo a convencei
Kiaken ua suposta necessiuaue ua iealização ua ciiuigia e o fato ue a comuniuaue começai a
sabei que Alex é intersex pieocupa caua vez mais a familia. Alex e Alvaio estão ueitauos ue
biuços, na beiia ua piaia, enquanto o gaioto uesenha no seu caueino. Alex inicia o uiálogo:
"Pensou no que te uisse.", uiz em iefeiência a pioposta feita assim que se conheceiam (Alex
peiguntaia se Alvaio se ueitaiia com ela). Alvaio acaba se iiiitanuo e agiessivamente
uispaia: "você não é noimal. E uifeiente e sabe uisso. Poi que as pessoas te olham assim.
Poi que touos te olham assim. 0 que você tem.".
Enquanto Alvaio faz os questionamentos, a expiessão ue Alex entiistece, seus olhos
laciimejam, até que ela¡ele levanta e sai coiienuo em uiieção a um celeiio pioximo a sua
casa. Alvaio a¡o segue e encontia-a¡o ueitaua¡o, ainua com um semblante tiiste. 0 gaioto
encosta lentamente e, ao fazei menção ue se afastai, Alex o conviua paia sentai: "venha".
Alex puxa Alvaio e o beija. 0s uois começam a se tocai e Alex afiima: "Não tenho naua". "Eu
auoio", iesponue Alvaio uespinuo-a¡o. Neste momento já ouvimos uma música que paiece
uai um clima iomântico paia a cena, quanuo, em seguiua, Alex levanta-se e uesliga um iáuio
que está pioximo, uanuo fim ao que ouviamos. 0 iomantismo paiece sei inuesejauo.
Alex e Alvaio continuam os caiinhos e beijos, num clima bastante eiotizauo. Quanuo
tenta uespii Alex, Alvaio é suipieenuiuo pelo movimento uele¡a que o viia ue costas, tiia as

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suas calças e também as uele e, iapiuamente, o penetia. Alvaio, a piincipio, se assusta, mas
uepois paiece sentii muito piazei.
Nesta sequência, peicebemos claiamente como o coipo intersex peituiba as
categoiias bináiias ue sexo, gêneio, sexualiuaue e uesejos ao mesmo tempo em que explicita
a ficção constiuiua ao ieuoi ua sua coeiência lineai. Como afiima Nachauo (2uuS, p.269), os
coipos intersex são emblemáticos "justamente poique uesafiam o sistema bináiio ue sexo e
ue gêneio, bem como esciutinam, em uifeientes esfeias sociais, os ciitéiios utilizauos paia
que alguém possa sei consiueiauo homem ou mulhei".
Alex, além ua uualiuaue uo seu nome, usauo tanto paia homens como mulheies,
caiiega a maica ua ambiguiuaue no seu coipo. Categoiizá-la como fêmea ou macho paiece
impossivel, assim como uefinii piecisamente o seu gêneio. A peifoimativiuaue ue gêneio
S

ue Alex é bastante fluiua uuiante o filme. Seu tempeiamento agiessivo e saicástico e suas
ioupas uiscietas apioximam-na¡o ue uma peifoimativiuaue masculina, no entanto, em
outios momentos, sua fiagiliuaue explicita e gestos uelicauos, fazem-no¡a pioxima¡o uo que
é entenuiuo como peitencente ao "univeiso feminino". Biante uisso, como ousai uefinii sua
sexualiuaue, como classificai os seus uesejos.
Ao penetiai Alvaio, Alex peituiba toua categoiização que necessita ue foimas
bináiias paia se toinai aceitável. 0 espectauoi, que até o momento não tem muitas
infoimações sobie as caiacteiisticas fisicas ua peisonagem, é infoimauo, naquele instante,
que ela possui um pênis e, mesmo uiante uo que seiia a eviuência maioi ue uma possivel
"masculiniuaue", se vê inceito, impossibilitauo ue afiimai, com ceiteza, se está uiante ue um
homem ou ue uma mulhei. Alex é um "coipo estianho", inclassificável em tais categoiias
queer.




S
Butlei uestaca, via Austin e outios autoies¡as, que as palavias não apenas uescievem, mas também ciiam aquilo que
enunciam e uefenue que "o gêneio é peifoimativo poique é iesultante ue um iegime que iegula as uifeienças ue gêneio. Neste
iegime os gêneios se uiviuem e se hieiaiquizam ue foima coeicitiva" (Butlei, 2uu2, p. 64). A teoiia ua peifoimativiuaue tenta
entenuei como a iepetição uas noimas, muitas vezes feita ue foima iitualizaua, ciia sujeitos que são o iesultauo uestas
iepetições. Quem ousa se compoitai foia uestas noimas que, quase sempie, encainam ueteiminauos iueais ue masculiniuaue e
feminiliuaue ligauos com uma união heteiossexual, acaba sofienuo séiias consequências. Ciiticos ue Butlei tem uito que a
teoiia ua peifoimativiuaue entenue o gêneio ue uma foima voluntaiista, ou seja, a caua uia poueiiamos tiocai ue gêneio. veja
a ciitica ua autoia a essas leituias em Butlei (2uu2). 0utias teoiicas, a exemplo ue Pieciauo (2uu8) e Balbeistam (2uu8), têm
ciiticauo o fato ue o coipo estai muito ausente nessa teoiia ua peifoimativiuaue. Em outio texto pietenuemos iefletii sobie
essas ciiticas, com as quais não concoiuamos, em especial se levaimos em conta a obia Corpos que importom, ue Butlei (2uu8).

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24S
2.S Ab[eção
6

Apos tiansai com Alvaio, Alex não volta paia a sua casa e vai uoimii com a amiga
Robeita, filha uo colega ue tiabalho ue Kiaken. Buiante o filme peicebemos que Robeita e
vanuo paiecem sei os seus únicos amigos.
Robeita e Alex conveisam e soiiiem uuiante a noite. Ao amanhecei, Alex acoiua com
a amiga pintanuo as suas unhas. Iiiitaua¡o, vai até o banheiio tomai banho e tiiai o esmalte,
Robeita a¡o segue e entia no box. Alex e Robeita lavam uma a outia¡o, numa cena que
uemonstia a pioximiuaue entie elas¡eles. Robeita age natuialmente ao vei Alex sem
ioupas. Enquanto a amiga lava os seus cabelos, Alex a olha sem paiai, seus olhos peicoiiem
touo o coipo ue Robeita, que continua a massageai a cabeça e nuca ua¡o amiga¡o. Ciia-se,
novamente, uma tensão eiotica. Até que Alex, mostianuo iiiitação, livia-se uas mãos ue
Robeita e sai uo banheiio.
Alex ueixa a casa ua amiga e segue caminhanuo pela piaia quanuo é aboiuaua poi um
giupo ue iapazes vinuos ue baico. Como que piessentinuo pioblemas, tenta coiiei, mas é
agaiiaua poi eles, que iepetem o tempo touo paia que tenha calma, que não vão machucá-
la¡o. Alex tenta se uesvencilhai e atinge um ueles no iosto. "Filha ua puta!", exclama um uos
meninos, ao uai um muiio no iosto ue Alex que, caiua, tenta em vão se liviai uos agiessoies.
"Beixe-me vei!", "vamos vei o que tem aqui.", iepetem em tom saicástico enquanto
tiiam o sbort ue Alex. "E uma pica! Tem os uois! Tem tuuo!", uiz um ueles num misto ue
suipiesa e alegiia ao uescobiii o "mistéiio" ue Alex. "Que nojo!", exclama seu colega. "Que
uiz.! E muito bom", ietiuca o amigo, que em seguiua se uiiige a Alex e peigunta: "Fica uuio.
Beixa eu vei se fica uuio, queio vei se funciona" , uiz enquanto toca Alex ao mesmo tempo
em que paiece queiei penetiá-la. Neste momento chega vanuo, que expulsa os colegas e
choia, muito aiiepenuiuo e consciente uo que fizeia ao ievelai o segieuo ue Alex.
Ao veimos tal cena, uiveisas questões nos vêm à mente: Poi que isso acontece com
Alex. 0 que faz com que o seu coipo geie tamanha cuiiosiuaue. 0 que peimite que os
iapazes a¡o agiiuam ue tal foima. Seiiam eles moviuos poi um sentimento apenas ue
iepulsa. 0u seiia o uesejo o piovocauoi ue tamanha violência. Qual o valoi atiibuiuo ao seu
coipo. Qual a sua impoitância. Ele impoita.
A peispectiva foucaultiana uo conceito ue pouei ueixa-nos claio que naua escapa a
ele. Não é possivel estai "foia" uas ielações ue pouei, ele peipassa, nos mais vaiiauos

6
Butlei uefenue que o abjeto "não se iestiinge ue mouo algum a sexo e a heteionoimativiuaue. Relaciona-se a touo tipo ue
coipos cujas viuas não são consiueiauas 'viuas' e cuja mateiialiuaue é entenuiua como 'não impoitante'" (Piis e Neijei,
2uu2:161).

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ângulos, touos os coipos e ielações. Aqueles que, ue algum mouo, iesistem ao pouei
hegemônico, poi ele também são afetauos, poi ele são proJuziJos. Se pensaimos na
heteionoimativiuaue
7
como sustentaua a paitii ua coeiência entie sexo, gêneio, uesejos e
piáticas sexuais, guiauos a paitii ue um "mouo ue viua" heteiossexual, peicebemos que os
coipos que uiiblam essa iegia, a subveitem e pioblematizam, escancaiam o seu caiátei
ficcional e são também piouuziuos poi esta noima que, afinal, piecisa ue algo a que se
iefeienciai, paia que, a paitii uo que não é, afiimai-se enquanto possivel. 0 coipo intersex,
como o ue Alex, é geiauo a paitii uesta logica. Piovoca, ao mesmo tempo, não apenas
iepulsa, mas também fascinio, cuiiosiuaue e uesejo, como nos mostia a sequência acima
uesciita. Sua impoitância. Paiece não havei. 0 que peimite que aqueles que se consiueiam
noimais sintam-se no uiieito ue violentá-lo¡a, como se o¡a venuo, tocanuo-o¡a, fossem
extiaii a sua veiuaue: "Fica uuio. Funciona."
A heteionoimativiuaue, enquanto piouutoia ue sujeitos anoimais, peimite que o que
acontece com Alex aconteça com qualquei um que ouse uesafiá-la: gays afeminauos, lésbicas
masculinizauas, tiavestis, tiansexuais são uiaiiamente assassinauos poi conta ua
ininteligibiliuaue a eles¡as atiibuiuo¡a, são coipos que não impoitam, coipos abjetos,
estianhos, queer. E isso paiece ficai eviuente em XXY.

3. Cons|derações f|na|s
XXY é, sem uúviua, um filme polêmico. Atiaiu gianue público, ganhou uiveisos
piêmios em festivais, iecebeu ciiticas entusiastas e outias nem tanto. Se, poi um lauo, o
filme ueu visibiliuaue a uma questão pouco uiscutiua, poi outio teve que optai poi
ueteiminauo mouo ue fazê-lo. Como aigumenta o ativista intersex Nauio Cabial,
XXY é um IIIme com ucerLos e erros. Hu demusIudu uguu, demusIudos unImuIs
murInIos, demusIudu meIuncoIIu urgenLInu desLu de que nInguém sube de onde
nem u Lroco de que vem e se InsLuIu. Hu um suIume, umu cenouru e Iu uLé um
jogo de unuIogIus e equIvuIêncIu que exusperurIu uo especLudor muIs dudo u
sImeLrIu. Mus conLu umu IIsLórIu, nuo reIuLu um dIugnósLIco, nuo du um
exempIo, nuo IIusLru um munuuI, nuo du umu receILu, nuo prescreve um
LruLumenLo, nuo dIsLrIbuI punIIeLos de um grupo de uuLo-ujudu, nuo pede
soIIdurIedude, nuo oIerece pIedude, nuo Iuz que ¨vuIIu u penu¨, nuo dIz o que se
pussu, nuo dIz o que Iuzer. Contc umu IIsLórIu. ConLu umc IIsLórIu. ConLu umu
históric. (CABRA¡, zooq, p.1o;)


7
0 conceito ue heteionoimativiuaue ievela como a heteiossexualiuaue compulsoiia, muito mais foite no peiiouo ua
patologização uas oiientações sexuais não-heteiossexuais, ciiou um mouelo hegemônico ue vivência ua sexualiuaue que se
alastiou e acabou poi se intiouuzii na constituição uas iuentiuaues ue touas as pessoas, sejam elas heteiossexuais ou não. Paia
mais ieflexões sobie esse tema, vei Colling (2u11) e Niskolci (2uu9).

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0 que piopomos com este tiabalho é uma análise ue como essa histoiia é contaua. Não
nos contentamos simplesmente com a visibiliuaue intersex, mas piocuiamos uiscutii como o
assunto é tiatauo, como a subjetiviuaue intersex é colocaua em cena.
Alex é um peisonagem cativante. Seu tempeiamento áciuo, agiessivo, sua foiça ue
vontaue e coiagem paia enfientai a situação em que se encontia faz com que o espectauoi,
ainua que possa não entenuei o seu coipo e suas uecisões, toiça paia que ela¡ele fique bem.
E nesse aspecto o filme alcança êxito.
0 uso ue conteuJos orquétipos, atiavés ue temas maicantes comuns aos teenoqer
movies é estiatégico. Faz com que o uiama, poi momentos, seja suavizauo, conviua o
espectauoi a olhai paia Alex como um¡a auolescente que, aos 1S anos, passa poi aquilo que
muitos outios¡as vivem nessa iuaue: a angústia e uúviua em ielação ao seu coipo e
sexualiuaue.
A pioposta ue Lucia Puenzo, ao peisonificai o uiscuiso méuico-patologizante no
peisonagem viviuo poi Ramiio (vaiuoso, asséptico, em busca ue uma peifeição), questiona
tal posição e uá ênfase a mouos subjetivos ua expeiiência intersex. Não é estai,
necessaiiamente, contia a ciiuigia noimativa, mas uai lugai à escolha. Alex escolbe paiai ue
tomai os ieméuios, escolbe não fazei a ciiuigia, escolbe ficai e encaiai touos os seus
pioblemas ue fiente. Nisso o filme está ue acoiuo com a maioiia uas oiganizações intersex
que uefenuem o pouei ue eleição uo sujeito em ielação ao seu coipo, sua iuentiuaue, sua
viua.
Faiá XXY paite uo New µueer Cinemo. Se, como aigumenta Nepomuceno (2uu9. p.2),
tal cinema uestaca-se "pela constiução ue filmes com aboiuagens menos sensacionalista
sobie a piouução ua uifeiença uos coipos, gêneios, sexualiuaues e, mais inteiessaua na
complexificação uas subjetiviuaues ambiguas e tiansgiessivas", XXY, sem uúviua, é um filme
queer.
No entanto, se pensaimos no "mouo ue fazei" cinema, escolha ue ângulos,
movimentação ua câmeia etc., peicebemos que o filme não é assim tão uifeiente, tão queer,
pois está apegauo às foimas tiauicionais ue se contai uma histoiia atiavés uo cinema, sem
muita inovação. 0 que, ceitamente, contiibuiu paia que fosse melhoi aceito, mais visto,
menos iepuuiauo pelo espectauoi que não está assim tão uisposto a saii uo seu confoito.
Nais uma estiatégia uo filme.
Concluimos, também, que um uos gianues pontos positivos uo filme não é apenas a
visibiliuaue e uiscussão ua inteisexualiuaue, mas o fato ue toinai o coipo intersex um coipo

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uesejante e uesejável. Alex tem a vanuo, Alvaio e Robeita, touos possivelmente inteiessauos
em tê-la¡o como namoiauo¡a ou amante. Não há espaço paia sexo noimativo no filme, a
única "cena ue sexo" é exatamente a sequência em que Alex, ue uma vez poi touas, subveite
as noções ue sexo, gêneio, uesejo e piáticas sexuais.
Nas esta subveisão lhe custa caio. Alex é agieuiua¡o, humilhaua¡o, violentaua¡o. 0m
coipo queer que piovoca uesejo e iepulsa, coipo abjeto que, pela piopiia escolha, não
piecisa uo centio como iefeiência, quei uistância uo consiueiauo "noimal", opta pela
maigem.
Em entievista a Piins e Neijei (2uu2), Butlei é questionaua em ielação aos coipos
abjetos, sobie o paiauoxo ua não-ontologia ue um coipo que existe. As autoias questionam:
"como algo poue 'sei' e, ao mesmo tempo, não gozai ue um stotus ontologico.". Ao que
iesponue Butlei:
Eu uLrIbuo onLoIogIu exuLumenLe uquIIo que Lem sIdo sIsLemuLIcumenLe
desLILuido do prIvIIégIo du onLoIogIu. O dominIo du onLoIogIu é um LerrILórIo
reguIumenLudo: o que se produz denLro deIe, o que é deIe excIuido puru que o
dominIo se consLILuu como LuI, é um eIeILo do poder |...| Mesmo se eu dIsser que
Iu corpos ubjeLos que nuo gozum de umu deLermInudu sILuuçuo onLoIógIcu, eu
reuIIzo essu conLrudIçuo de propósILo. E esLou Iuzendo Isso precIsumenLe puru
jogur no rosLo duqueIes que dIrIum: Mus você nuo esLurIu pressupondo...?. Nuo!
MInIu IuIu nuo precIsu necessurIumenLe pressupor... Ou, se o Iuz, Ludo bem!
TuIvez esLeju produzIndo o eIeILo de umu pressuposIçuo uLruvés de suu
perIormunce. (PR¡NS e ME¡JER, zooz, p.161)

Beste mouo, Butlei, os estuuos queer e Lucia Puenzo, em XXY, ieivinuicam o lugai
maiginal, tiansgiessoi, abjeto, como uma posição ue iesistência a toua e qualquei noima
que, compulsoiiamente, ciie e opiima ueteiminauos estilos ue viua, piáticas, uesejos e
coipos uesviantes. 0 que Butlei piopõe e, neste sentiuo Lucia Puenzo paiece estai em
sintonia, é a politização uo abjeto. 0 "coipo estianho" ue Alex é politico, subveisivo,
necessáiio e uesejauo.

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1he |ntersex body and the po||t|c|zat|on of
the ab[ect |n kk¥
Abstract
WhaL can Lhe lotetsex body Lell us? Pow does Lhls lssue geL
more complex lf we Lhlnk abouL lLs represenLaLlon ln Lhe medla,
speclally ln clnema? ln Lhls arLlcle, sLarLlng from Lucla Þuenzo's
kk¥, we pose Lhese and oLher quesLlons relaLed Lo devlanL
bodles and deslres. WlLh a subverslve and non-paLhologlzlng
dlscourse, kk¥ proposes a careful look aL Lhe sub[ecLlvlLles of

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2S0
Lhese experlences. We argue LhaL Lhe fllm, ln resonance wlLh Lhe
queer sLudles, ls alerL Lo Lhe pollLlclzaLlon of Lhe ab[ecL bodles.
keywords
lnLersex, clnema, queer, ab[ecLlon.

L| cuerpo |ntersex y |a po||t|zac|ón
de| abyecto en kk¥
kesumen
¸Cue nos puedes declr el cuerpo lnLersex? ¸Cómo el debaLe se
amplla se pensarmos en su represenLaclón en los medlos de
comunlcaclón, especlalmenLe en el clne? Ln esLe esLudlo, a
parLlr de kk¥, pellcula dlrlglda por Lucla Þuenzo, se dlscuLen
esLos y oLros Lemas relaclonados con los cuerpos y deseos
desvlanLes. Con un dlscurso subverslvo y anLl-paLológlco, xx?
propone un o[o vlgllanLe sobre la sub[eLlvldad de Lales
experlenclas. SosLenemos que la pellcula, asl como los esLudlos
poeet, es consclenLe de la pollLlzaclón de los cuerpos abyecLos.
Þa|abras-c|ave
lotetsex, clne, queer, ab[eclón.



keceblJo em 15/09/2011
Acelto em 19/10/2011

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