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"Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; pelo contrário, é uma
necessidade que me foi imposta, Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho"
(1Cor 9,16)
Introdução
O que se entende por "missão"? O que é "missão"? Muitos livros foram escritos
neste século e nos passados sobre este tema. Mas existe um minúsculo
tratado de um bispo do Nordeste brasileiro cujo "ímpeto evangelizador"
ultrapassou as fronteiras da América. Ele levou a Boa Nova e deu de nossa
pobreza (cf. DP 368) a todos os continentes. Conhecido e venerado igualmente
nos dois hemisférios, partiu para a pátria definitiva às 22:30 horas do dia 27 de
agosto deste ano: Dom Helder Câmara:
"Missão é partir, caminhar, deixar tudo, sair de si, quebrar a crosta do egoísmo
que nos fecha no nosso Eu. É parar de dar volta ao redor de nós mesmos
como se fôssemos o centro do mundo e da vida. É não se deixar bloquear nos
problemas do pequeno mundo a que pertencemos: a humanidade é maior.
Missão é sempre partir, mas não devorar quilômetros. É sobretudo abrir-se aos
outros como irmãos, descobri-los e encontrá-los. E, se para encontrá-los e
amá-los é preciso atravessar os mares e voar lá nos céus, então missão é
partir até os confins do mundo."
O Decreto Conciliar "Ad Gentes" afirma: "A Igreja peregrina é por natureza
missionária. Pois ela se origina da missão do Filho e da missão do Espírito
Santo, segundo o desígnio de Deus Pai" (AG 2). "Ad Gentes" relaciona a
missionariedade da Igreja à sua catolicidade. Em outras palavras: a Igreja
deixa de ser católica se não for missionária. "Enviada por Deus a todos os
povos para ser sacramento universal de salvação, por exigência íntima de sua
catolicidade e obedecendo ao mandato do seu Fundador (cf. Mc 16,16),
esforça-se por anunciar o Evangelho a todos os povos" (AG1).
Tudo começou "ao raiar do primeiro dia da semana" (Mt. 28,1), quando "Maria
Madalena e a outra Maria" foram ao túmulo. As mulheres receberam a notícia
alvissareira de que o Corpo de Jesus não se encontrava mais na "tumba
talhada na rocha" (Lc 23,52): "Ele não está aqui, pois ressuscitou!" (Mt 28,6) E
"elas, partindo depressa (...) Correram a anunciá-lo aos seus discípulos" (Mt
28,8). São Marcos nos conta que Maria Madalena "foi anunciá-lo àqueles que
tinham estado em companhia dele e que estavam aflitos e choravam (Mc
16,10). Pelo Sim de uma mulher, Maria, Deus inicia sua maravilhosa obra
salvífica, enviando o seu Filho. Foi também através de uma mulher, de outra
Maria, que se inicia o anúncio pascal que atravessará os séculos. "É verdade!
O Senhor ressuscitou!" (Lc 24,34) tornar-se-á o "querigma apostólico" até os
nossos dias. O primeiro anúncio "Ressuscitou" coube às mulheres (Lc 24,1-10).
***
Filipe vai a Samaria anunciar "a palavra da Boa Nova" (At 8,4). Samaria é a
primeira região "além fronteiras". Pedro vai a Cesaréia e entra na casa de um
centurião da corte itálica (At 10,1) e se dá conta de que "Deus não faz acepção
de pessoas, mas que, em qualquer nação, quem o teme e pratica a justiça, lhe
é agradável" (At 10,34-35). Nasce a missão "ad gentes"! Depois do Concílio de
Jerusalém, "cheios de coragem", Paulo e Barnabé declaram: "Nós nos
voltamos para os gentios" (At 13,46). Inicia-se a grande epopéia da
evangelização que não parou até os dias de hoje: Icônio, Antioquia, Licaônia!
Paulo passa por Trôade, onde teve uma visão: "um macedônio, de pé, dirigia-
lhe este pedido: ‘Vem à Macedônia, socorre-nos!’" (At 16,9). Na Macedônia, o
Evangelho chega à Europa. Foi em Filipos que Deus "abriu o coração" de Lídia,
"para que ela atendesse ao que Paulo dizia" (At 16,14). Foi em torno desta
mulher que surgiu a primeira comunidade cristã européia. Paulo vai a
Tessalônica e explica que era preciso que Cristo sofresse e depois ressurgisse
dentre os mortos. E Cristo (...) é este Jesus que eu vos anuncio" (At 17,3). Uma
multidão de "adoradores de Deus e gregos, bem como não poucas mulheres"
(At 17,4) se deixam convencer. Paulo está; no areópago de Atenas e prega "O
que adorais sem conhecer, isto venho eu anunciar-vos" (At 17,23). Depois
funda a igreja de Corinto. "Cada sábado, ele discorria na sinagoga, esforçando-
se por persuadir a judeus e gregos" (At 18,4). Mais tarde encontra-se em Éfeso
e fala "com intrepidez, expondo e tentando persuadir sobre o Reino de Deus."
(At 19,8) É a "parresia", a "intrepidez", a "coragem", a "firmeza", o "destemor", a
"audácia" que caracteriza todo anúncio dos primórdios da Igreja. O último
versículo do último capítulo (At 28,31) do segundo livro de Lucas se refere à
"parresia", como se o autor sagrado nos quisesse dar a chave para o
verdadeiro entendimento dos Atos dos Apóstolos.
Estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Se a vida deles decorre na
terra, a cidadania, contudo está nos céus (...) Amam a todos, e por todos são
perseguidos. (...)
Os cristãos residem no mundo, mas não são do mundo. (...) Estão de certo
modo aprisionados no mundo, como num cárcere, mas são eles que sustém o
cosmos.
O mundo pode ser diferente! Missão é visão! A justiça de Deus não é a justiça
daquela estátua que tem os olhos vedados. Nosso Deus ouve o clamor dos
pobres, o sofrimento dos migrantes e convoca com a sua palavra os que a
confusão babélica dos macro-discursos excluiu do convívio social. Os espaços
de gratuidade que a arte e religião oferecem, podem ser espaços de resistência
contra o axioma de hoje: "lucro, logo existo", contra as contingências do
"culturalmente correto", definido pelo neoliberalismo globalizado. Da Missão
não se volta nunca mais do mesmo jeito agrave; própria pátria. Ao sair do
nosso lugar, mudamos a perspectiva da nossa vida. A missão tem uma força
transformadora sobre aqueles mecanismos que produzem a exclusão.
Esta identificação de Jesus com o caminho foi algo tão marcante para os
primeiros cristãos. Eles se autodenominavam de "pertencentes ao Caminho"
(At 9,2). São Paulo, ao lembrar-se como perseguia os cristãos, dizia: "Persegui
até a morte este Caminho" (At 22,4). O específico do cristianismo é o caminho
e a presença das metas em cada passo da caminhada. Como na íris do olho
de uma pessoa está mapeado todo o seu estado de saúde, assim a meta de
todo o caminho está também escrito em cada passo da caminhada missionária.
E se não estiver em cada passo, tampouco estará na reta final. O Reino não é
o ponto de chegada. Está no meio de nós (cf. Lc 17,21).
Uma Igreja peregrina é uma Igreja pobre. Uma Igreja instalada sempre cairá
nas malhas de estruturas pesadas e doutrinas complicadas que aprisionam o
Espírito. Uma Igreja a caminho é uma Igreja simples e transparente. Caminhar
ao encontro com Jesus ressuscitado é caminhar para fora da cidade onde ele
foi e ainda é crucificado. Quem "corre" não leva muitas coisas consigo. Não
precisa da "bolsa de valores", nem de "alforje" (cf. Lc 10,4). Nós não nos
deslocamos para um determinado campo de missão para "abrir uma casa",
mas para percorrer e abrir um caminho. Quem vai longe e confia no Senhor da
história, de poucas coisas precisa. Numa Igreja, que não somente optou pelos
pobres, mas que se fez pobre ao livrar-se de terras, casas e parentes (cf. Mt
19,29), os cristãos fazem a experiência da vida em abundância. Os dons de
Deus se multiplicam na medida em que são gastos. A caminhada, na
simplicidade e transparência do Espírito é o "exercício espiritual" permanente
desta fé.
O caminho não afasta a Igreja da sua origem ou das suas raízes. Pelo
contrário. É um encontro com a sua raiz em Jesus e a sua origem pentecostal.
A árvore que cresce ao alto cresce também nas profundidades da terra. As
raízes são a condição para que as árvores possam abrir-se para o alto. Uma
Igreja fechada é uma Igreja sem raízes. O discernimento, a opção e o caminhar
só são possíveis a partir das raízes profundas de uma identidade histórica. O
discernimento a partir das origens do caminho ajuda a não confundir a
fidelidade ao Senhor com a fixação em modelos historicamente superados.
Uma tradição estarrecida não protege a Igreja. Destrói a sua raiz pneumática e
a sua identidade de peregrina. Somente uma Igreja que é por natureza
peregrina fala legitimamente aos pobres e aos outros, aos culturalmente
diferentes, da verdade e da vida.
Missão significa ruptura. "Remendo novo em roupa velha" (Mc 2,21) não muda
o curso da história. Ruptura significa desprogramar-se para desprogramar o
mundo. É uma tarefa-pergunta árdua que nos reúne aqui: Como produzir
rupturas, como aproveitar as rachaduras do sistema para plantar os nossos
sonhos e os sonhos dos pobres e dos excluídos? O mundo globalizado e
virtualmente conectado em redes de comunicação nos faz refletir sobre o
significado da parábola do Reino que "é semelhante a uma rede lançada ao
mar" (Mt 13,47) do tempo e do universo.
Conclusão
Quero concluir com as palavras do Papa João Paulo II. Na sua mensagem por
ocasião do Dia Missionário Mundial a ser celebrado no próximo dia 24 de
outubro, João Paulo II nos diz: "A missionariedade deve constituir a paixão de
cada cristão; paixão pela salvação do mundo e ardente compromisso em vista
de instaurar o Reino do Pai." E comparando os missionários com as "sentinelas
sobre os muros da Cidade de Deus" exclama: "O seu testemunho generoso em
cada recanto da terra anuncia que, ao aproximar-se o terceiro milênio da
Redenção, Deus está preparando uma grande primavera cristã, cuja aurora já
se entrevê‘ (RMi 86). Maria, "Estrela Matutina", ajuda-nos a repetir com ardor
sempre novo; "Fiat" ao desígnio de salvação do Pai, para que todos os povos e
línguas possam ver a sua glória (cf. Is 66,18).